! UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES LITERATURA NAS SOMBRAS: USOS DO HORROR NA FICÇÃO BRASILEIRA DO SÉCULO XIX ORIENTADORA: PROFESSORA DOUTORA ANDREA DAHER RIO DE JANEIRO 2014 ! LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES LITERATURA NAS SOMBRAS: USOS DO HORROR NA FICÇÃO BRASILEIRA DO SÉCULO XIX Tese apresentada ao programa de Pósgraduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do grau de doutor em História Social. ORIENTADORA: PROFESSORA DOUTORA ANDREA DAHER Rio de Janeiro 2014 ! ! Esteves, Lainister de Oliveira Literatura nas sombras: usos do horror na ficção brasileira do século XIX VIII, 250 f.: il.; 30 cm. Orientador: Andrea Daher Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2014.. Referências: f. 236-249. 1. Horror literário 2. Literatura brasileira 3. Nacionalismo literário – tese. I. Daher, Andrea. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em História Social. III. T. ! ! LAINISTER DE OLIVEIRA ESTEVES LITERATURA NAS SOMBRAS: USOS DO HORROR NA FICÇÃO BRASILEIRA DO SÉCULO XIX Aprovada em BANCA EXAMINADORA _____________________________________________ Prof.ª Dr.ª Andrea Daher (orientadora) Universidade Federal do Rio de Janeiro ______________________________________________ Prof. Dr. Abel Barros Baptista Universidade Nova de Lisboa ______________________________________________ Prof. Dr. Karl Erik Schollhammer Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ______________________________________________ Prof. Dr.ª Lucia Ricotta Vilela Pinto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro ______________________________________________ Prof. Dr.ª Maria Cristina Batalha Universidade do Estado do Rio de Janeiro ! ! AGRADECIMENTOS Ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. À professora Andrea Daher, referência intelectual fundamental para minha formação ao longo dos anos. Ao professor Abel Barros Baptista pela acolhida em terras lusitanas e pelos valorosos comentários acerca do horror literário. Ao programa de bolsas do CNPq pelo suporte financeiro, sem o qual este trabalho não seria possível. Ao programa de bolsas da CAPES pela concessão da bolsa-sanduíche que possibilitou o estágio doutoral na Universidade Nova de Lisboa, fundamental para a realização deste projeto. À minha família pelo carinho e apoio incondicional. À minha esposa pelo companheirismo e dedicação. Por tudo, para sempre. ! ! RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar o horror na ficção brasileira do século XIX. Para identificar as diferentes formas de imaginação literária do horror presentes na literatura do período são analisadas obras publicadas em livros, jornais de grande circulação e periódicos acadêmicos. Para os propósitos aqui expressos, o horror não configura um gênero específico, é, primordialmente, um dispositivo que permite organizar textos diversos nos quais ele está presente e dos quais faz emanar determinado efeito. A investigação inicialmente toma como objeto a literatura gótica surgida na Europa do século XVIII: a transformação por ela efetuada nos hábitos de leitura e o lugar central que ocupa no debate estético romântico. A análise desse fenômeno permite estabelecer paralelos com a produção literária brasileira e entender de que forma a consagração do paradigma crítico realista levou o horror à condição de vertente literária desviante quando considerados os cânones literários brasileiros. Palavras-chave: gótico; romantismo; horror; literatura brasileira; nacionalismo literário. ! ! ABSTRACT The aim of this work is to analyze the horror in the 19th century Brazilian fiction published in books, large circulation newspapers and academic journals. For the purposes here expressed, terror does not set a specific genre. It is a device that allows to organize various texts in which he is present and which makes emanate a specific effect of fear. The research initially takes the gothic literature that has emerged in Europe in the 18th century as object: the transformation it made in reading habits and the central place that occupies in romantic aesthetic. The analysis allows to draw parallels with the Brazilian literary production and to understand in what way the consecration of a realistic critical paradigm turn horror into minor literature in face of the Brazilian literary canon. Keywords: gothic; romanticism; horror; Brazilian literature; nationalism. ! ! INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8 1. DEFINIÇÕES DO HORROR LITERÁRIO 1.1. A invenção do gótico moderno....................................................................................12 1.2. A expansão do gótico no século XIX...........................................................................25 1.3. Matrizes conceituais e modelos literários do horror....................................................39 1.4.Variações em torno do horror e do fantástico...............................................................60 2. O HORROR ACADÊMICO NA LITERATURA BRASILEIRA 2.1. A modelização literária do terror.................................................................................71 2.2. A dramatização literária de tipos românticos..............................................................90 2.3. A proximidade do estranho: do interdito ao fantástico..............................................105 3. O HORROR NAS CHAVES DA AMENIDADE E DA IRONIA 3.1. A difusão do medo em jornais e folhetins..................................................................121 3.2. Um terror de interesse doméstico...............................................................................131 3.3. O irônico horror machadiano......................................................................................151 4. A EXCEÇÃO DO HORROR EM CAUSOS, LENDAS E ROMANCES 4.1. Autores menores........................................................................................................173 4.2. Os alfarrábios de José de Alencar..............................................................................191 4.3. As lendas e os causos de Bernardo Guimarães..........................................................200 4.4. Aluísio Azevedo e o misterioso Victor Leal..............................................................211 CONCLUSÃO.....................................................................................................................229 BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................236 ! ! 8! Introdução No artigo “Du fantastique en littérature”, publicado na Revue de Paris em 1830, Charles Nodier defende a imaginação fantástica como remédio necessário à razão moderna, uma forma de escapar do tédio que assolaria o homem contemporâneo. O fenômeno literário seria como uma força sinistra e maravilhosa, surgida quase como efeito colateral do pensamento iluminista, o outro lado do espelho de uma sociedade cética, contramão do esforço de superação da obscuridade. As paisagens do romance noir que reafirmam os mistérios da natureza dariam voz ao silêncio dos corações e aos segredos das mentes, em uma época em que os discursos buscam dar conta de territórios inexplorados para iluminar uma escuridão reinventada nas cores do romantismo. No jogo que propõe a ausência de regras como paradigma, a busca de uma representação íntegra do homem significará também a aproximação definitiva da literatura com o mal. No entanto, mesmo anunciada como extravasamento de poderes reprimidos, a ficção se consolida como triunfo da razão, monumento ao controle da capacidade de fabulação que, na chave do sublime, traduz o prazer como abalo das sensações. Estruturada como um laboratório de simulação no qual as sensibilidades são medidas nos limites do risco e da eficácia, a produção literária passa a se valer do horror como elemento crucial para a educação estética. A habilidade sensível, calculada segundo os parâmetros ideais da empatia, transforma-se também em referência de juízo moral, e o medo se converte em um dos elos fundamentais da relação entre a literatura e os modos de percepção. É de acordo com essa lógica que, a partir da segunda metade do século XVIII, com o advento dos romances góticos, o discurso ficcional passa a ser o lugar de produção e reprodução de um repertório de temas insólitos. Objeto da atenção erudita, o fantástico se multiplica na linguagem reproduzida como elemento transitório na busca do efeito de horror. A proliferação de histórias sinistras é parte fundamental da ressignificação do maravilhoso, que ao perder espaço como elemento de percepção da realidade, se redefine nos hábitos de leitura. O discurso ficcional passa a difundir os medos de um mundo imaginário refeito como “fenômeno de biblioteca”1. A ênfase na peripécia em detrimento da densidade da linguagem é a marca dos “fenômenos editoriais”. Novos casos, tramas e sensações implicam na secularização das !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1 FOUCAULT, Michel. “Posfácio a Flaubert”. In: Estética: literatura e pintura; música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 80. ! ! 9! formas de imaginação. Como literatura cotidiana, esses dispositivos se multiplicam para comoção de um público interessado na experiência fugaz de um prazer que lembra a obscuridade para diminuí-la nos domínios de uma empatia controlada. Assim a tradução letrada do horror refaz o sentido do sobrenatural explicado pelo próprio registro ficcional reduzindo a fabulação às artimanhas de uma recém-construída autoridade autoral que evidencia a artificialidade do que propõe. Nos séculos XVIII e XIX as formas de imaginação literária do horror variam, o que torna difícil definir aquilo que seria chamado de “literatura de horror” no século XX. Apesar de não haver uma classificação precisa, as representações do estranho e a busca do efeito de horror são pontos comuns que permitem pensar a especificidade desse tipo de ficção. Nas representações de uma modernidade sombria veiculada a uma polissêmica taxonomia romântica essa ficção se popularizaria, o que atesta que, se o romantismo não inventou a perspectiva da afetação, converteu-se em sua forma moderna graças à reabilitação do debate acerca do sublime. A tentativa de buscar na estética o consolo para o esvaziamento da experiência que define o sublime, traduz a consciência da finitude como dramatização do insólito e ao mesmo tempo faz da originalidade o confronto imediato com a regularidade das formas clássicas. Nesse universo repleto de mistérios, as sombras oferecem a tonalidade ideal para que um “novo personagem” possa atuar. O homem integralmente representado com suas nuances de clareza e escuridão, e de beleza e fealdade ganha a cena sob o imperativo da complexidade dramática. O belo e o horrível se encontram quando a figura do homem íntegro surge como revelação do mal. Com o objetivo de rastrear as formas e os usos do horror na literatura brasileira oitocentista, analisam-se no primeiro capítulo textos considerados fundamentais para a definição da modernidade do horror. Por representar a contramão da razão iluminista, o gótico produzido majoritariamente na Europa e nos Estados Unidos assume o risco não só de insuflar os fantasmas de um mundo obscuro que supostamente teria ficado para trás como de revelar as tensões entre as formas de imaginação literária do horror. O problema que começa como risco de retorno da superstição se desdobra em tênue limite do bom gosto, argumento decisivo para o controle das motivações fantásticas. Além de possibilitar considerações mais amplas acerca das definições do horror como tema literário, a análise das circunstâncias de produção e consumo desses textos ajuda a entender a circulação deles no Brasil. Abordando mais especificamente o objeto deste estudo, o segundo capítulo trata da ficção veiculada prioritariamente em periódicos acadêmicos paulistas em meados do século XIX. Configurando um tipo particular de horror literário esses textos têm o cinismo como ! ! 10! tema central, o que os aproxima de uma linhagem romântica representada exemplarmente por Lorde Byron. Da eleição de uma tradição boêmia articulada na correspondência entre vida e obra, constrói-se um corpus macabro inserido diretamente nos debates em torno da definição dos rumos da literatura brasileira. O horror acadêmico exagera os temas românticos transformando autores-chave, como Álvares de Azevedo, em personagens de uma decadência moral que abalaria os valores da cultura ocidental. Em textos cuja circulação restrita possibilitou a consagração do excesso como marca identitária, a transgressão entre pares permite a exploração deliberada de um horror focado no dilema espiritual extravasado na violação dos corpos reiterando a relação entre deboche e representação da morte. No terceiro capítulo observa-se como o horror é difundido em jornais de grande circulação a partir da segunda metade do século XIX. Os contos macabros divididos em duas chaves analíticas distintas, a amenidade e a ironia, passam a fazer parte do cotidiano de leitores interessados em peripécias folhetinescas e em breves enredos insólitos. No horizonte da literatura amena, os mistérios são resolvidos como peças pregadas pelo narrador, o que evidencia uma relação de maior cumplicidade com o público, enquanto na lógica da ironia machadiana o narrador constrói os limites de sua narração como elemento de promoção do mistério. A proliferação dessas histórias depende da suavização dos temas românticos acadêmicos. Esses textos têm em vista um “leitor sentimental” que, afeito às matérias mais delicadas do romantismo, pretendem seduzir. Autor destacado na produção desses contos, Machado de Assis, leitor confesso de Edgar Allan Poe e de Ann Radcliffe, aparece como um dos mais constantes artífices do horror na literatura brasileira do período. No quarto e último capítulo são analisadas obras de maior fôlego, tanto de autores que não participam do cânone literário brasileiro quanto dos canônicos cujas obras “de horror” são menosprezadas pelas histórias literárias. A exclusão obedece ao paradigma nacional-realista que reserva ao horror o lugar paralelo de vertente literária desviante. Essas obras seriam consideradas menores, seja pela falta de refinamento estético – traduzida geralmente como incapacidade de apreensão da realidade –, seja pela vocação para o simples entretenimento nas horas de ócio. A análise de alguns textos de José de Alencar, Bernardo Guimarães e Aluísio Azevedo, por exemplo, deixa claro que, a partir da segunda metade do século XIX, a “imaginação romântica” passa a representar o suposto desvio do realismo e é duramente criticada em defesa de projetos considerados mais condizentes com a verdadeira vocação da literatura brasileira, ou seja, a representação do nacional. O caráter abrangente deste estudo prioriza a relação entre os textos e não a análise pormenorizada das obras. O objetivo é identificar diferentes configurações do horror , assim ! ! 11! como suas funções no campo literário brasileiro do século XIX. As composições são analisadas segundo a relação entre fabulação ficcional e projeto literário. Para os propósitos aqui expressos, o horror, também comumente expresso como terror, não configura um gênero específico que se poderia definir como gótico, grotesco, fantástico ou noir2. É pensado como dispositivo presente em diferentes textos que o conformam como efeito. Artifício historicamente datado aplicável a diferentes modelos narrativos, o horror se transformou em elemento-chave na produção e no consumo literários no Brasil a partir do século XIX. O esforço de interpretação das obras que o exploram pressupõe a tentativa de restituir as legibilidades passadas, e tal restituição, por sua vez, baseia-se no mapeamento dos problemas que estruturam essas obras, organizam-nas e lhes dão sentido no seu tempo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 2 A escolha do uso do termo “horror“,em detrimento de “terror”, se dá em função de sua maior ocorrência no debate literário e também por sua definição em língua portuguesa incluir, além dos sentimentos de pavor e repulsa, as sensações de incômodo e de receio. Todavia, em alguns casos, o termo “terror” também será utilizado para evitar a repetição excessiva de um mesmo termo. Em todo caso, há uma certa equivalência dos termos “horror” e “terror” e recorrência das imagens que os relacionam, por exemplo, às “trevas” ou às “sombras”. Esses termos encontram-se, muitas vezes, indiscriminadamente usados nos materiais estudados. Ao longo desta tese, em cada um dos casos em que houver especificidade de nomenclatura, ela será evidenciada na análise. ! ! 12! 1. Definições do horror literário 1.1. A invenção do gótico moderno The Castle of Otranto, romance de Horace Walpole publicado em 1764 sob o pseudônimo de Willian Marshal, pode ser considerado o marco inicial da dita literatura gótica. Já em 1796 T.J. Matthias, em The Pursuits of Literature, reconhecia a obra do escritor inglês como a origem de uma nova, popular e prodigiosa forma de escrita3. O romance trata da perseguição do príncipe Manfred a Isabella, com quem tenta perpetuar sua linhagem. Ela deveria se casar com Conrad, filho do príncipe, mas no dia do casamento o jovem morre, misteriosamente atingido por um capacete gigante. Manfred então percebe que uma antiga profecia se cumpriria e o castelo seria ocupado por outra família. Para não perder o trono, divorcia-se de sua esposa Hippolita e passa a perseguir Isabella. No final, a jovem se casa com o virtuoso Theodore, empregado de Manfred, que se revela o verdadeiro herdeiro do trono. Nesse quadro estão estabelecidos os elementos básicos da literatura gótica: um castelo mal assombrado; um vilão, uma bela e inocente vítima, e um herói. Os prefácios escritos por Walpole para as duas primeiras edições mereceram especial atenção da crítica. O primeiro, publicado na primeira edição do romance, é uma ficção que revela pretensões de autenticidade histórica. Nele o narrador se apresenta como William Marshal que diz transcresver uma história medieval italiana escrita por Onuphrio Muralto – cônego da igreja de São Nicolau situada em Otranto – na época das cruzadas e impressa em 15294. O título impresso é The Castle of Otranto, a Story. O texto teria sido encontrado na biblioteca de uma tradicional família católica do norte da Inglaterra e impresso em Nápoles. Os acontecimentos extraordinários da trama são tratados como exemplo da mentalidade obscura das épocas mais sombrias do cristianismo, mas a linguagem não teria o que o autor do prefácio chama de “barbarismo”. O estilo, dotado de beleza e sutileza, seria “puramente italiano”. Para o prefaciador, as soluções dramáticas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 3 A hipótese é sustentada, por exemplo, por críticos como H.P. Lovecraft (Supernatural Horror in Literature, cuja primeira versão foi publicada em 1927 na revista The Recluse); David Punther (The Literature of Terror: a History of Gothic Fictions from 1765 to the Present Day, 1980); E.J. Clery (The Rise of Supernatural Fiction, 1995); Maggie Kilgour (The Rise of Gothic Novel, 1995); Fred Botting (Gothic, 1996) e Andrew Smith (Gothic Literature, 2007). 4 BOTTING, Fred. Gothic. New York: Routledge, 2010, p. 49. ! ! 13! oferecidas pelo autor não são muito relevantes, pois os leitores deveriam tratar a obra como simples entretenimento, como alusão a uma mentalidade graças à primazia da razão: “Miracles, visions, necromancy, dreams and other preternatural events, are exploded now even from romances.”5. O romance não faria muito sentido na ilustrada sociedade inglesa a não ser por sua aguçada precisão dramática capaz de envolver os leitores pelo vigor da trama. Ainda no prefácio, em um esforço de contextualização fictícia, Willian Marshal diminui a importância da fantasia, defendendo a obra do ponto de vista formal. O leitor seria atraído pela objetividade de uma narrativa que não perde o foco: a catástrofe eminente não seria permeada de frivolidades nem de descrições desnecessárias, pois tudo funcionaria de acordo com um mecanismo preciso: o horror. Ele seria a tecnologia literária responsável por manter o interesse, por capturar a mente pelo apelo das paixões suscitadas. Em um sistema de valores em que o fantástico e o miraculoso parecem ter perdido espaço para uma racionalidade esclarecida, The Castle of Otranto se apresenta como exercício lúdico da imaginação, em que a técnica propõe um olhar circunstancial para um tempo estranho. Dramatiza um mundo antigo, um passado remoto sem data expressa, retomado como alteridade confortável e deleite da imaginação segura. Reconhecendo que a moral da história poderia ser mais sofisticada, o autor, na figura de seu pseudônimo, afirma estar convicto de que a trama é composta de fatos reais, e as precisas descrições do castelo comprovariam que Onuphrio Muralto o conhecia pessoalmente. No entanto, a tarefa de descobrir a verdade por trás da misteriosa narrativa é atribuída a algum hipotético leitor curioso, interessado em provar a veracidade dos eventos narrados, o que torna o romance ainda mais interessante e comovente. O prefácio termina com uma irônica sugestão de pesquisa, e a suposta veracidade proposta a um público teoricamente incapaz de se impressionar com os eventos sobrenaturais narrados é apresentada como elemento persuasivo. Matreiramente, o fim do prefácio lança a semente da desconfiança sem se comprometer com a verossimilhança. O truque é ressaltar o ceticismo do público, anunciar aspectos absurdos da história para construir uma base legítima de negociação. Uma vez ciente de estar diante da mais absoluta fantasia, o leitor é convocado a imaginar as verdades que esse passado pode guardar. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 5 WALPOLE, Horace. The Castle of Otranto. New York: Oxford University Press, 2008, p. 6. ! ! 