UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
MARCELLO FREIRE ALVES DE SOUZA FILHO
DÉBITO CONJUGAL NO CASAMENTO: ASPECTOS HISTÓRICOS,
DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS
NATAL/ RN
2014
MARCELLO FREIRE ALVES DE SOUZA FILHO
DÉBITO CONJUGAL NO CASAMENTO: ASPECTOS HISTÓRICOS,
DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS
Monografia apresentada junto ao Curso de Direito da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito para obtenção do título de Bacharel.
Orientador: Prof. Ms. Samuel Max Gabbay.
NATAL/ RN
2014
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Souza Filho, Marcello Freire Alves de.
Débito conjugal no casamento: aspectos históricos, doutrinários e
jurisprudenciais/ Marcello Freire Alves de Souza Filho. - Natal, RN, 2014.
59f.
Orientador: Prof. M. Sc. Samuel Max Gabbay.
Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de
Direito.
1. Casamento – Aspectos históricos - Monografia. 2. Débito conjugal Monografia. 3. Direito de família – Monografia. I. Gabbay, Samuel Max. II.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA
CDU 347.62
Aos meus amados pais Marcello e Ana Maria, pelas
diárias e valorosas lições sobre a vida e pelo amor
incondicional depositado em mim.
À minha pequena irmã Beatriz, que me preenche de
felicidade com a inocência do seu sorriso.
RESUMO
O dever de se relacionar sexualmente entre consortes, chamado também de débito
conjugal, sempre esteve atrelado ao casamento. Historicamente, a ideia desse dever
surge como consequência do instinto e da necessidade social de reprodução,
aspectos típicos do matrimônio das sociedades clássicas, que culmina, mais tarde,
em sua tutela jurídica pelo Direito Canônico medieval na forma do jus in corpus. A
Igreja Católica, mesmo perdendo poder em virtude da Reforma Protestante e da
criação dos Estados Absolutos, conseguiu influenciar diversos ordenamentos
jurídicos, dentre eles o português e o brasileiro. Essa influência trouxe para o Direito
pátrio o débito conjugal que, por sua vez, ainda gera discussões doutrinárias sobre a
sua existência e compatibilidade com o atual Direito de Família brasileiro. Além
disso, motivou debates sobre quais seriam suas consequências jurídicas para
quando fosse satisfeito ou não. Essas consequências provocaram o ajuizamento de
ações judiciais de anulação de casamento, divórcio ou até penais por situações
tanto de ofensa ao debitum conjugale, como no caso de impotência sexual de um
dos cônjuges e recusa voluntaria às práticas sexuais, quanto por satisfação forçada
do dever sexual mediante violência ou grave ameaça, como, por exemplo, na
hipótese de estupro conjugal.
Palavras-chave: sexo; débito conjugal; casamento; doutrina; jurisprudência.
ABSTRACT
The duty of sexual relations between consorts, also called conjugal debt, has always
been tied to marriage. Historically, the idea of that duty arises as result of instinct and
social necessity of reproduction, typical aspects of marriage of Classical Societies,
culminating later in his legal guardianship by medieval Canon Law in the form of jus
in corpus. The Catholic Church, even losing power due to the Protestant Reformation
and the establishment of Absolute States, managed to influence various legal
systems, among them the Portuguese and Brazilian. This influence has brought to
the paternal Law the conjugal debt which, in your turn, also generates doctrinal
discussions about its existence and compatibility with the current brazilian Family
Law. In addition, motivated debates on what would their legal consequences for
when were satisfied or not. These consequences caused the filing of legal actions for
annulment of marriage, divorce or even criminal ones both for situations of offense to
debitum conjugale, as in the case of sexual impotence of one of the spouses and
volunteered refusal to sexual practices, as well as forced satisfaction sexual duty
through violence or serious threat, such as, for example, in the case of marital rape.
Keywords: sex; conjugal debt; marriage; doctrine; jurisprudence.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 08
2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DO DEVER SEXUAL ................................................. 11
2.1 SOCIEDADES PRIMITIVAS E ANTIGAS CIVILIZAÇÕES .......................... 11
2.1.1 Primeiras Sociedades Humanas ........................................................ 11
2.1.2 Antigas Civilizações e o Surgimento do Casamento ...........................12
2.2 FAMÍLIA ROMANA ...................................................................................... 15
2.3 O DIREITO CANÔNICO E A CONSOLIDAÇÃO DO DÉBITO CONJUGAL .19
2.3.1 A Secularização Do Casamento ......................................................... 26
2.4 O CASAMENTO NO DIREITO FAMILIAL BRASILEIRO ............................. 28
3 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE O DÉBITO CONJUGAL ......... 35
3.1 CORRENTE TRADICIONAL ........................................................................ 35
3.1.1 O Débito Conjugal Como Dever Legal ............................................... 35
3.1.2 Exceções e Limites Do Débito Conjugal ............................................. 37
3.2 CORRENTE MODERNA .............................................................................. 39
4 REPERCUSSÕES JURISPRUDENCIAIS DO DEBITUM CONJUGALE ............. 42
4.1 IMPOTÊNCIA SEXUAL ................................................................................ 42
4.2 RECUSA DA PRÁTICA SEXUAL ENTRE CÔNJUGES .............................. 45
4.3 ESTUPRO CONJUGAL ............................................................................... 48
5 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 53
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 56
8
1 INTRODUÇÃO
A sociedade tem como principal estrutura básica a entidade familiar1. É por
meio da família que os seres humanos recebem os mais relevantes valores e
ensinamentos morais e sociais que necessitam para que possam formar o seu
caráter, viver dignamente e contribuir para o desenvolvimento da coletividade. É no
ambiente familiar também onde ocorre a maior centralização e reciprocidade de
amor, carinho e respeito entre indivíduos, sentimentos esses essenciais para o bem
estar das pessoas no meio social e para a evolução da própria sociedade como um
todo. A partir desta importância social da família e da sua constante transformação
ao longo do tempo, característica inerente a qualquer instituto social, o seu estudo
torna-se cada vez mais preciso para que tanto possa ser compreendida quanto
aperfeiçoada nos seus mais diversos aspectos.
Uma das ciências que se preocupa em estudar o instituto da família é a
ciência jurídica, que “serve de instrumento de harmonização das relações sociais,
limitando as liberdades e tutelando os direitos e garantias fundamentais e os
interesses coletivos” (ELALI, 2010, p. 38). O Direito, assim como procede para todos
os fatos sociais relevantes que possam importar conflitos sociais, terá como função
a regulação normativa da entidade familiar, com a finalidade de sempre fazer
prevalecer a ética, os bons costumes e sentimentos de afeto nas relações
intrafamiliares. Para que possa desempenhar bem essa função, o Direito utiliza-se
de formas sociais de organizar a família, tal como o instituto do casamento ou
matrimônio.
Esse instituto nasce com o objetivo de tornar a família legítima, disciplinando
as relações entre duas pessoas (cônjuges ou consortes), que unidas por laços
amorosos, decidem se desvincular de sua família original para constituir uma nova
família. A disciplina atribuída pelo casamento origina uma série de formalidades,
como as presentes no seu registro e celebração, e alguns direitos e deveres para
aqueles que desejam se casar. Entre estes direitos e obrigações, há um, bem
peculiar, denominado de débito conjugal.
Artigo 226 da Constituição Federal de 1988: “A família, base da sociedade, tem especial proteção
do Estado”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado
.htm
1
9
Esse debitum é tido como o direito-dever de mútua prestação sexual entre os
cônjuges na constância do matrimônio, querendo, portanto, afirmar a ideia de que as
relações sexuais fazem parte da vida em comum do casal, tendo cada nubente a
obrigação de satisfazê-las e o direito de cobra-las de seu par. Observa-se que ele é
um elemento intrínseco e indissociável ao instituto do casamento, independente do
gênero3 dos consortes ou da forma de celebração, e, embora não seja um dos
deveres mais mencionados pela doutrina especializada no Direito familial, seu
estudo é bastante importante para a compreensão total do casamento e,
consequentemente, da família.
Destacar a relevância do débito conjugal na família, ressaltando sua formação
histórica e sua influência no casamento, e apresentar as visões e controvérsias
atuais sobre dever para o Direito familial brasileiro, tanto pela ótica doutrinária
quanto pela jurisprudencial, são os objetivos deste trabalho.
Para atingir esses objetivos, a presente monografia tratará, primeiramente,
em analisar, pelo viés histórico, o processo de constituição dos institutos do
casamento e do debitum conjugale desde as sociedades primitivas até a atualidade
do Direito brasileiro, afim de que se perceba como a ideia de prestação sexual entre
os cônjuges foi construída socialmente com o passar dos tempos e de que forma ela
tornou-se relacionada ao matrimônio. Somente com essa percepção, pode-se
entender as origens do direito-dever do débito conjugal, a delineação histórica de
seu conceito e como e em que medida a sua influência se apresentou no Direito
familial pátrio.
Após, ver-se-á como o dever sexual é tratado pela doutrina civilista brasileira.
Aqui, pretende-se revelar a discussão doutrinária sobre a existência ou não do
débito conjugal no mundo hodierno, bem como saber se ele é compatível com a
atual legislação civilista, e se for, quais são as consequências jurídicas e fáticas
geradas em caso de seu descumprimento.
3
Quanto ao gênero dos cônjuges, o casamento pode ser de dois tipos: heterossexual, quando os
casados têm sexos diferentes, ou homossexual, quando os consortes pertencem ao mesmo sexo.
Historicamente, no mundo ocidental, o primeiro tipo sempre foi mais socialmente aceito e estudado
do que o segundo, de modo que sempre foi positivado juridicamente em detrimento deste último. No
entanto, atualmente, o casamento homossexual mostra-se como uma indiscutível realidade fática e
jurídica, não sendo a toa que está, cada vez mais, sendo tutelado pelos diversos ordenamentos
jurídicos ocidentais, como o brasileiro, que embora não o expresse em letra de lei, permite-o por meio
de farta jurisprudência e pela Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça que impede os
Cartórios de Registro Civil de recusar a conversão união estável homossexual em casamento. Dessa
forma, em virtude dessa aceitação jurídica do casamento homossexual, a análise do débito conjugal
discutido no presente trabalho também deverá ser aplicada a esta forma de casamento.
10
Por derradeiro, com a finalidade de mostrar em que situações o débito
conjugal pode influenciar na realidade familiar, apresentar-se-á as repercussões
jurisprudenciais relacionadas ao referido dever sexual, abordando os principais
casos práticos sobre o tema e observando como são interpretados e decididos por
diferentes Tribunais do país.
11
2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DO DEVER SEXUAL
2.1 SOCIEDADES PRIMITIVAS E ANTIGAS CIVILIZAÇÕES
2.1.1 Primeiras Sociedades Humanas
A prática sexual sempre foi um dos principais e mais primários instintos do ser
humano. Não apenas pelas sensações corpóreas prazerosas que o envolvem, mas,
principalmente, porque é único meio natural de uma espécie animal se reproduzir e
continuar existindo. Essa necessidade de reprodução foi o grande motivo social da
existência do sexo nas primeiras sociedades humanas.
Como afirma Clóvis Bevilaqua (1976, p. 38), “a característica desses
primeiros momentos de evolução das relações conjugais foi a indisciplina, a
irregularidade, a transitoriedade e a existência de modalidades diversas”. Os
primeiros povos, ainda vivendo em nomadismo, não conheciam o mesmo modo de
organização jurídica da família que contempla-se hodiernamente. Nas hordas em
que viviam, em um estágio inicial, os homens e as mulheres se pertenciam uns aos
outros, não havendo qualquer sentimento de posse ou até mesmo afeição entre
eles. Os casais transitórios se formavam apenas pelo desejo físico e necessidades
sexuais. Não havia, portanto, qualquer vontade destes indivíduos em iniciar uma
união conjugal estável e prolongada, mesmo que carnal.
A partir do sedentarismo e do início da prática da agricultura e criação de
animais, nos idos do Período Neolítico, muda-se um pouco a forma das relações
conjugais e da família. Elas passam a ser mais duradouras e com um maior grau de
afeição e envolvimento amoroso entre os cônjuges, embora ainda prevalecesse, em
muitas das tribos, a poligamia. Nesse período, defende-se que houve o predomínio
do matriarcalismo nas relações familiares.
O matriarcalismo tinha uma razão de ser. O homem ainda se apresentava
com caráter bastante temporário no seio familiar, pois além da própria cultura de
relações conjugais transitórias, ainda era o responsável pela caça de animais para a
alimentação do bando. Assim, quem organizava a estrutura familiar era a mulher
que, por sua vez, desempenhava atividades essencialmente domésticas, cuidando
dos filhos e preparando a alimentação. Como afirma Almada (1987), a belicosidade
entre as diversas tribos primitivas também era causa do predomínio da mulher na
12
família, já que era fator que ocasionava distância do homem para a família e custava
várias vidas masculinas em batalhas.
No entanto, com o aumento da produção de alimentos e posterior início das
trocas comerciais e desenvolvimento da economia, o patriarcalismo começou a ser
posto em prática. Os homens se apoderam dos meios de produção e do trabalho
remunerado, excluindo, consequentemente, as mulheres, e passam a organizar toda
a vida da coletividade os quais estão inseridos. Na família, passam a atuar mais,
intervindo com maior poder em suas relações com a mulher e filhos, e aliado ao
crescimento de seu poder econômico-familiar (já que dele advem toda a riqueza da
família), começam a chefia-la.
Nesse momento, mesmo com uma maior atuação do homem na família,
começava a ser esculpidas as bases morais e sociais do que deveria ser uma
família, embora as relações familiares ainda se mostrassem indisciplinadas e
poligâmicas. Essas relações só irão ser moralizadas e legitimadas com a ascensão
do instituto do casamento.
2.1.2 Antigas Civilizações e o Surgimento do Casamento
Com o crescimento da produção de alimentos, o desenvolvimento do
comércio e, principalmente da escrita, as sociedades humanas foram se tornando
cada vez mais complexas. A população aumentava e as tribos iam se tornando
maiores, transformando-se em verdadeiras vilas ou cidades. Na sociedade, aos
poucos, passou a existir aqueles indivíduos com bastante riqueza (esta sendo
demonstrada primeiramente em forma de terra e produtos para comércio por
escambo e, posteriormente, pelo acúmulo de metais que, por sua vez, substituíam a
troca de produto por produto, originando a moeda), em detrimento da maioria dos
indivíduos, que possuíam poucas maneiras de custear suas sobrevivências.
