RAUL HENRIQUE RODRIGUES FERREIRA
A UTILIZAÇÃO DO ANATOCISMO NOS CONTRATOS DE MÚTUO BANCÁRIO E
SUA VEDAÇÃO LEGAL
Monografia apresentada à Universidade
Católica de Brasília – UCB, como
requisito parcial a obtenção do grau em
Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Amaury Walquer Ramos
de Moraes.
Brasília
2010
Aos meus pais, Leopoldo e Salete, minha
irmã Thays, minha namorada Joyce e
meu anjo da guarda Mãeni, pelo incentivo
valioso e a imensa capacidade de me
fazer feliz.
AGRADECIMENTO
Agradeço primeiramente a Deus pela vida que me deu; aos meus pais
Leopoldo e Salete, por terem me amado e cuidado de mim até mesmo nos
momentos em que não merecia; à minha namorada, companheira e amiga Joyce,
pelo apoio, dedicação e compreensão em todas as horas; à minha irmã Thays por
me dar a oportunidade de crescer cada dia que fico em sua companhia; Ao meu anjo
da guarda e segunda mãe, Eni, por sempre ter me orientado, apoiado e acreditado
em meu potencial; agradeço também aos amigos verdadeiros, pois sei que em
vocês sempre poderei confiar. À todos vocês, o meu amor eterno.
Antes de assinar um contrato, leia-o
minuciosamente. Lembra-se de que as
letras grandes dão e as miúdas tomam.
(Brown)
RESUMO
FERREIRA, Raul Henrique Rodrigues. A utilização do anatocismo nos
contratos de mútuo bancário e sua vedação legal. 2010. 54 p. Trabalho de
conclusão do curso de direito. Universidade Católica de Brasília, Taguatinga,
2010.
Trata-se de uma monografia para conclusão do curso de graduação em Direito,
abordando o anatocismo nos contratos de mútuo bancário, analisando a evolução
histórica do anatocismo, a legislação brasileira, o seu conceito, classificação, as
peculiaridades existentes nesta relação. Analisar os princípios que regem os
contratos de mútuo, verificando a sua importância e aplicabilidade, principalmente
sobre o princípio da autonomia da vontade, da força obrigatórios dos contratos, da
relativização dos efeitos dos contratos, da boa-fé e da função social dos contratos.
Por fim, aborda como é praticado o anatocismo nos contratos de mútuo firmados
com instituições financeiras, analisando sua legalidade, de acordo com a
jurisprudência pátria e as leis que se aplicam ao tema.
Palavra-Chave: anatocismo, mútuo bancário, limitação de juros, princípios e tabela
price.
ABSTRACT
FERREIRA, Raul Henrique Rodrigues. Anatocism “The use of the bank loan
agreement and its legal prohibition. 2010. 54 p. Work completion of Law
school. Catholic University of Brasília. Taguatinga, 2010.
This is a monograph for completion of the undergraduate course in Law, addressing
the anatocism “in bank loan agreements, analyzing the historical evolution of
anatocism, the Brazilian legislation, the concept, classification, peculiarities exist in
the relationship. Examine the principles governing the loan agreements by cheking
their importance and applicability, mainly on the principle of autonomy, the strength
of binding contracts.
Finally, it discusses how it is practiced in the anatocism “signed loan agreements with
financial institutions, examining its legality, according to the ruling nation and the laws
that apply to the subject.
Keyword: anatocism”, mutual banking, limited interest, principles and price table.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1. NOÇÕES GERAIS SOBRE ANATOCISMO E CONTRATO DE MÚTUO
BANCÁRIO
1.1. Conceito de Anatocismo...............................................................................10
1.2. Evolução Histórica do Anatocismo................................................................11
1.3. Conceito de Contrato de Mútuo Bancário e sua natureza jurídica................19
1.4. Tabela Price – Definição e Função...............................................................21
2.
DOS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS NO CONTRATO DE MÚTUO BANCÁRIO
2.1. Da Aplicação dos Princípios nos Contratos..................................................24
2.2. Autonomia da Vontade..................................................................................26
2.3. Força Obrigatória dos Contratos...................................................................30
2.4. Relatividade dos Efeitos Contratuais............................................................32
2.5. Boa-fé............................................................................................................34
2.6. Função Social do Contrato............................................................................36
3. DA VEDAÇÃO LEGAL DO ANATOCISMO PELO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
3.1. O Anatocismo nos contratos de Mútuo Bancário..........................................39
3.2. Da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de
mútuo bancário e sua vedação Legal..................................................................46
3.3. Da inconstitucionalidade do art. 5º. da Medida Provisória n° 2.170-36/01...48
3.4. ADIN Nº 2316/2000 E SEU JULGAMENTO NO STF...................................52
3.5. Posicionamento Jurisprudencial...................................................................54
CONCLUSÃO..........................................................................................................59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS.......................................................................61
INTRODUÇÃO
A presente monografia tem como objetivo analisar a aplicação do
anatocismo nos contratos de mútuo bancário, abordando o uso da Tabela Price
nesta relação contratual, questionando se estariam os juros embutidos por ela,
liberados ou limitados dentro do ordenamento jurídico brasileiro em especial no
Código de Defesa do Consumidor.
De acordo com a nossa legislação o anatocismo já foi proibido, como
também já foi liberado, pois com o advento do Código de Defesa do Consumidor,
está pratica passou a ser banida do nosso ordenamento jurídico, porém com a
vigência da medida provisória nº 2.170-36 de agosto de 2001 a situação passou a
ser controversa, pois esta MP deu nova vida a este tipo de capitalização de juros.
Como o artigo 5º da MP 2.170-36, vem sendo questionada pela Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 2.316/DF, o tema se torna bastante relevante, devido ao
conflito de leis e a insegurança jurídica que isto trouxe ao nosso sistema financeiro.
O capítulo primeiro aborda a evolução histórica do anatocismo, o seu
conceito e sua natureza jurídica, bem como a sua classificação, também aborda a
definição de tabela price, analisando o contrato de mútuo bancário e suas
definições.
O capítulo segundo trata dos princípios aplicáveis ao contrato de mútuo de
uma maneira especifica, logo analisa a interpretação e as transformações dos mais
importantes, quais sejam, princípio da autonomia da vontade, princípio da força
obrigatória dos contratos, princípio da relatividade dos efeitos contratuais, princípio
da boa-fé e o princípio da função social do contrato.
O capítulo terceiro trata da aplicabilidade das normas estabelecidas no
Código de Defesa do Consumidor nos contratos bancários, da sua vedação legal em
confronto com a MP autorizadora, das teses contrárias à vedação imposta pelo
Código de Defesa do Consumidor, da jurisprudência atual, fazendo uma analise do
que vem sendo decidido e sua conseqüência para a sociedade brasileira. A
Pesquisa se encerra com as Considerações Finais, nas quais são apresentados os
pontos conclusivos.
CAPÍTULO 01
1. NOÇÕES GERAIS SOBRE ANATOCISMO E CONTRATO DE MÚTUO
BANCÁRIO
1.1. Conceito de Anatocismo
O anatocismo é o juro cobrado sobre juros vencidos e não pagos e que são
tidos por incorporados ao capital desde o dia do vencimento de acordo com o
dicionário MICHAELIS (2008).
Podemos definir também, em uma analise jurídica, como o termo utilizado
quando verificado a ocorrência da cobrança de juros sobre juros, ou seja, quando os
juros devidos em um determinado período de tempo, são somados ao capital que foi
utilizado como base de cálculo desses mesmos juros, o que forma, assim, nova
base de cálculo para a cobrança de outra parcela de juros. Na linguagem
matemática, essa ocorrência tem o nome de juros compostos.
Percebe-se que na definição jurídica de anatocismo, os juros serão cobrados
sobre o mesmo capital base e também serão cobrados juros sobre os juros que
eram devidos e que deverão ser acrescentados sobre o capital base.
Sobre a forma que se dá o anatocismo como sendo a capitalização de juros
de forma composta e a sua diferença entre os juros simples, é de se ressaltar os
ensinamentos do ilustre professor Pontes de Miranda que afirmava que:
Dizem-se simples os juros que não produzem juros; juros compostos os
que fluem dos juros. Se disse „com os juros compostos de seis por
cento‟, entende-se que se estipulou que o principal daria juros de seis
por cento e sobre esses se contariam os juros de seis por cento ao ano‟
1
(= com capitalização anual).
Já, Bruno Mattos e Silva define de forma objetiva a capitalização de forma
simples e composta (anatocismo):
O que são juros simples? Juros simples são aqueles que incidem apenas
sobre o principal corrigido monetariamente, isto é, não incidem sobre os
juros que se acrescente ao saldo devedor. Vale dizer, assim, que os
juros não pagos não constituem a base de cálculo para a incidência
posterior de novos juros simples. E o que são juros compostos? Juros
compostos são aqueles que incidirão não apenas sobre o principal
corrigido, mas também sobre os juros que já incidiram sobre o débito.
Como se pode perceber, capitalização dos juros pode,
matematicamente, ocorrer mês a mês, semestralmente, ano a ano, etc.
1.2. Evolução Histórica da Previsão Legal do Anatocismo
Estudando normas antigas a respeito do tema, verifica-se que o Código Civil
de 1916 não trazia nenhuma vedação quanto à prática do anatocismo, desde que
fosse expressamente contratada, conforme redação do Art. 1.262 a seguir:
Art. 1.262. É permitido, mas só por cláusula expressa, fixar juros ao
empréstimo de dinheiro ou de outras coisas fungíveis. Esses juros
podem fixar-se abaixo ou acima da taxa legal (art. 1.062), com ou sem
capitalização.
Porém, essa prática passou a não ser mais admitida no direito brasileiro e a
sua vedação legal data de 1933, com a publicação do Decreto n.º 22.626/33,
1
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, 3 ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984,
v. 24, p. 32.
conhecido como “Lei da Usura”. Mas nesse mesmo decreto já estavam previstos as
exceções possíveis para uma futura definição.
Art.4º. É proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende
a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente
de ano a ano. (Decreto n.º 22.626, de 07/04/1933).
O Supremo Tribunal Federal posicionou-se a respeito da possibilidade da
cobrança de juros capitalizados, previsto no Código Civil de 1916, com interpretação
favorável ao decreto de 1933, conforme enunciado da Súmula 121, de 13/12/19632:
Súmula 121 - É vedada a capitalização de juros, ainda que
expressamente convencionada. (Aprovada na Sessão Plenária de
13/12/1963)
Posteriormente a essa súmula, houve a edição da Lei n.º 4.595, de
31/12/1964, conhecida como a Lei da Reforma Bancária, que dispõe sobre o
Sistema Financeiro Nacional - SFN e que delega ao Conselho Monetário Nacional CMN a competência para disciplinar o crédito em todas as suas modalidade e
operações, até de limitar o a taxa de juros quando fosse necessário, conforme
disposto em seu Art. 4º, incisos VI e IX3:
Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes
estabelecidas pelo Presidente da República: (Redação dada pela Lei nº.
6.045, de 15/05/74)
2
Brasil. Superior Tribunal Federal. Súmula nº 121 do Supremo Tribunal, aprovada na sessão plenária
de 13/12/1963. <Disponível em www.stf.jus.br> Acesso: 10 de julho de 2010.
3
BRASIL. Lei 4.595/64, de 12 de Dezembro de 1964. Lei da Reforma Bancária.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4595.htm>. Acesso em:
10 de julho de 2010.
VI - Disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações
creditícias em todas as suas formas, inclusive aceites, avais e
prestações de quaisquer garantias por parte das instituições financeiras;
IX - Limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos
comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e
serviços bancários ou financeiros, inclusive os prestados pelo Banco
Central da República do Brasil, assegurando taxas favorecidas aos
financiamentos que se destinem a promover:
Com a edição dessa lei, houve uma mudança no entendimento
jurisprudencial, quanto à possibilidade da utilização dos juros capitalizados pelas
instituições financeiras, o que resultou na edição da Súmula 5964 do STF:
Súmula 596 - As disposições do decreto 22626/1933 não se aplicam às
taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas
por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro
nacional.