14! A história inventada por Horace Walpole não durou muito, e o público passou a questionar sua real autoria. O reverendo William Mason – comentarista de um dos mais prestigiados periódicos ingleses da época, o Monthly Review, quando questionado por um leitor sobre a autoria da novela, riu afirmando que não poderia ter sido obra de um contemporâneo: “[…] could be so absurd as to think that anybody nowadays had imagination enough to invent such a story.”6 Posteriormente, o reverendo em carta a Horace Walpole, de quem era amigo pessoal, disse que ele próprio fora completamente enganado. Parecia mais fácil acreditar que o texto tinha sido encontrado nas ruínas de uma biblioteca abandonada do que supor que aquele tipo de fabulação fosse possível para um letrado do século XVIII. A confusão ajuda a explicar o sucesso do texto: sua inusitada capacidade de fantasiar abriria espaço para a exploração de temas considerados superados que ressurgiriam com força na cena literária. A imaginação fantástica traduzida em literatura ganha forma nos termos do gótico forjado na engenharia do horror. Na segunda edição, lançada em abril de 1765, apenas quatro meses depois da primeira, o adjetivo Gothic é acrescentado ao título que passa a ser The Castle of Otranto, a Gothic Story. No prefácio da nova edição a trama criada em torno da obra é desfeita. Escrevendo em terceira pessoa, Horace Walpole assume a autoria e justifica que a boa acolhida do público o forçava a dizer a verdade. Ele pede desculpas por ter se apresentado como William Marshal. Argumenta que o fez porque assim sua obra teria julgamento mais imparcial e, em caso de fracasso, seria esquecida. Revela que tentou mesclar dois tipos de romance: o antigo e o moderno. No primeiro prevaleceria a imaginação e a improbabilidade, e o segundo teria a imitação da natureza como pressuposto. Ainda de acordo com o escritor, a ausência da natureza como inspiração torna a motivação de heróis e heroínas pouco plausível, enquanto sua presença exclusiva sufoca a imaginação. Considerando as análises de Horace Walpole fica claro que The Castle of Otranto foi escrito para reavaliar os poderes e recursos da imaginação, travada pela preocupação excessiva com a representação da vida cotidiana. O autor deixa bastante claro que seu modelo de inspiração é a natureza: “My rule was nature”7, afirma Walpole. O modelo se traduziria na natureza sublime do vilão, em contraposição à ingenuidade da heroína, o que tornaria ainda mais execráveis as perversidades dele. As sensações impressas nos personagens deveriam refletir nos leitores. Fica clara a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 6 7 WALPOLE, Horace, op. cit., p. XI. WALPOLE, Horace, op. cit., p. 10. ! ! 15! intenção de uma literatura de efeito que apela aos sentidos tratados como naturais. Essas diferentes sensações seriam a chave para fazer o leitor esperar pelo desenlace catastrófico. Suas emoções são manipuladas como exercício de espera para o ápice, e os afetos mobilizados pelas particularidades de caráter dos personagens que prendem a atenção e fomentam a expectativa durante os atos ordinários que conduzem a narrativa. O tipo de direcionamento dramático proposto é tributado a uma autoridade maior, Shakespeare, “the great master of nature”8, Walpole diz ter copiado o modelo shakespeariano e destacado o humor de suas peças como fonte de beleza. O crítico E.J. Clery vê claras semelhanças entre Macbeth e The Castle of Otranto. O motor dramático seria o mesmo: o sobrenatural atuando em nome da restituição de uma herança legítima. O sentido verdadeiro de posse seria expresso tanto no espaço físico quanto na restituição de uma linhagem ancestral.9 Ainda segundo o crítico, a conspiração do universo sobrenatural para a correção de equívocos gerados pelos crimes humanos marcaria as tramas. Mas a mensagem de Walpole não seria tão clara devido à ambivalência da profecia segundo a qual “the castle and lordship of Otranto should pass from the present family, whenever the real owner should grown too large to inhabit it”10. O uso da expressão whenever em vez de when leva a crer que a profecia seria cumprida de acordo com algumas condições que, não plenamente realizadas, levam parte do castelo a desabar. A formulação duvidosa, ainda segundo Clery, faria do romance uma versão mais liberal de Macbeth, tragédia na qual o peso do destino pode ser recalculado de acordo com as ações dos personagens e as circunstâncias11. A importância de Shakespeare, no entanto, ultrapassa a relação com uma obra específica. Ao citá-lo, Walpole ressalta a mistura de estilos, na qual a seriedade convive com o risível, e destaca o humor como elemento fundamental em Hamlet, por exemplo. Walpole critica Voltaire por afirmar que a bufonaria não poderia se misturar com a solenidade e confirma sua proposta de renovação do romance baseada na mescla de imaginação e observação da realidade e articulada na junção da comédia com a tragédia. Shekespeare é evocado também para legitimar o apelo à imaginação, sobretudo no que tange ao uso de dispositivos ligados ao sobrenatural. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 8 WALPOLE, Horace, op. cit., p. 10. CLERY, E.J. The Rise of Supernatural Fiction: 1762-1800. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 72. 10 WALPOLE, Horace, op. cit., p. 17. 11 O crítico afirma que o romance seria uma “Whig rewriting of Macbeth”, em alusão ao partido liberal inglês ao qual Horace Walpole era filiado. 9 ! ! 16! Reconhecendo que The Castle of Otranto talvez não estivesse à altura do projeto que o originou, diz que se trata de uma tentativa, do apontamento de um caminho, “a road for men of brighter talents”.12 A tarefa de realizar todo o potencial do que foi projetado caberia a outros escritores que trilhariam a estrada que ele, abrigado sob o cânone de Shakespeare – “the brightest genius this country at least has produced”–, acabara de pavimentar. Apesar de julgar ter criado um novo tipo de romance, Walpole se orgulha mais de ter imitado, ainda que de maneira precária, um grande gênio. Afirma também que sua contribuição seria a invenção de uma forma híbrida de composição romanesca, pois, no que tange ao jogo de contrastes e aos efeitos gerados no leitor, o mérito é de Shakespeare. Os prefácios das duas edições de The Castle of Otranto sugerem claramente modos diferentes de leitura para o romance: o primeiro tenta ludibriar o leitor levando-o a acreditar tratar-se de uma história fantástica narrada em um passado obscuro. O segundo diz se tratar de ficção tentando convencer o público de que isso não diminui a humanidade dos personagens. Também convida o leitor a analisar o modo como esses mesmos personagens reagem às situações miraculosas. Ou seja, mesmo em ambiente fantasioso, o que deve ser observado é a dimensão real dos personagens. A proposta é de uma leitura que considere as ações morais em situações inusitadas. O autor se diz orientado por uma “lei de probabilidade” que também orienta os personagens a agir da maneira mais verossímil possível: “to make them think, speak and act, as it might be supposed mere men and women would do in extraordinary positions.”13 Fica estabelecido um critério de identificação: por mais extraordinária que a história possa parecer, por mais arquetípicos que os personagens possam soar, são homens e mulheres comuns que reagem diante do insólito. O clima de estranhamento criado na primeira edição com a alusão a um mundo desconhecido se faz agora com base na identificação. Onde havia uma alteridade estranha e de alguma forma confortável, aparece a sugestão da solidariedade. A fantasia restrita ao campo da técnica literária transforma-se em mecanismo potente de exploração de dilemas morais e conflitos psicológicos. Revelado como artifício, o horror se potencializa pela empatia. A tentativa de acionar uma “lei de probabilidade” dentro dos “territórios sem fronteira da imaginação” não implica necessariamente uma concepção moralizante de literatura. E.J. Clery lembra que a defesa da imaginação e o uso que Walpole faz de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 12 13 WALPOLE, Horace, op. cit., p. 9-10. WALPOLE, Horace, op. cit., p. 10. ! ! 17! Shakespeare eram formas de atacar diretamente determinada estrutura crítica ortodoxa da época. Sua apologia da fabulação seria uma arma contra a redução da ficção a instrumento de formação moral: caberia ao novo romance criar “situações interessantes”, nas quais as reações poderiam ser observadas, investigadas, testadas sem maiores preocupações com soluções edificantes. Ainda segundo Clery, ao aliar imaginação e verossimilhança sem o peso da educação dos costumes, o romance teria descoberto um espaço no mercado que justificaria o sucesso da primeira edição14. Horace Walpole, aristocrata, liberal, membro do parlamento inglês, em carta direcionada ao amigo William Cole datada de 9 de março de 1765 conta um pouco do processo de escrita de The Castle of Otranto e se revela um admirador do universo gótico. Diz que a ideia lhe teria vindo em um sonho em que viu, no alto da escadaria de um antigo castelo, uma mão gigante coberta por uma armadura. O romance, que ficaria pronto em menos de dois meses, seria um ótimo refúgio das ideias políticas. Ainda sobre o sonho, diz não se surpreender: “A very natural dream for a head filled like mine with Gothic story.”15. O texto teria surgido de maneira espontânea para o autor e é tratado como uma tradução literária de sua imaginação. Sua produção é vasta, incluindo textos políticos, memórias e até um drama de horror que explora o tema do incesto, The Mysterious Mother, com uma primeira impressão particular feita em Strawberry Hill, sua residência em Twickenham, subúrbio de Londres, em 1768. O comentário sobre seu sonho evidencia a circulação de histórias góticas presentes não só na tradição oral como também em obras editadas. Longos poemas como Night Thoughts, de Edward Young, pubicado em 1742; e The Grave, de Robert Blair, em 1743, assim como a narrativa em prosa Meditations Among the Tombs, de 1745, de James Hervey, trazem o universo sombrio que serviria de base para a definição da estética gótica. Destaca-se ainda a publicação, em 1746, de Treatise on Vampires and Vevenants: the Phantom World, de Dom Augustine Calmet, como exemplo do interesse da literatura de língua inglesa pelo universo sobrenatural. Talvez ainda mais emblemáticos sejam os textos de Daniel Defoe publicados no Review, jornal fundado por ele em 1704 e escrito também por ele praticamente na íntegra. Seus textos analisavam questões políticas domésticas e internacionais, com destaque para as relações da Inglaterra com a França. Curiosa, no entanto, é a presença de histórias de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 14 15 CLERY, E. J., op. cit., p. 65. WALPOLE, Horace, op. cit., p. VII. ! ! 18! fantasmas nas páginas do jornal. Dentre elas destaca-se “A True Relation of the Aparition of one Mrs. Veal”, escrita por Defoe e publicada anonimamente em 1705, que narra o encontro de Mrs. Bargrave com uma velha amiga, Mrs. Veal, depois da morte desta. A veracidade da história é garantida no prefácio: o autor diz que a história fora enviada por um juiz de paz a um amigo, que a redigiu em Londres. A confirmação viria da própria senhora Bargrave, que teria garantido ao juiz, “pessoa de mente sóbria e de grande compreensão”16, a veracidade do evento sobrenatural. Aparentemente o texto foi escrito como forma de defesa e propagação da obra The Christian’s Defense Against the Fears of Death, de Charles Drelincourt, datado de 1651, leitura entusiasticamente recomendada por Mrs. Veal à sua amiga. A estratégia deu certo, e o texto de Defoe passou a ser editado como apêndice do livro de Drelincourt em suas várias edições a partir de 1707. A lição moral da história é adiantada no prefácio: diante da “prova documental” da existência de vida depois da morte, os homens deveriam se voltar para Deus a fim de salvar suas almas. Várias outras histórias de fantasmas aparecem no jornal. Elas são divididas em dois grupos: as que o autor diz serem relatos reais e as falsas, divertidas, entendidas como entretenimento. Nas do primeiro grupo, histórias permeadas de questões morais, o tom é mais grave; nas do segundo o ar é de anedota, e a sugestão de dúvida em relação à veracidade soa como mero artifício de sedução. A publicação desses textos satisfaz a demanda por leituras a respeito do sobrenatural, seja o relato verídico, seja a anedota declarada. A circulação no século XVIII de textos sobre fantasmas e eventos miraculosos ajuda a explicar a obra de Walpole. Tanto as imagens macabras difundidas, por exemplo, nos supracitados Night Thoughts e The Grave quanto o tom mais leve das histórias de Defoe são visíveis em The Castle of Otranto, produto de um tipo específico de imaginação destinado a um mercado que surgia. É notável a sintonia desse romance com os paradigmas críticos expostos em The Pleasure of Imagination de Joseph Addison, publicado em 1712, conjunto de ensaios que constitui uma defesa do uso deliberado da fantasia em literatura. Apesar da boa acolhida por parte do público, a obra não foi exatamente um sucesso de crítica. A revista Monthly Review, que no lançamento da primeira edição do romance de Walpole a ele se refere como “considerable entertainment” para os leitores capazes de digerir os absurdos da ficção gótica, muda o tom diante da segunda edição: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 16 DAFOE, Daniel. Contos de fantasmas. Porto Alegre: L&PM Editores, 2001, p. 9. ! ! 19! While we considered [The Castle of Otranto, a Gothic Story] we could readily excuse it is preposterous phenomena, and consider then as sacrifice to a gross and unenlightened age. – But when, as in this edition, [it] is declared to be a modern performance, that indulgence we offered to the foibles of a supposed antiquity, we can by no mean as extend to the singularity of a false tale in a cultivated period of learning. It is, indeed, more than strange that an Author, of a refined and polish genius, should be an advocate for re-establishing the barbarous superstitions of Gothic devilism! Incredulus odi, is, or ought to be a charm against all such infatuation.17 A drástica mudança de posição se dá quando as iniciais H.W. indicam a autoria. O que era curiosidade histórica, artefato pitoresco, transforma-se em uma afronta aos valores modernos, ameaçadora apologia do barbarismo. Aceito como imagem de um tempo que se perdeu, superado pela ilustrada consciência racional, o romance é execrado como produto contemporâneo, tomado como incompreensível exercício de imaginação supersticiosa. Mas como um homem refinado e influente como Horace Walpole poderia se dedicar a propagar valores obscuros ultrapassados? A crítica fala em “restauração do pensamento bárbaro”, como se os fantasmas medievais pudessem ressurgir das sombras da razão ilustrada e desestabilizar o progresso espiritual conquistado com o cultivo da educação. Em sua primeira edição o romance é a imagem das trevas suplantadas, produto de um passado distante. Na segunda, quando se revela a invenção do bárbaro e do obscuro pela imaginação moderna, passa a ser um problema. O livro é uma espécie de ameaça, como se pudesse, pela estranheza de seu anacronismo, perturbar o bom gosto e a ordem das coisas. O imperativo da descrença é convocado para expurgar essa extravagância da imaginação, repelida como se personificasse o mal. As cenas fantasmagóricas convivem com o padrão ideal de racionalidade apenas como mercadoria excêntrica, como artefato de um mercado de produtos exóticos. Reconhecido como artifício contemporâneo, cai em desgraça, e já não é um passatempo aceitável. O confronto crítico entre as duas edições abre espaço para reflexões acerca do estatuto da ficção e os limites da imaginação. Fica claro que nesse contexto o gótico é literariamente válido só como interesse de antiquário. É como se, ao sugerir uma leitura atualizada do universo sobrenatural e a observação realista de personagens humanos diante de situações fantásticas, Walpole propusesse algo que, para alguns críticos, afetava o bom senso. A investigação !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 17 Monthly Review, 32, maio de 1765, p. 394. (Apud. CLERY, E. J. The Rise of Supernatural Fiction: 1762-1800, op. cit., p. 53.) ! ! 20! racionalista do comportamento moral diante de fenômenos insólitos indicava a hipótese de imaginar as crendices do passado da perspectiva da aparentemente estabilizada racionalidade setecentista, o que poderia pôr em risco valores com os quais os comentaristas da Monthly Review não davam mostras de pretender negociar. Por vezes considerada “tediosa, artificial, melodramática”, banal e até mesmo medíocre, como afirma H.P. Lovecraft em seu famoso ensaio sobre horror sobrenatural, a obra transformou-se em um marco para a definição do gótico literário moderno, e várias edições com diferentes traduções circularam pelo mundo. A pesquisadora Sandra Vasconcelos chega a identificá-la como um dos romances ingleses que circularam no Brasil no século XIX.18 Comentando a emergência do romance histórico, Humberto de Campos destaca a importância de Walpole. O crítico afirma que Walter Scott é considerado o precursor, mas “antes dele já havia, sem dúvida, mesmo na Inglaterra, Horace Walpole, Clara Reeve, Ann Radcliffe, que são considerados, ali, os precursores do interesse pela vida e pelas coisas antigas”.19 O comentário feito no início do século XX atesta o impacto de um romance de imaginação do passado anterior à consolidação da cultura historicista do século XIX. Somente treze anos depois de sua primeira edição The Castle of Otranto teria uma sucessora à altura. Clara Reeve, em 1777, fez uma impressão particular de The Champion of Virtue. O livro seria reeditado e impresso no ano seguinte, pela editora londrina Dilly, com um novo título: The Old English Baron. A diferença de mais de uma década suscita questões acerca do desenvolvimento das propostas lançadas por The Castle of Otranto: apesar de seu considerável sucesso comercial, não ensejou de imediato novas obras do mesmo padrão. O prefácio da segunda edição, em que Reeve altera o título do livro além de assumir a autoria, oferece alguns indícios que ajudam a explicar a lacuna. A autora critica os excessos de Walpole; segundo ela, ao exagerar nos elementos sobrenaturais o romance deixa de afetar o leitor. A expectativa criada no suspense seria destruída pelas circunstâncias extremamente fantasiosas, e a leitura perderia o sentido: “[…] destroy the work of imagination, and, instead of attention, excite laughter.”20 A autora, no entanto, afirma que seu romance, que narra basicamente a retomada do castelo usurpado de Edmund Twyford pelo Lorde Fitz-Owen, descende de The Castle of Otranto. O caráter fantástico fora atenuado em The Old English !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 18 VASCONCELOS, Sandra. Romances ingleses em circulação no Brasil durante o século XIX. Disponível em: < http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Sandra/sandralev.htm >. Acesso em: 20 maio 2011. 19 CAMPOS, Humberto de. Crítica: 3ª série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, p.198. 20 REEVE, Clara. The Old English Baron: a Gothic Story. Oxford: Oxford University Press, 1977, p. 5. ! ! 21! Baron em prol de uma narrativa mais realista baseada em virtudes morais. Uma estratégia para atrair a atenção do público e conseguir boa acolhida da crítica. Esse objetivo fica mais claro em um livro que Reeve escreveu em 1785, The Progress of Romance, no qual a autora demonstra ser uma atenta observadora do mercado literário. Ela concebe formas de adequar a imaginação aos padrões de gosto e tornar os romances economicamente viáveis. Reconhecendo que esses teriam caráter mais fabuloso em relação ao realismo das novelas, Reeve forja uma noção de modernidade literária e assim aprofunda as propostas de Walpole. Na mescla da fantasia com descrições verossímeis o fantástico é atenuado em nome do efeito de horror. A economia na máquina imaginativa é vista como fundamental para a potencialização do efeito dramático. Um único fantasma assombra sua trama e suas aparições são raras, pois com o horror dosado não dá espaço para o riso. A obra obteve críticas favoráveis, tanto da Critical Review quanto da Monthly Review, apesar de a última criticar a presença de fantasmas. O sucesso de The Progress of Romance se deveu em grande medida ao ajuste empreendido pela autora, que, certamente, levou em conta as pesadas críticas que The Castle of Otranto recebeu. Porém, novos problemas surgiriam com o êxito comercial. A revista Gentleman’s Magazine, por exemplo, sugere que a fantasia verossímil poderia ser perigosa para mentes despreparadas por não ser completamente absurda: “Some weak minds, perhaps, might be introduced to think them true or possible, and thereby be led into superstition.”21. A hipótese é reiterada no prefácio escrito para uma edição de 1810 em que a escritora Anna Laetitia Barbauld afirma que o absurdo cotidiano de Reeve se confunde com as crenças dos leitores. O lado perigoso da suavização se revela. Se as fantasias de Walpole são de mau gosto, a tentativa de aproximação com a realidade pode ser ainda mais nociva. O fantasma da superstição é ainda mais amedrontador em um contexto relativamente realista, e quando a fusão das duas formas de narrativa aparentam estar mais organicamente ligadas, surge o risco da crença sem controle, problema que Ann Radcliffe explorará em detalhes em suas obras. A última década do século XVIII é considerada por críticos como Fred Botting, Andrew Smith e H.P. Lovecraft o apogeu do romance gótico, graças, sobretudo, ao sucesso de obras como The Mysteries of Udolpho, publicada em 179422. Este romance é, sem dúvida, o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 21 CLERY, E. J., op. cit., p. 89. Em 1785 Sophia Lee publica The Recess – romance que gira em torno de Mary, irmã gêmea da rainha da Escócia. Na trama, habitações subterrâneas, perseguição a mulheres e ações comandadas pelo desejo sexual – nos moldes da obra de Clara Reeve, com apelo realista e poucos elementos sobrenaturais. 22 ! ! 22! mais famoso dos seis que Ann Radcliffe escreveu. Os demais são: The Castle of Athlin, 1789; A Sicilian Romance, 1790; The Romance of the Forest, 1792; The Italian, 1797; e Gaston de Blondeville, escrito em 1802 e publicado postumamente em 1826. A clássica narrativa gótica conta a história de Emily, jovem francesa que passa a morar no horripilante castelo do nobre Montoni após a morte de seus pais23. Um crítico do fim do século XVIII afirmou que The Mysteries of Udolpho seria o livro mais interessante da língua inglesa24. Sua atmosfera de suspense, que sugeria a presença do sobrenatural e as descrições pitorescas que referendavam os debates em torno do sublime25 fizeram dele um dos romances mais populares do fim do século XVIII. Sua publicação em si já foi um evento relevante. A editora G.G. and J. Robinson pagou a exuberante quantia de 500 libras pelos direitos autorais – nessa época o pagamento a novelistas variava entre dez e vinte libras.26 O valor pago a Radcliffe transformou o romance em um acontecimento literário antes mesmo da publicação. Seus textos obtiveram boa acolhida crítica graças, sobretudo, ao apelo realista. William Enfeld escreveu na Monthly Review: Without introducing into her narrative anything really supernatural, Mrs. Radcliffe has contrived to produce as powerful an effect as if the invisible world had being obedient to her magic spell; the reader experience in perfection the strange luxury of artificial terror, without being obliged for a moment to hoodwink his reason, or yield to the weakness of superstitious credulity.27 Novamente o que está em jogo é a ameaça da superstição. O crítico destaca o triunfo da técnica literária responsável pelos prazeres do terror artificial, contra a necessidade de apelo ao sobrenatural. A possibilidade de explicar sentimentos, sensações e medos de Emily pelas vias da razão, por intermédio de um narrador onisciente em terceira pessoa que permite acesso irrestrito ao universo imaginário da protagonista, garante a adequação aos valores de sua contemporaneidade. O leitor pode participar da trama em segurança pois sua imaginação !