POR UMA NOVA PERSPECTIVA DE ANÁLISE DAS POLÍTICAS
EDUCACIONAIS: DA DESIGUALDADE AO DIREITO À DIFERENÇA
Proponente: Miguel G. Arroyo
Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da UFMG
Doutor em Educação pela Stanford University
O tema Política Educacional e Formação de Professores nos defronta com uma
indagação prévia: Que lógicas, que concepções de Política e de Políticas tem
predominado nas análises de políticas educativas?
Esse painel pretende colocar em debate a lógica que organiza as análises sobre políticas
educacionais, particularmente a que se remete ao arcabouço jurídico considerando os
efeitos e limites da legislação. Partindo da clássica redução da política ao Estado, o
painel focaliza o âmbito da sociedade e busca trazer à tona uma análise das políticas
educacionais a partir dos coletivos sociais, dos diferentes feitos desiguais.
O primeiro trabalho problematiza a forma como os coletivos sociais são admitidos nas
análises tradicionais das políticas educativas. Propõe a reinvenção da política a partir da
politização da naturalização da diferença em desigualdade e da problematização das
políticas de inclusão.
O segundo trabalho propõe uma análise crítica acerca dos limites do diagnóstico
proposto no documento da CONAE 2010 para subsidiar a construção de alternativas no
campo da política educacional, confrontando esse diagnóstico a outras dimensões de
interpretação da questão social, com ênfase na dinâmica do mercado de trabalho e nas
relações étnico-raciais.
O terceiro trabalho interroga o entrelaçamento das políticas de identidade e o direito à
educação. Seleciona para essa reflexão a política de escola intercultural diferenciada –
educação indígena – e a política de educação do campo. Problematiza sua inserção na
institucionalidade das políticas educacionais e os desafios para a formação de
professores e professoras.
Palavras-chave: Políticas Educacionais; Estado; Desigualdades Sociais; Direito à
Diferença; Movimentos Sociais.
ANAIS DO XV ENDIPE – ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO
Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
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REPOLITIZAR AS ANÁLISES DO ESTADO E DAS POLÍTICAS
EDUCATIVAS
Miguel G. Arroyo
Professor Titular Emérito da Faculdade de Educação da UFMG
Doutor em Educação pela Stanford University
O tema Política Educacional e Formação de Professores nos defronta com uma
indagação prévia: Que lógicas, que concepções de Política e de Políticas tem
predominado nas análises de políticas educativas?
O primeiro eixo é o papel do Estado, seu dever na organização e regulação da educação
nacional, como garantia do direito à educação de qualidade, à democratização do
acesso, permanência e sucesso escolar, garantia da formação e valorização dos
profissionais da educação, garantia de recursos, financiamento e controle social da
educação. Não há como não reconhecer os avanços analíticos, teóricos, políticos que
esse equacionamento tem produzido nas últimas décadas, politizando as análises que
reduziam os problemas da educação à sala de aula e seus agentes professor-alunos.
O presente texto aponta alguns dos limites das análises persistentes de políticas
educativas operadas na redução da política ao Estado. Focaliza o âmbito da sociedade,
indica a forma como os coletivos sociais são concebidos e admitidos nas políticas
educacionais. Destaca, nos processos históricos da produção da exclusão e da
marginalização, da produção dos coletivos diversos em desiguais, as lutas dos coletivos
sociais, étnicos, raciais, de gênero, do campo ou das periferias. Problematiza o
silenciamento desses grupos nas análises de políticas públicas. Indica as pressões para a
urgência de repolitizarmos as análises do Estado, da política e das políticas educativas a
partir da desnaturalização dos diferentes em desiguais.
Palavras-chave: política educacional, Estado, sociedade.
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O tema Política Educacional e Formação de Professores nos defronta com uma
indagação prévia: Que lógicas, que concepções de Política e de Políticas tem
predominado nas análises de políticas educativas?
Comecemos por posturas e análises que nos são familiares. Para analisar a situação da
educação em qualquer área, formação de professores, currículo, avaliação, qualidade da
educação... partimos do Estado, de seus deveres, sobretudo dos deveres não cumpridos,
da falta de políticas públicas, da omissão dos governos no cumprimento de seus
deveres.
Chamar à responsabilidade do Estado
Durante as últimas décadas este tem sido o esquema simplificado, mas persistente da
análise da realidade de nossa educação pública, sobretudo em documentos, fóruns,
publicações e até em documentos oficiais que responsabilizam o descaso dos governos
anteriores pela baixa qualidade total ou social de nossa educação publica. As boas
intenções dessas análises “políticas” é chamar a responsabilidade do Estado, dos
governos de plantão para outras políticas, para seu dever constitucional consagrado em
tantos documentos legais para dar a devida e exigida prioridade política da garantia da
educação pública de qualidade e da exigida formação pedagógica e docente.
Essas análises tem o mérito histórico de ter inspirado e alimentado compromissos sérios
nas lutas por escola pública, por educação de qualidade, por recursos, salários,
condições de trabalho, enfim por políticas públicas que traduzam a responsabilidade
social e o dever político do Estado com a educação. Tem o mérito de ter inspirado a
concretização dessas políticas públicas em leis, normas, dispositivos legais que
obriguem o Estado a cumprir seus deveres. Tem inspirado de maneira particular a lógica
em que se estruturam os Planos Nacionais e as Conferências Nacionais de Educação e
suas propostas de Sistema Nacional Articulado de Educação e o Plano Nacional de
Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação.
A produção científica e as entidades científicas no campo da política educacional têm
nessas lutas e nesse equacionamento das Políticas e do Estado uma das bases teóricopolíticas de sua atuação, de suas ações e até de suas crises. Seus encontros, congressos,
reuniões, programas, publicações, se alimentam e reproduzem essas lógicas, essas
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análises e concepções da educação, suas propostas, tendo como foco o dever do Estado
nunca cumprido, de novo denunciado e exigido para que com outras responsabilidades
do Estado, outras políticas e outros compromissos de cooperação entre os entes
federados tenhamos, até que enfim, outra educação, outros currículos, outra formação,
outro padrão de qualidade, outra formação e valorização do magistério, outro
financiamento e por via das conseqüências lógicas, lineares, teremos outra educação
pública. Com outra responsabilidade do Estado acabaremos com as desigualdades.
Como ainda não temos, como ainda as desigualdades sociais e educacionais persistem,
como essa herança maldita ainda não foi superada, continuemos apelando ao dever do
Estado. Os persistentes dados de analfabetismo, os milhões sem escola, defasados,
reprovados, os resultados de desempenho das provinhas e provões mostram nossas
frágeis políticas sociais e educativas. Mostram o não cumprimento do sagrado dever do
Estado.
Um exemplo forte da materialização dessa lógica persistente de análise de políticas está
no documento da CONAE. Como está em tantas ementas de programas, cursos,
concursos de gestão da educação, de políticas públicas, de avaliação e até de políticas
curriculares e de formação, acesso e permanência.
O primeiro eixo, ponto obrigatório, é o papel do Estado, seu dever na organização e
regulação da educação nacional, como garantia do direito à educação de qualidade, à
democratização do acesso, permanência e sucesso escolar, garantia da formação e
valorização dos profissionais da educação, garantia de recursos, financiamento e
controle social da educação. Se tudo isso acontecer teremos garantido o direito universal
à educação para todos, ao menos um padrão mínimo de qualidade – cesta básica mínima
para a educação e para as aprendizagens escolares mínimas dos coletivos diversos,
feitos tão desiguais. Teremos garantida sua inclusão social, política, sua incorporação
cultural. Teremos feito justiça com os injustiçados de nossa perversa e injusta história. E
teremos uma sociedade feliz, por obra e graça de um Estado que enfim tem juízo e
cumpre seu dever. O Estado revertendo nossa história de desigualdade em justiças?
Não há como não reconhecer os avanços analíticos, teóricos, políticos que esse
equacionamento do campo da análise de políticas tem produzido nas últimas décadas.
Deslocamos as análises ingênuas despolitizadas que reduziam os problemas da
educação à sala de aula e seus agentes professor-alunos, didáticas, técnicas de bem
aprender porque de bem ensinar. Superamos uma visão neutra da produção teórica dos
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cursos e programas de capacitação de professores no domínio do que e do como ensinar.
Politizamos a produção teórica, os currículos, as avaliações, a formação e o trabalho
docente. Politizamos o papel da pesquisa, dos produtores de análises, de teoria e de
propostas de intervenção e de suas agências. Politizamos o próprio campo da formação,
implementação, gestão, avaliação de políticas públicas. Politizamos a ação do Estado,
dos governos e de seus corpos gerenciais no campo da educação.
Fruto desses tensos processos de politização o campo da educação deixou, ao menos
tem mais dificuldade, de ser tratado como um território neutro ou ocupado pela baixa
politicagem, do reparto de favores. Afirmar a educação como dever do Estado é uma
das mais ricas heranças das lutas pela educação pública das últimas décadas. A
repolitização conservadora vem reagindo a esses avanços, sobretudo desobrigando o
Estado, voltando a colocar os problemas na sala de aula e nos seus agentes, mestresalunos. Eles passam de novo a ser os vilões responsáveis pelos resultados nas provinhas
e provões. A garantir resultados médios, se reduz o dever dos governos. Um
reducionismo despolitizador na contramão de tantos avanços das últimas décadas. Mas
também uma fácil repolitização ou despolitização conservadora que aponta os limites de
nossa politização e de nossas análises. Apontemos alguns dos limites de nossas análises
de políticas educativas.