Desse modo, esses ditos mais ricos, utilizando-se de seu poder econômico
proveniente de suas riquezas, da sua influência política nas religiões e do seu
conhecimento da escrita, passam a expandir seu domínio sobre as sociedades em
que estão inseridos, governando-as. Para isso, criaram a figura embrionária do que
se chamaria de Estado. Este, completamente comandado pelos caudalosos da
sociedade, constituía-se como uma instituição que, além de primar pela manutenção
13
de seus comandantes no poder, tinha como função principal e privativa a
organização das condutas dos indivíduos que estão sobre sua esfera de influência.
Nesse sentido, então, passam a ser elaboradas, pelos entes estatais, as
primeiras normas escritas de regulação de condutas na sociedade, criando-se o
direito positivado, abarcando toda a vida social das pessoas, dos atos civis aos
delitos penais, e seguindo sempre os costumes praticados na época. Dentre esses
preceitos normativos, figuram-se, especialmente, as normas que passavam a regular
a família.
Essas regras do direito familial terão como objetivo a moralização e
ordenação das uniões entre homens e mulheres, de tal modo que as famílias
passem a ser consideradas legítimas aos olhos do Estado. A finalidade da regulação
familiar tinha uma razão de ser, pois naquele período as uniões ainda se mostravam
transitórias e conturbadas, advindas do modelo das sociedades mais primitivas, de
modo que havia um ambiente familiar destituído de afeto e amor, com pouquíssima
estabilidade, nenhum controle coercitivo e de quase total relegação dos devidos
cuidados e proteção dos filhos por parte dos pais que, por sua vez, fixavam suas
atenções na busca do prazer sexual.
Diante desse panorama de instabilidade familiar e social, como uma de suas
regras, os Estados da antiguidade criam o que até hoje é o instituto jurídico mais
delineador da família: o casamento ou matrimônio. Esse instituto nasce com a
função principal de ser o molde de estabelecimento da chamada família legítima, ou
seja, aquela que segue os termos das leis e, portanto, vista com bons olhos pelos
Estados e pela sociedade. O casamento surgirá para conferir controle às uniões
entre homens e mulheres, legitimando e moralizando a família e a prole. Nesse
sentido, afirma Maria Berenice Dias (2007, p. 27):
O intervencionismo estatal levou à instituição do casamento: convenção
social para organizar os vínculos interpessoais. A própria organização da
sociedade dá-se em torno da estrutura familiar e não em torno de grupos
outros ou de indivíduos em si mesmos. A sociedade, em determinado
momento histórico, institui o casamento como regra de conduta. Essa foi a
forma encontrada para impor limites ao homem, ser desejante que, na
busca do prazer, tende a fazer do outro um objeto. É por isso que o
desenvolvimento da civilização impõe restrições a total liberdade, e a lei
jurídica exige que ninguém fuja dessas restrições.
As normas matrimoniais da antiguidade, ao regular o convívio entre os
familiares, também passam a ser as primeiras formas jurídico-sociais de disciplinar,
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com eficácia, o sexo entre os cônjuges, impondo-o os valores morais pertencentes a
cada sociedade e condicionando-o, quase que exclusivamente, à procriação que,
por seu turno, naquela época, já se despontava como a principal finalidade para a
constituição de uma família legítima. Nasce a partir daí, o primeiro embrião do
direito-dever de mútua prestação sexual entre cônjuges que, mais tarde e mais
desenvolvido, viria a se chamar de débito conjugal.
A influência dos ditames do matrimônio no sexo conjugal irá se perdurar no
tempo, com algumas modificações ideológicas no seu transcurso, não sendo a toa
que Kant (2003, p. 122) e Bevilaqua (1976, p. 33), mesmo após séculos da criação
do instituto, conceituaram o casamento, respectivamente, como “a união sexual de
acordo com a lei” e “a regulamentação social do instinto de reprodução”.
Ainda conforme essa regulação das práticas sexuais entre os cônjuges, para
a maioria dos povos da Antiguidade, vê-se que o casamento era poligâmico. Foram
inúmeros os exemplos de sociedades antigas que incentivam a poligamia, tais como
as diversas sociedades mesopotâmicas, como os hebreus que tinham o peculiar
costume de desposar os irmãos do cônjuge varão falecido com a viúva para a
continuação da família; a indiana, sob a égide das Leis de Manu; a chinesa e a
egípcia.
A poligamia tinha uma razão de ser, já que para essas sociedades, além de
ser uma herança cultural deixada pelos povos primitivos, não era vista com
negatividade ou como sinônimo de imoralidade, mas sim como algo natural, já que
era fruto do pensamento patriarcalista muito dominante na época e contribuía
significativamente para o aumento da população que, por sua vez, era diminuída de
forma contínua pelas constantes guerras e intensos êxodos que aconteciam
naqueles tempos.
Porém, em outras poucas sociedades, como as gregas e a romana, o regime
monogâmico era o acertado. Na grega, embora o casamento legal com mais de
duas pessoas e a bigamia fossem proibidos, o concubinato era estimulado,
principalmente pelas figuras das Hetairas, cortesãs que prestavam favores sexuais
em troca de prestígio público. É na Grécia, também, que surgem as primeiras
causas de anulação do casamento ou divórcio, que se diferenciavam entre homens
e mulheres, sendo que “a esposa atheniense só podia pedir divórcio se o marido
fosse estéril (ou seja a sofresse da maldição dos deuses) ou cometesse bigamia. O
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esposo podia pedir divórcio no caso de adultério, esterilidade, bigamia, etc.”
(SANTOS, 2007)4.
Embora, o casamento monogâmico tenha surgido antes da sociedade
romana, como supracitado, é nela que irá se fortalecer mais e onde surgirá as
primeiras evidências do dever sexual entre os cônjuges (que até então era
sublimado pela necessidade de procriação e aumento populacional das sociedades
antigas).
2.2 FAMÍLIA ROMANA
O povo romano desenvolveu um modelo de família que influencia ainda em
vários pontos, não somente legais, mas sociais, o mundo ocidental hodierno. Seu
modo de constituir e organizar a família, mesmo com bastante influência da cultura
helênica, foi único em toda a antiguidade. A evolução e os direitos concedidos aos
membros familiares, principalmente as mulheres e aos filhos, ao longo da história,
são considerados as grandes primeiras mudanças na história da família desde a
criação do instituto matrimonial. Sob essa ótica, passa-se a analisar os principais
aspectos da família em Roma.
A família romana caracteriza-se, num primeiro momento, pela supremacia
absoluta do pater familias. Este é o patriarca, o ascendente vivo mais velho do orbe
familiar, o que detinha a patria potestas. Sob a chefia dessa figura, a família era tida
como um conjunto de pessoas, unidas por laços de consanguinidade ou não,
controladas patrimonial, religiosa, jurisdicional e politicamente por um poder
absoluto.
O pater dominava todos os aspectos da família. Conforme afirma Wolkmer
(2008),
era
ele
que
detinha
a
propriedade
e
administrava
com
total
discricionariedade o patrimônio de toda a família; investia-se na figura de sacerdote
máximo no culto doméstico, que, por sua vez, consistia-se em reverenciar os deuses
e os próprios antepassados mortos; e era o julgador das lides internas das famílias,
tendo plena liberdade de elaborar as regras e as penas a serem executadas.
Nessa fase inicial da família, o Estado Romano estava em período de
formação e não possuía meios ou interesses, já que o Senado e toda a
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Documento online não paginado.
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administração pública eram comandados pelos próprios chefes de família, para
limitar o poder familiar do pater famílias. A família era, portanto, uma pequena
comunidade política, aos comandos de uma figura sui juris, que não possuía
qualquer autoridade, dentro ou fora do seio familiar, com mais poder do que ele.
Como exemplo da política utilizada dentro da família romana, observa-se que
haviam duas formas de casamento: sem ou com manus. A primeira era aquela que a
esposa, ao se casar, ainda continuava subordinada ao patriarca de sua família de
sangue, enquanto o segundo modo é aquele que a mulher oferecia a sua mão
(manus), deixando de vez sua família de origem e ingressando, com o
consentimento do pater, na família do marido, a qual passava a ser comandada
pelos ditames desse patriarca marital.
Conforme WALD (1995), devido a essa possibilidade de mudança de
vinculação de um patriarca para outro, passa a existir dois tipos de parentescos
familiares: Agnação e Cognação. O primeiro era aquele que vinculava as pessoas,
consanguíneos ou não, que estavam sujeitas ao mesmo pater, como por exemplo
um filho biológico e um filho adotado de comum patriarca. O parentesco por
cognação,
por
sua
vez,
era
o
aquele
derivado
da
consanguinidade,
independentemente se as pessoas eram agnadas ou não. Dessa forma, por
exemplo, quando a mulher casava-se com manus continuava cognada a seu pai,
mas não agnada pois passava a ser sujeita ao pater marital.
Em relação ao casamento com manus, que foi o tipo mais comum e
respeitado na época do poderio dos patriarcas, vê-se que havia três espécies
diferentes: confarreatio, coemptio e usus. A primeira era a mais bem vista e aquela
destinada exclusivamente ao patriciado, classe nobre de Roma, e continha todo um
aparato de formalidades com forte teor religioso, conforme pode se observar nas
palavras de Almada (1987, p.61/62):
A confarreatio era privilégio dos patrícios e rico simbolismo a caracterizava,
infiltrando-se nos atos da celebração, forte ingrediente religioso. Para que
pudesse deixar seu lar de origem, era a mulher autorizada pelo pai
(tradição), e, especialmente trajada, além de precedida por cortejo, era
conduzida à casa do esposo, velada, portando uma coroa e um archote
nupcial. Cantava-se antigo hino religioso e o séquito parava em frente à
casa do esposo, oportunidade em que a noiva recebia água (usada pela
família em unções religiosas) e fogo, expressão simbólica da divindade do
lar. Processava-se, então, rapto simulado. O esposo tomava-a nos braços e
dessa forma penetravam ambos no interior da casa, seguindo até defronte
ao fogo doméstico em cujo redor ficavam imagens divinas e de
antepassados, conforme os usos e tradições religiosas. Participavam,
17
então, da comida de um bolo de farinha [chamado de pannis farreus, que
deu origem ao nome confarreatio, e que tinha como finalidade simbolizar o
início da vida em comum do casal] entre orações que eram feitas, servindo,
como sacerdote, o pater famílias [do marido].
No coemptio, porém, não havia tantas solenidades, sendo destinado aos
plebeus e correspondendo ao casamento civil, já que não havia qualquer ingerência
religiosa. Caracterizava-se pela venda da mulher pelo pater famílias ao qual estava
subordinada ao esposo. Por fim, na terceira forma, o usus, havia um usucapião da
mulher, no qual esta figurava-se como objeto de posse do marido durante o período
de um ano, ao término do qual, restava-se consolidada a propriedade da mulher,
passando, então, a ser considerada casada. Nessa última forma, a esposa só
poderia dissolver o casamento caso provasse o abandono de lar por três dias ou
mais realizado pelo marido no prazo anual sobredito.
Observando essas duas últimas espécies de casamentos, é nítido a situação
de inferioridade da mulher romana frente ao patriarcalismo exacerbado comum na
sociedade. As esposas eram incorporadas ao patrimônio familiar, como se objetos
fossem, vivendo em uma total submissão às ordens do marido ou do pater, não
tendo direitos dentro da família ou sucessórios e sendo consideradas como
incapazes absolutas para os atos da vida civil.
Os romanos, na linha dos gregos, também foram um dos primeiros povos a
institucionalizar e normatizar determinados impedimentos e requisitos para a
validade dos matrimônios, que ainda influenciam no direito familial hodierno.
Consoante Bevilaqua (1976), esses impedimentos se referem às hipóteses de:
existência de casamento anterior de pelo menos um dos nubentes; ao casamento
com escravos; aos impúberes; quando havia qualquer parentesco entre os
nubentes; a algumas funções públicas, como os magistrados provinciais e as
mulheres que viviam dentro de sua circunscrição de autoridade; e aos tutores ou
curadores com suas pupilas ou curateladas. Ainda existiam impedimentos de ordem
temporal como a viúva que só poderia casar-se novamente decorridos doze meses
da morte do marido.
Seguindo a trilha do tempo, com o alvorecer do direito clássico romano e a
chegada do Império, o pater foi perdendo sua autoridade e poder dentro da família
para o Estado, que cada vez mais interferia na vida civil por meio de normas de que
passava a ser elaborador exclusivo.
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Nesse período, tem como principais mudanças: o fim do chamado ius vitae
necique, ou seja, o direito de vida e morte, e o direito de venda, exercidos pelos
patriarcas em relação a todos os membros da família; a substituição do casamento
sem manus em relação aos com manus; a mulher começa a ganhar mais autonomia,
adquirindo direitos sucessórios na herança deixada pelo marido e garante a guarda
dos filhos, em caso de dissolução conjugal; e os filhos passam também a ter direitos
sucessórios, podendo administrar seus vencimentos e doações e levar ao
conhecimento dos magistrados qualquer abuso de poder dos patriarcas, inclusive
podendo o juiz suprir o consentimento do pai para que seja realizado o casamento
da filha, quando este, injustamente, o negar.
Mas não apenas de direitos foram as inovações desse período. A própria
relação entre os cônjuges passa a dar outra concepção ao instituto matrimonial.
Nesse sentido, a noção de casamento regulado pelo pater familias, que muitas
vezes ignorava os sentimentos e a afeição do casal, é inteiramente substituída pelo
matrimônio gerido pela affectio maritalis, ou seja, “a livre vontade dos cônjuges para
casar um com o outro” (SOUZA FILHO, 2014, p. 377).
Nessa nova espécie de casamento, os cônjuges, aproveitando-se do declínio
gradual do poder dos patriarcas, passam a poder, de forma plena, expressar os seus
desejos mútuos em casar-se, de tal forma que a vontade, agora, começa a figurar
como o principal elemento do matrinômio, tornando-se um importante pretexto para
sua continuação ou dissolução. Como afirma Álvaro Villaça Azevedo (1976, p. 23
apud Dantas, 20035), “a se admitir somente o elemento subjetivo da afeição dos
cônjuges, o seu consentimento seria suficiente à
realização matrimonial,
independentemente da vida íntima, em comum”.
A par de todos os direitos criados e da livre vontade conjugal para casar-se, o
fato de que o casamento deveria visar a procriação continuava incólume à
decorrência dos tempos. Em Roma, a necessidade de ter filhos como efeitos do
casamento era imprescindível, pois, assim como nas sociedades antigas discutidas
na seção 2.2, era grande a quantidade de guerras travadas, que acabavam por
ceifar as vidas de milhares de homens continuamente, e terras dominadas, que
gerava a dependência de indivíduos que pudessem desenvolvê-las e protege-las. A
questão da procriação era tão importante aos romanos que o Estado, mesmo aos
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Documento on-line não paginado.
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homens solteiros, instituía penalidades, como a retirada do jus capiendi (direito de
auferir a propriedade dos bens deixados por testamento), àqueles que não tivessem
propósito de deixar descendentes (BEVILAQUA, 1976).
