Um Pai Que Era Uma Mãe
Desde criança ele demonstrava uma enorme curiosidade sobre o
funcionamento das coisas, especialmente máquinas e de equipamentos.
Certa vez, o pai lhe deu uma bicicleta de presente de Natal. Dada a
volta experimental e antes que os irmãos reivindicassem a sua
“voltinha”, ele desmontou a bicicleta para entender como ela
funcionava. Levou uma surra, mas não se emendou. O mesmo
aconteceu com um relógio de parede que o pai dera de presente para
sua mãe. Quando a mãe foi ver, ele já estava remontando o relógio.
Teria seus quinze anos, por aí. Assim era o seo Lourival Bruno, meu
pai. Ainda muito jovem interessou-se por eletrônica, área que
experimentava uma verdadeira revolução naquele momento, então
resolveu fazer um curso por correspondência que vira anunciado numa
revista. Recebia as apostilas e peças pelo correio, montava os
equipamentos, à válvula, relatava os resultados, passava à lição
seguinte. Diplomou-se com louvor. Tornou-se radialista, trabalhou
como técnico na Rádio Guarujá, teve passagens por outras emissoras
de Florianópolis, mas foi à Rádio Diário da Manhã que ele dedicou sua
vida e durante muitos anos respondeu pela Direção Técnica.
Destacava-se pela inteligência e uma enorme curiosidade acerca de
todos os assuntos, lia muito, especialmente biografias. Nas conversas,
fosse qual fosse o assunto, ele sempre vinha com informações
inusitadas. Eu dizia – Lá vem o seo Lourival com um verbete! Gostava de
filmes e de música instrumental que, segundo ele, era a única que
reproduzia com fidedignidade a qualidade do som, algo que ele, como
profissional, perseguiu a vida inteira. Possuía uma admirável habilidade
manual desenvolvida pela convivência com meu avô que era
marceneiro – na adolescência ajudava o pai a fazer caixão de defunto -,
e, movido pela curiosidade, inventava coisas: de um aparador de grama
fez um ventilador, criou uma alavanca de câmbio acoplada à direção
para o Fusca já que não gostava do solução original. Também inventou
um artefato para guarda-chuva para evitar o gotejamento no interior do
carro que, a exemplo da alavanca do fusca, pretendia industrializar, mas
não obteve sucesso. Sua habilidade com a madeira rendeu muitos
móveis para a nossa casa e também uma lancha feita de compensado
naval com a qual ele subia e descia o canal da Barra da Lagoa com uma
tarrafa em punho. No fim de tarde lá vinha ele com meia dúzia de
peixinhos que jogava na frigideira e depois se lambuzava de satisfação.
Quando minha filha Maria Carolina nasceu, sua primeira neta, meu pai
fez um jogo de mesinha e quatro cadeirinhas cor de rosa igualzinho ao
que o meu avô fez quando nasci. Mas, o seu maior orgulho era o carro
que ele mesmo fez. Sim, meu pai fez um carro, tá pensando o quê? Eu
vou contar: em 1950, aos 22 anos, meu pai pegava carona com um
vizinho proprietário de uma caminhonete Station Wagon Fleetmaster
Wood. Aquela caminhonete, com a carroceria de madeira, que aparecia
nos filmes americanos era simplesmente o máximo. Ele disse ao
vizinho: – Um dia eu vou ter uma igualzinha a esta! Em 1989, agora com 51
anos, meu pai deu início à realização do velho sonho. Apoiado numa
pesquisa empreendida em revistas importadas e filmes americanos – na
época não havia internet -, meu pai criou uma réplica perfeita de uma
Station Wagon ano 1948 a partir do chassis do seu fusquinha 1975. A
frente da Wood foi, num primeiro estágio, moldada em papel machê e,
posteriormente, em fibra de vidro, técnica que ele tratou de aprender.
A carroceria foi executada em madeira, angelim e compensado naval.
O teto foi coberto com courvim emborrachado. Os pneus, de faixa
branca e a direção antiga davam um ar requintado ao carro e foram
motivo de muita pesquisa e viagens, pois são peças encontradas apenas
em feiras de carros antigos. Usando as rodas de um antigo opala, meu
pai se deparou com um desafio: esconder a marca da fábrica estampada
na calota. Esse acabou sendo, talvez, o maior desafio cuja solução
mobilizou toda a família. Um dia, estávamos reunidos tomando um
cafezinho quando, olhando para a xícara, tive um lampejo. Peguei o
pires de inox e fui para a garagem. Coloquei o pires sobre a calota e...