A redução da política ao Estado
Nessa redução da política ao Estado esquecemos da sociedade. Nosso foco em
conquistar e obrigar o Estado esqueceu que a sociedade também é campo de lutas, de
estratégias, de conquista. Que os sujeitos e agentes políticos não estão apenas no
Estado, nos governos, nas agências formuladoras de políticas e reguladoras do sistema
escolar. A diversidade de agentes sociais não são passivos, pacientes e agradecidos
destinatários de nossas lutas como agências científicas e como intelectuais, gestores e
formuladores de políticas públicas para deixar de ser desiguais, marginalizados ou
excluídos. Por mais cruel que tenham sido os processos históricos da produção da
exclusão e da marginalização, da produção dos coletivos diversos em desiguais, eles
estiveram presentes como coletivos sociais, étnicos, raciais, de gênero, do campo ou das
periferias em nossa história. Tem sido sujeitos não apenas de sua história, mas da
história social, econômica, política, cultural, educativa em nossas sociedades. Não
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foram passivos à espera paciente de ser convidados a fazer parte de nossa história se
educados.
Este dado histórico não foi destacado, foi silenciado em nossas análises de políticas
públicas. Na medida em que esses coletivos se fazem mais presentes, se revelam como
sujeitos sociais, políticos, continuar ignorando-os em nossas análises de políticas mostra
a fragilidade e até a despolitização intencionada ou ingênua de nossas análises
repetitivas no campo das políticas educativas. Reconheçamos que insistir em ver o
Estado como o único ator social e político e ver as agências científicas, seus intelectuais
e analistas, suas lutas como os únicos atores políticos e ver os coletivos diversos
desiguais como pobres, de pires na mão esperando por políticas de Estado, de governos
e pelas lutas e pressões nossas em congressos, conferências, Planos Nacionais, é
revelador da ignorância dos complexos processos políticos que se travam em nossas
sociedades. É revelador da ignorância e do não reconhecimento da centralidade desses
coletivos na arena política, na diversidade de fronteiras, nos campos e cidades, nas lutas
pela terra, teto, território, saúde, orientação sexual, educação... É ignorar o papel
político do movimento docente na repolitização do seu direito à formação, como é
ignorar o papel da diversidade de movimentos sociais que lutam por políticas
específicas e afirmativas de formação.
Ignorar esta complexidade dos espaços e dos sujeitos políticos, das fronteiras e campos
de luta política tem levado as análises de políticas públicas, educativas a um lamentável
e empobrecedor reducionismo da própria concepção da política e das políticas. Inclusive
tem levado a uma ingênua concepção de Estado. Quando se desperdiçam a pluralidade
de experiências de lutas políticas e a diversidade de atores políticos, a redução do
Estado à condição de único agente político empobrece a própria visão e papel do Estado
e de suas políticas. Desse reducionismo tem sido vítimas as análises e propostas de
políticas públicas educativas nas agências, CTs, fóruns, conferências e planos de
educação.
Em outros termos, ter ignorado, secundarizado essa pluralidade de sujeitos sociais e
políticos e suas lutas e ações coletivas em nossas sociedades, tem representado uma
gravíssima lacuna nas análises de políticas. Tê-los reduzido a meros destinatários dessas
políticas, do dever do Estado tem empobrecido a visão dos coletivos, do Estado, das
suas políticas e das nossas análises. Teria sido um esquecimento depois de noites de
vigília pela escola pública de qualidade, para eles tão injustiçados? A simples análise de
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documentos tão bem elaborados como a CONAE ou de programas de cursos de
políticas ou de congressos e seminários revelam que não operam na lógica do
esquecimento. O 1o. eixo nos traz o que é considerado como o ponto de partida, o
Estado, seu dever na garantia do direito à educação. Nos seguintes eixos se priorizam as
políticas de gestão, qualidade, acesso, permanência, formação e valorização do
magistério, financiamento e no último eixo, no final, nos lembramos dos desiguais, dos
diversos, dos injustiçados. Mas não como sujeitos de direitos e sim como os
destinatários dos produtos desejados, das políticas e dos deveres do agente político
único, o Estado e suas políticas.
Por que essa lógica é tão persistente e tão cara às análises e aos analistas de políticas, a
categoria mais prestigiada nas agências, ANPEd e outras, nos departamentos e nos
órgãos gestores? Porque essa foi e continua tentando ser a análise da política tradicional,
ingênua, já superada nas ciências políticas, mas persistente na análise de políticas
educativas. A ciência política esteve e está mais aberta à complexidade de forças, atores,
políticos na diversidade de campos e fronteiras. Esses avanços da ciência política não
conseguiram questionar as visões ingênuas, despolitizadas com que continuamos
fazendo análises de políticas educativas e com que formamos visões despolitizadas,
parciais nos profissionais da escola, dos currículos, da avaliação, da formação docente
etc. Com visões tão parciais da dinâmica política fica difícil avançarmos para análises
politizadas de políticas educativas.
Por onde avançar para a repolitização do campo da educação e especificamente da
análise, formulação, gestão, avaliação de políticas educativas? Focalizo apenas dois
campos: entender os processos atuais de reinvenção da política e politizar as concepções
de Estado e de suas políticas. A idéia que poderia orientar-nos é que as concepções de
Estado, de política e de políticas são inseparáveis do como pensamos os coletivos
populares. Estes não podem ser vistos como destinatários agradecidos ou cooptados,
mas como o referente histórico configurante do Estado que temos e pessoas políticas.
A reinvenção da política
A visão tradicional da política se expressa no método de análise das carências e
desigualdades educativas. Se repetem dados quantificáveis para concluir pelo baixo
padrão de qualidade de nossa educação. Uma postura positivista que se estende ao
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número de leis, normas, índices, médias de sucesso-fracasso. Padrão de qualidade
medido por resultados em domínios de competências mensuráveis. Dessa visão
positivista à despolitização há um passo. Outro traço persistente é uma visão
naturalizante das desigualdades sociais, educacionais. São vistas como um fardo do
passado que pesa sobre o presente. Uma visão que incorpora a despolitizada separação
entre passado e presente, entre história e atualidade. Dessa visão se passa a defesas de
que ao Estado responsável cabe carregar esse fardo, essa herança maldita do passado,
corrigir desigualdades. A essa correção se reduz o dever do Estado a ser cumprido com
leis e políticas corretivas, distributivas, compensatórias de redução das desigualdades
herdada do passado. Como ainda é presente essa visão nas análises e na formulação de
políticas. Essas desigualdades são vistas até como conseqüências das desiguais
condições de existência de que são responsáveis os próprios coletivos desiguais por não
se submeterem a percursos exitosos, bem sucedidos no padrão de qualidade da
educação.
É significativo perceber como os Outros, os coletivos feitos desiguais, pensados como
excluídos, como auto-responsáveis de sua condição, como um fardo do passado, não
estão no final de nossas análises como meros destinatários das nossas lutas políticas e
das ações do Estado; eles estão como referente constante para a compreensão que temos
do Estado, da política e das políticas. Aquele e estas são pensados nas formas de pensar
esses coletivos, de pensar sua condição de fardo, de desiguais, de excluídos. O Estado,
seus deveres, a política e as políticas são pensados na medida estreita des-politizada em
que são pensados os Outros, os diversos como desiguais, como herança a serem
incluídos, igualizados e compensados pelo Estado e suas políticas. A visão simplificada
dos Outros, dos processos de produção de suas desigualdades termina estando na
origem inspiradora das visões simplificadas de Estado, de seus deveres, da política e das
políticas, das leis e do corpo normativo.
Como sair e ir além dessas visões simplificadas e simplificadoras? Radicalizando os
processos históricos em que foi produzido o pensar e conformar os coletivos diferentes
como desiguais. Reconhecer que por aí passa em nossa história o núcleo da política.
Logo, não vê-los como um fardo a ser superado com políticas generosas do Estado, mas
ver esses processos como uma produção histórica, atrelada à relação política do padrão
de dominação-segregação conformante de nosso passado e do nosso presente.
Reconhecer o aprofundamento atual das desigualdades em quantidade e “qualidade”.
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Hoje, ser pobre, segregado, como coletivo racial, étnico, sexual, do campo ou das
periferias é qualitativamente mais brutal do que no passado. Essas configurações das
desigualdades são na contemporaneidade mais insidiosas, mais perversas e colocam a
produção dos diversos em desiguais em um outro patamar político onde resulta ingênuo
reduzir o dever do Estado e de suas políticas educativas a remediar e corrigir heranças
do passado.
Se a produção dos coletivos diversos em desiguais, segregados, inferiorizados é hoje
mais refinada e mais perversa, sua existência em nossas sociedades tem um significado
político totalmente diferente do que pode ter tido no passado. Os processos políticos de
sua produção-reprodução são hoje politicamente mais refinados e por isso mais
perversos do que no passado. Mais ainda, a exposição das desigualdades está hoje mais
exposta, mais difícil de ocultá-la sob paliativos de projetos sócio-educativos,
assistenciais do que foi até agora. Consequentemente o alcance dos projetos, das
políticas públicas, especificamente educativas perde força política. O papel do Estado
teimando em limitar seu dever a esse tipo de políticas perde relevância e nossas pressões
para que o Estado conforme políticas inclusivas, distributivas para minorar as
desigualdades resultam desfocadas, sem a ressonância políticas que poderiam ter em
passados recentes.
