UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO MARCELLO FREIRE ALVES DE SOUZA FILHO DÉBITO CONJUGAL NO CASAMENTO: ASPECTOS HISTÓRICOS, DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS NATAL/ RN 2014 MARCELLO FREIRE ALVES DE SOUZA FILHO DÉBITO CONJUGAL NO CASAMENTO: ASPECTOS HISTÓRICOS, DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS Monografia apresentada junto ao Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Bacharel. Orientador: Prof. Ms. Samuel Max Gabbay. NATAL/ RN 2014 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Souza Filho, Marcello Freire Alves de. Débito conjugal no casamento: aspectos históricos, doutrinários e jurisprudenciais/ Marcello Freire Alves de Souza Filho. - Natal, RN, 2014. 59f. Orientador: Prof. M. Sc. Samuel Max Gabbay. Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de Direito. 1. Casamento – Aspectos históricos - Monografia. 2. Débito conjugal Monografia. 3. Direito de família – Monografia. I. Gabbay, Samuel Max. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 347.62 Aos meus amados pais Marcello e Ana Maria, pelas diárias e valorosas lições sobre a vida e pelo amor incondicional depositado em mim. À minha pequena irmã Beatriz, que me preenche de felicidade com a inocência do seu sorriso. RESUMO O dever de se relacionar sexualmente entre consortes, chamado também de débito conjugal, sempre esteve atrelado ao casamento. Historicamente, a ideia desse dever surge como consequência do instinto e da necessidade social de reprodução, aspectos típicos do matrimônio das sociedades clássicas, que culmina, mais tarde, em sua tutela jurídica pelo Direito Canônico medieval na forma do jus in corpus. A Igreja Católica, mesmo perdendo poder em virtude da Reforma Protestante e da criação dos Estados Absolutos, conseguiu influenciar diversos ordenamentos jurídicos, dentre eles o português e o brasileiro. Essa influência trouxe para o Direito pátrio o débito conjugal que, por sua vez, ainda gera discussões doutrinárias sobre a sua existência e compatibilidade com o atual Direito de Família brasileiro. Além disso, motivou debates sobre quais seriam suas consequências jurídicas para quando fosse satisfeito ou não. Essas consequências provocaram o ajuizamento de ações judiciais de anulação de casamento, divórcio ou até penais por situações tanto de ofensa ao debitum conjugale, como no caso de impotência sexual de um dos cônjuges e recusa voluntaria às práticas sexuais, quanto por satisfação forçada do dever sexual mediante violência ou grave ameaça, como, por exemplo, na hipótese de estupro conjugal. Palavras-chave: sexo; débito conjugal; casamento; doutrina; jurisprudência. ABSTRACT The duty of sexual relations between consorts, also called conjugal debt, has always been tied to marriage. Historically, the idea of that duty arises as result of instinct and social necessity of reproduction, typical aspects of marriage of Classical Societies, culminating later in his legal guardianship by medieval Canon Law in the form of jus in corpus. The Catholic Church, even losing power due to the Protestant Reformation and the establishment of Absolute States, managed to influence various legal systems, among them the Portuguese and Brazilian. This influence has brought to the paternal Law the conjugal debt which, in your turn, also generates doctrinal discussions about its existence and compatibility with the current brazilian Family Law. In addition, motivated debates on what would their legal consequences for when were satisfied or not. These consequences caused the filing of legal actions for annulment of marriage, divorce or even criminal ones both for situations of offense to debitum conjugale, as in the case of sexual impotence of one of the spouses and volunteered refusal to sexual practices, as well as forced satisfaction sexual duty through violence or serious threat, such as, for example, in the case of marital rape. Keywords: sex; conjugal debt; marriage; doctrine; jurisprudence. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 08 2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DO DEVER SEXUAL ................................................. 11 2.1 SOCIEDADES PRIMITIVAS E ANTIGAS CIVILIZAÇÕES .......................... 11 2.1.1 Primeiras Sociedades Humanas ........................................................ 11 2.1.2 Antigas Civilizações e o Surgimento do Casamento ...........................12 2.2 FAMÍLIA ROMANA ...................................................................................... 15 2.3 O DIREITO CANÔNICO E A CONSOLIDAÇÃO DO DÉBITO CONJUGAL .19 2.3.1 A Secularização Do Casamento ......................................................... 26 2.4 O CASAMENTO NO DIREITO FAMILIAL BRASILEIRO ............................. 28 3 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE O DÉBITO CONJUGAL ......... 35 3.1 CORRENTE TRADICIONAL ........................................................................ 35 3.1.1 O Débito Conjugal Como Dever Legal ............................................... 35 3.1.2 Exceções e Limites Do Débito Conjugal ............................................. 37 3.2 CORRENTE MODERNA .............................................................................. 39 4 REPERCUSSÕES JURISPRUDENCIAIS DO DEBITUM CONJUGALE ............. 42 4.1 IMPOTÊNCIA SEXUAL ................................................................................ 42 4.2 RECUSA DA PRÁTICA SEXUAL ENTRE CÔNJUGES .............................. 45 4.3 ESTUPRO CONJUGAL ............................................................................... 48 5 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 53 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 56 8 1 INTRODUÇÃO A sociedade tem como principal estrutura básica a entidade familiar1. É por meio da família que os seres humanos recebem os mais relevantes valores e ensinamentos morais e sociais que necessitam para que possam formar o seu caráter, viver dignamente e contribuir para o desenvolvimento da coletividade. É no ambiente familiar também onde ocorre a maior centralização e reciprocidade de amor, carinho e respeito entre indivíduos, sentimentos esses essenciais para o bem estar das pessoas no meio social e para a evolução da própria sociedade como um todo. A partir desta importância social da família e da sua constante transformação ao longo do tempo, característica inerente a qualquer instituto social, o seu estudo torna-se cada vez mais preciso para que tanto possa ser compreendida quanto aperfeiçoada nos seus mais diversos aspectos. Uma das ciências que se preocupa em estudar o instituto da família é a ciência jurídica, que “serve de instrumento de harmonização das relações sociais, limitando as liberdades e tutelando os direitos e garantias fundamentais e os interesses coletivos” (ELALI, 2010, p. 38). O Direito, assim como procede para todos os fatos sociais relevantes que possam importar conflitos sociais, terá como função a regulação normativa da entidade familiar, com a finalidade de sempre fazer prevalecer a ética, os bons costumes e sentimentos de afeto nas relações intrafamiliares. Para que possa desempenhar bem essa função, o Direito utiliza-se de formas sociais de organizar a família, tal como o instituto do casamento ou matrimônio. Esse instituto nasce com o objetivo de tornar a família legítima, disciplinando as relações entre duas pessoas (cônjuges ou consortes), que unidas por laços amorosos, decidem se desvincular de sua família original para constituir uma nova família. A disciplina atribuída pelo casamento origina uma série de formalidades, como as presentes no seu registro e celebração, e alguns direitos e deveres para aqueles que desejam se casar. Entre estes direitos e obrigações, há um, bem peculiar, denominado de débito conjugal. Artigo 226 da Constituição Federal de 1988: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado .htm 1 9 Esse debitum é tido como o direito-dever de mútua prestação sexual entre os cônjuges na constância do matrimônio, querendo, portanto, afirmar a ideia de que as relações sexuais fazem parte da vida em comum do casal, tendo cada nubente a obrigação de satisfazê-las e o direito de cobra-las de seu par. Observa-se que ele é um elemento intrínseco e indissociável ao instituto do casamento, independente do gênero3 dos consortes ou da forma de celebração, e, embora não seja um dos deveres mais mencionados pela doutrina especializada no Direito familial, seu estudo é bastante importante para a compreensão total do casamento e, consequentemente, da família. Destacar a relevância do débito conjugal na família, ressaltando sua formação histórica e sua influência no casamento, e apresentar as visões e controvérsias atuais sobre dever para o Direito familial brasileiro, tanto pela ótica doutrinária quanto pela jurisprudencial, são os objetivos deste trabalho. Para atingir esses objetivos, a presente monografia tratará, primeiramente, em analisar, pelo viés histórico, o processo de constituição dos institutos do casamento e do debitum conjugale desde as sociedades primitivas até a atualidade do Direito brasileiro, afim de que se perceba como a ideia de prestação sexual entre os cônjuges foi construída socialmente com o passar dos tempos e de que forma ela tornou-se relacionada ao matrimônio. Somente com essa percepção, pode-se entender as origens do direito-dever do débito conjugal, a delineação histórica de seu conceito e como e em que medida a sua influência se apresentou no Direito familial pátrio. Após, ver-se-á como o dever sexual é tratado pela doutrina civilista brasileira. Aqui, pretende-se revelar a discussão doutrinária sobre a existência ou não do débito conjugal no mundo hodierno, bem como saber se ele é compatível com a atual legislação civilista, e se for, quais são as consequências jurídicas e fáticas geradas em caso de seu descumprimento. 3 Quanto ao gênero dos cônjuges, o casamento pode ser de dois tipos: heterossexual, quando os casados têm sexos diferentes, ou homossexual, quando os consortes pertencem ao mesmo sexo. Historicamente, no mundo ocidental, o primeiro tipo sempre foi mais socialmente aceito e estudado do que o segundo, de modo que sempre foi positivado juridicamente em detrimento deste último. No entanto, atualmente, o casamento homossexual mostra-se como uma indiscutível realidade fática e jurídica, não sendo a toa que está, cada vez mais, sendo tutelado pelos diversos ordenamentos jurídicos ocidentais, como o brasileiro, que embora não o expresse em letra de lei, permite-o por meio de farta jurisprudência e pela Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça que impede os Cartórios de Registro Civil de recusar a conversão união estável homossexual em casamento. Dessa forma, em virtude dessa aceitação jurídica do casamento homossexual, a análise do débito conjugal discutido no presente trabalho também deverá ser aplicada a esta forma de casamento. 10 Por derradeiro, com a finalidade de mostrar em que situações o débito conjugal pode influenciar na realidade familiar, apresentar-se-á as repercussões jurisprudenciais relacionadas ao referido dever sexual, abordando os principais casos práticos sobre o tema e observando como são interpretados e decididos por diferentes Tribunais do país. 11 2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DO DEVER SEXUAL 2.1 SOCIEDADES PRIMITIVAS E ANTIGAS CIVILIZAÇÕES 2.1.1 Primeiras Sociedades Humanas A prática sexual sempre foi um dos principais e mais primários instintos do ser humano. Não apenas pelas sensações corpóreas prazerosas que o envolvem, mas, principalmente, porque é único meio natural de uma espécie animal se reproduzir e continuar existindo. Essa necessidade de reprodução foi o grande motivo social da existência do sexo nas primeiras sociedades humanas. Como afirma Clóvis Bevilaqua (1976, p. 38), “a característica desses primeiros momentos de evolução das relações conjugais foi a indisciplina, a irregularidade, a transitoriedade e a existência de modalidades diversas”. Os primeiros povos, ainda vivendo em nomadismo, não conheciam o mesmo modo de organização jurídica da família que contempla-se hodiernamente. Nas hordas em que viviam, em um estágio inicial, os homens e as mulheres se pertenciam uns aos outros, não havendo qualquer sentimento de posse ou até mesmo afeição entre eles. Os casais transitórios se formavam apenas pelo desejo físico e necessidades sexuais. Não havia, portanto, qualquer vontade destes indivíduos em iniciar uma união conjugal estável e prolongada, mesmo que carnal. A partir do sedentarismo e do início da prática da agricultura e criação de animais, nos idos do Período Neolítico, muda-se um pouco a forma das relações conjugais e da família. Elas passam a ser mais duradouras e com um maior grau de afeição e envolvimento amoroso entre os cônjuges, embora ainda prevalecesse, em muitas das tribos, a poligamia. Nesse período, defende-se que houve o predomínio do matriarcalismo nas relações familiares. O matriarcalismo tinha uma razão de ser. O homem ainda se apresentava com caráter bastante temporário no seio familiar, pois além da própria cultura de relações conjugais transitórias, ainda era o responsável pela caça de animais para a alimentação do bando. Assim, quem organizava a estrutura familiar era a mulher que, por sua vez, desempenhava atividades essencialmente domésticas, cuidando dos filhos e preparando a alimentação. Como afirma Almada (1987), a belicosidade entre as diversas tribos primitivas também era causa do predomínio da mulher na 12 família, já que era fator que ocasionava distância do homem para a família e custava várias vidas masculinas em batalhas. No entanto, com o aumento da produção de alimentos e posterior início das trocas comerciais e desenvolvimento da economia, o patriarcalismo começou a ser posto em prática. Os homens se apoderam dos meios de produção e do trabalho remunerado, excluindo, consequentemente, as mulheres, e passam a organizar toda a vida da coletividade os quais estão inseridos. Na família, passam a atuar mais, intervindo com maior poder em suas relações com a mulher e filhos, e aliado ao crescimento de seu poder econômico-familiar (já que dele advem toda a riqueza da família), começam a chefia-la. Nesse momento, mesmo com uma maior atuação do homem na família, começava a ser esculpidas as bases morais e sociais do que deveria ser uma família, embora as relações familiares ainda se mostrassem indisciplinadas e poligâmicas. Essas relações só irão ser moralizadas e legitimadas com a ascensão do instituto do casamento. 