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Fala de estar
João Manuel Ribeiro
diz que
vive apaixonado pelas
palavras
Quando era pequeno o João Manuel Ribeiro tinha apenas dois brinquedos, mas muito campo para
brincar. Já nessa altura vivia rodeado de histórias, rimas e lengalengas que o avô lhe contava. Hoje
é um escritor que gosta de fazer poesia para brincar com os sons e ritmos das palavras. Falámos com
ele sobre a sua infância e alguns dos livros que escreveu, tendo revelado algumas das palavras de que
mais gosta e o tipo de ave que gostaria de ser…
Nasceu e cresceu em Oliveira de Azeméis.
De que brincadeiras e jogos mais gostava?
Nasci e cresci em casa do meu avô até
entrar para a escola. Tinha dois brinquedos:
um cavalo de pau, no qual viajei muito
e fiz muitas tropelias, e uma bola de trapos
(claro que à medida que fui crescendo,
a bola de trapos se foi transformando em
bola de borracha e por aí fora…). Eram
estes os meus brinquedos, mas aquilo
de que gostava muito era de contactar
com a natureza. O meu avô era agricultor
e, portanto, descobrir ninhos, mexer na
terra, ver o meu avô a fazer um enxerto,
a fazer bonecas de trigo, isso é que me
seduzia imenso. Nasci ligado à terra.
No seu conto «Ir num pé e voltar noutro»
fala de um rapaz que roubava ameixas
do quintal de uma vizinha. Fazia travessuras
dessas quando era pequeno?
Claro! Ameixas, maçãs… Tudo o que ali nas redondezas fosse fruto e estivesse maduro (ou nem
estando) nós dávamos cabo.
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Fala de estar
Tinha alguém que lhe contasse histórias nessa altura?
Sim, o meu avô. Como nasci lá e sempre ali vivi até entrar para a escola, o meu avô deve ter-se sentido
na obrigação de me educar. Apesar de ter só a quarta classe, era um homem muito sábio. Não havia
dia nenhum em que, depois de jantar, à noite, não nos sentássemos à lareira, se fosse inverno, ou então
cá fora, se fosse verão, e ele contasse uma história. É verdade que às vezes demorava uma semana
inteira a contar a história, porque eu adormecia e ele no dia seguinte retomava a história. Muitas vezes,
ao longo do dia, ele dizia-me rimas, lengalengas, cantilenas. Costumo dizer que o meu avô me encheu
a cabeça de histórias, de imaginação e de fantasias. Muito do que escrevo hoje tem origem nessa
memória que trago comigo desde a infância.
Quando começou a escrever?
Comecei a escrever quando entrei para a escola. Isto é verdade; acho que mal cheguei à escola
e comecei a juntar as letras, logo me apareceram rimas, logo me apareceram brincadeiras com
palavras – a questão da fonética é uma coisa que me seduz imenso na poesia e acho que ainda hoje
seduz muitas crianças.
Porque é que escreve mais em poesia do que em prosa?
Exatamente por causa disso. Bom, eu costumo dizer que na verdade só escrevo poesia, mesmo quando
escrevo prosa. Escrever em verso tem a vantagem da fonética, dos sons, do ritmo, da musicalidade e isso
é uma coisa que só o verso e a quadra dão, pelo que é também por uma questão de facilidade.
Já experimentou cantar os seus poemas para crianças?
Eu canto imenso nas visitas às escolas. Não é que saiba música, não é que componha música para
os meus poemas. O que acontece é exatamente o contrário: quando vou às escolas, os professores
e alunos musicaram o poema. O que faço é apropriar-me desse trabalho que fazem e depois replicá-lo
(que é dizê-lo e cantá-lo muitas vezes nas outras escolas). Mas, sim, canto-os sempre ou quase sempre
que vou a uma escola.
Tem um livro chamado Raras Aves Raras. Se fosse um pássaro ou uma ave rara do seu livro,
qual gostava de ser?
Gostava de ser um gavião (embora não apareça no livro), porque mistura duas coisas: o gato com
o avião. Faz nascer dentro de mim aquela ideia de que é um gato que quer voar, que quer ser aviador…
Gavião.
Tem palavras preferidas ou com as quais goste mais de brincar nos seus poemas? Quais?
Tenho. A palavra «rondel» – aliás, tenho um livro com esse título –, que descobri no Almada Negreiros
e que me fascina. A palavra «guilhotina». A ideia é feia, uma guilhotina é uma coisa horrorosa que
ninguém quer, mas a palavra «guilhotina», o seu som, seduz-me, não sei porquê. Depois há outra coisa
que me seduz muito, as expressões idiomáticas. Cresci no meio rural, com o meu avô, e ele estava
sempre a dizer expressões idiomáticas, pelo que vivo completamente fascinado por elas. Aliás, o conto
que citou, «Ir num pé e voltar noutro», é um conto construído com base nas expressões idiomáticas
à volta da palavra «pé».
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Que importância têm para si as palavras?
Acho que sem palavras não seríamos gente. As palavras consubstanciam a nossa forma de comunicar,
de pensar. Costumo dizer que posso falar muito bem inglês, mas vou pensar sempre em português,
porque foi a língua com a qual nasci e cresci. A linguagem condiciona o nosso modo de pensar
e de viver. É muito difícil viver sem palavras. Claro que elas podem ser ditas ou escritas ou até expressadas
em muitas linguagens, mas sem palavras – sem comunicação – não seríamos as pessoas que somos.
Isto é, o homem, sem comunicação, seria diferente. Não sei como seria, seria diferente. Eu vivo apaixonado
pelas palavras.
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