Outro aspecto torna as desigualdades no presente com novas e insidiosas conotações
políticas: a desigualdade dos coletivos sociais, étnicos, raciais, de gênero, campo ou
periferias passou a ser um dos mecanismos políticos mais perversos de seu controle, sua
regulação e manutenção no lugar em que a ordem social, os padrões de poder, de
trabalho, de maneira particular, de exploração da terra e do espaço urbano, os jogou
porque diferentes, inferiores, segregados, sobreviventes. Esses processos de
conformação, alocação, desterritorialização dos Outros vem do passado, conformaram a
relação de poder colonial e continuam mais refinados no padrão de poder republicano,
democrático. Processos conformadores do padrão do Estado, de política e de
formulação, implementação, conformantes do alcance e dos limites das políticas sócioeducativas.
Aí e não nas boas intenções de gestores, formuladores, implementadores de políticas e
menos de analistas, radicam os limites, as contradições entre os princípios afirmativos
de direitos e dos deveres abstratos e os reais, concretos processos de regulação, controle
das desigualdades, da incorporação lenta dos coletivos desiguais, segregados via
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universalização do acesso à escola. O próprio processo capitalista, legitimado
politicamente pelo Estado e suas políticas, aprofunda as desigualdades, deixando sem
efeito
as
nossas
políticas
públicas,
sócio-educativas,
corretivas,
inclusivas,
compensatórias dos efeitos das desigualdades aprofundadas. Os processos políticos são
mais refinados, mais contraditórios no próprio campo do Estado e de suas políticas
porque se tornaram mais tensos e contraditórios no próprio campo da produçãosalvação-segregação-inclusão dos Outros, dos diversos, dos desiguais que as políticas
educativas sentem-se responsáveis por salvar pela escolarização de qualidade. Diante
dessa nova requalificação da política não há lugar para políticas ingênuas, de boavontade, inclusivas, salvadoras ou compensatórias tão caras aos debates sobre
formulação de políticas sócio-educativas e de formulação de documentos da CONAE ou
do PNE.
A exigência se impõe: em vez de gastar tantas energias analíticas sobre leis, normas,
políticas, projetos para ponderar até onde o dever do Estado e dos governos garantem ou
se aproximam de padrões mínimos de qualidade, de custo-aluno ou sobre se o valor dos
mestres sobe ou desce na bolsa de valorização do magistério pelos governos e suas leis,
seria urgente dedicar maiores energias para pesquisar, entender como, em que processos
e qual o papel do Estado e de suas políticas na produção refinada, de nova qualidade
perversa dos coletivos diferentes em desiguais.
Sem um conhecimento mais aprofundado desses perversos processos políticos não
avançaremos para uma análise repolitizada do Estado, da política e das políticas sócioeducativas. Esses processos se justificam em segregações, polarizações, hierarquizações
dos coletivos humanos por critérios sociais, de gênero, étnico, sobretudo raciais, que
tem sido esquecidos, ocultados na maioria das análises de políticas educativas. Com
esses bloqueios racistas será difícil sequer chegarmos a análises mais aprofundadas e
politizadas das desigualdades, do dever do Estado, da política e das políticas que tanto
defendemos. Como incorporar essa reinvenção da política? Como ter uma visão mais
política de produção dos diferentes em desiguais?
Politizar a produção dos diferentes em desiguais
Realmente o problema não é de esquecimento dos coletivos diversos feitos desiguais,
eles aparecem, são lembrados com a centralidade de destinatários das políticas públicas.
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Poderíamos levantar a hipótese de que essa presença dos desiguais não está apenas no
final, como destinatários de nossas análises compromissadas, eles estão no início, ou a
visão com que são pensados está na base das visões que temos de Estado, da política,
das políticas, da gestão da educação e de nossa própria função social e educativa.
A teoria educativa e curricular, assim como o perfil de educador que formamos, o
ordenamento do sistema escolar foram pensados e conformados nas formas de pensar e
de conformar em nossa história os coletivos diferentes, em classe, etnia, raça, gênero,
campo, periferia. As formas como os temos pensado vem conformando as formas como
nos pensamos e como conformamos o Estado, as políticas educativas e suas análises. O
aparente esquecimento deles, ou jogá-los ao final como beneficiados é apenas uma das
formas de segregá-los, de não reconhecer sua centralidade em nossa história, inclusive
na história do pensamento político-educacional.
A despolitização ingênua das análises do Estado, da política e das políticas tem como
uma das causas a visão despolitizada da presença dos Outros, dos coletivos sociais
diversos feitos tão desiguais, inferiorizados, segregados. Ao despolitizar os processos
históricos, de pensá-los e conformá-los, inclusive pela educação, despolitizamos a
política e as políticas. Despolitizamos a própria ação e as formas de pensar-se das
agências científicas.
A reinvenção da política nos processos de produção das desigualdades está sendo
radicalizada pelas ações desses coletivos em diversas formas de organização e de
movimentos, reagindo às formas de pensá-los, de alocá-los nas margens. Reagindo a
tantas tentativas de ignorá-los, salvá-los através de projetos e políticas salvadoras
especificamente sócio-educativas. Dos próprios destinatários de quem se esperavam
aceitação, esforços e agradecimentos vem as reações ao acesso e permanência nas
escolas, aos currículos, às condições de trabalho, às didáticas, ao projeto padrão de
qualidade mínima que tanto lutamos por conquistar e roubar do Estado e de suas
políticas públicas.
Esses coletivos não se reconhecem pensados e conformados como destinatários
agradecidos de políticas e deveres de Estado, reagem e se afirmam sujeitos de ações
coletivas políticas. Se reinventam inclusive sujeitos de formulação-pressão de políticas
agrária, urbana, educativa, de saúde, transporte, igualdade e justiça. Reinventam a
política, o Estado e sua função. Suas políticas. Nos obrigam a repensar nossas análises,
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avaliações, de políticas, de qualidade e de justiça social. Nos obrigam a repensar os
critérios de gestão, regulação das desigualdades e das diferenças. Inclusive, a reinventar
a concepção de direitos humanos, da relação entre educação para a cidadania. Nos
obrigam a desconstruir as lógicas e os princípios universalistas tão caros e familiares em
que equacionamos e defendemos as políticas sócio-educativas incorporadoras de
inclusão subordinada e de cidadania condicionada ao acesso, à permanência e ao êxitosucesso escolar.
Sem dúvida que é mais cômodo ignorar todo esse novo caldeirão político que vem dos
próprios diferentes e desiguais destinatários de nossas políticas e continuarmos
entretidos com novas normas, diretrizes, projetos e políticas assimilacionistas,
inclusivas, distributivas. Até quando?
A crise do Estado e das políticas
Lembrávamos que a imagem do Estado, de seus deveres e de suas políticas sócioeducativas foi conformada na imagem com que foram pensados os diferentes e nos
processos em que foram feitos desiguais. O pensamento educativo, as teorias e análises
do Estado, das políticas tão caras ao pensamento educacional e especificamente as
análises de políticas terão de ser desconstruidas na medida em que os Outros não se
vem, nem se aceitam nessa imagem, nesses lugares sociais, humanos, políticos, em que
foram pensados e alocados. A imagem de Estado previdente, de políticas de
incorporação, de inclusão, de assimilação, para tirá-los da ignorância, da incultura e
irracionalidade não se sustentam. Perdem sentido na medida em que os Outros não se
aceitam excluídos, ignorantes, incultos, irracionais. Esse Estado
previdente,
compensador de deficiências perde sentido na medida em que os coletivos diferentes
não se reconhecem deficientes.
Por outro lado, essas políticas inclusivas mostraram sua incapacidade de se contrapor
aos mecanismos de exclusão estrutural que vem do padrão de trabalho e de poder e de
produção. As políticas sócio-educativas se empenham em processos de inclusão, acesso,
permanência, sucesso, enquanto o padrão de trabalho escasso, segmentado, segregador
opera por processos brutais estruturais de desemprego, sub-emprego, trabalho informal,
sobrevivência, fome, pobreza extrema. Ou o padrão de poder opera por políticas de
concentração da terra, de destruição da agricultura familiar, depreciação da moradia
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popular, da reprodução indigna da vida cotidiana. Por aí passam os processos de
conformação dos desiguais, processos brutais políticos ignorados nas análises.
Um dos pontos que impressionam nas análises de políticas é a visão ingênua do Estado.
Uma visão feita e cultuada de um Estado na medida exata da visão pedagogistica
salvadora que se tem das suas políticas e deveres para salvar, educar, incorporar os
diferentes feitos tão desiguais. Nessa visão ingênua, salvadora e neutra do Estado não
cabem essas transformações que perpassam seu novo papel e sua nova configuração nos
processos atuais sofisticados de regulação do trabalho, da terra, da propriedade, dos
direitos e das desigualdades. No controle dos desiguais e na repressão a suas ações e
movimentos aparece outro Estado nada imparcial nem incorporador, mas repressor dos
coletivos desiguais que se afirmam existentes, sujeitos políticos e de políticas.
