○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Educação & Políticas Educacionais – Ensino Superior Docência universitária – cotidiano escolar e diversidade humana University teaching – the school’s daily life and human diversity Silvana Malusá Doutora em Educação pela UNIMEP Professora do Programa de Mestrado em Educação Superior da UNIT/MG Maria Isabel de Araújo Professora de Educação Superior na UNIT/MG Valéria G. Ulhôa Biasi Professora de Educação Superior na UNIT/MG R e s u m o Este artigo trata da capacitação de docentes para o ensino superior em consonância com as necessidades de uma sociedade globalizada. Estão em foco, ainda, o papel do professor universitário e a relação entre o educador e o educando. O texto ressalta a importância da educação continuada, bem como do estabelecimento de um vínculo entre as situações vividas na escola e as experimentadas no dia-a-dia fora do ambiente de ensino. Unitermos: capacitação; globalização; educação continuada; interação Synopsis This article deals with the teachers’ qualification for higher education according to the needs of a globalized society. Also in focus are the professor’s role and the relationship between the educator and the student. The text emphasizes the importance of the continued education, as well as the establishment of a bond between the situations lived within the school and those experienced in the daily life outside the teaching set. Terms: qualification, globalization, continued education, interaction Resumen Este artículo trata de la capacitación de docentes para la enseñanza superior en consonancia con las necesidades del profesor universitario y la relación entre el educador y el educando. El texto resalta la importancia de la educación continuada, así como del establecimiento de un vínculo entre las situaciones vividas en la escuela y las experimentadas todos los días en el ambiente de enseñanza. Términos: capacitación; globalización; educación continuada; interacción Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 101 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Introdução O ○ ○ presente artigo é resultado de um trabalho teórico de um subprojeto de pesquisa intitulado “Capacitação docente no ensino superior”, vinculado a um projeto maior denominado “A docência universitária; questões pertinentes”, formado por um conjunto de investigações na área da educação superior. Especificamente, este subprojeto converge suas pesquisas para analisar a prática docente no ensino superior, estando vinculado à Linha 2 de pesquisa: “A docência no ensino superior”, do Programa de Pós-Graduação em Educação Superior do Centro Universitário do Triângulo – UNIT/MG. Sobre essa temática, “docência universitária”, apenas recentemente começou-se a voltar as atenções, pensando na dificuldade do docente em organizar e socializar o conhecimento. Essa deficiência dá-se, também, em função da não exigência de uma formação pedagógica nos cursos de educação superior. Nessa realidade, o presente trabalho procura analisar as relações existentes no cotidiano escolar e a diversidade relativa a elas num mundo globalizado, considerando o papel primordial da educação na construção e preservação de valores individuais do homem do terceiro milênio. Discute o papel do professor universitário frente a essa diversidade, os caminhos, os posicionamentos, a sua própria formação, bem como o relacionamento entre educador e educando nos processos de ensino e de aprendizagem. Por que ainda temos um ensino que não respeita as diferenças e as diversidades? Essa deficiência dá-se em função da não exigência de uma formação pedagógica nos cursos de educação superior ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Com essa discussão, chega-se à construção de saberes voltados às necessidades individuais, contextualizada às exigências de um mundo em rápido processo de transformação. Isso justifica o papel fundamental da educação pautado nos pilares de Delors1 : aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. Assim perguntamos: se o homem é sujeito da produção de si mesmo, por que ainda temos um ensino que não respeita as diferenças e as diversidades, impedindo o aluno de ser o sujeito de sua ação à medida em que recebe conhecimentos e valores que não condizem com suas necessidades? O processo da globalização remete-nos a efeitos de transformação que vêm afetando o mundo e as pessoas nos campos sociais, econômicos e políticos. Não se trata de um processo neutro, pois gera uma exclusão social nunca antes vista em toda história da acumulação capitalista. Apesar dos discursos neoliberais, a ideologização de valores historicamente construídos é apresentada como verdade absoluta à grande massa da população que não consegue alcançar os benefícios dos avanços tecnológicos e científicos, agravando, assim, a desigualdade social por meio do desemprego estrutural. Isso leva a um exacerbado processo de individualismo e competitividade. Segundo Malusá 2 , a requalificação da educação nesse contexto é peça fundamental na preparação da mão de obra para o atual mercado de trabalho. A autora aler- 1 Jacques Delors. Educação um tesouro a descobrir: relatório para a UNESCO da comissão internacional sobre educação para o século XXI, 1998. 