“PARA ONDE” A EDUCAÇÃO? UMA PERGUNTA A PARTIR DA PERSPECTIVA HEIDEGGERIANA DE HOMEM E HUMANISMO MOITEIRO, Carlos Renato – PUCPR [email protected] RESUMO O presente artigo quer apresentar a questão da educação vista a partir de um humanismo possível, presente na fenomenologia heideggeriana, mais especificamente em sua carta Sobre o humanismo. Nesse texto, escrito em 1946, Heidegger retoma algumas de suas idéias basais, presentes em Ser e Tempo, acerca do homem enquanto Dasein, ser-aí, que é um ser-no-mundo, que está lançado na temporalidade e constitui ali sua ec-sistência. Como lugar da concretização do homem, Heidegger apresenta a clareira (Lichtung), espaço aberto onde o homem encontra o ser e realiza-o. Entretanto, em Sobre o humanismo, há uma recolocação do homem enquanto não apenas uma concretização do ser (em outras palavras, da possibilidade de existir), mas como pastor do ser, aquele que cuida da existência, a partir de uma relação de escuta e “avizinhamento”. A clareira seria, nessa perspectiva, o espaço em que o homem concretiza sua humanitas a partir dessa escuta, dessa atenta percepção sobre o existir. Para Sloterdijk, contudo, a clareira não tem todo esse teor “místico” e otimista que possui para Heidegger. Ela é, antes de tudo, campo de batalha, onde os homens submetem-se uns aos outros, e onde só os mais fortes ou os submissos sobreviveriam. A educação estaria, segundo Sloterdijk, justamente nessa relação de dominação entre os homens, visto que, se clareira é indeterminação, não há o que oriente a educação senão os interesses pessoais (ou coletivos) de um grupo determinado que, por sua “condição de superioridade” buscam a dominação sobre os “inferiores”; em última análise, a educação nada mais seria do que instrumento para tal dominação. Seria possível, todavia, tal inferência a partir da analítica heideggeriana sobre o homem e o humanismo? Pois, se a clareira é abertura, qualquer “para onde” que o humano possa determinar é um “para onde” possível, até mesmo a repetição de eventos como Auschwitz. Tal é, realmente, a conseqüência cabal da concepção de Heidegger? Ou, em outra perspectiva, pode haver ainda um “para onde” que a educação deva conduzir? Essa é a pergunta que nosso texto visa responder. Palavras-chave: Heidegger, educação, concepção de homem. 3136 1. INTRODUÇÃO. Em seu texto Educação após Auschwitz, Theodor Adorno apresenta a sua crítica educacional e a referencia com os trágicos acontecimentos durante a Segunda Guerra Mundial. Para Adorno, na frase inicial do referido texto, “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação” (2000, p. 119). Segundo a análise do autor, seria impossível pensar contemporaneamente uma educação que não se preocupasse e não tivesse em memória tais fatos, para a partir deles repensar a valoração que se pode atribuir à cultura e à educação na afirmação sócio-estrutural de um povo. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora (ADORNO, id.). A educação, dentro de tal análise, estaria solidamente apoiada numa concepção de humano como não-beligerante, não-atroz, não-irracional a partir da perspectiva iluminista de racionalidade. É a proposta de um novo humanismo educacional, ou educação para o humanus, embasado numa análise teórico-crítica bem próxima aos marxismos renascentes à época. Em um período pouco posterior ao qual esse texto foi escrito, no outono de 1946, Martin Heidegger redige uma carta respondendo à sutil pergunta formulada por monsieur Jean Beaufret. Tal interlocutor francês tivera a intenção de, tendo tomado contato com o fenomenólogo durante a Ocupação, questioná-lo acerca de um novo sentido possível à palavra humanismo. Imbuído da mesma preocupação que Adorno (sobretudo devido à difícil situação em que se encontrava junto à opinião pública por seu suposto posicionamento frente ao regime