Que virtualidades encontrar nas políticas sócio-educativas, nas leis, normas, projetos
para se contrapor a essa outra imagem de Estado tão distante da imagem neutra,
incorporadora, inclusiva que estão tão presentes nas análises de políticas educativas?
Dos coletivos diferentes, dos desiguais, vem indagações desestabilizadoras das lógicas
que vem predominando nas análises do Estado, das políticas e das políticas educativas,
porque dos próprios coletivos produzidos e reproduzidos como desiguais, inferiores,
segregados vem contestações políticas radicais às visões com que continuam pensados.
Desses coletivos vem as pressões para a urgência de repolitizarmos nossas análises do
Estado, da política e das políticas educativas.
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DESIGUALDADES SOCIAIS E A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA
EDUCACIONAL BRASILEIRO
JOSÉ EUSTÁQUIO DE BRITO
Professor Adjunto
Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais
Resumo
Tomando-se por ponto de partida a formulação apresentada no documento referência da
Conferência Nacional de Educação 2010 sobre a relação entre a política educacional e o
quadro de desigualdades presente no país, o artigo propõe uma análise crítica acerca dos
limites do diagnóstico proposto no documento para subsidiar a construção de
alternativas no campo da política educacional, confrontando esse diagnóstico a
referências que incorporam outras dimensões de interpretação da questão social, com
ênfase na dinâmica do mercado de trabalho. Fundamenta-se nas reflexões que têm sido
conduzidas por pesquisadores e graduandos do curso de Pedagogia no interior do
Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação das Relações Étnico-Raciais, da
Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) no
sentido de traduzir para o campo da formação de professores, questões que se integram
ao cotidiano da escola pública brasileira. Em seguida, discute-se as várias formas de
manifestação da questão social em nosso país, com ênfase na dinâmica do mercado de
trabalho no contexto da flexibilização das relações de trabalho, das formas contratuais e
de remuneração, acentuando a radicalização do quadro historicamente precário de
inserção a que se encontra submetida a população negra a partir da reestruturação
capitalista do final do século. Em seguida, valendo-se parcialmente do modelo de
constituição de “capital social gerado pelo Estado”, proposto por Martin Carnoy,
apresenta-se uma reflexão de modo a complementar os componentes desse modelo com
a reflexão acerca da necessidade de reconhecimento da legitimidade dos movimentos
sociais como sujeitos políticos, apontando alguns desafios para a consolidação de uma
política educacional comprometida com o enfrentamento do quadro de desigualdades
refletido.
Palavras Chave: Desigualdade Social; Relações Étnico-Raciais; Política Educacional
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Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: políticas e práticas educacionais, Belo Horizonte, 2010
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Introdução
“A política, por definição, é sempre ampla; supõe uma visão de
conjunto. Quem não tem visão de conjunto, não chega a ser
político. A política apenas se realiza quando existe a
consideração de todos e de tudo”.
(Milton Santos)
Encontra-se em processo de constituição na Faculdade de Educação da Universidade do
Estado de Minas Gerais (UEMG), o Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação das
Relações Étnico-Raciais. No contexto de reflexão acerca do alcance da política de ação
afirmativa desenvolvida por essa instituição, visando ao ingresso da população negra
nos diversos cursos mantidos pela universidade, trata-se de uma iniciativa que visa a
articular um conjunto de reflexões desenvolvidas por diversos professores da instituição
em seus trabalhos de pesquisa, bem como por estudantes em processo de escrita de
trabalhos de conclusão de curso, no sentido de aportar, para a formação de professores,
questões relativas à particularidade da formação histórico-social brasileira que
resultaram na conformação de um quadro de desigualdades persistente em nossa
sociedade e que por vezes são reforçados pela dinâmica de funcionamento do sistema
escolar.
A aprovação da lei 10.639/03, que introduziu nos currículos da educação básica o tema
da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, vem legitimando uma série de
iniciativas, de norte a sul do país, cujo interesse de proporcionar uma compreensão mais
exigente do sentido histórico da formação social brasileira vem contribuindo para a
valorização de identidades historicamente negadas, bem como para o desvendamento de
mecanismos presentes em nossa sociedade que corroboram para a perpetuação do
quadro de desigualdades instalado em nosso país.
Esse texto sintetiza, em linhas gerais, as opções que têm sido assumidas pelos
integrantes do Núcleo em formação no sentido de constituir conhecimentos sobre os
desafios postos pela situação de desigualdade, que se manifesta também na escola
pública brasileira, de modo a articular a dinâmica do mundo do trabalho – sobretudo
considerando os reflexos da reestruturação capitalista em curso – com a formação
histórica brasileira, marcada pela inclusão precária da população negra na sociedade.
Num primeiro momento, ressalta-se a importância do reconhecimento do quadro de
desigualdades sociais como um desafio a ser enfrentado pela política educacional,
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apontando os limites da análise proposta no documento referência da Conferência
Nacional de Educação de 2010, de modo a propor um alargamento da situação refletida
no referido documento. Em seguida, faz-se uma abordagem sintética sobre a dinâmica
do mundo do trabalho no contexto pós-reestruturação capitalista, de modo a apontar as
repercussões que tal situação apresenta para a perpetuação das desigualdades
historicamente instaladas em nosso país. Conclui-se o texto apontando alguns desafios
para o campo da política educacional, de modo a apontar os limites do paradigma da
avaliação e discutir os desafios do financiamento da política no contexto da
reestruturação capitalista.
Política Educacional e Desigualdade Social
Não obstante a identificação de vertentes teórico-conceituais distintas entre os autores
que discutem aspectos da política educacional percebe-se que, quando se trata de
analisar os desafios históricos apresentados para a organização e funcionamento do
sistema educacional brasileiro, encontra-se presente a constatação das várias formas de
manifestação da questão social no Brasil, traduzidas pelos indicadores da desigualdade
como,
por
exemplo:
raça,
gênero,
renda,
analfabetismo,
evasão
escolar,
desenvolvimento humano, homicídios entre adolescentes, população carcerária etc. É
evidente que essa situação compõe um quadro cuja compreensão em seus aspectos
determinantes apresenta-se como condição sine qua non para se projetar a configuração
de um Sistema Nacional Articulado de Educação, desafio a que se propõem as
conferências que, nas distintas regiões do país, mobilizam a comunidade escolar,
trabalhadores da educação, acadêmicos, políticos, movimentos sociais e organizações da
sociedade civil, de norte a sul do país, na formulação do Plano Nacional de Educação
que orientará as ações no campo da política educacional na próxima década.
Por sua vez, o momento atual apresenta-se como uma oportunidade a mais para refletir
sobre os desafios postos para a política educacional brasileira por assinalar a passagem
do 122º aniversário do ato de abolição formal da escravidão em nosso país e por
sabermos que ocasiões como essas impulsionam à auto-reflexão acerca do sentido da
formação da sociedade brasileira, sua identidade sócio-cultural, de modo que esse
esforço deva contribuir para a formulação de projetos e ações necessários à construção
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de uma sociedade democrática, justa na repartição do poder e de suas riquezas, e que
reconheça a sua diversidade étnico-cultural.
Entretanto, como nos ensina o geógrafo Milton Santos, é preciso construir uma visão
ampla, de conjunto, sobre essa dinâmica histórica de modo que a ação política seja
capaz de enfrentar, em suas raízes, o quadro de desigualdades manifestado na dinâmica
da sociedade brasileira e que se perpetua no sistema educacional. Esse me parece ser
um ponto de partida indispensável para a problematização do compromisso histórico da
política educacional com a construção de uma sociedade justa e democrática, capaz de
oferecer a sua contribuição para a realização desse trabalho histórico de superação das
desigualdades manifestadas a partir da dinâmica da sociedade brasileira.
Para fundamentar essa premissa tomemos, a título de exemplo, a interpretação do
quadro de desigualdades proposta pelo documento referência da Conferência Nacional
de Educação (CONAE) para discutir seus alcance e limite:
Historicamente, o Brasil tem se caracterizado como um país com
frágeis políticas sociais, o que lhe imprimiu dois traços marcantes:
uma das maiores desigualdades sociais em convívio com uma das
mais altas concentrações de renda do mundo. Com 50% de sua
população de 170 milhões de pessoas em situação de pobreza, é fácil
constatar sua condição de país injusto por excelência. Além disso,
relatório do IBGE (PNAD, 2003) indica que, dos trabalhadores
brasileiros com mais de 10 anos, 65,2% recebem até 2 salários
mínimos. Essas características, reflexo da ausência de políticas
sociais mais efetivas, assumem formas cada vez mais perversas de
exclusão social (BRASIL, 2009, p. 9).
Não obstante a intenção do documento de propor uma análise crítica acerca da situação
da desigualdade nota-se que o reconhecimento da fragilidade histórica na montagem do
sistema de proteção social em nosso país explica, parcialmente, o quadro de
desigualdade.
Uma análise mais abrangente incorporaria, como determinantes
estruturais da desigualdade, dimensões não refletidas pelo documento como, por
exemplo, a forma como historicamente se organiza a estrutura fundiária brasileira, a
composição heterogênea do mercado de trabalho e o encaminhamento político dado à
questão racial pós abolição formal do trabalho escravo.