A necessidade de prole só era limitada, dentro do casamento, pela affectio
maritalis, que impedia que os cônjuges mantivessem a relação conjugal, e
consequentemente sexual, se não houvesse mais o afeto ou desejo de permanecer
casados entre eles. Essa limitação é o que irá diferenciar o dever matrimonial de
procriação dos romanos em relação aos outros povos da antiguidade que, por sua
vez, não instituíam minorações afetivas a esse dever no casamento.
Essa busca por gerar filhos e a affectio maritalis influenciavam, então, na
consolidação do instituto do débito conjugal, pois incrementava o sexo dentro do
casamento, atribuindo às práticas sexuais a importância de ser o meio realizador do
principal efeito do casamento, formação da prole, e de ser o modo essencial para a
demonstração da afeição entre os cônjuges. O débito conjugal também já passava a
se inserir indiretamente no ordenamento jurídico romano, conforme suscita Sousa
(2002, p. 4):
O dever de coabitação já se fazia presente entre os romanos e, em
particular, o aspecto do débito conjugal, existindo já à época a possibilidade
do repúdio e do divórcio bona gratia por questões afetas ao inadimplemento
deste dever. Sendo de frisar, por sua peculiaridade, constituir não só a
recusa à coabitação, mas até mesmo a impotência do marido como causa
de divórcio.
No entanto, só se verá a consolidação jurídica total do instituto do debitum
conjugale a partir dos ideiais trazidos pela Igreja Católica que passaram a influenciar
toda cultura ocidental a partir do período medieval e fizeram das práticas sexuais um
fator de consumação do casamento.
2.3 O DIREITO CANÔNICO E A CONSOLIDAÇÃO DO DÉBITO CONJUGAL
Com a decadência do Império Romano, ascendeu um novo período histórico,
denominado de Idade Média. Esse importante período foi marcado por diversos
aspectos bem marcantes, tais como: os inúmeros conflitos políticos, sociais e
militares entre os diversos povos que habitavam no continente europeu que
disputavam, em geral, a propriedade de terra, considerado como o principal bem
econômico e de maior símbolo de poder naquela época; a criação do sistema
20
econômico feudal, que perdurou durante todo período medieval e baseava-se na
ruralização da sociedade, na produção auto subsistente de alimentos por seus
membros, com reduzido comércio e uso de moedas, e no modo de produção servil
em que os camponeses, em troca de proteção e de lugar para viver, trabalhavam
para eles próprios e como servos para os nobres que figuravam como os senhores
das terras; e a ausência de Estados centralizadores, contando somente com a
presença de vários e pequenos reinos espalhados por toda a Europa, nos quais os
suseranos que tinham mais vassalos6 e terras eram considerados os reis, que por
sua vez, auferiam de poderes bastante restritos (ligados somente a defesa do
território e a tributação) e que ainda eram divididos com os outros suseranos.
Além dessas características, o que marcou profundamente a Idade Média foi
a expansão do Cristianismo e soberania da Igreja Católica. O Cristianismo surgiu no
início do Império Romano, onde foi inicialmente contestado e perseguido por
confrontar a religião politeísta romana, gerando preconceito aos seus adeptos, e por
representar uma crescente e indesejável doutrina ao Estado Romano, pois
confrontava de frente os valores, modos e atitudes do Império. Com o começo da
fragilidade política e econômica, o governo romano não pôde mais controlar o
cristianismo, que expandia-se cada vez mais, de tal forma que passou a aliar-se a
Igreja Católica, que até então era a única instituição religiosa que pregava o
cristianismo, a fim de evitar conflitos e, juntas, se fortalecerem.
Com essa aceitação política, a Igreja Católica espalhou-se por todo Império
Romano e aumentou muito sua quantidade de adeptos. A partir da queda de Roma
e aliado a ausência de Estados fortes e centralizados na Idade Média que a
controlasse, a Igreja Católica superou todas as outras religiões no continente
europeu e consolidou seu domínio de forma definitiva.
Como meio de consolidação de seu domínio, a Igreja passa a editar diversas
normas (no qual o conjunto delas foi denominado de Direito Canônico), tanto de
cunho religioso quanto de cunho civil, que deveriam ser seguidas por todos os seus
adeptos, incorrendo em pecados e penalidades, aos olhos de Deus, quem não as
cumprir. Entre as regras estabelecidas por esse direito para a vida civil, encontram-
6
Na sociedade feudal, existiam os suseranos e os vassalos. Os suseranos eram aqueles nobres que
detinham a propriedade das terras e, consequentemente, o maior prestígio e poder. Os vassalos
também eram nobres senhores feudais, mas recebiam suas terras pelas mãos do suserano, ao qual
ficavam vinculados em lhe oferecer proteção em guerras e lealdade no uso da propriedade.
21
se, principalmente, aquelas voltadas para o regramento da família e, especialmente,
do casamento.
Como informa Almada (1987), as regras que a Igreja Católica se baseia têm
um sentido patriarcalista na medida em que afirma que o poder para governar a
família é outorgado por Deus somente ao homem e para o bem da mulher e da
prole. Essa ideia pode ser retirada em passagens bíblicas como Efésios, Capítulo 5,
versículos 22-287 (BIBLIA, 2014). Nesse ponto, portanto, a Igreja não traz novidade
ao direito de família, já que o modelo patriarcal, que já era comum desde as
sociedades primitivas, ainda continua imperando.
No entanto, as mudanças trazidas pelo Direito Canônico terão como base o
conceito do instituto matrimonial. Conforme Gomes (1999), o casamento é posto
pela doutrina católica por dois vieses indissociáveis: como um contrato e como
sacramento. A primeira feição afirma que o matrimônio é um acordo no qual um
homem e uma mulher concordam em unir-se em corpo e alma, de modo que vivam
juntos indefinidamente. Investe-se, também, o casamento como ato solene, no qual
deve haver uma celebração pública em que haja declarações de vontade
espontâneas dos cônjuges perante um sacerdote da Igreja e com a presença de
testemunhas que tenham condições de atestar o fato.
O matrimônio, no segundo viés, é investido como um sacramento. De acordo
com o Compêndio de Catecismo da Igreja Católica8, no item nº 224, “os
sacramentos são sinais sensíveis e eficazes da graça, instituídos por Cristo e
confiados à Igreja, mediante os quais nos é concedida a vida divina”. O casamento,
portanto, tido como sacramento, passa a ser um meio de demonstrar a fé dos
nubentes para a Igreja e de prestigiar e realizar os valores preconizados por Cristo,
de modo que também é considerado como uma forma de alcançar a vida eterna e
dignificar as uniões entre casais.
Efésios 5: 22-28: “Vós, mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o
marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador
do corpo. Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres o sejam em tudo
a seus maridos. Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si
mesmo se entregou por ela, a fim de a santificar, tendo-a purificado com a lavagem da água, pela
palavra, para apresenta-la a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante,
mas santa e irrepreensível. Assim devem os maridos amar as suas próprias mulheres, como a seus
próprios corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo.”
7
8
Documento online não paginado. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc
/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html#OS SETE SACRAMENTOS DA IGREJA>.
22
Como decorrência do caráter contratual e sacramental do casamento, a Igreja
esculpiu os fins principais do matrimônio, a saber: “educação dos filhos, assistência
mútua, reprimir a concupiscência e a procriação”9 (SOUZA FILHO, 2014, p. 378).
Com essas três primeiras finalidades, o Direito Canônico quis conferir dignidade às
famílias, que além de zelar pelo respeito e ajuda mútua entre os cônjuges, deveriam
atentar para a prole, que não tinha condições de se educar nem de se manter por
conta própria.
Porém, o último fim, a procriação, é baseado na cultura de geração de filhos
já existente desde as sociedades da Antiguidade, e que ganha com a doutrina
católica outra razão para existir: o desejo do próprio Deus, desde que criou o mundo,
para que os homens se multipliquem10. Esse querer divino, portanto, obrigava os
cônjuges a procriar, dando-lhes o dom de ter filhos, estando sujeitos a incidência de
pecado quem o descumprisse e negasse a fecundação.
Além desses fins, os cônjuges, para que o instituto matrimonial seja honrado
como contrato ou sacramento e receba as bênçãos da Igreja e de Deus, devem
zelar pela manutenção da fidelidade entre si. Somente com o amor único e exclusivo
de um cônjuge para o outro, o matrimônio pode atender ao fim da íntima comunhão
de vida e amor para que Deus o criou. Não somente isso, mas a fidelidade também
evita a concupiscência e reserva todo o amor para as relações familiares, tanto entre
os cônjuges quanto entre estes e a prole.
Nesse sentido, faz-se importante as palavras de Jean-Étienne-Marie Portalis
(1801 apud PEREIRA, 2004), que na Exposição de Motivos do Código Civil Francês
de 1804, bem após o período medieval, defendia, bastante influenciado pelas ideias
católicas, que a fidelidade e monogamia deveriam ser respeitadas na constância do
casamento, já que se não fossem, reinaria a escravidão e o despotismo de um
cônjuge sobre outro, aumentando a desordem familiar e social e desqualificando a
natureza jurídica do casamento como contrato no qual os nubentes se dão de corpo
e coração.
Cânon 1055 do Código Canônico de 1983, § 1: “O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher
constituem entre si o consórcio íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos
cônjuges e à procriação e educação da prole, entre os batizados foi elevado por Cristo Nosso Senhor
à
dignidade
de
sacramento”.
Disponível
em:
<http://www.vatican.va/archive/cod-iuriscanonici/portuguese/codex-iuris-canonici_po.pdf>.
9
Gênesis 1: 27-28: “Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou, homem e
mulher os criou. Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam
sobre a terra”.
10
23
Este dever de fidelidade advem do princípio basilar do casamento católico: a
indissolubilidade matrimonial. Esse princípio, por sua vez, parte da premissa de que,
como o casamento é um sacramento celebrado com as Bênçãos de Cristo, o laço
que une os cônjuges não poderá ser dissolvido pelo querer dos nubentes, pois o que
Deus uniu o homem não pode separar11.
Em um primeiro momento histórico, houve discussões travadas pelos
membros da Igreja sobre se esse princípio tinha limites ou exceções, já que o
Evangelho de São Mateus abria possibilidade do divórcio em caso de adultério12.
Esse debate estagnou-se quando, no século XI, foi firmado o entendimento da total
indissolubilidade matrimonial, sendo a dissolução conjugal abordada por São Mateus
doutrinariamente interpretada como uma separação apenas de corpos, mas que não
afeta o vínculo entre o casal que, por sua vez, permanece unido pelo desejo divino
(WALD, 1995). Atualmente, o princípio é esculpido no Cânon 114113 do Código
Canônico de 1983.
Desse modo, ficou estabelecido que o vínculo entre os cônjuges é
considerado permanente e único para eles próprios, de forma que o homem e a
mulher casados passam a ser encarados como exclusivos um ao outro, gerando não
só a ideia de assistência recíproca e da fidelidade amorosa entre si, como também o
dever de coabitação que obrigava o casal a viverem juntos em seu lar e que,
conforme se verá adiante, influenciou bastante diversas legislações ocidentais
posteriores, inclusive a brasileira.
Essa exclusividade entre os cônjuges gera a ideia do mutuo pertencimento,
pela qual o nubente passa a deter a “propriedade” da pessoa do outro, já que, na
condição de casados, o homem e mulher fundem-se espiritualmente por sentimentos
de amor, tornando-se uma individualidade e dividindo, entre si, tudo o que antes era
só seu. Como reflexo desse pensamento, os corpos dos casados também entram no
Mateus 19: 3-6: “Aproximaram-se dele alguns fariseus que o experimentavam, dizendo: È lícito ao
homem repudiar sua mulher por qualquer motivo? Respondeu-lhes Jesus: Não tendes lido que o
Criador os fez desde o princípio homem e mulher, e que ordenou: Por isso deixará o homem pai e
mãe, e unir-se-á a sua mulher; e serão os dois uma só carne? Assim já não são mais dois, mas uma
só carne. Portanto, o que Deus ajuntou, não o separe o homem”.
11
Mateus 19, 7-9: “Disseram-lhe eles: Então, por que mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio, e
repudiá-la? Disse-lhes ele: Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar
vossas mulheres; mas ao princípio não foi assim. Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua
mulher, não sendo por causa de fornicação, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com
a repudiada também comete adultério”.
12
Cânon 1141 do Código Canônico de 1983: “O matrimónio rato e consumado não pode ser
dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa além da morte”.
13
24
rol dos bens divididos, de modo que passam a ser compartilhados entre um e outro,
fazendo surgir o que se denomina de jus in corpus, ou seja, o direito exclusivo dos
nubentes sobre o corpo do outro.
Como decorrência desse direito exclusivo, encontra-se o sexo que, por sua
vez, adquire grande relevância para a Igreja, de forma que esta entidade passa a
regra-lo dentro e fora do casamento.
No seio do matrimônio, devido a
indissolubilidade do casamento e do jus in corpus, as relações sexuais dos casados
passam a ser absolutamente vedadas para terceiros, de sorte que o sexo
permaneça apenas entre os casados e seja utilizado para atender a procriação que,
conforme já citado, é dos fins primários de qualquer família legítima católica. Por
outro lado, fora do matrimônio, as mulheres solteiras passam a ser proibidas de ter
relações sexuais antes do casamento, pois somente o sexo legítimo dos casados
poderia lhe retirar a virgindade, sob pena do cometimento do pecado da luxúria.
A importância dada às práticas sexuais pela Igreja mostrou-se tão
contundente que essa instituição resolveu colocar o sexo como efeito essencial do
matrimônio, na medida em que afirmou que a consumação do casamento somente
dar-se-ia com a conjunção carnal entre os nubentes. Para o casamento ter validade,
deveria haver os consentimentos inequívocos dos noivos e a declaração sacerdotal,
mas só estaria plenamente realizado se os nubentes se relacionassem sexualmente,
simbolizando a perfeita união carnal entre eles. Essa consumação sexual era
também considerada uma presunção relativa (iures tantum) se os cônjuges
coabitassem um mesmo lar e não houvesse provas que a contrariassem.
Esse entendimento se perfaz ainda hoje, e figura-se tão absoluto que a lei
canônica admite que o casamento que não tenha sido consumado da forma
correta14, ou seja, aquele em que não foram praticadas relações sexuais de modo
humano, livres e normais, com a intenção de gerar prole (nos casos em que, por
exemplo, há inseminação artificial ou pacto de virgindade), possa ser dissolvido15
Cânon 1061 do Código Canônico de 1983: “O matrimónio válido entre baptizados diz-se somente
rato, se não foi consumado; rato e consumado, se os cônjuges entre si realizaram de modo humano o
acto conjugal de si apto para a geração da prole, ao qual por sua natureza, se ordena o matrimónio, e
com o qual os cônjuges se tornam uma só carne. § 2. Celebrado o matrimónio, se os cônjuges
tiverem coabitado, presume-se a consumação, até que se prove o contrário.”