2.1.2 Antigas Civilizações e o Surgimento do Casamento Com o crescimento da produção de alimentos, o desenvolvimento do comércio e, principalmente da escrita, as sociedades humanas foram se tornando cada vez mais complexas. A população aumentava e as tribos iam se tornando maiores, transformando-se em verdadeiras vilas ou cidades. Na sociedade, aos poucos, passou a existir aqueles indivíduos com bastante riqueza (esta sendo demonstrada primeiramente em forma de terra e produtos para comércio por escambo e, posteriormente, pelo acúmulo de metais que, por sua vez, substituíam a troca de produto por produto, originando a moeda), em detrimento da maioria dos indivíduos, que possuíam poucas maneiras de custear suas sobrevivências. Desse modo, esses ditos mais ricos, utilizando-se de seu poder econômico proveniente de suas riquezas, da sua influência política nas religiões e do seu conhecimento da escrita, passam a expandir seu domínio sobre as sociedades em que estão inseridos, governando-as. Para isso, criaram a figura embrionária do que se chamaria de Estado. Este, completamente comandado pelos caudalosos da sociedade, constituía-se como uma instituição que, além de primar pela manutenção 13 de seus comandantes no poder, tinha como função principal e privativa a organização das condutas dos indivíduos que estão sobre sua esfera de influência. Nesse sentido, então, passam a ser elaboradas, pelos entes estatais, as primeiras normas escritas de regulação de condutas na sociedade, criando-se o direito positivado, abarcando toda a vida social das pessoas, dos atos civis aos delitos penais, e seguindo sempre os costumes praticados na época. Dentre esses preceitos normativos, figuram-se, especialmente, as normas que passavam a regular a família. Essas regras do direito familial terão como objetivo a moralização e ordenação das uniões entre homens e mulheres, de tal modo que as famílias passem a ser consideradas legítimas aos olhos do Estado. A finalidade da regulação familiar tinha uma razão de ser, pois naquele período as uniões ainda se mostravam transitórias e conturbadas, advindas do modelo das sociedades mais primitivas, de modo que havia um ambiente familiar destituído de afeto e amor, com pouquíssima estabilidade, nenhum controle coercitivo e de quase total relegação dos devidos cuidados e proteção dos filhos por parte dos pais que, por sua vez, fixavam suas atenções na busca do prazer sexual. Diante desse panorama de instabilidade familiar e social, como uma de suas regras, os Estados da antiguidade criam o que até hoje é o instituto jurídico mais delineador da família: o casamento ou matrimônio. Esse instituto nasce com a função principal de ser o molde de estabelecimento da chamada família legítima, ou seja, aquela que segue os termos das leis e, portanto, vista com bons olhos pelos Estados e pela sociedade. O casamento surgirá para conferir controle às uniões entre homens e mulheres, legitimando e moralizando a família e a prole. Nesse sentido, afirma Maria Berenice Dias (2007, p. 27): O intervencionismo estatal levou à instituição do casamento: convenção social para organizar os vínculos interpessoais. A própria organização da sociedade dá-se em torno da estrutura familiar e não em torno de grupos outros ou de indivíduos em si mesmos. A sociedade, em determinado momento histórico, institui o casamento como regra de conduta. Essa foi a forma encontrada para impor limites ao homem, ser desejante que, na busca do prazer, tende a fazer do outro um objeto. É por isso que o desenvolvimento da civilização impõe restrições a total liberdade, e a lei jurídica exige que ninguém fuja dessas restrições. As normas matrimoniais da antiguidade, ao regular o convívio entre os familiares, também passam a ser as primeiras formas jurídico-sociais de disciplinar, 14 com eficácia, o sexo entre os cônjuges, impondo-o os valores morais pertencentes a cada sociedade e condicionando-o, quase que exclusivamente, à procriação que, por seu turno, naquela época, já se despontava como a principal finalidade para a constituição de uma família legítima. Nasce a partir daí, o primeiro embrião do direito-dever de mútua prestação sexual entre cônjuges que, mais tarde e mais desenvolvido, viria a se chamar de débito conjugal. A influência dos ditames do matrimônio no sexo conjugal irá se perdurar no tempo, com algumas modificações ideológicas no seu transcurso, não sendo a toa que Kant (2003, p. 122) e Bevilaqua (1976, p. 33), mesmo após séculos da criação do instituto, conceituaram o casamento, respectivamente, como “a união sexual de acordo com a lei” e “a regulamentação social do instinto de reprodução”. Ainda conforme essa regulação das práticas sexuais entre os cônjuges, para a maioria dos povos da Antiguidade, vê-se que o casamento era poligâmico. Foram inúmeros os exemplos de sociedades antigas que incentivam a poligamia, tais como as diversas sociedades mesopotâmicas, como os hebreus que tinham o peculiar costume de desposar os irmãos do cônjuge varão falecido com a viúva para a continuação da família; a indiana, sob a égide das Leis de Manu; a chinesa e a egípcia. A poligamia tinha uma razão de ser, já que para essas sociedades, além de ser uma herança cultural deixada pelos povos primitivos, não era vista com negatividade ou como sinônimo de imoralidade, mas sim como algo natural, já que era fruto do pensamento patriarcalista muito dominante na época e contribuía significativamente para o aumento da população que, por sua vez, era diminuída de forma contínua pelas constantes guerras e intensos êxodos que aconteciam naqueles tempos. Porém, em outras poucas sociedades, como as gregas e a romana, o regime monogâmico era o acertado. Na grega, embora o casamento legal com mais de duas pessoas e a bigamia fossem proibidos, o concubinato era estimulado, principalmente pelas figuras das Hetairas, cortesãs que prestavam favores sexuais em troca de prestígio público. É na Grécia, também, que surgem as primeiras causas de anulação do casamento ou divórcio, que se diferenciavam entre homens e mulheres, sendo que “a esposa atheniense só podia pedir divórcio se o marido fosse estéril (ou seja a sofresse da maldição dos deuses) ou cometesse bigamia. O 15 esposo podia pedir divórcio no caso de adultério, esterilidade, bigamia, etc.” (SANTOS, 2007)4. Embora, o casamento monogâmico tenha surgido antes da sociedade romana, como supracitado, é nela que irá se fortalecer mais e onde surgirá as primeiras evidências do dever sexual entre os cônjuges (que até então era sublimado pela necessidade de procriação e aumento populacional das sociedades antigas). 2.2 FAMÍLIA ROMANA O povo romano desenvolveu um modelo de família que influencia ainda em vários pontos, não somente legais, mas sociais, o mundo ocidental hodierno. Seu modo de constituir e organizar a família, mesmo com bastante influência da cultura helênica, foi único em toda a antiguidade. A evolução e os direitos concedidos aos membros familiares, principalmente as mulheres e aos filhos, ao longo da história, são considerados as grandes primeiras mudanças na história da família desde a criação do instituto matrimonial. Sob essa ótica, passa-se a analisar os principais aspectos da família em Roma. A família romana caracteriza-se, num primeiro momento, pela supremacia absoluta do pater familias. Este é o patriarca, o ascendente vivo mais velho do orbe familiar, o que detinha a patria potestas. Sob a chefia dessa figura, a família era tida como um conjunto de pessoas, unidas por laços de consanguinidade ou não, controladas patrimonial, religiosa, jurisdicional e politicamente por um poder absoluto. O pater dominava todos os aspectos da família. Conforme afirma Wolkmer (2008), era ele que detinha a propriedade e administrava com total discricionariedade o patrimônio de toda a família; investia-se na figura de sacerdote máximo no culto doméstico, que, por sua vez, consistia-se em reverenciar os deuses e os próprios antepassados mortos; e era o julgador das lides internas das famílias, tendo plena liberdade de elaborar as regras e as penas a serem executadas. Nessa fase inicial da família, o Estado Romano estava em período de formação e não possuía meios ou interesses, já que o Senado e toda a 4 Documento online não paginado. 16 administração pública eram comandados pelos próprios chefes de família, para limitar o poder familiar do pater famílias. A família era, portanto, uma pequena comunidade política, aos comandos de uma figura sui juris, que não possuía qualquer autoridade, dentro ou fora do seio familiar, com mais poder do que ele. Como exemplo da política utilizada dentro da família romana, observa-se que haviam duas formas de casamento: sem ou com manus. A primeira era aquela que a esposa, ao se casar, ainda continuava subordinada ao patriarca de sua família de sangue, enquanto o segundo modo é aquele que a mulher oferecia a sua mão (manus), deixando de vez sua família de origem e ingressando, com o consentimento do pater, na família do marido, a qual passava a ser comandada pelos ditames desse patriarca marital. Conforme WALD (1995), devido a essa possibilidade de mudança de vinculação de um patriarca para outro, passa a existir dois tipos de parentescos familiares: Agnação e Cognação. O primeiro era aquele que vinculava as pessoas, consanguíneos ou não, que estavam sujeitas ao mesmo pater, como por exemplo um filho biológico e um filho adotado de comum patriarca. O parentesco por cognação, por sua vez, era o aquele derivado da consanguinidade, independentemente se as pessoas eram agnadas ou não. Dessa forma, por exemplo, quando a mulher casava-se com manus continuava cognada a seu pai, mas não agnada pois passava a ser sujeita ao pater marital. Em relação ao casamento com manus, que foi o tipo mais comum e respeitado na época do poderio dos patriarcas, vê-se que havia três espécies diferentes: confarreatio, coemptio e usus. A primeira era a mais bem vista e aquela destinada exclusivamente ao patriciado, classe nobre de Roma, e continha todo um aparato de formalidades com forte teor religioso, conforme pode se observar nas palavras de Almada (1987, p.61/62): A confarreatio era privilégio dos patrícios e rico simbolismo a caracterizava, infiltrando-se nos atos da celebração, forte ingrediente religioso. Para que pudesse deixar seu lar de origem, era a mulher autorizada pelo pai (tradição), e, especialmente trajada, além de precedida por cortejo, era conduzida à casa do esposo, velada, portando uma coroa e um archote nupcial. Cantava-se antigo hino religioso e o séquito parava em frente à casa do esposo, oportunidade em que a noiva recebia água (usada pela família em unções religiosas) e fogo, expressão simbólica da divindade do lar. Processava-se, então, rapto simulado. O esposo tomava-a nos braços e dessa forma penetravam ambos no interior da casa, seguindo até defronte ao fogo doméstico em cujo redor ficavam imagens divinas e de antepassados, conforme os usos e tradições religiosas. Participavam, 17 então, da comida de um bolo de farinha [chamado de pannis farreus, que deu origem ao nome confarreatio, e que tinha como finalidade simbolizar o início da vida em comum do casal] entre orações que eram feitas, servindo, como sacerdote, o pater famílias [do marido]. No coemptio, porém, não havia tantas solenidades, sendo destinado aos plebeus e correspondendo ao casamento civil, já que não havia qualquer ingerência religiosa. Caracterizava-se pela venda da mulher pelo pater famílias ao qual estava subordinada ao esposo. Por fim, na terceira forma, o usus, havia um usucapião da mulher, no qual esta figurava-se como objeto de posse do marido durante o período de um ano, ao término do qual, restava-se consolidada a propriedade da mulher, passando, então, a ser considerada casada. Nessa última forma, a esposa só poderia dissolver o casamento caso provasse o abandono de lar por três dias ou mais realizado pelo marido no prazo anual sobredito. Observando essas duas últimas espécies de casamentos, é nítido a situação de inferioridade da mulher romana frente ao patriarcalismo exacerbado comum na sociedade. As esposas eram incorporadas ao patrimônio familiar, como se objetos fossem, vivendo em uma total submissão às ordens do marido ou do pater, não tendo direitos dentro da família ou sucessórios e sendo consideradas como incapazes absolutas para os atos da vida civil. Os romanos, na linha dos gregos, também foram um dos primeiros povos a institucionalizar e normatizar determinados impedimentos e requisitos para a validade dos matrimônios, que ainda influenciam no direito familial hodierno. Consoante Bevilaqua (1976), esses impedimentos se referem às hipóteses de: existência de casamento anterior de pelo menos um dos nubentes; ao casamento com escravos; aos impúberes; quando havia qualquer parentesco entre os nubentes; a algumas funções públicas, como os magistrados provinciais e as mulheres que viviam dentro de sua circunscrição de autoridade; e aos tutores ou curadores com suas pupilas ou curateladas. Ainda existiam impedimentos de ordem temporal como a viúva que só poderia casar-se novamente decorridos doze meses da morte do marido. Seguindo a trilha do tempo, com o alvorecer do direito clássico romano e a chegada do Império, o pater foi perdendo sua autoridade e poder dentro da família para o Estado, que cada vez mais interferia na vida civil por meio de normas de que passava a ser elaborador exclusivo. 18 Nesse período, tem como principais mudanças: o fim do chamado ius vitae necique, ou seja, o direito de vida e morte, e o direito de venda, exercidos pelos patriarcas em relação a todos os membros da família; a substituição do casamento sem manus em relação aos com manus; a mulher começa a ganhar mais autonomia, adquirindo direitos sucessórios na herança deixada pelo marido e garante a guarda dos filhos, em caso de dissolução conjugal; e os filhos passam também a ter direitos sucessórios, podendo administrar seus vencimentos e doações e levar ao conhecimento dos magistrados qualquer abuso de poder dos patriarcas, inclusive podendo o juiz suprir o consentimento do pai para que seja realizado o casamento da filha, quando este, injustamente, o negar. Mas não apenas de direitos foram as inovações desse período. A própria relação entre os cônjuges passa a dar outra concepção ao instituto matrimonial. Nesse sentido, a noção de casamento regulado pelo pater familias, que muitas vezes ignorava os sentimentos e a afeição do casal, é inteiramente substituída pelo matrimônio gerido pela affectio maritalis, ou seja, “a livre vontade dos cônjuges para casar um com o outro” (SOUZA FILHO, 2014, p. 377). Nessa nova espécie de casamento, os cônjuges, aproveitando-se do declínio gradual do poder dos patriarcas, passam a poder, de forma plena, expressar os seus desejos mútuos em casar-se, de tal forma que a vontade, agora, começa a figurar como o principal elemento do matrinômio, tornando-se um importante pretexto para sua continuação ou dissolução. Como afirma Álvaro Villaça Azevedo (1976, p. 23 apud Dantas, 20035), “a se admitir somente o elemento subjetivo da afeição dos cônjuges, o seu consentimento seria suficiente à realização matrimonial, independentemente da vida íntima, em comum”. A par de todos os direitos criados e da livre vontade conjugal para casar-se, o fato de que o casamento deveria visar a procriação continuava incólume à decorrência dos tempos. Em Roma, a necessidade de ter filhos como efeitos do casamento era imprescindível, pois, assim como nas sociedades antigas discutidas na seção 2.2, era grande a quantidade de guerras travadas, que acabavam por ceifar as vidas de milhares de homens continuamente, e terras dominadas, que gerava a dependência de indivíduos que pudessem desenvolvê-las e protege-las. A questão da procriação era tão importante aos romanos que o Estado, mesmo aos 5 Documento on-line não paginado. 