2 Silvana Malusá. O sistema socioeconômico atual, a ética e os desafios à educação. In: Revista de Educação do COGEIME COGEIME, v. 10, n. 18, 2001. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 102 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ta-nos para o fato de que a filosofia neoliberal existente coloca em segundo plano a solidariedade e a cidadania, elegendo o mercado e os seus funcionamentos para redimensionar a educação. Comenta ainda que as políticas para a educação e a discussão sobre seu papel vivem um momento peculiar. O mundo desenvolvido e globalizado faz afirmar que realização educacional e sucesso econômico estão estritamente ligados e que a causa do reerguimento das nações no regime de livre comércio deveria estar em privilegiar, primeiramente, a sala de aula. Essa realidade faz com que nós, educadores, nos sintamos, de certa forma, perdidos e, muitas vezes, tomados por forte sentimento de insegurança. É verdade que a humanidade tem toda a sua trajetória marcada, desde o início dos tempos, por situações de crise, nas quais experiências e valores anteriores parecem, de repente, perder sentido. E ainda, a definição de novos rumos adequados a novas necessidades e novos interesses, especialmente ao bem-estar e à felicidade coletivos, se apresenta como tarefa penosa e de difícil realização. As perspectivas para este século indicam a educação como pilar para alicerçar os ideais de justiça, solidariedade e liberdade. As transformações econômicas, políticas e sociais pelas quais o mundo vem passando são reais. A humanidade tem sido desafiada a assistir duas transições importantes que afetam profundamente a sociedade: o advento da sociedade do conhecimento e a globalização. 3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ As exigências de uma economia globalizada afetam diretamente a formação dos profissionais em todas as áreas do conhecimento As transformações econômicas, políticas e sociais pelas quais o mundo vem passando são reais ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A acelerada mudança em todos os níveis leva o homem a ponderar sobre uma educação mundial e globalizante. Educar, hoje, instiga a refletir sobre o processo de globalização que tem passado a integrar os sistemas financeiros, econômicos, políticos e sociais das nações. Paralelamente, ocorre a transição da sociedade industrial, voltada para a produção de bens materiais, para a sociedade do conhecimento, que tem como meta a produção intelectual com uso intensivo de novas tecnologias. As exigências de uma economia globalizada afetam diretamente a formação dos profissionais em todas as áreas do conhecimento. É necessário enfatizarmos que o profissional esperado para atuar na sociedade do conhecimento deve possuir uma formação qualitativa diferenciada do que se tem ofertado, atualmente, em um grande número de universidades. Acreditamos que um dos desafio das universidades, hoje, seria o de instrumentalizar os alunos para um processo de educação continuada, o qual deverá acompanhá-lo em toda a sua vida. Nesta perspectiva, o professor precisa repensar sua prática pedagógica, conscientizando-se de que não pode absorver todo o universo de informações e passá-las para seus alunos. Como as informações, hoje, são inúmeras, o professor precisa passar do ensinar para o enfocar do aprender e, principalmente, o aprender a aprender 3 . Percebemos que os avanços tecnológicos, científicos e eletrônicos não estão trazendo a vida em plenitude para o homem. Ao contrário, José Manuel Moran; Marcos T. Masetto; Marilda Aparecida Behrens. Novas tecnologias e mediação pedagógica pedagógica, 2000. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 103 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ o novo desafio, a competitividade exacerbada, tem gerado, em muitos casos, a angústia, levando o homem ao estresse. Há, portanto, uma necessidade de se resgatar valores essenciais. Assim, queremos aqui nos pautar nas questões relacionadas à diversidade e na formação de professores, repensando uma prática em sala de aula baseada nos quatros pilares do conhecimento defendido por Delors4 . O Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI aponta, como principal conseqüência da sociedade do conhecimento, a necessidade de uma educação continuada, assentada nos pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. No primeiro deles encontramos: ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Aprender a fazer não pode, pois, continuar a ter o significado simples de preparar alguém para tarefa material bem determinada, para fazê-lo participar no fabrico de alguma coisa. Como conseqüência, as aprendizagens devem evoluir e não podem mais ser consideradas como simples transmissão de práticas mais ou menos rotineiras(...).6 Este tipo de aprendizagem que visa não tanto à aquisição de um repertório de saberes codificados, mas antes ao domínio dos próprios instrumentos do conhecimento pode ser considerado, simultaneamente, como meio e como finalidade da vida humana (...) se pretende que cada um aprenda a compreender o mundo que o rodeia (...) seu fundamento é o prazer de compreender, de conhecer, de descobrir.5 Trata-se, portanto, de ir além da tarefa repetitiva, do ato de repetir o que está feito, mas sim de buscar o fazer na criação com criatividade e autonomia. O terceiro pilar refere-se ao aprender a viver juntos: “levar os alunos a tomarem consciência da semelhanças e da interdependência entre todos os seres humanos no planeta”7 . Portanto, precisam reaprender a viver juntos, a respeitar as individualidades num processo coletivo para aprender e se emancipar, atos fundamentais para o trabalho com a diversidade humana. A validade desse pilar implica redimensionar as práticas pedagógicas dos professores em todos os níveis de ensino. Os professores e os alunos passam a ser parceiros de um projeto comum. Os processos de ajuda mútua, de colaboração, de cooperação, precisam ser instigados sob pena de o aluno não estar preparado para enfrentar as exigências que a sociedade vem apresentando nos diversos segmentos. No quarto pilar, aprender a ser, a ênfase da educação está em contribuir para o desenvolvimento integral do homem “espírito e corpo, inteligência, Os professores e os alunos passam a ser parceiros de um projeto comum Como segundo pilar, Delors apresenta o aprender a fazer, aprendizagem indissociável do aprender a conhecer, e recomenda: 4 Jacques Delors. Educação um tesouro a descobrir: relatório para a UNESCO da comissão internacional sobre educação para o século XXI, 1998. 5 Idem, Ibidem, p. 91. 6 Idem, Ibidem p. 93. 7 Idem, Ibidem, p. 97. 8 Idem, Ibidem, p. 99. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 104 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ sensibilidade (...), para elaborar pensamentos autônomos e críticos e para formular os seus próprios juízos de valor (...)”8 . Com essa visão, o quarto pilar tenta superar a desumanização do mundo, conferindo ao homem a liberdade de pensamento e responsabilidade por seus atos. Vivemos num período de rápidas mudanças, em que a experiência da crise traz o sentimento de que algo envelheceu e de que o novo está para surgir, sem que se enxergue esse novo, ainda, com a clareza necessária. É quase sempre um momento de dor, de angústia, de inquietação, tanto mais profundas quanto mais graves forem as circunstâncias e a urgência de uma vida nova e sempre melhor. E é justamente nesses momentos, como também aconteceu em outras “crises” históricas, que se vivem tendências conflitantes em todos os campos da vida: uns, mais conservadores, tendem a preservar o antigo, vendo no novo um risco, um perigo; outros, talvez mais afoitos, rompem definitivamente com o velho e se lançam em busca do novo, utilizando como critério cortes radicais na tradição. Tanto uns quanto outros, em geral, se desiludem, pois a história não se faz com conservadorismo ou com rupturas radicais, havendo sempre algo no velho que permanece novo e havendo, no que se presume como radicalmente novo, germes envelhecidos do passado. O momento que vivemos representa uma dessas desafiadoras ocasiões para a educação. De repente, parece que todos os nossos valores se esvaziaram de sentido, pairando no ar uma insatisfação generalizada e também uma dúvida atroz com relação a tudo o que, até há pouco, se Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A experiência da crise traz o sentimento de que algo envelheceu e de que o novo está para surgir O conhecimento, o Estado, a sociedade e o trabalho sofrem fragmentações no que antes parecia ser verdade absoluta A história não se faz com conservadorismo ou com rupturas radicais ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ constituía para nós em padrões seguros de agir, em formas corretas de pessoas, em conhecimento indubitável do real. É na ciência, na economia, nos costumes e valores morais, na política, é em tudo, afinal, que se instauram essa insatisfação e essa dúvida. O mundo globalizouse por meio, especialmente, da comunicação em tempo