Sem a pretensão de oferecer uma leitura exaustiva em torno dessas questões estruturais
da desigualdade, a intenção do texto se limita a pontuar a insuficiência do ponto de
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partida apresentado no documento referência da CONAE visando a oferecer outras
possibilidades para a análise da questão que repercutem na arquitetura da política
educacional.
Tomando-se, a título de exemplo, a conformação do mercado de trabalho nacional a
partir do momento em que assistimos à emergência da transição demográfica, no
contexto de implantação da industrialização brasileira, ocorrida na segunda metade do
século passado, nota-se que a estrutura fundiária, baseada no latifúndio e a organização
seletiva do acesso a direitos sociais – “a cidadania regulada” – ratificada pelo regime
corporativo de organização sindical, impulsionaram a conformação de um mercado de
trabalho urbano com grande oferta de mão-de-obra para uma economia industrial com
poucas possibilidades de inserção para o conjunto dos trabalhadores que migravam (ou
eram expulsos) do campo. O projeto de desenvolvimento voltado para a substituição de
importação não fora capaz de proporcionar a inclusão produtiva para grande parte dos
trabalhadores, que em grande proporção não tinham acesso à educação básica,
sobretudo a população negra.
Esse quadro contribuiu para a configuração de uma economia integrada e de baixos
salários que, atualmente, devido às restrições impostas pela reestruturação capitalista em
curso, alimentada pelas inúmeras possibilidades abertas pela III revolução industrial,
tendem a acentuar ainda mais a fragmentação do mercado de trabalho e perpetuar a
situação de desigualdade apontada pelos autores no documento aqui referido.
Reestruturação Capitalista e Desigualdades no Mundo do Trabalho
Como nos ensina David Harvey (1992), a estrutura segmentada do mercado de trabalho
concebe a presença de um núcleo central e estratégico para a acumulação capitalista,
formado por trabalhadores altamente qualificados, com acesso a direitos, estabilidade no
emprego e altos salários, que convive com setores periféricos compostos por
trabalhadores parciais, terceirizados, subcontratados, caracterizados pela insegurança no
emprego, pela possibilidade de mobilidade territorial, baixos salários e com escassas
possibilidades de acesso à qualificação profissional e à educação básica, que
sobrevivem como podem nos espaços periféricos de inserção precária no mercado de
trabalho:
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O centro – grupo que diminui cada vez mais (...) – se compõe de
empregados em tempo integral, condição permanente e posição
essencial para o futuro de longo prazo da organização. Gozando de
maior segurança no emprego, boas perspectivas de promoção e de
reciclagem, e de uma pensão, um seguro e outras vantagens indiretas
relativamente generosas, esse grupo deve atender à expectativa de ser
adaptável, flexível e, se necessário, geograficamente móvel. (...) A
periferia abrange dois subgrupos bem distintos. O primeiro consiste
em empregados em tempo integral com habilidades facilmente
disponíveis no mercado de trabalho, como pessoal do setor financeiro,
secretárias, pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de trabalho
manual menos especializado. Com menos acesso a oportunidades de
carreira, esse grupo tende a se caracterizar por uma alta taxa de
rotatividade, o que torna as reduções da força de trabalho
relativamente fáceis por desgaste natural. O segundo grupo periférico
oferece uma flexibilidade numérica ainda maior e inclui empregados
em tempo parcial, empregados casuais, pessoal com contrato por
tempo determinado, temporários, subcontratação e treinandos com
subsídio público, tendo ainda menos segurança de emprego do que o
primeiro grupo periférico. Todas as evidências apontam para um
crescimento bastante significativo desta categoria de empregados nos
últimos anos. (HARVEY, 1992: 143 - 144).
Dada que a forma de inserção ocupacional é profundamente marcada pela situação
econômico-social vivenciada pelas famílias, infere-se, por exemplo, que jovens
provenientes de famílias com acesso restrito à renda, tendem a se inserir e permanecer
vinculados aos espaços periféricos ou não organizados do mercado de trabalho,
dispondo de poucas oportunidades para acessar os segmentos mais organizados e
estáveis desse mercado. Os dados apurados pelos mais diversos institutos de pesquisa
indicam que a participação na renda nacional das famílias negras as vinculam a esses
setores periféricos do mercado de trabalho que, no contexto da reestruturação capitalista
em curso tende a perpetuar a condição de inclusão marginal na sociedade.
A análise das clivagens historicamente sedimentadas entre nós e aprofundadas pela
lógica perversa da reestruturação capitalista tende a colocar em evidência, num novo
plano, as desigualdades entre cidade e campo, negros e brancos, incluídos e
marginalizados do mercado formal de trabalho. Essas clivagens são sustentadas por
uma lógica de exercício do poder historicamente comprometida com a perpetuação do
quadro de desigualdades e começam a aparecer com mais vigor nas formulações de
autores vinculados à política educacional, de modo a propor o enfrentamento dos
problemas estruturais com a devida radicalidade. Assim, por exemplo, uma premissa
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básica para a configuração do regime de colaboração entre os entes federados deveria
ser a consciência acerca do sentido de sua orientação estratégica. Essa consciência se
faria presente à medida que o conjunto de ações possa envidar esforços visando ao
enfrentamento das desigualdades em sintonia com outras políticas sociais.
Em recente trabalho publicado no Brasil, o pesquisador norte-americano, Martin
Carnoy, analisando o bom desempenho do sistema educacional cubano com base nos
resultados de avaliações internacionais, aponta que esse pode ser um caminho a ser
percorrido por Brasil e Chile. O modelo de análise proposto pelo autor, fundado numa
concepção ampliada de “capital social”, incorpora nessa dimensão o papel ativo das
políticas públicas:
O modelo leva um passo adiante a influência possível do capital
social. Incluímos na noção de capital social o que designamos capital
social gerado pelo Estado, ou seja, as políticas governamentais
nacionais que afetam o ambiente social mais amplo das crianças.
Existem, portanto, efeitos da “vizinhança” ou do capital social
nacional, incluindo intervenções que podem aumentar as expectativas
educacionais para todas as crianças, principalmente as desfavorecidas
em termos de educação. Assim, os governos podem gerar, em escala
regional ou nacional, um ambiente educacional coeso e estimulante,
criando benefícios de aprendizagem para todos os alunos (CARNOY,
2009, p. 36).
Deve-se observar, na formulação do modelo de análise proposto pelo autor, a
importância conferida à ação governamental no sentido de, com suas ações, contribuir
para aumentar as possibilidades de inserção da população a condições de vida mais
dignas. Entretanto, quando se trata de refletir sobre o desenho de alternativas, é preciso
considerar o papel ativo e legítimo desempenhado pelos mais diversos movimentos
sociais, a partir de seus mecanismos de mobilização e pressão sobre o poder público e a
sociedade, de forma geral, de modo a reconhecer a legitimidade de suas ações no
sentido de re-orientar as prioridades políticas e orçamentárias do poder público. Ou
seja, não se pode pensar os efeitos redistributivos do “capital social gerado pelo Estado”
sem considerar que esse “capital” se constrói a partir do reconhecimento e do respeito às
reivindicações dos movimentos sociais enquanto sujeitos políticos.
Desafios para a Política Educacional
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Em alguns autores do campo da política educacional, como Saviani, por exemplo, a
orientação de refletir essa dimensão da ação governamental à luz de um projeto de
desenvolvimento é explicitada na análise feita da trajetória da política de formação de
professores. O estabelecimento de competências específicas e complementares entre os
entes federados na condução da política educacional, como o ratifica a Constituição e a
LDBEN e outros instrumentos normativos é, sem dúvida, um passo importante no
sentido da organização de um sistema nacionalmente articulado.
Todavia, ao analisarmos os mecanismos de regulação estatal em curso no
encaminhamento da política educacional, deve-se questionar acerca das possibilidades
concretas de conferir a essas ações o sentido estratégico necessário ao enfrentamento da
situação de desigualdade. Reconhecer, como o faz a atual Secretária de Educação
Básica do Ministério da Educação (MEC) que
os sistemas de ensino têm ampla liberdade de organização (...), mas a
União tem de se incumbir de prestar assistência técnica e financeira
aos outros entes federados e assegurar processos nacionalmente de
avaliação do rendimento escolar nos ensino fundamental, médio e
superior, em colaboração com os sistemas de ensino, definindo
prioridades e a melhoria da qualidade de ensino (ALMEIDA E
SILVA, 2007, p. 88),
significa apontar para a centralidade dos controles acionados pela gestão no sentido de
colocar em prática, com mais evidência, o paradigma do Estado Avaliador (PERONI,
2003). Essa tendência, impulsionada na década de 1990 por meio do aprimoramento de
ferramentas estatísticas, tem sido ampliada pelo atual governo visando a servir de
critério para a realização da passagem entre nos níveis de ensino.
Dada, atualmente, a polêmica em torno da quebra do sigilo das provas do Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) e os custos políticos e financeiros que vêm sendo
contabilizados, talvez seja importante analisar esse ato de modo a considerar a
possibilidade de outras hipóteses explicativas para além daquela que vincula o ato à
possibilidade de obtenção de ganhos monetários pelos seus protagonistas.
Sem
considerar a hipótese de auferir vantagens econômicas com a possível comercialização
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da prova, penso que o ato comportaria a manifestação política de contestação à
hegemonia do “Estado Avaliador”, de modo a transmitir um sinal de alerta aos gestores
do sistema de que, do Estado, se espera bem mais que a avaliação do rendimento escolar
dos alunos.