Porém, com o advento da Constituição Federal de 1988, ocorreu outra
“febre” de ações judiciais contra instituições financeiras, em decorrência do artigo
192, §3º, que limita a taxa dos juros a serem cobrados pelas instituições financeiras,
em 12% a.a., conforme abaixo podemos ver o artigo em sua integra:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover
o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da
coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive,
sobre:
I - a autorização para o funcionamento das instituições financeiras,
assegurado às instituições bancárias oficiais e privadas acesso a todos
os instrumentos do mercado financeiro bancário, sendo vedada a essas
4
Brasil. Superior Tribunal Federal. Súmula nº 596 do Supremo Tribunal, aprovada na sessão plenária
de 13/12/1963. <Disponível em www.stf.jus.br> Acesso: 10 de julho de 2010.
instituições a participação em atividades não previstas na autorização de
que trata este inciso;
II - autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro,
previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador e do
órgão oficial ressegurador;
III - as condições para a participação do capital estrangeiro nas
instituições a que se referem os incisos anteriores, tendo em vista,
especialmente:
a) os interesses nacionais;
b) os acordos internacionais
IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do banco central e
demais instituições financeiras públicas e privadas;
V - os requisitos para a designação de membros da diretoria do banco
central e demais instituições financeiras, bem como seus impedimentos
após o exercício do cargo;
VI - a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de proteger a
economia popular, garantindo créditos, aplicações e depósitos até
determinado valor, vedada a participação de recursos da União;
VII - os critérios restritivos da transferência de poupança de regiões com
renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento;
VIII - o funcionamento das cooperativas de crédito e os requisitos para
que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias
das instituições financeiras.
§ 1º - A autorização a que se referem os incisos I e II será inegociável e
intransferível, permitida a transmissão do controle da pessoa jurídica
titular,
e concedida sem ônus, na forma da lei do sistema financeiro nacional, a
pessoa jurídica cujos diretores tenham capacidade técnica e reputação
ilibada, e que comprove capacidade econômica compatível com o
empreendimento.
§ 2º - Os recursos financeiros relativos a programas e projetos de caráter
regional, de responsabilidade da União, serão depositados em suas
instituições regionais de crédito e por elas aplicados.
§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer
outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de
crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança
acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em
todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.
Essas ações judiciais baseavam-se no fato de ter sido inserido pela nossa
carta magna a seguinte expressão: nos termos que a lei determinar, o que de fato
implicaria na recepção pela CF da Lei da Usura, o que teria como conseqüência
imediata a perda da eficácia da Súmula 596 do STF, pois teria o comando
constitucional aplicabilidade imediata.
As petições iniciais encaminhadas ao judiciário tiveram como fundamento
principal essa afirmação, apesar de que o “caput” do Art. 192 determinar que o
Sistema Financeiro Nacional seja regido por lei complementar - LC, uma vez que a
regulamentação a ser feita não poderia dispor de taxas de juros superiores a 12%,
sob pena de ser declarada inconstitucional, pois não condiz com o disposto no §3º
do Art. 192 da CF.
Com a publicação do Código de Defesa do Consumidor - CDC, Lei 8.078 de
11/09/1990, veio uma ampliação dos dispositivos legais que validavam ainda mais
as teses das ações judiciais, pois o Código de Defesa do Consumidor implementou
uma série de artigos que vedaram os abusos nas relações entre o consumidor e
fornecedor de produtos e serviços, o que abrangia, também, as relações entre os
bancos e seus clientes.
Na data de 25 de Abril de 1991, foi publicado o decreto sem número, que em
seu Art. 4º revogou vários decretos, entre eles o de n.º 22.626/33 – Lei da Usura,
que consta no Anexo do decreto em questão:
Art. 4º - Declaram-se revogados os decretos relacionados no Anexo.
(Decreto de 25 de abril de 1991)
Anexo: ... 22.626, de 07 de abril de 1993;
(Decreto de 25 de Abril de 1991)
Contudo, em 1991, por meio de outro decreto sem número, houve a
revogação de alguns decretos citados no Decreto publicado em 25 de abril de 1991,
citado acima como por exemplo, o decreto 22.626/33:
Art. 1º - Fica sem efeito a revogação dos Decretos nºs:
...
IV - 22.626, de 7 de abril de 1933, 57.286, de 18 de novembro de 1965,
59.195, de 8 de setembro de 1966, e 65.268, de 3 de outubro de 1969,
constantes do anexo ao Decreto de 25 de abril de 1991;
...
(Decreto de 29 de Novembro de 1991)
Um adendo se faz necessário, pois em nosso Direito Pátrio não há a
repristinação ou revigoração da norma revogada em decorrência da perda da
validade da norma revogadora, de acordo com o que determina o §3º do Art. 2º da
Lei de introdução ao Código Civil:
Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que
outra a modifique ou revogue.
...
§ 3º - Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por
ter a lei revogadora perdido a vigência.
(Decreto-lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942).
Percebe-se que o decreto publicado em 29 de Novembro de 1991, não
aboliu todo o decreto anterior, mas apenas alguns decretos específicos, e ainda, no
texto do decreto não consta determinação expressa para que os decretos citados
voltem a ter validade. Assim, apesar da abolição do nosso ordenamento jurídico do
decreto revogador, a validade do decreto 22.626/33 não foi renovada.
Um dos objetos de estudo deste trabalho mais a frente, em 23 de agosto de
2001, fora editada a MP 2.170-36, em que é liberada o anatocismo (capitalização de
juros), para períodos inferiores que um ano, nas operações realizadas pelas
instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, conforme Art. 5º a seguir:
Art. 5º - Nas operações realizadas pelas instituições integrantes do
Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com
periodicidade inferior a um ano.
Parágrafo único - Sempre que necessário ou quando solicitado pelo
devedor, a apuração do valor exato da obrigação, ou de seu saldo
devedor, será feita pelo credor por meio de planilha de cálculo que
evidencie
de
modo
claro,
preciso
e
de
fácil
entendimento
e
compreensão, o valor principal da dívida, seus encargos e despesas
contratuais, a parcela de juros e os critérios de sua incidência, a parcela
correspondente a multas e demais penalidades contratuais.
Com a publicação do Código Civil de 2002, a capitalização dos juros para o
mútuo com fins econômicos foi liberada, mas de forma anual, conforme Art. 561, o
que reforça o entendimento da revogação do decreto 22.626/33, Lei da Usura:
Art. 591 - Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se
devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a
taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.
Com o aumento absurdo da demanda judicial sobre o mesmo tema, em 29
de maio de 2003, foi publicada a EC n.º 40, que alterou o Art. 192 da CF/88, com a
retirada da limitação constitucional dos juros reais em 12% a.a. e estabeleceu que o
sistema financeiro nacional deverá ser regulado por leis complementares:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover
o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da
coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as
cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que
disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas
instituições que o integram. (Redação dada pela Emenda Constitucional
nº. 40, de 2003)
I - (Revogado).
II - (Revogado).
III - (Revogado)
a) (Revogado)
b) (Revogado)
IV - (Revogado)
V -(Revogado)
VI - (Revogado)
VII - (Revogado)
VIII - (Revogado)
§ 1°- (Revogado)
§ 2°- (Revogado)
§ 3°- (Revogado)
Com isso, restou caracterizada a “desconstitucionalização” no que concerne
ao Sistema Financeiro Nacional e, como conseqüência, a recepção com o status de
lei complementar, da Lei 4.595/64 - Lei da Reforma Bancária, como a lei que regula
o nosso SFN, o que não mais permite cogitar em base constitucional a limitação da
cobrança de juros reais e deixa claro que a súmula nº 596 do STF não perdeu seu
efeito.
A própria Corte Suprema, diante de várias decisões diferentes a respeito da
auto-aplicação da norma constante no §3º do Art. 192 da CF, aprovou o enunciado
nº 6485, com a finalidade de unificar as decisões dos demais tribunais do país:
Súmula 648 - A norma do $3º do Art. 192 da Constituição, revogada pela
Emenda Constitucional 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12%
ao ano, tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de lei
complementar.
O enunciado acima descrito foi convertido em súmula vinculante em
20/06/2008 e recebeu o número º 76:
Súmula Vinculante 7 - A norma do §3º do artigo 192 da Constituição,
revogada pela Emenda Constitucional n.º 40/2003, que limitava a taxa de
juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação condicionada à edição de
lei complementar. (Fonte de Publicação DJe n.º 112/2008, de 20/6/2008)
1.3. Conceito de Contrato de Mútuo Bancário
É o contrato bancário pelo qual a instituição financeira empresta certa
quantia de dinheiro ao cliente, fracionando este débito em prestações que incidem
juros, sendo esta a remuneração do dinheiro emprestado, diferentemente do mútuo
civil que está previsto no Código Civil no Art. 586, abaixo descrito:
5
Brasil. Superior Tribunal Federal. Súmula nº 648 do Supremo Tribunal. <Disponível em
www.stf.jus.br> Acesso: 18 de julho de 2010
6
Brasil. Superior Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 7 do Supremo Tribunal. <Disponível em
www.stf.jus.br> Acesso: 18 de julho de 2010
Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é
obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo
gênero, qualidade e quantidade.
Podemos classificar o mútuo bancário como contrato real, pois somente se
efetiva com a entrega do dinheiro ao mutuário, sendo temporário, por prazo
determinado ou indeterminando, podendo ser gratuito ou oneroso, no ultimo caso o
mutuário assume a obrigação de devolver o valor emprestado, de uma só vez ou
através de amortizações, bem como a pagar os juros e demais encargos devidos,
tudo previsto em contrato.
Quanto à natureza jurídica que possui o mútuo bancário, vejamos os
ensinamentos de Sílvio de Salvo Venosa7:
Examinado o comodato, quanto ao mútuo, podemos afirmar que sua
estrutura não se altera como contrato de empréstimo. Uma vez que seu
objeto é construído de coisas fungíveis, seu regime jurídico exige
variações. Sob tal prisma, diz-se que o mútuo é empréstimo de
consumo, em paralelo ao comodato, empréstimo para uso.
Ao mútuo bancário em que não há destinação final específica em contrato
para o valor emprestado, dá-se a denominação de “empréstimo”. Já o mútuo
bancário em que há uma determinação contratual ou uma destinação específica
para o valor emprestado, denomina-se de “financiamento”.
7
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos
contratos. 4. ed. São Paulo: Atlas, p. 241, 2004
1.4. TABELA PRICE – O QUE É?
TABELA PRICE ou Tables of Compound Interest (Tabelas de Juro
Composto), é o sistema francês de amortização criado por RICHARD PRICE, onde a
forma de amortização da dívida se dá por meio de juros compostos ou exponenciais.
Este sistema foi importado da França, e é utilizada pelas instituições financeiras
brasileiras nos contratos de mútuo bancário como forma de praticar o ANATOCISMO
e cobrar juros sobre juros.
Sobre tal procedimento corriqueiro nos contratos de financiamento
bancários, LUIZ ANTONIO SCAVONE JUNIOR8 esclarece:
A Tabela Price, como é conhecido o sistema francês de amortização, há
muito vem sendo ilegalmente utilizada neste país, principalmente pelos
bancos, construtores e agentes financeiros. Mas o que é a Tabela Price?
