EXTRADIÇÃO 968-1 REPÚBLICA PORTUGUESA
V O T O
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Relator):
1. Descrição da situação
O pedido de extradição é fundado no Processo de Inquérito nº 1469/02.4
JFLSB da 3a Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, no qual o
ora Extraditando João Manuel Pires Aurélio Duarte encontra-se indiciado pela suposta
prática dos crimes de burla qualificada, falsificação de documentos e branqueamento de
capitais (fls. 5-6).
Trata-se, portanto, de extradição instrutória, pelos crimes supramencionados,
conforme consta do mandado de detenção internacional(fls. 17 e ss):
“Indiciam os autos, para além do mais,
a prática pelo arguido João Manuel Pires
Aurélio Duarte, e outros, de crimes de burla
qualificada, falsificação de documentos, e
branqueamento de capitais.
Os
crimes
de
burla
qualificada
e
falsificação
indicados
nos
autos,
foram
praticados pelo menos desde 1998 e até 2003,
eo branqueamento de capitais em 2002/2003.
Tais
crimes,
reportam-se
a
uma
gigantesca fraude à ADSE praticada através de
facturação de actos médicos não realizados,
falsificação de assinaturas em prescrições
médicas, e contrafacção de vinhetas espelhada
nos milhares de documentos juntos aos autos.
Constam dos autos documentos em que se
atesta a realização de actos médicos como se
na verdade tivessem sido prestados, não o
tendo porém sido prestados de facto, actos
esses que foram transcritos para fichas
individuais de tratamento de beneficiários da
ADSE atendidos nos locais a seguir indicados,
sendo certo que os referidos actos médicos
fictícios foram facturados e pagos pela ADSE
apesar
de
não
terem
prestados
aos
beneficiários dessa entidade indicados nas
referidas fichas e facturas.
Da facturação apresentada pelo arguido
João Manuel Pires Aurélio Duarte à ADSE para
pagamento,
constam
facturas
relativas
a
consultas
de
pediatria
referentes
a
beneficiários cuja idade não se coaduna com
tal
especialidade,
(por
exemplo,
beneficiários aposentados).”(fls. 17-18)
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra
da Dra. Cláudia Sampaio Marques, assim se manifesta:
“Com efeito, o pedido formulado pelo
Governo de Portugal reúne apenas em parte as
condições necessárias ao seu deferimento, nos
termos da Lei 6.815/80 e do Tratado de
Extradição específico, pois, no tocante aos
crimes
de
falsificação
de
documentos
e
branqueamento de capitais, o pedido não
satisfaz os requisitos legais. (fl. 574)”
2. Crime de falsificação de documento
Em
jurisprudência
relação
do
STF
à
falsificação
vem
de
consolidando
documentos,
entendimento
a
no
sentido de que, quando se tratar de antefato impunível, tal
crime não enseja o deferimento do pedido de extradição. Na
Extradição 931, o Min. Cezar Peluso registrou:
“Presente o requisito da precisa indicação
do fato no que toca aos outros crimes, analiso a
questão da absorção do delito de falsificação
pelo de burla qualificada.
(...)
Está claro, pois, que diversamente do que
professa a douta Procuradoria-Geral, teria havido
volição única, a de falsificar os cheques para
obter vantagem patrimonial ilícita (art. 171,
CP), ou, com a “intenção de obter para si
enriquecimento
ilegítmo
(art.
217º,
1,
CP
Português), donde não poder excogitar-se concurso
formal homogêneo (cf. fls. 285), senão mero
concurso aparente de normas, que leva à absorção
do falsum pelo estelionato, ou burla, neste caso.
A Corte já teve oportunidade de enfrentar
casos semelhantes, admitindo a absorção de uma
figura
típica
por
outra,
em
pedidos
de
extradição. Assim sucedeu na Ext nº 543 (Rel.
Min. Moreira Alves), onde o Plenário, na esteira
do voto do Relator, resolvendo concurso aparente
de
normas
pela
via
do
princípio
da
subsidiariedade tácita, indeferiu a extradição
pelo crime de constrangimento ilegal, porque
figurava elemento constitutivo do crime de roubo
(RTJ 138/428).
Na Ext nº 654 (Rel. Min. Néri da Silveira),
o
Plenário,
por
maioria,
entendeu
que
as
acusações de um incêndio de primeiro grau e de
quatro homicídios de primeiro grau deveriam ser
reduzidas a um só crime, o do art. 250, caput,
cc. Art. 258, do CP.
Posto não seja incontroverso o tratamento
do tema da absorção do falsum pelo estelionato na
Corte, não há negar, nesse caso a imperiosidade
da aplicação do princípio da consunção, (...)”
