RESENHAS
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Um sintoma sem Outro
A perversão comum: viver juntos sem outro.
Lebrun, Jean-Pierre, Rio de Janeiro: Companhia de Freud editora, 2008. (355 pgs.)
Cynthia De Paoli
Psicanalista, Mestre Teoria Psicanalítica UFRJ, membro psicanalista da SPID.
Já no titulo, no original, La perversion ordinaire: vivre ensemble sans autrui,
Jean-Pierre Lebrun aponta a questão central de seu livro: a existência de uma forma
perversa sutil, ordinária porque comum, banal, integrada ao grupo social.
Perversão ordinária é, a princípio, uma proposição contraditória, pois o atributo
“ordinário” contraria o sentido marginal do conceito cunhado por Freud.
Na teoria freudiana, a perversão é entendida como uma posição subjetiva que
desafia a lei paterna, numa afirmação da potência do falo, da qual o sujeito forja ser o
único detentor. A estrutura perversa caminha em sentido contrário à moral civilizada,
adotando uma posição de escárnio em relação aos outros mortais respeitadores das
normas sociais.
A perversão, no sentido tradicional freudiano, tem na transgressão à lei sua maior
característica. O perverso constitui uma ameaça ao grupo organizado, por sua condição
marginal ao pacto social.
Lacan, em suas contribuições ao complexo de Édipo freudiano, viria a dizer que a
negação da percepção da castração materna manteria o perverso preso ao falo imaginário,
uma vez que este não passa à ordem significante. Ao final de seu ensino, Lacan retoma a
problemática da perversão de forma radical, numa reviravolta que se inicia com a
multiplicação das modalidades do significante Nome-do-pai.
Essa alteração teórica amplia o conceito, permitindo que o significante Nome-dopai não fique exclusivamente atrelado à função paterna, portando outras faces. Essa ideia
será desenvolvida na chamada clínica borromeana, em que Lacan virá dizer que o
sintoma faz função do significante Nome-do-pai.
Toda essa digressão pretende unicamente alcançar a assertiva última de Lacan
sobre o tema: ele sustenta que todo sujeito seria père-versé, ou seja, que haveria um
ordenador subjetivo particular a cada um. A homofonia de père-version com perversion
não implica em uma identificação conceitual, pois o falo, significante do real da falta, se
mantém como diferencial.
Jean-Pierre Lebrun desdobra a construção de perversão ordinária em seu livro
ancorado em observações do campo cultural, político e social contemporâneo. Ele
ressalta a debilidade do corpo social a partir da crise de legitimidade que sofrem as
figuras de autoridade, tanto na dimensão microcósmica da família quanto na dimensão
macrocósmica do Estado.
Ele nos adverte sobre a ausência de hierarquia entre as gerações, conclusão
decorrente das posições tolerantes e negociadoras dos pais que não conseguem legislar
sobre seus filhos por temerem perder seu amor.
Lebrun sustenta que, o que se configura para ele como uma crise de legitimidade
não é normalmente percebido desta forma, pois o desrespeito à moral e à lei (ou a seus
representantes) é tão frequente e disseminado que parece absorvido pela cultura.
http://www.uva.br/trivium/edicao2/resenhas/1-um-sintoma-sem-outro.pdf
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Para Lebrun, o progresso da ciência determinou um homem materialista e cético,
que, buscando a verdade, nega a transcendência. Paralelamente, o desenvolvimento
tecnológico e a velocidade da informação impulsionariam e facilitariam o acesso aos
fundamentos científicos, determinando uma imposição maniqueísta sobre o que é a
verdade ou crendice.
Por transcendência, Lebrun entende todas as formas, não só o valor do mito ou a
crença na existência de Deus, mas até o reconhecimento de um saber a mais em alguém.
Negar a transcendência equivale a dizer que não existe exceção, é dizer que não
existe algo que nos afete e seja verdadeiro que não seja passível de demonstração. É dizer
que somos todos equiparáveis ou iguais, implicando em uma desvalorização da fala e do
que é próprio ao homem, fazendo com que tanto um expert em determinado assunto,
quanto um novato, tenham o mesmo peso em suas opiniões. Ou seja, qualquer discurso se
legitima por si só, sem nenhum endereçamento ao Outro.
Lebrun denuncia a presença cada vez maior de um movimento de grupo que reage
fortemente frente a qualquer reconhecimento diferenciado de valor, não outorgando
especial deferência e credibilidade a alguém. Se alguma opinião divergir das demais,
ainda que se trate de um especialista, uma reação de oposição é deflagrada, apoiada em
rótulos pré-fabricados de autoritarismo, arbitrariedade e arrogância.
A declaração dos direitos do homem serve de sustentáculo desta prática perversa,
em que destituir de valor a palavra alheia é manter o poder, inclusive o de determinar,
junto com seus pares, qual é a verdade. Assim, a diluição de saber é também destituição
do poder. Constitui-se, assim, um outro tipo de totalitarismo.
O pluralismo de opiniões, que determina pontos de vista diversos nos integrantes
de um grupo, e que deveria promover o enriquecimento mútuo, multiplicando as
possibilidades de se pensar um tema, serve mais à função de impedimento, paralisando
qualquer ação organizada, determinando ao sujeito um sentimento de impotência
decorrente das dificuldades impingidas na continuação de um programa de trabalho.
O quadro clínico proposto por Lebrun - a perversão ordinária – constitui uma
forma comum, usual e aceita pelo grupo de manutenção do mecanismo da estrutura
perversa: recusa do falo como significante da falta, negação da impossibilidade da relação
sexual.
O sujeito submetido ao inconsciente, marcado pela perda de gozo advinda da
inserção no campo da linguagem, cede lugar ao sujeito a quem nada falta, empobrecido
em sua atividade subjetiva, onde não existem questões íntimas, posturas interrogativas
frente ao desejo do Outro, pois que não existe Outro do desejo.
Se não podemos considerar essa forma de operar no século XXI um avanço nas
relações humanas, menos ainda podemos dizer que seja um retorno a um estado anterior:
assim seria se as organizações primitivas não tivessem na religiosidade ou no mito o pilar
do grupo social.
Desse saber, a Psicanálise fez uso, pois Freud, em “Totem e tabu” (1912),
ressaltou a importância do mito na constituição do laço social, em “Psicologia das massas
e análise do eu” (1921), reforçou a importância do líder na coesão do grupo, do
estabelecimento da lei ao sentimento fraterno.
Se o progresso da ciência determinou a morte de Deus, não podemos dizer que
possamos prescindir da transcendência enquanto exceção necessária, um inatingível e
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externo ao significante, que, enquanto real, nos atravessa e nos causa enquanto ser
falante.
Anunciar a morte de Deus, expor o artifício como uma fraude, apontar a
ingenuidade do mito, concluindo, negar a transcendência... estas posições geram
consequências tais como a dissolução dos laços e o fim do pacto social, possibilitando o
retorno à horda enlouquecida.
“Viver juntos sem outro” - esse é o subtítulo na edição brasileira. O inconsciente,
enquanto marca da exterioridade e condição da subjetividade, resta excluído do discurso
contemporâneo – é o que conclui Lebrun.
A perversão ordinária seria muito mais danosa que a perversão no sentido
tradicional, pois tudo banaliza, não haver exceção é a regra, determinando o fim da
hierarquia e da tradição.
Lebrun nos deixa em suspenso frente à questão: haverá uma alternativa que
permita a subsistência do grupo civilizado ou voltaremos aos bandos e à barbárie?
Recebido em: 06 de março de 2010.
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