19 homens solteiros, instituía penalidades, como a retirada do jus capiendi (direito de auferir a propriedade dos bens deixados por testamento), àqueles que não tivessem propósito de deixar descendentes (BEVILAQUA, 1976). A necessidade de prole só era limitada, dentro do casamento, pela affectio maritalis, que impedia que os cônjuges mantivessem a relação conjugal, e consequentemente sexual, se não houvesse mais o afeto ou desejo de permanecer casados entre eles. Essa limitação é o que irá diferenciar o dever matrimonial de procriação dos romanos em relação aos outros povos da antiguidade que, por sua vez, não instituíam minorações afetivas a esse dever no casamento. Essa busca por gerar filhos e a affectio maritalis influenciavam, então, na consolidação do instituto do débito conjugal, pois incrementava o sexo dentro do casamento, atribuindo às práticas sexuais a importância de ser o meio realizador do principal efeito do casamento, formação da prole, e de ser o modo essencial para a demonstração da afeição entre os cônjuges. O débito conjugal também já passava a se inserir indiretamente no ordenamento jurídico romano, conforme suscita Sousa (2002, p. 4): O dever de coabitação já se fazia presente entre os romanos e, em particular, o aspecto do débito conjugal, existindo já à época a possibilidade do repúdio e do divórcio bona gratia por questões afetas ao inadimplemento deste dever. Sendo de frisar, por sua peculiaridade, constituir não só a recusa à coabitação, mas até mesmo a impotência do marido como causa de divórcio. No entanto, só se verá a consolidação jurídica total do instituto do debitum conjugale a partir dos ideiais trazidos pela Igreja Católica que passaram a influenciar toda cultura ocidental a partir do período medieval e fizeram das práticas sexuais um fator de consumação do casamento. 2.3 O DIREITO CANÔNICO E A CONSOLIDAÇÃO DO DÉBITO CONJUGAL Com a decadência do Império Romano, ascendeu um novo período histórico, denominado de Idade Média. Esse importante período foi marcado por diversos aspectos bem marcantes, tais como: os inúmeros conflitos políticos, sociais e militares entre os diversos povos que habitavam no continente europeu que disputavam, em geral, a propriedade de terra, considerado como o principal bem econômico e de maior símbolo de poder naquela época; a criação do sistema 20 econômico feudal, que perdurou durante todo período medieval e baseava-se na ruralização da sociedade, na produção auto subsistente de alimentos por seus membros, com reduzido comércio e uso de moedas, e no modo de produção servil em que os camponeses, em troca de proteção e de lugar para viver, trabalhavam para eles próprios e como servos para os nobres que figuravam como os senhores das terras; e a ausência de Estados centralizadores, contando somente com a presença de vários e pequenos reinos espalhados por toda a Europa, nos quais os suseranos que tinham mais vassalos6 e terras eram considerados os reis, que por sua vez, auferiam de poderes bastante restritos (ligados somente a defesa do território e a tributação) e que ainda eram divididos com os outros suseranos. Além dessas características, o que marcou profundamente a Idade Média foi a expansão do Cristianismo e soberania da Igreja Católica. O Cristianismo surgiu no início do Império Romano, onde foi inicialmente contestado e perseguido por confrontar a religião politeísta romana, gerando preconceito aos seus adeptos, e por representar uma crescente e indesejável doutrina ao Estado Romano, pois confrontava de frente os valores, modos e atitudes do Império. Com o começo da fragilidade política e econômica, o governo romano não pôde mais controlar o cristianismo, que expandia-se cada vez mais, de tal forma que passou a aliar-se a Igreja Católica, que até então era a única instituição religiosa que pregava o cristianismo, a fim de evitar conflitos e, juntas, se fortalecerem. Com essa aceitação política, a Igreja Católica espalhou-se por todo Império Romano e aumentou muito sua quantidade de adeptos. A partir da queda de Roma e aliado a ausência de Estados fortes e centralizados na Idade Média que a controlasse, a Igreja Católica superou todas as outras religiões no continente europeu e consolidou seu domínio de forma definitiva. Como meio de consolidação de seu domínio, a Igreja passa a editar diversas normas (no qual o conjunto delas foi denominado de Direito Canônico), tanto de cunho religioso quanto de cunho civil, que deveriam ser seguidas por todos os seus adeptos, incorrendo em pecados e penalidades, aos olhos de Deus, quem não as cumprir. Entre as regras estabelecidas por esse direito para a vida civil, encontram- 6 Na sociedade feudal, existiam os suseranos e os vassalos. Os suseranos eram aqueles nobres que detinham a propriedade das terras e, consequentemente, o maior prestígio e poder. Os vassalos também eram nobres senhores feudais, mas recebiam suas terras pelas mãos do suserano, ao qual ficavam vinculados em lhe oferecer proteção em guerras e lealdade no uso da propriedade. 21 se, principalmente, aquelas voltadas para o regramento da família e, especialmente, do casamento. Como informa Almada (1987), as regras que a Igreja Católica se baseia têm um sentido patriarcalista na medida em que afirma que o poder para governar a família é outorgado por Deus somente ao homem e para o bem da mulher e da prole. Essa ideia pode ser retirada em passagens bíblicas como Efésios, Capítulo 5, versículos 22-287 (BIBLIA, 2014). Nesse ponto, portanto, a Igreja não traz novidade ao direito de família, já que o modelo patriarcal, que já era comum desde as sociedades primitivas, ainda continua imperando. No entanto, as mudanças trazidas pelo Direito Canônico terão como base o conceito do instituto matrimonial. Conforme Gomes (1999), o casamento é posto pela doutrina católica por dois vieses indissociáveis: como um contrato e como sacramento. A primeira feição afirma que o matrimônio é um acordo no qual um homem e uma mulher concordam em unir-se em corpo e alma, de modo que vivam juntos indefinidamente. Investe-se, também, o casamento como ato solene, no qual deve haver uma celebração pública em que haja declarações de vontade espontâneas dos cônjuges perante um sacerdote da Igreja e com a presença de testemunhas que tenham condições de atestar o fato. O matrimônio, no segundo viés, é investido como um sacramento. De acordo com o Compêndio de Catecismo da Igreja Católica8, no item nº 224, “os sacramentos são sinais sensíveis e eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, mediante os quais nos é concedida a vida divina”. O casamento, portanto, tido como sacramento, passa a ser um meio de demonstrar a fé dos nubentes para a Igreja e de prestigiar e realizar os valores preconizados por Cristo, de modo que também é considerado como uma forma de alcançar a vida eterna e dignificar as uniões entre casais. Efésios 5: 22-28: “Vós, mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres o sejam em tudo a seus maridos. Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, a fim de a santificar, tendo-a purificado com a lavagem da água, pela palavra, para apresenta-la a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível. Assim devem os maridos amar as suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo.” 7 8 Documento online não paginado. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc /documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html#OS SETE SACRAMENTOS DA IGREJA>. 22 Como decorrência do caráter contratual e sacramental do casamento, a Igreja esculpiu os fins principais do matrimônio, a saber: “educação dos filhos, assistência mútua, reprimir a concupiscência e a procriação”9 (SOUZA FILHO, 2014, p. 378). Com essas três primeiras finalidades, o Direito Canônico quis conferir dignidade às famílias, que além de zelar pelo respeito e ajuda mútua entre os cônjuges, deveriam atentar para a prole, que não tinha condições de se educar nem de se manter por conta própria. Porém, o último fim, a procriação, é baseado na cultura de geração de filhos já existente desde as sociedades da Antiguidade, e que ganha com a doutrina católica outra razão para existir: o desejo do próprio Deus, desde que criou o mundo, para que os homens se multipliquem10. Esse querer divino, portanto, obrigava os cônjuges a procriar, dando-lhes o dom de ter filhos, estando sujeitos a incidência de pecado quem o descumprisse e negasse a fecundação. Além desses fins, os cônjuges, para que o instituto matrimonial seja honrado como contrato ou sacramento e receba as bênçãos da Igreja e de Deus, devem zelar pela manutenção da fidelidade entre si. Somente com o amor único e exclusivo de um cônjuge para o outro, o matrimônio pode atender ao fim da íntima comunhão de vida e amor para que Deus o criou. Não somente isso, mas a fidelidade também evita a concupiscência e reserva todo o amor para as relações familiares, tanto entre os cônjuges quanto entre estes e a prole. Nesse sentido, faz-se importante as palavras de Jean-Étienne-Marie Portalis (1801 apud PEREIRA, 2004), que na Exposição de Motivos do Código Civil Francês de 1804, bem após o período medieval, defendia, bastante influenciado pelas ideias católicas, que a fidelidade e monogamia deveriam ser respeitadas na constância do casamento, já que se não fossem, reinaria a escravidão e o despotismo de um cônjuge sobre outro, aumentando a desordem familiar e social e desqualificando a natureza jurídica do casamento como contrato no qual os nubentes se dão de corpo e coração. Cânon 1055 do Código Canônico de 1983, § 1: “O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, entre os batizados foi elevado por Cristo Nosso Senhor à dignidade de sacramento”. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/cod-iuriscanonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf>. 9 Gênesis 1: 27-28: “Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou. Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”. 10 23 Este dever de fidelidade advem do princípio basilar do casamento católico: a indissolubilidade matrimonial. Esse princípio, por sua vez, parte da premissa de que, como o casamento é um sacramento celebrado com as Bênçãos de Cristo, o laço que une os cônjuges não poderá ser dissolvido pelo querer dos nubentes, pois o que Deus uniu o homem não pode separar11. Em um primeiro momento histórico, houve discussões travadas pelos membros da Igreja sobre se esse princípio tinha limites ou exceções, já que o Evangelho de São Mateus abria possibilidade do divórcio em caso de adultério12. Esse debate estagnou-se quando, no século XI, foi firmado o entendimento da total indissolubilidade matrimonial, sendo a dissolução conjugal abordada por São Mateus doutrinariamente interpretada como uma separação apenas de corpos, mas que não afeta o vínculo entre o casal que, por sua vez, permanece unido pelo desejo divino (WALD, 1995). Atualmente, o princípio é esculpido no Cânon 114113 do Código Canônico de 1983. Desse modo, ficou estabelecido que o vínculo entre os cônjuges é considerado permanente e único para eles próprios, de forma que o homem e a mulher casados passam a ser encarados como exclusivos um ao outro, gerando não só a ideia de assistência recíproca e da fidelidade amorosa entre si, como também o dever de coabitação que obrigava o casal a viverem juntos em seu lar e que, conforme se verá adiante, influenciou bastante diversas legislações ocidentais posteriores, inclusive a brasileira. Essa exclusividade entre os cônjuges gera a ideia do mutuo pertencimento, pela qual o nubente passa a deter a “propriedade” da pessoa do outro, já que, na condição de casados, o homem e mulher fundem-se espiritualmente por sentimentos de amor, tornando-se uma individualidade e dividindo, entre si, tudo o que antes era só seu. Como reflexo desse pensamento, os corpos dos casados também entram no Mateus 19: 3-6: “Aproximaram-se dele alguns fariseus que o experimentavam, dizendo: È lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo? Respondeu-lhes Jesus: Não tendes lido que o Criador os fez desde o princípio homem e mulher, e que ordenou: Por isso deixará o homem pai e mãe, e unir-se-á a sua mulher; e serão os dois uma só carne? Assim já não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou, não o separe o homem”. 11 Mateus 19, 7-9: “Disseram-lhe eles: Então, por que mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio, e repudiá-la? Disse-lhes ele: Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim. Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de fornicação, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério”. 12 Cânon 1141 do Código Canônico de 1983: “O matrimónio rato e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa além da morte”. 13 24 rol dos bens divididos, de modo que passam a ser compartilhados entre um e outro, fazendo surgir o que se denomina de jus in corpus, ou seja, o direito exclusivo dos nubentes sobre o corpo do outro. Como decorrência desse direito exclusivo, encontra-se o sexo que, por sua vez, adquire grande relevância para a Igreja, de forma que esta entidade passa a regra-lo dentro e fora do casamento. No seio do matrimônio, devido a indissolubilidade do casamento e do jus in corpus, as relações sexuais dos casados passam a ser absolutamente vedadas para terceiros, de sorte que o sexo permaneça apenas entre os casados e seja utilizado para atender a procriação que, conforme já citado, é dos fins primários de qualquer família legítima católica. Por outro lado, fora do matrimônio, as mulheres solteiras passam a ser proibidas de ter relações sexuais antes do casamento, pois somente o sexo legítimo dos casados poderia lhe retirar a virgindade, sob pena do cometimento do pecado da luxúria. A importância dada às práticas sexuais pela Igreja mostrou-se tão contundente que essa instituição resolveu colocar o sexo como efeito essencial do matrimônio, na medida em que afirmou que a consumação do casamento somente dar-se-ia com a conjunção carnal entre os nubentes. Para o casamento ter validade, deveria haver os consentimentos inequívocos dos noivos e a declaração sacerdotal, mas só estaria plenamente realizado se os nubentes se relacionassem sexualmente, simbolizando a perfeita união carnal entre eles. Essa consumação sexual era também considerada uma presunção relativa (iures tantum) se os cônjuges coabitassem um mesmo lar e não houvesse provas que a contrariassem. Esse entendimento se perfaz ainda hoje, e figura-se tão absoluto que a lei canônica admite que o casamento que não tenha sido consumado da forma correta14, ou seja, aquele em que não foram praticadas relações sexuais de modo humano, livres e normais, com a intenção de gerar prole (nos casos em que, por exemplo, há inseminação artificial ou pacto de virgindade), possa ser dissolvido15 Cânon 1061 do Código Canônico de 1983: “O matrimónio válido entre baptizados diz-se somente rato, se não foi consumado; rato e consumado, se os cônjuges entre si realizaram de modo humano o acto conjugal de si apto para a geração da prole, ao qual por sua natureza, se ordena o matrimónio, e com o qual os cônjuges se tornam uma só carne. § 2. Celebrado o matrimónio, se os cônjuges tiverem coabitado, presume-se a consumação, até que se prove o contrário.” 