Entrevista RT Informa
Clèmerson Merlin Cléve*
1. Em que situações cabe ao Poder Executivo exercer atividade legislativa? As Medidas Provisórias são
um dos instrumentos desse tipo de atividade?
O direito constitucional contemporâneo não repele o exercício, pelo Executivo, em determinadas
circunstâncias, de funções normativas primárias. Com efeito, as Constituições da França, da Espanha, da Itália
e de Portugal, para citar apenas algumas, contemplam a possibilidade. No caso do Brasil, diante da
experiência traumática dos antigos decretos-leis, o Constituinte de 88 adotou a medida provisória (espécie de
decreto-lei dotado de particularidades que o singularizam). A medida provisória, portanto, apresenta-se como
um instituto através do qual o Executivo, no Brasil, introduz no ordenamento jurídico disposições normativas
dotadas de força de lei. Substancia, portanto, um dos modos através dos quais o Executivo, no Brasil (assim
como na Itália), legisla. A Constituição vigente manteve a figura da lei delegada, já prevista no direito
constitucional pretérito, e, ainda hoje, lamentavelmente pouco utilizada entre nós. De modo que a medida
provisória e a lei delegada constituem os dois veículos, constitucionalmente regulados, de introdução, pelo
Executivo, de normas primárias na ordem jurídica brasileira. É certo que o Executivo também dispõe de
competência normativa despida de natureza ou força legislativas. Mas aqui está-se a falar já de campo
analítico distinto.
Do uso desmedido das medidas provisórias nos últimos anos, decorrente (i) da lógica do governo de
maioria, (ii) dos apelos da arquitetura do presidencialismo brasileiro, (iii) da timidez do Judiciário,
especialmente do Supremo Tribunal Federal (que haveria de contrastar aquela lógica e aquele apelo para
impor o cumprimento da Constituição) e, aceite-se, (iv) da deficiência do tratamento da matéria em sede
constitucional, emergiu o clima de insegurança jurídica e de erosão da legitimidade das instituições que
autorizou a demanda por disciplina mais rigorosa em busca de contenção e equilíbrio. A medida provisória,
conquanto editada pelo Presidente da República, autoridade legitimada pelo voto, nem por isso ostenta as
qualidades da normação legislativa comum. Padecendo, naturalmente, de um certo déficit de legitimidade
(democrática), eis que não passa, antes, pelo crivo da esfera pública, não sendo, por isso mesmo, decorrência
do contraditório e da disputabilidade instersubjetiva, que só se manifestam a posteriori (no contexto da
deliberação congressual), e ainda assim trilhando um procedimento singularizado, não pode substituir a
atividade legislativa ordinária. Sendo medida útil e necessária em certos casos, para ser legítima, precisa ser
excepcional, resposta a conjuntura singular, dar conta de situação extraordinária que a normação ordinária não
seria capaz de atacar. Fora daqui, a obra resvala para o campo do déficit de legitimação democrática e da
insuficiência de cumprimento da Constituição.
2. As MPs existem somente no nível federal ou podem ser usadas também nos Estados e Municípios
para o âmbito local?
A questão é controvertida. A adoção de decretos-leis pelos Estados e Municípios estava
expressamente proibida pela Constituição anterior (art. 167, parágrafo terceiro). A Constituição de l988 não
proclama disposição com análogo sentido (envolvendo, agora, as medidas provisórias). A verdade é que
vários Estados da Federação e, mesmo, Municípios adotaram, por meio de suas Constituições Estaduais e Leis
Orgânicas, o instituto. Diante da inexistência de vedação expressa, e diante do poder de auto-organização das
coletividades estaduais ou locais, tenho, do ponto de vista estritamente jurídico, e a contragosto, admitido a
circunstância (em particular na obra Atividade legislativa do Poder Executivo, publicada pela Editora Revista
dos Tribunais). Todavia, do ponto de vista político e mesmo, diante das exigências decorrentes do princípio
constitucional da segurança jurídica, não aconselho referida adoção. Penso que, ademais, não há razões (de
*
Professor Titular das Faculdades de Direito da UniBrasil e da UFPr. Professor nos programas de mestrado e doutorado
em Direito da UFPr. Procurador do Estado. Advogado e Consultor. Autor de A fiscalização Abstrata de
Constitucionalidade no Direito Brasileiro e Atividade Legislativa do Executivo, ambos publicados pela Editora Revista
dos Tribunais.