Segundo a lição do ilustre matemático JOSÉ DUTRA VIEIRA
SOBRINHO, que cita trecho da obra do professor MARIO GERALDO
PEREIRA, a denominação Tabela Price se deve ao matemático, filósofo
e teólogo inglês Richard Price, que viveu no séc. XVIII e que incorporou
a teoria dos juros compostos às amortizações de empréstimos (ou
financiamentos). A denominação 'Sistema francês', de acordo com o
autor citado, deve-se ao fato de o mesmo ter-se efetivamente
desenvolvido na França, no Século XIX. Esse sistema consiste em um
plano de amortização de uma divida em prestações periódicas, iguais e
sucessivas, dentro do conceito de termos vencidos, em que o valor de
cada prestação, ou pagamento, é composto por duas parcelas distintas:
uma de juros e uma de capital (chamada amortização). (...) Portanto,o
que é evidente, e qualquer profissional da área sabe, até porque
aprendeu nos bancos
da faculdade, é que a Tabela Price é o
sistema de amortização que incorpora, por excelência, os juros
compostos (juros sobre juros, juros capitalizados de forma composta ou
juros exponenciais). Se incorpora juros capitalizados de forma composta,
a tabela Price abraça juros sobre juros e, portanto, é absolutamente
ilegal a teor do que dispõe o art. 4º do Decreto 22.626/33 (Súmula 121
do STF), e isso parece que esses profissionais desconhecem.
No que diz respeito à TABELA PRICE é ela quem determina o valor fixo das
prestações, em todo o período de contratação do valor financiado, para tanto, utiliza
8
in Tabela Price: enfim os tribunais reconhecem a ileqalidade, Direito Bancário, São Paulo. Disponível em
www.direitobancario.com.br/artiqos/direitobancario/1fev - 00 -19.htm. Acesso em 10/11/2010. Destacou-se.
a forma antecipada dos juros e sua cumulação mensal, ao invés de anual como
determina a Súmula 121 do STF, ocorrendo, destarte, a superposição de juros.
Para demonstrar a caracterização do anatocismo pelo uso da Tabela Price,
é importante trazer ao trabalho o julgado do douto MIN. JOSÉ DELGADO, no
julgamento do REsp. 572210/RS9, achando-se assim resumida a fundamentação do
acórdão, verbis:
“RECURSO ESPECIAL CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE
CRÉDITO EDUCATIVO. ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA. UTILIZAÇÃO DA
TABELA PRICE. IMPOSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE JUROS
CAPITALIZADOS. ANATOCISMO. CARACTERIZAÇÃO DE CONTRATO
BANCÁRIO.
APLICAÇÃO DO
CÓDIGO DE DEFESA
DO
CONSUMIDOR: ARTIGOS 3º, § 2º, 6º, V, e 51, IV, § 1º, III. INCIDÊNCIA
DE JUROS LEGAIS, NÃO CAPITALIZADOS.
1. O contrato de financiamento de crédito educativo, ajustado entre a
Caixa Econômica Federal e o estudante, é de natureza bancária, pelo
que recebe a tutela do art. 3º, § 2º, da Lei 8.078, de 1990 (Código de
Defesa do Consumidor).
2. É indevida a utilização da tabela price na atualização monetária dos
contratos de financiamento de crédito educativo, uma vez que, nesse
sistema, os juros crescem em progressão geométrica, sobrepondo-se
juros sobre juros, caracterizando-se o anatocismo.
3. A aplicação da tabela price, nos contratos em referência, encontra
vedação na regra disposta nos artigos 6º, V, e 51, IV, § 1º, III, do Código
de Defesa do Consumidor, em razão da excessiva onerosidade imposta
ao consumidor, no caso, o estudante.
4. Na atualização do contrato de crédito educativo, deve-se aplicar os
juros legais, ajustados de forma não capitalizada ou composta.
5. Recurso especial conhecido e provido.”
No mesmo sentido é o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça do
Distrito Federal10, como se observa nos julgados abaixo transcrito, in verbis:
9
Brasil.Superior Tribunal de Justiça. REsp 572210/RS, Relator Min. José Delgado, DJU 07/06/04.
Brasil. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. EMBARGOS INFRINGENTES CÍVEIS
NA APELAÇÃO CÍVEL 20040110618628EIC, Relatora Des. VERA ANDRIGHI, 11/07/2006.
10
“CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE IMÓVEL. SISTEMA
FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. ATUALIZAÇÃO DO SALDO DEVEDOR
APÓS A AMORTIZAÇÃO. ADOÇÃO DA TABELA PRICE.
IMPOSSIBILIDADE.
(...).
O sistema "price" de amortização mascara, na verdade, a capitalização
de juros, vedada pelo direito pátrio, já que os juros, na aludida tabela,
são compostos, configurando, assim, o anatocismo.( Destacou-se. 2ª T.
Cível, APC 20030111140122, ac. 226.969, Rel. Desa. Carmelita Brasil,
DJU 18/10/2005, p. 131)
“EMBARGOS
INFRINGENTES.
CAPITALIZAÇÃO. TABELA PRICE.
REVISÃO
CONTRATUAL.
I - A UTILIZAÇÃO DA TABELA PRICE ACARRETA CAPITALIZAÇÃO
DE JUROS, VEDADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO.
II - EMBARGOS INFRINGENTES CONHECIDOS E IMPROVIDOS.
UNÂNIME”.
CAPÍTULO 02
2. DOS PRINCIPIOS APLICÁVEIS NO CONTRATO DE MÚTUO BANCÁRIO
2.1. DA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS NOS CONTRATOS
Não podemos deixar de observar o contrato não apenas sob a ótica de
direito civil, deve ser levado em conta todo ordenamento jurídico, interpretando as
normas presentes neste sistema de acordo com as normas da Constituição Federal.
No Direito atual são muito observadas nos contratos as perspectivas do CDC,
conforme Sílvio de Salvo Venosa11 “Não há conflito, mas harmonização em sua
aplicação perante o Código Civil”. Tem o Direito que ser visto como um todo,
interpretando este com as diretrizes da Constituição Federal. Sobre o tema, comenta
Flávio Tartuce12:
O que se recomenda, na verdade, é que seja feita uma interpretação
sistemática de todo o ordenamento jurídico, para conhecer profundamente o
contrato. O estudioso do direito deve saber trabalhar não só com o Código
Civil, mas também com esses estatutos jurídicos importantes, não se
esquecendo de uma analise sob o enfoque constitucional.
O que deve ser lembrado na interpretação do contrato além do diferencial de
cada um, ou seja, no contrato de locação deve levar em consideração as normas
que tratam este contrato, assim como deve observar as especificidades do contrato
de seguro ou de depósito, por exemplo, mas sim os princípios que regem todos os
11
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos
contratos. 7. ed. São Paulo: Atlas, p. 402, 2007.
12
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do código de defesa do consumidor ao
código civil de 2002. São Paulo: Método, p. 55, 2007.
contratos, já que elas servem de limite da liberdade de contratar. Assim assevera,
Flávio Tartuce13:
Sendo o contrato categoria de negocio jurídico, não se pode olvidar a
relevância da Parte Geral do Código Civil para a compreensão de sua
existência, validade e eficácia. Vital é o estudo dos seus elementos
essenciais, acidentais e naturais, por serem também os elementos
formadores e orientadores do contrato. Os defeitos do negocio jurídico são
de grande valia a matéria contratual, já que geram anulabilidade ou nulidade
dos pactos em diversas situações.
Por conseqüência, as situações de nulidade e de anulabilidade do negocio
jurídico são plenamente aplicáveis aos contratos, hipóteses em que se tem
a extinção dos contratos por invalidade contratual, dos contratos, já que
esses constituem a principal fonte do Direito Obrigacional. No contrato, temse uma relação jurídica transitória entre credor e devedor, gerando
obrigações de dar, fazer ou não fazer, solidariedade, indivisibilidade e
divisibilidade. Os contratos tem extinção normal pelo cumprimento, pelo
pagamento direto, mas também por consignação em pagamento, imputação
do pagamento, pagamento em sub-rogação, dação em pagamento,
novação, compensação, confusão, remissão de dividas, transação e
compromisso. O estudo desses conceitos também nos leva ao cerne do
contrato.
Não se pode deixar de lembrar, ao analisar o contrato, os princípios dos
contratos e os princípios constitucionais. A CF, em seu preâmbulo, assegura o
exercício dos direitos sociais e individuais, o bem estar, a igualdade, a justiça, como
valores supremos de uma sociedade fraterna na harmonia social, no artigo 1º, III a
dignidade da pessoa humana, nos artigos 5º, 6º e 7º os direitos individuais, coletivos
e sociais, no artigo 170º, V e VI a ordem econômica fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, conforme os ditames da justiça social, a função
social da propriedade, defesa do consumidor e defesa do meio ambiente, no artigo
170, §1º, I a função social da empresa pública, sociedade de economia mista e suas
subsidiárias. Veja que ao interpretar o contrato deve o analista resguardar a função
social a que se destina, devido ao enfoque que a Carta magna impôs ao Direito
Privado.
13
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do código de defesa do consumidor ao
Código civil de 2002. São Paulo: Método, p. 30-31, 2007
Com a promulgação da nossa carta magna em 1988, o contrato passou por
uma transformação, adequando-se ao atual Direito Civil e aos princípios
constitucionais, que veremos logo adiante.
2.2. AUTONOMIA DA VONTADE
O Princípio da liberdade negocial vem garantindo os contratos em todos os
ordenamentos jurídicos ocidentais, sendo que somente em casos especiais ele
poderá ser restringido. No Brasil o contrato é formado por vontade de duas ou mais
partes, sendo a vontade o objeto humano mais valorizado no contrato. O elemento
característico do negócio jurídico é a vontade, importante demonstrar a diferença
entre a liberdade para contratar, liberdade de contratar e a liberdade contratual, pois
a primeira consiste na autonomia de querer ou não contratar, a segunda se trata à
liberdade de escolha com quem contratar e a terceira consiste na livre forma de
contratar, podendo ser chamada de autonomia da vontade, manifesta-se por essas
formas, de liberdades dimensionadas. Assim dispõe Flávio Tartuce14:
Inicialmente, percebe-se, no mundo negocial, uma plena liberdade para a
celebração dos pactos e avenças, sendo o direito à contratação inerente à
própria concepção humana, um direito da personalidade advindo do
princípio da liberdade. Além desse conceito, há a liberdade de contratar
relacionada com a escolha da pessoa ou das pessoas com quem o negocio
será celebrado. E, outro plano, essa face da autonomia pode estar
relacionada com o conteúdo do negócio jurídico, ponto em que residem
limitações ainda maiores à liberdade do contratante.
Surge aqui o conceito de liberdade contratual. Há muito tempo os sujeitos
do direito vêm encontrando limitações ao seu modo de viver, inclusive para
as disposições contratuais, já que o velho modelo individualista de contrato
encontra-se superado.
14
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do código de defesa do consumidor ao código civil de 2002.
São Paulo: Método, p. 173, 2007.
Ciente dessa liberdade, o Código Civil prevê em seu artigo 425, a
possibilidade de celebração de contratos atípicos, admitindo contratos não regidos
por lei, fruto da vontade humana, porém a própria codificação traz limitação a essa
liberdade, o próprio artigo 425 remete os contratos atípicos a observarem as normas
gerais previstas no próprio Código Civil. Conforme, Maria Helena Diniz15:
Contratos atípicos ou inominados. São os não disciplinados expressamente
pelo Código Civil ou por lei extravagante, porém admitidos juridicamente,
ante o princípio da autonomia da vontade e a doutrina do número apertus,
em que se desenvolvem as relações contratuais, desde que observem as
normas gerais estabelecidas pelo Código Civil e não contrariem a rodem
pública, os bons costumes e os princípios gerais do direito, como o da
função social do contrato (CC, art. 2.035, parágrafo único). Os particulares,
dentro dos limites legais, poderão criar as figuras contratuais de que
necessitarem no mundo dos negócios.
A autonomia da vontade, que representa direito da própria personalidade,
posto que assegura a assunção de vínculos sem a necessária aprovação do Estado
ou de quem quer que seja, traça, nos contratos, os deveres fundamentais das partes
que, em geral, refletem a causa do negocio jurídico. No entanto, para que o
adimplemento seja alcançado, mister faz-se que também outras condutas que não
constam explicitamente no contrato sejam observadas como forma de auxiliar a
prestação do alter e garantia de resultado útil do processo obrigacional.