14 Cânon 1142 do Código Canônico de 1983: “O matrimónio não consumado entre baptizados ou entre uma parte baptizada e outra não baptizada pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou só de uma, mesmo contra a vontade da outra.” 15 25 pelo Papa e por interesse das partes, já que a ausência de consumação se configura como legítima justa causa para a dissolução. O sexo no casamento não ficou somente atrelado à consumação matrimonial, mas motivou a Igreja em estabelecer impedimentos dirimentes do matrimônio o tendo como base. Os impedimentos dirimentes, por sua vez, são aqueles que acarretam a invalidez e, consequentemente, nulidade do casamento, se não forem obedecidos (GOMES, 1999). Estes impedimentos, constituídos no período medieval e regulados atualmente do Cânon 1083 ao 1094 do Código Canônico de 1983, são: a incapacidade, que finda somente aos 16 anos para homens e 14 anos para mulheres; o parentesco sanguíneo ou afim entre os nubentes; o segundo casamento enquanto o primeiro ainda vige; o rapto da mulher como quem se deseja casar, pois não respeita a livre e espontânea vontade da pretendente; a concorrência dolosa para a morte do cônjuge de pessoa com quem quer se casar; em casos de concubinato público e notório; a proibição de casar para aqueles que receberam ordens sacras, ou emitiram voto de castidade perante a Igreja Católica; e a impotência perpétua e antecedente ao casamento. Dentre esses impedimentos, os dois últimos são aqueles que terão as práticas sexuais como fundamento. A Igreja Católica, ao vedar o casamento para aqueles celibatários que fazem parte da Instituição ou proferiram votos de castidade, quis evidenciar que essas pessoas, por sua vez, já são proibidas de realizarem atos sexuais e, assim, não teriam condições de fazer vingar um matrimônio devido à necessidade inerente do sexo entre os cônjuges. Da mesma forma, a impotência anterior ao casamento e incurável afasta as relações sexuais entre os nubentes e impossibilita que o matrimônio se consuma, tornando-o eivado de vício e provocando sua invalidação16. A impotência para invalidar o casamento tem que ser a chamada coeundi, ou seja, aquela que obsta o próprio ato sexual, e não a chamada generandi ou esterilização que impede apenas a fecundação, mas não as relações sexuais. Cânon 1084 do Código Canônico de 1983: “§ 1. A impotência antecedente e perpétua para realizar o acto conjugal, por parte quer do marido quer da mulher, tanto absoluta como relativa, dirime o matrimónio, pela própria natureza deste. § 2. Se o impedimento de impotência for duvidoso, com dúvida quer de direito quer de facto, não se deve impedir o matrimónio nem, enquanto durar a dúvida, declarar-se nulo. § 3. A esterilidade não proíbe nem anula o matrimónio, sem prejuízo do prescrito no cân. 1098.” 16 26 Percebe-se nessa diferenciação, mais uma vez, a grande relevância dada pela Igreja ao sexo, pois permite um casamento que pelo menos um dos cônjuges é estéril e, portanto, um matrimônio incapaz de realizar um dos seus principais fins que é a procriação, mas não permite que haja um casamento sem sexo como no caso dos impotentes coeundi. Diante do exposto, com base no dever de fidelidade e, consequentemente, das práticas sexuais exclusivas entre os nubentes, na consumação sexual do casamento católico e da criação de impedimentos matrimoniais baseados estritamente na importância do sexo, vê-se claramente que é no direito canonista que o direito-dever de prestações sexuais entre os cônjuges se consolida de vez no mundo jurídico. 2.3.1 A Secularização Do Casamento Fato importante sobre o Direito Canônico foi que ele, durante toda a Idade Média e parte da Idade Moderna, não apenas tratou de regularizar o casamento e a família legítima que deste advinha, mas também deu a si a competência de dirimir as lides matrimoniais. Alicerçando-se de seu enorme poder ideológico e da ausência de Estados centralizados no continente europeu durante o medievo, a Igreja Católica governou soberana e, no direito de família, adotando o casamento como um sacramento de Cristo, a Igreja se incumbiu na responsabilidade de protege-lo e, assim, passou não somente a editar normas que o regulasse, mas também a julgar as diversas controvérsias subjetivas e objetivas entre os cônjuges originadas na vigência do matrimônio, tais como as pretensões de divórcio ou separação de corpos, impedimentos e nulidades matrimoniais. Com o passar dos anos, foram criados os chamados Estados Monárquicos Absolutos, em que o Rei detinha um poder total e ilimitado em suas mãos. Existia entre esses Estados e a Igreja uma mútua cooperação para o alcance de seus interesses, pois o Estado não cerceava o poder da Igreja, tornando inclusive o catolicismo como a religião oficial estatal, e a Igreja alimentava o poder do Estado na medida que justificava a investidura dos Monarcas como o Desejo de Deus, ao qual nada poderia se contrapor. 27 As Monarquias Absolutas, portanto, não iriam abalar o poder e a competência da Igreja em relação ao direito de família, fato esse que só ocorreria com a Reforma Protestante de 1517. Essa Reforma, iniciada com o monge Martinho Lutero, abriu espaço para a contestação dos preceitos dogmáticos da doutrina católica e motivou o surgimento de diversas outras religiões chamadas de protestantes, provocando o início da queda da hegemonia ideológica da Igreja Católica na Europa. O protestantismo lançou a ideia de que o casamento não era um sacramento, tratando-se apenas de um “simples ato da vida civil, de um contrato natural” (WALD, 1995, p. 27), não tendo quaisquer obstáculos a dissolução do vínculo matrimonial somente pelo querer dos nubentes. Dessa forma, as religiões protestantes passaram a retirar da doutrina religiosa e entregar aos Estados a responsabilidade de resolver os conflitos advindos pelo matrimônio, originando o “fenômeno denominado de secularização ou laicização do casamento” (ALMADA, 1987). A Igreja, em reação aos abalos provocados pela Reforma, organizou o Concílio de Trento (1542-1563). Este evento, reforçando a doutrina canônica já existente na época, definiu de uma vez por todas que o casamento era um sacramento, que a competência para celebra-lo e julgar suas pendências era exclusivamente da Igreja, e que deveria ser celebrado publicamente perante um sacerdote e testemunhas, de modo que os noivos pudessem expressar sua livre e espontânea vontade. Mesmo com essa reafirmação dos valores canônicos sobre o casamento promovida em Trento, a competência religiosa para resolver litígios matrimoniais e decretar a sua nulidade foi, gradualmente, sendo substituída pela laicização dessa competência, não somente devido à crescente influência das religiões protestantes, mas também ao surgimento do iluminismo e dos Estados Liberais. O iluminismo, trazendo novas reflexões e valores humanísticos, critica a e visão canônica sobre o casamento, afirmando que o matrimônio é um contrato no qual os nubentes são livres para constituir ou dissolver de acordo com suas vontades (ROUSSEAU apud ALMADA, 1987). Os Estados Liberais, por sua vez, surgiram laicos e comungaram também desse pensamento iluminista, já que foram originados de movimentos sociais influenciados pelos ideais do período de luz (como a Revolução Francesa de 1789, por exemplo), de modo que reservaram a si a competência de legislar e julgar sobre todo o direito de família, deixando a margem e somente no âmbito interna da Igreja a regulação canonista da família. 28 Embora a presença do Estado Liberal tenha inibido a utilização do direito canônico para a regulação da família, muitas das leis estatais, principalmente as que tange sobre o casamento, foram baseadas pela doutrina da Igreja Católica que, por seu turno, continuou a influenciar diversos ordenamentos jurídicos, tais como o português e brasileiro, até a atualidade. 2.4 O CASAMENTO NO DIREITO FAMILIAL BRASILEIRO O Brasil foi oficialmente descoberto por Portugal no ano de 1500, tornando-se sua colônia. Durante os primeiros cinquenta anos após a descoberta, o território brasileiro servia apenas para a extração de matéria-prima como o pau-brasil, não tendo qualquer propósito de colonização por parte da metrópole portuguesa. A situação modifica-se na medida em que se acha clima e terras suficientes na colônia brasileira para o cultivo da cana da qual se extraia o açúcar, especiaria bastante valorizada na Europa e que seu comércio representava intensos lucros. Não somente isso, mas as diversas incursões náuticas de outras nações, como a França, em terras brasileiras, incitaram Portugal a colonizar o território e protege-lo. Desse modo, junto com as primeiras pessoas que chegarem no território do novo mundo, vieram também as primeiras normas que passam a reger a vida social e, de forma especial, a família legítima. A primeira forma de manifestação jurídica advinda de Portugal no território pátrio foi o alvará de 12 de setembro de 1564 que mandou que fossem observadas todas as regulamentações instituídas pelo Concílio de Trento (WALD, 1995). Isso ocorreu pois a Monarquia Absoluta Portuguesa tinha como Religião Oficial o catolicismo e desejava a catequização dos povos indígenas que viviam em solo brasileiro para torna-los mais abrandados à cultura metropolitana. Assim, o direito canônico implantava-se no Brasil e, com ele, o caráter sacramental e a indissolubilidade do casamento. No período que Portugal e Espanha achavam-se unidos politicamente, formando a chamada União Ibérica, foram compiladas pelo Rei Espanhol Felipe II as Ordenações Filipinas de 1595. Essas Ordenações trouxeram uma discussão com as normas canônicas que até então eram as aplicadas, pois aquelas aceitavam, além 29 do casamento católico17, o matrimônio denominado de marido conhecido18, o qual caracterizava-se apenas pela publicidade da coabitação e do tratamento recíproco do casal como esposos, mesmo sem qualquer autorização religiosa (WALD, 1995). Mesmo com essa divergência em relação aos preceitos canônicos, as Ordenações não tinham o condão de extinguir a aplicação das normas Tridentinas no território brasileiro, adotando inclusive a doutrina católica sobre a consumação do casamento pelas relações sexuais. Os cônjuges católicos somente seriam meeiros um do outro se tornassem seu casamento consumado pela prática sexual e se fosse provado que o casamento foi celebrado em Igreja (vide nota de rodapé nº 14). Durante todo o período colonial as Ordenações Filipinas vigoram no Brasil, sendo sua principal fonte normativa. Mesmo com a Independência Brasileira em 1822, a legislação filipina ainda continuou irradiando suas normas, conforme ordenou a Lei de 10 de outubro de 182319. A situação só mudaria em 1858 com a Consolidação das Leis Civis organizada pelo jurisconsulto Teixeira de Freitas. Essa Consolidação substituiu as Ordenações Filipinas como a principal norma jurídica reguladora da vida civil, mas não trouxe novas ideologias de liberdade ou secularização do matrimônio que, por sua vez, já haviam sido despontadas na Europa a partir do iluminismo e da criação do Estado Liberal. Caracterizou-se, entretanto, pela reafirmação do pensamento católico tridentino no território brasileiro. Livro IV, Título XLVI, parágrafo 1º das Ordenações Filipinas de 1595: “E quando o marido e a mulher forem casados, por palavras de presente à porta da Igreja, ou por licença do Prelado fora della, havendo cópula carnal, serão meeiros em seus bens e fazenda. E posto que elles queiram provar, e provem que foram recebidos por palavras de presente, e que tiveram cópula, se não provarem que foram recebidos a porta da Igreja, não serão meeiros.” Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ l4p833.htm>. 17 Livro IV, Título XLVI, parágrafo 2º, das Ordenações Filipinas de 1595: “Outrossim serão meeiros, provando que estiveram em casa teúda ou manteúda, ou em casa de seu pai, ou em outra, em publica voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo Direito, baste que para presumir matrimônio entre eles, posto se se não provem as palavras de presente”. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p834.htm>. 18 Art. 1º da Lei de 20 de outubro de 1823: “As Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelissima, actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Côrte; e todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de Alcantara, como Regente do Brazil, em quanto Reino, e como Imperador Constitucional delle, desde que se erigiu em Imperio, ficam em inteiro vigor na pare, em que não tiverem sido revogadas, para por ellas se regularem os negocios do interior deste Imperio, emquanto se não organizar um novo Codigo, ou não forem especialmente alteradas”. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/anterioresa1824/lei-40951-20-outubro-1823-574564publicacaooriginal-97677-pe.html>. 19 30 A presença do pensamento canônico era patente nesta compilação de leis civis na medida que afirmava que: a celebração do casamento deveria seguir fielmente os ditames do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da Bahia20; o matrimônio clandestino, ou seja, aquele que não era realizado na presença de um Pároco ou de testemunhas, deveria ser punido com a invalidez 21; e que as lides conjugais referentes a divórcio, nulidades ou separações era da competência exclusiva da Igreja Católica22. Em 1861, no entanto, é publicada a Lei nº 1.144, que revogou a disposição da Consolidação de 1858 relativa aos casamentos clandestinos, concedendo efeitos civis (e, consequentemente, aceitação e validação) aos casamentos de pessoas que praticavam outros cultos diferentes da religião estatal católica23. É a partir dessa importante Lei que se observa a primeira aplicação da ideologia liberal da desvinculação da Igreja em relação ao Estado e da secularização do casamento no Brasil. A referida Lei nº 1.144 e o Decreto nº 3.069/1863, que posteriormente viria regulamentar esta Lei, ao reconhecerem casamentos celebrados pelas diversas religiões, acabam por minorar o poder e a influência católica em matéria de matrimônio, inclusive concedendo competência exclusiva as Artigo 95 da Consolidação das Leis Civis de 1858: “As disposições do Concílio Tridentino, e da Constituição do Arcebispado da Bahia, à respeito do matrimônio, ficão em effectiva observancia em todos os Bispados e Freguezias do Imperio”. Disponível em: <https://ia700505.us.archive.org/1/item s/ConsolidaoDasLeisCivis/CLC.pdf>. 20 Artigo 98 da Consolidação das Leis Civis de 1858: “Serão igualmente punidos os que contrahirem matrimonio clandestino, depois de declarado tal em Juizo Ecclesiastico”. 