No caso dos autos, conforme informações constantes
do
mandado
de
detenção
internacional,
a
falsificação
de
diversos documentos (vinhetas médicas diferentes; prescrições
médicas
com
caligrafias
diferentes
para
o
mesmo
médico;
registro de consultas de pediatria para pacientes idosos;
registro de consultas de pediatria efetuadas em menos de 10
min cada uma) teve como objetivo obter vantagens econômicas
indevidas, em detrimento da ADSE (Estado Português).
O antefato impunível ocorre quando um ato menos
grave
precede
um
ato
mais
grave
como
meio
necessário
ou
normal de realização da conduta delituosa. Na realidade, não
há
pluralidade
de
condutas,
mas
uma
única
conduta
que
é
formada por um conjunto de atos, não havendo que se falar em
pluralidade de fatos, mas pluralidade de atos e unidade de
ação. A não-punibilidade do ato antecedente se fundamenta na
ausência de conduta punível, porquanto, nesses casos, o meio
empregado para a realização do fim é considerado necessário
para a própria conduta criminosa, fazendo incidir o princípio
da consunção.
Nas circunstâncias dos autos, verifica-se que os
atos
de
faturação
falsificação
de
de
atos
assinaturas
médicos
em
não
realizados;
prescrições
médicas
e
contrafação de vinhetas médicas, são absorvidos pelo crime de
estelionato, não havendo que se falar em concurso de crimes.
A tese do concurso formal não se apresenta adequada
para o caso, porque não há pluralidade de crimes, uma vez que
a potencialidade lesiva dos documentos falsificados esgota-se
no próprio crime de estelionato. Como são documentos cuja
utilidade se exaure no auferimento dos valores pecuniários
correspondentes,
não há que
se
falar em
concurso
formal.
Nesse sentido: Ext. nº 931, Rel. Min. Cezar Peluso, Julg.
28/09/05.
Assim sendo, não procede o pedido de extradição
pelo crime de falsificação de documentos.
3. Crime de burla qualificada
Quanto
à
burla
qualificada
(estelionato),
está
atendida à exigência da dupla tipicidade (art. 77, II, da Lei
nº
6.815/80),
pois
o
crime
tem
previsão
expressa
no
ordenamento jurídico brasileiro (art. 171, caput, c/c §3º do
Código Penal) e português (art. 217, n. 1; 218, n. 2, “a”, do
Código Penal Português).
No que diz respeito à prescrição, registre-se que
os crimes pelos quais o extraditando está sendo acusado, no
tocante às imputações com correspondência no direito penal
brasileiro, prescrevem, no ordenamento português, em 10 anos.
Considerando que os atos delituosos datam de 1998 a 2003, não
há
falar
em
ocorrência
de
lapso
prescricional
segundo
o
direito brasileiro e o direito português. Sobre este ponto,
anotou a Procuradoria-Geral da República (fls. 577):
“17.
Em atendimento ao disposto no art.
77, VI da Lei 6.815/80 e no art. III, §1º,
alínea “d” do Tratado, cumpre salientar que
não ocorreu a prescrição do procedimento
criminal, sob a análise da legislação de
ambos os estados envolvidos.
Nos termos do art. 109, III do Código Penal
Brasileiro, o prazo prescricional relacionado
ao presente caso, contado do dia em que se
consumou o delito, é de 12(doze) anos. Por
sua vez, fixa o Código Penal português, no
seu art. 118, §1º, alínea “b”, o prazo
prescricional de 10 (dez) anos para o crime
de burla qualificada.
Os fatos imputados ao extraditando teriam
ocorrrido entre os anos de 1998 e 2003,
estando em curso o lapso prescricional que,
em tese, somente se consumará em 2015, no
Brasil, e, em 2013, na Itália (sic)”
Registre-se
ainda
que
também
está
atendida
a
exigência do art. 77, IV, da Lei nº 6.815/80, no sentido de
que somente poderão dar azo à extradição os fatos puníveis,
nos dois países envolvidos, com pena privativa de liberdade
cuja duração máxima seja superior a 1 (um) ano. O crime de
burla
qualificada
(art.
218,
2,
“a”,
do
Código
Penal
Português) é punido, em abstrato, no ordenamento jurídico com
pena de prisão até 2 a 8 anos, se o prejuízo patrimonial
decorrente for de valor consideravelmente elevado (no caso
estima-se em 6 milhões de euros);no Brasil, o estelionato é
punido com pena de 1 a 5 anos e multa (nos termos do art. 171
do Código Penal).
Procede, pois, o pedido de extradição em relação ao
crime de burla qualificada/estelionato.
4. Crime de Lavagem de Dinheiro
No que se refere à lavagem de dinheiro, verifica-se
que
este
crime
pressupõe
a
existência
de
um
crime
antecedente, por meio do qual o agente obtém os valores, bens
ou direitos objetos da posterior ocultação ou dissimulação
(nos termos do art. 1º, caput, da Lei nº 9.613/98).
A
9613/98
redação
responde
dada
à
ao
caput
experiência
do
e
art.