Sobre o assunto, o ilustre doutrinador Carlos Alberto de Arruda Silveira 16,
comenta:
Segundo o princípio da autonomia da vontade os indivíduos são livres para
escolher com quem contratam, e para determinar o conteúdo dos contratos
a que se sujeitam. O princípio da liberdade contratual consiste no poder
conferido às partes de livremente disciplinar, seus interesses, mas sempre
suscitando à tutela da ordem jurídica. Podemos dizer que a autonomia da
15
16
DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, p. 366, 2008.
SILVEIRA, Carlos Roberto de Arruda. Contratos. São Paulo: Mundo Jurídico, p. 15-16, 2003.
vontade é limitada pelas normas de ordem pública, que visam estabelecer a
premissa de que as partes contratantes se encontram em pé de igualdade.
A liberdade de contratar pressupõe: a) a liberdade de contratar ou não; b) a
liberdade de escolher com quem se pretende contratar; c) a liberdade de
fixar o conteúdo do contrato. A liberdade de contratar não pode ser
interpretada de forma absoluta. Limitam-na as normas de ordem pública e
os bons costumes. O Estado intervém na autonomia da vontade através da
revisão judicial dos contratos, alterando-os ou extinguindo-os, com
fundamento no princípio da boafé e na supremacia do interesse coletivo.
Não restam mais dúvidas que a vontade da pessoa humana perdeu a
importância que exercia nos contratos do passado. Na concepção liberal a vontade
não podia ser modificada, por ser fruto do desejo livre e consciente entre as partes,
estas não poderiam se posicionar contra ela, exceto se algum vício escondesse a
vontade, haja vista que, pelas limitações impostas pela legislação, a realidade hoje é
outra. Portanto, é inevitável que o Estado intervenha em certos casos, restringido a
autonomia individual. Nesse sentido, Eliseu Jusefovicz17:
Na concepção liberal, a tese voluntarista define o contrato acentuado como
aspecto fundamental a vontade, que não pode ser modificada porque é
autônoma, Uma vez aperfeiçoado o contrato, por ser fruto da vontade livre,
as partes não podem mais se rebelar contra ela, exceto se algum vício
macule a vontade. Em conseqüência, vale a máxima pacta sunt servanda e
a vinculação do juiz às determinações contratuais.
De acordo com esse posicionamento, o contrato é visto como causa de
obrigações, um fenômeno de auto-regulação, um ato jurídico bilateral de efeito
relativo. No entanto, o pressuposto na concepção moderna do Direito dos Contratos
é o contrário: a autonomia privada diz muito pouco sobre o contrato nos tempos
modernos.
Também, não há dúvidas de que a autonomia da vontade representa um dos
componentes primordiais para o contrato. Essa liberdade tendo como matriz a
17
JUSEFOVICZ, Eliseu. Contratos: proteção contra cláusulas abusivas. Curitiba: Juruá Editora, p. 61,
2005.
concepção do ser humano como agente moral, dotado de razão, capaz de decidir o
que é bom ou ruim para si, e que deve se guiar de acordo com essas escolhas.
Entretanto, essa liberdade não é mais absoluta, prepondera na atualidade a
convicção de que a vontade, esta infiltrada de regulamentações que lhe dão um
sentido. As obrigações que tem origem nessa dita “vontade comum”, na maioria das
vezes, advém de cláusulas predispostas unilateralmente ou da própria lei, fala-se no
“livre consentimento”, porém se os contratos são padronizados a situação de “pegar
ou largar” em que se encontram os aderentes e porque não dizer também os
locatários e os contratos firmados com a administração pública, conduzem a um
consentimento
com
caráter
quase
coercitivo
para
a
parte
em
situação
18
desproporcional. Também, a análise de Jusefovicz :
Na atualidade prepondera a convicção de que a vontade, desde seu
surgimento ou formação até a concretização, esta infiltrada de
regulamentações que lhe dão um sentido. O próprio contrato é uma
abstração jurídica. As obrigações podem ter origem na “vontade comum”,
mas, na maioria das vezes, advêm das cláusulas predispostas
unilateralmente, ou da lei. Nem sempre quem emite voluntariamente a
oferta e a aceitação são os sujeitos responsáveis pelo contrato; por
exemplo, as implicações da representação, da “aparência”, da
responsabilidade por produtos etc. Frequentemente, ainda que as partes
decidam a entrada e saída do contrato, poderão sofrer restrições sobre
responsabilidade pré-contratual e póscontratual, decorrentes da boa-fé.
Em conseqüência dessas transformações passou-se a falar em substituição
do termo que proclamou esse princípio “autonomia da vontade” pelo termo
“autonomia privada”. Nesse sentido, explica Flávio Tartuce19:
Dentro da idéia de personalização de Direito Privado, de valorização da
pessoa como centro do Direito Privado, o conceito de autonomia privada é
também o mais correto, pois a autonomia não é da vontade, mas da
18
JUSEFOVICZ, Eliseu. Contratos: proteção contra cláusulas abusivas. Curitiba: Juruá Editora, p. 61-
62, 2005.
19
TARTUCE, op. cit. p. 177.
pessoa. Entre os autores nacionais, quem observou muito bem o significado
do principio da autonomia privada foi Francisco Amaral. Suas construções
em relação ao conceito de autonomia privada e confrontação desta em
relação à autonomia da vontade são brilhantes e devem ser utilizadas para
a concepção da substituição titulo dessa seção.
Por tudo isso, a autonomia das partes sucumbe pelas normas de ordem
pública e pelos fins sociais que cercam o contrato.
2.3. FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS
Esse princípio vem da deliberação disposta pela autonomia das partes, qual
seja, pacta sunt servanda, que é concebida através da idéia de que o contrato faz lei
entre as partes. Abaixo podemos entender melhor esta relação nelas palavras do
festejado doutrinador Silvio Rodrigues20:
O princípio da força vinculante das convenções consagra a idéia de que o
contrato, uma vez obedecidos os requisitos legais, torna-se obrigatório entre
as partes, que dele não se podem desligar senão por outra avença, em tal
sentido. Isto é, o contrato vai constituir uma espécie de lei privada entre as
partes, adquirindo força vinculante igual à do preceito legislativo, pois vem
munido de uma sanção que decorre da norma legal, representada pela
possibilidade de execução patrimonial do devedor. Pacta sunt servanda! O
liberalismo do século XIX justifica o princípio na idéia de que, se as partes
alienarem livremente sua liberdade, devem cumprir o prometido, ainda que
daí lhes advenha considerável prejuízo. Pois, quem diz contratual, diz justo.
Esse princípio, em sua interpretação primária, mantém o caráter individual,
que reinou nos séculos anteriores não permitindo no contrato intervenção de
terceiros, devendo ser cumprido o que se acordou, tendo a mesma força de uma lei.
No entanto, com a evolução contratual, este princípio foi sendo superado, pois foi
20
RODRIGUES, Silvio.Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. 30 ed.
São Paulo: Saraiva, p. 17-18, 2004.
sendo reconhecido a função social que o contrato representa. Com maestria Maria
Eugênia Finkelstein21 comenta o assunto:
O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato
é lei entre as partes. Celebrado um contrato com observância de todos os
pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado
pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos.
Em face da evolução das relações contratuais, aliada ao fenômeno do
desenvolvimento do Capitalismo, levou a um total desequilíbrio das partes
contratantes, de modo que uma só parte passou a ter condições de
estabelecer a lex contractus. Assim, o princípio da força obrigatória passou
a possibilitar relações e obrigações destorcidas. Ora, tendo-se em vista que
somente uma das partes podia impor obrigações à outra, sem negociação,
não seria justo obrigar ainda essa parte mais fraca a cumprir o que fora
estabelecido sem a sua participação. Isso ocasionaria injustiças! Dessa
forma, foi obrigação que coube a doutrina e à jurisprudência amenizar o
principio da força obrigatória.
Com isso visou-se a favorecer a parte mais fraca. Em face do
desvirtuamento do princípio da força obrigatória, a doutrina foi ressaltando
cada vez mais a importância da igualdade entre as partes, pressuposto
relevante para que uma relação contratual se aperfeiçoe.
Não é difícil perceber que esse princípio não esta mais sendo considerado
em sua idéia originária em todos os casos no nosso ordenamento, pois caso
pensássemos em utilizar este princípio, nos colocaríamos em situações claramente
injustas, onde o maior afetado seria os contratantes das relações de consumo, pois
a maioria destes contratos é de adesão. O Código Civil de 2002 já vêm com
algumas relativizações desse princípio, pois permite a revisão de contratos, que
forem concebidos com lesão (art. 157, §2º) ou que em seu cumprimento gerarem
alguma onerosidade excessiva para as partes22.
21
FINKELSTEIN, Maria Eugênia. O princípio da autonomia da vontade e as cláusulas abusivas.
Revista de Direito Internacional e Econômico: Porto Alegre, Síntese, v.11, p. 12-13, 2005.
22
O artigo 478 do Código Civil sofre criticas em razão desse principio, pois deveria o dispositivo
conduzir a revisão judicial e não a resolução do contrato, neste sentido Maria Helena Diniz: Para
dirimir tal questão o Projeto de Lei 6.960/2002 (arts. 472, §§1º a 3º, 473 e 475) pretende modificar o
Código Civil, dispondo que, nos contratos de execução sucessiva, havendo onerosidade excessiva
das prestações, oriunda de acontecimento extraordinário e alheio aos contratantes à época da
celebração contratual, o lesado poderá pedir revisão contratual, se aquela desproporção exceder os
riscos normais do contrato. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das
obrigações contratuais e extracontratuais. 23. ed. São Paulo: Saraiva, p. 30, 2000.
Existe a possibilidade até de alteração de sua nomenclatura como explica
Flávio Tartuce23:
Dentro dessa realidade, o principio da força obrigatória, da obrigatoriedade
das convenções e ou do consensualismo previsto em nosso ordenamento
jurídico. Entretanto, pode-se dizer que esse princípio não é mais a regra
geral, como antes era concebido. A força obrigatória constitui, desse modo,
exceção à regra geral da socialidade, secundário aos princípios sociais
contratuais, à função social dos contratos e à boa-fé objetiva. Certo é,
portanto, que o princípio da força obrigatória não tem mais encontrado a
predominância e prevalência que exercia no passado.
A par de tudo isso, entretanto, não se pode concordar com eventual
posicionamento que possa surgir, no sentido de que o princípio da força
obrigatória do contrato foi definitivamente extinto pela codificação
emergente. Ora, isso afasta o mínimo de segurança e certeza que se
espera do ordenamento jurídico, ícones tão importantes como a própria
justiça, objetivo maior buscando pelo Direito e pela ciência que o estuda. A
partir desses argumentos, é até melhor dizer que o princípio a força
obrigatória recebeu uma nova nomenclatura, tendo sido rebatizado como
princípio da conservação contratual. Esse ultimo regramento preocupa-se
com a manutenção da autonomia privada manifestada nos pactos,
justamente porque eles têm uma grande importância social.
Com base nesses argumentos é que este princípio já está sucumbindo pelo
fim social que todo contrato deve ter.
2.4. RELATIVIDADE DOS EFEITOS CONTRATUAIS
Em regra, os efeitos do contrato apenas podem alcançar as pessoas que
assinarem o contrato, ou seja, o negócio jurídico é feito para alcançar apenas os
contratantes sendo que nada aproveitaria ou prejudicaria outros não inclusos na
relação contratual. Sobre o assunto, os comentários de Thaissa Garcia24:
23
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do código de defesa do consumidor ao código civil
de 2002. São Paulo: Método, p. 187-188, 2007.
24
GOMES, Thaissa Garcia. Princípios contratuais. Revista dos Tribunais: São Paulo, v.838, Editora
Revista dos Tribunais, p. 731, 2005.