21 Artigo 158 da Consolidação das Leis Civis de 1858: “As questões de divorcio, ou sobre nulidade do matrimonio, ou sobre separação temporaria ou perpetua dos conjuges, pertencem ao Juizo Ecclesiastico. A respeito delas nenhuma ingerencia póde têr a jurisdicção secular”. 22 Artigo 1º da Lei nº 1.144 de 1861: “Art. 1º Os effeitos civis dos casamentos celebrados na fórma das Leis do Imperio serão extensivos: 1º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião differente da do Estado celebrados fóra do Imperio segundo os ritos ou as Leis a que os contrahentes estejão sujeitos; 2º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião differente da do Estado celebrados no Imperio, antes da publicação da presente Lei segundo o costume ou as prescripções das Religiões respectivas, provadas por certidões nas quaes verifique-se a celebração do acto religioso; 3º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião differente da do Estado, que da data da presente Lei em diante forem celebrados no Imperio, segundo o costume ou as prescripções das Religiões respectivas, com tanto que a celebração do ato religioso seja provado pelo competente registro, e na fórma que determinado fôr em Regulamento; 4º Tanto os casamentos de que trata o § 2º, como os do precedente não poderão gozar do beneficio desta Lei, se entre os contrahentes se der impedimento que na conformidade das Leis em vigor no Imperio, naquillo que lhes possa ser applicavel, obste ao matrimonio Catholico”. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1144-11-setembro-1861-555517publicacaooriginal-74767-pl.html>. 23 31 autoridades civis para que apreciassem os litígios advindos dos casamentos acatólicos24. A par do conteúdo reformador da referida lei, o Império Brasileiro vigora até o seu final consagrando o Catolicismo como a Religião Oficial do Estado. Porém, quando adveio a proclamação da República Brasileira em 1889, as ideias liberais de laicização do estatal e matrimonial atingem sua plenitude e o recém formado Estado Republicano passa a declarar-se laico. Com o Decreto nº 181 de 1890, a Igreja Católica passa a perder alguns de seus privilégios estatais, tais como a extinção do Juízo Eclesiástico e a competência civil plena para dirimir situações advindas do casamento25. O casamento civil torna-se mais importante que o casamento religioso, de modo que somente o primeiro possuía validade para quaisquer fins. Embora a influência canonista no casamento estivesse sendo limitada como nunca havia sido antes, alguns aspectos do casamento ainda restaram baseados na dogmática católica. O Decreto nº 181 continuava prevendo a indissolubilidade do vínculo conjugal26, embora permitisse o divórcio27, e concedia, em seu artigo 7º, a nulidade matrimonial na ocorrência de impedimentos canônicos, tais como a incapacidade marital para homens e mulheres aos 16 e 14 anos, respectivamente, e o matrimônio entre ascendentes e descendentes, entre raptador e raptada enquanto esta estivesse no poder daquele ou entre o cônjuge condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra seu cônjuge e a pessoa que tenha executado o crime. A influência canônica continuou a estar presente no Código Civil de 1916. Esta lei, em seu artigo 183, também utilizava-se dos mesmos impedimentos canônicos sobreditos para anular o casamento, apenas ressalvando que a incapacidade marital foi majorada para os menores de 16 anos (mulheres) e 18 anos Artigo 9º do Decreto nº 3.069 de 1863: “Compete ao juiz de direito do domicilio conjugal, ou do domicilio do conjuge demandado, conhecer da nullidade de todos os casamentos entre nacionaes, ou estrangeiros que professarem religião diferente da do Estado; e bem assim de qualquer outra questão relativa a estes casamentos”. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicaco es.action?id=73998&tipoDocumento=DEC&tipoTexto=PUB>. 24 Artigo 112 do Decreto nº 181 de 1890: “Ao juiz de direito da comarca, ou ao de orphãos, conforme as distincções estabelecidas no art. 110, compete o conhecimento das causas de nullidade ou annullação de casamento e as de divorcio litigioso, ou por mutuo consentimento”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D181.htm>. 25 Artigo 93 do Decreto nº 181 de 1890: “O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos conjuges, e neste caso proceder-se-ha a respeito dos filhos e dos bens do casal na conformidade do direito civil”. 26 Artigo 88 do Decreto nº 181 de 1890: “O divorcio não dissolve o vinculo conjugal, mas autoriza a separação indefinida dos corpos e faz cassar o regimen dos bens, como si o casamento fosse dissolvido”. 27 32 (homens) e a impotência coeundi (também impedimento canônico) anterior ao casamento passava a ser considerado como um “erro essencial quanto a pessoa do cônjuge” e capaz de anular o matrimônio (artigo 219, inciso III). A fidelidade recíproca e a consequente exigência da vida em comum no domicílio conjugal, aspectos também advindos do direito canônico, passam a positivados como deveres essenciais e comuns dos cônjuges na constância do casamento. O Código de 1916 também iria legislar a indissolubilidade do vínculo conjugal, mesmo aceitando a separação conjugal, reiterando assim o mesmo modelo do antigo Decreto nº 18128. Além disso, o Código Civil de 1916 notabilizou-se pelo forte caráter patriarcalista em matéria de casamento. De acordo com o seu artigo 233, o homem era o chefe da família e o responsável por administrar seus bens e os de sua esposa, definir o domicílio familiar, prover a manutenção da família e autorizar o exercício de profissão pela mulher. A mulher casada era reconhecida como relativamente incapaz (artigo 6º, inciso II), tendo sua vida marital muito limitada às autorizações do marido29, perdendo até o pátrio poder em relação aos filhos já nascidos, quando contraia novo casamento (artigo 393). Em razão da influência canônica e do patriarcalismo, ficou cada vez mais enraizada a ideia do débito conjugal no Brasil. A supremacia do homem sobre a mulher e as prescrições legais que estimulavam o sexo no casamento (como, por exemplo, a anulação matrimonial por impotência ou o dever comum de coabitação), consolidaram, no âmbito social, o pensamento que afirmava que deveria existir relações sexuais entre os cônjuges para que o casamento fosse válido, de modo que era direito de cada um dos cônjuges, principalmente do marido, exigir do outro a contraprestação sexual. Artigo 315 do Código Civil de 1916: “A sociedade conjugal termina: I. Pela morte de um dos cônjuges; II. Pela nulidade ou anulação do casamento; III. Pelo desquite, amigável ou judicial. Parágrafo único. O casamento valido só se dissolve pela morte de um dos conjugues, não se lhe aplicando a preempção estabelecida neste Código, art. 10, Segunda parte”. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6515.htm#art54>. 28 Artigo 242 do Código Civil de 1916: “A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I. Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235); II. Alienar, ou gravar de onus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, nº II, III, VIII, 269, 275 e 310); III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outra; IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado; V. Aceitar tutela, curatela ou outro munus público; VI. Litigiar em juízo civil ou comercial, anão ser nos casos indicados nos arts. 248 e 251; VII. Exercer profissão (art. 233, nº IV); VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal; IX. Acceitar mandato (art. 1.299)”. 29 33 Entretanto, com as edições das Leis nº 4.121/1962 e 6.515/1977, o caráter patriarcalista e a influência católica no direito familial brasileiro são minorados. A primeira destas leis põe fim ao poder quase absoluto do marido sobre a esposa, na medida em que concede a plena capacidade civil da mulher casada, revogando o inciso II do artigo 6º e derrogando os incisos IV ao VII e IX do artigo 242 do Código Civil de 191630, retirando, assim, a necessidade da autorização do marido para a realização de importantes atos da vida civil como o exercício profissional, a aceitação ou renúncia de herança e a obtenção de capacidade processual. Por meio da Lei nº 4.121, a mulher passou a ter os mesmos direitos e deveres do homem na família, inclusive reestabelecendo o pátrio poder em relação aos seus filhos existentes quando celebradas novas núpcias31. A Lei nº 6.515/77, por sua vez, retirou parte da influência canônica do Código Civil de 1916. Esta norma revogou a indissolubilidade do vínculo conjugal puramente canônica, afirmando que o casamento era dissolvido não só pela morte de um dos cônjuges (que até então figurava-se como o único fundamento criado pelo direito canônico e aceito pelo direito pátrio para a quebra do vínculo matrimonial), mas também pelo divórcio32. Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 consolidam a postura adotada nessas leis e definem a atual visão do casamento no direito de família. A Constituição irá fixar expressamente a igualdade entre homens e mulheres em relação aos direitos e deveres na família 33, impondo um término jurídico definitivo na ideologia patriarcalista. A Carta Magna também afirmou que o casamento não poderia ser aceito como a única forma para constituição de família, Artigo 242 do Código Civil de 1916 (Redação dada pela Lei nº 4.121/62): “A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I - praticar os atos que êste não poderia sem consentimento da mulher (art. 235); II - Alienar ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, ns. II, III e VIII, 269, 275 e 310); Ill - Alienar os seus direitos reais sôbre imóveis de outrem; IV - Contrair obrigações que possam importar em alheação de bens do casal". Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4121.htm>. 30 Artigo 393 do Código Civil de 1916 (Redação dada pela Lei 4121/62): “A mãe que contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos de leito anterior os direitos ao pátrio poder, exercendo-os sem qualquer interferência do marido”. 31 Artigo 2º da Lei nº 6.515 de 1977: “A Sociedade Conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; Il - pela nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. Parágrafo único - O casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6515.htm>. 32 Artigo 226, § 5º da Constituição Federal de 1988: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. 33 34 instituindo a união estável como entidade familiar34, e afirmou que o casamento válido poderia ser dissolvido pelo divórcio35 no mesmo modelo da Lei nº 6.515/77. O Código Civil de 2002, por seu turno, coadunou com essas ideias exposadas na Constituição de 1988, mas ainda continha bases canônicas em sua elaboração. Os dizeres canônicos são nítidos em três importantes institutos do casamento: nos impedimentos matrimoniais36; nas causas de anulação do casamento por erro essencial quanto a pessoa do cônjuge37, reiterando a doutrina católica da incompatibilidade do matrimônio com o defeito físico irremediável (impotência coeundi); e nos obrigatórios deveres de fidelidade recíproca e coabitação38. Esses dois últimos institutos, conforme se analisará adiante, são as principais fontes do direito pátrio para o estudo doutrinário e jurisprudencial do debitum conjugale na atualidade. Artigo 226, § 3º da Constituição Federal de 1988: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. 34 35 A Constituição de 1988, na redação original do art. 226, § 6º, prescrevia que o divórcio somente poderia dissolver o casamento válido e o vínculo conjugal se fosse precedido de separação judicial por mais de um ano ou separação de fato por mais de dois anos, não endossando assim o previsto na Lei 6515/77. No entanto, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 66/2010, o artigo sobredito foi editado, passando a aceitar apenas o divórcio, com ou sem separação, como causa de dissolução do casamento. Essa nova redação acabou por retirar as eficácias dos institutos das separações judiciais e de fato em nosso ordenamento jurídico, eliminando a única aplicabilidade jurídica desses institutos que era servir de pré-requisito temporal para o divórcio. 36 O artigo 1521 do Código Civil de 2002, embora houvesse excluído impedimentos matrimoniais tipicamente canônicos como o casamento entre raptante e raptada, incluiu alguns impedimentos católicos para o casamento, tais como: os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; os afins em linha reta; os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; as pessoas casadas; e o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. Artigo 1557 do Código Civil de 2002: “Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge: I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal; III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de moléstia grave e transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência; IV - a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado”. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. 37 Artigo 1566 do Código Civil de 2002: “São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos”. 38 35 3 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE O DÉBITO CONJUGAL 3.1 CORRENTE TRADICIONAL39 3.1.1 O Débito Conjugal Como Dever Legal Esta corrente é a mais antiga e majoritária na doutrina que versa sobre o direito de família. Apoiada na doutrina canônica, a corrente tradicional afirma a existência do débito conjugal no casamento, tanto inserido na legislação quanto na convivência familiar. Na lei, esta doutrina suscita que o débito conjugal é um dos requisitos para fiel cumprimento do dever comum de coabitação dos cônjuges. Para os adeptos dessa corrente, o dever de coabitação, inscrito atualmente no art. 1566, inciso II do Código Civil de 2002 (vide nota de rodapé 35), possui dois aspectos: a vida em comum dos cônjuges e o débito conjugal. Nesse sentido, Maria Helena Diniz (2011, p. 442) reitera: [...] no dever de coabitação, dois aspectos fundamentais: o imperativo de viverem juntos os consortes e o de prestarem, mutuamente, o débito conjugal, entendido este como o “direito-dever do marido e de sua mulher de realizarem entre si o ato sexual”. Consoante esse excerto, observa-se que a vida em comum dos casados é tida como um imperativo, ou seja, uma consequência lógica advinda do casamento. Isso demonstra que para essa doutrina não há motivo maior para que exista um casamento do que o desejo recíproco dos cônjuges em viver juntos. O dever de coabitação previsto em lei tem, então, como objetivo fixar que o casal viva em comunhão sempre, pois foi com esse intuito que se casaram, vedando assim qualquer prática que afaste os cônjuges da convivência necessária. Assim, como afirma Belmiro Welter e Rolf Madaleno (2004 apud GAGLIANO, 2012), caso um dos consortes, sem qualquer motivo justificado, passe a residir em outro local que não seja junto a seu cônjuge, rompe com o seu dever de coabitar, dissolvendo da realidade fática o consórcio nupcial e permitindo a imediata postulação de ação de divórcio por quebra desta obrigação marital. As denominações “Corrente Tradicional” e “Corrente Moderna”, presentes nos títulos das seções 3.1 e 3.2, respectivamente, não constam na doutrina especializada do Direito de Família, mas foram elaboradas pelo autor do presente trabalho para fins de melhor entendimento e divisão do tema (SOUZA FILHO, 2014). 