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 23 Lembramos que, em 1843, A Casa do Livro Azul, editora de Albino Jordão, oferece no Jornal do Commercio (RJ) versões em português de Udolfo para o público brasileiro. 24 O comentário é transcrito por Jacqueline Howard na edição crítica do romance publicada em 2001 pela Penguin Books. 25 A análise do conceito de sublime e sua relação com a literatura gótica será feita mais adiante, quando tratarmos das matrizes conceituais do gênero. 26 RADCLIFFE, Ann. The Mysteries of Udolpho. Introduction by Jacqueline Howard. New York: Penguin Books, 2001, p. VII. 27 RADCLIFFE, Ann, op. cit., p. XV. ! ! 23! estará controlada pela resposta racional que o crítico supõe evidente. Não será necessário enganar o bom senso ou se render às fraquezas da crendice. O romance funciona por si mesmo, suas estratégias de persuasão parecem fortes o suficiente para que tudo se mantenha no correto plano do artifício. Trata-se da apreciação lúdica de mistérios seguros; o medo é o resultado de experiências puramente textuais que não apelam ao perigoso e indesejado universo da superstição. Numerosas são as cenas em que Emily ou o narrador lembram a necessidade de lucidez e, dessa forma, estabelecem com o leitor um tipo de cumplicidade. Ele deve sentir o mesmo, participar do mistério sem abandonar a perspectiva racional. Apesar de David Durant afirmar que The Mysteries of Udolph é um romance de antieducação, unbuilding em que a protagonista se mantém a mesma, apesar das experiências28, é inegável a defesa de determinados códigos morais na trama. O mundo ameaçador põe em xeque os valores da heroína, que reafirma sua pureza de caráter no desfecho. As virtudes são realçadas, enquanto o leitor é conduzido por uma narrativa que não sugere grandes extravagâncias imaginativas. Porém, essa dupla articulação é, no mínimo, curiosa. Se a virtude triunfa sobre o vício, este permanece parte necessária do universo dramático, e se a imaginação precisa ser controlada é porque existe a possibilidade do desvario. A defesa da virtude não nega o aspecto sedutor do vício, e o controle racional não pode afastar completamente certo aspecto mágico da trama. A adequação do romance a determinado padrão de gosto não exclui o que supostamente deve ser combatido. Histórias como as de Radcliffe se tornam populares ao reforçar os paradoxos da segurança ficcional, tal como máquinas de simulação do medo que louvam a virtude divulgando o vício. Possivelmente o maior exemplo desse paradoxo da literatura gótica, The Monk, romance de Matthew Lewis publicado em 1796, que narra a decadência espiritual do monge Ambrosio, que, tentado por Matilda (mulher inspirada pelo demônio), deixa a condição de respeitado religioso para ser preso pela Inquisição depois de estuprar a irmã (Antonia) e matar a mãe (Elvira). Após libertá-lo da Inquisição, o demônio aparece para culpá-lo de todos os seus crimes e lembrá-lo de sua vaidade e luxúria. Ambrosio morre depois de cair de uma ribanceira. A obra divide os críticos. Samuel Taylor Coleridge declarou na Critical Review tratar-se de uma blasfêmia, de um romance perigoso que poderia gerar constrangimentos no universo doméstico: “If a parent saw in the hands of a son or daughter, he might reasonably !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 28 DURANT, David. “Ann Radcliffe and the Conservative Gothic”. In: Studies in English literature: 1500-1900. Houston: Rice University Press 1989, vol. 22, p. 526. ! ! 24! turn pale.” Por outro lado, um crítico da Monthly Mirror enfatiza a força controversa da obra e disse não se lembrar de ter lido nada tão intenso e interessante29. As questões morais definem os sentidos atribuídos ao romance. Sua primeira edição suscita debates em torno dos temas abordado, a exposição de crimes e vícios, e as questões propriamente estilísticas ficam em segundo plano. O texto de Lewis transformou-se no centro de uma grande discussão acerca de valores na qual as funções da literatura foram reavaliadas. A primeira edição foi publicada anonimamente, mas a segunda trouxe problemas para o autor. A assinatura aparece da seguinte forma: M.G. Lewis, Esq. M. P.30, ou seja, Lewis destaca sua recém-adquirida cadeira na Chamber of Commons, a Câmara Baixa do Parlamento da Grã-Bretanha. A revelação causou revolta em Coleridge, que afirmou ser assustador que um legislador tornasse pública uma obra de natureza tão controversa. Com o acirramento das críticas, Lewis, submetido a um tribunal, foi obrigado a recolher os exemplares restantes da terceira edição e a editar a quarta com corte das cenas descritivas de relações sexuais. Em 1797 a revista Monthy Mirror, em texto intitulado “Apology for The Monk”, defende a obra ao afirmar que haveria uma apologia dos valores morais na decadência do monge devasso. Sua estrutura, ainda que chocante, estaria a serviço da virtude: “This beautiful romance is well-calculated to support the cause of virtue.” 31 O contraponto demonstra as controversas relações entre moral e literatura. Defensores e detratores se valem das mesmas categorias e giram em torno dos mesmos temas. As disputas são positivas para o romance, pois servem como propaganda e aumentaram sua popularidade, o que redundou em numerosas edições do fim do século XVIII ao início do XIX. Walter Scott, por exemplo, chega a afirmar que o romance foi tão popular que teria “criado época” na literatura inglesa.32 O lado sedutor da proibição ajuda a tornar a obra mais atraente, assim como o desfile de vícios, crimes e pecados, que dramatiza o outro lado do interesse pela conclusão supostamente virtuosa. Nesse aparente paradoxo, a produção ficcional aos poucos se afirma como espaço de representações amplas no qual o sobrenatural convive com os recorrentes delitos do corpo. O horror passa a ser tributário do caráter realista das descrições de sexo, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 29 LEWIS, Matthew Gregory. The Monk. Introduction and notes by Emma McEvoy. New York: Oxford University Press, 2008, p. VII. 30 Esq. é a abreviação de Esquire, pronome de tratamento usado para designar homens de classe social elevada, e M.P. é a abreviação de Prime Minister (primeiro-ministro). 31 LEWIS, Mathew, op. cit., p. X. 32 SCOTT, Walter. Essay on Imitation of the Ancient Ballad. In: Minstrelsy of the Scottish border. Edinburgh: Blackwood, 1902, p. 33, vol. IV. ! ! 25! tortura e morte. O corpo minuciosamente descrito, vítima das mais variadas formas de violência, aparece como o lugar privilegiado do medo. A decomposição física rivaliza com as aparições fantasmagóricas na composição da sinistra arquitetura dramática do gótico.33 Além dos clássicos supracitados, a estética gótica se espalhou na última década do século XVIII em obras menos conhecidas, como Horrid Mysteries, lançado em 1796, do marquês Von Grosse, e Children of the Abbey, em 1798, de Regina Maria Roche. Ambas publicadas pela editora Minerva Press, também responsável por lançar escritoras como Eliza Parsons, Mary Meeke (conhecida pelo pseudônimo Gabrielli), Isabella Kelly, Elizabeth Bonhote e Anna Maria MacKenzie. E.J. Clery destaca a importância desse empreendimento dos sócios William Lane e Josiah Wedgwood, responsáveis pela massificação do gênero.34 A popularização da leitura, no entanto, veio acompanhada da má fama de editora de literatura menor, de textos menores cuja única ambição era suprir a demanda comercial por obras de leitura fácil. Lovecraft, por exemplo, trata esse período de difusão da literatura gótica como “uma terrível profusão de lixo literário”35. 1.2. A expansão do gótico no século XIX No fim do século XVIII, a ficção gótica transforma-se em produto literário de largo consumo na Inglaterra. Alicerçado sobre algumas obras centrais multiplica-se reproduzindo os cenários sombrios de castelos e mosteiros propondo o confronto entre a virtude e o vício por meio de heroínas puras e vilões nefastos. O problema do sobrenatural continua em pauta, mas aparece em segundo plano, subjugado pela explicação racional ou diminuído em seu aspecto terrífico diante da exploração de uma crueldade mais humana. Perde importância como dispositivo literário e medida que a fabulação caminha para o triunfo realista e que as formas do horror passam a privilegiar dramas possíveis, segundo leituras arrazoadas da experiência. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 33 The Italian, de Ann Radcliffe, foi interpretado como uma resposta ao trabalho de Matthew Lewis e à comoção por ele causada. O personagem principal é um monge marcado por um passado de crimes, mas o tom da trama é bem mais leve, sem tantas descrições de crimes ou atos sexuais. E como é comum nos livros da escritora, o sobrenatural é sobrepujado pela explicação racional dos eventos. A obra seria recebida como uma crítica aos supostos exageros cometidos em The Monk. 34 CLERY, E. J., op. cit., p. 135. 35 LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 41. ! ! 26! É provável que a mais significativa obra gótica surgida após The Monk seja o clássico Frankenstein, or the Modern Prometheus, de Mary Shelley, publicado em 181836. O livro dedicado ao pai da escritora, William Godwin – autor de Political Justice, de 1793, e Caleb Wiliams, de 1794 –, conta a história de um ser com forma humana, criado com pedaços de cadáveres por Victor Frankenstein, um jovem médico suíço. Com inteligência plena e forma repulsiva o monstro é excluído da sociedade e, amargurado, passa a matar os amigos e familiares do médico. Walter Scott foi dos primeiros defensores do romance. Em 1818 escreveu na Blackwood’s Edinburgh Magazine que a obra recorria ao maravilhoso para questionar os limites do conhecimento e da imaginação humana. Já uma crítica anônima publicada na Edinburgh Magazine escocesa atentou para a nefasta influência de William Godwin e condenou a monstruosidade e a falta de piedade do texto, consequência da efervescência de ideias do período: “the wild and irregular theories of the age.”37. A visão sombria da natureza humana seria tributária da obra do pai da autora, para quem a opressão política era considerada o problema central das sociedades modernas. Nas primeiras linhas do prefácio da primeira edição, Mary Shelley demarca a verossimilhança da narrativa. Por mais absurda que pudesse parecer, de acordo com os estudos fisiológicos de cientistas como Dr. Darwin38, a trama poderia de fato acontecer. Ainda no prefácio se lê que mesmo em se tratando de uma obra de fantasia não seria possível tanta capacidade imaginativa; a imaginação da autora estaria fundada em reflexões mais sérias, em referências filosóficas organizadas e dramatizadas na composição do romance. Não se trataria simplesmente de uma trama de horrores sobrenaturais; o objetivo não seria contar uma história de fantasmas, mas oferecer uma narrativa ilusória que desse ensejo a uma análise das paixões humanas. O extraordinário estaria a serviço da exploração profunda de sentimentos e da busca pela verdade das paixões que eventos ordinários não poderiam revelar. A atenção volta-se para os princípios da natureza humana: “I have thus endeavoured to preserve the truth of the elementary principles of human nature”39, afirma Mary Shelley categoricamente. A proposta estaria vinculada a uma tradição de uso da imaginação com foco na investigação do que seria humanamente essencial. Nesse sentido, Homero e Shakespeare !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 36 A primeira edição foi publicada anonimamente. É costume considerar a terceira edição revisada, de 1831, como definitiva. 37 BOTTING, Fred, op. cit., p. 101. 38 A autora refere-se ao médico clínico Erasmus Darwin, avô do naturalista inglês Charles Darwin. 39 SHELLEY, Mary. Frankenstein, or the Modern Prometheus. London: Guild Publishing, 1980, p. 7. ! ! 27! aparecem como criadores de sofisticadas combinações de sentimentos que resultaram em obras poéticas de alto nível: “The Iliad, the Tragic Poetry of Greece – Shakespeare, in The Tempest and Midsummer Midnight’s Dream – and most specially Milton, in Paradise lost.”40 Apesar do elenco de referências, o romance surgiria de uma situação trivial. Em uma temporada em Genebra, a autora e alguns amigos entediados com o mau tempo começaram a contar histórias germânicas de fantasmas e decidiram escrever contos de horror.41 Lembrando que a conduta moral e as opiniões dos personagens não condiziam necessariamente com as suas, a autora mostrou preocupação com o impacto do texto nos leitores. E como forma de evitar a agitação que outros romances góticos vinham causando, procurou compor sua trama de maneira amena e com ênfase em valores inquestionáveis: “domestic affection, and excellence of universal virtue.”42 De fato, as críticas visavam muito mais as divergências científicas e filosóficas do que qualquer traço de imoralidade. A crueldade de algumas passagens, sobretudo das que tratam do isolamento da criatura e seus atos criminosos, não soaram tão agressivas quando comparadas as descrições sexuais de outras obras contemporâneas. No prefácio da edição de 1831 Mary Shelley se atém mais detalhadamente à origem da obra: fruto de um sonho. Depois de ouvir Byron e Percy Shelley conversarem sobre as experiências de Dr. Darwin que provariam a possibilidade de geração espontânea da vida43, Mary Shelley vai se deitar e não consegue dormir com a imaginação povoada por imagens extraordinárias. Com os olhos fechados, tem a clara visão mental de um artista que consegue dar vida a uma invenção que passa a atormentá-lo. O roteiro estava montado e Mary Shelley teriam assim, diante de si, a história de fantasmas que estava procurando: “I have found it! What terrified me will terrify others; and I need only describe the spectre which had haunted my midnight pillow!”44 O objetivo central da obra se torna bastante claro: a trama é composta !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 40 SHELLEY, Mary, op. cit., p. 7. Trata-se do conhecido encontro de Mary Shelley com o poeta Percy Shelley, marido dela, John Polidore, autor daquela que é considerada a primeira história moderna de vampiros, e Lorde Byron na residência deste em Genebra. No prefácio da edição de 1831 a autora, por sugestão dos editores, oferece mais detalhes desse evento que motivou o romance. 42 SHELLEY, Mary, op. cit., p. 8. 43 A autora conta que teria silenciosamente ouvido os dois conversarem sobre uma experiência do médico inglês em que um tipo de macarrão (vermicelli) guardado em um pote de vidro teria ganhado vida. Desmond King-Hele, biógrafo de Erasmus Darwin (Erasmus Darwin: A Life of Unequalled Achievement), comenta que em sua obra The tTemple of Nature (1803) o cientista realmente fala de uma massa feita de farinha e água que parece ganhar vida. Comenta ainda um tipo de protozoário (vorticelli) que teria voltado à vida depois de drenado. A semelhança fonética poderia ter gerado a confusão relatada no prefácio. 44 SHELLEY, Mary, op. cit., p. 14. 41 ! ! 28! basicamente de cartas e mensagens soltas que se agrupam e montam um quebra-cabeça cuja intenção é causar medo. O propósito de analisar as paixões do ponto de vista de situações insólitas se articula ao foco definitivo do efeito de horror. O medo literário, artificialmente construído com recursos de simulação do risco, nunca sai do horizonte. O sonho transformado em literatura aponta para o privilégio de um tipo declarado de fantasia que se baseia em teses, mas que reafirma sua autonomia. Apresentar um sonho como matéria-prima literária é uma forma de demarcar o aspecto misterioso e lúdico da ficção que tornou Frankenstein mundialmente famoso. Por vezes considerado o último dos romances a reunir todos os elementos que caracterizam a estética gótica, Melmoth, the Wanderer, de Charles Robert Maturin, publicado em 1820, é a mais famosa obra do escritor irlandês, autor de diversas novelas e de dramas, como Bertram, de 1816.45 Na dedicatória de um de seus trabalhos mais conhecidos, The Milesian Chief, descreve seu talento para o gótico como a capacidade de pintar quadros escuros e fúnebres, aprofundando a tristeza humana até o limite: “Painting life in extremes, and representing those struggles of passion when the soul trembles on the verge of the unlawful and unhallowed.” 46 Analisando seu romance anterior, Fatal Revenge (1807) – inicialmente publicado sob o pseudônimo Dennis Jasper Murphy – , Maturin diz tratar-se da exploração de um lado esquecido do homem. A ênfase na origem da maldade reaparece em Melmoth, e se os temas ainda são igrejas em ruínas, paisagens sombrias e famílias marcadas por heranças macabras47, o acento definitivamente recai, como já indicavam as obras de Radcliffe e Mary Shelley, nos aspectos psicológicos do horror. Em carta endereçada a Walter Scott datada de 1813, sobre uma obra nunca concluída, Charles Robert Maturin comenta que usaria todos seus recursos “diabólicos” para “get the possession of the Magic Lamp with its slaves from the Conjuror Lewis himself”.48 Na introdução de uma edição feita em 2000 de Melmoth, the Wanderer, o crítico Victor Sage afirma que a metáfora literária seria uma referência a Matthew Lewis e ao sucesso comercial !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 45 Lembramos que o título da peça reaparece em Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, como nome do segundo personagem a narrar sua história. 46 MATURIN, Charles Robert. The Milesian Chief. London: B. Clark, 1812, p. IX. 47 A história narra a trajetória de Melmoth, um homem que, após vender sua alma ao diabo em troca de conhecimento e poder, vaga pelo mundo espalhando sofrimento. Sua vida é contada com base nos relatos dos vários personagens que o conheceram ao longo dos séculos. O autor, que era pastor protestante, cita no prefácio que a obra teria sido inspirada em um de seus sermões em que afirma o desejo humano de salvação apesar dos erros e pecados cometidos ao longo da vida. 48 MATURIN, Charles Robert. Melmoth, the Wanderer. Introduction by Victor Sage. London: Penguim Books, 2000, p. VII. ! ! 29! de The Monk. A lâmpada mágica seria justamente a fórmula que atrairia os leitores, identificados na frase como os escravos. A jocosa referência ao mercado editorial indica o projeto de escrever um best-seller. Quase três décadas mais tarde Maturin investiria nos mesmos princípios do polêmico texto de Lewis. Cinco anos depois, quando começa a escrever sua obra-prima, a ideia de fazer um romance cujo destino do protagonista se dá pela relação com o demônio se fortalece. Fausto, de Goethe, cuja primeira versão é publicada em 1806, entra novamente na ordem do dia em 1813 com a repercussão da versão em inglês do artigo De L’Allemagne, de Mme. de Staël, que ressalta a importância do poema. E, segundo o próprio Goethe, esse texto teria derrubado a muralha do antigo preconceito dos ingleses contra a literatura alemã. Somese ao artigo o lançamento, em 1818, de Frankenstein, com seus dilemas sobre o conhecimento, e os numerosos ensaios e críticas sobre Goethe publicados ao longo de 1819 pela revista Blackwood. O cenário estava pronto para lançamento de Melmoth, the Wanderer, que Victor Sage chamou de romance derradeiro do gótico.49 Maturin conseguiu reunir na mesma narrativa elementos sublimes, grotescos e cômicos e transformar-se em referência para muitos escritores. Em 1821 seu romance é traduzido na França e o sucesso pode ser medido, sobretudo, pela profusão de novos romances escritos a partir da década de 1830. Honoré de Balzac escreve uma paródia, Melmoth reconcilié, em 1835, e no prefácio indica o impacto da obra do escritor irlandês e a compara, em termos de força e influência literária, a Fausto, de Goethe.50 No entanto, talvez tenha sido Charles Baudelaire, em um conjunto de ensaios intitulado Réflexions sur quelquesuns de mes contemporains publicado no segundo volume de suas obras completas, de 1868, quem atribui maior importância ao romance: ele o situa como um dos pontos centrais da modernidade literária: Beethoven a commencé à remuer les mondes de mélancolie et de désespoir incurable amassés comme des nuages dans le ciel intérieur de l’homme. Maturin dans le roman, Byron dans la poésie, Poe dans la poésie et dans le roman analytique, l’un malgré sa prolixité et son verbiage, si détestablement imités par Alfred de Musset; l’autre, malgré son irritant concision, ont admirablement exprimé la partie blasphématoire de la passion; ils ont projeté des rayons splendides, éblouissants, sur le Lucifer latent qui est installé dans tout cœur humain. Je veux !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 49 50 MATURIN, Charles Robert, op. cit., p. VIII. BALZAC, Honoré de. Contes étranges et fantastiques. Paris: Édition 1, 1999. ! ! 