nazi-fascista), Heidegger, contudo, não apresenta à resposta sobre o humanismo uma afirmação tão facilitada e ao mesmo tempo tão determinativa. Para o fenomenólogo, antes de se falar sobre o humano é preciso compreender a própria essência (Wesen) do homo humanus, tarefa à qual a tradição ocidental se esquivou com sua ontologia transcendental, a partir de Platão. De acordo com Heidegger, só é possível falar do humanus a partir de sua abertura para o mundo, a clareira (Lichtung), ponto de encontro entre o homem e a possibilidade de ser. O homem está 3137 lançado à faticidade do mundo – sua indeterminância é a sua marca maior; nessa perspectiva, o viver será a própria construção do viver, já que não há paradigmas préestabelecidos que direcionem o homem a algum objetivo metafísico de sua existência. Todavia, tal análise abre uma porta de indagação sobre a própria finalidade da educação, que poderíamos dizer “metateleológica”: se o homem é essencialmente abertura, seria possível falar de uma finalidade da educação? Ainda, se é o próprio homem que deve constituir seu mundo a partir de um horizonte de possibilidades que se lhe apresentam, como atribuir um sentido à educação (parafraseando a pergunta dirigida a Heidegger por monsieur Beaufret)? Tal é a linha investigativa dessa nossa inferência. Mas não adentraremos ao discurso adorniano e sua perspectiva educacional, sendo um elemento apenas ilustratório para o direcionamento de nossas formulações. A investigação aqui levantada centrar-se-á apenas na produção heideggeriana e na crítica que Sloterdijk realiza ao conceito de clareira apresentado pelo fenomenólogo alemão. Para tanto, analisaremos elementos apresentados na carta Sobre o Humanismo (SH), de Heidegger, apoiando-nos na digressão sobre o humanismo apontada por Peter Sloterdijk em seu texto Regras para o parque humano. 2. UM NOVO HOMEM PARA UM NOVO HUMANISMO Em SH, Heidegger não inicia sua devolutiva já discursando sobre a pergunta de monsieur Beaufret; antes, pretende fazer uma reflexão sobre o pensar e o agir, para que assim as premissas necessárias para a posterior análise que irá empreender possam surtir o efeito necessário. Heidegger inicia seu texto contrapondo o agir tékhne, o qual o Ocidente salientou demasiada forma, com o agir como consumar. Para o autor, agir é “desdobrar alguma coisa à plenitude de sua existência”, e só pode ser consumado aquilo que já é. O intermédio da essência do homem e de sua ação em relação ao ser dá-se pelo pensar. O pensar é a porta da casa do ser, isto é, da linguagem. Tome-se que, aqui em nossa acepção, o ser está além das compreensões cristãs, teológicas ou lingüísticas. O ser é a condição da existência, e o agir do pensar é o próprio pensar, porque assim o pensar conserva em si o ser. Mas é o ser que requisita o pensar: “pensar é 3138 l’engagement par l’Être pour l’Être” ou “de l’Être”, enquanto “de l’” é genitivo subjetivo e objetivo – ou seja, sendo o ser sujeito e objeto dessa posse, em novas condições diversas do que a sistemática ocidental nos legou por subjetivo e objetivo. O ser a(d)-presentado, para Heidegger, é a conjunção actus-potentia – cíclica e de fundo aristotélico – como pré-estabelecido de todas as coisas. O Sein, termo alemão correspondente ao verbo ser (que toma centralidade na ontologia fundamental heideggeriana), é sempre pré, é a condição, e só é possível pensar no Sein a partir do pensar, por meio da linguagem. Mas a linguagem não é somente instrumento para a extração do ser; é antes a própria casa do ser, lugar de sua manifestação, de seu des-revelamento. Nesse sentido, Heidegger re-situa a ação, que deve des-pojar-se de seu mecanismo e imbuir-se de ser. O que está em jogo aqui é a verdade do ser, a aletheia, aletheia, não-esquecimento, a condição de existência. A partir de tais formulações, Heidegger procura