Considerando, por fim, o papel da estrutura de financiamento na organização do
sistema, é importante destacar que a vinculação orçamentária das receitas dos governos
para o financiamento da educação e a fixação de um parâmetro – o Custo Aluno
Qualidade – é, sem dúvida, uma importante conquista da sociedade. Por outro lado, há
que se ressaltar que, em termos percentuais de participação no Produto Interno Bruto
(PIB) nacional, os investimentos alocados não se apresentam suficientes para enfrentar
o quadro de desigualdades pontuado no início dessas reflexões. Ademais, há uma real
dificuldade em fiscalizar o uso desses recursos devido às manobras contábeis feitas por
vários gestores com a complacência dos tribunais de conta das respectivas esferas de
governo. Emerge, como uma das proposições do documento da CONAE, a necessidade
de ampliação do financiamento à educação pública em todos os níveis, sobretudo com
maior participação da União nas etapas e modalidades da educação básica.
As desigualdades assinaladas acima também se manifestam ao nível dos municípios por
conta do comportamento dos territórios diante dos mecanismo da reestruturação
capitalista. À medida que os investimentos produtivos a serem feitos nos municípios
requerem um alto nível de concessão de privilégios ao capital por parte dos poderes
públicos, esses acabam por ter poucos recursos para investir nas demandas sociais, o
que tende a agravar ainda mais a histórica situação de desigualdade presente em nosso
país.
Referências
ALMEIDA E SILVA, Maria do Pilar L. LDB e Plano de Desenvolvimento da
Educação. In: ALVES DE SOUZA, João Valdir (org.). Formação de professores para
a educação básica: dez anos da LDB. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 87 – 96.
BRASIL. CONAE 2010. Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação:
O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação. Brasília: MEC, 2009.
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CARNOY, Martin. A vantagem acadêmica de Cuba: por que seus alunos vão melhor
na escola. São Paulo: Ediouro, 2009.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
PERONI, Vera. Política educacional e papel do Estado: no Brasil dos anos 1990.
São Paulo: Xamã, 2003.
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DIREITO À DIFERENÇA E AÇÕES AFIRMATIVAS:
UMA INTERPELAÇÃO ÀS POLÍTICAS EDUCACIONAIS A PARTIR DA
EDUCAÇÃO INDÍGENA E DO CAMPO
SHIRLEY APARECIDA DE MIRANDA
Professora Adjunta
Faculdade de Educação/UFMG
RESUMO
Esse texto resulta da pesquisa realizada no doutorado em educação, acrescido da
problemática que concerne ao projeto de pesquisa encaminhado ao Departamento de
Administração Escolar (DAE/FaE/UFMG).
A emergência de novos setores na configuração política do cenário brasileiro na década
de 1980 instaurou uma forma de sociabilidade que, pressupondo a emergência de
conflitos, extrapolou o limite dos direitos previamente definidos. Através de uma nova
prática coletiva, os movimentos sociais demonstraram que é no interior da sociedade
que a política se faz. Esse deslocamento do locus da ação política coloca como
problema tratar o direito à educação a partir do direito à diferença. Seria possível um
ângulo de análise da política educacional que ultrapassasse a fronteira da focalização e
ação compensatória para uma configuração no campo das ações afirmativas?
Esse trabalho interroga das políticas de identidade que se entrelaçam com o direito à
educação e as relações, sempre conflitivas, que se adensam a partir desse direito. Para
esse campo de reflexões selecionou-se a política de escola intercultural diferenciada –
educação indígena – e a política de educação do campo. Essas foram destacadas por sua
inserção na institucionalidade das políticas educacionais e pelos desafios que colocam
para a formação de professores e professoras. Ao final, apresenta algumas reflexões
sobre a forma como a instituição escolar é assumida no contexto das lutas sociais dos
povos indígenas e do campo.
Palavras-chave: movimentos sociais, políticas de identidade, ações afirmativas, escola
diferenciada, educação do campo.
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1. MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS DE IDENTIDADE
A emergência de novos setores na configuração política do cenário brasileiro na década
de 1980 instaurou uma forma de sociabilidade que, pressupondo a emergência de
conflitos, extrapolou o limite dos direitos previamente definidos. Através de uma nova
prática coletiva, os movimentos sociais demonstraram que é no interior da sociedade
que a política se faz, e quebraram a representação que via no Estado o início, o meio e o
fim da política. Esse deslocamento do locus da ação política coloca como problema a
compreensão das relações entre política e educação no interior da rede de conflitos e
antagonismos produzidos pelas experiências desencadeadas por movimentos sociais.
As análises sobre a ascendência dos movimentos sociais no Brasil no contexto dos anos
80 apreendem sua capacidade de desencadear ressignificações nas relações sociais do
país, revelando definições alternativas de política.
Assinalam a consciência da
subalternidade dos grupos chamados “minoritários” e a elaboração de mecanismos de
contraposição a essa situação como características definidoras desses movimentos. As
lutas contínuas contra projetos dominantes expandiram as fronteiras da política
institucional e denotaram a construção da democracia como processo descontínuo no
qual se redefiniram as noções convencionais de cidadania e participação. No que se
refere à cidadania destaca-se o caráter de “estratégia política”, expressão e resultado de
“um conjunto de interesses, desejos e aspirações de uma parte significativa da
sociedade”, como indica DAGNINO (1994, p. 103). Nessa conjugação estabelecida
pelos movimentos sociais, a passagem do reconhecimento da carência para a
formulação da reivindicação é mediada pela afirmação de um direito.
A política de destituição de direitos desencadeada nos anos 90, juntamente com os
efeitos perversos da reestruturação produtiva, agravada pela tradição excludente de
nosso país, levam à indagação acerca do legado da ação dos movimentos sociais
constituídos nos anos 80. Sobre esse aspecto, PAOLI e TELLES (2000) retomam a
proposta de sociabilidade instaurada, pautada pela afirmação, sempre conflitiva, de
direitos.
Argumentam que a avaliação do alcance das lutas empreendidas pelos
movimentos sociais não deve se restringir ao atendimento de demandas; precisa
considerar os discursos e práticas desestabilizados. Enfatizando o enraizamento da
cidadania nas malhas da sociabilidade cotidiana, as autoras concluem que a
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sedimentação das formas atuais de exclusão social “estão a depender de um espaço de
conflitos já públicos, mais que de padrões autoritários” (PAOLI e TELLES, 2000, p.
105).
Outras análises constatam que os movimentos sociais contemporâneos contribuíram
para o esgotamento da concepção do sujeito moderno pelo abalo das identidades
coletivas unívocas. De acordo com HALL (1998), cada movimento invoca a identidade
social de seus sustentadores, constituindo o que veio a ser conhecido como a política de
identidade. Essa forma política confere visibilidade às várias modalidades de opressão
explicitando como afetam os diferentes grupos. A identidade desloca-se de atributos
universais fixos para a construção obtida por processos estruturais de diferenciação,
desafiando assim as normas reguladoras da sociedade.
Essa análise destitui tanto o saber como verdade quanto o sujeito de sua univocidade e
constitui o que Judith BUTLER (1998, p. 14) trata como abalo da premissa política
moderna, referenciada numa definição de sujeito estável e presumível. Essa destituição
é especialmente importante na medida em que denuncia que as bases da política –
universalidade, igualdade, direitos – foram construídas mediante silenciamentos e
exclusões raciais e de gênero. Recusar a pressuposição de uma noção estável de sujeito,
como destaca Butler (1998, p. 15), significa um modo de interrogar sobre sua
construção ao invés de tomá-la como dado inexorável. No registro da filosofia da
diferença, a identidade é contingente e produto de diferentes componentes que se
interconectam: discursos políticos e culturais, sistemas de representação e histórias
particulares.
Seria possível tratar o problema do direito à educação focalizando as políticas
educacionais a partir desse entrecruzamento de relações de saber-poder e direito à
diferença? Em que medida uma concepção de poder que não restringe a política à ação
do Estado e uma concepção de saber que não se circunscreve às bases de cientificidade
instauradas na modernidade podem alimentar análises de políticas educacionais? Em
que medida a articulação saber-poder e movimentos sociais colabora para a emergência
de novas possibilidades políticas no campo da educação?
2. DIREITO À DIFERENÇA E AÇÕES AFIRMATIVAS
As análises sobre políticas educacionais, em geral, remetem-se ao arcabouço jurídico
considerando os efeitos e limites da legislação. Nesse quadro, os debates acerca do
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acesso aos distintos níveis e modalidades de ensino problematizam o financiamento da
educação e o regime de colaboração entre os entes federativos.
Atualmente, esse
quadro envolve as medidas desencadeadas na gestão governamental por meio do Pano
de Desenvolvimento da Educação (PDE), pautado pelo Compromisso Todos pela
Educação, que redireciona a aplicação de recursos voluntários da União a partir da
dinâmica instaurada pela composição do Índice de Desenvolvimento da Educação
(IDEB).
Nesse escopo analítico mais persistente no âmbito das políticas educacionais, as
políticas de inclusão demarcam o caráter ambíguo da legislação, no qual diferentes
vozes repercutem compondo uma “polifonia díssona” (CURY, 1997, p. 95). Nesse
enquadre considera-se que demandas dos movimentos sociais teriam sido acolhidas pela
política educacional a partir de processos de luta de grupos específicos e sua
participação em fóruns de debate da sociedade civil.