urgência) suficientes a justificar, no âmbito das ordens jurídicas parciais (regionais e locais), semelhante
medida. Falo aqui, todavia, como cidadão. Como jurista vejo-me compelido a reconhecer que o sistema
constitucional não proíbe tal providência. Tese em sentido oposto, não obstante, encontra lugar na doutrina
brasileira. Calha, nesta oportunidade, citar Michel Temer, que evoluiu de uma compreensão inicial favorável
a outra hostil em função de renovada interpretação (agora literal) do dispositivo que confere ao Presidente da
República (e só a ele) referida competência. O argumento pode ser manejado, evidentemente. Mas não é
definitivo. Afinal, tratando-se de Constituição Federal é natural que o Constituinte se reporte às autoridades
da União e não às dos Estados como ocorre em inúmeros outros dispositivos da Lei Fundamental.
Até onde sei, não obstante o Supremo Tribunal Federal não tenha ainda enfrentado a matéria em
função de impugnação direta, em um ou outro julgado admitiu, embora de modo implícito, a inocorrência de
vedação à introdução da medida provisória na ordem jurídica estadual. É de citar, a propósito, a ADIMC425/DF, na qual figurou como relator o então Ministro Paulo Brossard. (DJU 21-06-91, p. 8426).
3. Que avaliação o Sr. faz sobre o uso desse instrumento nos dias atuais? Sempre foi assim?
Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001, o regime
constitucional da medida provisória sofreu sensível aperfeiçoamento. Conquanto constitua obra normativa
negociada e, por isso mesmo, compromissória, trouxe, ao lado de disposições passíveis de severa crítica,
como por exemplo, a que autoriza a continuidade da vigência de todas as medidas provisórias anteriormente
editadas, situação apenas contrariada diante de providência de urgência ulterior incompatível ou de
deliberação definitiva (sem prazo) do Congresso Nacional (Art. 2o.), outras capazes de refrear a dinâmica
normativa unilateral do Executivo. Sopesando custos e ganhos, a Emenda trouxe mais vantagens do que
desvantagens. A definição das matérias receptivas à disciplina pela medida, a vedação da reedição na mesma
sessão legislativa e o aperfeiçoamento do processo de deliberação do Congresso configuram situações dignas
de aplausos. Claro que há uma certa frustração. Afinal, queríamos mais. De qualquer modo, avançou-se,
mesmo admitindo-se, agora, o elastecimento do tempo de vigência e a figura da prorrogação da providência
normativa.
É provável que o novo regime constitucional das medidas provisórias seja responsável pela sensível
diminuição de seu uso. É que, agora, as providências trancam a pauta do Congresso na circunstância de
ausência de deliberação no prazo constitucionalmente definido. Todas as deliberações da Casa em que estiver
tramitando serão sobrestadas até que se ultime a votação da medida provisória comprometida em função da
inércia do Legislativo. É evidente que o novo regime constitucional implica a emergência de eventual
situação de desconforto no âmbito dos Poderes. Mas o desconforto certamente trará como conseqüência a
pressão do Legislativo sobre o Executivo com o sentido de que este modere o manejo da providência de
necessidade. O país, em particular o Executivo, passa por um processo de aprendizado. Neste momento, há
cerca de oito medidas criando embaraço ao regular desenvolvimento das deliberações desta ou daquela casa
do Congresso. O aprendizado é dolorido. O Executivo precisa, a partir de agora, antes de editar uma medida,
proceder a um juízo político adequado. Às vezes, do ponto de vista político, pode ser mais interessante o uso
da lei delegada, ou do poder de apresentação de projetos de lei viabilizados em virtude da mobilização da
maioria parlamentar. As medidas provisórias devem, mesmo, quer sob o ângulo político, quer sob o ângulo
jurídico, ser reservadas para fazer face às situações definidas como de extraordinária urgência.