destituir a existência e o pensar de sua mecanicidade, de sua tékhne, deixando-o livre para a escuta. O Ocidente sistematizou o pensar numa vontade de dominação, transformando-o em técnica, em praxis e poesis, enquanto o afastou da escuta do ser. Até mesmo a linguagem e suas expressões apresentam nuances quanto da possibilidade do junto ao ser: a mobilidade da fala aponta para uma proximidade sua com o Ser; a correctibilidade da escrita, por outro lado, permite sua facilitação junto ao ente. Tendo tecido tais considerações caberia, segundo Heidegger, redimensionar a palavra Humanismo, assim como propõe a pergunta de Beaufret. O fenomenólogo critica os –ismos, que corresponde a toda forma de dominação cultural que não é des-coberta existencial, que não está atrelada à manifestação. O ser encarrega-se da essência do pensar; isso significa: entre o ser e o pensar existe uma dialética de amorosidade, de erótica, porque o ser fecunda o pensar, e o pensar presenteia o ser. Antes de uma redefinição de Humanismo, Heidegger propõe que é preciso reencontrar o humano em sua relação com o ser. O pensar simples foge à tékhne; é expressão livre do ser. Não deve ser categorizado, ao mesmo tempo em que a linguagem deve ser re-abilitada para se reencontrar como “casa” do ser, como Êthos. A linguagem, quando transformada em mera tékhne, distancia-se consideravelmente de sua essência, que reside em fazer morada para a 3139 verdade do ser, para que o ser se manifeste e deixe-se descobrir-recobrir. Nesse sentido, de re-descoberta da linguagem em sua estética existencial, nota-se a questão da escuta como essencial na produção heideggeriana. É ao se pôr em atitude de escuta que o homem alcança o ser e ouve seu apelo manifesto. O silêncio reabilita a palavra, refaz a casa para que homem e ser co-habitem. E refletir sobre a relação homem e ser é existencialmente refletir sobre o papel de cuidador destinado ao homem. No cuidado, o homem re-encontra sua essência, sua humanitas. Todos os humanismos anteriores fundamentaram-se em uma metafísica – desde a humanitas romana, passando pelo cristianismo, até Marx e Sartre. Mas é preciso reinterpretar aqui o que Heidegger entende por metafísica: toda visão fixa que determine a totalidade a partir de um ente, quer seja a natureza, Deus, a história ou o mundo é, de certa forma, uma metafísica. Heidegger renega-se às categorizações: o significado deve estar aberto, porque o homem é abertura. Mais além: todo humanismo proveniente dessas visões metafísicas costumam apresentar uma definição de homem bem imprópria do ponto de vista ontológico, como “animal racional”. Segundo Heidegger, definir o homem a partir da animalidade não significaria negar ou relativizar sua humanidade? Tal definição foge das expectativas do ser: o ser espera que o homem o des-cubra e se des-cubra na verdade do ser, a-letheia, para, daí sim, re-encontrar a originalidade de sua humanidade, ou seja, a humanitas do homo humanus. Heidegger aponta a essência do homem para a ec-sistência, em seu ser-para-fora, ser-manifesto, ser-na-clareira-do-ser, que é ser onde o Sein se abre enquanto re-velação. Tal análise é ontológico-historial, e não determinativa. É preciso olhar a analítica existencial aqui exposta com olhos de um construtor, que percebe a importância de cada tijolo, apesar de os blocos serem tão iguais entre si. O esforço de Heidegger está na explicitação dessa verdade que a linguagem não determina, mas pode aproximar. O homem é pastor do ser. A pobreza de um pastor, aos quais só resta o cuidado – sua função – permite que o homem se aproxime do ser para cuidar de ser e, cuidando do ser, possa ser com o ser. Todavia, ainda que o homem avizinhe-se do ser, more com o ser, ele não possui o ser. Isso porque o ser, nessa análise específica, não é passível de posse. O ser é abertura, é clareira: espaço de sua manifestação; a própria possibilidade de ser. Apesar da tautologia, toda a qualificação substantivo-verbal dessa afirmação possibilita a re-descoberta do homem enquanto construtor, jardineiro da existência. Sua humanidade 3140 reside aí: em ser o possibilitador da construção e o construtor da possibilidade de sua própria existência. 