39 36 Essa convivência do casal em uma mesma morada cumulada com a histórica necessidade e estímulo do sexo entre cônjuges para o pleno desenvolvimento da família e geração de prole (já explicitado no capítulo anterior), motivam os pensadores dessa corrente a afirmar que o dever de coabitação também gera a obrigação de prestações sexuais mútuas entre os consortes. As práticas sexuais entre os cônjuges são vistas aqui como algo comum e normal em todos os casamentos, sendo, por vezes, motivo de desintegração da sociedade conjugal quando não é exercitado. Afirmando essa linha de pensamento, tem-se as palavras de Orlando Gomes (1999, p. 134): A coabitação representa mais do que a simples convivência sob o mesmo teto. É, sobretudo, o jus in corpus in ordine ad actus per se aptos ad prolis generationem. Não só convivência, mas união carnal. O jus in corpus, de cada cônjuge sobre o outro, implica, no lado passivo, o débito conjugal que tem que ser cumprido para que a sociedade conjugal se mantenha íntegra. Importa-se assim a coabitação a permanente satisfação desse débito. Dessa forma, conforme se depreende dos verbetes acima, vê-se que o entendimento dessa corrente é no sentido de que o débito conjugal está intrinsecamente ligado às relações conjugais no casamento, sob a forma do jus in corpus canônico, de modo que é tutelado juridicamente por meio do dever de coabitação, utilizando-se da força normativa da lei para que seja praticado e afirme sua existência dentro das relações conjugais. Devido a essa força normativa legal que prevê a obrigação da coabitação conjugal e a importância dada à vida comum e ao débito conjugal, os defensores da tese ora explanada defendem também a indeclinabilidade desta obrigação. Como conclui Souza Filho (2014), analisando o pensamento dos doutrinadores tradicionais, os cônjuges, no momento que concordam em se casar, aceitam voluntariamente e submetem-se aos deveres legais e vinculantes de viver em comunhão e realizarem entre si práticas sexuais, não sendo possível nem lógico, portanto, que o casal ou um dos consortes livremente resolva não satisfazer estas obrigações. Observando essa indeclinabilidade jurídica do debitum conjugale, a doutrina também assevera que há repercussões para o seu inadimplemento. Nesse sentido, Pablo Stolze Gagliano (2012) afirma que já que a comunhão sexual é uma decorrência do casamento, traduz, inegavelmente, um dever especial e, por isso, quando descumprido, poderá resultar em consequências jurídicas ao infrator, como 37 o divórcio ou, dependendo das circunstâncias da sua origem, a anulação do casamento. 3.1.2 Exceções e Limites Do Débito Conjugal Embora aleguem que existe o direito-dever de prestação sexual entre os cônjuges e que ele é uma realidade fática e jurídica no casamento, alguns doutrinadores tradicionais ressaltam que há exceções e limites para o cumprimento desta obrigação. Sobre as exceções, Caio Mário Pereira (2013) prega que o débito conjugal, embora trazido pela lei, não é tido pelas normas civilistas brasileiras como plenamente essenciais ao casamento, já que a ordem jurídica permite a consumação de matrimônios em que as práticas sexuais entre os consortes são raras ou impossíveis, como são, por exemplo, os casamentos em caso de moléstia grave, o nuncupativo (também denominado de in extremis) ou naqueles que figuram idosos como nubentes. Os casamentos em caso de moléstia grave e o in extremis são positivados nos artigos 153940 e 154041 do Código Civil de 2002, respectivamente. O primeiro refere-se ao matrimônio celebrado quando pelo menos um dos casados encontravase possuidor de moléstia grave e o segundo quando há para um dos cônjuges um iminente risco de vida. Nessas espécies de matrimônio, vislumbra-se que o débito conjugal é minorado, pois não se pode obrigar o cônjuge sadio a ter relações sexuais com aquele que é detentor de moléstia grave42, da mesma forma que um consorte em iminente risco de vida terá preocupações mínimas quanto a satisfação do dever sexual. Artigo 1539 do Código Civil de 2002: “No caso de moléstia grave de um dos nubentes, o presidente do ato irá celebrá-lo onde se encontrar o impedido, sendo urgente, ainda que à noite, perante duas testemunhas que saibam ler e escrever”. 40 Artigo 1540 do Código Civil de 2002: “Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto, poderá o casamento ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau”. 41 42 A moléstia grave não somente é fato excepcional para o cumprimento do débito conjugal como também abre possibilidade para a própria anulação do casamento, quando for transmissível por contágio ou geneticamente e haver risco de contaminação do outro cônjuge ou da prole (ver nota de rodapé 34). 38 O casamento de pessoas idosas também excepciona a incidência do debitum conjugale, pois a potência sexual, assim como todas as capacidades físicas humanas, tende naturalmente a diminuir na medida que a idade avança, razão essa que ocasiona a perda de constância e importância que do débito sexual com o transcorrer do tempo de casamento ou aumento de idade. Outra exceção ao dever de relações sexuais entre os cônjuges é aquela evidenciada no artigo 1569 do Código Civil de 200243. Essa norma permite que um consorte possa ausentar-se do domicílio conjugal quando houver de atender encargos públicos, no exercício da sua profissão ou em caso de interesses particulares relevantes. Desse modo, vê-se que a norma prescreve situação fática que deixa o dever de mútua prestação sexual suspenso, pois enquanto o consorte ausente não voltar ao domicilio, não será possível cumprir essa obrigação sexual. Fato importante sobre essa exceção é que, para a doutrina que ainda defende a existência do instituto da separação judicial, como José Moacyr Doretto Nascimento e Gustavo Gonçalves Cardozo (2010 apud PRETEL, 2010), mesmo após a vigência da Emenda Constitucional nº 66/2010, se o cônjuge se ausentar durante um ano ininterrupto, não se utilizando de qualquer das hipóteses acima descritas que o permite afastar-se do domicílio, motivará a impossibilidade de vida em comum por abandono de lar e a consequente separação litigiosa, nos moldes do artigo 1573, IV do Código Civil atual44. Quanto aos limites do débito conjugal, os doutrinadores mostram que estes tangem ao modo e a busca de satisfação do débito conjugal. Afirmam Gonçalves (2012) e Venosa (2013) que o debitum conjugale não pode incluir para sua realização a imposição de um cônjuge sobre o outro por meio de violência, como a prestação de taras ou abusos sexuais, e discordância do outro cônjuge, devendo o consorte que está buscando a satisfação respeitar o recato do outro e, se sentir-se ofendido com a conduta assexual do parceiro(a), deve-se utilizar dos meios jurídicos corretos como o divórcio ou a anulação do casamento. Artigo 1569 do Código Civil de 2002: “O domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges, mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes”. 43 Artigo 1573, inciso IV do Código Civil de 2002: “Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos: [...] IV. abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo”. 44 39 Observa-se que ambos doutrinadores querem mostrar que o dever sexual entre os consortes é advindo da própria instituição do casamento, mas deve ser sempre limitado pela liberdade individual do homem e da mulher casados, não podendo um cônjuge exigir do outro a satisfação sexual quando bem entender ou este último não desejar. Não pode muito ao menos forçar, verbal ou fisicamente, o seu par a manter relações sexuais não consentidas ou utilizar-se de meios ou instrumentos sexuais impróprios para o outro cônjuge. 3.2 CORRENTE MODERNA Este segundo posicionamento doutrinário é mais recente e crítico do que o pensamento tradicional. Ele posiciona-se no sentido de que o débito conjugal não é um dos aspectos do dever legal de coabitação e nem é compatível com a realidade jurídica do Brasil hodierno, manifestando-se, portanto, contrário ao pensamento da corrente tradicional supracitada. Para essa corrente, o dever sexual entre os cônjuges não é tutelado pela lei, não pode ser considerado presumido a partir da efetivação do casamento e nem apresenta-se como um requisito da coabitação conjugal. Este dever de coabitação expresso no artigo 1566, inciso II do Código Civil não apresenta subdeveres como a vida em comum e o débito conjugal, mas, como afirma Coelho (2012), quer mostrar apenas que os casados devem partilhar e participar do cotidiano um do outro, em todos de seus muitos aspectos como o profissional, social ou econômico, ajudandoo sempre nas diversas vicissitudes que a vida proporciona, pois foi por essa espécie de comunhão que aceitaram se casar um com o outro. Defendendo esse ponto de vista, tem-se as palavras de Maria Berenice Dias (2007, p. 242), a principal expoente dessa corrente doutrinária: A previsão de vida em comum entre os deveres do casamento não significa imposição de vida sexual ativa nem a obrigação de manter relacionamento sexual. Essa interpretação infringe o princípio constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade e à privacidade, além de afrontar o direito a inviolabilidade do próprio corpo. Não existe sequer a obrigação de se submeter a um beijo, afago ou carícia, quanto mais de se sujeitar a práticas sexuais pelo simples fato de estar casado. Conforme evidenciado pela autora acima, o pensamento típico da corrente tradicional, ou seja, a inserção do débito conjugal no dever de coabitação dos 40 casados, deve ser afastado pois é desrespeitoso em relação a certos e importantes princípios e direitos estabelecidos constitucionalmente. A violação causada pelo débito conjugal ao Fundamento do Estado Democrático Brasileiro45 e princípio constitucional da dignidade da pessoa humana deve-se ao tratamento de objeto sexual entre os consortes e derivado daquele dever. A obrigatoriedade do dever sexual gera a ideia de que o corpo do consorte é “mera fonte de lascívia do seu parceiro” (ALVES, p. 7)46, fazendo com que os cônjuges sofram e causem sofrimentos recíprocos, ferindo não só o respeito e afeto entre eles, mas a dignidade de cada um. Essa coisificação sexual de um cônjuge ao outro contrasta com os sentimentos de amor e bem querer que sustentam a instituição do casamento e estimulam a saudável vida em comum do casal, razão pela qual, o débito conjugal não pode ser protegido pelas normas civilistas atuais nem estar presente em qualquer matrimônio. A privacidade, liberdade individual e a inviolabilidade do próprio corpo também são maculadas no cumprimento do débito conjugal, pois o cônjuge pode se sentir vinculado a ter relações sexuais apenas para adimplir este dever perante o outro consorte, minorando sua vontade e o domínio de seu corpo, de modo que não transparece qualquer afeto na prática sexual, mas somente a sensação de doar seu corpo ao parceiro. Nesse sentido, Farias e Rosenvald (2007, p. 138) sustentam: Conquanto parcela da doutrina propugne pelo reconhecimento de um direito da personalidade sobre o corpo do cônjuge, a partir da reciprocidade da prestação do dever sexual no casamento, esta não é a posição que deve prevalecer. É que a manifestação sexual (inclusive entre cônjuges e companheiros) é pura expressão de afeto, é materialização de sentimento, não sendo crível, nem admissível, que pudesse ser tratada pela ótica jurídica como uma obrigação imposta a uma pessoa humana. Pensar no débito conjugal como direito da personalidade é violar a dignidade humana, aviltando a sua liberdade afetiva e sexual. Além dessa crítica ao dever sexual e ao pensamento tradicional, esse posicionamento doutrinário ainda assevera que o débito conjugal só “fez sentido quando prevaleceu a sociedade patriarcal, reservando-se à mulher os papéis domésticos e ao homem o de provedor” (LÔBO, 2011, p. 145). Artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana”. 45 46 Documento on-line não datado. 41 Com essas palavras, vê-se que a doutrina moderna apresenta argumentos históricos, realçando o que já dito na seção 2.4 do presente trabalho, ou seja, querendo mostrar que o patriarcalismo era o que motivava o debitum conjugale, já que a sobreposição de um cônjuge sobre o outro estimulava a cobrança sexual pelo mais potente. No entanto, afirma essa doutrina que, com o advento da igualdade entre homens e mulheres no casamento alçada a nível constitucional em 1988, o patriarcalismo foi superado, não existindo razão para que o débito conjugal merecesse mais prosperar na sociedade brasileira hodierna. Por fim, em razão da ausência de tutela legal e incompatibilidade do dever sexual com a realidade jurídica atual, os defensores dessa tese não admitem nenhuma sanção judicial para o não adimplemento do débito conjugal. Maria Berenice Dias (2007) sustenta que não cabe nem anulação do casamento nem separação quando o cônjuge não tem desejo de cumprir o débito conjugal, pois ninguém pode ser condenado pela ausência do estímulo indispensável para a prática de relações afetivas conjugais, qual seja, o amor e a afetividade. A presença desses estímulos, porém, não é tão observada pela jurisprudência pátria na análise do débito conjugal que, por sua vez, admite variadas repercussões jurídicas para a quebra desse dever. 42 4 REPERCUSSÕES JURISPRUDENCIAIS DO DEBITUM CONJUGALE 4.1 IMPOTÊNCIA SEXUAL Como já exposto na seção 2.3, um dos impedimentos canônicos para o matrimônio era a impotência sexual que, por seu turno, impedia a consumação do casamento por meio de relações sexuais. Desse modo, caso um dos cônjuges não pudesse desenvolver a necessária potência para a prática sexual, por motivos naturais ou artificiais, o casamento era considerado inválido. Com a grande influência da doutrina canônica no direito pátrio, a legislação civilista abriu espaço e a jurisprudência dos Tribunais brasileiros, de forma majoritária, passou a adotar a impotência sexual também como causa de anulação do casamento por erro essencial à pessoa do cônjuge, mas fixou certos requisitos ou condições para que essa causa seja aceita juridicamente. O primeiro desses requisitos, de origem puramente canônica, está presente na diferenciação entre as impotências coeundi e generandi. Conforme já sustentado na seção 2.3, somente a primeira é causa de invalidade do casamento, pois ela torna o cônjuge totalmente incapaz de realizar o ato sexual, tornando o matrimônio desprovido de qualquer relação sexual. A generandi, por outro lado, não incapacita o consorte de praticar sexo, mas o proíbe de gerar prole, razão pela qual não quebra o débito conjugal e, portanto, tem o condão de anular o casamento. A segunda condição é que a impotência do nubente encaixe-se no conceito de erro essencial à pessoa do cônjuge. Esse erro, informado no artigo 1557 do CC/2002 (ver nota de rodapé 34), é caracterizado como um vício de vontade47 e ocorre quando um dos consortes se casa “desconhecendo evento ou circunstância anterior ao casamento e inerente à figura do outro cônjuge que, após a celebração deste, torna-se evidente e, por ela, incompatível a vida em comum” (SOUZA FILHO, 2014, p. 385). O cônjuge que se achou prejudicado por esse erro pode, então, acionar judicialmente o outro cônjuge, pleiteando a invalidade e anulação do matrimônio, conforme permite o artigo 1550, inciso III do Código Civil de 2002 48. Artigo 1556 do Código Civil de 2002: “O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro”. 