1º
técnica
da
Lei
nº
vitoriosas
no
Direito Comparado, encontrando-se tipificação semelhante na
Alemanha (§261 do Código Penal), na Bélgica (§4º do art. 505
do Código Penal), na França (art. 222-38 e 324-1 do Código
Penal),
em
Portugal
(alínea
b
do
item
1
do
art.
2º
do
Decreto-Lei nº 325/1995) e na Suíça (art. 305 bis do Código
Penal), dentre outros. (Exposição de Motivos nº 692/MJ de 18
de
dezembro
de
1996,
disponível
em
www.fazenda.gov.br/portugues/lavagem/exposicao_motivos.htm,
acessado em 02/05/06).
Em Portugal, da mesma forma que ocorre no Brasil,
as
hipóteses
de
crimes
antecedentes
estão
taxativamente
previstas no Decreto-Lei nº 325/95.
Segundo consta da Exposição de Motivos nº 692/MJ de
18/12/96, a taxatividade resulta da necessidade de reduzir ao
máximo as hipóteses dos tipos penais abertos, pois enquanto o
princípio da reserva legal se vincula às fontes do Direito
Penal, o princípio da taxatividade deve presidir a formulação
técnica da lei penal. “Indica o dever imposto ao legislador
de proceder, quando elabora a norma, de maneira precisa na
determinação
taxativamente,
penalmente
dos
o
tipos
que
admitido
é
legais,
a
penalmente
(Fernando
fim
de
ilícito
Mantovani,
se
e
Diritto
o
saber,
que
é
penale
–
Parte generale, ed. Cedam, Pádua, 1979, p. 93 e ss. apud
Exposição de Motivos nº 692/MJ de 18 de dezembro de 1996,
disponível
em
www.fazenda.gov.br/portugues/lavagem/exposicao_motivos.htm,
acessado em 02/05/06).
Na
precedente
situação
específica
imputado
ao
dos
autos,
extraditando
o
delito
(burla
qualificada/estelionato) não está no rol das infrações penais
antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro, conforme se
pode verificar do art. 1º da Lei nº 9.613/98:
“Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza,
origem, localização, disposição, movimentação ou
propriedade
de
bens,
direitos
ou
valores
provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
I - de tráfico ilícito de substâncias
entorpecentes ou drogas afins;
II - de terrorismo;
II – de terrorismo e seu financiamento;
(Redação dada pela Lei nº 10.701, de 9.7.2003)
III - de contrabando ou tráfico de armas,
munições ou material destinado à sua produção
IV - de extorsão mediante seqüestro;
V
contra
a
Administração
Pública,
inclusive a exigência, para si ou para outrem,
direta ou indiretamente, de qualquer vantagem,
como condição ou preço para a prática ou omissão
de atos administrativos;
VI - contra o sistema financeiro nacional;
VII - praticado por organização criminosa.
VIII – praticado por particular contra a
administração pública estrangeira (arts. 337-B,
337-C e 337-D do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 – Código Penal). (Inciso
incluído pela Lei nº 10.467, de 11.6.2002)
Pena: reclusão de três a dez anos e multa.”
Conforme
assevera
a
doutrina
especializada,
caracteriza-se conduta típica do crime de lavagem se os bens
têm origem em um dos delitos antecedentes previstos no art.
1º da Lei nº 9.613/98. Por todos vide Antônio Sérgio Pitombo
que
afirma:
“E
não
é
qualquer
crime
que
vai
ensejar
a
proveniência ilícita, posto que, em atenção aos princípios
do Direito Penal, limitou-se o rol de crimes antecedentes à
lavagem de dinheiro. No art. 1º da Lei nº 9.613/1998 existem
verdadeiros numerus clausus de delitos anteriores.” (Antonio
Sérgio de Moraes Pitombo, Lavagem de dinheiro: a tipicidade
do crime antecedente, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,
2003, p. 112).
Assim,
não
resta
dúvida
de
que
a
lavagem
de
dinheiro, no Brasil, se trata de crime cuja subsunção típica
depende da existência de um crime antecedente, na hipótese,
restrito àqueles expressamente elencados nos incisos I a
VIII do art. 1º da Lei nº 9.613/98. Conforme anota Fábio
Roberto
Dávilla:
“(...)
segundo
a
sistemática
adotada
somente haverá crime de lavagem, se os bens, direitos ou
valores
envolvidos
forem
provenientes,
direta
ou
indiretamente, de algum dos crimes arrolados nos referidos
incisos.”
(Fábio
Roberto
Dávilla,
A
certeza
do
crime
antecedente como elementar do tipo nos crimes de lavagem de
capitais, in Boletim IBCCrim, v. 7, n. 79, jun. 1999, p. 4).
Dessa forma, não resta atendido, para fins de extradição, o requisito da dupla tipicidade,
tendo em vista que, no Brasil, ao contrário de Portugal, a lavagem de dinheiro decorrente de
estelionato não constitui ilícito penal (pelo princípio da reserva legal penal).
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