3. A CLAREIRA, CAMPO DE BATALHA. Apesar da difícil linguagem assumida pela fenomenologia heideggeriana, sua re-significação de humano a partir de uma analítica ontológica da finitude existencial aponta para outros rumos que não aqueles traçados pela tradição ocidental. Para Heidegger, só há uma maneira de atingir a extensibilidade do conceito de humano, que parte do conceito de ser: é “a maneira existencial-ontológica” (SLOTERDIJK, p. 24), como fora oferecida pelos pré-socráticos e bloqueada pelos dois mil anos posteriores da cultura platônico-cristã. Ainda, a palavra humanismo para Heidegger, conforme aponta Peter Sloterdijk, perdeu seu sentido justamente porque seu sentido era deveras deficitário. Tomese em nota aqui a objeção heideggeriana à definição de homem como animal racional, que, segundo Sloterdijk, é rejeitada em vistas à diferenciação ontológica existente entre homem e animal: enquanto o homem tem acesso ao mundo (na amplitude em que a palavra acesso pode aqui apresentar), os demais seres apenas estão nesse mesmo mundo. Apesar de Sloterdijk, nesta questão, trabalhar a partir de outros conceitos, podemos retomar aqui o conceito que Heidegger apresenta em seu livro Ser e Tempo (ST), o Umwelt, a saber, o mundo acessível e tangenciável ao homem. Que é certo que essa oikeíosis, apropriação, do homem em relação ao mundo lhe é peculiar e inacessível àqueles entes que apenas estão no Welt (mundo material, físico) não resta dúvidas; porém, qual a fundamentação que permite tal diferenciação entre homem e animal? A resposta é simples: a linguagem, casa do ser, que possibilita ao homem, “chamado pelo próprio ser” (Id, p. 26) para pastoreá-lo. Essa é a tarefa essencial do ser humano, a saber, “corresponder ao ser” (Id, p. 27), e corresponder na clareira, ou seja, no lugar de abertura do ser, que pode vir-a-ser o mundo. Mas Sloterdijk, em sua concepção e revisão do conceito de clareira, parece não compactuar com a visão pacífica que Heidegger estabelece da clareira, esse lugar de concretização do ser e de apropriação do mundo pelo homem. Para ele, não há como dissociar a clareira de seu aspecto eminentemente combativo: a vida também é campo de batalha, e isso se deve, sobretudo, porque ec-sistir é abertura. As coisas não estão 3141 pré-determinadas ou, ainda, não há porque pensar uma pré-determinação das coisas a não ser a partir de uma vontade de submissão. Nesse sentido, Sloterdijk pergunta-se: até que ponto esse humanismo – desde aquele humanismo literário, passando pelos expoentes contemporâneos (cristianismo, marxismo e existencialismo) até a própria re-significação heideggeriana – não teria se estabelecido como uma dominação, como certa moral dos fracos, nos dizeres de Nietzsche, a encobrir a verdadeira faticidade das realizações humanas como tragicamente sustentadas por relações de poder? E se não há mais como supor um humanismo a partir de suas formulações e formações literárias; se é preciso definir o homem e se defini-lo significa indefini-lo, acolher sua indeterminação biológica e sua moralidade por construir; ainda, se a própria moralidade não passa de “regras para o parque humano” das domesticações, qual o projeto de humanidade que se pretende instaurar? Nesse ponto, nossa visão até aqui voltada para uma antropologia filosófica reorienta-se para o questionar sobre o próprio agir pedagógico. Para que tipo de homo humanus uma perspectiva educacional deve abrir-se? Como pensar com o mínimo de coerência possível