O princípio em questão determina que os efeitos dos contratos devem
abranger somente a esfera jurídica das partes contratantes, todavia se
constatou que a premissa “contrato somente gera efeito entre as partes”
não é perfeita, pois, a própria legislação civil prevê que terceiro possa ser
beneficiado em contrato no qual não é parte – estipulação em favor de
terceiro. Na modalidade contratual citada, é necessária a aceitação do
beneficiário, mas tal ação não o inclui como parte no contrato. Esse é um
típico contrato que produz efeito perante terceiro, ou seja, aquele que não é
parte, logo, não pode utilizar os remédios contratuais, apenas executar o
contrato. A questão torna-se efetivamente polêmica quando existe um
terceiro prejudicado. Quando há beneficiamento de terceiro, que aceita a
eficácia do contrato em sua esfera jurídica, não há qualquer confronto de
interesses, mas, quando um contrato afeta negativamente a esfera de
terceiro, aparecem os interesses divergentes.
Porém, há de se lembrar algumas exceções a regra como o artigo 436 do
Código Civil que admite a estipulação em favor de terceiro. Sobre o assunto
podemos destacar as ilustres palavras do advogado Daniel Ustárroz25 que comenta:
Na sociedade atual, ninguém duvida da utilidade do contrato de seguro, o
qual, em vezes não raras é elaborado justamente para garantir que terceiros
usufruam do beneficio em caso de sinistro. Vide a mãe de família que,
precavida, pactua um valor a ser pago para seus filhos em caso de
falecimento ou comprometimento de sua renda.
Também existe a promessa de fato de terceiro na qual aquele que prometer
fato de terceiro e este não cumprir, responde quem prometeu por perdas e danos e
o contrato com pessoa a declarar.
Pelo que foi estudado não há como negar que realmente o contrato não é
um elemento que envolve somente os contratantes e que poderá sim dispor sobre
terceiros alheios à relação contratual, desde que respeite os devidos limites.
25
Ustárroz, Daniel. A Responsabilidade contratual no novo código civil. AIDE editora, 1ª Ed., 2003, p.
63.
2.5. BOA-FÉ OBJETIVA
No direito romano os contratos se caracterizavam por serem contratos de
direito estrito e de boa-fé, os primeiros eram formais, já nos segundos admitia-se
que o juiz pesquisasse livremente a intenção das partes26. De fato, em matéria de
relação contratual, deve ser observada não só a intenção das partes, mas também a
conduta do contratante, a parte deve agir dentro da ética e da razão, já que não se
pode aceitar que um dos contratantes tenha firmado o pacto visando o
enriquecimento ilícito à custa do prejuízo de outrem, certo que a conduta deve ser
de lealdade, de confiança recíproca e de colaboração entre as partes. Assim,
comenta Olney Queiroz Assis27:
Boa-fé significa, portanto, ação refletida que visa não apenas o próprio bem,
mas o bem do parceiro contratual. A ação deve ser conduzida pela virtude;
significa respeitar as expectativas razoáveis do parceiro, agir com lealdade,
não causar lesão ou desvantagem e cooperar para atingir o bem das
obrigações. É nesse sentido que o princípio da boa-fé se revela como fonte
de novos deveres ou obrigações especiais, os denominados deveres de
conduta, tais como: os deveres de esclarecimentos (incide sobre a
obrigação de prestar todas as informações que se façam necessárias),
deveres de lealdade (incide sobre a obrigação de evitar danos), deveres de
26
Humberto Theodoro Júnior comenta esse principio no direito romano: “Historicamente, o direito
contratual romano se caracterizava pela dicotomia entre contratos de direito estrito e contratos de
“boa fé”. Os primeiros eram os “formais” (do direito civil, ou quiritário), e os de “boa fé” os que não
dependiam e forma ou solenidade para produzir sua eficácia. Para os de “direito estrito”, só se
admitia a interpretação rigorosa, segundo as solenidades traçadas pelas formulas da lei. Já para os
não solenes, admitia-se que o juiz pesquisasse livremente a intenção das partes, sem se preocupar
com as palavras utilizadas pelos contratantes. A interpretação deixava de ser “literal ou formalista”.”
(JÚNIOR, Humberto Theodoro. O contrato e seus princípios. 3. ed. AIDE Editora, p. 33, 2001.).
27
ASSIS, Olney Queiroz. Princípio da autonomia da vontade x princípio da boa-fé (objetiva): uma
investigação filosófica com repercussão na teoria dos contratos. Revista Magister de Direito Civil e
Processual Civil: Porto Alegre, Magister, v.5, p. 56, 2005.
transparência (incide sobre a obrigação de, na publicidade e marketing,
prestar boa, clara e correta informação), além de outros.
Sobre a divisão entre boa-fé subjetiva e a boa- fé objetiva, a análise de
Edilson Pereira Nobre Júnior28:
O ponto de partida para a compreensão da boa-fé reside nos dois sentidos
que lhe são habituais. Um deles visa regular a ação daquele que atua
movido por uma crença, errônea e escusável, acerca de determinada
situação jurídica. Denomina-se boa-fé subjetiva, ou também boa-fé crença.
Tem incidência mas freqüentemente no campo dos direitos reais,
disciplinando as conseqüências relacionadas quanto à posse ad interdicta, à
posse no alheio, aplicando-se igualmente no que concerne ao matrimônio
putativo, ao credor e ao herdeiro aparente, entre outras situações. Noutro
pórtico, a boa-fé é encarada objetivamente, consistente na conduta leal e
honesta, esperada de um homem normal em determinadas circunstancias.
É conhecida também como boa-fé conduta.
Para melhor entendimento sobre esse princípio, podemos citar três
exemplos, de condutas que ferem o princípio da boa-fé: A primeira é a supressão
por renúncia tácita de um direito, pelo não exercício dele. A segunda diz que
ninguém pode fazer contra o outro o que não faria contra si mesmo. A terceira veda
determinada pessoa de um direito próprio, que contrariando um comportamento
anterior, fere a confiança e o dever de lealdade, depositados quando da formação do
contrato. Sobre o assunto, Flávio Tartuce29:
Assim, caso tenha sido previsto no instrumento obrigacional o beneficio da
obrigação portável (cujo pagamento deve ser efetuado no domicílio do
credor) e tendo este o costume de ir receber no domicílio do devedor, a
obrigação passará a ser considerada quesível, aquela cujo pagamento deve
ocorrer no domicílio do sujeito passivo da relação obrigacional. Em outras
palavras, ocorrerá a perda do direito por parte do credor pelo seu não
exercício no tempo.
28
JÚNIOR, Edilson Pereira Nobre. O princípio da boa-fé e o novo código civil. Revista ESMAFE –
Escola da Magistratura Federal da 5º Região: Recife, nº. 5, p. 166, 2003.
29
TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do código de defesa do consumidor ao código civil
de 2002. São Paulo: Método, p. 204, 205 e 207, 2007.
Assim, está vedado que alguém faça contra o outro o que não faria contra si
mesmo. Para Antonio Junqueira de Azevedo uma aplicação do tu quoque a
ser invocada refere-se à exceção de contrato não cumprido, prevista no art.
476 do atual Código Civil, pelo qual uma parte de um contrato bilateral ou
sinalagmático não pode exigir que a outra cumpra com a sua obrigação, se
não cumprir com a própria.
A mais conhecida decisão envolvendo a venire, proferida pelo supremo
Tribunal de Justiça, envolvendo um caso de contrato de compromisso de
compra e venda. O marido celebrou o referido negócio sem a outorga
uxória, sem a anuência de sua esposa, o que, na vigência do Código Civil
de 1916, era motivo de sua nulidade absoluta do contrato. A sua esposa,
entretanto, informou em uma ação que concordou tacitamente com a venda.
Dezessete anos após a sua celebração pretendeu a nulidade, o que foi
afastada justamente pela presença de comportamentos contraditórios entre
si.
Assim, observa-se, a mitigação do que as partes fizeram constar no
contrato, devendo se analisado, com auxílio dessa ferramenta, o princípio da boa-fé,
o espírito da convenção, e não necessariamente o que escreveram no contrato e a
conduta das partes contratantes.
2.6. DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
Esse princípio procura analisar o contrato a partir do meio social que o
circunda. Está previsto expressamente no artigo 421 do Código Civil, na qual a
liberdade de contratar terá como limite esse princípio que o cerca. Nesse sentido,
comenta Thaissa Garcia Gomes30:
A função social do contrato apresenta-se de duas formas: inter e ultra
partes. Na primeira, observa-se a relação entre as partes, analisando se há
equilíbrio contratual e se as intenções das partes são livres de vício e na
outra, existe a preocupação quanto aos efeitos gerados perante terceiros,
visa proteger o bem-estar social. O contrato sob a ótica interna deve ser
respeitado, desde que as partes tenham realmente negociado o contrato; a
30
GOMES, Thaissa Garcia. Princípios contratuais. Revista dos Tribunais: São Paulo, v.838, Editora
Revista dos Tribunais, p. 740-741, 2005.
intervenção do Estado ocorre para que as partes tenham a sua autonomia
privada respeitada. A art. 421 do CC/2002 prescreve que a liberdade de
contratar deve ser exercida em razão e nos limites da função social do
contrato.
Tal dispositivo tem por fim propiciar liberdade a ambas as partes,
observando-se o princípio da igualdade. A função social do contrato é um
retrato da sociedade solidária vigente na qual o centro é o direito de todos a
vida digna. Isso posto, os contratos devem ser criados e executados,
respeitando-se o interesse negativo coletivo de não ser prejudicado. Os
contratos são instrumentos para realização das relações econômicas, mas a
função social do contrato veio para reafirmar a coexistência de princípios
fundamentais como o da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.
O princípio da função social do contrato esta intercalado com os princípios
da autonomia da vontade, força obrigatória dos contratos, relatividade dos contratos
e o princípio da boa-fé. Nesse sentido, os estudos da I Jornada de Direito Civil, do
Conselho da Justiça Federal, com a promulgação dos enunciados nº. (s) 21, 22 e
2331:
Enunciado nº. 21: “A função social do contrato, prevista no art. 421, do novo
Código Civil, constitui cláusula geral a impor a revisão do princípio da
relativização dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a
tutela externa do crédito.
Enunciado de nº. 22: A função social do contrato, prevista no artigo
421, do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de
conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.
Enunciado nº. 23: A função social do contrato, prevista no artigo 421 do
novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas
atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses
metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa
humana.
Não resta dúvida da importância desse princípio como cláusula geral dos
contratos, de fato, é no caso concreto que o intérprete buscará a ajuda dessa
ferramenta, utilizando o princípio da função social dos contratos, de forma a analisar
31
BRASIL. Portal da Justiça Federal. Enunciados Aprovados – I Jornada de Direito Civil. Disponível
em <http://www.justicafederal,jus.br.>. Acesso em: 15 de setembro de 2010.
o contrato com o meio social que o cerca, inclusive sobrepondo a autonomia das
partes, ao princípio do pacta sunt servanda e reconhecendo seus efeitos para fora
da relação contratual.
CAPÍTULO 03
3. DA VEDAÇÃO LEGAL DO ANATOCISMO PELO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
3.1 O Anatocismo nos contratos de Mútuo Bancário
Normalmente, os contratos de mútuo elaborados pelas instituições são
elaborados da seguinte forma: A parte contratante solicita um determinado valor a
ser pago em X prestações, por sua vez a instituição financeira concorda em
emprestar a quantia, porém com a incidência de uma quantia X de juro mensal
aplicada sobre o valor que fora emprestado, resultando assim uma prestação fixa ao
mês a ser paga pelo cliente.
Ocorre que se multiplicássemos a taxa mensal de juros prevista no contrato
pelos 12 (doze) meses do ano resulta sempre em uma taxa anual diversa daquela
pactuada no contrato.
Sendo assim, por meio de simples operação aritmética entre a diferença da
taxa anual de juros disposta no contrato e a soma das taxas mensais, evidencia-se a
existência de capitalização mensal de juros na modalidade composta, ou seja, a
prática do anatocismo, o qual não é admitido em nosso ordenamento jurídico,
consoante se verifica do art. 4° do Decreto n° 22.626/33 e da Súmula 121 do
Colendo Supremo Tribunal Federal, nos termos seguintes:
“Art. 4°: É proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a
acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano
a ano".
“Súmula 121. É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente
convencionada”.