30! dire que l’art moderne a une tendance essentiellement démoniaque.51 O romance de Maturin teria essa “essência diabólica” que caracterizaria a concepção moderna de literatura de Baudelaire. Figurando no céu interior do homem, o demônio não seria uma figura arquetípica, uma representação do mal como entidade externa, alteridade fantasiosa que assustaria à distancia. Ele surge como parte constituinte da ideia de humanidade, alojado na arte e no coração. Para conhecê-lo seria preciso investigar a escuridão dos sentimentos; representá-lo significaria um aprofundamento da capacidade mimética da literatura – a imagem buscada já não está na superfície. É preciso falar do indizível traduzindo em texto o mundo insólito do silêncio. O que pode ser identificado no romance de Maturin como exploração dos horrores psicológicos também define a obra de E.T.A. Hoffmann. Constantemente apontada como referência por autores como Théophile Gautier e Edgar Allan Poe, a obra do escritor alemão seria fundamental para o desenvolvimento da literatura de horror com traços fantásticos em países como a França e os Estados Unidos. Die Elixiere des Teufels (Os elixires do diabo), publicado em 1818, narra a trajetória do monge capuchinho Medardus, homem de grande habilidade retórica que, ao perder a capacidade de falar, é tentado a beber um elixir elaborado pelo demônio. A partir de então se vê preso em um ciclo de horrores e transgressões de toda ordem. As características do personagem de Hoffmann remetem claramente ao monge Ambrosio, personagem criado por Matthew Lewis em The Monk, o que indica a influência da literatura inglesa na configuração do lado mais sombrio do romantismo alemão. O gótico de Hoffmann é exemplarmente expresso na coletânea Nachtstücke (Peças noturnas), de 1817, com histórias de tom macabro nas quais aparece o problema da ambiguidade. O sobrenatural e o horror psicológico funcionam simultaneamente e criam uma atmosfera de incerteza quanto à origem do mal. Nesse sentido são particularmente tensos os contos “Der Sandmann” (“O homem da areia”); “Das Majorat”; “Der Unheimliche Gast”; “Die Bergwerke zu Falun”; “Die Automata” e “Das Fräulein von Scuderi”52. O primeiro, “Der Sandmann”, que se tornaria um clássico, conta a história de Nathanael, atormentado por !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 51 BAUDELAIRE, Charles. Réflexions sur quelques-uns de mes contemporains. In: L’art romantique. Paris: Michel Lévy Frères, Libraires Éditeurs, 1868, p. 374. 52 Por não conhecermos tradução em português dos referidos contos, exceção feita a “O homem da areia”, que possui inúmeras traduções, optamos por manter os títulos originais apresentando-os na ordem em que aparecem na tradução em inglês: “The Entail”; “The Uncanny Guest”; “The Mines of Falun”; “The Automata” e “Mademoiselle de Scuderi”. Esses contos podem ser encontrados em: The Best Tales of E.T.A. Hoffmann, editado por E.F. Bleiler. New York: Dover Books, 1967. ! ! 31! acreditar que o misterioso Coppelius estaria constantemente tentando usurpar seus olhos. Assim como “Die Automata”, conto aborda o tema do autômato. “Das Majorat” é um história mais longa, parecida com “The Fall of the House of Usher”, de Edgar Allan Poe. “Die Bergwerke zu Falun” é sobre um cadáver encontrado em uma mina na Suécia (a trama faz referência a um romance de 1801 da escritora inglesa Anna Maria Mackenzie, Swedish Mysteries, or Hero of the Mines). Já “Das Fräulein von Scuderi” é a história de uma onda de crimes ocorridos em Paris na época de Luís XIV. Uma década antes de Edgar Allan Poe, Hoffmann já construía um protótipo das histórias de investigação policial. Segundo o crítico italiano Remo Ceserani, os textos de Hoffmann conheceram notável popularidade em boa parte da Europa no início do século XIX, com destaque para “O homem da areia”53, graças à aguçada capacidade de representação da realidade do escritor alemão. A multiplicidade dos pontos de vista traria a dimensão do contraditório em uma dramaticidade estruturalmente complexa, capaz de entrelaçar as possibilidades do real e do imaginário.54 Em Hoffmann a imaginação se coloca a serviço da investigação dos limites da consciência, e os cenários raramente estão estabilizados. O que se vê pode ser tanto resultado de imaginação fantástica, produto de confusões psíquicas ou imagem do sobrenatural propriamente dito. Na fusão das possíveis perspectivas confundidas, instala-se o mistério necessário para o efeito terrífico. Vagando em espaço indefinido seus dramas se fortalecem. Sua repercussão na França deve-se a Loève-Veimars, responsável pela tradução e divulgação de sua obra. Ele pedia a amigos jornalistas que escrevessem avaliações dos textos de Hoffmann que apareceram em jornais como Le Courrier, Le Temps e Le Globe55. As primeiras traduções, de 1828, caem no gosto de jovens escritores como Théophile Gautier, que, a partir de 1830, começa a se tornar conhecido por suas narrativas fantásticas. Dizendose diretamente influenciado pelo escritor alemão, passa a defendê-lo nos jornais e revistas nas quais publicava seus contos e críticas, como a Revue des Deux mondes, La Revue de Paris, L’Artiste e Le Salmigondes. 56 Para ele Hoffmann traria para a literatura forças ocultas, loucuras, visões e influências malignas dificilmente representáveis. O sobrenatural e o extraordinário seriam descobertos e apresentados na lógica do cotidiano, o fantástico flertaria !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 53 Uma observação mais detalhada do conto será feita no quarto tópico com base na análise da repercussão do texto “Das Unheimlich”, famosa interpretação do texto de Hoffmann de autoria de Freud. 54 CESERANI, Remo. O fantástico. Curitiba: Editora UFPR, 2006, p.13. 55 CASTEX, Pierre Georges. Le conte fantastique en France de Nodier à Maupassant. Paris: Librarie José Corti, 1951. 56 BATALHA, Maria Cristina. “A literatura fantástica e a cena do romantismo francês.” In: Vertentes teóricas e ficcionais do insólito. Flávio Garcia e Maria Cristina Batalha. (Orgs.). Rio de Janeiro: Caetés, 2012. ! ! 32! com o possível, seria verossímil como distúrbio.57 Os dramas do horror humanizado poderiam fazer conviver imaginação fantástica com intenções realistas. Em sua primeira novela, Gautier evidencia a filiação. La Cafetière, publicada em 1831, traz a articulação entre vida real e vida imaginada, exterior e interior, em uma trama típica dos desenlaces misteriosos do roman noir. Os problemas da representação são trazidos à cena no contraste entre a esfera íntima e a suposta objetividade do mundo real. O protagonista Théodore, seduzido pela bela Angéla, não consegue determinar as bases das experiências vividas com a jovem: o encontro, a dança, tudo se perde no emaranhado de suas confusões mentais. Ao descobrir que sua amada havia morrido dois anos antes de conhecê-la, sente se perder no vazio, rompendo qualquer sensação de segurança em relação ao mundo.58 Em “La morte amoureuse”, conto publicado entre 23 e 26 de junho de 1836 na revista literária Chronique de Paris, Gautier explora os limites do real e do imaginário da perspectiva do onírico. O amor de Romuald, religioso que questiona seus votos pela vampira e cortesã Clarimonde, é vivido na forma típica do duplo. O personagem experimenta uma vida religiosa pela manhã e devassa à noite, enquanto sonha. A narrativa que aparentemente separa sonho de realidade se confunde quando a vida onírica de Romuald reaparece para lembrá-lo de seu infortúnio.59 O questionamento desses limites marcaria boa parte da produção inicial do escritor francês. O religioso vítima de tentações, a mulher fatal desenhada como vampira, os conflitos entre a moral e o desejo reaparecem sem lugar definido. Entre sonhos, delírios e tentativas de resgate da realidade, o horror paira entre a crença e a descrença. Segundo o crítico Jean Gaudon, esse conflito marcaria a obra de Théophile Gautier até meados do século XIX.60 Ainda segundo o ele, é a violência do retorno ao real que redime os protagonistas recolocando-os parcialmente no caminho da salvação. O processo se dá como um assassinato, uma morte em vida. No caso de Romuald, luto duplo por uma mulher duplamente morta.61 !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 57 Ver GAUTIER, Théophile. Souvenirs de théâtre, d’art et de critique. Paris: Charpentier, 1883. Sobre a relação entre as obras de Gautier e Hoffmann ver Théophile Gautier, conteur fantastique e merveilleux, de Peter Whyte. O trabalho é citado por Maria Cristina Batalha no texto supracitado (“A literatura fantástica e a cena do romantismo francês”). 59 O conto serviu de base para o romance A mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo. A relação entre os dois textos será analisada no quarto capítulo. 60 Em textos como “Avatar” (1856), por exemplo, a articulação entre a crença e a descrença é trabalhada conforme as possibilidades, ainda que improváveis, das realizações científicas. 61 O comentário aparece no prefácio da edição de La morte amoureuse, Avatar et autres récits fantastiques. Paris: Gallimard, 1981. 58 ! ! 33! Em textos como “La Vénus d’Ille”, de 1835, de Prosper Mérimée, o que é na aparência impossível não se traduz simplesmente como sonho. O processo de construção da desconfiança é desencadeado a partir do momento em que emergem narradores irônicos que evidenciam o caráter capcioso das tramas. 62 No conto, uma misteriosa escultura é parcialmente responsabilizada pela tragédia ocorrida em torno dela. Toda narrativa é conduzida de maneira ambígua; cada novo evento traz a possibilidade de uma explicação racional. O narrador deixa Ille e retorna a Paris sem conclusões definitivas. Descobre posteriormente que a escultura fora destruída e transformada em sinos de igreja, mas a má sorte ainda a acompanha, pois o badalar dos sinos de bronze teria por duas vezes secado as vinhas. Tratar como má sorte coincidências macabras é uma forma de deixar a história aberta ao acaso da interpretação: o narrador oferece pistas sem concluir, alude ao sobrenatural sem afirmá-lo, em um constante jogo de pistas falsas. A literatura fantástica, filiada ao gótico, produzida na França na primeira metade do século XIX não se resumiu a autores conhecidos, como Prosper Mérimée. Alguns formaram um grupo que ficou conhecido como Petit Cénacle – alusão ao Cénacle organizado em torno de Victor Hugo e Charles Nodier. Composto de personagens da boemia francesa, como Gérard de Nerval, Pétrus Borel, Auguste Maquet, Jules Vabre, Célestin Nanteuil, Philotée O’Neddy, Joseph Bouchardy e também Théophile Gautier, esse grupo se reunia no ateliê do escultor Jehan Du Seigneur. As obras desses autores, no entanto, não conheceram grande fama e foram criticadas pelo estilo extravagante e exagerado. Considerados românticos menores, os petits romantiques do Petit Cénacle seriam mais lembrados “pela postura irreverente e pela indumentária extravagante”.63 O cenário da literatura de horror francesa se fortaleceria com a popularização dos textos de Hoffmann e com as releituras de obras como Le diable amoureux, de Jacques Cazotte, de 1772, e Le manuscrit trouvé à Saragosse, do polonês Jan Potocki, publicada em francês em 1808. A difusão das traduções francesas dos textos de Edgar Allan Poe64 feitas por Charles Baudelaire a partir do final da década de 1840 também impulsionariam a exploração do horror de caráter mais verossímil e cruel, como evidenciam os contos de Guy de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 62 Segundo afirma Maria Cristina Batalha em “A literatura fantástica e a cena do romantismo francês”, essa modalidade de horror irônico já teria se fortalecido com a divulgação das primeiras traduções francesas da obra de Edgar Allan Poe. BATALHA,Maria Cristina. Op. Cit., p.171. 63 BATALHA, Maria Cristina. A literatura fantástica e a cena do romantismo francês. Op. cit., p. 172. 64 O primeiro texto de Edgar Allan Poe traduzido para o francês, “Le scarabée d’or” (“The gold bug”), foi publicado em 1845 na revista Revue Britannique. A tradução não foi assinada. ! ! 34! Maupassant.65 O autor que ficou famoso aos trinta anos com a pequena novela Boule de suif escreveu histórias de cunho realista, mas produziu também contos que tratavam da loucura e do inexplicável, de aparições e fantasmas. Seu conto fantástico mais famoso é “Le Horla”, em que fala de um ser invisível que chega à França em um navio vindo do Brasil e que como define Lovecraft: “domina a mente das pessoas e parece ser a ponta de lança de uma horda de criaturas extraterrestres chegadas à Terra para subjugar e esmagar a humanidade.”66 Destacase também “Apparition”, publicado em 1883 no Le Gaulois, sobre um homem cético que se vê diante de uma figura fantasmagórica e não consegue explicar o fato. Já em “Une Vendetta”, inicialmente lançado no mesmo Le Gaulois em 1883 e depois na coletânea Contes du jour et de la nuit, em 1885, Guy de Maupassant conta a história de um acerto de contas entre duas famílias na pitoresca Ilha de Córsega. A viúva Saverini usa sua cadela para vingar a morte do filho Antoine, covardemente apunhalado pelas costas por Nicolas Ravolati. A cena em que ele é destroçado pelo animal é forte, violenta e concisa, como a narrativa toda, aliás. Na frase final o narrador diz que, depois do assassinato, a viúva dormiu tranquila, satisfeita com a vingança cruel. Os retratos bastante objetivos evidenciam certa banalidade do mal: tudo se resolve pragmaticamente, sem espaços para considerações de ordem moral. Entre pequenos casos sombrios, como “La main d'écorché” – primeiro dos contos de Guy de Maupassant publicados no Almanach Lorrain de Pont-à-Mousson, em 1875, sobre um homem que enlouquece e tem a sensação de ter sido estrangulado por uma mão humana usurpada de um cadáver –, e trabalhos de maior fôlego como o supracitado “Le Horla”, o autor escreveu mais de trezentos contos em diversos jornais e revistas. Pela precisão e representação da crueldade, seus textos se aproximam dos contos de Edgar Allan Poe. Poe não foi o único a escrever histórias macabras nos Estados Unidos no século XIX: também Charles Brockden Brown e Nathaniel Hawthorne o fizeram. Brown é autor de Wieland, publicado em 1798, e Hawthorne escreveu obras que se tornaram clássicas, como The Scarlet Letter, em 1850, e The House of the Seven Gables, em 1851. No entanto, é Poe que se destaca: ele ajudou a definir os termos do horror literário oitocentista e estabelecer padrões para o conto moderno. Lovecraft, por exemplo, afirmou que ele “inventou o conto em !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 65 Segundo afirma Pierre George Castex no supracitado Le conte fantastique en France de Nodier à Maupassant, a publicação dos textos de Jacques Cazotte e Jan Potocki não gerou adesão ao gótico, estilo que se expandiu só a partir da década de 1830 com a já mencionada difusão da obra de Hoffmann. 66 LOVECRAFT. H.P., op. cit., p.58. ! ! 35! sua forma presente” 67 . Já Charles Baudelaire, em seu terceiro ensaio sobre o escritor americano publicado como prefácio a Nouvelles histories extraordinaires, lançado em 1857, ressaltou a modernidade de suas tramas e sua capacidade de perceber o lado demoníaco do homem: Mais voici plus important que tout: nous noterons que cet auteur, produit d’un siècle infatué de lui-même, enfant d’une nation plus infatuée d’elle-même qu’aucune autre, a vu clairement, a imperturbablement affirmé la méchanceté naturelle de l’Homme. Il y a dans l’homme, dit-il, une force mystérieuse dont la philosophie moderne ne veut pas tenir compte; et cependant, sans cette force innommée, sans ce penchant primordial, une foule d’actions humaines resteront inexpliquées, inexplicables. Ces actions n’ont d’attrait que parce qu’elles sont mauvaises, dangereuses; elles possèdent l’attirance du gouffre. Cette force primitive, irrésistible, est la Perversité naturelle, qui fait que l’homme est sans cesse et à la fois homicide et suicide, assassin et bourreau; – car, ajoute-t-il, avec une subtilité remarquablement satanique, l’impossibilité de trouver un motif raisonnable suffisant pour certaines actions mauvaises et périlleuses pourrait nous conduire à les considérer comme le résultat des suggestions du Diable, si l’expérience et l’histoire ne nous enseignaient pas que Dieu en tire souvent l’établissement de l’ordre et le châtiment des coquins; – après s’être servi des mêmes coquins comme de complices! tel est le mot qui se glisse, je l’avoue, dans mon esprit comme un sousentendu aussi perfide qu’inévitable. Mais je ne veux, pour le présent, tenir compte que de la grande vérité oubliée, – la perversité primordiale de l’homme, – et ce n’est pas sans une certaine satisfaction que je vois quelques épaves de l’antique sagesse nous revenir d’un pays d’où on ne les attendait pas. Il est agréable que quelques explosions de vieille vérité sautent ainsi au visage de tous ces complimenteurs de l’humanité, de tous ces dorloteurs et endormeurs qui répètent sur toutes les variations possibles de ton: «Je suis né bon, et vous aussi, et nous tous, nous sommes nés bons!» oubliant, non! feignant d’oublier, ces égalitaires à contresens, que nous sommes tous 68 nés marqués pour le mal! A passagem citada ajuda a situar a relevância dos textos para a produção literária do século XIX, em particular para o projeto estético de Baudelaire. Ele é lido como uma espécie de profeta dos novos tempos, alguém que conseguiu vencer os limites impostos por uma cultura cada vez mais materialista e trazer à cena um universo de sonhos infernais reveladores !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 67 LOVECRAFT. H.P., op. cit., p.63. BAUDELAIRE, Charles. Notes nouvelles sur Edgar Poe. Disponível em: <http://zip.net/bbmvwP>. Acesso em: 24 mar. 2014. 68 ! ! 36! do lado obscuro da humanidade. A perversidade, motor dramático preferencial, surge como o dispositivo da verdade profunda assolada pela modernidade. É ainda a essência de uma natureza dissimulada, motivação primordial da experiência. Nas palavras de Baudelaire, a perversidade que motiva os personagens de Poe é a mesma que orienta a vida em sociedade. Poe simplesmente teria a coragem e a capacidade de evidenciar o que era vivido em silêncio. Quando afirma a indelével marca do mal, Baudelaire desdenha dos pressupostos iluministas para fazer uma apologia das trevas da perspectiva dos cenários construídos pelo escritor americano. Ainda segundo o poeta francês, a imaginação audaciosa não estaria simplesmente a serviço do deleite estético, e o recurso do sonho surgiria como antídoto à dissimulação e revelaria o segredo calado no fundo dos corações. À arte caberia o papel demoníaco de fazer ver o mal; o horror dos contos traduzidos por Baudelaire exibiria uma mórbida fascinação pelo distúrbio psíquico, no qual a beleza é quase sempre fatal. Nos mecanismos da imaginação sombria de Poe, o excesso, o desejo e o sobrenatural fazem parte de uma mesma trama que tende a diluir as fronteiras entre realidade e pesadelo. A obra de Edgar Allan Poe consiste em algumas dezenas de contos e poemas, dois romances inacabados e uma centena de artigos69. A maioria de seus textos foi publicada em periódicos, principalmente na Blackwood’s Magazine – revista bastante popular fundada em 1817 por William Blackwood –, sobre cujos padrões editoriais escreveu um irônico artigo intitulado “How to Write a Blackwood Article”70. Possivelmente a obra mais famosa de Poe é a primeira coletânea de contos que ele mesmo organizou, Tales of the Grotesque and the Arabesque, publicada em 1840. No prefácio o autor tenta desfazer um equívoco que se tornava cada vez mais comum: o de que sua obra era tributária do gótico alemão, sobretudo com a popularização dos textos de Hoffmann traduzidos para o inglês nas primeiras décadas do século XIX: “If in many of my productions terror has been the thesis, I maintain that terror is not of Germany, but of the soul, – that I have deduced this terror only from its legitimate sources, and urged it only to its legitimate results.” O terror que emana de suas páginas, não teria origem em nenhuma tradição literária específica, seria resultado da exploração demoníaca dos mistérios humanos. Ao ironicamente defender a originalidade de seus textos, anuncia seu projeto estético enfatizando a via dupla do efeito: o terror que se desprende do !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 69 Em 1838 publicou uma versão incompleta de The Narrative of Arthur Gordon Pym e em 1840 publicou apenas seis capítulos de The Journal of Julius Rodman na Burton’s Gentleman Magazine. 70 Assumindo a identidade de Signora Psyche Zenobia, dá dicas do tom a usar nos artigos. Recomenda entusiasticamente o uso de termos em grego, o que daria ar de profundidade aos textos. ! ! 37! fundo da alma a ela deve retornar sob a forma de literatura e atingir o leitor pela revelação do medo. A ênfase definitivamente não está mais no cenário ou no contraste entre vilões maléficos e heróis virtuosos; não são mais as ruínas de um castelo que assustam e causam medo, mas a maldade de indivíduos comuns, o mal naturalizado e disseminado. A modernidade de Poe entoada por Baudelaire significa, entre outros aspectos, a popularização da experiência do mal, que deixa de ser atributo de personagens aristocráticos, excêntricos, estranhos, pervertidos, para aparecer em cenários urbanos mais comuns. A variedade de temas, personagens e situações sinistras que aparecem em seus contos fez com que fossem reformulados os princípios do gótico literário e com que se a configurasse o que viria a se tornar a “literatura de horror” do século XX. As perturbações psicológicas, os duplos, os espelhos, as incertezas da consciência, os eventos estranhos que habitavam o mundo fantástico de um passado remoto transformam-se em situações comuns do perverso mundo do crime que conheceria um novo tipo de herói: o detetive. Em “The Murders in the Rue Morgue”, publicado em 1841 na Graham’s Magazine, Auguste Dupin resolve o brutal assassinato de duas mulheres em Paris naquele que é considerado o primeiro conto policial da história literária71. É um caso na obra de Poe em que o sinistro literalmente se converte em enigmático, capaz de ser resolvido pela perspicácia tanto do personagem quanto do leitor. O enigmático não é apenas o misterioso explicável pela razão, é uma forma específica de composição literária que deliberadamente joga com o leitor, apresentando uma série de indícios contraditórios e complementares com vistas à solução final. Sob o paradigma do enigma a explicação não é dada – como no caso dos romances de Ann Radcliffe, por exemplo –, e o problema é posto sobre a mesa por meio das artimanhas de um narrador que ajusta e altera o foco de acordo com sua conveniência. Lovecraft destaca que o maior mérito de Poe foi perceber “a impessoalidade essencial do verdadeiro artífice”, ou seja, a função da literatura seria expressar e interpretar sem julgar. A ficção transforma-se em um mecanismo imparcial de exploração de sensações e situações dramáticas. O bem e o mal; o atrativo e o repulsivo; e o belo e o feio estão a serviço de um sistema cuja única obrigação é funcionar perfeitamente. Distanciando-se de qualquer reflexão moral ou filosófica, o texto pode ser encarado exclusivamente como propulsor de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 71 Mesmo considerando “Das Fräulein von Scuderi”, de Hoffmann, como protótipo nas histórias detetivescas, no texto de Poe há uma formatação dramática mais próxima do que a que se encontra nas histórias policiais a partir do fim do século XIX. ! ! 