uma educação para o humanismo que não seja forçada a enganar-se e contradizer-se na medida em que assume projetos que, antes de orientar para uma humanidade possível, contribui para sua domesticação? Ou, retomando nossa concepção de abertura do texto, que está na base das formulações heideggerianas e sloterdijkianas, como pensar uma educação após os horrores de Auschwitz? Para onde nossa educere deve conduzir? Ora, essa é justamente a beleza e a riqueza, e ao mesmo tempo a tragédia e a angústia de Heidegger: não há um para onde... o para onde é uma escolha, orientada pelo ser, que o homo humanus faz de sua própria humanitas. É o homem, agora no sentido de globalidade, que se apropria desse mundo de horizontes para, na escuta do ser, definir qual horizonte irá orientar, nortear sua vivência de mundo. E a educação, qualquer educação, pode encontrar nessa indeterminação dois destinos paradoxais ao qual deverá necessariamente que se destinar: ou estabelece para si um sentido de humano que se quer constituir, ou estará fadada ao ocaso de um tecnocrático e altamente dominatório nãopensar sobre o humano. 3142 4. A CLAREIRA, LUGAR DA EDUCAÇÃO. A beleza e a angústia: o homem fadado a sua “indeterminabilidade”. Como uma educação a partir desse aparente niilismo? Sloterdijk está bem consciente dessas negras perspectivas que a clareira de Heidegger abre ao refletir o humanus: “a clareira é ao mesmo tempo um campo de batalha e um lugar de decisão e seleção” (SLOTERDIJK, p. xxx), onde apenas os fortes ou os submissos sobreviveriam. A educação humanística, por muito tempo, caminhou para essa segunda possibilidade: a submissão dos homens a uma autoridade, qualquer que seja (Deus, destino, natureza, Estado, governantes). Hoje, poderá caminhar para novas formas de dominação que, ainda que tragam uma possível função progressiva da sociabilidade, podem conduzir a uma domesticação do humano ou à sua animalização. Ora, é exatamente isso que Heidegger não aceita: o homem está além do animal, está além dessa caracterização biológico-histórica de sua essência. O homo humanus é pastor do ser, e ao mesmo tempo o único responsável pela sua própria existência. Nesse sentido, Heidegger conflui para aquela idéia apresentada inicialmente por Adorno de que educar é evitar Auschwitz... Mas em um outro sentido, totalmente diverso daquele humanismo cristão e marxista que apresentam o humano como valor em sua relação com Deus ou com a sociedade, respectivamente. Ambos esses humanismos estão assentados em um “para onde”, metafísico e, portanto, totalizador. Para Heidegger não há esse para onde. Mas também não há um niilismo. O que há são escolhas (a haíresis grega). Como já afirmamos, o para onde é um convite do ser ao homo humanus para que este re-abilite sua própria humanitas. Nesse sentido, é possível falar de educação como uma escolha do homem para evitar Auschwitz; mas porque tal escolha está assentada em uma profunda re-significação do homem em seu em-si. Não há fundamentos pré-determinados. Mas há um horizonte de possibilidades, em que o homem se cria, se constitui, faz sua “ecsperiência”. Definir qual horizonte se quer alcançar, quer ele seja evitar Auschwitz ou formar o homem para o progresso, passa necessariamente por uma profunda “re-valoração” do humano, ou de qual humanidade se quer construir. Esse sim, deveria ser o pressuposto de qualquer debate sobre educação. Esse é o seu mote, e ao mesmo tempo seu desafio, 3143 posto que, a partir da consciência de que não há papéis pré-destinados para o ser humano e sua humanidade, ou ainda, que esta humanidade é algo por construir, não um algo dado. Não há, portanto, um solo para se constituir o humano. O solo é o homem que constrói, na escuta do ser – escuta essa que ainda estamos longe de compreender e que, por isso mesmo, permanece escuta – e a partir