Desse ponto de vista, a legislação pertinente – Parecer CNE-CBE Nº 14/99, sobre a
educação indígena; os artigos da LDBEN 9394/96 referidos ao tema; as Diretrizes sobre
a Educação do Campo; a Lei 10639/04 que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino de
História da África e Cultura Afrobrasileira no ensino fundamental, acrescida da Lei
11645/08 que introduz a História e Cultura dos Povos Indígenas; bem como a legislação
que trata da educação especial e educação de jovens e adultos (EJA) – comporia o
conjunto de políticas inclusivas no cerne da política educacional.
Por políticas
inclusivas entendem-se “as estratégias voltadas para a universalização de direitos civis,
políticos e sociais pela presença interventora do Estado, objetivando aproximar os
valores formais dos valores reais em situações de desigualdade (CURY, 2005, p. 15).
Seria possível rearticular elementos para análise das políticas educacionais? Seria
possível ultrapassar a dinâmica da focalização em grupos marcados pela diferença
transposta em vulnerabilidade?
Note-se que no cerne da análise de políticas de inclusão situa-se a vulnerabilidade dos
grupos. As políticas de focalização insistem no direito como carência de suplementação
para se atingir um grau de universalidade. Nessa perspectiva, a diferença persiste como
um atributo factual diante do pressuposto de uma igualdade essencial. O dilema
igualdade/diferença não é recente na filosofia política e nos movimentos sociais. Se nos
considerarmos a instauração da república a partir da Revolução Francesa (1789) para
nos situarmos numa temporalidade mais próxima, observaremos o enigma
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igualdade/diferença nas proposições feministas pré-sufrágio. A análise de Joan SCOTT
(2002) é esclarecedora a esse respeito. Sua reflexão acerca das dificuldades em se
estender às mulheres as premissas republicanas – liberdade, igualdade e direitos
políticos – indica que foi no cerne dos discursos do individualismo liberal que as
feministas denunciaram a precariedade do universalismo republicano. Os paradoxos da
ação feminista – constituir-se no interior de uma política democrática que igualou
individualismo e masculinidade; a necessidade de a um só tempo aceitar e recusar a
diferença sexual – não são estratégias de oposição, mas elementos fundantes do próprio
feminismo ocidental moderno. E, para Scott (2002, p. 277) é aí que se deve encontrar a
história desse movimento político e epistêmico que abalou a construção do
individualismo republicano fundado numa unidade irredutível e universal.
A despeito da ação do feminismo, dos movimentos negro, indígena, LGBT e outros, a
consideração da diferença como acidente que encobre uma essência humana universal
persiste e pode ser observada em adágios do tipo: “eu sou da raça humana”, negando as
diferenças etnicorraciais e o próprio racismo; “não me importo com a opção sexual das
pessoas, desde que fiquem distantes de mim”, confinando a diferença ao silenciamento e
encobrindo a homofobia. Essa lista poderia se estender por páginas, o que corrobora que
suplementar a diferença para que atinja um universal – a humanidade – como uma
substância encoberta consegue, no máximo, tratá-la na perspectiva da tolerância.
Tolera-se a diferença desde que se mantenha distante; desde que reconheça sua
inferioridade carente de auxílio; desde que não desestabilize a desigualdade
naturalizada.
Seria possível estabelecer um outro ângulo de análise? Qual seria o ponto de partida, o
pressuposto de uma outra leitura possível?
Análises do campo do multiculturalismo, dos estudos pós-coloniais, filosofia da
diferença, pós-estruturalismo compartilham o pressuposto do esgotamento da concepção
de sujeito genérico como referente para a política. Indicam que no cerne da concepção
iluminista de direitos estava a exclusão daqueles e daquelas que não participavam do
ideal de uma igualdade formal e abstrata. A destituição desse referente indica que o
modelo humano genérico foi construído a partir de exclusões e silenciamentos – de
gênero, raça, etnias.
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A política persiste como o campo do conflito no qual localizamos as dificuldades em se
estender a todos as premissas republicanas – liberdade, igualdade e direitos políticos.
Podemos considerar que a igualdade de direitos é uma abstração construída mediante
exclusões raciais e de gênero. Basta citar a luta das mulheres para o reconhecimento
civil e político que lhes garantia o direito ao voto e a ocupar cargos de poder.
Consideremos também a desumanização dos povos no processo de colonização
desencadeado pela Europa no século XIV.
Naquele momento, ocorreram debates
acirrados nos meios político, acadêmico e científico para se definir o reconhecimento
das populações indígenas: poderiam ser considerados seres humanos? Teriam alma? A
conclusão de que os povos indígenas poderiam ser considerados seres humanos desde
que sua alma fosse libertada pela conversão religiosa foi o alicerce para a catequese, a
destruição da cultura e da identidade, e por fim a dizimação das nações que resistiram
ao domínio do colonizador. No caso da população africana a situação foi mais grave:
considerados como coisa, ou seja, inumanos, justificou-se a escravidão, o abuso, a
morte. A história da humanidade carrega vários arquétipos que nos levam a considerar
que, sob a igualdade abstrata, operou-se um processo de diferenciação que produziu o
mais e o menos humano – homens e mulheres; colonizadores e colonizados; europeus e
grupos étnicos –, o inumano – populações africanas – e o humanamente impensável –
homossexuais, pessoas com deficiência, pessoas acometidas por transtorno mental.
Ao adotar o prisma histórico cabe realçar a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948) como um dos marcos da tentativa de concretizar a noção de igualdade. Como
ressalta Flávia PIOVESAN (2005, p. 45), a partir da Declaração desencadeou-se um
processo de universalização dos direitos que gerou a formação de um sistema
internacional de proteção desses direitos. Esse sistema é integrado por tratados que
“invocam o consenso internacional acerca de temas centrais dos direitos humanos,
fixando parâmetros protetivos mínimos”. Cabe citar a Convenção contra a tortura, que
conta com 132 Estados-parte; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, que conta com 167 Estados-parte; a Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que conta com 170
Estados-parte, e a Convenção sobre os Direitos da Criança, que apresenta ampla adesão,
com 191 Estados-parte. Contudo, é importante sinalizar que o cumprimento desses e de
outros acordos entre os países fica a depender dos instrumentos da Organização das
Nações Unidas – ONU – nem sempre eficazes em situações de conflito.
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Conforme análise de PIOVESAN (2005, p. 46), a Declaração Universal de 1948 e as
medidas decorrentes compõem uma primeira fase de proteção dos direitos humanos,
“marcada pela tônica da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no
nazismo havia orientado o extermínio) com base na igualdade formal”. Entretanto,
essas medidas tornam-se insuficientes quando não especificam o sujeito de direito,
reconhecendo particularidades e vulnerabilidades de uma condição social produzida
historicamente. É nesse campo que se coloca o direito à diferença como condição de
acesso à igualdade de direitos. Na expressão de Boaventura Souza SANTOS (2003),
... temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos
inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade
nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça
as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou
reproduza as desigualdades. (SANTOS, 2003, p. 56),
Uma primeira forma de reconhecimento da diferença é a erradicação da discriminação
ilícita. Nesse caso é preciso considerar a forma direta ou intencional de discriminação,
ou seja, uma conduta da qual se depreende facilmente a intenção discriminatória, o dolo,
a vontade de violar o direito de alguém. No Brasil essa forma é extremamente comum e
pode ser observada desde as blagues, piadas e ditos populares que desqualificam até as
formas de abordagem, tratamento e exclusão explícita ou velada.
Integram esse
conjunto uma lista imensa de atitudes, como as formas de abordagem policial a pessoas
negras; a exigência de “boa aparência” como critério de acesso ao emprego a esconder a
preferência por pessoas brancas; a escolha das crianças que participarão dos números
artísticos das festas escolares, em geral brancas; a estigmatização das pessoas.
A neutralidade e a indiferença do aparato estatal com as vítimas de discriminação
resultam em outra forma de discriminação ilícita. Nesse caso, não se oferece um
tratamento diferenciado em razão de peculiaridades étnicas, culturais e sociais, o que
pode comprometer o acesso a direitos. Transcrevemos a descrição de CRUZ (2009)
sobre esse aspecto:
Trabalhando, por quase 6 anos como Procurador Regional dos
Direitos do Cidadão, podemos exemplificar esta forma de
discriminação por meio de um caso concreto com o qual nos
deparamos.
Na distribuição de cestas básicas pelo programa federal “Comunidade
Solidária”, através de convênio entre a CONAB e a FUNAI, o
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Conselho Missionário Indigenista, organização não governamental da
Igreja Católica, noticiou que a remessa do feijão para a tribo dos
Maxacalis, situada na nordeste mineiro, causava mais mal do que
bem. Isso porque, em razão de hábitos alimentares peculiares, esses
índios não aceitavam o feijão na dieta alimentar e, ao invés de comêlo ou plantá-lo, a mercadoria era empregada como meio de escambo
por bebidas alcoólicas, alimentando um vício secular que aflige aquela
população. Nossos apelos e recomendações, ao invés de surtirem
efeito positivo, sensibilizando o Governo Federal, quase retiraram a
referida comunidade indígena do programa, que, naquela ocasião, era
a única alternativa de sobrevivência de um povo, circunscrito a pouco
mais de 4.000 (quatro mil) hectares, numa região de seca constante.