38! sensações. O crítico Araripe Júnior, por sua vez, comenta: “Poe fez de sua imaginação o que quis, dirigiu seu intelecto para os pontos que mais eficazmente lhe abriam os horizontes ao mundo das sensações desconhecidas.” E ainda: “Se já houve homem que soubesse o que possuía de força cerebral, que a analisasse e explorasse, provocando ciente e inconscientemente tudo o quanto ela estava em condição de dar, este homem não foi outro senão o autor de Histórias extraordinárias.” A interpretação do crítico define Poe como um hábil explorador das potências do cérebro. Um artífice capaz de reproduzir sensações, um artista único que entendia a obra de arte em sua plenitude, como uma “máquina de sensações”72. Na última década do século XIX obras como The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, publicada em 1886, de Robert Louis Stevenson; Dracula, em 1897, de Bram Stoker; e The Turn of the Screw, em 1898, de Henry James, retomam elementos característicos da estética gótica: o duplo, o vampiro e a relação ambígua com a loucura. Em The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, a dupla personalidade do Dr. Jekyll é tratada com espanto e inclui relatos de médicos, advogados e cientistas; em Dracula, o vampiro é cassado pelo cientista Van Helsing; e, em The Turn of the Screw, as visões fantasmagóricas de uma governanta responsável pelo cuidado de duas crianças deixam o leitor confuso entre explicações racionais atribuídas à loucura ou à crença no sobrenatural73. Nos três textos as ideias científicas são exploradas na própria fabulação do medo, e o horror se expressa na ambiguidade extraída da potencialidade de falha do discurso científico oitocentista. O duplo como fratura psicológica desencadeada pela ingestão de uma fórmula inventada, o impulso de explicação racionalista do caçador de vampiros e a encenação de uma possível loucura aparecem como investimento na dúvida. No jogo das motivações parcialmente explicáveis, sobrevive a expectativa de uma ficção autônoma que tem no horizonte apenas a eficácia. Seguro de seu papel, o horror literário depois de Edgar Allan Poe aponta para a explicação racional como contraste sem precisar necessariamente administrar os riscos espectrais da superstição. Consolidado como forma lúdica, transforma-se em produto !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 72 JÚNIOR, Araripe. Obra crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1968, vol. I (1868-1887). Sobre a repercussão crítica da obra de Henry James, ver The Turn of the Screw: A History of its Critical Interpretations 1898-1979, de Edward J. Parkinson, dissertação defendida na Saint Louis University em 1991. Disponível em: <http://www.turnofthescrew.com/>. Acesso em: 24 mar. 2014. 73 ! ! 39! cultural de massas74. Repetida e reproduzida, a literatura voltada para o horror se estabelece nos domínios de um prazer cujos riscos não ultrapassam as fronteiras da simulação. 1.3. Matrizes conceituais e modelos literários do horror Muitas formulações do horror literário têm como base premissas estéticas estabelecidas em meados do século XVIII. O mecanismo de produção de efeito de horror é calcado no conceito de sublime: trata-se da justaposição moderna de pares de oposição, como o belo e feio; o atrativo e o repulsivo, tendo em vista a busca de determinada sensação como objetivo ideal da recepção. A eficácia do texto passa a depender da reação sensível do leitor, pois a intenção de gerar ou simular o medo permanece no horizonte. Comparados Horace Walpole e Edgar Allan Poe, por exemplo, percebe-se que ambos partem do pressuposto de que reproduzir o horror é simular uma condição natural. O primeiro diz seguir as regras da natureza enquanto o segundo diz extrair o horror do coração. Essa percepção de naturalidade está em grande medida ligada à experiência sublime cuja acepção moderna ganha maior repercussão com a publicação de A Philosophical Enquiry Into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, de Edmund Burke, obra cuja versão completa data de 175775. Nessa obra, o filósofo irlandês analisa as relações entre a beleza e o sublime. Ele interpreta o excesso como chave para a compreensão de um tipo novo de subjetividade. A experiência torna-se alvo de um empirismo voltado para as sensações em uma investigação secular acerca dos efeitos da imaginação sobre o corpo, o que torna o inquérito ao mesmo tempo original e decisivo nas reflexões sobre a estética romântica. A busca por algo próximo a uma teoria das paixões faz do texto um exame minucioso do gosto estético e das dimensões universais da apreciação de acordo com a individualidade das formas de sentir. Se a beleza é um elemento crucial no desenrolar da história do gosto, o sublime é justamente o que rompe com a lógica da experiência remetida à tradição, é o que instaura a liberdade por causar !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 74 Lembramos a infinidade de apropriações tanto Drácula quanto de The strange case of Dr. Jekyll and Mr Hyde: ambas as obras serviram de base para incontáveis filmes, esquetes televisivos e histórias em quadrinhos. 75 Há um tratado sobre o sublime atribuído ao filósofo grego Longinus, escrito possivelmente no século I a.C., e mais dois textos que serviriam de referência para Edmund Burke: Pleasures of Imagination (1747), de Mark Akenside, e o supracitado poema Night Thoughts (1745), de Edward Young. A opção por começar o debate pelo inquérito de Burke deve-se a sua centralidade à discussão específica sobre a configuração da estética romântica. ! ! 40! desordem aos sentidos. Essa desorganização sensorial teria origem no aspecto obscuro do sublime, pois seus traços misteriosos seriam responsáveis pela produção de efeito. O que Burke entende por paixões refere-se a um repertório amplo de sentimentos: amor, medo, alegria, prazer, dor, raiva, terror, estupefação, enfim, modalidades de sensações. Quanto aos sentimentos reguladores das paixões – prazer e dor –, o filósofo irlandês tenta afirmar o aspecto não necessariamente complementar de ambos. Um dos argumentos centrais que atestam a diferença é o fato de que a dor pode ser forçada, imputada, enquanto o prazer não. A evidência o leva a acreditar que a primeira é muito mais poderosa e de natureza positivamente distinta da segunda. Independentemente das sensações experimentadas, o gosto é aparentemente o elemento-chave de aproximação dessas mesmas sensações. Na introdução sobre o tema do sublime, Burke estabelece o pressuposto fundamental de que tanto a razão quanto o gosto são padrões universais, idênticos em todas as criaturas humanas76. No entanto, ambos precisam ser cultivados com esforço constante: o desenvolvimento das faculdades de juízo e de apreciação é fruto de um trabalho intelectual intenso em busca de determinados padrões fixos e de leis invariáveis que organizem os sentidos. Seriam três as capacidades naturais dos homens que condicionariam sua relação com a exterioridade: os sentidos, a imaginação e o julgamento. Supondo uma uniformidade orgânica básica entre os seres, a forma de percepção sensorial tende à padronização; assim, doce e amargo; claro e escuro; frio e quente seriam universais. Ainda que se percebam pequenas variações de intensidade, imaginar que cada corpo pudesse reagir de maneira absolutamente distinta tornaria inútil qualquer esforço de entendimento. Os prazeres visuais, mais do que os do paladar, obedecem a um consenso que permite a Edmund Burke tecer generalizações sobre a beleza e formular regras que ultrapassam análises e julgamentos individuais. O prazer ganha feição universal, e, a despeito de possíveis variações de intensidade, o filósofo defende certa racionalidade da experiência que o faz confluir para uma esfera de possibilidades aparentemente seguras, definidas e previsíveis. Se o prazer e a beleza podem assaltar o juízo humano, colocando-o na posição de espectador condicionado, a imaginação surge como recurso, potência criativa capaz de organizar as imagens e as sensações recebidas pelos sentidos de maneira própria e de acomodá-las em ordens variadas de sentidos. A imaginação, a despeito de seu poder, é !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 76 BURKE, Edmund. A Philosophical Enquiry Into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful. Oxford: Oxford World’s Classics, 2008, p. 11. ! ! 41! subsidiária da realidade apreendida pelos sentidos. Sua capacidade poética depende essencialmente das imagens recebidas. Torna-se a mais potente fonte de prazer e de dor na medida em que funciona como representação dos sentidos, um sistema de construção de medos e de esperanças que atribui significado à experiência sensorial. A realidade, em suas variadas formas, nutre os sentidos, que fornecem matériasprimas para a imaginação geradora de sentimentos e de sensações. Por princípio, se o gosto é fruto da imaginação fomentada pelos sentidos, há um caráter universal nas maneiras de sentir. O padrão de afetação do homem correspondente à sua capacidade de experimentar a realidade se dá pela homogeneidade dos corpos que experimentam. Portanto, do ponto de vista da argumentação de Burke, níveis diferentes de afeto são admissíveis apenas quando causados por inúmeros fatores, como a disparidade natural entre as sensibilidades individuais e a disponibilidade maior ou menor, mais rápida ou mais lenta de apreciação do objeto em questão. O gosto, que é basicamente tratado como uma capacidade distintiva, seria resultado da sofisticação dos sentidos, não necessariamente aplicável a todos os indivíduos. O embrutecimento da sensibilidade, resultado da educação fria ou demasiadamente sensorial, impossibilita o desenvolvimento da faculdade do juízo pela restrição da sensibilidade. O resultado é o que Burke chama de “gosto errado”77, produto da incapacidade individual de julgamento. Independentemente das capacidades singulares de afetação e de juízo, todo ser humano seria capaz de sentir e de sofrer as formas mais simples de afetação, que, segundo o autor, são o prazer e a dor. Sentimentos que, ainda de acordo Burke, têm naturezas absolutamente distintas e não dependem da reciprocidade para se manifestarem. A mente humana, que na maior parte do tempo está no que ele chama de “estado de indiferença”, pode oscilar entre os dois extremos autonomamente, atingir o prazer sem necessariamente passar por estágios de dor e vice-versa. Porém, o autor afirma ser inegável a sensação de prazer ao se escapar de algum perigo ou ao se livrar de alguma dor. Esse seria um tipo específico de sentimento, uma satisfação diferente do voluptuoso prazer legítimo. No entanto, a sensação proveniente da alteração da dor merece atenção especial por sua natureza sólida, forte e severa.78 As denominadas “paixões da autopreservação”, dor e perigo, articulam-se com as ideias de doença e morte, o que preenche a mente com emoções fortes, traduzidas como !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 77 78 BURKE, Edmund, op. cit., p. 23. BURKE, Edmund, op. cit., p. 35. ! ! 42! horror. Elas seriam o oposto radical da vida e da saúde, que, por sua vez, remeteriam necessariamente ao prazer. Nesse ponto, uma questão central apresenta-se na argumentação de Burke: a violência das emoções horríveis é sempre mais forte e poderosa do que as que geram contentamento. O assombro da morte e da dor supera em intensidade os prazeres da vida, por isso é justamente o horror o responsável pela deflagração da mais violenta das paixões: a experiência do sublime. Whatever is fitted in any sort to excite the ideas of pain and danger, that is to say, whatever is in any sort terrible, or is conversant about terrible objects, or operates in a manner analogous to terror, is a source of the sublime; that is, it is productive of the strongest emotion which the mind is capable of feeling. I say the strongest emotion, because I am satisfied the ideas of pain are much more powerful than those which enter on the part of pleasure. Without all doubt, the torments which we may be made to suffer are much greater in their effect on the body and mind, than any pleasure which the most learned voluptuary could suggest, or than the liveliest imagination, and the most sound and exquisitely sensible body, 79 could enjoy. O horror atinge o corpo e a mente com força devastadora, e o sublime, seu desdobramento, produz emoção maior do que qualquer estímulo prazeroso. Assim, a morte, limite da dor, afigura-se como origem de todo horror. Se a proximidade do perigo veta qualquer possibilidade de prazer, instituindo um horror preponderante, sob determinadas circunstâncias de controle abre-se a possibilidade da satisfação. Aquilo que é fundamentalmente horrível pode ser fonte de júbilo na hipótese de seu domínio virtual. Entrar em contato com uma história trágica pode ser prazeroso justamente pela distância, pelo conforto da separação que afasta a narrativa da realidade do sujeito que observa. Nesse sentido, para Burke, é possível ter prazer tanto em histórias reais quanto fictícias, porque o que está em jogo é a simpatia para com os personagens, sejam eles reais, sejam imaginados. Fatos históricos não são mais ou menos eloquentes, e o poder da narrativa está em sua capacidade de gerar identificação. O pesar que acompanha o prazer da sensação do horror teria origem no amor designado por Deus para unir os homens. Essa compaixão gera o que chama de afeição social. A face cristã do paradigma estético reforça determinada universalidade de percepção às !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 79 BURKE, Edmund, op. cit., p. 36. ! ! 43! narrativas, compreendidas segundo uma solidariedade que garante estabilidade no que tange à recepção. Se tanto a realidade quanto a ficção podem gerar o sublime, a capacidade de simpatia e de solidariedade reside justamente no potencial que a ficção tem de se fazer real, verossímil. Sua força concentra-se na possibilidade de converter, ainda que temporariamente, a imitação em coisa em si. O momento apoteótico da tragédia é o que insinua a identificação absoluta. O valor da ficção leva em consideração sua familiaridade com um sentido profundo de realidade. Sua aproximação com o objeto da representação, sua possibilidade de conversão da matéria inventada em traços de uma realidade idealizada, suposta, garante sua densidade dramática, sua legitimidade artística. No entanto, Burke se vale da imagem hipotética de um teatro vazio como demonstração da fraqueza das artes imitativas para ilustrar os limites da representação. Por mais que seja fonte poderosa do sublime, há um ponto intransponível que devolve a arte à sua condição simuladora. As imperfeições do discurso artístico, no entanto, não devem inibir o esforço de remoção da ideia de ficção, pois nesse movimento reside a possibilidade de efeitos sensoriais ainda mais poderosos do que determinados fenômenos reais. Por mais que soe paradoxal, para Burke, o discurso artístico é sempre falho ao se converter em realidade apesar de ter potencial para se tornar ainda mais poderoso do que ela. No final, o que interessa é a construção de um efeito solidário que reverta a lógica do horror, que o transforme em deleite e faça o espectador dele se aproximar com segurança. O assombro causado pelo sublime é caracterizado pela completa tomada da mente, um estado de alma em que todas as outras emoções são suspensas quando se instala certo nível de horror. O objeto contemplado toma a razão de assalto, preenchendo todos os espaços mentais, impedindo que qualquer outro elemento seja observado. O poder do sublime está justamente em não ser um produto da razão, mas em se antecipar ao raciocínio e conduzi-lo por caminhos irresistíveis. Segundo Burke, o assombramento é o efeito último do sublime que ainda passa pelos estágios de admiração, reverência e respeito80, enquanto o medo aparece como seu propulsor. Noções como as de horror, terror, medo, respeito, assombramento, admiração, entre outras, estariam semanticamente ligadas em diferentes contextos culturais e demarcariam para o filósofo a universalidade pretendida em seu estudo sobre as paixões. O horror dependeria ainda de outro elemento que quase sempre o acompanha: a obscuridade. Ela não permite que toda a extensão do perigo seja visualizada, e isso cria, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 80 BURKE, Edmund, op. cit., p. 53. ! ! 44! assim, uma atmosfera de incerteza e de imprecisão que torna a expectativa ainda mais assustadora. Segundo Burke, propagar a escuridão é a política costumeira de terror usada por governos despóticos e por sistemas religiosos, pois por onde ela age a razão falha e a lucidez se esconde. Os efeitos do escuro se fazem sentir, sobretudo, em histórias populares macabras amplamente difundidas. Ainda segundo filósofo, ninguém teria percebido melhor os efeitos sublimes da escuridão do que John Milton. A descrição da morte no segundo livro de Paradise Lost e seu apelo à escuridão e ao horror definiriam perfeitamente o efeito sublime. O medo onipresente na descrição do mais profundo dos horrores é a chave de leitura do poema épico. Sob o efeito da sensação medonha, estabelece-se o sentido do texto, que, para o Burke, atinge o máximo da perfeição na medida em que constrange o leitor pelo domínio de suas faculdades mentais. O efeito do sublime desponta como resultado do ajuste eficaz de um texto literário, e este é condicionado pela força. A afirmação de que o sublime não pode derivar senão de uma alteração de forças81 leva à conclusão de que da obra de arte deve emanar uma força própria capaz de imprimir a sensação de terror, em alusão ao perigo, ao risco, ao flerte com a possibilidade da morte. A obra de arte deve ter uma violência característica que suspenda o sentido de realidade e confunda o espectador ainda que temporariamente. Para falar sobre a relação entre força, horror e dor, o autor cria a imagem de um homem sendo atacado por um animal. Primeiro, um medo irrefletido diante do poder ao mesmo tempo evidente e misterioso que resulta na experiência sublime; seguido da racionalização, que neutraliza tais efeitos e resulta em desprezo como forma de domínio da situação. A posição do leitor diante de um texto a priori assustador refaz essa experiência de sobreviver a um risco e permite que ele se deixe levar ao limite da comoção para depois controlar seus efeitos: ele contém as emoções em um tipo particular de desprezo em relação ao potencial lesivo do texto. Sua magia e eficácia dependem da orquestração de violência, dor e horror que irradie uma força intensa o suficiente para coagir o leitor. Se o sublime corresponde à submissão, a um estado de admiração plena, a beleza seria então relativa ao amor e, portanto, atuaria em uma frequência absolutamente distinta de sensações na qual a complacência substituiria a sujeição. Se o sublime é o que nos assalta, a beleza é experimentada como forma de concessão, um deleite permitido de menor intensidade. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 81 BURKE, Edmund, op. cit., p. 59. ! ! 45! As diferenças se fazem sentir não só na intensidade da experiência, mas também na magnitude das coisas. O amor seria aplicável a objetos e a assuntos menores, enquanto o sublime e o horrível seriam possíveis em situações e em artefatos de maiores dimensões. Por atuar em circunstâncias de maior impacto, o amor seria capaz de gerar mais prazer do que a beleza. Edmund Burke analisa ainda como o horror se converte em júbilo, como algo tão desagradável em um primeiro momento pode se transmudar a ponto de se tornar extremamente agradável aos sentidos. O modo como um estímulo pautado pela dor se transforma depende de um processo de sofisticação e de apuração sensível. O horror exercita a sensibilidade, sofistica os sentidos da visão e da audição. Chegar ao sublime exige aperfeiçoamento constante e dedicação intelectual. O deleite oriundo da experiência, que não se confunde com prazer, origina-se no sentimento de autopreservação. Sentir o perigo, perceber seus riscos e escapar em segurança: eis a saborosa sensação sublime. Na quinta e última parte de seu inquérito, Burke dedica-se ao que julga o mais poderoso instrumento de afetação: a palavra. Mais do que qualquer elemento da natureza ou produto artístico, é a palavra que mais comove. O poder de afetação deve-se a três motivos principais, listados na última seção, intitulada “How Words Influence the Passions”: o primeiro refere-se ao poder de gerar empatia; o segundo à possibilidade de criar inúmeras situações de afetação e o terceiro à possibilidade de construir combinações improváveis na realidade. Nos três pontos destaca-se o poder de construção imaginativa como forma de superar a realidade empírica. O que parece estar em jogo é a capacidade das palavras de representar a realidade em níveis de intensidade e força superiores. As palavras – que permitem acesso à experiência alheia, que estabilizam um sentido para a realidade necessariamente transitória e permitem combinar circunstâncias – são fontes privilegiadas do sublime porque são mais potentes do que as coisas em si. São mecanismos semânticos capazes de convencer e de comover, em um repertório de possibilidades que ultrapassa qualquer experiência real. Burke diferencia, no entanto, dois tipos de expressão pela linguagem: a clara e a forte. A primeira tem características mais propriamente descritivas, ligadas ao entendimento, enquanto a segunda é voltada para a dramatização de sentimentos, conectada às paixões. Os modos de enunciação, como a carga dramática imposta pelo narrador, podem fazer a representação mais viva do que o objeto, que, se descrito com imparcialidade, torna-se extremamente desinteressante para o espectador. É a capacidade de articulação intensa que transforma narrativas em motivo de fascínio, e a perícia emotiva no engenho das palavras garante a comoção necessária ao deleite. As palavras se convertem em beleza e em sublime ! ! 