14
Cânon 1142 do Código Canônico de 1983: “O matrimónio não consumado entre baptizados ou
entre uma parte baptizada e outra não baptizada pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa
causa, a pedido de ambas as partes ou só de uma, mesmo contra a vontade da outra.”
15
25
pelo Papa e por interesse das partes, já que a ausência de consumação se
configura como legítima justa causa para a dissolução.
O sexo no casamento não ficou somente atrelado à consumação matrimonial,
mas motivou a Igreja em estabelecer impedimentos dirimentes do matrimônio o
tendo como base. Os impedimentos dirimentes, por sua vez, são aqueles que
acarretam a invalidez e, consequentemente, nulidade do casamento, se não forem
obedecidos (GOMES, 1999).
Estes
impedimentos,
constituídos
no
período
medieval
e
regulados
atualmente do Cânon 1083 ao 1094 do Código Canônico de 1983, são: a
incapacidade, que finda somente aos 16 anos para homens e 14 anos para
mulheres; o parentesco sanguíneo ou afim entre os nubentes; o segundo casamento
enquanto o primeiro ainda vige; o rapto da mulher como quem se deseja casar, pois
não respeita a livre e espontânea vontade da pretendente; a concorrência dolosa
para a morte do cônjuge de pessoa com quem quer se casar; em casos de
concubinato público e notório; a proibição de casar para aqueles que receberam
ordens sacras, ou emitiram voto de castidade perante a Igreja Católica; e a
impotência perpétua e antecedente ao casamento.
Dentre esses impedimentos, os dois últimos são aqueles que terão as
práticas sexuais como fundamento. A Igreja Católica, ao vedar o casamento para
aqueles celibatários que fazem parte da Instituição ou proferiram votos de castidade,
quis evidenciar que essas pessoas, por sua vez, já são proibidas de realizarem atos
sexuais e, assim, não teriam condições de fazer vingar um matrimônio devido à
necessidade inerente do sexo entre os cônjuges.
Da mesma forma, a impotência anterior ao casamento e incurável afasta as
relações sexuais entre os nubentes e impossibilita que o matrimônio se consuma,
tornando-o eivado de vício e provocando sua invalidação16. A impotência para
invalidar o casamento tem que ser a chamada coeundi, ou seja, aquela que obsta o
próprio ato sexual, e não a chamada generandi ou esterilização que impede apenas
a fecundação, mas não as relações sexuais.
Cânon 1084 do Código Canônico de 1983: “§ 1. A impotência antecedente e perpétua para realizar
o acto conjugal, por parte quer do marido quer da mulher, tanto absoluta como relativa, dirime o
matrimónio, pela própria natureza deste. § 2. Se o impedimento de impotência for duvidoso, com
dúvida quer de direito quer de facto, não se deve impedir o matrimónio nem, enquanto durar a dúvida,
declarar-se nulo. § 3. A esterilidade não proíbe nem anula o matrimónio, sem prejuízo do prescrito no
cân. 1098.”
16
26
Percebe-se nessa diferenciação, mais uma vez, a grande relevância dada
pela Igreja ao sexo, pois permite um casamento que pelo menos um dos cônjuges é
estéril e, portanto, um matrimônio incapaz de realizar um dos seus principais fins
que é a procriação, mas não permite que haja um casamento sem sexo como no
caso dos impotentes coeundi.
Diante do exposto, com base no dever de fidelidade e, consequentemente,
das práticas sexuais exclusivas entre os nubentes, na consumação sexual do
casamento católico e da criação de impedimentos matrimoniais baseados
estritamente na importância do sexo, vê-se claramente que é no direito canonista
que o direito-dever de prestações sexuais entre os cônjuges se consolida de vez no
mundo jurídico.
2.3.1 A Secularização Do Casamento
Fato importante sobre o Direito Canônico foi que ele, durante toda a Idade
Média e parte da Idade Moderna, não apenas tratou de regularizar o casamento e a
família legítima que deste advinha, mas também deu a si a competência de dirimir
as lides matrimoniais.
Alicerçando-se de seu enorme poder ideológico e da ausência de Estados
centralizados no continente europeu durante o medievo, a Igreja Católica governou
soberana e, no direito de família, adotando o casamento como um sacramento de
Cristo, a Igreja se incumbiu na responsabilidade de protege-lo e, assim, passou não
somente a editar normas que o regulasse, mas também a julgar as diversas
controvérsias subjetivas e objetivas entre os cônjuges originadas na vigência do
matrimônio, tais como as pretensões de divórcio ou separação de corpos,
impedimentos e nulidades matrimoniais.
Com o passar dos anos, foram criados os chamados Estados Monárquicos
Absolutos, em que o Rei detinha um poder total e ilimitado em suas mãos. Existia
entre esses Estados e a Igreja uma mútua cooperação para o alcance de seus
interesses, pois o Estado não cerceava o poder da Igreja, tornando inclusive o
catolicismo como a religião oficial estatal, e a Igreja alimentava o poder do Estado na
medida que justificava a investidura dos Monarcas como o Desejo de Deus, ao qual
nada poderia se contrapor.
27
As Monarquias Absolutas, portanto, não iriam abalar o poder e a competência
da Igreja em relação ao direito de família, fato esse que só ocorreria com a Reforma
Protestante de 1517. Essa Reforma, iniciada com o monge Martinho Lutero, abriu
espaço para a contestação dos preceitos dogmáticos da doutrina católica e motivou
o surgimento de diversas outras religiões chamadas de protestantes, provocando o
início da queda da hegemonia ideológica da Igreja Católica na Europa.
O protestantismo lançou a ideia de que o casamento não era um sacramento,
tratando-se apenas de um “simples ato da vida civil, de um contrato natural” (WALD,
1995, p. 27), não tendo quaisquer obstáculos a dissolução do vínculo matrimonial
somente pelo querer dos nubentes. Dessa forma, as religiões protestantes passaram
a retirar da doutrina religiosa e entregar aos Estados a responsabilidade de resolver
os conflitos advindos pelo matrimônio, originando o “fenômeno denominado de
secularização ou laicização do casamento” (ALMADA, 1987).
A Igreja, em reação aos abalos provocados pela Reforma, organizou o
Concílio de Trento (1542-1563). Este evento, reforçando a doutrina canônica já
existente na época, definiu de uma vez por todas que o casamento era um
sacramento, que a competência para celebra-lo e julgar suas pendências era
exclusivamente da Igreja, e que deveria ser celebrado publicamente perante um
sacerdote e testemunhas, de modo que os noivos pudessem expressar sua livre e
espontânea vontade.
Mesmo com essa reafirmação dos valores canônicos sobre o casamento
promovida em Trento, a competência religiosa para resolver litígios matrimoniais e
decretar a sua nulidade foi, gradualmente, sendo substituída pela laicização dessa
competência, não somente devido à crescente influência das religiões protestantes,
mas também ao surgimento do iluminismo e dos Estados Liberais.
O iluminismo, trazendo novas reflexões e valores humanísticos, critica a e
visão canônica sobre o casamento, afirmando que o matrimônio é um contrato no
qual os nubentes são livres para constituir ou dissolver de acordo com suas
vontades (ROUSSEAU apud ALMADA, 1987). Os Estados Liberais, por sua vez,
surgiram laicos e comungaram também desse pensamento iluminista, já que foram
originados de movimentos sociais influenciados pelos ideais do período de luz (como
a Revolução Francesa de 1789, por exemplo), de modo que reservaram a si a
competência de legislar e julgar sobre todo o direito de família, deixando a margem e
somente no âmbito interna da Igreja a regulação canonista da família.
28
Embora a presença do Estado Liberal tenha inibido a utilização do direito
canônico para a regulação da família, muitas das leis estatais, principalmente as que
tange sobre o casamento, foram baseadas pela doutrina da Igreja Católica que, por
seu turno, continuou a influenciar diversos ordenamentos jurídicos, tais como o
português e brasileiro, até a atualidade.
2.4 O CASAMENTO NO DIREITO FAMILIAL BRASILEIRO
O Brasil foi oficialmente descoberto por Portugal no ano de 1500, tornando-se
sua colônia. Durante os primeiros cinquenta anos após a descoberta, o território
brasileiro servia apenas para a extração de matéria-prima como o pau-brasil, não
tendo qualquer propósito de colonização por parte da metrópole portuguesa. A
situação modifica-se na medida em que se acha clima e terras suficientes na colônia
brasileira para o cultivo da cana da qual se extraia o açúcar, especiaria bastante
valorizada na Europa e que seu comércio representava intensos lucros.
Não somente isso, mas as diversas incursões náuticas de outras nações,
como a França, em terras brasileiras, incitaram Portugal a colonizar o território e
protege-lo. Desse modo, junto com as primeiras pessoas que chegarem no território
do novo mundo, vieram também as primeiras normas que passam a reger a vida
social e, de forma especial, a família legítima.
A primeira forma de manifestação jurídica advinda de Portugal no território
pátrio foi o alvará de 12 de setembro de 1564 que mandou que fossem observadas
todas as regulamentações instituídas pelo Concílio de Trento (WALD, 1995). Isso
ocorreu pois a Monarquia Absoluta Portuguesa tinha como Religião Oficial o
catolicismo e desejava a catequização dos povos indígenas que viviam em solo
brasileiro para torna-los mais abrandados à cultura metropolitana. Assim, o direito
canônico implantava-se no Brasil e, com ele, o caráter sacramental e a
indissolubilidade do casamento.
No período que Portugal e Espanha achavam-se unidos politicamente,
formando a chamada União Ibérica, foram compiladas pelo Rei Espanhol Felipe II as
Ordenações Filipinas de 1595. Essas Ordenações trouxeram uma discussão com as
normas canônicas que até então eram as aplicadas, pois aquelas aceitavam, além
29
do casamento católico17, o matrimônio denominado de marido conhecido18, o qual
caracterizava-se apenas pela publicidade da coabitação e do tratamento recíproco
do casal como esposos, mesmo sem qualquer autorização religiosa (WALD, 1995).
Mesmo com essa divergência em relação aos preceitos canônicos, as
Ordenações não tinham o condão de extinguir a aplicação das normas Tridentinas
no território brasileiro, adotando inclusive a doutrina católica sobre a consumação do
casamento pelas relações sexuais. Os cônjuges católicos somente seriam meeiros
um do outro se tornassem seu casamento consumado pela prática sexual e se fosse
provado que o casamento foi celebrado em Igreja (vide nota de rodapé nº 14).
Durante todo o período colonial as Ordenações Filipinas vigoram no Brasil,
sendo sua principal fonte normativa. Mesmo com a Independência Brasileira em
1822, a legislação filipina ainda continuou irradiando suas normas, conforme
ordenou a Lei de 10 de outubro de 182319.
A situação só mudaria em 1858 com a Consolidação das Leis Civis
organizada pelo jurisconsulto Teixeira de Freitas. Essa Consolidação substituiu as
Ordenações Filipinas como a principal norma jurídica reguladora da vida civil, mas
não trouxe novas ideologias de liberdade ou secularização do matrimônio que, por
sua vez, já haviam sido despontadas na Europa a partir do iluminismo e da criação
do Estado Liberal. Caracterizou-se, entretanto, pela reafirmação do pensamento
católico tridentino no território brasileiro.
Livro IV, Título XLVI, parágrafo 1º das Ordenações Filipinas de 1595: “E quando o marido e a
mulher forem casados, por palavras de presente à porta da Igreja, ou por licença do Prelado fora
della, havendo cópula carnal, serão meeiros em seus bens e fazenda. E posto que elles queiram
provar, e provem que foram recebidos por palavras de presente, e que tiveram cópula, se não
provarem que foram recebidos a porta da Igreja, não serão meeiros.” Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ l4p833.htm>.
17
Livro IV, Título XLVI, parágrafo 2º, das Ordenações Filipinas de 1595: “Outrossim serão meeiros,
provando que estiveram em casa teúda ou manteúda, ou em casa de seu pai, ou em outra, em
publica voz e fama de marido e mulher por tanto tempo, que, segundo Direito, baste que para
presumir matrimônio entre eles, posto se se não provem as palavras de presente”. Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p834.htm>.
18
Art. 1º da Lei de 20 de outubro de 1823: “As Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos, e
Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quaes o Brazil se governava até o dia 25 de
Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelissima, actual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou
desta Côrte; e todas as que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro de
Alcantara, como Regente do Brazil, em quanto Reino, e como Imperador Constitucional delle, desde
que se erigiu em Imperio, ficam em inteiro vigor na pare, em que não tiverem sido revogadas, para
por ellas se regularem os negocios do interior deste Imperio, emquanto se não organizar um novo
Codigo,
ou
não
forem
especialmente
alteradas”.
Disponível
em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/anterioresa1824/lei-40951-20-outubro-1823-574564publicacaooriginal-97677-pe.html>.
19
30
A presença do pensamento canônico era patente nesta compilação de leis
civis na medida que afirmava que: a celebração do casamento deveria seguir
fielmente os ditames do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da
Bahia20; o matrimônio clandestino, ou seja, aquele que não era realizado na
presença de um Pároco ou de testemunhas, deveria ser punido com a invalidez 21; e
que as lides conjugais referentes a divórcio, nulidades ou separações era da
competência exclusiva da Igreja Católica22.
Em 1861, no entanto, é publicada a Lei nº 1.144, que revogou a disposição da
Consolidação de 1858 relativa aos casamentos clandestinos, concedendo efeitos
civis (e, consequentemente, aceitação e validação) aos casamentos de pessoas que
praticavam outros cultos diferentes da religião estatal católica23.
É a partir dessa importante Lei que se observa a primeira aplicação da
ideologia liberal da desvinculação da Igreja em relação ao Estado e da secularização
do casamento no Brasil. A referida Lei nº 1.144 e o Decreto nº 3.069/1863, que
posteriormente
viria
regulamentar esta Lei,
ao
reconhecerem
casamentos
celebrados pelas diversas religiões, acabam por minorar o poder e a influência
católica em matéria de matrimônio, inclusive concedendo competência exclusiva as
Artigo 95 da Consolidação das Leis Civis de 1858: “As disposições do Concílio Tridentino, e da
Constituição do Arcebispado da Bahia, à respeito do matrimônio, ficão em effectiva observancia em
todos os Bispados e Freguezias do Imperio”. Disponível em: <https://ia700505.us.archive.org/1/item
s/ConsolidaoDasLeisCivis/CLC.pdf>.