do nada. A nadificação, o não-ser (sujeito) do ser (verbo), é o pressuposto para qualquer forma de pensar sobre o humano. Mas esse não-ser é, ao mesmo tempo, o que nos permite a escolha, o que nos incita a decidir sobre que projeto de homo humanos se quer acolher. Entretanto, tal decisão não deve ser feita ao acaso. É necessário que o homem, em sua humanitas, coloque-se nessa escuta, porque é o ser que define o homem. A clareira não é apenas o descampado onde o homem está jogado sem machadinha nem qualquer outro instrumento; a clareira é o lugar onde o ser se abre ao homem e permite ao homem o seu ec-sistir. Numa tentativa de tornar mais clara a abstração: o homem deve sentir e perceber que projeto de humano deve conduzir sua existência, seu ser-no-mundo. Tudo lhe será possível, isso é certo; todavia, nem tudo pode constituí-lo como concretização estética, bela em si mesma e humana (no sentido de manifestação do que há de mais sublime em sua existência), de sua potencialidade existencial. O homem pode, sim, repetir Auschwitz. Resta saber se isto é humano, ou seja, se isto é estético, belo em si mesmo e se esta é a melhor concretização qu o homem pode fazer de sua humanidade. Algo nos diz que não. E esse algo é justamente o ser, a possibilidade de ec-sistir do homem, que como razão consciente do todo, sabe que, repetindo Auschwitz, o homem estará ferindo a si mesmo, à sua humanidade que poderia ter sido e não foi. O homem é o que faz de sua própria ecsistência, mas ele sabe que pode fazer o melhor de sua existência, ou seja, fazer sua existência realmente valer a pena. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. Então, que resta à educação? Se, a partir desse aparente niilismo, não há um humano ao qual conduzir o educando, mas o humano é a própria construção realizada pelo homem de sua humanitas, voltamos ao para onde e perguntamos: há ainda um para onde deve conduzir a educação? Inerente a essa mesma análise desenvolvida até agora – 3144 ainda que pareça contraditório tal afirmação – é possível dizer que sim. E daremos três “para onde” da educação a partir dessa ótica heideggeriana. O primeiro para onde é a experiência de mundo. A educação deve levar o homem à sua experiência de mundo, a que ele faça sua passagem pessoal e intransferível, mas ao mesmo tempo comunal e sociabilizável, do Welt ao Umwelt, do mundo sensível ao mundo das experiências, por meio da linguagem. Em última análise, o homem é aquilo que constrói de seu mundo, e a educação deve ver aí uma tarefa essencial. A própria construção é o segundo para onde: de que forma se quer construir? Com quais ferramentas, com qual arcabouço. Dar ferramentas ao homem, muni-lo de instrumentos, deve ser, portanto, outra ocupação importante da educação (e aqui fica uma pergunta: será que nossos métodos educacionais são realmente instrumentais ou tornaram-se instrumentalizadores?). Mas talvez o mais complexo e mais rico para onde da educação seja o terceiro, a saber, orientar o homem para a escuta do ser. Mais complexo porque, como o próprio Heidegger argüi, estamos longe de captar o que é este ser em sua plenitude, o que dificulta nossa apreensão do que é essa escuta. Mas podemos inferir possíveis significados, e os quatro pilares da educação da UNESCO são pistas, senão concretizações, dessa escuta. Heidegger, todavia, ainda permanece muito além em suas formulações de nossa incipiente compreensão; e está é, justamente, a riqueza de seu discurso e de sua formulação sobre o ser. Referências ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. Trad. de Wolfgang Leo Maar. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 11 ed. Trad. de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002. V. 1. (Col. Pensamento Humano). ___________________. Sobre o humanismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.