Para entendermos melhor esse tipo de operação financeira, o economista
Leandro Hurtado Dias32 CORECON/DF nº 6176, elaborou laudo detalhado sobre um
contrato pactuado entre instituição financeira e uma mutuaria, demonstrando como
se dá o anatocismo em um contrato de mútuo bancário, como podemos ver abaixo
seu relatório:
1.
Dados do Financiamento
De acordo com o contrato da referência se tem as seguintes informações:
Valor Solicitado / Financiado
R$ 10.780,56
Valor total cobrado pelo banco R$ 17.934,72
Total dos encargos cobrados
R$ 7.154,16
Prestação calculada pelo Banco
Taxa de juro mensal
2,3051%
Taxa de juro anual
31,45%
Prazo do financiamento em meses
IOF cobrado na operação
R$ 373,64
48
R$ 150,56
TAC – Tarifa de Atualização Cadastral R$ 450,00
32
Leandro Hurtado Dias é economista formado pela UNB/DF e especialista em analise de contratos
para verificar possíveis irregularidades em seu conteúdo.
2.
Taxa de Juros
Consta da operação a taxa de 2,3051% ao mês e taxa efetiva 31,45% ao
ano. Multiplicando-se a taxa mensal (2,3051%) por 12 obtém-se a taxa anual de
27,66% e 31,45%, comprovando-se que houve a capitalização mensal dos juros. A
capitalização pode ser comprovada pela aplicação da seguinte fórmula:
J = (1 + i )n , onde:
J = Taxa de Juro Anual
i = Taxa de Juro Mensal = 2,3051%
n = Prazo em meses = 12
J = (1 + 0,023051)12
; J =31,45% a.a.
Está comprovado, portanto, que o banco cobrou juro composto na operação.
I. Cálculo da taxa de juros pela calculadora HP.
Realizando-se o procedimento a seguir, com a utilização da calculadora HP
12c, para o cálculo da taxa de juros da operação se obtém o seguinte resultado:
f CLX
para limpar toda a memória da calculadora.
10.780,56 CHS PV
373,64 PMT
48 n
para inserir o valor presente financiado.
para inserir o valor da prestação cobrada pelo banco.
para inserir o prazo da operação de financiamento.
i
para encontrar a taxa de juro da operação (resultado 2,3051).
3.
Valor das Prestações
O cálculo da prestação pode ser efetuado na calculadora HP 12c. Vamos
demonstrar abaixo como calcular utilizando a primeira opção.
f-CLX
para limpar toda a memória da calculadora.
10.780,56 CHS PV para inserir o valor presente financiado.
48 n
para inserir o prazo da operação.
2,3051 i
para inserir a taxa de juro
PMT para calcular o valor da prestação. Será mostrado o valor de 373,64.
4.
Planilha de Cálculo das Prestações.
Elaborou-se planilha de cálculo (documento anexo) onde são demonstrados
os valores cobrados pelo banco, com a capitalização composta de juros pela
utilização da TABELA PRICE, e os valores devidos com base em juros simples.
5.
Resumo do Crédito do Cliente
Na tabela abaixo estão demonstrados os valores cobrados pelo banco com
juros compostos e a diferença considerando juro simples, em todo o período do
financiamento.
Nº
Demonstrativo do Cliente
R$
1
Juros Cobrado a maior R$ 1.867,18
com correção
2
Amortização
cobrada
maior pelo banco
a R$ 0,00
3
Comissão
de R$ 0,00
permanência
cumulada
com
e
juros
multa
(corrigida)
4
Sub-Total
R$ 1.867,18
5
Repetição do Indébito
R$ 1.867,18
6
Total
do
Crédito
do R$ 3.734,36
Cliente (4+5)
7
Saldo devedor do contrato
R$ 7.411,64
8
Saldo credor do cliente (6- R$ -3.677,28
7)
9
Saldo credor do cliente R$ 5.544,46
sem
Repetição
do
Indébito (8-5)
O crédito total do cliente é de R$ 3.734,36 que abatido do saldo devedor do
contrato com juros simples no valor de R$ 7.411,64 resta um saldo devedor a
amortizar de R$ 3.677,28 a ser pago nas 33 (Trinta e Três) prestações restantes no
valor de R$ 157,68 conforme demonstrado na planilha anexa.
Caso se desconsidere a Repetição do Indébito, o crédito do cliente passa a
ser de R$ 1.867,18 que abatido do saldo devedor do contrato com juros simples no
valor de R$ 7.411,64 resta um saldo devedor a amortizar de R$ 5.544,46 a ser pago
nas 33 (Trinta e Três) prestações restantes no valor de R$ 237,75 conforme
demonstrado na planilha anexa.
6.
Diferença de Juros Compostos x Juros Simples.
A diferença de juros se deve ao fato do banco ter utilizado a capitalização
mensal composta (exponencial), pela utilização da Tabela PRICE, o que eleva o
encargo financeiro do financiamento.
Abaixo se demonstra o efeito da capitalização mensal dos juros nos
financiamentos bancários, considerando-se as taxas do empréstimo acima no prazo
total do financiamento (48 meses):
a)
Cálculo da taxa de juros simples no período de forma linear.
•
Taxa Mensal
•
Prazo / Meses
•
Taxa de juro no período=48 x 2,3051% = 110,65%
b)
Cálculo da taxa de juros compostos (TABELA PRICE).
•
Taxa Mensal
•
Prazo / Meses
•
J = (1 + i)n
•
J = (1 + 0,023051)48
•
Taxa de Juro no período = 198,59%
2,3051%
48
2,3051%
48
Verifica-se que há uma elevação muito grande dos encargos financeiros em
decorrência da capitalização composta dos juros. No caso em análise a taxa de
juros do período passa de 110,65% (juros simples) para 198,59% (juro composto)
com a capitalização mensal.
7.
Sistema de Amortização PRICE x Juros Simples.
Na tabela abaixo, faz-se comparação entre o encargo financeiro entre
sistema de amortização da Tabela PRICE e amortização com juros simples.
Descrição Tabela PRICE
Capital Financiado
Juro Simples
10.780,56
10.780,56
Total cobrado pelo agente
17.934,72
Juros cobrados
3.580,37
7.154,16
14.360,93
Verifica-se que o sistema PRICE é mais oneroso para o cliente, gerando um
encargo a maior da ordem de R$ 3.573,79. No contrato em analise o banco adotou o
sistema PRICE de amortização.
Diante desta análise é possível entender melhor como as instituições
financeiras aplicam o anatocismo nos contratos de mútuo bancário.
Vale repisar que somente nas hipóteses em que expressamente autorizada
por lei específica, a capitalização de juros se mostra admissível, dentre elas nas
cédulas de crédito rural, comercial e industrial. Nos demais casos, como este objeto
de estudo, é vedada, mesmo quando pactuada, não tendo sido revogado pela Lei
4.595/64 o art. 4º do Decreto 22.626/33.
3.2. Da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor nos
contratos de mútuo bancário
Os contratos bancários se encontram sob a tutela do Código de Defesa do
Consumidor, eis que não há qualquer dúvida acerca da aplicabilidade das
disposições consumeristas a estes tipos de contratos, pois a partir da edição da
Súmula nº. 297, in fine, do Superior Tribunal de Justiça, onde consagra
entendimento jurisprudencial já dominante nesta Corte de Justiça e nos Tribunais
Superiores:
Súmula nº. 297. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às
instituições financeiras.
É importante ressaltar que o Egrégio Supremo Tribunal Federal, julgou a
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.591, referendando a utilização do Código
de Defesa do Consumidor nas relações bancárias, cujos arts. 6º, V e 51, IV,
permitem ao Estado-Juiz proceder ao controle das cláusulas contratuais, bem como
a exclusão das abusividades constatadas.
Sobre o assunto, o ilustre doutrinador Nelson Nery Júnior33 afirmou que:
“Dizer que os bancos estão fora dos sistemas de proteção do consumidor é remar
contra a maré, é andar na contramão da história e da economia mundial”.
Para corroborar o entendimento, mister os ensinamentos da jurista Maria
Helena Diniz34:
33
Nelson Nery Jr. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do
anteprojeto, p. 311, nº 11.
34
Maria Helena Diniz. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, p 210.
Esses contratos ficam, portanto ao arbítrio exclusivo de uma das partes, o
policitante, pois o oblato não pode discutir ou modificar o teor dos contratos
ou as suas cláusulas.
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor a intervenção estatal
está autorizada pelo princípio da função social do contrato, pela hipossuficiência do
consumidor e pela intolerância com as práticas abusivas, que o coloquem em
exagerada desvantagem ou sejam incompatíveis com a boa-fé objetiva. Nesse
sentido, confira-se:
“CIVIL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. AÇÃO DE
CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO CUMULADA COM REVISIONAL.
CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE VEÍCULO. FALTA DE INTERESSE
DE AGIR. PACTA SUNT SERVANDA. LIMITAÇÃO DE JUROS A 12% AO
ANO. CAPITALIZAÇÃO DE JUROS. CORREÇÃO MONETÁRIA.
COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.
CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO.
01. Omissis
02. Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a rígida
observância às cláusulas contratuais (pacta sunt servanda) tem sido
abrandada. A referida Lei deu ao Estado a prerrogativa de intervir nas
relações contratuais quando existirem, como no caso dos autos, cláusulas
abusivas capazes de provocar desequilíbrio entre as partes.
03. Omissis.
...
04. A revisão contratual ora efetivada, serviu para tornar o processo menos
oneroso ao autor/apelado, sem retirar da instituição bancária as
compensações financeiras oriundas do financiamento do veículo. Na
verdade, ao invés da não observância da boa-fé objetiva, houve, outrossim,
a adequação do contrato entabulado entre as partes ao referido princípio.
05. Omissis.
09.Recurso conhecido e parcialmente provido.”(Destacou-se.
2005.03.1.000824-9, Relatora Des. NÍDIA CORRÊA LIMA,
17/08/2006).
APC
DJU:
Com intuito de solidificar o entendimento, segue abaixo o voto do respeitado
Desembargador Milton Fernandes de Souza em seu voto na Apelação Cível
199900120998:
Ap n.º 199900120998; TJRJ; Rel. Des. MILTON FERNANDES DE SOUZA;
j. 13.06.2000; un.Aplicação do CDC aos contratos bancários. "O
consumidor, conforme a definição legal, é a pessoa física ou jurídica que,
independente da qualidade de hipossuficiente, usa o serviço como
destinatário final (Lei n.º 8.078/90, art. 2º). E as atividades bancárias,
financeiras e de crédito, também por expressa disposição legal (art. 3º, § 2º
da Lei 8.078/90), subordina-se à lei de defesa do consumidor. Essa lei não
contraria as disposições que regulam o sistema financeiro nacional e com
elas harmoniza-se, complementando-as sem revogá-las, substituí-las ou
modificá-las. Desta maneira, a norma - art. 3º, § 2º da Lei 8.078/90 - que
submete as atividades bancárias, financeiras e de crédito à lei do
consumidor não contraria qualquer comando constitucional e tem plena
validade e eficácia. E considerando essas circunstâncias, as relações
jurídicas estabelecidas pelas partes também subordinam-se ao comando do
código de defesa do consumidor”.
Diante disto, resta claro a aplicabilidade do Código de Defesa do
Consumidor nos contratos de mútuo bancário, podendo assim ser analisado com
base nas suas diretrizes e princípios, sendo que não mais é aceitável a corrente que
defendia que o pacta sunt servanda tenha que ser seguido à risca.
3.3 DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 5º DA MEDIDA
PROVISORIA Nº 2.170-36 de 2001
A corrente doutrinária que defende que a liberação da pratica do anatocismo
se apóia na Medida Provisória nº 2.170-36, de 23 de agosto de 2001, onde
autorizada a capitalização de juros sem distinção a qualquer contrato bancário com
periodicidade inferior a um ano.
Sobre a questão, o E. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, assim se
manifestou, em voto proferido no Agravo Regimental no Recurso Especial nº
609379/RS, in verbis:
Existem considerações de duas ordens a serem feitas com relação à MP
2.170-36, no que se refere à questão da capitalização.