20
Artigo 98 da Consolidação das Leis Civis de 1858: “Serão igualmente punidos os que contrahirem
matrimonio clandestino, depois de declarado tal em Juizo Ecclesiastico”.
21
Artigo 158 da Consolidação das Leis Civis de 1858: “As questões de divorcio, ou sobre nulidade do
matrimonio, ou sobre separação temporaria ou perpetua dos conjuges, pertencem ao Juizo
Ecclesiastico. A respeito delas nenhuma ingerencia póde têr a jurisdicção secular”.
22
Artigo 1º da Lei nº 1.144 de 1861: “Art. 1º Os effeitos civis dos casamentos celebrados na fórma
das Leis do Imperio serão extensivos: 1º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião
differente da do Estado celebrados fóra do Imperio segundo os ritos ou as Leis a que os contrahentes
estejão sujeitos; 2º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião differente da do Estado
celebrados no Imperio, antes da publicação da presente Lei segundo o costume ou as prescripções
das Religiões respectivas, provadas por certidões nas quaes verifique-se a celebração do acto
religioso; 3º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião differente da do Estado, que da
data da presente Lei em diante forem celebrados no Imperio, segundo o costume ou as prescripções
das Religiões respectivas, com tanto que a celebração do ato religioso seja provado pelo competente
registro, e na fórma que determinado fôr em Regulamento; 4º Tanto os casamentos de que trata o §
2º, como os do precedente não poderão gozar do beneficio desta Lei, se entre os contrahentes se der
impedimento que na conformidade das Leis em vigor no Imperio, naquillo que lhes possa ser
applicavel,
obste
ao
matrimonio
Catholico”.
Disponível
em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1144-11-setembro-1861-555517publicacaooriginal-74767-pl.html>.
23
31
autoridades civis para que apreciassem os litígios advindos dos casamentos
acatólicos24.
A par do conteúdo reformador da referida lei, o Império Brasileiro vigora até o
seu final consagrando o Catolicismo como a Religião Oficial do Estado. Porém,
quando adveio a proclamação da República Brasileira em 1889, as ideias liberais de
laicização do estatal e matrimonial atingem sua plenitude e o recém formado Estado
Republicano passa a declarar-se laico. Com o Decreto nº 181 de 1890, a Igreja
Católica passa a perder alguns de seus privilégios estatais, tais como a extinção do
Juízo Eclesiástico e a competência civil plena para dirimir situações advindas do
casamento25. O casamento civil torna-se mais importante que o casamento religioso,
de modo que somente o primeiro possuía validade para quaisquer fins.
Embora a influência canonista no casamento estivesse sendo limitada como
nunca havia sido antes, alguns aspectos do casamento ainda restaram baseados na
dogmática católica. O Decreto nº 181 continuava prevendo a indissolubilidade do
vínculo conjugal26, embora permitisse o divórcio27, e concedia, em seu artigo 7º, a
nulidade matrimonial na ocorrência de impedimentos canônicos, tais como a
incapacidade marital para homens e mulheres aos 16 e 14 anos, respectivamente, e
o matrimônio entre ascendentes e descendentes, entre raptador e raptada enquanto
esta estivesse no poder daquele ou entre o cônjuge condenado por homicídio ou
tentativa de homicídio contra seu cônjuge e a pessoa que tenha executado o crime.
A influência canônica continuou a estar presente no Código Civil de 1916.
Esta lei, em seu artigo 183, também utilizava-se dos mesmos impedimentos
canônicos sobreditos para anular o casamento, apenas ressalvando que a
incapacidade marital foi majorada para os menores de 16 anos (mulheres) e 18 anos
Artigo 9º do Decreto nº 3.069 de 1863: “Compete ao juiz de direito do domicilio conjugal, ou do
domicilio do conjuge demandado, conhecer da nullidade de todos os casamentos entre nacionaes, ou
estrangeiros que professarem religião diferente da do Estado; e bem assim de qualquer outra questão
relativa a estes casamentos”. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicaco
es.action?id=73998&tipoDocumento=DEC&tipoTexto=PUB>.
24
Artigo 112 do Decreto nº 181 de 1890: “Ao juiz de direito da comarca, ou ao de orphãos, conforme
as distincções estabelecidas no art. 110, compete o conhecimento das causas de nullidade ou
annullação de casamento e as de divorcio litigioso, ou por mutuo consentimento”. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D181.htm>.
25
Artigo 93 do Decreto nº 181 de 1890: “O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos
conjuges, e neste caso proceder-se-ha a respeito dos filhos e dos bens do casal na conformidade do
direito civil”.
26
Artigo 88 do Decreto nº 181 de 1890: “O divorcio não dissolve o vinculo conjugal, mas autoriza a
separação indefinida dos corpos e faz cassar o regimen dos bens, como si o casamento fosse
dissolvido”.
27
32
(homens) e a impotência coeundi (também impedimento canônico) anterior ao
casamento passava a ser considerado como um “erro essencial quanto a pessoa do
cônjuge” e capaz de anular o matrimônio (artigo 219, inciso III).
A fidelidade recíproca e a consequente exigência da vida em comum no
domicílio conjugal, aspectos também advindos do direito canônico, passam a
positivados como deveres essenciais e comuns dos cônjuges na constância do
casamento. O Código de 1916 também iria legislar a indissolubilidade do vínculo
conjugal, mesmo aceitando a separação conjugal, reiterando assim o mesmo
modelo do antigo Decreto nº 18128.
Além disso, o Código Civil de 1916 notabilizou-se pelo forte caráter
patriarcalista em matéria de casamento. De acordo com o seu artigo 233, o homem
era o chefe da família e o responsável por administrar seus bens e os de sua
esposa, definir o domicílio familiar, prover a manutenção da família e autorizar o
exercício de profissão pela mulher. A mulher casada era reconhecida como
relativamente incapaz (artigo 6º, inciso II), tendo sua vida marital muito limitada às
autorizações do marido29, perdendo até o pátrio poder em relação aos filhos já
nascidos, quando contraia novo casamento (artigo 393).
Em razão da influência canônica e do patriarcalismo, ficou cada vez mais
enraizada a ideia do débito conjugal no Brasil. A supremacia do homem sobre a
mulher e as prescrições legais que estimulavam o sexo no casamento (como, por
exemplo, a anulação matrimonial por impotência ou o dever comum de coabitação),
consolidaram, no âmbito social, o pensamento que afirmava que deveria existir
relações sexuais entre os cônjuges para que o casamento fosse válido, de modo
que era direito de cada um dos cônjuges, principalmente do marido, exigir do outro a
contraprestação sexual.
Artigo 315 do Código Civil de 1916: “A sociedade conjugal termina: I. Pela morte de um dos
cônjuges; II. Pela nulidade ou anulação do casamento; III. Pelo desquite, amigável ou judicial.
Parágrafo único. O casamento valido só se dissolve pela morte de um dos conjugues, não se lhe
aplicando a preempção estabelecida neste Código, art. 10, Segunda parte”. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6515.htm#art54>.
28
Artigo 242 do Código Civil de 1916: “A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I.
Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235); II. Alienar, ou gravar
de onus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, nº
II, III, VIII, 269, 275 e 310); III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outra; IV. Aceitar ou
repudiar herança ou legado; V. Aceitar tutela, curatela ou outro munus público; VI. Litigiar em juízo
civil ou comercial, anão ser nos casos indicados nos arts. 248 e 251; VII. Exercer profissão (art. 233,
nº IV); VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal; IX. Acceitar
mandato (art. 1.299)”.
29
33
Entretanto, com as edições das Leis nº 4.121/1962 e 6.515/1977, o caráter
patriarcalista e a influência católica no direito familial brasileiro são minorados. A
primeira destas leis põe fim ao poder quase absoluto do marido sobre a esposa, na
medida em que concede a plena capacidade civil da mulher casada, revogando o
inciso II do artigo 6º e derrogando os incisos IV ao VII e IX do artigo 242 do Código
Civil de 191630, retirando, assim, a necessidade da autorização do marido para a
realização de importantes atos da vida civil como o exercício profissional, a
aceitação ou renúncia de herança e a obtenção de capacidade processual. Por meio
da Lei nº 4.121, a mulher passou a ter os mesmos direitos e deveres do homem na
família, inclusive reestabelecendo o pátrio poder em relação aos seus filhos
existentes quando celebradas novas núpcias31.
A Lei nº 6.515/77, por sua vez, retirou parte da influência canônica do Código
Civil de 1916. Esta norma revogou a indissolubilidade do vínculo conjugal puramente
canônica, afirmando que o casamento era dissolvido não só pela morte de um dos
cônjuges (que até então figurava-se como o único fundamento criado pelo direito
canônico e aceito pelo direito pátrio para a quebra do vínculo matrimonial), mas
também pelo divórcio32.
Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002
consolidam a postura adotada nessas leis e definem a atual visão do casamento no
direito de família. A Constituição irá fixar expressamente a igualdade entre homens e
mulheres em relação aos direitos e deveres na família 33, impondo um término
jurídico definitivo na ideologia patriarcalista. A Carta Magna também afirmou que o
casamento não poderia ser aceito como a única forma para constituição de família,
Artigo 242 do Código Civil de 1916 (Redação dada pela Lei nº 4.121/62): “A mulher não pode, sem
autorização do marido (art. 251): I - praticar os atos que êste não poderia sem consentimento da
mulher (art. 235); II - Alienar ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer
que seja o regime dos bens (arts. 263, ns. II, III e VIII, 269, 275 e 310); Ill - Alienar os seus direitos
reais sôbre imóveis de outrem; IV - Contrair obrigações que possam importar em alheação de bens
do casal". Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4121.htm>.
30
Artigo 393 do Código Civil de 1916 (Redação dada pela Lei 4121/62): “A mãe que contrai novas
núpcias não perde, quanto aos filhos de leito anterior os direitos ao pátrio poder, exercendo-os sem
qualquer interferência do marido”.
31
Artigo 2º da Lei nº 6.515 de 1977: “A Sociedade Conjugal termina: I - pela morte de um dos
cônjuges; Il - pela nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio.
Parágrafo único - O casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo
divórcio”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6515.htm>.
32
Artigo 226, § 5º da Constituição Federal de 1988: “Os direitos e deveres referentes à sociedade
conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.
33
34
instituindo a união estável como entidade familiar34, e afirmou que o casamento
válido poderia ser dissolvido pelo divórcio35 no mesmo modelo da Lei nº 6.515/77.
O Código Civil de 2002, por seu turno, coadunou com essas ideias exposadas
na Constituição de 1988, mas ainda continha bases canônicas em sua elaboração.
Os dizeres canônicos são nítidos em três importantes institutos do casamento: nos
impedimentos matrimoniais36; nas causas de anulação do casamento por erro
essencial quanto a pessoa do cônjuge37, reiterando a doutrina católica da
incompatibilidade do matrimônio com o defeito físico irremediável (impotência
coeundi); e nos obrigatórios deveres de fidelidade recíproca e coabitação38.
Esses dois últimos institutos, conforme se analisará adiante, são as principais
fontes do direito pátrio para o estudo doutrinário e jurisprudencial do debitum
conjugale na atualidade.
Artigo 226, § 3º da Constituição Federal de 1988: “Para efeito da proteção do Estado, é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar
sua conversão em casamento”.
34
35
A Constituição de 1988, na redação original do art. 226, § 6º, prescrevia que o divórcio somente
poderia dissolver o casamento válido e o vínculo conjugal se fosse precedido de separação judicial
por mais de um ano ou separação de fato por mais de dois anos, não endossando assim o previsto
na Lei 6515/77. No entanto, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 66/2010, o artigo
sobredito foi editado, passando a aceitar apenas o divórcio, com ou sem separação, como causa de
dissolução do casamento. Essa nova redação acabou por retirar as eficácias dos institutos das
separações judiciais e de fato em nosso ordenamento jurídico, eliminando a única aplicabilidade
jurídica desses institutos que era servir de pré-requisito temporal para o divórcio.
36
O artigo 1521 do Código Civil de 2002, embora houvesse excluído impedimentos matrimoniais
tipicamente canônicos como o casamento entre raptante e raptada, incluiu alguns impedimentos
católicos para o casamento, tais como: os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco
natural ou civil; os afins em linha reta; os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o
terceiro grau inclusive; as pessoas casadas; e o cônjuge sobrevivente com o condenado por
homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Artigo 1557 do Código Civil de 2002: “Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro
cônjuge: I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu
conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; II - a ignorância de
crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal; III - a
ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de moléstia grave e
transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua
descendência; IV - a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua
natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado”. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>.
37
Artigo 1566 do Código Civil de 2002: “São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca;
II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação
dos filhos; V - respeito e consideração mútuos”.
38
35
3 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE O DÉBITO CONJUGAL
3.1 CORRENTE TRADICIONAL39
3.1.1 O Débito Conjugal Como Dever Legal
Esta corrente é a mais antiga e majoritária na doutrina que versa sobre o
direito de família. Apoiada na doutrina canônica, a corrente tradicional afirma a
existência do débito conjugal no casamento, tanto inserido na legislação quanto na
convivência familiar. Na lei, esta doutrina suscita que o débito conjugal é um dos
requisitos para fiel cumprimento do dever comum de coabitação dos cônjuges.
Para os adeptos dessa corrente, o dever de coabitação, inscrito atualmente
no art. 1566, inciso II do Código Civil de 2002 (vide nota de rodapé 35), possui dois
aspectos: a vida em comum dos cônjuges e o débito conjugal. Nesse sentido, Maria
Helena Diniz (2011, p. 442) reitera:
[...] no dever de coabitação, dois aspectos fundamentais: o imperativo de
viverem juntos os consortes e o de prestarem, mutuamente, o débito
conjugal, entendido este como o “direito-dever do marido e de sua mulher
de realizarem entre si o ato sexual”.
Consoante esse excerto, observa-se que a vida em comum dos casados é
tida como um imperativo, ou seja, uma consequência lógica advinda do casamento.
Isso demonstra que para essa doutrina não há motivo maior para que exista um
casamento do que o desejo recíproco dos cônjuges em viver juntos. O dever de
coabitação previsto em lei tem, então, como objetivo fixar que o casal viva em
comunhão sempre, pois foi com esse intuito que se casaram, vedando assim
qualquer prática que afaste os cônjuges da convivência necessária.
Assim, como afirma Belmiro Welter e Rolf Madaleno (2004 apud GAGLIANO,
2012), caso um dos consortes, sem qualquer motivo justificado, passe a residir em
outro local que não seja junto a seu cônjuge, rompe com o seu dever de coabitar,
dissolvendo da realidade fática o consórcio nupcial e permitindo a imediata
postulação de ação de divórcio por quebra desta obrigação marital.