real: hoje assistimos ao que está acontecendo agora do outro lado da Terra. De tal forma que entram pela porta de nossas salas novos costumes, novos valores, novas idéias, novos comportamentos, novas necessidades, novas formas de pensar, de ver, de julgar, de sentir, os quais não pudemos imaginar um dia conhecer e vivenciar. Com a globalização da comunicação e com a unificação do mundo em termos de visão da realidade, vivemos uma experiência nova com rupturas de paradigmas, em que o conhecimento, o Estado, a sociedade e o trabalho sofrem fragmentações no que antes parecia ser verdade absoluta, dando lugar à pluralidade cultural, ao respeito à diversidade e a “novos” conceitos de ver a educação, o homem e o mundo. Conceitos estes pautados nos ideais de educação para todos, e sustentados também em quatro pilares do conhecimento, como conseqüência da necessidade de se repensar paradigmas tradicionais. O que fazer? Para onde caminha a humanidade? Talvez a resposta possa ser a de Tedesco: A crise, em conseqüência, já não provém da forma deficiente de como a educação cumpre os objetivos sociais que lhe são atribuídos, mas, o que é ainda mais grave, do fato de não sa- ○ ○ ○ 105 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 9 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Essas “novidades” acompanham, de perto, o fenômeno histórico da globalização , e a própria Unesco já se refere à escola, hoje, como a escola global. Talvez seja essa idéia – a idéia de uma “escola global”, em que tanto o intra como o extra-escolar ganham igual relevância – a nota característica essencial da tendência maior da educação no século XXI. Porém, muito há que se fazer, ainda, para a realização dessa tendência: a superação do analfabetismo, a conquista da paz, a democratização do ensino. A busca, permanente e concreta, pelos governos e pelos povos, de uma melhor forma de conviver, num mundo de menos violência, num mundo mais humano e justo. Há uma inexorável missão que nos é imposta, a nós educadores, como tendência a ser assumida dentro das graves circunstâncias e das novas realidades do mundo em que vivemos, para salvaguarda mínima das condições de sobrevivência, de forma digna, da humanidade: a missão de fazer da escola uma “escola global”, mas, muito mais que isso, de fazer da escola global uma escola ética . É neste contexto que nasce, a nosso ver, a necessidade de materializar a tendência mais atual de conciliar Educação-Globalização-Diversidade Humana. Frente a este novo paradigma, um dos aspectos relevantes e que merece bastante atenção é a forma como estão sendo efetivadas as relações de construção do conhecimento escolar primando pelo respeito à diversidade humana, baseado nas políticas que recomendam a reestruturação do sistema escolar envolto por uma clientela heterogênea, bermos que finalidade ela deve cumprir e para onde deve efetivamente orientar suas ações. Essa mudança na natureza da crise também se reflete no âmbito dos críticos. Enquanto se tratava de deficiências, os críticos encontravam-se entre os próprios educadores, pesquisadores e acadêmicos em geral. Agora que a crise já não implica acrescentar mais da mesma coisa, mas modificar orientações e comportamentos, os críticos encontram-se especialmente entre os atores externos ao processo pedagógico e às instituições educacionais.9 Ou ainda na própria LDB, 9.394/ 96, em seu artigo 3º, no qual se estabelece que o ensino será ministrado nos princípios de: igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino e outros. A escola, hoje, representa um papel fundamental que é o de, junto a seu aluno e a sociedade em geral, buscar e acompanhar as mudanças ocorridas num mundo globalizado. Esta prática não é fácil, mas respeitando a diversidade a ela inerente, aprendendo a conhecê-la, para compreendê-la, aprendendo a fazer, para poder agir, aprendendo a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas e, finalmente, aprendendo a ser é que encontraremos coerência nas ações e propostas em vias de mudança. ○ Nasce a necessidade de materializar a tendência mais atual de conciliar educaçãoglobalizaçãodiversidade humana Juan Carlos Tedesco. O novo pacto educativo educativo: educação, competitividade e cidadania na sociedade moderna, 1998, p. 15. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 106 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ que deve ser permeada pelos quatro pilares do conhecimento. Assim, se estamos nos propondo discorrer sobre estas questões, faz-se necessário buscar as relações que existem entre conhecimento científico escolar e cotidiano, para uma melhor compreensão das situações de atendimento acerca da diversidade. Cotidiano escolar e diversidade humana Para falarmos em diversidade humana e educação, esta, entendida como cotidiano escolar, é importante ressaltar que conhecimento científico e conhecimento cotidiano, em momento algum, são colocados à parte por nós, visto que acreditamos serem eles o ponto principal para a prática escolar em prol da diversidade humana. E é por meio da construção cotidiana e científica do conhecimento que serão estruturadas as bases dos saberes escolares. Segundo José e Arnay 10 , ambas as formas de conhecimento, científico e cotidiano, “co-evoluem, isto é, evoluem conjuntamente no tempo, graças a esta interação, o que significa que não mudam independentemente um do outro”. O conhecimento escolar é a própria instância onde se modifica o conhecimento cotidiano mediante o confronto com o conhecimento científico, o que produz a maneira de pensar de cada um, sua visão de mundo e sua conseqüente postura de transformação da realidade. A hipótese da incompatibilidade entre o científico e o cotidiano, na intervenção educativa, se configura na proposta de uma mudança conceitual unida à 10 Conhecimentocientífico econhecimento cotidiano, em momento algum, são colocados à parte por nós A educação só é educação quando trabalha as diferenças Oconhecimentoescolar é a própria instância onde se modifica o conhecimento cotidiano mediante o confronto com o conhecimentocientífico ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ instrução das idéias constitutivas dos alunos às idéias científicas. Nessa visão, o saber escolar é o produto e o processo. Ao mesmo tempo, para se chegar a ele, é preciso ter como enfoque a diversidade humana. Mas, para isso, é preciso considerá-la em seu contexto social, político, econômico, cultural e educacional, tendo em vista suas bases de organização e estruturação no movimento constituído pelo homem e as relações sobre sua ação. Assim, pode-se dizer que o conhecimento escolar se dá no processo de ensino e aprendizagem, e este acontece de acordo com a visão de cada um. Ao se falar em conhecimento escolar, vem à nossa mente o complexo panorama que existe hoje. Numa visão sociocultural em que o conhecimento é fruto de uma construção, nos deparamos com as diferentes construções existentes no âmbito do cotidiano escolar. E a educação só é educação quando trabalha as diferenças, pois o mais importante é que somos diferentes e que crescemos uns com os outros; crescemos com o diferente. Os alunos, diversos entre si em função da singularidade, da visão de homem e de mundo de cada um, constroem o conhecimento, cada qual ao seu modo, em um universo conceitual, onde descobrem a sua personalidade e realidade individual. Tem-se, assim, diferentes cenários ou saberes em um único ambiente: o escolar. Tal construção conceitual, no entanto, só se tornará uma elaboração de cunho mais epistemológico e científico se o ambiente do cotidiano escolar propiciar condições para se trabalhar de forma a instigar o aluno a Maria José; José R. Arnay (org.). Conhecimento cotidiano, escolar e científico: representação e mudança, 1998, p. 87. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 107 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ conceber uma nova visão ou forma de conhecimento. Desse modo, ele poderá atuar na realidade de uma forma mais crítica e construtiva, isto é, com capacidade para transformar tal realidade. Essa prática baseia-se no respeito à diversidade humana, na aceitação do diferente como um indivíduo que contribui para uma reflexão de uma práxis dinâmica. Portanto, é de suma importância a visão que se tem de homem/educação e quais conhecimentos e objetivos sustentam tal prática. Esses serão determinantes na ação do educador: o que, como e para quem ensinar? Tal postura pode contribuir para a formação, no âmbito do cotidiano escolar, de sujeitos donos de sua própria história e da sua educação. É preciso, inicialmente, buscar o saber do aluno, sua visão contextual do mundo, de maneira a acrescentar mais ao saber cotidiano e, então, partir para o saber científico. Contudo, é imprescindível que não haja dicotomias entre o que o aluno quer ou precisa saber e o que o professor quer ensinar. A meta é a aquisição do saber elaborado ou científico. Mas isso deve acontecer de uma forma crítica e, acima de tudo, contextualizada para se organizar e produzir novas perspectivas. Essa visão da construção do cotidiano escolar vem ao encontro de uma visão dialética do próprio conhecimento e do ser humano, ambos em constante transformação e, conforme os objetivos, metas e interesses de cada um ou do momento histórico: “o conhecimento escolar deve coletar o pensamento próprio de cada cultura, pensa11 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ É de suma importância a visão que se tem de homem/educação e quais conhecimentos e objetivos sustentam tal prática