46! pelo impacto que causam, pela experiência emotiva que provocam. No entanto, no último trecho do inquérito, Burke afirma não ter tido a preocupação específica de tratar da beleza e do sublime nas artes, mas sim considerá-los de maneira mais ampla, tentando estabelecer parâmetros gerais de seus efeitos nos homens. Exercendo sua força, sua capacidade expressiva, a palavra é transformada em arte na medida em que propulsiona a beleza e o sublime. É mais poderosa do que a realidade, pois a supera e a densifica na faculdade da comoção. Essa afetação tem na manifestação do horror sua apoteose82. O texto que serviria de base para as discussões em torno das funções da ficção gótica está inscrito em um contexto de valorização da imaginação como fonte de prazer. Tratado no domínio da técnica e convertido em dispositivo textual, o elemento imaginário que se associa ao maravilhoso e ao sublime passa a nortear determinado tipo de produção letrada deliberadamente devotada ao deleite. No início do século XVIII, Joseph Addison publicou no jornal The Spectator, fundado por ele mesmo em sociedade com Richard Steele, uma série de ensaios sobre os prazeres possíveis do ato de imaginar. No mais comentado deles, “On the Pleasure of Imagination”, Addison defende a ideia de que a contemplação de cenas agradáveis, seja na natureza, seja na pintura ou na poesia, teria efeito positivo para o corpo e para a mente, não só por iluminar e fomentar a imaginação, como por dispersar a melancolia83. Já no ensaio intitulado “Ghost Stories”, de 14 de março de 1711, Addison relata uma cena que ajuda a configurar o sentido que a ficção voltada para o horror assumiria. Sobre sua infância, diz: I remember last winter there were several young girls of the neighborhood sitting about the fire with my landlady's daughters, and telling stories of spirits and apparitions. Upon my opening the door the young women broke off their discourse, but my landlady's daughters telling them that it was nobody but the Gentleman, (for that is the name that I go by in the neighborhood as well as in the family,) they went on without minding me. I seated myself by the candle that stood on a table at one end of the room; and pretending to read a book that I took out of my pocket, heard several dreadful stories of ghosts as pale as ashes, that had stood at the feet of a bed, or walked over a church-yard by moon-light: and of others that had been conjured into the Red Sea, for disturbing people's rest, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 82 É conhecida a crítica de Kant a Burke na Crítica da faculdade do juízo, porém o conceito kantiano de sublime em seus desdobramentos – matemático e dinâmico – não será considerado aqui por não se referir propriamente ao horror no que tange aos seus desdobramentos literários. O destaque para a obra de Burke relaciona-se especificamente ao seu papel na definição da literatura gótica. 83 ADDISON, Joseph. The spectator. London: George Routledge & Sons, 1891. ! ! 47! and drawing their curtains at midnight; with many other old women's fables of the like nature. As one spirit raised another, I observed that at the end of every story the whole company closed their ranks, and crowded about the fire: I took notice in particular of a little boy, who was so attentive to every story, that I am mistaken if he ventures to go to bed by himself this twelvemonth.84 A descoberta de um mundo fantasmagórico contado em torno da lareira associa os prazeres da imaginação com certo paradoxo do horror. A fascinação pelo mistério se vincula a determinado efeito que a fantasia produz, transformando o medo em fascínio. Traduzido como mecanismo textual, o mundo lúdico das histórias de fantasmas passa a ser pautado pelos debates estéticos sobre a noção de gosto. Uma teoria da poética calcada no efeito surge paralelamente à ficcionalização pragmática do horror que se pressupõe existente na natureza. No mesmo ensaio, Addison fala da crença em um mundo natural cercado por espíritos, vigiado por seres que observam as atividades humanas, mas a sensação de não estar sozinho não é tratada como motivo de desespero, mas com alegria pelo envolvimento com os mistérios da experiência. Finalmente cita Paradise Lost, de John Milton, como representação da comunhão entre homens e espíritos. Se nos textos de Addison o mistério não está completamente domesticado, racionalizado, já é alvo de interesse curioso. A relação com o sobrenatural se traduz em busca voluntária por prazer em uma imaginação convertida em produto poético. No ensaio “On Romances”, escrito em 1773, Anna Laetitia Barbauld85 fala do paradoxo da atração pelo medo como um sentimento universal relacionado ao encantamento da mente pela fantasia e de sua atração pelo prazer. Barbauld defende ainda a particular capacidade de sedução do romance, que por tratar de coisas cotidianas, reconhecíveis por qualquer leitor, seria naturalmente mais popular que a poesia de Homero, por exemplo86. Em “On the Pleasure Derived from Objects of Terror”87, a ensaísta afirma que o prazer experimentado diante de uma cena de horror advém da empatia em relação à vítima. O sentido de autoaprovação sugerido pela solidariedade estabelecida com o personagem em apuros aguçaria as virtudes do espectador em um nível tão sofisticado e refinado que o levaria a buscar novas situações !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 84 85 1774. ADDISON, Joseph. Essays from Addison. London: Macmillan & Co., 1934, p. 67. Anna Laetitia Aikin assumiu o sobrenome Barbauld depois de se casar com Rochemont Barbauld em 86 BARBAULD, Anna Laetitia. On Romances. In: AIKIN, John. BARBAULD, Anna Laetitia. Miscellaneous pieces in prose. London: John Johnson, 1792, p. 39. 87 O ensaio foi publicado com um fragmento intitulado “Sir Bertrand”, cuja autoria é atribuída a John Aikin. ! ! 48! semelhantes. O horror aos acontecimentos repulsivos é interpretado como um mecanismo de ênfase moral do observador distante.88 A sensação um tanto paradoxal de prazer marcaria a experiência dos espectadores diante de tragédias como Macbeth e Hamlet, cuja inspiração terrífica remontaria aos dramas clássicos produzidos na Grécia Antiga. Nos termos de Barbauld, o cálculo para o sucesso ficcional parece simples: quanto mais horror, mais identificação e mais prazer. O recurso marcaria textos antigos que o mesclariam com o maravilhoso: “In the Arabian Nights are many most striking examples of the terrible joined with the marvelous: the story of Alladin, and the travels of Sinbad, are particularly excellent.” E teria assumido nova forma no século XVIII: “The Castle of Otranto is a very spirited modern attempt upon the same plan of mixed terror, adapted to the model of Gothic romance.”89 A modernização atribuída a Horace Walpole é tratada como um desdobramento de uma tradição antiga, um tipo de gótico arcaico que sobrevivera por seu apelo às consciências, por supostamente trabalhar com modalidades transculturais de afetação que independeriam das diferenças de gosto. O que Barbauld denomina “the old Gothic Romance” se manteria na ordem da produção cultural conquistando admiradores, assim como as tradicionais fábulas orientais, com seus gênios, gigantes, encantamentos e estranhas transformações, “[…] however a refined critic may censure them as absurd and extravagant, will ever retain a most powerful influence on the mind, and interest the reader independently of all perculiarity of taste”90. Paixão e capacidade imaginativa são duas bases usadas para sustentar a defesa do horror artístico: a primeira mobilizada na forma de uma solidariedade humana ativada pelo artifício, e a segunda como a possibilidade segura da criação e de distanciamento. Essa dor fabricada para ser destruída com fins de lazer transforma-se em um produto cada vez mais difundido no mercado de consumo de bens culturais, indiferente às posturas críticas mais radicais que lhe condenam o exagero e a falta de refinamento das paixões. O excesso imaginativo que poderia eventualmente ferir os limites do bom gosto tem no conceito de sublime sua potencial redenção. Nesse domínio, a lógica da precisão clássica das formas perde espaço para a o princípio da sensação. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 88 BARBAULD, Anna Laetitia. On the pleasure derived from objects of terror. In: AIKIN, John. BARBAULD, Anna Laetitia. Miscellaneous pieces in prose. London: John Johnson, 1792, p. 120. 89 BARBAULD, Anna Laetitia. On the Pleasure Derived from Objects of Terror, op. cit., p. 126. 90 BARBAULD, Anna Laetitia. On the Pleasure Derived from Objects of Terror”, op. cit., p. 122. ! ! 49! Nos ensaios sobre o sublime que Friedrich Schiller escreveu na década de 1790, a fantasia mostra toda sua potencialidade ao fazer “do secreto, do indefinido e do impenetrável um objeto de terror”91. Não limitada pela realidade, não restrita a nenhum caso em particular, ela tem diante de si um campo de possibilidades amplo e tenderia ao horrível justamente pelo sentido de autopreservação. O repúdio seria um sentimento mais ágil e presente do que o apetite. Por questão de segurança a mente transforma o desconhecido em alvo de suspeitas negativas, e, na medida em que flui a fantasia, o medo ganha a cena. As trevas são motivos fortes para o sublime, não por serem perigosas em si, mas porque escondem os dados da realidade, porque abandonam o ser à sua potencialmente amedrontada faculdade de imaginação. Daí as representações espectrais serem comuns à meia-noite, e o reino da morte ser o império da noite eterna.92 Porém, o sofrimento só pode ter sentido estético como ilusão pura, construção poética ou representação de uma realidade distante a ponto de se voltar para a imaginação. O sublime “em seu modo patético” é fruto de uma solidariedade que não se confunde verdadeiramente com o sofredor (o que representaria uma dominação absoluta pelo afeto e a perda da autonomia moral), mas é a consciência sensível e segura do sofrimento. É preciso manter a consciência da liberdade moral para sofrer diante de sua determinação no quadro da situação representada. O processo se divide em duas partes: na representação vivaz do sofrimento e na representação da resistência ao mesmo sofrer. Da primeira nasce o patético, da segunda o sublime. Daí se estabelece para Schiller as duas leis fundamentais de toda arte trágica: “em primeiro lugar a apresentação da natureza que sofre, e em segundo lugar a apresentação da autonomia moral no sofrimento.”93 Presa dos horrores obscuros da fantasia, o homem deve buscar sua liberdade afirmando sua vontade do ponto de vista da cultura moral. Só o homem moralmente formado pode ser verdadeiramente livre e superior à natureza. Duas forças conseguiriam prover tal liberdade: o belo e o sublime, o primeiro por harmonizar impulsos sensíveis com a razão, e o segundo por superar a racionalidade. O sublime é, no entanto, um sentimento mais sofisticado, visto que pode ir do horror à alegria extrema e porque, “embora não seja um prazer, é preferido por almas refinadas a todo prazer”. A beleza aparece como um simples !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 91 SCHILLER, Friedrich. Do sublime ao trágico. Pedro Süssekind (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 45. 92 SCHILLER, Friedrich, op. cit., p. 45. 93 SCHILLER, Friedrich, op. cit., p.51. ! ! 50! condutor da infância embrutecida ao refinamento sublime no qual se percebe uma liberdade demoníaca94. A noção de educação estética completa implica o reconhecimento e cultivo dos aspectos diabólicos da experiência. A formação dos indivíduos guiados pelo espírito puro é como uma educação para o mal que traduz uma justaposição de contrastes para fins de refinamento. Cabe ao espírito se desenvolver na tensão violenta a que é submetido, pois um mundo naturalmente cruel requer espaços de experimentação do medo onde se possa forjar a liberdade. Nesse sentido, a encenação trágica funcionaria como emulação do drama espiritual, ferramenta de educação sensível. No contexto de ênfase da razão, o mal pode ser testado com segurança e a arte poética pode funcionar como um laboratório das sensações. A liberdade individual desse sujeito cuja autonomia se destaca é tratada como uma conquista de seu desenvolvimento moral, forjado entre as reais submissões do cotidiano e as reproduções experimentais da arte. A prerrogativa ontológica da formação não se conjuga com consumo cultural diletante, e a arte precisa ser encarada como forma necessária de acesso ao metafísico a partir do imperativo de uma razão que trata as supostas experiências sensíveis do espírito como sensibilidade estética. No famoso prefácio de Cromwell, Victor Hugo estabelece o que muitos críticos consideram as leis gerais da estética romântica. Publicado em 1827, o texto que precede a peça pode ser lido como uma teoria da modernidade do drama na medida em que anuncia os preceitos da mistura dos gêneros e da renúncia à imitação. Apresentado como um conjunto de considerações gerais sobre a arte, ele propaga o domínio da liberdade criativa e a recusa de modelos preestabelecidos. Confrontando formalismos literários, defende a totalidade nas obras em representações do homem que considerem sua complexidade. Busca ainda representar a natureza sem se limitar a reproduções por demais fidedignas da realidade, passivas em relação a ela. A lógica da mistura estilística seria, para Victor Hugo, uma novidade cristã. O cristianismo teria trazido uma verdade mais profunda para a poesia, na qual se unem contraditórias dimensões humanas. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 94 O demoníaco aqui se refere ao que é da ordem do espírito e não se submete às necessidades físicas. Trata-se de uma referência à definição de Goethe, que, nas Conversações com Eckermann, afirma: “O demoníaco é aquilo que não pode ser resolvido por meio do entendimento e da razão. Não está em minha natureza, mas estou submetido a ele”. Ver SCHILLER, Friedrich, op. cit., p. 65, nota 40. ! ! 51! A diferença entre a literatura clássica e a romântica estaria justamente na capacidade da segunda de restituir o corpo com a alma, no reencontro do animal com o espírito. A nova literatura cultua o belo sem desprezar o feio, aposta na relação entre as duas categorias. A poesia se aproxima da verdade quando amplia seu foco, quando admite a incompletude e o disforme como metas. O grotesco e o sublime se misturam, e a poesia passa a funcionar como a natureza, criando beleza sem prescindir do erro, da feiura. Tratado como traço característico do pensamento moderno, o grotesco – que cria tanto o cômico quanto o horrível – é a oposição necessária ao sublime. Seu lugar estratégico na modernidade deve-se justamente ao contraste que cria ao intensificar as cores do belo pela exposição do horrível. Essa nova imaginação anticlássica é mais poderosa e complexa exatamente por investir na contraposição que ilumina as tonalidades discrepantes, realçando o sublime e o horror. Dans la pensée des modernes, au contraire, le grotesque a un rôle immense. Il y est partout; d’une part, il crée le difforme et l’horrible; de l’autre, le comique et le bouffon. Il attache autour de la religion mille superstitions originales, autour de la poésie mille imaginations pittoresques. C’est lui qui sème à pleines mains dans l’air, dans l’eau, dans la terre, dans le feu, ces myriades d’êtres intermédiaires que nous retrouvons tout vivants dans les traditions populaires du moyen âge; c’est lui qui fait tourner dans l’ombre la ronde effrayante du sabbat, lui encore qui donne à Satan les cornes, les pieds de bouc, les ailes de chauve-souris. C’est lui, toujours lui, qui tantôt jette dans l’enfer chrétien ces hideuses figures qu’évoquera l’âpre génie de Dante et de Milton, tantôt le peuple de ces formes ridicules au milieu desquelles se jouera Callot, le Michel-Ange burlesque. Si du monde idéal il passe au monde réel, il y déroule d’intarissables parodies de l’humanité. Ce sont des créations de sa fantaisie que ces Scaramouches, ces Crispins, ces Arlequins, grimaçantes silhouettes de l’homme, types tout à fait inconnus à la grave antiquité, et sortis pourtant de la classique Italie.95 Esse universo de seres mitológicos, demônios e bichos macabros traz à tona imagens tenebrosas na fantasia romântica do contraste. O inferno transforma-se em cenário ideal, a oposição mais radical e ilustrativa das aspirações elevadas. O baixo e o vil são mecanismos de exaltação da beleza, pois, quando se imagina o inferno, mais claramente ressalta-se a perfeição celestial. Para Victor Hugo, o horror é como uma escada para o belo, seu mais !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 95 HUGO, Victor. Ouvres complètes. Cromwell. Paris: J. Hetzel & A. Quantim, 1881, Drame, vol. 1, p. 23. ! ! 52! potente mecanismo dramático. Aliado ao disforme, o belo moderno é mais poderoso do que o antigo, porque a sua imaginação explora tonalidades distintas. Essa mesma imaginação afeita a cemitérios, cores escuras e cenários sinistros é mais devotada à beleza e a faz entrar em cena com mais vigor e intensidade. O grotesco, fundamento da comédia, espalhou-se pela poesia, passando a representar a bestialidade humana, enquanto o sublime evocava a alma purificada pela fé cristã. O primeiro dedica-se aos vícios, às paixões, à luxúria e ao crime, enquanto o segundo entoa as graças, as virtudes, os encantos e as belezas. Mas o que importa realmente é a relação entre as forças, argumento romântico fundamental. Nessa chave a liberdade significa o afastamento dos modelos clássicos, o desligamento voluntário com a Antiguidade e com sua estética pura. Para Victor Hugo, assumir a modernidade do ponto de vista das artes é trazer a feiura e os vícios para a cena e fazer poesia de contrastes. A obra completa, total, pensa o homem em determinada completude localizada entre a beleza e o horror. Ainda que ontologicamente autônomas, essas categorias se fortalecem quando postas lado a lado. O paradigma romântico da perversão e do vício não é nada além de um tributo à moral e à virtude. A escuridão lhe é cara porque o objetivo final é a iluminação. Novamente o que está em jogo é determinado efeito da obra, intensificado pelo jogo de luz e sombra dos dilemas da alma. Tornar-se verdadeiramente moderno é aceitar as contradições cristãs como elemento dramático fundamental da experiência. A poesia deve reproduzir essas tensões, tornando-as tangíveis, visíveis e sensíveis; deve forçar os limites da diferença para enfatizar a beleza da complexidade. Para contemplação da perfeição formal e moral do sublime, deve-se atingir o estágio necessário da deformação sensual do corpo. O impacto do debate sobre o sublime se faz sentir em praticamente toda a produção literária dos séculos XVIII e XIX. Ele fornece as bases que estabelecem a relação do belo com o horrível e fundamenta determinado tipo de expectativa de recepção em que os contrastes estão a serviço de sensações de prazer, o que remete a uma educação estética ideal. A imaginação para o sublime é construída com base nos tratados sobre estética, e é também resultado de apropriações específicas de determinados autores e textos literários. Como visto, um dos textos mais citados é Paradise Lost, de John Milton. Anna Laetitia Barbauld afirma que o autor teria forte inclinação para o que há de mais selvagem na ! ! 53! imaginação humana.96 Já Edmund Burke o considera um mestre dos contrastes; sua obra é alvo de análise também nos anteriormente citados ensaios de Joseph Addison e Victor Hugo. Mary Shelley elege o poema como referência imaginativa, colocando-o entre as leituras do monstro em Frankenstein. No capítulo quinze a criatura encontra ao acaso três obras: Plutarch's Lives; Sorrows of Werter e Paradise Lost. Os volumes seriam responsáveis por sua educação sentimental; as leituras o fariam sentir êxtase e melancolia em níveis que jamais experimentara. O último o levaria a emoções ainda mais profundas: “It moved every feeling of wonder and awe that the picture of an omnipotent God warring of his creature was capable of exciting”.97 Paradise Lost o fez se sentir por um lado como Adão, desligado de qualquer outro ser no mundo, e por outro como Satã, assaltado pela inveja. A mistura de sentimentos, que a autora destaca no prefácio como condição primordial para a poesia elevada, tem como resultado um aprofundamento emocional que faz da obra fonte do sublime para o monstro. A forma literária de Milton é lida não só como modelo de refinamento, mas como matriz de apelo sensível. É tratada como a chave de descoberta do sentimento pelo mecanismo das letras. A representação do demônio é outro elemento-chave da apropriação romântica de John Milton. Segundo Mario Praz, ele conferiu a Satã o charme de um rebelde destemido, como no Prometeu de Ésquilo e no Capaneo de Dante.98 A figura assume a forma de uma beleza decadente coberto pelas sombras de uma tristeza de morte e encarna a esplendorosa magnitude da ruína. Schiller afirmaria que a simpatia com o derrotado é quase automática, o que levaria o mais moderado dos leitores a se converter ainda que temporariamente em um anjo caído99. Em Defense of Poetry, Mary Shelley destaca a magnitude satânica em Paradise Lost: considera o demônio moralmente superior a Deus em sua perseverança capaz de suportar toda sorte de angústias e torturas100. Ainda segundo Mario Praz, o demônio sensual e rebelde de John Milton passaria a figurar nas pitorescas histórias de horror inglesas dos séculos XVIII e XIX, em especial nas obras de Ann Radcliffe e Matthew Lewis, e na poesia romântica de Lorde Byron, na qual é presença fundamental. Ainda mais relevante na configuração das teorias românticas é William Shakespeare. A valorização de sua obra a partir da segunda metade do século XVIII configura um dos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 96 BARBAULD, Anna Laetitia. On the pleasure derived from objects of terror, op. cit., p. 121. SHELLEY, Mary, op. cit., p. 135. 98 PRAZ, Mario. The Romantic Agony. Oxford: Oxford University Press, 1970, p. 57. 99 PRAZ, Mario, op. cit., p. 59. 100 SHELLEY, Percy. A defense of poetry and other essays. London: Jungle Books, 1999. 97 ! ! 