As denominações “Corrente Tradicional” e “Corrente Moderna”, presentes nos títulos das seções
3.1 e 3.2, respectivamente, não constam na doutrina especializada do Direito de Família, mas foram
elaboradas pelo autor do presente trabalho para fins de melhor entendimento e divisão do tema
(SOUZA FILHO, 2014).
39
36
Essa convivência do casal em uma mesma morada cumulada com a histórica
necessidade e estímulo do sexo entre cônjuges para o pleno desenvolvimento da
família e geração de prole (já explicitado no capítulo anterior), motivam os
pensadores dessa corrente a afirmar que o dever de coabitação também gera a
obrigação de prestações sexuais mútuas entre os consortes.
As práticas sexuais entre os cônjuges são vistas aqui como algo comum e
normal em todos os casamentos, sendo, por vezes, motivo de desintegração da
sociedade conjugal quando não é exercitado. Afirmando essa linha de pensamento,
tem-se as palavras de Orlando Gomes (1999, p. 134):
A coabitação representa mais do que a simples convivência sob o mesmo
teto. É, sobretudo, o jus in corpus in ordine ad actus per se aptos ad prolis
generationem. Não só convivência, mas união carnal. O jus in corpus, de
cada cônjuge sobre o outro, implica, no lado passivo, o débito conjugal que
tem que ser cumprido para que a sociedade conjugal se mantenha íntegra.
Importa-se assim a coabitação a permanente satisfação desse débito.
Dessa forma, conforme se depreende dos verbetes acima, vê-se que o
entendimento dessa corrente é no sentido de que o débito conjugal está
intrinsecamente ligado às relações conjugais no casamento, sob a forma do jus in
corpus canônico, de modo que é tutelado juridicamente por meio do dever de
coabitação, utilizando-se da força normativa da lei para que seja praticado e afirme
sua existência dentro das relações conjugais.
Devido a essa força normativa legal que prevê a obrigação da coabitação
conjugal e a importância dada à vida comum e ao débito conjugal, os defensores da
tese ora explanada defendem também a indeclinabilidade desta obrigação. Como
conclui Souza Filho (2014), analisando o pensamento dos doutrinadores tradicionais,
os cônjuges, no momento que concordam em se casar, aceitam voluntariamente e
submetem-se aos deveres legais e vinculantes de viver em comunhão e realizarem
entre si práticas sexuais, não sendo possível nem lógico, portanto, que o casal ou
um dos consortes livremente resolva não satisfazer estas obrigações.
Observando essa indeclinabilidade jurídica do debitum conjugale, a doutrina
também assevera que há repercussões para o seu inadimplemento. Nesse sentido,
Pablo Stolze Gagliano (2012) afirma que já que a comunhão sexual é uma
decorrência do casamento, traduz, inegavelmente, um dever especial e, por isso,
quando descumprido, poderá resultar em consequências jurídicas ao infrator, como
37
o divórcio ou, dependendo das circunstâncias da sua origem, a anulação do
casamento.
3.1.2 Exceções e Limites Do Débito Conjugal
Embora aleguem que existe o direito-dever de prestação sexual entre os
cônjuges e que ele é uma realidade fática e jurídica no casamento, alguns
doutrinadores tradicionais ressaltam que há exceções e limites para o cumprimento
desta obrigação.
Sobre as exceções, Caio Mário Pereira (2013) prega que o débito conjugal,
embora trazido pela lei, não é tido pelas normas civilistas brasileiras como
plenamente essenciais ao casamento, já que a ordem jurídica permite a
consumação de matrimônios em que as práticas sexuais entre os consortes são
raras ou impossíveis, como são, por exemplo, os casamentos em caso de moléstia
grave, o nuncupativo (também denominado de in extremis) ou naqueles que figuram
idosos como nubentes.
Os casamentos em caso de moléstia grave e o in extremis são positivados
nos artigos 153940 e 154041 do Código Civil de 2002, respectivamente. O primeiro
refere-se ao matrimônio celebrado quando pelo menos um dos casados encontravase possuidor de moléstia grave e o segundo quando há para um dos cônjuges um
iminente risco de vida.
Nessas espécies de matrimônio, vislumbra-se que o débito conjugal é
minorado, pois não se pode obrigar o cônjuge sadio a ter relações sexuais com
aquele que é detentor de moléstia grave42, da mesma forma que um consorte em
iminente risco de vida terá preocupações mínimas quanto a satisfação do dever
sexual.
Artigo 1539 do Código Civil de 2002: “No caso de moléstia grave de um dos nubentes, o presidente
do ato irá celebrá-lo onde se encontrar o impedido, sendo urgente, ainda que à noite, perante duas
testemunhas que saibam ler e escrever”.
40
Artigo 1540 do Código Civil de 2002: “Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de
vida, não obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto,
poderá o casamento ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não
tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau”.
41
42
A moléstia grave não somente é fato excepcional para o cumprimento do débito conjugal como
também abre possibilidade para a própria anulação do casamento, quando for transmissível por
contágio ou geneticamente e haver risco de contaminação do outro cônjuge ou da prole (ver nota de
rodapé 34).
38
O casamento de pessoas idosas também excepciona a incidência do debitum
conjugale, pois a potência sexual, assim como todas as capacidades físicas
humanas, tende naturalmente a diminuir na medida que a idade avança, razão essa
que ocasiona a perda de constância e importância que do débito sexual com o
transcorrer do tempo de casamento ou aumento de idade.
Outra exceção ao dever de relações sexuais entre os cônjuges é aquela
evidenciada no artigo 1569 do Código Civil de 200243. Essa norma permite que um
consorte possa ausentar-se do domicílio conjugal quando houver de atender
encargos públicos, no exercício da sua profissão ou em caso de interesses
particulares relevantes. Desse modo, vê-se que a norma prescreve situação fática
que deixa o dever de mútua prestação sexual suspenso, pois enquanto o consorte
ausente não voltar ao domicilio, não será possível cumprir essa obrigação sexual.
Fato importante sobre essa exceção é que, para a doutrina que ainda defende
a existência do instituto da separação judicial, como José Moacyr Doretto
Nascimento e Gustavo Gonçalves Cardozo (2010 apud PRETEL, 2010), mesmo
após a vigência da Emenda Constitucional nº 66/2010, se o cônjuge se ausentar
durante um ano ininterrupto, não se utilizando de qualquer das hipóteses acima
descritas que o permite afastar-se do domicílio, motivará a impossibilidade de vida
em comum por abandono de lar e a consequente separação litigiosa, nos moldes do
artigo 1573, IV do Código Civil atual44.
Quanto aos limites do débito conjugal, os doutrinadores mostram que estes
tangem ao modo e a busca de satisfação do débito conjugal. Afirmam Gonçalves
(2012) e Venosa (2013) que o debitum conjugale não pode incluir para sua
realização a imposição de um cônjuge sobre o outro por meio de violência, como a
prestação de taras ou abusos sexuais, e discordância do outro cônjuge, devendo o
consorte que está buscando a satisfação respeitar o recato do outro e, se sentir-se
ofendido com a conduta assexual do parceiro(a), deve-se utilizar dos meios jurídicos
corretos como o divórcio ou a anulação do casamento.
Artigo 1569 do Código Civil de 2002: “O domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges,
mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para atender a encargos públicos, ao
exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes”.
43
Artigo 1573, inciso IV do Código Civil de 2002: “Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão
de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos: [...] IV. abandono voluntário do lar conjugal,
durante um ano contínuo”.
44
39
Observa-se que ambos doutrinadores querem mostrar que o dever sexual
entre os consortes é advindo da própria instituição do casamento, mas deve ser
sempre limitado pela liberdade individual do homem e da mulher casados, não
podendo um cônjuge exigir do outro a satisfação sexual quando bem entender ou
este último não desejar. Não pode muito ao menos forçar, verbal ou fisicamente, o
seu par a manter relações sexuais não consentidas ou utilizar-se de meios ou
instrumentos sexuais impróprios para o outro cônjuge.
3.2 CORRENTE MODERNA
Este segundo posicionamento doutrinário é mais recente e crítico do que o
pensamento tradicional. Ele posiciona-se no sentido de que o débito conjugal não é
um dos aspectos do dever legal de coabitação e nem é compatível com a realidade
jurídica do Brasil hodierno, manifestando-se, portanto, contrário ao pensamento da
corrente tradicional supracitada.
Para essa corrente, o dever sexual entre os cônjuges não é tutelado pela lei,
não pode ser considerado presumido a partir da efetivação do casamento e nem
apresenta-se como um requisito da coabitação conjugal. Este dever de coabitação
expresso no artigo 1566, inciso II do Código Civil não apresenta subdeveres como a
vida em comum e o débito conjugal, mas, como afirma Coelho (2012), quer mostrar
apenas que os casados devem partilhar e participar do cotidiano um do outro, em
todos de seus muitos aspectos como o profissional, social ou econômico, ajudandoo sempre nas diversas vicissitudes que a vida proporciona, pois foi por essa espécie
de comunhão que aceitaram se casar um com o outro.
Defendendo esse ponto de vista, tem-se as palavras de Maria Berenice Dias
(2007, p. 242), a principal expoente dessa corrente doutrinária:
A previsão de vida em comum entre os deveres do casamento não significa
imposição de vida sexual ativa nem a obrigação de manter relacionamento
sexual. Essa interpretação infringe o princípio constitucional do respeito à
dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade e à privacidade, além de
afrontar o direito a inviolabilidade do próprio corpo. Não existe sequer a
obrigação de se submeter a um beijo, afago ou carícia, quanto mais de se
sujeitar a práticas sexuais pelo simples fato de estar casado.
Conforme evidenciado pela autora acima, o pensamento típico da corrente
tradicional, ou seja, a inserção do débito conjugal no dever de coabitação dos
40
casados, deve ser afastado pois é desrespeitoso em relação a certos e importantes
princípios e direitos estabelecidos constitucionalmente.
A violação causada pelo débito conjugal ao Fundamento do Estado
Democrático Brasileiro45 e princípio constitucional da dignidade da pessoa humana
deve-se ao tratamento de objeto sexual entre os consortes e derivado daquele
dever. A obrigatoriedade do dever sexual gera a ideia de que o corpo do consorte é
“mera fonte de lascívia do seu parceiro” (ALVES, p. 7)46, fazendo com que os
cônjuges sofram e causem sofrimentos recíprocos, ferindo não só o respeito e afeto
entre eles, mas a dignidade de cada um. Essa coisificação sexual de um cônjuge ao
outro contrasta com os sentimentos de amor e bem querer que sustentam a
instituição do casamento e estimulam a saudável vida em comum do casal, razão
pela qual, o débito conjugal não pode ser protegido pelas normas civilistas atuais
nem estar presente em qualquer matrimônio.
A privacidade, liberdade individual e a inviolabilidade do próprio corpo
também são maculadas no cumprimento do débito conjugal, pois o cônjuge pode se
sentir vinculado a ter relações sexuais apenas para adimplir este dever perante o
outro consorte, minorando sua vontade e o domínio de seu corpo, de modo que não
transparece qualquer afeto na prática sexual, mas somente a sensação de doar seu
corpo ao parceiro. Nesse sentido, Farias e Rosenvald (2007, p. 138) sustentam:
Conquanto parcela da doutrina propugne pelo reconhecimento de um direito
da personalidade sobre o corpo do cônjuge, a partir da reciprocidade da
prestação do dever sexual no casamento, esta não é a posição que deve
prevalecer. É que a manifestação sexual (inclusive entre cônjuges e
companheiros) é pura expressão de afeto, é materialização de sentimento,
não sendo crível, nem admissível, que pudesse ser tratada pela ótica
jurídica como uma obrigação imposta a uma pessoa humana. Pensar no
débito conjugal como direito da personalidade é violar a dignidade humana,
aviltando a sua liberdade afetiva e sexual.
Além dessa crítica ao dever sexual e ao pensamento tradicional, esse
posicionamento doutrinário ainda assevera que o débito conjugal só “fez sentido
quando prevaleceu a sociedade patriarcal, reservando-se à mulher os papéis
domésticos e ao homem o de provedor” (LÔBO, 2011, p. 145).
Artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988: “A República Federativa do Brasil, formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana”.
45
46
Documento on-line não datado.
41
Com essas palavras, vê-se que a doutrina moderna apresenta argumentos
históricos, realçando o que já dito na seção 2.4 do presente trabalho, ou seja,
querendo mostrar que o patriarcalismo era o que motivava o debitum conjugale, já
que a sobreposição de um cônjuge sobre o outro estimulava a cobrança sexual pelo
mais potente. No entanto, afirma essa doutrina que, com o advento da igualdade
entre homens e mulheres no casamento alçada a nível constitucional em 1988, o
patriarcalismo foi superado, não existindo razão para que o débito conjugal
merecesse mais prosperar na sociedade brasileira hodierna.
Por fim, em razão da ausência de tutela legal e incompatibilidade do dever
sexual com a realidade jurídica atual, os defensores dessa tese não admitem
nenhuma sanção judicial para o não adimplemento do débito conjugal. Maria
Berenice Dias (2007) sustenta que não cabe nem anulação do casamento nem
separação quando o cônjuge não tem desejo de cumprir o débito conjugal, pois
ninguém pode ser condenado pela ausência do estímulo indispensável para a
prática de relações afetivas conjugais, qual seja, o amor e a afetividade.
A presença desses estímulos, porém, não é tão observada pela jurisprudência
pátria na análise do débito conjugal que, por sua vez, admite variadas repercussões
jurídicas para a quebra desse dever.
42
4 REPERCUSSÕES JURISPRUDENCIAIS DO DEBITUM CONJUGALE
4.1 IMPOTÊNCIA SEXUAL
Como já exposto na seção 2.3, um dos impedimentos canônicos para o
matrimônio era a impotência sexual que, por seu turno, impedia a consumação do
casamento por meio de relações sexuais. Desse modo, caso um dos cônjuges não
pudesse desenvolver a necessária potência para a prática sexual, por motivos
naturais ou artificiais, o casamento era considerado inválido.
Com a grande influência da doutrina canônica no direito pátrio, a legislação
civilista abriu espaço e a jurisprudência dos Tribunais brasileiros, de forma
majoritária, passou a adotar a impotência sexual também como causa de anulação
do casamento por erro essencial à pessoa do cônjuge, mas fixou certos requisitos
ou condições para que essa causa seja aceita juridicamente.
O primeiro desses requisitos, de origem puramente canônica, está presente
na diferenciação entre as impotências coeundi e generandi. Conforme já sustentado
na seção 2.3, somente a primeira é causa de invalidade do casamento, pois ela
torna o cônjuge totalmente incapaz de realizar o ato sexual, tornando o matrimônio
desprovido de qualquer relação sexual. A generandi, por outro lado, não incapacita o
consorte de praticar sexo, mas o proíbe de gerar prole, razão pela qual não quebra o
débito conjugal e, portanto, tem o condão de anular o casamento.