É imprescindível que não haja dicotomias entre o que o aluno quer ou precisa saber e o que o professor quer ensinar ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ mento que se organiza em diferentes sistemas de idéias” 11 . Isso evidencia uma visão crítica da ideologia que perpassa todos os conhecimentos, as crenças e os valores, mas que separa o que é determinado do que é determinante, pois não basta compreender a complexidade que circunda o ser humano e suas relações, nem a diversidade que o compõe. O mais importante é saber entender e construir o devir, o vir a ser de novos paradigmas. Estes são procedimentos orientados por propostas como da ONU, a qual tem desenvolvido ações em prol do atendimento a todos, enfatizando o respeito aos direitos individuais e à liberdade dos outros, o reconhecimento e a aceitação das liberdades individuais e o apreço pela diversidade cultural, o que implica não conferir a nenhuma cultura, nação ou religião o monopólio do saber ou da verdade. Pautar-se em aspectos da diversidade humana; aspectos das relações do homem com os outros homens na construção de um conceito de educação que vislumbre a singularidade, é fundamental. Em outras palavras, que cada indivíduo possa adquirir condições de delinear o seu caminho, a sua visão, com base na junção de toda sua trajetória nos papéis de cidadão, aluno, filho, esposo, professor etc. E é essa junção que lhe proporcionará a organização de sua visão de mundo, sua postura política, filosófica, educacional e, por conseqüência, sua forma de agir e interagir no meio em que vive. Isso posto, é fácil perceber a complexidade que envolve o cotidiano escolar em suas várias interfaces. Idem, Ibidem, p. 95. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 108 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Estas estão imersas em um sistema político educacional permeado por documentos que, conceitualmente, determinam que se tenham ações que atendam à sociedade plural, universal, globalizada e, ao mesmo tempo, se organizem para não excluir o singular, o individual. Prova disto é a Declaração Mundial sobre a Educação do Século XXI, em que a Unesco busca resgatar e contribuir para a união dos países globalizados por meio do respeito à democracia, do diálogo entre as culturas – que são expressos em uma educação para a cidadania -, da não violência e do combate aos conflitos sociais. Nessa perspectiva, encontramos na LDB, 9394/96, avanços significativos em sua leitura sobre a formação docente; porém suas ações ou políticas de efetivação tendem a seguir uma linearidade, como a questão dos temas transversais dos PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais. Tudo isto nos faz pensar em cotidiano escolar e diversidade humana. Pois, se o cotidiano escolar deve ser o espaço onde se organiza, se reorganiza, se analisa, e se constrói formas de pensamento embasadas na própria história de cada um e da sociedade no conjunto das relações, temos então que observar como se processa o saber diante dessa diversidade; esse conhecimento ou forma de conceber o mundo de cada um. Nesse sentido é que nossa investigação acerca do cotidiano escolar no trato com a diversidade humana vem nos proporcionar o fenômeno do vivenciar e acompanhar esta organização dinâmica que ocorre dentro do cotidiano escolar, permeado pela di12 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O século XX terminou com uma avalanche de reformas no campo educativo No cotidiano escolar, é possível percebermos uma dificuldade para se trabalhar dentro das propostas de transformação ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ versidade, que é fruto de um mundo globalizado. É neste universo que percebemos o significado e a freqüência de cada manifestação ou relação de professores e alunos e o contexto em que estão inseridos. Temos nos deparado com novos paradigmas, nos quais o que se busca resgatar é uma organização em que o saber e o ensino sejam algo contextualizado e integrado à realidade. E que no contato com novas idéias, seja possível, também, a estruturação e concretização de novas ações. O século XX terminou com uma avalanche de reformas no campo educativo: mudaram-se as leis e normas que regulam o funcionamento dos sistemas escolares, mudaramse a própria organização da escola, os currículos, os sistemas de formação docente, a avaliação. Porém, a milagrosa transformação educativa tarda para fazer-se presente. A partir disto, no cotidiano escolar, é possível percebermos uma dificuldade para se trabalhar dentro das propostas de transformação; não por vontade, mas por desconhecimento, pois os profissionais da educação foram formados em uma visão dicotômica do ensino, na qual aos alunos cabia aprender, e aos mestres, ensinar. Isso nos remete a citação de Freire, ao afirmar que “ensinar não é transferir conhecimento, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado”12 . Conclusão Voltemos à pergunta que pautou este trabalho: se o homem é sujeito Paulo Freire. Pedagogia da autonomia autonomia: saberes necessários à prática educativa, 1996, p. 25. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 109 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ da produção de si mesmo, por que ainda temos um ensino que não respeita as diferenças e as diversidades, impedindo o aluno de ser o sujeito de sua ação à medida em que recebe conhecimentos e valores que não condizem com suas necessidades? De acordo a reflexão que fizemos sobre o assunto, o ensino precisa ter uma relação de cumplicidade, em que educador e educando interajam de modo a conhecer as necessidades e potencialidades de cada um. Assim, professores e alunos poderão estruturar sua forma de ensinar e aprender de maneira coerente com as necessidades individuais. Quando não há interação no processo de ensino e aprendizagem, há uma tendência a se patologizar o cotidiano escolar. Em outras palavras, busca-se transformar as diversidades e diferenças de necessidade em dificuldades, distúrbios, atrasos e carência cultural. Isso porque, ao ignorar a complexa diversidade do cotidiano e ter uma visão de conhecimento único, pronto e acabado, o professor perde a oportunidade de explorar as riquezas e crescimentos que essa diversidade traz. É por meio da diversidade da relação com o outro que construímos nossos saberes, nossa trajetória. Hoje, se impõem em nosso cotidiano desafios que convergem para reflexões sobre o profissional que se quer formar. Mas ainda não foi levada a efeito, de forma tranqüila, essa proposta de formar para diversidade. Talvez por haver dificuldades para se trabalhar em um contexto heterogêneo, onde a homogeneidade seja improvável; onde o ensinar para 13 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O ensino precisa ter uma relação de cumplicidade, em que educador e educando interajam Não é difícil perceber o grande desafio enfrentado pelos educadores frente às diversidades do cotidiano escolar É por meio da diversidade da relação com o outro que construímos nossos saberes, nossa trajetória ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ todos igualmente tornou-se algo que tem “balançado” o cotidiano escolar. Trabalhar com a diversidade implica práticas cotidianas também diversificadas, algo que, às vezes, tem sido bastante conflituoso considerando que, enquanto algumas escolas vivenciam práticas que avançam no sentido de democratização, favorecendo o desempenho escolar das crianças, outras “dificultam esse processo, negando a muitos alunos os benefícios do acesso ao saber e limitando suas possibilidades de participação social”13 . Não é difícil perceber o grande desafio enfrentado pelos educadores frente às diversidades do cotidiano escolar, com os diferentes tipos de aprendizagem, motivações, interesses e necessidades de cada educando. Tal desafio deriva do fato de que ainda perdura uma visão de ensino como algo que é previamente organizado e selecionado. Nesse caso, é necessário então, acabar com esta dicotomia entre escola e vida; ou seja, na escola, os conteúdos curriculares, na vida, os problemas e situações do dia-a-dia. É preciso vinculá-los, pois são saberes e, como tal, devem ser tratados. E se há um espaço privilegiado para se levar a efeito tal tratamento, isto é, discussão e análise, esse espaço é o cotidiano escolar, que será enriquecido exatamente pelas várias situações e diversidades inerentes e vividas por cada ser humano e exploradas nos processo de ensino e de aprendizagem, pautados pelos quatro pilares do conhecimento. Para conseguir trabalhar dentro de novos paradigmas, temos de aliar Marli André (org.). Pedagogia das diferenças na sala de aula aula, 1999, p.85. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 110 ○ ○ ○ Ano 11 - n 0 21 - dezembro / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ as necessidades atuais ao saber acumulado e, com isso, proporcionar um pensamento ativo com o devido estímulo para se chegar a abstrações maiores e elaborações de no- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ vos saberes. Trabalhar em conformidade com os ritmos e tempos de cada um, sem que com isso se deixe de trabalhar de forma crítica e contextualizada. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Referências bibliográficas ANDRÉ, Marli (org.). Pedagogia das diferenças na sala de aula aula. São Paulo: Papirus, 1999. DELORS, Jacques. Educação um tesouro a descobrir: relatório para a UNESCO da comissão internacional sobre educação para o século XXI. 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