Encaixou direitinho! Gritei: Paiêêê! Foi a festa! Desse dia em diante a
Wood do seo Lourival estampou as primeiras páginas dos jornais, ele
deu diversas entrevistas na televisão, participou de exposições de
carros antigos pelo Estado afora e, o maior dos seus orgulhos, mereceu
a abertura, em página dupla, do livro 100 Retratos Brasileiros
Apaixonados por Carro, de Luiz Americano e Eurico Salis, editado
pela Artes e Ofícios sob patrocínio da Ipiranga. Junto a diversos
apaixonados anônimos como ele, ilustres colecionadores como o
publicitário Mauro Salles, os atores Lúcia Veríssimo, Raul Gazolla e
Nelson Xavier, os músicos Juca Chaves e Pacífico Mascarenhas, o
artista plástico Cláudio Tozzi, Jacqueline e também Giovanne,
medalhistas do vôlei e o príncipe Dom João de Orleans e Bragança.
Aos sábados saía para exibir a sua Wood pelas ruas de Florianópolis.
Os outros motoristas buzinavam e acenavam em sinal de aprovação.
Ele ficava todo prosa. Certa vez o acompanhei numa dessas incursões
e estranhei quando os carros começaram a dar nos passagem; quando
percebi estávamos sendo seguidos em cortejo pela Beira Mar todo
mundo buzinando. Aí, eu é que fiquei toda prosa. Meu pai era tudo
isso e mais ainda. Era um pai presente, provedor, parceiro. Era muito
rígido e severo quando éramos crianças. Dava puxão de orelha (de
verdade) e nos batia de cinta quando fazíamos arte (falta da qual já foi
devidamente perdoado, afinal, foi assim que ele aprendeu e assim que
se usava), mas adoçou do dia para a noite quando se tornou avô. Tinha
restrições alimentares por conta de um enfarte aos 36 anos, mas em
conluio com os netos, vivia fazendo o que não devia. Certa vez o
flagrei escondido com meus filhos se entupindo de azeitona e
amendoim japonês. Dei-lhe uma bronca, ele se riu e ficou bem
quietinho. À noite, minha filha que na época tinha uns cinco anos
disse: - Mamãe, eu não tive culpa. O vovô é que vive me chamando Nina, vamos
comer azeitona com o vovô? O porta-malas do carro dele tá sempre cheio de coisa
gostosa. Fui averiguar e levei um susto, aquilo era uma verdadeira loja de
inconveniências: balas e amendoim japonês, em embalagens de 1 kg do
tipo que se compra em lojas de 1,99, vidros e mais vidros de palmito e
de azeitonas. Anos mais tarde soube que eles continuaram com a
prática apesar da minha proibição. Em seu aniversário de 80 anos,
meus filhos lhe deram um troféu de campeão com a inscrição
MELHOR AVÔ DO MUNDO. Foi em 2008. Há tempos seu
coração andava dando sinais de cansaço e estava estabelecido que
precisaria fazer uma cirurgia para troca da válvula mitral. Ele disse ao
médico: - Doutor, eu quero fazer 80 anos. Depois do dia 24 de março o senhor
pode marcar quando quiser. Eu me interno no dia seguinte, mas antes disso se o
senhor marcar eu não venho. Fizemos uma festança reunindo os amigos e a
parentagem toda. A cirurgia ficou agendada para dali a quinze dias.
Antes ele visitou cada uma das pessoas de quem ele gostava levando
um CD com a cópia das fotos do aniversário. Estava se despedindo.
Morreu dormindo exatamente um mês depois da cirurgia. Não tenho
tristeza, apenas uma profunda e irremediável saudade. Agradeço a
Deus o privilégio de ter nascido em sua casa. Todo Dia dos Pais eu
levava um presentinho pra ele, é claro, mas também lhe dava uma flor
no Dia das Mães. Eu dizia: - Uma flor para um pai que é uma mãe! Ele
ficava todo prosa, o meu pai.
Feliz Ano Novo
Se não perdeste o encantamento, sois apenas um menino que teve mais tempo
para brincar com a Vida. E, certamente sabeis, a Vida reserva suas mais divertidas
brincadeiras para os seus parceiros mais entusiasmados.
* pequeno poema em homenagem ao seo Lourival quando do seu aniversário de 70 anos.
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Se não perdeste o encantamento, sois apenas um menino que teve