A segunda condição é que a impotência do nubente encaixe-se no conceito
de erro essencial à pessoa do cônjuge. Esse erro, informado no artigo 1557 do
CC/2002 (ver nota de rodapé 34), é caracterizado como um vício de vontade47 e
ocorre quando um dos consortes se casa “desconhecendo evento ou circunstância
anterior ao casamento e inerente à figura do outro cônjuge que, após a celebração
deste, torna-se evidente e, por ela, incompatível a vida em comum” (SOUZA FILHO,
2014, p. 385). O cônjuge que se achou prejudicado por esse erro pode, então,
acionar judicialmente o outro cônjuge, pleiteando a invalidade e anulação do
matrimônio, conforme permite o artigo 1550, inciso III do Código Civil de 2002 48.
Artigo 1556 do Código Civil de 2002: “O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se
houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro”.
47
Artigo 1550, inciso III do Código Civil de 2002: “É anulável o casamento: [...] III - por vício da
vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558”.
48
43
De acordo com esse requisito, portanto, a impotência sexual deve preencher
três aspectos: ser desconhecida do outro cônjuge antes do casamento; ser anterior
à celebração do matrimônio; e tornar insuportável a vida em comum do casal.
O último requisito da aceitação da impotência sexual como razão para a
invalidação do matrimônio é que esse defeito físico seja irremediável. Esta
característica, nos verbetes de Gonçalves (2012, p. 170), significa “a impossibilidade
de tratamento médico ou cirúrgico e pela ineficácia do tratamento ministrado por
longo tempo, bem como pela recusa ao tratamento adequado”.
Como interessante exemplo jurisprudencial que determina a anulação do
casamento a partir da impotência sexual, tem-se a Apelação Cível nº 251.816-549
julgada no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Neste caso, os cônjuges
concordaram com a anulação do casamento, mas com argumentos diferentes. A
mulher afirmava que o seu marido era impotente, razão pela qual ainda continuava
virgem mesmo após o casamento, e o varão negava sua impotência, afirmando que
a razão para que não houvesse sexo no relacionamento era que sua esposa
possuía uma aversão às práticas sexuais.
A Sexta Câmara Cível do referido Tribunal entendeu que a impotência
coeundi do cônjuge varão poderia ser presumida, pois o cônjuge não requereu
nenhuma prova que pudesse demonstrar que não sofria de tal defeito físico. O
Relator do caso afirmou que há muito preconceito no mundo atual, ainda machista e
intolerante, contra quem possui disfunções físicas de cunho sexual, razão pela qual
a vítima do preconceito, por orgulho pessoal, sempre se vê na obrigação de
rechaçar o rótulo de impotente, principalmente quando não o é, tendendo, portanto,
a provar que não detêm defeitos físicos sexuais.
No caso em questão, o varão não se preocupou em pedir provas periciais que
pudessem constatar sua potência sexual e ainda aceitou a anulação do casamento,
motivo pelo qual o Tribunal aceitou a presunção da sua impotência e decidiu anular
o casamento por esse defeito físico e não pela aversão sexual de sua esposa.
Outro julgado sobre o tema aqui abordado é o presente na Remessa de Ofício
nº 102250 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ainda sobre a égide do Código
49
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Apelação Cível nº 251.816-5. Sexta Câmara Cível.
Rel. Des. Jarbas Ladeira. Julgado em 29/04/2002.
50
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Remessa de Ofício nº 1022.
Quinta Turma Cível. Rel. Des. Vera Andrighi. Julgado em 03/05/1999.
44
Civil de 1916. Nele, observa-se os cônjuges foram casados durante seis meses e,
após esse período, separam-se de fato. Enquanto casados, os cônjuges não tiveram
qualquer relação sexual, pois o varão não conseguia realiza-lo, não sabendo este
cônjuge como justificar sua impotência. Fato interessante é que o casal já namorara
durante dois anos antes de se casarem e não houve qualquer sinal de impotência do
homem nesse tempo.
A sentença de primeira instância determinou a anulação do casamento por
erro essencial a pessoa do cônjuge advindo da impotência coeundi psicológica do
varão em relação somente a sua esposa. Os cônjuges não recorreram desta
decisão, mas o Ministério Público apresentou apelação alegando a superficialidade
do laudo pericial que embasou a sentença.
O Tribunal candango, por meio de sua Quinta Turma Cível, decidiu que o
laudo não era superficial pois foi elaborado por profissional qualificado para tal
exame e sustentou que restou comprovada a impotência coeundi de origem psíquica
do consorte, causada por motivos anteriores ao casamento, desconhecida pelo outro
conjuge e de natureza irremediável, razão pela qual foi mantida a sentença de
anulação do casamento.
Apesar
dessas
decisões
expressarem
o
pensamento
jurisprudencial
dominante, desenvolve-se, ainda de forma inócua, julgados em sentido contrário que
não aceitam a impotência sexual como motivo de invalidação do casamento.
Baseado na corrente doutrinária moderna, essa nova perspectiva jurisprudencial
afirma que a impotência coeundi não é erro essencial a pessoa do cônjuge, pois
este erro impossibilita a vida em comum do casal e a impotência sexual não gera
essa impossibilidade, pois para o casal viver em comunhão não há de
necessariamente haver sexo entre eles, mas sim sentimentos de respeito e amor.
Nesse sentido, observa-se o caso trazido a discussão no julgamento da
Apelação Cível nº 7000031404751 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no
qual, por decisão não unânime, a Sétima Câmara Cível decidiu que a impotência
sexual do cônjuge varão não era causa para a anulação do casamento, pois o casal
em lide conviveu normalmente mais de um ano e meio juntos, tempo suficiente para
dirimir a alegação de que a impotência sexual do homem representava um erro
51
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70000314047. Sétima
Câmara Cível. Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 29/03/2000.
45
essencial sobre a pessoa do cônjuge. Também foi sustentado que não existe
juridicamente um dever sexual entre os casados, motivo pelo qual a impotência não
pode dar azo a impossibilidade de vida em comunhão, não representado, assim, um
erro essencial e nem causa de invalidação do matrimônio.
4.2 RECUSA DA PRÁTICA SEXUAL ENTRE CÔNJUGES
A recusa à prática sexual por um dos cônjuges, também chamada de
coitofobia, também tem um tratamento dado pela jurisprudência pátria. Assim como
os casos de impotência sexual, observa-se que a falta de desejo por relações
sexuais dentro do casamento é interpretada de dois modos diferentes pelos
Tribunais pátrios. De um lado existirão julgados que irão enquadrar essa recusa
como causa de anulação de casamento, tendo como base o erro essencial quanto à
identidade civil do cônjuge, (artigo 1557, inciso I do CC/2002) e, na outra margem,
haverá juízes que caracterizarão a recusa como causa de separação judicial ou
divórcio, nos termos do artigo 1572 do Código Civil de 200252.
Esta primeira forma de interpretação acima citada sustenta que quando
qualquer um dos consortes recusa-se a ter relações sexuais com seu par, pode
provocar neste último a sensação de que se casou com uma pessoa que ele
acreditava não possuir tais objeções. Desse modo, se o cônjuge recusante não
evidenciava a coitofobia ao outro antes da celebração do matrimônio e essa
ausência de vontade sexual ocasiona uma divergência de interesses entre os
nubentes, gerando a insustentabilidade da vida em comum, este casamento deve
ser anulado por erro essencial quanto a identidade civil do consorte aversivo ao
sexo. A identidade civil, por seu turno, significa aqui “o conjunto de atributos ou
qualidades com que a pessoa se apresenta no meio social” (GONÇALVES, 2012, p.
164).
Parte dos julgados posicionam-se dessa maneira, como por exemplo o
extraído da Apelação Cível nº 7001680731553 do Tribunal de Justiça do Rio Grande
Artigo 1572 do Código Civil de 2002: “Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação
judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e
torne insuportável a vida em comum”.
52
53TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível Nº 70016807315. Oitava
Câmara Cível. Rel. Des. Rui Portanova, Julgado em 23/11/2006.
46
do Sul. Em sua casuística, a lide foi motivada pela não aceitação do cônjuge varão a
recusa de sua esposa ao ato sexual, pleiteando-se, portanto, a anulação do
casamento por erro essencial. A sentença de Primeira Instância não aceitou esse
argumento, julgando pela improcedência do pedido.
No entanto, no julgamento da apelação interposta em face dessa sentença, o
Tribunal gaúcho sustentou que a recusa às relações sexuais dentro do casamento
sem justificativas é anormal, pois o sexo entre os cônjuges é previsível na
constância do casamento, fazendo parte dos usos e costumes da sociedade
brasileira. Decidiu, portanto, que restava caracterizado o erro essencial e a
consequente anulação do casamento no caso em questão, porquanto a esposa não
tem ou nunca teve intenção de manter conjunção carnal após o casamento, mas não
exteriorizou essa intenção antes da celebração do matrimônio, acarretando uma
legítima frustração de expectativa no outro consorte.
Caso semelhante é o presente na Apelação Cível referente ao Processo nº
0009515-58.2008.8.19.000754 de competência do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro. Embora distinto do caso sobredito quanto a casuística, já que esta última
ação judicial foi motivada pela insatisfação da mulher com a negativa do homem em
realizar atos sexuais com ela, a decisão do Tribunal acompanhou o mesmo sentido
da anterior, anulando o casamento por erro essencial, reiterando ainda que a
coitofobia é uma causa razoável para que a vida em comum seja insuportável, pois
retira do ambiente conjugal as relações sexuais, elemento natural do matrimônio.
Entretanto, divergindo da interpretação exposta nessas decisões, outra parte
da jurisprudência afirma que a recusa ao sexo é uma violação ao dever matrimonial
de coabitação, especialmente ao aspecto do débito conjugal, devendo ter como
consequência judicial a separação judicial ou o divórcio. Assevera também que a
coitofobia não pode ser encarada como erro essencial sobre a identidade civil do
cônjuge recusante, pois a recusa sexual não é um atributo ou qualidade que possa
ser verificado no meio social, razão pela qual, padece de qualquer sentido a
anulação de casamento derivada desta rejeição.
54
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. Apelação Cível do Processo nº 000951558.2008.8.19.0007. Décima Quinta Câmara Cível. Rel. Des. Horácio Ribeiro Neto. Julgado em
31/01/2012.
47
Como exemplo jurisprudencial desse polo interpretativo, observa-se o julgado
da Apelação Cível oriundo do Processo nº 2010.055631-955 do Tribunal de Justiça
de Santa Catarina. Neste caso, a ação foi ajuizada pelo marido que não aceitava a
recusa da sua esposa de manter relações sexuais com ele, pleiteando a anulação
do casamento por erro essencial. A sentença de Primeira Instância extinguiu o feito
por inadequação da via eleita, em virtude da recusa sexual ser causa para
separação judicial ou divórcio, que são ações especiais, e não para uma ação
desconstitutiva de casamento, como foi ajuizada pelo demandante.
O Tribunal sobredito, em sede de apelação, manteve a sentença, extinguindo
o processo, arguindo que a recusa ao sexo não se enquadrava em nenhuma
hipótese taxativa de erro essencial do artigo 1557 do Código Civil de 2002, mas sim
representava uma quebra do débito conjugal que, por sua vez, é um dever existente
no matrimônio, devendo o autor da ação buscar a separação nos moldes do artigo
1572 do CC/2002 ou o divórcio unilateral.
Outro julgado interessante advem da Apelação Cível proveniente do Processo
nº 2008.001.3164056 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A lide aqui
desenvolve-se pela mudança do comportamento do cônjuge varão após o
casamento, rejeitando a prática sexual frequente com sua esposa. Diferentemente
do caso elucidado anteriormente advindo da apelação do Processo nº 000951558.2008.8.19.0007 do mesmo Tribunal, a Corte aqui julgou que a recusa sexual do
homem foi apresentada somente depois do casamento, afastando o aspecto de
anterioridade do erro essencial, e que essa ausência de desejo carnal colidia com o
dever de coabitação, ensejando separação ou divórcio e não anulação do
casamento.
Essa interpretação observada nessas decisões sofre atualmente uma
restrição quanto a possibilidade da separação judicial ser resultante da rejeição
sexual. Acontece que a partir da Emenda Constitucional 66/2010, o divórcio torna-se
menos burocrático e a separação judicial perde importância (vide nota de rodapé 32)
e hoje, embora ainda exista juridicamente, raramente é pleiteada nos tribunais
brasileiros, motivo pelo qual o divórcio passa a ser considerado, dentro dessa
55
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Apelação Cível n. 2010.055631-9. Câmara
Especial Regional de Chapecó. Rel. Des. Jorge Luis Costa Beber. Julgado em 24/08/2011.
56
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO. AC 2008.001.31640. Décima Sétima Câmara
Cível. Rel. Des. Antonio Iloizio B. Bastos. Julgado em 17/09/2008.
48
interpretação, o principal meio jurídico para impugnar a recusa às práticas sexuais
na constância do matrimônio.
Por fim, embora essas duas formas de pensar a coitofobia apresentem
resultados juridicamente distintos, vê-se um aspecto comum entre elas: a
abordagem da doutrina tradicionalista do débito conjugal. Essa doutrina mostra-se
quando, ao tratar o tema em questão, as interpretações supracitadas fortalecem,
mesmo que indiretamente, a existência do dever de prestações sexuais entre os
consortes no ordenamento jurídico brasileiro, na medida que caracterizam a rejeição
sexual e a consequente ausência de sexo conjugal como algo inesperado, estranho
e prejudicial ao casamento, já que torna a vida em comum insuportável, tendo como
legítimos corolários jurídicos a invalidação do matrimônio por meio de anulação ou a
ruptura do vínculo conjugal oriundo do divórcio.
4.3 ESTUPRO CONJUGAL
Hoje em dia, é totalmente defendido pelos doutrinadores e julgadores, tanto
na esfera civil quanto na penal, a vedação absoluta em forçar o outro cônjuge à
prática sexual não consentida ou desejada.
Pode-se observar que, na seara civil, essa proibição é sustentada em duas
formas: a) pelas duas correntes doutrinárias sobre o débito conjugal, a tradicional e
a moderna, conforme já elucidado nas seções 3.1 e 3.2, no momento que afirmam
que existem outros métodos jurídicos de se proceder quando o débito conjugal não
esteja sendo cumprido, como por exemplo o ajuizamento de ações de separação, o
divórcio ou anulação; b) pela letra dos artigos 7º, inciso III da Lei nº 11.340/200657
(Lei Maria da Penha), que conceitua a violência sexual doméstica contra a mulher.