(CRUZ, 2009, p. 32-33)
Esse fato evidencia os limites das políticas universalistas na garantia do direito de todos.
Que costumes podem ser reconhecidos? Como garantir que as diferença culturais,
como nesse caso, não resultem em formas de exclusão?
É esse o campo de discussão e intervenção das políticas de ações afirmativas, que
podem ser entendidas como medidas implementadas na promoção/integração de
indivíduos e grupos sociais tradicionalmente discriminados em função de sua origem,
raça, sexo, opção sexual, idade, religião, patogenia física/psicológica. Conforme ressalta
CRUZ (2009, p. 63), as ações afirmativas não devem ser vistas como “esmolas” ou
“clientelismo”, mas como um elemento essencial à conformação do Estado
Democrático de Direito. No Brasil as ações afirmativas ficaram conhecidas pela política
de cotas, ou reserva de vagas, o que restringe seu alcance aos grupos tradicionalmente
discriminados, vulneráveis do ponto de vista do acesso a bens sociais e seu caráter à
reparação e compensação.
É importante demarcar que as ações afirmativas não se confundem exclusivamente com
a política de cotas. Podemos classificar como ações afirmativas medidas estatais e
privadas voltadas para a integração socioeconômica dos grupos discriminados,
mantendo sua identidade sociocultural.
As ações afirmativas estão pautadas pelo
reconhecimento da identidade e o pertencimento cultural dos grupos sociais, o que
significa partir das demandas que apresentam reconhecendo-as como direito e
sobretudo, instaurar a correção de processos que não se reverteriam sem o
reconhecimento de uma história de dominação criada e mantida por uma estrutura
social. Daí, uma definição de ações afirmativas que precisa ser considerada refere-se às
ações estabelecidas em diversos campos – na educação, na saúde, no mercado de
trabalho, nos cargos políticos, entre outros – com vistas a sinalizar os setores onde a
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discriminação se faz mais evidente e onde é constatado um quadro de desigualdade e de
exclusão. Conforme GOMES e MUNANGA (2004)
A sua implementação carrega uma intenção explícita de mudança nas
relações sociais, nos lugares ocupados pelos sujeitos que vivem
processos de discriminação no interior da sociedade, na educação e na
formação de quadros intelectuais e políticos. As ações afirmativas
implicam, também, uma mudança de postura, de concepção e de
estratégia. (GOMES e MUNANGA, 2004, p. 186).
Se tomarmos esse ângulo de análise para a política educacional poderíamos interrogar
em que medida pode ultrapassar a fronteira da focalização e ação compensatória. Seria
possível uma configuração de ação afirmativa no campo das políticas educacionais? Por
esse ângulo seria preciso interrogar o contexto de lutas mais amplas que se entrelaçam
com o direito à educação e as relações, sempre conflitivas, que se adensam a partir
desse direito. Para esse campo de reflexões seleciono a política de escola intercultural
diferenciada – educação indígena – e a política de educação do campo. Destaco-as por
sua inserção na institucionalidade das políticas educacionais e pelos desafios que
colocam para a formação de professores e professoras.
3. POLITICA DE EDUCAÇÃO INDÍGENA E EDUCAÇÃO DO CAMPO:
DESAFIOS DO DIREITO À DIFERENÇA
No caso da política de educação indígena LUCIANO–BANIWA (2006) adverte que a
conquista da escola diferenciada é parte de um movimento de superação da autonegação
identitária instaurada por séculos de repressão colonial que produziu o silenciamento e a
negação de identidades por meio de diversos estratagemas, entre eles, a escolarização.
Após o processo de dizimação, as relações entre os povos indígenas e o Estado
constituíram-se fortemente marcadas pelo indigenismo governamental tutelar, cujo
marco foi a criação da FUNAI em 1967. Esse cenário sofreu alterações a partir da ação
de ONGs, pastorais e outras entidades ligadas aos movimentos sociais, que durante o
final dos anos de 1970 promoveram o encontro de povos indígenas de diferentes etnias.
Esse processo denominado indigenismo não-governamental, configurou uma agenda de
lutas: terra, saúde, educação.
Deriva desse período o fenômeno da etnogênese:
populações dispersas e silenciadas passam a reclamar territorialidade.
Deriva daí
também o que lideranças indígenas caracterizam de movimento indígena: conjunto de
estratégias e ações que comunidades e organizações indígenas desenvolvem em defesa
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de seus direitos. É desse processo que emerge uma nova fase de relação dos povos
indígenas com o Estado, pautada pela tentativa de superação do princípio da tutela pelo
Estado e que tem como marco a transferência de ações centralizadas na FUNAI – entre
elas a educação, que passa ao MEC.
É nesse âmbito que a escola indígena diferenciada ganha sentido. A escola assume o
lugar de apropriação estratégica de uma instituição da sociedade “branca”, lembrando
aqui que a designação de brancos para as populações indígenas refere-se a todas as
pessoas não-índias, incluindo afrodescendentes. A escola aparece como uma
necessidade pós-contato. É vista como necessária para promover o desenvolvimento
social e político, desencadear novas alternativas de sobrevivência e reforçar a identidade
étnico-cultural. Assim, mantém-se as formas tradicionais de transmissão da cultura ao
lado da inserção no interior da cultura indígena de um aparato que não nasceu de suas
tradições.
No caso da educação do campo, poderíamos iniciar a discussão interrogando: Por que
educação do campo e não educação rural? Essa distinção propõe o reconhecimento do
campo como espaço de relações singulares e conflitivas e não como lugar do atraso ao
desenvolvimento do país. O campo congrega o Movimento Sem Terra – MST –,
movimentos sindicais de trabalhadores rurais, assalariados e da agricultura familiar,
movimentos dos atingidos por barragem, indígenas, povos da floresta e do serrado,
quilombolas, entre outros. O campo é diverso e compreende-lo exige superar análises
reducionistas dessa diversidade. A legislação foi forçada a assumir a diversidade que
compõe o campo no Brasil. De que forma seria possível às políticas incorporar o fazer e
o pensar da diversidade dos povos do campo? Uma primeira forma seria considerar o
campo como território.
Para os movimentos sociais do campo, o território é mais do que o espaço geográfico.
É um espaço político por excelência, um campo de ação e de poder onde se realizam
determinadas relações sociais que caracterizam identidades e a permanência na terra.
Nesse sentido, “terra é mais do que terra”, adágio formulado na ação do MST. É um
conjunto de relações produtivas, culturais, modo de vida, projeto de desenvolvimento
econômico, social, cultural e ambiental.
É nesse âmbito que se insere a escola.
Poderíamos dizer que, desse ponto de vista, escola é mais do que escola: é território de
conhecimentos e projetos.
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Nesse sentido seria possível aproximar a educação indígena da educação do campo.
Figurando no interior da legislação educacional produzem desestabilizações que
interpelam a própria política, dentre as quais podemos considerar a necessidade de
formação de docentes para atuar nas escolas do campo ou escolas diferenciadas.
As experiências de implantação das escolas indígenas diferenciadas e escolas do campo
resultam da luta por políticas públicas que garantam a universalização do direito à
educação. Nesse caso, acesso e permanência impulsionaram experiências de formação
de professores/as indígenas e do campo caracterizados pela garantia de participação e
autoria das populações indígenas e movimentos sociais do campo. As propostas de
formação docente elaboradas pautam-se por uma análise conjuntural e estratégica da
realidade dos territórios que perpassa dos currículos à organização de espaços e tempos
de formação. Guardadas as especificidades de cada proposta, ambas tem como ponto de
contato a origem em projetos alternativos gerados no âmbito de movimentos sociais e
sua difusão “como paradigmas a serem testados em novos contextos, transformando
muitas vezes em balizadores de políticas públicas” (Lúcia H A LEITE, 2008, P. 40).
Lembra-nos Miguel ARROYO (2007, p. 165) que idênticas pressões por cursos
específicos de formação docente vêm de outros movimentos, como o movimento negro
que formula proposições para tratar da história da África e cultura e memória dos
afrodescendentes.
Outro pólo desestabilizador a interpelar as políticas educacionais refere-se a
organização singular da escola, por vezes em choque com as proposições do sistema de
ensino. Em muitos casos as escolas não se organizam num espaço físico fixo dentro do
território e podem até ser itinerantes.
Além disso, os questionamentos à salas
multiseriadas são superados pela composição de outras proposições e não pela reedição
da divisão de séries. Conforme destaca ARROYO (2006, P. 113), “as escolas do campo
não são multiseriadas. São multiidades”. Com essa formulação o autor se refere às
temporalidades culturais identitárias que engendram as formas de organização de
agrupamentos de estudantes. Parte-se da infância e adolescência inseridas na produção
da agricultura familiar, dos assentamentos, dos acampamentos, ou outros processos de
produção para daí articular a organização dos tempo e espaços de aprender. A lógica
temporal não é a cidade.
É importante ressaltar também que na ação dos movimentos do campo e indígena, a
política educacional não se reduz à escola. Articula-se com outras políticas. Ao que
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parece, a política educacional entrelaça-se com a conquista da terra, a produção e
reprodução da existência e a reconfiguração de relações sociais para a emergência de
um outro projeto de desenvolvimento.
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