Referida medida provisória destinou-se a fixar regras sobre a administração
dos recursos do Tesouro Nacional, não sendo razoável, portanto, a
interpretação de que o Artigo 5.º tem aplicação em qualquer operação
financeira. Por outro lado, deve-se ter em conta que a Constituição Federal,
no Art. 192, dispõe que o sistema financeiro nacional será regulado por leis
complementares, e, no § 1.º, do Art. 62, veda a edição de medidas
provisórias sobre matéria reservada a lei complementar (inc. III). Sendo,
portanto, descabida a extensão que a agravante pretende dar ao dispositivo
da referida medida provisória.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Sistema Financeiro
Nacional ficou disciplinado no artigo 192 da Carta Magna e seus parágrafos, que
dispõe em seus caput e parágrafo 3º:
Art. 192 - O Sistema Financeiro Nacional, estruturado de forma a promover
o desenvolvimento e equilíbrio do país e a servir aos interesses da
coletividade, será regulado em Lei Complementar, que disporá, inclusive,
sobre:
Parágrafo 3º. As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e
quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à
concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao
ano; a cobrança acima deste limite será conceituadas como crime de usura,
punido, em
Todas as suas modalidades nos termos em que a lei determinar.
É óbvio que, se a Constituição reservou determinadas matérias para a
regulamentação por Lei Complementar, estas não podem ser reguladas por Medidas
Provisórias. Neste sentido leciona o eminente professor Michel Temer35:
35
TEMER, Michel, Elementos de Direito Constitucional. 14ª, Ed. Malheiros, São Paulo, 1998
"Por isso, tenho salientado que a medida provisória pouco difere do decretolei, previsto na Constituição anterior. E com um agravante: O decreto-lei
somente poderia versar sobre matérias determinadas: segurança nacional,
criação de cargos públicos, inclusive fixação de vencimentos, finanças
públicas e normas tributárias. Para as medidas provisórias não há essa
limitação. Podem versar, portanto, sobre todos os temas que forem objeto
de Lei, à exceção naturalmente, das seguintes matérias: a.) aquelas
entregues à Lei Complementar; b.) as que não podem ser objeto de
delegação legislativa; c.) a legislação em matéria penal; d.) a legislação em
matéria tributária.
No primeiro caso porque não tem sentido autorizar medida provisória
onde o constituinte exigiu quorum especial – maioria absoluta – para
sua aprovação". (grifo nosso)
Do exposto, vê-se que não há como uma Medida Provisória regular o
assunto reservado à Lei Complementar, pois Medida Provisória não é lei, é tão
somente medida com força de lei, e que, pode ou não ter seu texto aprovado pelo
poder legislativo. Se aprovado seu texto pelo Congresso Nacional, entra para o
ordenamento jurídico como lei ordinária, e nunca como lei complementar.
O Legislador reservou determinadas matérias e deu-lhes maior relevância,
devendo estas serem reguladas mediante Lei Complementar. Diz Michel Temer 36
que:
“Sendo essas matérias relevantíssimas (ao modo de ver do constituinte),
estabeleceu fórmula que exige uma aprovação especial, manifestação mais
significativa". E continua ainda: "Não há hierarquia alguma entre a lei
complementar e a lei ordinária. O que há são âmbitos materiais diversos
atribuídos pela Constituição a cada qual destas espécies normativas".
Desta forma, resta manifesta a inconstitucionalidade do artigo 5° da Medida
Provisória n° 2.170-36/2001, por ofensa ao princípio constitucional da reserva legal
36
Temer, Michel. op. cit. p.148
inserido no art. 192 da Constituição Federal, cumpre salientar que continua a vigorar
a determinação normativa do artigo 4°, Decreto 22.626/33, que teve sua aplicação
recepcionada pela nova ordem constitucional, e que, como já ressaltado, proíbe a
capitalização de juros.
Na esteira deste raciocínio, imprescindível destacar que o Conselho Especial
deste Eg. Tribunal de Justiça, na assentada de 04 de julho de 2006, na Argüição de
Inconstitucionalidade n° 2006.00.2.001774-7, por unanimidade, de votos decidiu
DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM DO ART. 5º DA
M.P 2.170-36/01, norma permissiva do anatocismo, por ser incompatível com os
artigos 62, §1º, III e 192, ambos da Constituição Federal, em acórdão que restou
assim sintetizado, confira-se:
“ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 5º DA MEDIDA
PROVISÓRIA Nº 2.170-36. OPERAÇÕES REALIZADAS PELAS
INSTITUIÇÕES
INTEGRANTES
DO
SISTEMA
FINANCEIRO.
CAPITALIZAÇÃO DE JUROS COM PERIODICIDADE INFERIOR A UM
ANO. MATÉRIA PREVISTA EM LEI COMPLEMENTAR. ART. 192, CAPUT,
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL COM A REDAÇÃO DADA PELA EMENDA
CONSTITUCIONAL Nº 40.
A matéria inserida em Medida Provisória que dispõe sobre “a administração
dos recursos de caixa do Tesouro Nacional”, consolidando e atualizando a
legislação pertinente, não pode dispor sobre matéria completamente
diversa, cuja regulamentação prescinde de Lei Complementar. Declarada,
incidenter tantum, a inconstitucionalidade do art. 5º da MP 2170-36.
Antes mesmo da declaração de inconstitucionalidade acima mencionada,
esta Corte já entendia pela inaplicabilidade da Medida Provisória n°. 2.170-36/2001,
consoante se verifica das Apelações Cíveis nº´s 20050110356893, Relator MARIOZAM BELMIRO, 3ª Turma Cível, julgado em 10/04/2006, DJ 23/05/2006 e
20030111163010APC, Relator GETÚLIO MORAES OLIVEIRA, 4ª Turma Cível,
julgado em 20/03/2006, DJ 11/04/2006 p. 166.
Ademais, o art. 5º e o parágrafo único, ambos da MP 2.170-36/01, que
tratam da capitalização de juros por período inferior ao anual, são objetos da ADIN
2.316/DF, cujo pedido de suspensão cautelar já foi deferido pelos votos dos I.
Relator Min. Sydney Sanches e pelo Min. Carlos Veloso, sob o fundamento de que
inexiste o requisito urgência para a edição de Medida Provisória e de ocorrência de
perigo de demora inverso.
3.4. ADI Nº 2316/2000 E SEU JULGAMENTO NO STF
A Ação direta de inconstitucionalidade 2316, impetrada pelo então Partido
Liberal, hoje Partido da República, alega inconstitucionalidade deste dispositivo
(Medida Provisória 2170/01) por ofensa ao ordenamento jurídico, bem como por
inconstitucionalidade formal, uma vez que a matéria deveria ser regulada por lei
complementar, nos termos dos artigos 62, §1°, III e 192 da CF.
Assim, o PR alega que a Capitalização de Juros, além de gerar
encarecimento do crédito e onerosidade excessiva, gerando imensa injustiça,
exemplificando37:
[...] utilizando-se uma máquina financeira ou resolvendo-se
complexas fórmulas matemáticas tem -se que a mesma taxa de
Juros de 10 % ao mês, quando capitalizada mensalmente,
corresponde a 213, 84% ao ano", além do que "cobrar juros de
juros representa cobrar juros de um montante que a instituição
financeira não emprestou […]
A Min. Cármen Lúcia, em voto-vista, abriu divergência e indeferiu a cautelar.
Considerou o fato de essa medida provisória ter sido expedida junto com outras
medidas adotadas pelo Ministério da Fazenda, na época, exatamente na tentativa de
recompor o sistema no que concernia especificamente à captação de Juros. Levou
37
BRASIL, Superior Tribunal Federal. Op. Cit.
em conta, ainda, o alongado prazo, desde a expedição dessa medida até hoje, com
sua aplicação. Citando trechos da exposição de motivos apresentada pelo então
Ministro da Fazenda, destacou a afirmação de ser pública a intenção do governo
federal de buscar diminuição do spread e sua convergência com os padrões
mundiais, de forma a incentivar o decréscimo do valor total da taxa de Juros
suportado pelas pessoas físicas e jurídicas, a fim de criar um panorama mais
propício ao desenvolvimento econômico do Brasil.
Acrescentou que, de acordo com essa exposição de motivos, a
Capitalização de Juros, sob o ponto de vista econômico, seria benéfica ao devedor
que, não podendo pagar ao credor na data originalmente pactuada, poderia
renegociar sua dívida junto à mesma instituição financeira, o que não se daria se
vedada a capitalização, pois o montante de Juros devidos teria de ser
imediatamente liquidado, forçando o devedor a captar recursos perante diversa
instituição para adimplir com a primeira, situação que permitiria a ocorrência do
chamado "Anatocismo indireto". E, ainda, que o parágrafo único do art. 5º da MP
tornaria obrigatória a transparência do negócio em favor do devedor, garantindo a
lisura das operações e minimizando as dificuldades dos cidadãos na compreensão
dos cálculos aplicáveis aos Contratos.
Por sua vez, o Min. Marco Aurélio acompanhou o voto do relator para deferir
a cautelar. Esclareceu, inicialmente, que a medida provisória sob análise teria sido
apanhada com várias outras pela nova regência da matéria decorrente da EC
32/2001, a qual prevê, em seu art. 2º, que as medidas provisórias editadas em data
anterior a da sua publicação continuam em vigor até que medida provisória ulterior
as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.
Asseverou ser necessário interpretar teleologicamente esse dispositivo, presente a
regência pretérita? Em que as medidas provisórias estavam sujeitas à vigência de
30 dias? E a atual? Em que as medidas provisórias vigem por 60 dias, podendo ser
prorrogadas por igual período.
Diante disso, entendeu além da problemática alusiva à falta de urgência,
ante o tema tratado, não ser possível haver uma interpretação que agasalhe a
vigência indeterminada de uma medida provisória, e conceber que um ato precário e
efêmero? Que antes era editado para vigorar por apenas 30 dias, e, agora, por 60
dias, com prorrogação de prazo igual? Persista no cenário normativo, sem a
suspensão pelo Supremo, passados 8 anos.
Por fim, após o voto do Min. Menezes Direito, que acompanhou o voto da
Min. Cármen Lúcia, e do voto do Min. Carlos Britto, que acompanhou o voto do Min.
Marco Aurélio, o julgamento foi suspenso para retomada com quorum completo, e
até apresente data não há previsão para retomada do julgamento.
Infelizmente, com a demora do judiciário em julgar esta ADI não é possível
vislumbrar qual será o desfecho deste tema, porém há de ressaltar que ambos os
lados clamam por uma decisão final.
Com base neste estudo, espera-se que o Supremo Tribunal Federal julgue
inconstitucional a MP 2170-36/01, pois o contrato tem que respeitar todos os
princípios citados acima, e com a prática do anatocismo isto não vem sendo
observado.
3.5. POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL
A seguir, veremos alguns julgados importantes ao assunto:
“RECURSO ESPECIAL CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE CRÉDITO
EDUCATIVO. ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA. UTILIZAÇÃO DA TABELA
PRICE. IMPOSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE JUROS CAPITALIZADOS.
ANATOCISMO. CARACTERIZAÇÃO DE CONTRATO BANCÁRIO.
APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: ARTIGOS 3º,
§ 2º, 6º, V, e 51, IV, § 1º, III. INCIDÊNCIA DE JUROS LEGAIS, NÃO
CAPITALIZADOS.
1. O contrato de financiamento de crédito educativo, ajustado entre a Caixa
Econômica Federal e o estudante, é de natureza bancária, pelo que recebe
a tutela do art. 3º, § 2º, da Lei 8.078, de 1990 (Código de Defesa do
Consumidor).
2. É indevida a utilização da tabela price na atualização monetária dos
contratos de financiamento de crédito educativo, uma vez que, nesse
sistema, os juros crescem em progressão geométrica, sobrepondo-se juros
sobre juros, caracterizando-se o anatocismo.