Aqui, cabe ressalvar que a própria lei prescreve, em seu artigo 22, as necessárias
medidas de proteção cautelares endereçadas ao marido e cobradas pelo juiz para
coibir essa violência sexual, tais como o afastamento do lar; a proibição de
Artigo 7º, inciso III da Lei nº 11.340/2006: “São formas de violência doméstica e familiar contra a
mulher, entre outras: [...] III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça,
coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua
sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à
gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que
limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>.
57
49
aproximar-se ou ter contato com a esposa; a restrição ou suspensão de visitas aos
filhos; e a prestação de pensão alimentícia.
Para o Direito Penal, entretanto, essa vedação é defendida com base do
crime de estupro, contido no artigo 213 do Código Penal de 194058. Esta norma, em
sua redação original, tipificava o delito de estupro na ação de “constranger mulher à
conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Vê-se, assim, que o sujeito
ativo era limitado somente ao homem, já que só ele poderia ter conjunção carnal
com
uma
mulher,
e
o
sujeito
passivo
sempre
era
do
sexo
feminino,
independentemente do tipo de relação afetiva, social ou familiar entre esses sujeitos.
Mas quando esse crime ocorria entre cônjuges, nem sempre os sujeitos eram
entendidos dessa forma.
Acontecia que parte minoritária da doutrina penalista brasileira defendia que
um homem não poderia ser autor do crime de estupro contra sua esposa, pois,
conforme sustenta Nelson Hungria (1956 apud GRECO, 2011), o estupro tem como
pressuposto a cópula ilícita, ou seja, aquela havida fora do casamento. Informa este
doutrinador que o sexo na constância do matrimônio é dever recíproco dos
cônjuges, de tal modo que o marido violentador estaria em pleno exercício regular
de direito (excludente de ilicitude) ao obrigar sua esposa a manter relações sexuais
com ele, ficando isento, portanto, das penas do estupro e da violência física
decorrente do constrangimento.
Porém, com o advento da Lei nº 12.015/2009, a redação original do crime de
estupro foi alterada, ampliando-se a quantidade de condutas abarcadas por esse
tipo legal no sentido de aumentar as proteções aos bens jurídicos da liberdade e
dignidade sexuais. O estupro passa, então, a ser tipificado como a ação de
constranger alguém a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir qualquer ato
libidinoso59 a vítima por meio de violência ou grave ameaça. Observa-se que agora o
estupro passa a ter como sujeito ativo um homem ou uma mulher e como sujeito
Artigo 213 do Código Penal de 1940: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). Disponível em <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.html>.
58
59
Ato libidinoso, conforme suscita Capez (2012), pode ser conceituado como toda aquela atitude,
mesmo que inconsciente, tentada ou consumada com a finalidade de satisfazer o apetite sexual ou a
lascívia do agente. São exemplos de atos libidinosos os coitos anormais, como o sexo oral ou anal.
50
passivo também figurar homens ou mulheres, também independentemente de
qualquer relação entre eles.
Com essa mudança legal, a interpretação acima citada, que não tipificava o
estupro quando cometido contra esposa, é superada, pois agora o estupro não
ocorria somente em casos de conjunções carnais, mas sim quando houvesse a
prática de qualquer ato libidinoso não consentido, razão pela qual esse crime tornase perfeitamente possível dentro do casamento.
O estupro passa, então, a ser considerado plenamente como a proibição
penal das relações sexuais forçadas entre cônjuges. O posicionamento hodierno,
consoante Damásio de Jesus (2010), é no sentido de que o estupro é caracterizado
no ambiente matrimonial, pois, embora exista o direito de manter relações sexuais
dentro do casamento, não há a autorização para que o marido venha a forçar a
mulher, e vice-versa, a qualquer ato libidinoso. Assevera o referido autor que os
cônjuges não estão sujeitos aos caprichos sexuais dos outros e nem perdem o
direito de dispor de seu próprio corpo após a celebração do casamento, motivo pelo
qual quando não houver consentimento de um dos consortes e o seu par o obrigar a
ter relações sexuais por violência ou grave ameaça estará configurado o delito de
estupro.
Endossando este entendimento e ressalvando a possibilidade do estupro
conjugal ser cometido tanto pelo homem quanto pela mulher, cabem às palavras de
Cezar Roberto Bitencourt (2012, p. 40), quais são:
[...] qualquer dos cônjuges, a nosso juízo, pode constranger,
criminosamente, o outro à prática de qualquer ato libidinoso, incorrendo nas
sanções cominadas neste dispositivo legal. Nenhum dos cônjuges tem o
direito de subjugar seu consorte e submetê-lo, contra a vontade, à prática
sexual, seja de que natureza for. O chamado “débito conjugal” não
assegurava ao marido o direito de “estuprar sua mulher” e, agora, viceversa, ou seja, tampouco assegura a esta o direito de estuprar aquele,
forçando-o à relação sexual contra sua vontade. Garante-lhes, tão somente,
o direito de postular o término da sociedade conjugal, ante eventual recusa
dos “préstimos conjugais”. Em outros termos, os direitos e as obrigações de
homens e mulheres são, constitucionalmente, iguais (art. 5º, I, da CF),
inclusive no plano das relações sexuais matrimoniais.
A
jurisprudência,
por
seu
turno,
de
modo
uníssono,
reitera
esse
posicionamento doutrinário atual, alegando a compatibilidade do crime de estupro
com as relações conjugais. Um julgado que retrata bem esse tema foi o prolatado na
51
Apelação Criminal nº 0226280-260 do Tribunal de Justiça do Paraná. Nesse caso,
acontecido antes mesmo da alteração no artigo 213 do Código Penal pela Lei nº
12.015/2009, o marido foi condenado sentencialmente por estupro, tortura e
atentado violento ao pudor contra sua esposa, tendo recorrido dessa decisão.
O tribunal paranaense, ao julgar a apelação, decidiu que a sentença não
merecia reparos quanto a tipificação do crime de estupro, pois “a relação sexual
voluntária é lícita ao cônjuge, mas o constrangimento ilegal empregado para realizar
a conjunção carnal à força se constitui em abuso de direito”, enquadrando-se
perfeitamente no tipo do crime de estupro. Observa-se no julgamento desse caso
que a declaração da vítima do abuso é considerada como a principal prova do crime,
já que oferece mais detalhes sobre as circunstâncias e o modus operandi do delito e
serve de meio para que se busquem novas provas ou evidências.
Outro exemplo jurisprudencial mais recente é a Apelação Criminal nº
993.06.098734-861 do Tribunal de Justiça de São Paulo. Nela é discutida o caso em
que o marido, por ciúmes e raiva da esposa que insistia em sair de casa para
trabalhar, promoveu agressões físicas bárbaras a sua consorte e manteve com ela
relação sexual não consentida. A sentença condenou-o por estupro e foi mantida em
parte pelo Tribunal no julgamento do recurso apelativo.
A Segunda Câmara Criminal do Tribunal paulista afirmou que o estupro no
caso em questão restava-se plenamente configurado, pois além da conduta do réu
estar devidamente provada e enquadrada no tipo legal descrito no artigo 213 do
Código Penal, a lei não impõe limites quanto a esse crime na constância do
casamento.
É sustentado na decisão também que o próprio Código Penal reconhece o
estupro conjugal quando concede, em seu artigo 226, inciso II, o aumento de pena
até a metade quando o autor do crime de estupro é cônjuge da vítima. Embora
afirmando isso, o referido julgado acaba por afastar a incidência dessa majoração de
pena ao caso concreto, pois a violência sexual ocorreu no ano de 2004 e o aumento
penal para o cônjuge agressor somente adveio com a Lei nº 11.106/2005, não
60
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ. Apelação Criminal Nº 0226280-2. Segunda Câmara
Criminal. Rel. Des. Laertes Ferreira Gomes. Julgado em 26/06/2003.
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Apelação Criminal nº 993.06.098734-8. Segunda
Câmara Criminal. Rel. Des. Ivan Marques. Julgado em 26/01/2009.
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podendo, sob pena de quebra do princípio da irretroatividade da lei penal in malam
partem62, gerar efeitos ao consorte réu.
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Conforme o artigo 2º, parágrafo único do Código Penal, a lei posterior somente pode afetar o réu
que cometeu crime antes de sua vigência, mesmo com o caso já decido por sentença transitada em
julgado, se for benéfica a este. Assim, qualquer malefício que uma lei posterior traga a um acusado
ou condenado por fato anterior não gera efeitos, criando, portanto, a ideia da irretroatividade da lei
penal em prejuízo do réu ou in malam partem.
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5 CONCLUSÃO
Tendo em vista toda a análise do débito conjugal realizada no presente
trabalho, observa-se, inicialmente, que esse dever sexual não é algo novo ou que foi
construído rapidamente, mas sim que foi desenvolvido e firmado historicamente na
medida em que o instituto do casamento também era fixado na sociedade,
mostrando uma dependência e continência do dever sexual em relação ao
matrimônio.
Nas sociedades primitivas, foi evidenciado que a ideia do débito conjugal
ainda não existia, pois não havia estabilidade suficiente das relações afetivas que
justificassem um dever de prestações sexuais entre os parceiros. Essas relações
afetivas primitivas eram bastante transitórias e desprovidas de afeto entre o casal,
características essas que provocaram, a partir das sociedades clássicas, a criação
do casamento com o intuito de conferir mais durabilidade as relações conjugais e de
fazer surgir a família legítima, a única digna de proteção do Estado.
O casamento, em seus primeiros momentos na Antiguidade, continuou com a
finalidade de reprodução, não somente para o crescimento populacional das
sociedades, mas para suprir as carências sociais deixadas pelas intensas guerras
travadas no período. Essa necessidade de se reproduzir e maior durabilidade das
relações matrimoniais geraram a ideia de que o sexo é algo intrínseco ao casamento
e, sem ele, não havia como manter os laços conjugais, razão pela qual figurava-se
um dever dos cônjuges em pratica-lo. Era, assim, edificado o débito conjugal.
Essa ideia foi, cada vez mais, sendo difundida socialmente entre as
civilizações antigas, especialmente a romana, mas não era institucionalizada
juridicamente. Essa institucionalização só adveio com o comando do direito canônico
no período medieval. Neste direito, o matrimônio foi tido como um sacramento e,
portanto, indissociável da Igreja Católica, ficando esta entidade religiosa como a
responsável por normatiza-lo e celebra-lo.
Desse modo, ao legislar sobre o casamento, o direito canônico firmou as
bases jurídicas do debitum conjugale, passando o recato a ser considerado uma
causa de invalidade do casamento caso não fosse realizado, já que a prática sexual
entre os consortes representava a própria consumação do matrimônio, ficando,
assim, os cônjuges obrigados a terem relações sexuais. Não somente isso, mas a
Igreja também se preocupou em institucionalizar impedimentos matrimoniais como
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base nas relações sexuais, como a vedação do casamento de impotente sexual ou
quando um dos cônjuges houvesse proferido votos de castidade.
Com passar dos tempos, o crescimento do poder dos Estados e o nascimento
de diversas outras religiões cristãs no período conhecido como Reforma Protestante
acabaram por enfraquecer política e socialmente a Igreja, o que, consequentemente,
acarretou na substituição das normas matrimoniais canônicas pelas normas estatais,
fenômeno conhecido como secularização ou laicização do casamento.
Entretanto, observou-se que, embora a Igreja tivesse perdido parte de seu
poder, conseguiu influenciar os ordenamentos jurídicos de Estados católicos, como
Portugal. Este, por sua vez, ao colonizar o Brasil passou a difundir ideais canônicos
(dentre eles a doutrina do débito conjugal), que ainda restam, em parte, cristalizados
no ordenamento jurídico pátrio.
Atentando a essa influência canônica na atualidade, o presente trabalho
preocupou-se em analisar como o dever de mútuas prestações sexuais entre os
cônjuges é encarado pela doutrina civilista brasileira. Foi constatado que esse dever
é tema ainda recorrente para os estudiosos do direito de família, existindo duas
correntes doutrinárias e contrapostas sobre o tema.
A primeira, denominada de corrente tradicional, é a majoritária e defende o
debitum conjugale como um dos aspectos do dever legal de coabitação entre os
cônjuges, asseverando que a presença do sexo dentro do casamento é normal e
previsível, motivo pelo qual o dever sexual recíproco dos consortes, mesmo não
sendo essencial para todos os casamentos e tendo limites impostos pela própria
legislação, é compatível como a realidade fática do matrimônio.
A segunda, denominada de corrente moderna, por seu turno, defende a não
inserção do débito conjugal no dever de coabitação e a incompatibilidade do desse
dever matrimonial na atualidade em virtude de que a sua satisfação ofende a
liberdade sexual, a dignidade humana, a intimidade e a inviolabilidade do corpo do
nubente, razão por que não pode ser tutelado pelo Direito. Essa doutrina, porém,
não nega a existência social ou costumeira do debitum, restringindo-se somente a
discussão jurídica deste dever sexual.
No entanto, ao descrever essas doutrinas, restou nitidamente constatado que
ambas sinalizam que o débito conjugal, sendo ou não protegido pelo direito estatal,
acarreta em consequências jurídicas tanto para as situações em não for cumprido
quanto para aquelas em que sua satisfação seja forçada por um dos cônjuges.
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Inserido no contexto dessas consequências jurídicas, esta monografia, por
fim, se deteve em analisar os principais casos práticos judiciais envolvendo o débito
conjugal, quais foram a impotência coeundi, a coitofobia e o estupro conjugal,
verificando quais são os resultados jurídicos cabíveis em cada situação.
Foi observado, então, que a referida impotência, ao obstar a prática sexual
entre os consortes, acaba por ser considerada majoritariamente, pelos Tribunais
brasileiros, como um exemplo de erro essencial de defeito físico e irremediável
capaz de anular o casamento. A coitofobia ou a recusa de ter relações sexuais com
o cônjuge também será tido por parte da jurisprudência como causa de anulação de
casamento fundamentada como erro essencial a identidade civil do consorte ou,
pela outra parte jurisprudencial, como causa de separação ou divórcio. Para o
estupro conjugal, por sua vez, restou demonstrado que, em que pese antigas e já
superadas teses doutrinárias em contrário, é para a jurisprudência absolutamente
vedado e totalmente compatível com as relações sexuais entre casados.
Desse modo, diante de tudo que aqui foi exposto, conclui-se que o débito
conjugal é ainda hodiernamente uma realidade no casamento e no direito brasileiro,
mesmo com as discordâncias existentes na doutrina e jurisprudência que só
evidenciam a importância que esse tema para a vida familiar. Além disso, vê-se que
é preciso o seu estudo e o seu contínuo questionamento para que sua existência na
constância do casamento não exceda nunca os limites estabelecidos pelas leis e
princípios jurídicos, bem como para que não seja algo desagregador dos laços de
amor e afeição nos quais devem se basear todas as famílias.
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