47 Artigo 1550, inciso III do Código Civil de 2002: “É anulável o casamento: [...] III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558”. 48 43 De acordo com esse requisito, portanto, a impotência sexual deve preencher três aspectos: ser desconhecida do outro cônjuge antes do casamento; ser anterior à celebração do matrimônio; e tornar insuportável a vida em comum do casal. O último requisito da aceitação da impotência sexual como razão para a invalidação do matrimônio é que esse defeito físico seja irremediável. Esta característica, nos verbetes de Gonçalves (2012, p. 170), significa “a impossibilidade de tratamento médico ou cirúrgico e pela ineficácia do tratamento ministrado por longo tempo, bem como pela recusa ao tratamento adequado”. Como interessante exemplo jurisprudencial que determina a anulação do casamento a partir da impotência sexual, tem-se a Apelação Cível nº 251.816-549 julgada no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Neste caso, os cônjuges concordaram com a anulação do casamento, mas com argumentos diferentes. A mulher afirmava que o seu marido era impotente, razão pela qual ainda continuava virgem mesmo após o casamento, e o varão negava sua impotência, afirmando que a razão para que não houvesse sexo no relacionamento era que sua esposa possuía uma aversão às práticas sexuais. A Sexta Câmara Cível do referido Tribunal entendeu que a impotência coeundi do cônjuge varão poderia ser presumida, pois o cônjuge não requereu nenhuma prova que pudesse demonstrar que não sofria de tal defeito físico. O Relator do caso afirmou que há muito preconceito no mundo atual, ainda machista e intolerante, contra quem possui disfunções físicas de cunho sexual, razão pela qual a vítima do preconceito, por orgulho pessoal, sempre se vê na obrigação de rechaçar o rótulo de impotente, principalmente quando não o é, tendendo, portanto, a provar que não detêm defeitos físicos sexuais. No caso em questão, o varão não se preocupou em pedir provas periciais que pudessem constatar sua potência sexual e ainda aceitou a anulação do casamento, motivo pelo qual o Tribunal aceitou a presunção da sua impotência e decidiu anular o casamento por esse defeito físico e não pela aversão sexual de sua esposa. Outro julgado sobre o tema aqui abordado é o presente na Remessa de Ofício nº 102250 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ainda sobre a égide do Código 49 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Cível nº 251.816-5. Sexta Câmara Cível. Rel. Des. Jarbas Ladeira. Julgado em 29/04/2002. 50 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Remessa de Ofício nº 1022. Quinta Turma Cível. Rel. Des. Vera Andrighi. Julgado em 03/05/1999. 44 Civil de 1916. Nele, observa-se os cônjuges foram casados durante seis meses e, após esse período, separam-se de fato. Enquanto casados, os cônjuges não tiveram qualquer relação sexual, pois o varão não conseguia realiza-lo, não sabendo este cônjuge como justificar sua impotência. Fato interessante é que o casal já namorara durante dois anos antes de se casarem e não houve qualquer sinal de impotência do homem nesse tempo. A sentença de primeira instância determinou a anulação do casamento por erro essencial a pessoa do cônjuge advindo da impotência coeundi psicológica do varão em relação somente a sua esposa. Os cônjuges não recorreram desta decisão, mas o Ministério Público apresentou apelação alegando a superficialidade do laudo pericial que embasou a sentença. O Tribunal candango, por meio de sua Quinta Turma Cível, decidiu que o laudo não era superficial pois foi elaborado por profissional qualificado para tal exame e sustentou que restou comprovada a impotência coeundi de origem psíquica do consorte, causada por motivos anteriores ao casamento, desconhecida pelo outro conjuge e de natureza irremediável, razão pela qual foi mantida a sentença de anulação do casamento. Apesar dessas decisões expressarem o pensamento jurisprudencial dominante, desenvolve-se, ainda de forma inócua, julgados em sentido contrário que não aceitam a impotência sexual como motivo de invalidação do casamento. Baseado na corrente doutrinária moderna, essa nova perspectiva jurisprudencial afirma que a impotência coeundi não é erro essencial a pessoa do cônjuge, pois este erro impossibilita a vida em comum do casal e a impotência sexual não gera essa impossibilidade, pois para o casal viver em comunhão não há de necessariamente haver sexo entre eles, mas sim sentimentos de respeito e amor. Nesse sentido, observa-se o caso trazido a discussão no julgamento da Apelação Cível nº 7000031404751 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no qual, por decisão não unânime, a Sétima Câmara Cível decidiu que a impotência sexual do cônjuge varão não era causa para a anulação do casamento, pois o casal em lide conviveu normalmente mais de um ano e meio juntos, tempo suficiente para dirimir a alegação de que a impotência sexual do homem representava um erro 51 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70000314047. Sétima Câmara Cível. Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 29/03/2000. 45 essencial sobre a pessoa do cônjuge. Também foi sustentado que não existe juridicamente um dever sexual entre os casados, motivo pelo qual a impotência não pode dar azo a impossibilidade de vida em comunhão, não representado, assim, um erro essencial e nem causa de invalidação do matrimônio. 4.2 RECUSA DA PRÁTICA SEXUAL ENTRE CÔNJUGES A recusa à prática sexual por um dos cônjuges, também chamada de coitofobia, também tem um tratamento dado pela jurisprudência pátria. Assim como os casos de impotência sexual, observa-se que a falta de desejo por relações sexuais dentro do casamento é interpretada de dois modos diferentes pelos Tribunais pátrios. De um lado existirão julgados que irão enquadrar essa recusa como causa de anulação de casamento, tendo como base o erro essencial quanto à identidade civil do cônjuge, (artigo 1557, inciso I do CC/2002) e, na outra margem, haverá juízes que caracterizarão a recusa como causa de separação judicial ou divórcio, nos termos do artigo 1572 do Código Civil de 200252. Esta primeira forma de interpretação acima citada sustenta que quando qualquer um dos consortes recusa-se a ter relações sexuais com seu par, pode provocar neste último a sensação de que se casou com uma pessoa que ele acreditava não possuir tais objeções. Desse modo, se o cônjuge recusante não evidenciava a coitofobia ao outro antes da celebração do matrimônio e essa ausência de vontade sexual ocasiona uma divergência de interesses entre os nubentes, gerando a insustentabilidade da vida em comum, este casamento deve ser anulado por erro essencial quanto a identidade civil do consorte aversivo ao sexo. A identidade civil, por seu turno, significa aqui “o conjunto de atributos ou qualidades com que a pessoa se apresenta no meio social” (GONÇALVES, 2012, p. 164). Parte dos julgados posicionam-se dessa maneira, como por exemplo o extraído da Apelação Cível nº 7001680731553 do Tribunal de Justiça do Rio Grande Artigo 1572 do Código Civil de 2002: “Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum”. 52 53TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70016807315. Oitava Câmara Cível. Rel. Des. Rui Portanova, Julgado em 23/11/2006. 46 do Sul. Em sua casuística, a lide foi motivada pela não aceitação do cônjuge varão a recusa de sua esposa ao ato sexual, pleiteando-se, portanto, a anulação do casamento por erro essencial. A sentença de Primeira Instância não aceitou esse argumento, julgando pela improcedência do pedido. No entanto, no julgamento da apelação interposta em face dessa sentença, o Tribunal gaúcho sustentou que a recusa às relações sexuais dentro do casamento sem justificativas é anormal, pois o sexo entre os cônjuges é previsível na constância do casamento, fazendo parte dos usos e costumes da sociedade brasileira. Decidiu, portanto, que restava caracterizado o erro essencial e a consequente anulação do casamento no caso em questão, porquanto a esposa não tem ou nunca teve intenção de manter conjunção carnal após o casamento, mas não exteriorizou essa intenção antes da celebração do matrimônio, acarretando uma legítima frustração de expectativa no outro consorte. Caso semelhante é o presente na Apelação Cível referente ao Processo nº 0009515-58.2008.8.19.000754 de competência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Embora distinto do caso sobredito quanto a casuística, já que esta última ação judicial foi motivada pela insatisfação da mulher com a negativa do homem em realizar atos sexuais com ela, a decisão do Tribunal acompanhou o mesmo sentido da anterior, anulando o casamento por erro essencial, reiterando ainda que a coitofobia é uma causa razoável para que a vida em comum seja insuportável, pois retira do ambiente conjugal as relações sexuais, elemento natural do matrimônio. Entretanto, divergindo da interpretação exposta nessas decisões, outra parte da jurisprudência afirma que a recusa ao sexo é uma violação ao dever matrimonial de coabitação, especialmente ao aspecto do débito conjugal, devendo ter como consequência judicial a separação judicial ou o divórcio. Assevera também que a coitofobia não pode ser encarada como erro essencial sobre a identidade civil do cônjuge recusante, pois a recusa sexual não é um atributo ou qualidade que possa ser verificado no meio social, razão pela qual, padece de qualquer sentido a anulação de casamento derivada desta rejeição. 54 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Apelação Cível do Processo nº 000951558.2008.8.19.0007. Décima Quinta Câmara Cível. Rel. Des. Horácio Ribeiro Neto. Julgado em 31/01/2012. 47 Como exemplo jurisprudencial desse polo interpretativo, observa-se o julgado da Apelação Cível oriundo do Processo nº 2010.055631-955 do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Neste caso, a ação foi ajuizada pelo marido que não aceitava a recusa da sua esposa de manter relações sexuais com ele, pleiteando a anulação do casamento por erro essencial. A sentença de Primeira Instância extinguiu o feito por inadequação da via eleita, em virtude da recusa sexual ser causa para separação judicial ou divórcio, que são ações especiais, e não para uma ação desconstitutiva de casamento, como foi ajuizada pelo demandante. O Tribunal sobredito, em sede de apelação, manteve a sentença, extinguindo o processo, arguindo que a recusa ao sexo não se enquadrava em nenhuma hipótese taxativa de erro essencial do artigo 1557 do Código Civil de 2002, mas sim representava uma quebra do débito conjugal que, por sua vez, é um dever existente no matrimônio, devendo o autor da ação buscar a separação nos moldes do artigo 1572 do CC/2002 ou o divórcio unilateral. Outro julgado interessante advem da Apelação Cível proveniente do Processo nº 2008.001.3164056 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A lide aqui desenvolve-se pela mudança do comportamento do cônjuge varão após o casamento, rejeitando a prática sexual frequente com sua esposa. Diferentemente do caso elucidado anteriormente advindo da apelação do Processo nº 000951558.2008.8.19.0007 do mesmo Tribunal, a Corte aqui julgou que a recusa sexual do homem foi apresentada somente depois do casamento, afastando o aspecto de anterioridade do erro essencial, e que essa ausência de desejo carnal colidia com o dever de coabitação, ensejando separação ou divórcio e não anulação do casamento. Essa interpretação observada nessas decisões sofre atualmente uma restrição quanto a possibilidade da separação judicial ser resultante da rejeição sexual. Acontece que a partir da Emenda Constitucional 66/2010, o divórcio torna-se menos burocrático e a separação judicial perde importância (vide nota de rodapé 32) e hoje, embora ainda exista juridicamente, raramente é pleiteada nos tribunais brasileiros, motivo pelo qual o divórcio passa a ser considerado, dentro dessa 55 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Apelação Cível n. 2010.055631-9. Câmara Especial Regional de Chapecó. Rel. Des. Jorge Luis Costa Beber. Julgado em 24/08/2011. 56 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. AC 2008.001.31640. Décima Sétima Câmara Cível. Rel. Des. Antonio Iloizio B. Bastos. Julgado em 17/09/2008. 48 interpretação, o principal meio jurídico para impugnar a recusa às práticas sexuais na constância do matrimônio. Por fim, embora essas duas formas de pensar a coitofobia apresentem resultados juridicamente distintos, vê-se um aspecto comum entre elas: a abordagem da doutrina tradicionalista do débito conjugal. Essa doutrina mostra-se quando, ao tratar o tema em questão, as interpretações supracitadas fortalecem, mesmo que indiretamente, a existência do dever de prestações sexuais entre os consortes no ordenamento jurídico brasileiro, na medida que caracterizam a rejeição sexual e a consequente ausência de sexo conjugal como algo inesperado, estranho e prejudicial ao casamento, já que torna a vida em comum insuportável, tendo como legítimos corolários jurídicos a invalidação do matrimônio por meio de anulação ou a ruptura do vínculo conjugal oriundo do divórcio. 4.3 ESTUPRO CONJUGAL Hoje em dia, é totalmente defendido pelos doutrinadores e julgadores, tanto na esfera civil quanto na penal, a vedação absoluta em forçar o outro cônjuge à prática sexual não consentida ou desejada. Pode-se observar que, na seara civil, essa proibição é sustentada em duas formas: a) pelas duas correntes doutrinárias sobre o débito conjugal, a tradicional e a moderna, conforme já elucidado nas seções 3.1 e 3.2, no momento que afirmam que existem outros métodos jurídicos de se proceder quando o débito conjugal não esteja sendo cumprido, como por exemplo o ajuizamento de ações de separação, o divórcio ou anulação; b) pela letra dos artigos 7º, inciso III da Lei nº 11.340/200657 (Lei Maria da Penha), que conceitua a violência sexual doméstica contra a mulher. Aqui, cabe ressalvar que a própria lei prescreve, em seu artigo 22, as necessárias medidas de proteção cautelares endereçadas ao marido e cobradas pelo juiz para coibir essa violência sexual, tais como o afastamento do lar; a proibição de Artigo 7º, inciso III da Lei nº 11.340/2006: “São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: [...] III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. 