4. Se mal usadas, as MPs não podem provocar um desequilíbrio entre os Poderes?
Evidente que sim. O abuso da prerrogativa de editar medidas provisórias implica o robustecimento
da condição do Executivo no quadro da organização dos Poderes. Significa, portanto, a emergência de uma
indisfarçável primazia do Executivo sobre os demais órgãos constitucionais, primazia que compromete a
satisfação do princípio constitucional da divisão funcional entre os órgãos estatais dotados de igual dignidade
constitucional. Daí a necessidade da reação dos residentes na esfera pública (cidadãos) e do controle rigoroso
do Judiciário, em especial, do Supremo Tribunal Federal, sobre o cumprimento das condições constitucionais
para a edição de normativas de tal natureza.
5. Quais os casos “históricos” mais emblemáticos do mau uso da MPs de que o Sr. se recorda?
Lembro-me do famigerado plano Collor, implementado por meio de inconstitucional medida
provisória. Á época, exercendo, ainda, o cargo de Procurador da República, tive ocasião, de lavrar parecer,
apresentado em feito que discutia a questão e mais tarde publicado em revista especializada, argumentando,
ao lado de inúmeras vozes autorizadas, pela inconstitucionalidade da medida, tese que, felizmente, veio a
prevalecer no âmbito do Judiciário. Mas há o problema, ainda não resolvido inteiramente do ponto de vista
doutrinário (no Judiciário, a situação é outra), da medida provisória envolvendo matéria tributária. Houve,
ademais, um ou outro caso espantoso de manejo de medida provisória para tratar de matéria penal. Temos
exagerado, não há dúvida. Daí a importância da doutrina, especialmente para criar as condições
argumentativas e discursivas necessárias destinadas, num quadro de contraditório e publicidade, à
justificação, a partir de um padrão de racionalidade e consistência ou integridade, do controle mais rígido do
Judiciário sobre a ação legislativa de urgência do Executivo.
6. Existe alguma iniciativa para melhor regulamentar o uso de medidas provisórias?
Depois da EC 32/2001 que modificou o regime constitucional das MPs, outras propostas de alteração
foram apresentadas ao Legislativo. Entre elas, pode-se citar a PEC n. 27/2003, que pretende alterar a redação
de parágrafo do Art. 62 da Lei Fundamental para especificar que as medidas provisórias terão sua votação
iniciada, alternadamente, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal; a PEC 14/2004 que inclui novo
parágrafo no Art. 62 da Constituição para autorizar o legislador, por meio de Lei Complementar, a melhor
fixar os pressupostos de relevância e urgência; a PEC 21/2004 que altera, mais uma vez, o Art. 62 do Texto
Constitucional para estabelecer nova sistemática de edição de medidas provisórias, além de algumas outras.
Há, igualmente, projetos de Resolução do Congresso Nacional orientados à modificação da atual normativa
regimental quanto ao regime da apreciação das medidas de urgência pela comissão mista do Congresso. As
propostas nem sempre significam um melhor tratamento da questão. Por isso, antes de qualquer alteração
normativa, especialmente no sítio constitucional, argumento a favor do desenvolvimento do contraditório, na
universidade ou nas disputas do cotidiano, situação da qual decorrerão os parâmetros doutrinários capazes de
orientar a ação dos operadores jurídicos, definir o espaço de manobra do Executivo e, mais do que isso, criar
os argumentos racionais necessários para a justificação racional do controle do Judiciário sobre este tipo de
ação normativa.
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