3. A aplicação da tabela price, nos contratos em referência, encontra
vedação na regra disposta nos artigos 6º, V, e 51, IV, § 1º, III, do Código de
Defesa do Consumidor, em razão da excessiva onerosidade imposta ao
consumidor, no caso, o estudante.
4. Na atualização do contrato de crédito educativo, deve-se aplicar os juros
legais, ajustados de forma não capitalizada ou composta.
5. Recurso especial conhecido e provido.” (Destacou-se. REsp 572210/RS,
Relator Min. José Delgado, DJU 07/06/04)
Vejamos a orientação deste E. TJDFT, como se observa dos seguintes
precedentes, in verbis:
“CONTRATO DE FINANCIAMENTO DE IMÓVEL. SISTEMA FINANCEIRO
DA HABITAÇÃO. ATUALIZAÇÃO DO SALDO DEVEDOR APÓS A
AMORTIZAÇÃO. ADOÇÃO DA TABELA PRICE. IMPOSSIBILIDADE.
(...).
O sistema "price" de amortização mascara, na verdade, a capitalização de
juros, vedada pelo direito pátrio, já que os juros, na aludida tabela, são
compostos, configurando, assim, o anatocismo.( Destacou-se. 2ª T. Cível,
APC 20030111140122, ac. 226.969, Rel. Desa. Carmelita Brasil, DJU
18/10/2005, p. 131)
“EMBARGOS
INFRINGENTES.
CAPITALIZAÇÃO. TABELA PRICE.
REVISÃO
CONTRATUAL.
I - A UTILIZAÇÃO DA TABELA PRICE ACARRETA CAPITALIZAÇÃO DE
JUROS, VEDADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO.
II - EMBARGOS INFRINGENTES CONHECIDOS E IMPROVIDOS.
UNÂNIME”.( Destacou-se. EMBARGOS INFRINGENTES CÍVEIS NA
APELAÇÃO CÍVEL 20040110618628EIC, Relatora Des. VERA ANDRIGHI,
11/07/2006)
Na mesma esteira, tem-se inúmeros outros precedentes, tais como as
Apelações n´s. 20030110181228, AC.218.403, Rel. Des. Vasquez Cruxên,
DJU
28/06/2005 p. 118, 20000110864668, Ac. 217.507, Rel. Desa. Vera Andrighi, DJU
21/06/2005 p. 112 e
20040110184644APC, Relator Des. FERNANDO HABIBE,
DJU: 01/06/2006.
Neste sentido, já se pronunciou o C. STJ e o Eg. TJDFT, in verbis:
- Em ação revisional de contrato bancário, é cabível o pedido de
antecipação de tutela para permitir o depósito, em juízo, do valor das
prestações. Recurso especial provido. (STJ, 2ª Seção, RESP 569008/RS,
Rel. Min. Nancy Andrigui, DJ 16.11.2004)”
“AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. AGRAVO RETIDO. PROVIMENTO.
SENTENÇA INFRA PETITA. NULIDADE.
1. Agravo retido provido para autorizar o depósito judicial da parte
incontroversa da dívida e coibir a execução extrajudicial do débito oriundo
do contrato em tela, até o final julgamento da ação revisional.
2. A sentença é infra petita, pois não se pronunciou sobre todos os pedidos,
acarretando nulidade absoluta.
3. Agravo retido provido.
4. Apelo dos autores provido. Sentença cassada”.( Destacou-se.
2003.01.1.093070-. Des. Re. SÉRGIO ROCRA. DJ 17/08/2006)
“AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE
CRÉDITO - DECISÃO QUE INDEFERE PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE
TUTELA - CADASTROS DE RESTRIÇÃO AO CRÉDITO - PRETENSÃO DE
DEPÓSITO EM JUÍZO DO VALOR CORRESPONDENTE À PARTE
INCONTROVERSA DO DÉBITO - POSSIBILIDADE.
01. Ajuizada a ação de revisão de contrato, onde há discussão sobre
cláusulas e débitos, viável se mostra a concessão de tutela antecipada para
evitar ou retirar a inscrição do nome do devedor dos sistemas de proteção
ao crédito.
02. No que se refere às prestações, há que se possibilitar o depósito de
parcelas incontroversas, sendo que, ao final, caso se decida pela
improcedência do pedido, parte do débito já estará à disposição do juízo.
03. Recurso provido. Unânime.” (Destacou-se. AG 2005 00 2 003816-2.
Des. Rel. ROMEU GONZAGA NEIVA. DJ 06/10/2005
É o entendimento de nossos tribunais:
“Não é pelo simples fato de haver a aderência de uma das partes ao
contrato de adesão que se admite como plenamente verdadeira a existência
do ajuste de vontades sobre todas as cláusulas contratuais. A regra geral
contida na máxima “pacta sunt servanda”, que norteia as avenças perde sua
força diante do contrato de adesão, notadamente quando a cláusula é
altamente lesiva a parte aderente.” (TJGO, 3ª Cam. Cível, Rel, Des. Gercino
Carlos Alves da Costa, apel. Cível em 63148-9/188, ac. Unân, em
14/05/2002)
“I – O princípio “pacta sunt servanda” não é absoluto nos chamados
contratos de adesão, nos quais inexiste liberdade de contratar. Sob esse
prisma, admite-se a liberdade de revisão das cláusulas contratuais, como
exceção consubstanciada na teoria da imprevisão. 2 – O art. 192, § 3º da
Constituição Federal é auto-aplicável. Qualquer complemento legislativo, se
editado, deverá moldar-se à vedação constitucional (TJGO, 1ª Câm. Cível,
Rel. Des. Leobino Valente Chaves, ac. unân. em 16/10/2001, apel. Cível n.º
59544-0/188)
No mesmo diapasão, o Supremo Tribunal Federal, em
julgamento recente da ADI 2591, publicado no Diário Oficial, dia 29 de setembro de
2006, afirma:
EMENTA: CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 5o, XXXII, DA
CB/88. ART. 170, V, DA CB/88. INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. SUJEIÇÃO
DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, EXCLUÍDAS DE
SUA ABRANGÊNCIA A DEFINIÇÃO DO CUSTO DAS OPERAÇÕES
ATIVAS E A REMUNERAÇÃO DAS OPERAÇÕES PASSIVAS
PRATICADAS NA EXPLORAÇÃO DA INTERMEDIAÇÃO DE DINHEIRO NA
ECONOMIA [ART. 3º, § 2º, DO CDC]. MOEDA E TAXA DE JUROS.
DEVER-PODER DO BANCO CENTRAL DO BRASIL. SUJEIÇÃO AO
CÓDIGO CIVIL.
1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência
das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor.
2. “Consumidor”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é
toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade
bancária, financeira e de crédito.
3. O preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do
Consumidor deve ser interpretado em coerência com a Constituição, o que
importa em que o custo das operações ativas e a remuneração das
operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração da
intermediação de dinheiro na economia estejam excluídas da sua
abrangência.
4. Ao Conselho Monetário Nacional incumbe a fixação, desde a perspectiva
macroeconômica, da taxa base de juros praticável no mercado financeiro.
5. O Banco Central do Brasil está vinculado pelo dever-poder de fiscalizar
as instituições financeiras, em especial na estipulação contratual das taxas
de juros por elas praticadas no desempenho da intermediação de dinheiro
na economia.
6. Ação direta julgada improcedente, afastando-se a exegese que submete
às normas do Código de Defesa do Consumidor [Lei n. 8.078/90] a definição
do custo das operações ativas e da remuneração das operações passivas
praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de
dinheiro na economia, sem prejuízo do controle, pelo Banco Central do
Brasil, e do controle e revisão, pelo Poder Judiciário, nos termos do disposto
no Código Civil, em Supremo Tribunal Federal cada caso, de eventual
abusividade, onerosidade excessiva ou outras distorções na composição
contratual da taxa de juros.
7. O preceito veiculado pelo art. 192 da Constituição do Brasil
consubstancia norma-objetivo que estabelece os fins a serem perseguidos
pelo sistema financeiro nacional, a promoção do desenvolvimento
equilibrado do País e a realização dos interesses da coletividade.
8. A exigência de lei complementar veiculada pelo art. 192 da Constituição
abrange exclusivamente a regulamentação da estrutura do sistema
financeiro.
9. O Conselho Monetário Nacional é titular de capacidade normativa - a
chamada capacidade normativa de conjuntura - no exercício da qual lhe
incumbe regular, além da constituição e fiscalização, o funcionamento das
instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano
do sistema financeiro.
10. Tudo o quanto exceda esse desempenho não pode ser objeto de
regulação por ato normativo produzido pelo Conselho Monetário Nacional.
11. A produção de atos normativos pelo Conselho Monetário Nacional,
quando não respeitem ao funcionamento das instituições financeiras, é
abusiva, consubstanciando afronta à legalidade. (Publicado no Diário da
Justiça de 29/09/2006 - ADI 2.591 / DF Ministro redator do acórdão - EROS
GRAU)
CONCLUSÃO
Em frente ao que foi pesquisado e exposto acima, conclui-se que se buscou
abordar da melhor forma possível o tema sobre o anatocismo nos contratos de
mútuo bancário.
Foram
explanados
aspectos
jurídicos
importantes
ao
anatocismo,
especialmente aqueles relativos à incidência nos contratos de mútuo bancário.
No primeiro capítulo, foi apresentado os aspectos históricos do anatocismo
analisando sua evolução no contexto brasileiro em todos os seus principais passos,
até se tornar esta celeuma que se encontra em nossos tribunais. Também buscou
apresentar o conceito e a natureza jurídica do contrato de mútuo bancário, para
posteriormente explicar o que é a tabela price e sua relação com a expressão
capitalização de juros e a forma como é usada.
No segundo capítulo tratou-se dos princípios, inicialmente demonstrando a
interação entre vários ramos do direito para interpretar o mesmo contrato e a
aplicação dos princípios válidos para aquele tipo de contrato, para falar em seguida
sobre os princípios aplicáveis ao contrato de mútuo bancário e suas importâncias.
No terceiro capítulo, tratou-se de como é aplicado o anatocismo nesses
contratos, sua legislação atual, a aplicabilidade do CDC e as vedações impostas a
esta prática, bem como diversas jurisprudências acerca do tema.
A questão central da presente monografia foi discutida no item 3.2 do 3º
capítulo. O anatocismo no Brasil e seu desenvolvimento legal e jurisprudencial, algo
que vem causando uma grande discussão entre os juristas e doutrinadores, com a
indefinição diante da espera do julgamento da ADI n. 2316/2000, por parte do
Supremo Tribunal Federal, que decidirá pela legalidade ou não da Medida Provisória
nº 2170 de 2000 .
Em relação ao conteúdo desenvolvido neste estudo monográfico, e tendo
em vista o que foi abordado no desenvolvimento da pesquisa, espera-se de alguma
forma, ter contribuindo para o desenvolvimento jurídico, uma vez esse tema sempre
foi presente no âmbito jurídico pátrio, no entanto, começaram infinitas discussões e
grandes avanços em relação a legislação, a doutrina e a jurisprudência.
De outro vértice, pôde-se verificar que o Código de Defesa do Consumidor é
totalmente aplicável às instituições financeiras, possibilitando assim a revisão das
cláusulas contratuais que possam ser consideradas abusivas, declarando a sua
nulidade e restaurando a equidade ao contrato.
Constata-se, ainda, que a liberação da capitalização dos Juros, defendida
pelas instituições financeiras, não encontra amparo em nossa Constituição, que
estabelece que a competência legislativa para regular a questão dos Juros é
conferida ao Congresso Nacional e não ao Conselho Monetário Nacional.
Evidente que a presente monografia não esgota o estudo sobre a
aplicabilidade do Anatocismo nos contratos de mútuo bancário em face da legislação
pertinente ao assunto, pois são inúmeras as inclinações e modificações, até que
seja julgada definitivamente a ação declaratória de inconstitucionalidade proposta
pelo PL (Partido Liberal), hoje atual PR (Partido da República) em face da legalidade
da medida provisória 2170 de 2000.
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Download

Raul Henrique Rodrigues Ferreira