57 49 aproximar-se ou ter contato com a esposa; a restrição ou suspensão de visitas aos filhos; e a prestação de pensão alimentícia. Para o Direito Penal, entretanto, essa vedação é defendida com base do crime de estupro, contido no artigo 213 do Código Penal de 194058. Esta norma, em sua redação original, tipificava o delito de estupro na ação de “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Vê-se, assim, que o sujeito ativo era limitado somente ao homem, já que só ele poderia ter conjunção carnal com uma mulher, e o sujeito passivo sempre era do sexo feminino, independentemente do tipo de relação afetiva, social ou familiar entre esses sujeitos. Mas quando esse crime ocorria entre cônjuges, nem sempre os sujeitos eram entendidos dessa forma. Acontecia que parte minoritária da doutrina penalista brasileira defendia que um homem não poderia ser autor do crime de estupro contra sua esposa, pois, conforme sustenta Nelson Hungria (1956 apud GRECO, 2011), o estupro tem como pressuposto a cópula ilícita, ou seja, aquela havida fora do casamento. Informa este doutrinador que o sexo na constância do matrimônio é dever recíproco dos cônjuges, de tal modo que o marido violentador estaria em pleno exercício regular de direito (excludente de ilicitude) ao obrigar sua esposa a manter relações sexuais com ele, ficando isento, portanto, das penas do estupro e da violência física decorrente do constrangimento. Porém, com o advento da Lei nº 12.015/2009, a redação original do crime de estupro foi alterada, ampliando-se a quantidade de condutas abarcadas por esse tipo legal no sentido de aumentar as proteções aos bens jurídicos da liberdade e dignidade sexuais. O estupro passa, então, a ser tipificado como a ação de constranger alguém a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir qualquer ato libidinoso59 a vítima por meio de violência ou grave ameaça. Observa-se que agora o estupro passa a ter como sujeito ativo um homem ou uma mulher e como sujeito Artigo 213 do Código Penal de 1940: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.html>. 58 59 Ato libidinoso, conforme suscita Capez (2012), pode ser conceituado como toda aquela atitude, mesmo que inconsciente, tentada ou consumada com a finalidade de satisfazer o apetite sexual ou a lascívia do agente. São exemplos de atos libidinosos os coitos anormais, como o sexo oral ou anal. 50 passivo também figurar homens ou mulheres, também independentemente de qualquer relação entre eles. Com essa mudança legal, a interpretação acima citada, que não tipificava o estupro quando cometido contra esposa, é superada, pois agora o estupro não ocorria somente em casos de conjunções carnais, mas sim quando houvesse a prática de qualquer ato libidinoso não consentido, razão pela qual esse crime tornase perfeitamente possível dentro do casamento. O estupro passa, então, a ser considerado plenamente como a proibição penal das relações sexuais forçadas entre cônjuges. O posicionamento hodierno, consoante Damásio de Jesus (2010), é no sentido de que o estupro é caracterizado no ambiente matrimonial, pois, embora exista o direito de manter relações sexuais dentro do casamento, não há a autorização para que o marido venha a forçar a mulher, e vice-versa, a qualquer ato libidinoso. Assevera o referido autor que os cônjuges não estão sujeitos aos caprichos sexuais dos outros e nem perdem o direito de dispor de seu próprio corpo após a celebração do casamento, motivo pelo qual quando não houver consentimento de um dos consortes e o seu par o obrigar a ter relações sexuais por violência ou grave ameaça estará configurado o delito de estupro. Endossando este entendimento e ressalvando a possibilidade do estupro conjugal ser cometido tanto pelo homem quanto pela mulher, cabem às palavras de Cezar Roberto Bitencourt (2012, p. 40), quais são: [...] qualquer dos cônjuges, a nosso juízo, pode constranger, criminosamente, o outro à prática de qualquer ato libidinoso, incorrendo nas sanções cominadas neste dispositivo legal. Nenhum dos cônjuges tem o direito de subjugar seu consorte e submetê-lo, contra a vontade, à prática sexual, seja de que natureza for. O chamado “débito conjugal” não assegurava ao marido o direito de “estuprar sua mulher” e, agora, viceversa, ou seja, tampouco assegura a esta o direito de estuprar aquele, forçando-o à relação sexual contra sua vontade. Garante-lhes, tão somente, o direito de postular o término da sociedade conjugal, ante eventual recusa dos “préstimos conjugais”. Em outros termos, os direitos e as obrigações de homens e mulheres são, constitucionalmente, iguais (art. 5º, I, da CF), inclusive no plano das relações sexuais matrimoniais. A jurisprudência, por seu turno, de modo uníssono, reitera esse posicionamento doutrinário atual, alegando a compatibilidade do crime de estupro com as relações conjugais. Um julgado que retrata bem esse tema foi o prolatado na 51 Apelação Criminal nº 0226280-260 do Tribunal de Justiça do Paraná. Nesse caso, acontecido antes mesmo da alteração no artigo 213 do Código Penal pela Lei nº 12.015/2009, o marido foi condenado sentencialmente por estupro, tortura e atentado violento ao pudor contra sua esposa, tendo recorrido dessa decisão. O tribunal paranaense, ao julgar a apelação, decidiu que a sentença não merecia reparos quanto a tipificação do crime de estupro, pois “a relação sexual voluntária é lícita ao cônjuge, mas o constrangimento ilegal empregado para realizar a conjunção carnal à força se constitui em abuso de direito”, enquadrando-se perfeitamente no tipo do crime de estupro. Observa-se no julgamento desse caso que a declaração da vítima do abuso é considerada como a principal prova do crime, já que oferece mais detalhes sobre as circunstâncias e o modus operandi do delito e serve de meio para que se busquem novas provas ou evidências. Outro exemplo jurisprudencial mais recente é a Apelação Criminal nº 993.06.098734-861 do Tribunal de Justiça de São Paulo. Nela é discutida o caso em que o marido, por ciúmes e raiva da esposa que insistia em sair de casa para trabalhar, promoveu agressões físicas bárbaras a sua consorte e manteve com ela relação sexual não consentida. A sentença condenou-o por estupro e foi mantida em parte pelo Tribunal no julgamento do recurso apelativo. A Segunda Câmara Criminal do Tribunal paulista afirmou que o estupro no caso em questão restava-se plenamente configurado, pois além da conduta do réu estar devidamente provada e enquadrada no tipo legal descrito no artigo 213 do Código Penal, a lei não impõe limites quanto a esse crime na constância do casamento. É sustentado na decisão também que o próprio Código Penal reconhece o estupro conjugal quando concede, em seu artigo 226, inciso II, o aumento de pena até a metade quando o autor do crime de estupro é cônjuge da vítima. Embora afirmando isso, o referido julgado acaba por afastar a incidência dessa majoração de pena ao caso concreto, pois a violência sexual ocorreu no ano de 2004 e o aumento penal para o cônjuge agressor somente adveio com a Lei nº 11.106/2005, não 60 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ. Apelação Criminal Nº 0226280-2. Segunda Câmara Criminal. Rel. Des. Laertes Ferreira Gomes. Julgado em 26/06/2003. 61 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Apelação Criminal nº 993.06.098734-8. Segunda Câmara Criminal. Rel. Des. Ivan Marques. Julgado em 26/01/2009. 52 podendo, sob pena de quebra do princípio da irretroatividade da lei penal in malam partem62, gerar efeitos ao consorte réu. 62 Conforme o artigo 2º, parágrafo único do Código Penal, a lei posterior somente pode afetar o réu que cometeu crime antes de sua vigência, mesmo com o caso já decido por sentença transitada em julgado, se for benéfica a este. Assim, qualquer malefício que uma lei posterior traga a um acusado ou condenado por fato anterior não gera efeitos, criando, portanto, a ideia da irretroatividade da lei penal em prejuízo do réu ou in malam partem. 53 5 CONCLUSÃO Tendo em vista toda a análise do débito conjugal realizada no presente trabalho, observa-se, inicialmente, que esse dever sexual não é algo novo ou que foi construído rapidamente, mas sim que foi desenvolvido e firmado historicamente na medida em que o instituto do casamento também era fixado na sociedade, mostrando uma dependência e continência do dever sexual em relação ao matrimônio. Nas sociedades primitivas, foi evidenciado que a ideia do débito conjugal ainda não existia, pois não havia estabilidade suficiente das relações afetivas que justificassem um dever de prestações sexuais entre os parceiros. Essas relações afetivas primitivas eram bastante transitórias e desprovidas de afeto entre o casal, características essas que provocaram, a partir das sociedades clássicas, a criação do casamento com o intuito de conferir mais durabilidade as relações conjugais e de fazer surgir a família legítima, a única digna de proteção do Estado. O casamento, em seus primeiros momentos na Antiguidade, continuou com a finalidade de reprodução, não somente para o crescimento populacional das sociedades, mas para suprir as carências sociais deixadas pelas intensas guerras travadas no período. Essa necessidade de se reproduzir e maior durabilidade das relações matrimoniais geraram a ideia de que o sexo é algo intrínseco ao casamento e, sem ele, não havia como manter os laços conjugais, razão pela qual figurava-se um dever dos cônjuges em pratica-lo. Era, assim, edificado o débito conjugal. Essa ideia foi, cada vez mais, sendo difundida socialmente entre as civilizações antigas, especialmente a romana, mas não era institucionalizada juridicamente. Essa institucionalização só adveio com o comando do direito canônico no período medieval. Neste direito, o matrimônio foi tido como um sacramento e, portanto, indissociável da Igreja Católica, ficando esta entidade religiosa como a responsável por normatiza-lo e celebra-lo. Desse modo, ao legislar sobre o casamento, o direito canônico firmou as bases jurídicas do debitum conjugale, passando o recato a ser considerado uma causa de invalidade do casamento caso não fosse realizado, já que a prática sexual entre os consortes representava a própria consumação do matrimônio, ficando, assim, os cônjuges obrigados a terem relações sexuais. Não somente isso, mas a Igreja também se preocupou em institucionalizar impedimentos matrimoniais como 54 base nas relações sexuais, como a vedação do casamento de impotente sexual ou quando um dos cônjuges houvesse proferido votos de castidade. Com passar dos tempos, o crescimento do poder dos Estados e o nascimento de diversas outras religiões cristãs no período conhecido como Reforma Protestante acabaram por enfraquecer política e socialmente a Igreja, o que, consequentemente, acarretou na substituição das normas matrimoniais canônicas pelas normas estatais, fenômeno conhecido como secularização ou laicização do casamento. Entretanto, observou-se que, embora a Igreja tivesse perdido parte de seu poder, conseguiu influenciar os ordenamentos jurídicos de Estados católicos, como Portugal. Este, por sua vez, ao colonizar o Brasil passou a difundir ideais canônicos (dentre eles a doutrina do débito conjugal), que ainda restam, em parte, cristalizados no ordenamento jurídico pátrio. Atentando a essa influência canônica na atualidade, o presente trabalho preocupou-se em analisar como o dever de mútuas prestações sexuais entre os cônjuges é encarado pela doutrina civilista brasileira. Foi constatado que esse dever é tema ainda recorrente para os estudiosos do direito de família, existindo duas correntes doutrinárias e contrapostas sobre o tema. A primeira, denominada de corrente tradicional, é a majoritária e defende o debitum conjugale como um dos aspectos do dever legal de coabitação entre os cônjuges, asseverando que a presença do sexo dentro do casamento é normal e previsível, motivo pelo qual o dever sexual recíproco dos consortes, mesmo não sendo essencial para todos os casamentos e tendo limites impostos pela própria legislação, é compatível como a realidade fática do matrimônio. A segunda, denominada de corrente moderna, por seu turno, defende a não inserção do débito conjugal no dever de coabitação e a incompatibilidade do desse dever matrimonial na atualidade em virtude de que a sua satisfação ofende a liberdade sexual, a dignidade humana, a intimidade e a inviolabilidade do corpo do nubente, razão por que não pode ser tutelado pelo Direito. Essa doutrina, porém, não nega a existência social ou costumeira do debitum, restringindo-se somente a discussão jurídica deste dever sexual. No entanto, ao descrever essas doutrinas, restou nitidamente constatado que ambas sinalizam que o débito conjugal, sendo ou não protegido pelo direito estatal, acarreta em consequências jurídicas tanto para as situações em não for cumprido quanto para aquelas em que sua satisfação seja forçada por um dos cônjuges. 55 Inserido no contexto dessas consequências jurídicas, esta monografia, por fim, se deteve em analisar os principais casos práticos judiciais envolvendo o débito conjugal, quais foram a impotência coeundi, a coitofobia e o estupro conjugal, verificando quais são os resultados jurídicos cabíveis em cada situação. Foi observado, então, que a referida impotência, ao obstar a prática sexual entre os consortes, acaba por ser considerada majoritariamente, pelos Tribunais brasileiros, como um exemplo de erro essencial de defeito físico e irremediável capaz de anular o casamento. A coitofobia ou a recusa de ter relações sexuais com o cônjuge também será tido por parte da jurisprudência como causa de anulação de casamento fundamentada como erro essencial a identidade civil do consorte ou, pela outra parte jurisprudencial, como causa de separação ou divórcio. Para o estupro conjugal, por sua vez, restou demonstrado que, em que pese antigas e já superadas teses doutrinárias em contrário, é para a jurisprudência absolutamente vedado e totalmente compatível com as relações sexuais entre casados. Desse modo, diante de tudo que aqui foi exposto, conclui-se que o débito conjugal é ainda hodiernamente uma realidade no casamento e no direito brasileiro, mesmo com as discordâncias existentes na doutrina e jurisprudência que só evidenciam a importância que esse tema para a vida familiar. Além disso, vê-se que é preciso o seu estudo e o seu contínuo questionamento para que sua existência na constância do casamento não exceda nunca os limites estabelecidos pelas leis e princípios jurídicos, bem como para que não seja algo desagregador dos laços de amor e afeição nos quais devem se basear todas as famílias. 56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMADA, Ney De Mello. Direito de familia. São Paulo: Brasiliense,1987. ALVES, Leonardo Moreira. O tratamento do débito conjugal na jurisprudência brasileira. Disponível em: <http://www.leonardomoreiraalves.com.br/p/o-tratamentodo-debito-conjugal-na-jurisprudencia-brasileira>. Acesso em 16 ago. 2014. BEVILAQUA, Clóvis. Direito de Família. 7. ed. Rio de Janeiro: Rio, 1976. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Santo André/SP: Geográfica, 2014. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 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