54! momentos-chave da dita “modernidade artística” ocidental. Transformada com o advento do Sturm und Drang em símbolo do triunfo da originalidade sobre o que a teoria e a história literária consideram como as regras do classicismo, torna-se referência das possibilidades infinitas do gênio criador. Passa a figurar como a marca do triunfo do talento sobre a técnica, exemplo da primazia do efeito sobre a perfeição formal. Tanto nas teorias produzidas na Alemanha quanto nas posteriores francesas, Shakespeare surge como principal referência para identificar a modalidade moderna de artista genial101. Se o debate em torno da hegemonia dos modelos clássicos não surge exatamente no século XVIII – basta lembrar a conhecida Querela dos antigos e dos modernos entre acadêmicos franceses do século XVII, como Boileau e Perrault, que punha em confronto o classicismo e a necessidade de uma produção artística contemporânea e local –, a partir do século XVIII passa a enfatizar uma estética voltada para o efeito sensível em detrimento de uma poética regrada que defendia padrões universais de beleza e formatação artística. Um dos marcos da leitura moderna de Shakespeare na Alemanha foi a publicação, em 1759, de Cartas relativas à novíssima literatura, de Lessing, responsável por defender a obra shakespeariana de críticas contundentes como a de Johann Christoph Gottsched, renomado poeta e acadêmico, que a considerava cheia de erros e insalubre à razão. Entre 1762 e 1766, vinte e duas peças foram traduzidas por Wieland e, uma década depois, revisadas por Johann Joachim Eschenburg. A repercussão teria sido tão grande que Otto Maria Carpeaux, por exemplo, divide a história da literatura alemã do século XVIII em antes e depois das traduções de Wieland.102 Os novos personagens criados no contexto do Sturm und Drang são concebidos como produtos de gênios inspirados pela natureza e autônomos em relação a regras preestabelecidas. O que se convencionou determinar como “talento artístico natural” caracterizaria o artista criador livre das convenções eruditas. Shakespeare passa a representar a separação em relação aos gregos e consequentemente ao classicismo francês. Ele é transformado em artífice da liberdade para satisfazer os anseios de representação do presente conforme particularidades locais e históricas. Ao apelo universal da arte ressalta-se a dimensão específica da época, o aprofundamento do caráter nacional para atingir as mais complexas e variadas verdades humanas. Em seu longo ensaio sobre Shakespeare, de 1864, Victor Hugo afirma: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 101 102 SÜSSEKIND, Pedro. Shakespeare: o gênio original. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 10. CARPEAUX, Otto Maria. Literatura alemã. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. ! ! 55! Shakespeare, c’est la fertilité, la force, l’exubérance, la mamelle gonflée, la coupe écumante, la cuve à plein bord, la sève par excès, la lave en torrent, les germes en tourbillons, la vaste pluie de vie, tout par milliers, tout par millions, nulle réticence, nulle ligature, nulle économie, la prodigalité insensée et tranquille du créateur. A ceux qui tâtent le fond de leur poche, l’inépuisable semble en démence. A-t-il bientôt fini? jamais. Shakespeare est le semeur d’éblouissements. A chaque mot, l’image; à chaque mot, le contraste; à chaque mot, le jour et la nuit […]103 Os adjetivos atribuídos a Shakespeare o colocam, pelo visto, no centro da modernidade estética, fonte originária de um novo tipo de postura artística que valoriza a espontaneidade, o excesso e os contrastes. O artista genial deve usar seu talento único, que equilibra tranquilidade e insensatez na busca de uma representação ideal da vida que explore tanto o lado demoníaco, escuro e torpe quanto a clareza da virtude. Nessa modalidade de dramatização que se pretende mais íntegra, é possível perceber traços de uma educação dos sentidos que encerram aspirações de educação moral104. Stendhal, por exemplo, ao comentar Macbeth diz tratar-se da história de um homem honrado que, seduzido pela mulher, se transforma em monstro sanguinário: “Essas transformações de sentimentos do coração humano são o que a poesia pode oferecer de mais admirável aos olhos dos homens, aos quais ela comove e ao mesmo tempo instrui.”105. A valorização de Shakespeare como gênio criador revela a mudança da definição do artista: os atributos da criatividade e da inspiração serão valorizados, por exemplo, por autores como Ann Radcliffe (inúmeras são as citações shakespearianas em The Mysteries of Udolph, por exemplo), Horace Walpole e Mary Shelley, sobretudo no que diz respeito à relação dramática com o sobrenatural. Goethe, no ensaio “Para o dia de Shakespeare”, afirma que, em suas peças, a imaginação é superior à visão; o leitor se percebe diante de cenas que lhe falam mais interiormente do que à luz da razão imediata106. O vigor dramático seria oriundo da exploração profunda dos elementos fantásticos, espíritos e bruxas que animariam um mundo de formas imaginativas no qual a ilusão leva à plenitude indecifrável do prazer contemplativo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 103 HUGO, Victor. William Shakespeare. Paris: A. Lacroix, Verboeckhoven Éditeurs, 1864, p. 262. Nessa leitura de Shakespeare observa-se uma mudança em relação aos parâmetros da retórica com o fim das funções de “composição” em prol da estilização dos textos. Com a autonomização do estético, os usos consuetudinários das artes como “docere” dão lugar a ideia de contemplação desinteressada expressa na filosofia kantiana. 105 STENDHAL. Racine e Shakespeare. (Apud SÜSSEKIND, Pedro, o, op. cit., p. 76). 106 GOETHE, Wolfgang. Para o dia de Shakespeare. In: Escritos sobre literatura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 38. 104 ! ! 56! No mesmo ensaio, Goethe argumenta que, na obra shakespeariana, o interior do mundo transforma-se em alvo de interesse: os elementos mágicos (sonhos, pressentimentos, fantasmas, gnomos, monstros, feiticeiros…) seriam mecanismos de exploração do insólito, recursos usados para revelação de mistérios profundos. “A verdade e o valor de sua vida é que constitui a base ampla sobre a qual aquelas coisas repousam; por isso, tudo o que ele escreve nos parece tão autêntico e substancial.”107 Para eles, a real tensão não se estabeleceria no confronto do sobrenatural com o real, ou nas possibilidades limitadas de interpretação da realidade. O teatro de elementos fantásticos seria apenas uma maneira de potencializar o verdadeiro drama da experiência trágica que confronta necessidade e vontade, liberdade e dever. Nesse sentido, Shakespeare teria equacionado essa relação de forças, valorizado o indivíduo sem supervalorizar o querer como um novo Deus organizador do mundo. Teria encontrado o tom para tratar a realidade social como condicionadora das vontades em um tipo de querer moderno que ultrapassa a força de um indivíduo particular, sem submetê-lo por completo a um jogo de forças que o aniquila. Na obra do dramaturgo inglês, seria possível identificar o conflito da vontade individual contraposta a um dever que as circunstâncias insistem em tornar indispensável. Um dos exemplos dessa tensão seria Hamlet, drama em que os conflitos do protagonista resultariam na melancolia expressa no famoso solilóquio aberto por: “ser ou não ser.” Ainda no primeiro ato, o conflito anterior é transformado em um dever interior pela aparição do espírito do rei que exige vingança. Nesse conflito vontade e necessidade medem forças “tanto entre si quanto com a possibilidade de realização do dever e de solução do conflito que expressa o querer”108. Na celebrada genialidade shakespeariana, o mundo antigo e o novo se reencontrariam na relação tripartida entre vontade, necessidade e realização109. A conciliação da tragédia antiga com a moderna deveria nortear, assim, os parâmetros da nova literatura surgida a partir de meados do século XVIII. As limitações impostas pela pouca qualidade das montagens teatrais não seriam capazes de travar a repercussão romântica das obras, que se transformariam em elo de mundos distintos, referência literária articulada dentro da disputa entre antigos e modernos, clássicos e românticos. E.J. Clery destaca a importância do ator e produtor teatral David !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 107 GOETHE, Wolfgang, op. cit., p. 56. SÜSSEKIND, Pedro, op. cit., p. 115. 109 SÜSSEKIND, Pedro, op. cit., p. 116. 108 ! ! 57! Garrick na popularização das peças de Shakespeare. Começando a atuar em 1741, teria sido capaz de encenar todo o poder das paixões que os textos sugeriam com uma carga de verossimilhança que os críticos julgavam impossível até então.110 Segundo Denis Diderot, em questão de segundos Garrick apresentava variações de nuances emotivas que iam do intenso prazer ao horrível desespero.111 Seu talento dramático se tornaria uma chave para o sublime ao dar maior credibilidade às cenas, sobretudo às fantasmagóricas. Em visita à Inglaterra, o escritor alemão Lichtenberg comenta a atuação de Garrick em Hamlet: Hamlet has folded his arms […] and pulled his hat down over his eyes; it is a cold night and just twelve o’clock; the theatre is darkened, and the whole audience of some thousands are as quiet, and their faces as motionless, as though they were painted on the walls of theatre; even from the farthest end of the playhouse one could hear a pin drop. Suddenly, as Hamlet moves towards the back of the stage slightly to the left and turns his back on the audience, Horatio starts, and saying: “Look, my lord, it comes”, points to the right, where the ghost has already appeared and stands motionless, before any one is aware of him. At these words Garrick turns sharply and at the same moment staggers back two or three paces with his knees giving way under him; his hat falls to the ground and both his arms, especially the left, are stretched out nearly to their full length, with the hands as high as his head, the right arm more bent and the hand lower, and the fingers apart; his mouth is open: thus he stands rooted to the spot, with legs apart, but no loss of dignity, supported by his friends, who are better acquainted with the apparition and fear lest he should collapse. His whole demeanor is so expressive of terror that it made my flesh creep even before he began to speak. The almost terrorstruck silence of the audience, which preceded this appearance and filled one with a sense of insecurity, probably did much to enhance this effect. At last he speaks, not at the beginning, but at the end of a breath, with a trembling voice: “Angels and ministers of grace defend us!” Words which supply anything this scene may lack it one of the greatest and most terrible which will ever be played on any stage.112 A descrição da quarta cena do primeiro ato enfatiza a reação da plateia diante da atuação. O clima de tensão é estabelecido não só pelo texto, mas também pelas circunstâncias físicas do teatro. O silêncio da sala escura, associado à cativante expressão do ator, constrói a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 110 111 1902. 112 CLERY, E. J., op. cit., p. 38 DIDEROT, Denis. Paradoxe sur le comédien. Paris: Société Française d’Imprimerie et de Librairie, LICHTENBERG, Georg Christoph. 1774. Lichtenberg’s visits to England. Oxford: Clarendon Press, 1938, p. 10. ! ! 58! atmosfera terrífica anterior à fala. A sensação de insegurança não é apenas efeito da relação com o texto em si: resulta da reação do público, produto coletivo que potencializa o desempenho, cujo ápice é a frase do personagem. O resultado é a instauração do horror absoluto que remete ao trânsito do belo ao sublime e garante o sucesso dramático aos olhos do crítico alemão. No que é retratado quase como a condição ideal para a realização de uma cena, o espectador trava contato com o “horror em si”; a dimensão do artifício praticamente se perde na efetivação do ato e o corpo do ator transforma-se em um mecanismo de transposição de afetos, máquina de produção de efeitos. Um comentário de Frederick Pilon sobre a mesma cena destaca o poder de persuasão de Garrick: “Short as this scene is, Garrick's excellence in it was astonishing; he preserved Shakespeare’s fire undiminished, faithful as the electric, and sent the animated shock of nature's flame home to the heart.”113. A reprodução íntegra da paixão permite a perfeita simulação do horror e atinge o coração do espectador como se a experiência fosse perfeitamente traduzida: trata-se da comunicação direta, cujo efeito passa a ser tão valorizado quanto a arquitetura poética. Os gestos da atuação se transformam em pontos de convergência e troca. A identificação da plateia com os personagens gera um tipo particular de engajamento que possibilitaria o intercâmbio direto de sensações que sobreporiam a simulação ao atingir dimensões emotivas superiores à razão. Uma espécie de empatia transforma a compreensão estética em capacidade de sentir, o sucesso da montagem é atrelado ao poder de afetação e a sensação se estabelece como parâmetro crítico. Na mesma linha de argumentação, James Burgh, em The Art of Speaking, publicado em 1763, define Hamlet como um esforço de descoberta de segredos estranhos e Macbeth como exemplo de crueldade e horror114. Em uma época em que os sentimentos de piedade e horror são convertidos em prerrogativas para o deleite estético, as atuações de Garrick serviriam para colocar Shakespeare em seu devido lugar de acordo com os mecanismos românticos de atribuição de sentido. Um crítico inglês afirmaria em 1788: “Garrick […] corrected the audience’s taste: He taught them, by the greatness of the acting, to know those nice touches of nature, which they were till then strangers too. When he acted, the audience !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 113 PILON, Frederick. An essay on the character of Hamlet: As performed by Mr. Henderson, at the Theatre Royal in the Hay-Market. Disponível em: Eighteenth Century Collections Online <http://quod.lib.umich.edu/e/ecco/004846613.0001.000?rgn=main;view=fulltext>. Acesso em 24 mar. 2014. 114 CLERY, E. J., op. cit., p. 45. ! ! 59! saw what was a wright”115. O comentário reforça a ideia de que suas atuações teriam ajudado na educação estética de parte da população. A capacidade performática de Garrick teria ainda fomentado o gosto pelo horror sobrenatural e estabelecido a demanda popular que justificaria o aumento da produção de ficção fantástica116. O contato com o “verdadeiro Shakespeare” teria alimentado o interesse pelo horror como dispositivo capaz de gerar comoção profunda graças a uma identificação fabricada com estranhas e misteriosas verdades que compunham uma noção específica de integridade humana. O horror metafísico parece se interpor entre a vontade individual e o senso do dever como mecanismo de constrangimento e suspense capaz de evocar o sublime, estágio ideal da recepção. A leitura das obras de Shakespeare, no horizonte do movimento das paixões e da utilização do sublime como fundamentação e referencial estético, une poetas românticos como William Blake, Edward Young, Coleridge, William Wordsworth, Percy Shelley, Friedrich Schiller, Lord Byron, Alfred de Musset aos escritores de ficção gótica. Romances voltados para o medo surgem no contexto dos debates em torno do romantismo e a eles se filiam na proposta de uma literatura voltada para o efeito de terror inscrita no horizonte de disputa entre formas antigas e novas. Se o sentimento de horror não é exatamente um elemento inédito nas artes – considere-se, a título de exemplo, sua presença na tragédia antiga –, a novidade reside, aparentemente, no horror como fonte de deleite estético intenso atrelado ao refinamento do gosto e às novas demandas de consumo literário atribuídas ao desenvolvimento burguês. As diferentes formas de promoção do horror que marcam a produção literária a partir da segunda metade do século XVIII aparecem como elementoschave de uma nova educação estética que explora o apelo sentimental buscando a beleza pelo seu avesso, na mesma medida em que cultua a razão ao representar os supostos espaços onde ela falharia. No fim, a evocação técnica do horror encenará o triunfo de uma racionalidade objetiva que transforma o medo em mercadoria de consumo literário. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 115 116 STEVENS, George Alexander. The Adventures of a Speculist. (Apud CLERY, E.J., op. cit., p. 49). CLERY, E.J., op. cit., p. 49. ! ! 60! 1.4. Variações em torno do horror e do fantástico O artigo “Du fantastique en littérature”, de Charles Nodier, foi um dos primeiros a tratar especificamente do fantástico literário como uma necessidade diante do desgastante racionalismo da civilização. Segundo o escritor francês, a literatura teria por muito tempo se resumido à expressão banal de sensações, e o apelo fantástico seria uma resposta do pensamento, que teria se elevado do conhecido ao desconhecido. A inteligência humana seria articulada por três operações sucessivas: a que deu origem ao mundo material, a genialidade divinamente inspirada que supôs o mundo espiritual e a imaginação que criara o mundo fantástico. O poeta deveria se situar no segundo estágio, região intermediária entre o fantástico e o ideal, para que a literatura vencesse seu empobrecimento e suprisse a necessidade humana por fantasia.117 O texto converte-se em uma defesa do fantástico na medida em que o entende como uma forma mais ampla de inteligência cuja função seria iluminar o mundo material, possibilitando novas e múltiplas descobertas que a simples observação do mundo empírico não permitiria. Nodier defende o romantismo e o fantástico como expressões inevitáveis dos períodos extremos da vida política das nações no século XIX, manifestações capazes de salvaguardar o instinto moral e intelectual da humanidade.118 No entanto, Charles Nodier não foi o primeiro a associar a literatura de caráter fantástico à necessidade histórica dos conturbados momentos revolucionários na Europa. O Marquês de Sade, no prefácio de seu Les Crimes de l'amour, publicado em 1799, intitulado “Idées sur les romans”, comenta: Peut-être devrions-nous analyser ici ces romans nouveaux, dont le sortilège et la fantasmagorie composent à peu près tout le mérite, en plaçant à leur tête le Moine, supérieur, sous tous les rapports, aux bizarres élans de la brillante imagination de Radcliffe; mais cette dissertation serait trop longue; convenons seulement que ce genre, quoi qu'on en puisse dire, n'est assurément pas sans mérite; il devenait le fruit indispensable des secousses révolutionnaires dont l'Europe entière se ressentait. Pour qui connaissait tous les malheurs dont les méchants peuvent accabler les hommes, le roman devenait aussi difficile à faire que monotone à lire; il n'y avait point d'individu qui n'eût plus éprouvé d'infortunes en quatre ou cinq ans, que n'en pouvait peindre en un siècle le plus fameux romancier de la littérature; il fallait donc appeler l'enfer à son secours, pour se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 117 118 NODIER, Charles. Contes fantastiques. Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1957, p. 81. NODIER, Charles, op.cit., p.85. ! ! 61! composer des titres à l'intérêt, et trouver dans le pays des chimères, ce qu'on savait couramment en ne fouillant que 119 l'histoire de l'homme dans cet âge de fer. Nas palavras de Sade, o romance gótico é associado à lógica das revoluções políticas. Não é difícil estabelecer relações entre esse tipo de imaginação literária e a Revolução Francesa, por exemplo. Considerando os textos ficcionais de Sade e seus muitos pontos de contato com o chamado romance noir, é possível perceber um apelo à liberdade que, guardadas as devidas proporções, pode ser comparado ao clamor dos revolucionários pelas ruas de Paris. O horror é outro ponto comum em suas análises dos relatos históricos sobre as lutas revolucionárias: “Muitas vezes encontramos cenas dignas dos mais pérfidos contos de horror. Execuções em massa, fuzilamentos, afogamentos; e a guilhotina, a ‘santa guilhotina’, como preferiam alguns, emblema por excelência do Terror.” 120 . Apesar do cuidado para não estabelecer relações muito diretas entre os processos revolucionários e as práticas ficcionais, o argumento não deixa de ser válido. O caos estabelecido teria resultado em fatos tão objetivamente terríveis que demandou do esforço imaginativo uma ida aos infernos para superar o horror da realidade histórica.121 No mesmo ano de publicação do texto de Charles Nodier, foi lançada uma versão francesa do artigo “On the Supernatural on Fictitious Composition; and Particularly on the Works of Theodore William Hoffmann”, de Walter Scott122. Nele o escritor escocês afirma que o uso literário do sobrenatural, mais do que qualquer outra forma de ficção romântica, seria a maneira mais poderosa e fácil de excitação dos sentimentos. Segundo ele, trata-se de um fenômeno popular: “It is common to all classes of mankind, and perhaps is none so familiar as to those who assume a certain degree on the subject.” 123 . Justamente pela facilidade para atrair a atenção do leitor, o sobrenatural deveria ser usado com cuidado, com certa delicadeza e respeito por determinado padrão de bom gosto. Analisando referências que vão de passagens bíblicas às fábulas dos irmãos Grimm, a Shakespeare, John Milton e John Collins, Scott conclui que existe um uso aceitável do sobrenatural expresso na capacidade !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 119 SADE, D.A.F. Idées sur le romans. Paris: Édouard Rouveyre, 1878, p. 32 MORAES, Eliane Robert. Sade: a felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 74. 121 A obra de Sade e sua relação com o gótico será analisada mais detidamente no segundo capítulo, quando for comparada à obra de Álvares de Azevedo. 122 Publicado originalmente em 1827 na Foreign Quaterly Review. 123 SCOTT, Walter. On the supernatural on fictitious composition; and particularly on the works of Theodore William Hoffmann. Disponível em <http://migre.me/hyCu4>. Acesso em: 24 mar. 2014. 120 ! ! 62! desses autores de dosar o componente maravilhoso para que ele não perca seu efeito; e um uso exagerado, que ele identifica no gênero fantástico representado por Hoffmann. Para Scott, o fantástico é uma forma perversa de uso da imaginação na qual se recorre, indiscriminadamente, a toda sorte de combinação, ridícula ou chocante. O fantástico é tratado como irregular e extravagante, contrário ao bom senso. Os textos de Hoffmann são tidos como fruto de uma mente perturbada cuja propensão ao mórbido não seria sadia. Apesar de reconhecer seu talento, o crítico enxerga nos exageros fantásticos do escritor alemão as marcas de uma injustificável bizarrice grotesca. Os defeitos das obras são apontados como agressivos ao bom gosto, critério mais relevante do que a precisão, moderação ou respeito às normas. Walter Scott investe contra o tipo de produção literária que representa o mundo pela óptica do grotesco; ele resiste ao uso do sobrenatural como forma de exploração de um mundo governado pelo irracional que dramatiza uma modernidade sinistra. Uma das análises clássicas dos aspectos perturbadores da obra de Hoffmann é o ensaio “O inquietante”, de Sigmund Freud, publicado em 1919, no qual aponta a dificuldade de tradução do termo “unheimlich” (do título original Das Unheimliche). Freud afirma ter como ponto de partida o conceito de “inquietante”, do psicólogo alemão Ernst Jentsch.124 Usado para interpretar o conto “O homem da areia”, o termo polissêmico se refere “ao que é terrível, ao que desperta angústia e terror”.125 Depois de fazer uma pequena genealogia do conceito, conclui que este se opõe ao que é familiar, amável, confiável, e se aplica, ainda, ao que deveria ser mantido em segredo mas foi revelado: “Nossa atenção é atraída, de outro lado, por uma observação de Schelling sobre algo inteiramente novo, para nós inesperado. Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu126. Partindo da questão dos autômatos e da inquietação gerada pela presença de seres animados privados de vida, Freud busca perscrutar a experiência angustiante relacionando-a a profundas dimensões psicológicas. Se as possíveis traduções não dão conta efetivamente da amplitude do termo em alemão, a leitura freudiana de Hoffmann busca ressaltar o perturbador, lúgubre, sinistro e por vezes macabro de seus contos, não só no que tange às cenas como também ao que se refere à !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 124 Optamos por adotar a tradução de Paulo César de Souza feita diretamente do original alemão para a edição de 2009 das obras completas de Sigmund Freud da Companhia das Letras. Na primeira edição em português, feita de uma versão em inglês e publicada pela Imago, o termo é traduzido como “estranho”. 125 FREUD, Sigmund. O inquietante. In: História de uma neurose infantil (O homem dos lobos); Além do princípio do prazer e outras histórias: 1917-1920. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 248. (Obras completas de Sigmund Freud, vol. 14.) 126 FREUD, Sigmund. O inquietante, op. cit., p. 254. ! ! 63! experiência de leitura. O narrador de “O homem da areia” despertaria inicialmente no leitor um grau de incerteza entre a expectativa de entrada em um mundo real ou fantástico para enfim, segundo Freud, ser conduzido “ao jogo cruel de potências obscuras” a que o protagonista é submetido. A complexidade da narrativa impediria conclusões imediatas dos eventos como fantasias motivadas pela loucura, e o leitor então experimentaria os mesmos horrores que Nathanael. Isso porque, ainda segundo Freud, a produção do “inquietante” literário depende da relação estabelecida com situações reais. Quando os mundos fabricados lançam mão de elementos deliberadamente fantásticos, o efeito de medo não se dá, pois o entendimento claro dos pressupostos de determinada realidade poética elimina o estranhamento pela compreensão dos códigos. “As almas do inferno de Dante ou os espíritos que aparecem em Hamlet, Macbeth ou Júlio César, de Shakespeare, podem ser lúgubres e terríveis, mas não são mais inquietantes, afinal, do que o mundo jovial dos deuses de Homero, por exemplo.”127. Nesses casos, o julgamento se adéqua aos pressupostos da “realidade fingida”, o que leva o leitor a tratar os elementos fantasiosos como legítimos dentro do contexto. Quando a ficção se situa no âmbito da “realidade comum” ela passa a partilhar com o leitor “a gênese da sensação inquietante nas vivências reais”, e é permitido ao escritor potencializar o efeito para além das possibilidades da realidade concreta: “Nós reagimos a suas ficções tal como reagiríamos a nossas próprias vivências; ao notarmos o engano, é tarde demais, o autor atingiu seu propósito, mas afirmo que não alcançou pleno êxito”128. Restaria então a frustração da incompletude que pode ser atenuada pelo suspense em revelar a lógica do drama. Retardando ao máximo a demonstração dos pressupostos do universo criado, o escritor potencializaria o efeito perturbador, inquietante. O crítico ressalta que o efeito emocional independe do assunto escolhido, pois é a forma de organização dos termos da trama a responsável pela angústia que atinge o leitor. A leitura clínica do texto leva Freud a associar o motivo central, o esforço incessante que persegue Coppelius desde a infância para roubar os olhos de Nathanael, à angústia do complexo infantil de castração. A interpretação psicanalítica permitiu diversas apropriações do texto: como representação do trauma infantil de um personagem vítima de sua obsessão; como imagem psicológica de um artista, de um poeta romântico levado à loucura pelo caráter prosaico da vida; ou como a história de um jovem cujas aspirações de crescimento pessoal são !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 127 128 FREUD, Sigmund. O inquietante, op. cit., p. 277. FREUD, Sigmund. O inquietante, op. cit., p. 278. ! ! 64! sistematicamente frustradas129. Do ponto de vista estritamente literário, destaca-se a presença de temas consagrados pela literatura fantástica: a relação entre seres vivos e autômatos, exemplificada na boneca sedutora criada pelo cientista Coppelius; assim como o ângulo de visão multifocal da narrativa que dá forma aos problemas da personalidade, da consciência e do duplo. A utilização de vários pontos de vista postos em perspectivas abertas e contraditórias, traço marcante dos textos de Hoffmann, garante o aspecto propriamente fantástico da trama e a angústia identificada por Freud. A análise freudiana, ao destacar a construção de determinado efeito psicológico perturbador, ajudou a definir um padrão interpretativo que garantiria a Hoffmann lugar de destaque na dita modernidade do horror. Também para H.P. Lovecraft, o que define uma história fantástica não são simplesmente enredos ou cenas fantasiosas, mas a construção de determinada sensação. O nível emocional que o texto pode atingir é seu melhor juízo de valor: “o único teste do realmente fantástico é apenas este: se ele provoca ou não no leitor um profundo senso de pavor e o contato com potências e esferas desconhecidas.”130. Para Lovecraft, assim como o horror, o fantástico define-se pelo efeito. A quebra nos padrões realistas pode funcionar como estopim do horror: cenas misteriosas e cenários medonhos trazem sempre uma alusão ao inexplicável e ao imprevisível, que geram a hesitação do fantástico. Como dispositivo responsável pela falha na expectativa, o fantástico convoca o desconhecido e faz do estranhamento personagem-chave. Uma história fantástica é normalmente a dramatização de uma probabilidade frustrada, e a sensação, nesse caso, pode ser de espanto ou de apavoramento. Ainda segundo Lovecraft, a suspensão de determinado sentido de realidade requer uma compreensão dos efeitos de real atingidos pela ficção. O fantástico opera graças a um bem-sucedido esforço realista; atua fraturando a apreensão da realidade para oferecer outra possibilidade de formatação narrativa. O solo estável da realidade nunca é completamente dispensado, pois é sobre ele que surge o espectro da fantasia. Nesse sentido não existiria divergência completa entre as formas realistas e fantásticas, pois somente da familiaridade pode surgir a quebra. Para Lovecraft, o fantástico não se estabelece exatamente na estrutura da obra, mas na atmosfera criada no ato da leitura, na impressão específica forjada no leitor diante do texto. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 129 130 As três modalidades interpretativas são enumeradas por Remo Ceserani no supracitado O fantástico. LOVECRAFT, H.P., op. cit., p.18. ! ! 65! Em Introdução à literatura fantástica, Tzvetan Todorov define o fantástico na literatura como o domínio da incerteza. Quando um fenômeno narrado pode ser explicado de duas maneiras, por causas naturais ou por motivações sobrenaturais, gerando hesitação no espectador, o efeito fantástico se manifesta. O mistério rompe a estabilidade do cotidiano conhecido e o ressignifica. “‘Cheguei quase a acreditar’, eis a fórmula definitiva. Tanto a fé absoluta como a incredulidade total nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida.”131 Nessa regra, a relação do leitor com o texto é fundamental. É preciso criar um efeito de crença dúbio, articular uma adesão vacilante aos propósitos do texto. A dúvida do leitor não seria só o ponto de partida, como também o objetivo final da proposta fantástica, e implicaria uma integração do leitor no mundo dos personagens. Essa dúvida se define pela “percepção ambígua que o leitor tem dos acontecimentos narrados”132. Todorov ressalta ainda que não se trata de um leitor em particular, mas de uma “função leitor” inscrita no texto. Nesses termos o fantástico não se resume à narração de um evento extraordinário, mas pressupõe uma atitude do leitor diante do texto. Ainda segundo Todorov, para que o efeito fantástico se realize a leitura não pode ser nem de ordem poética nem alegórica, pois tanto o apego às unidades linguísticas e formais quanto interpretações que façam do sobrenatural, alegoria de certo princípio de realidade, são fatais para a necessária hesitação. Sua linha argumentativa faz referência a um texto clássico de Roger Caillois, Au coeur du fantastique, em que o critico afirma que o fantástico nasce entre duas categorias de imagens infinitas (que recusam toda e qualquer significação) e limitadas (símbolos precisos referenciados pelo dicionário). No espaço incerto entre as duas categorias imagéticas floresce a dúvida em relação ao significado do evento narrado, e nela o sentido vacilante do fantástico, que implicaria necessariamente a suposição de um estranhamento133. Nessa lógica o leitor deve tomar uma atitude diante do texto, fugindo das modalidades interpretativas assinaladas e assumindo o mistério proposto. Porém, ainda segundo Todorov, o efeito fantástico é apenas temporário, dura o tempo da hesitação, e ao final do texto cabe ainda ao leitor optar por uma interpretação que leve em consideração o fato de as “leis da natureza” terem permanecido intactas, configurando o gênero estranho, ou se o texto lança mão de novas regras naturais, o que o caracterizaria como maravilhoso.134 !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 131 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 36. TODOROV, Tzvetan, op. cit., p. 38. 133 CALLOIS, Roger. Au cour du fantastique. Paris: Gallimard, 1965. 134 O crítico entende os dois gêneros como vizinhos. Subdivide-os em estranho puro (quando há total prevalência da explicação racional); fantástico-estranho (quando a expectativa do sobrenatural é desfeita); 132 ! ! ! 66! Como exemplo, ele agrupa na primeira categoria o “sobrenatural explicado” de Ann Radcliffe e Clara Reeve e, no segundo, o “sobrenatural aceito” de Horace Walpole e Gregory Lewis. A obra de Todorov ajudou a promover estudos sobre o fantástico e a trazer para o debate textos como o anteriormente citado Le conte fantastique en France de Nodier à Maupassant, de Pierre George Castex, um dos mais importantes trabalhos publicados na França sobre o tema. Nesse estudo, que tenta analisar toda a produção fantástica francesa do século XIX, é feita uma diferenciação entre a fantasia das histórias tradicionais, dos contos de fadas e das narrações mitológicas e o fantástico propriamente dito. Enquanto no primeiro caso estaria implícita uma transferência mental para outro mundo, absolutamente distante de nossos padrões de realidade, no segundo o mistério invadiria repentinamente os quadros da vida real atingindo estados mórbidos da consciência e projetando angústias e horrores comparáveis aos pesadelos e delírios. Para exemplificar o modelo tradicional, Todorov cita a fórmula “Era uma vez…”, muito utilizada por Perrault em contraposição às cruéis alucinações dramatizadas por Hoffmann, nas quais o insólito se destaca sobre um fundo familiar de realidade.135 No supracitado estudo de Roger Caillois, o conceito de fantástico também aparece diretamente atrelado à ideia de “ruptura”, fenda na racionalidade que, uma vez articulada, resultaria na experiência do “inadmissível”. É identificado ainda como uma aparição inexplicável e quase insuportável do insólito no mundo da realidade; trata-se de uma desorganização de princípios ordeiros supostamente estabelecidos, o “inadmissível” dentro da legalidade rotineira. Há uma aproximação com Castex pela necessidade de preservação de um sentido de realidade cotidiana que dê origem ao fantástico. Remo Ceserani lembra definições do estudioso do surrealismo Louis Vax, que, em obras como L’art et la littérature fantastique e La séduction de l’étrange, teria ampliado as noções de “inadmissível” e “indizível” de Caillois e forjado o conceito de “inexplicável”. Válido para explicar vários textos e fenômenos, o conceito se centraria no conflito entre real e possível, e o “inexplicável” seria resultado de uma realidade que se deixa, então, seduzir pelo fantástico136. Em O grotesco, Wolfgang Kayser constrói a genealogia do conceito de grotesco, atentando para os diferentes significados que ele assume e destacando a relação de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! fantástico-sobrenatural (quando a interpretação sobrenatural prevalece); e maravilhoso puro (quando os acontecimentos sobrenaturais são tratados com naturalidade e não levam a nenhuma reação em particular). 135 CASTEX, Pierre Georges, op. cit., p. 8. 136 CESERANI, Remo, op. cit., p. 47. ! ! 67! estranhamento que estabelece com a realidade. O conjunto das obras analisadas inclui produções de diversas áreas, do Dom Quixote, de Cervantes, aos contos de Hoffmann, até as artes plásticas, como a análise de As Meninas, de Velázquez. Observando diferentes apropriações – por exemplo, o uso que Vitor Hugo fizera, no clássico prefácio de Cromwell, para contrapor aspectos da estética clássica e da romântica –, Kayser tenta mapear a amplitude e a abrangência da chamada estética grotesca. Concentra-se, no entanto, em dois grandes recortes: o romantismo e o surrealismo, ainda que identifique resistências por parte dos surrealistas em adotar o grotesco propriamente dito em nome de uma “realidade mais elevada de certas formas de associação” ou da futura “solução de aparente contradição entre sonho e realidade em uma espécie de realidade absoluta, a surrealidade”137. Tentando determinar a “natureza” do grotesco, aponta para três domínios: o processo criativo; a obra; e a recepção. Em sua argumentação, o grotesco só se realiza na recepção, na experiência com o objeto, no jogo de sensações detonado pelo estranhamento. Ele é da ordem da monstruosidade, da estranheza, do sinistro, o que inclui animais, plantas e objetos. O inanimado que ganha vida e os corpos que a perdem são personagens privilegiados. É ainda particularmente grotesca a loucura, entendida “como se um id, um espírito estranho, inumano, se houvesse introduzido na alma”138. O grotesco é o mundo tornado estranho, transformado subitamente, e para que este se manifeste é necessário que o familiar e conhecido se revele, de repente, estranho e sinistro. São também componentes essenciais do grotesco o repentino e a surpresa. Faz parte de sua “estrutura” que as categorias usuais de percepção da realidade errem, entrem em colapso diante da dissolução contínua. O resultado necessário é a perda de identidade, a desintegração do mundo como certeza, perda de sentido da ordem histórica. Na experiência do grotesco, a angústia de viver sobressai ao medo da morte: “O horror nos assalta, e com tanta força, porque é precisamente o nosso mundo cuja segurança se nos mostra como aparência […] Faz parte da estrutura do grotesco que as categorias de nossa orientação no mundo falhem.”139. A representação do “mundo estranho” não se pretende como mero artifício, encenação de impossibilidades lógicas. O medo atua no limite do conhecido revelando seu mistério potencial. O absurdo não está necessariamente a serviço de alegorias fantásticas desmotivadas, ou motivadas somente pelo desejo de ser para além do mundo físico. A !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 137 KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 141. KAYSER, Wolfgang, op. cit., p. 159. 139 KAYSER, Wolfgang, op. cit., p. 159. 138 ! ! 68! intenção oculta no grotesco é mostrar o mundo como ele efetivamente é, nos termos de Kayser: “A configuração do grotesco é a tentativa de dominar e conjurar o elemento demoníaco do mundo.”140 E ainda revelar o que a realidade guarda de misterioso, dominar forças ocultas trazendo à luz o mundo por trás das aparências. A estética grotesca não se desloca simplesmente do real para o imaginário: ela é a tentativa de aprofundamento em uma dimensão mais profunda de realismo. Acessar além da realidade exige que o esforço de construção poética leve em consideração a reação do leitor. O texto deve atingi-lo para que o ciclo se complete: a literatura grotesca não pode se realizar sem evocar o estranhamento, sem fazer do leitor o elo necessário que encena parte da trama, a revelação de seu sentido. Das várias concepções de grotesco que Kayser aponta, destaca-se a de Edgar Allan Poe. No prefácio ao seu Tales of the Grotesque and Arabesque, o termo é empregado quase como sinônimo de arabesco, da mesma maneira que o fez Walter Scott em seu texto sobre Hoffmann ao comentar que em suas composições o grotesco se assemelha aos arabescos das pinturas quando se empregam monstros disformes, criaturas da fantasia romântica.141 Os termos, no entanto, não possuem a carga negativa que Walter Scott identifica neles. Poe os utiliza para definir o tom das histórias apresentadas e para sugerir um universo de deformação, perda de limites referenciais e confluência do belo e do horrível142. A ideia fica mais bem explicada em uma passagem do conto “The Mask of the Red Death”, publicado originalmente em 1842 na Graham’s Magazine, em que descreve a decoração das salas em que o príncipe italiano Prospero manda fazer para uma festa: He had directed, in great part, the movable embellishments of the seven chambers, upon occasion of this great fete; and it was his own guiding taste which had given character to the masqueraders. Be sure they were grotesque. There were much glare and glitter and piquancy and phantasm – much of what has been seen in “Hernani.” There were arabesque figures with unsuited limbs and appointments. There were delirious fancies such as the madman fashions. There were much of the beautiful, much of the wanton, much of the bizarre, something of the terrible, and not a little of that which might have excited disgust. To and for in the seven chambers stalked, in fact, a multitude of dreams. And these the dreams – writhed in and !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 140 KAYSER, Wolfgang, op. cit., p. 161. SCOTT, Walter. On the Supernatural on fictitious composition; and Particularly on the Works of Theodore William Hoffmann, op. cit., p. 12. 142 Ver nota 73. 141 ! ! 69! about, taking hue from the rooms, and causing the wild music of the orchestra to seem as the echo of their steps.143 A descrição, que Wolfgang Kayser considera “talvez a mais completa e mais certeira definição jamais dada por um escritor à palavra grotesco”144, fala de um cenário bizarro e turbulento onde o fantástico e o onírico se confundem no delírio só permitido aos loucos e capaz de causar nojo em um êxtase de brilho e esplendor. Ficam claros os dois usos do conceito, tanto para descrever situações nas quais a ordem do mundo foi desfeita quanto para categorizar obras literárias nas quais o fantástico se aproxima do horripilante e do terrivelmente inexplicável. Observando o contexto de produção literária dos séculos XVIII e XIX, é difícil identificar gêneros ou subgêneros específicos, tanto para o que pode ser definido como “literatura fantástica” como para o que se pode definir como “literatura de horror”.145 O debate crítico indica mais uma dispersão de uso de dispositivos que orientam e definem a produção literária de acordo com determinadas prerrogativas e efeitos. O “fantástico” aparece mais como uma ferramenta aplicável à ficção como um todo e participa do debate amplo da produção do período, sobretudo no que diz respeito à questão do sublime. O problema que se impõe é a necessidade de reabilitação da imaginação diante do suposto triunfo da racionalidade, na tentativa de redefinição da modernidade literária. A novidade da forma romanesca híbrida abrigada sob a originalidade e a genialidade de Shakespeare organiza um universo disperso trazendo para a cena sob o rótulo gótico discursos que passam a ser identificados como exemplos de fantasia literária. O desenvolvimento do gótico se dá como uma tentativa de ajuste de tom com vistas a uma maior aceitação de público e de crítica. O sucesso de Ann Radcliffe, por exemplo, deixa !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 143 POE, Edgar Allan. The complete works of Edgar Allan Poe. London: Bounty Books, 2004, p.761. KAYSER, Wolfgang, op. cit., p. 75. 145 É relativamente antiga e extensa a discussão teórica em torno da definição ou não do fantástico como um gênero ou subgênero literário. Felipe Furtado, em A construção do fantástico na narrativa, por exemplo, fala em uma “literatura do sobrenatural para designar de forma genérica todas as obras que recorrem à fenomenologia insólita e lhe conferem uma função decisiva no desenrolar da ação”. É a intensidade e a recorrência do fenômeno insólito, que podem se manifestar nas ações, nos personagens, ou nas definições de tempo e espaço, que garantirão o enquadramento de um determinado texto na macrocategoria “sobrenatural”, definida mais tarde como “discursos do metaempírico”, que inclui o fantástico como um modo de enunciação ficcional. Sobre outros debates teóricos acerca das definições do fantástico como gênero ver ainda: ROAS, David (Org.). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001; CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980; JOZEF, Bella. O fantástico e o mistério. In: A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006. Para um resumo dos debates travados ver GARCIA, Flávio. Quando a manifestação do insólito importa para a crítica literária. In: Vertentes teóricas e ficcionais do insólito. Flávio Garcia e Maria Cristina Batalha (Orgs.). Rio de Janeiro: Caetés, 2012. 144 ! ! 70! claro que o gótico não seria simplesmente um segmento, mas um dos fenômenos de maior repercussão na literatura setecentista, de tal forma que estabeleceu critérios de definição do gosto estético e de qualificação da função moral da literatura. Depois de estar no topo do consumo literário em finais do século XVIII, a expansão ocorrida no século XIX ampliou de tal maneira os limites da proposta de Horace Walpole que a definição “gótico” perde força. A premissa da construção do efeito de horror baseada no conceito de sublime será largamente reapropriada em matrizes tão distintas que a categoria se torna insuficiente para explicar a presença do horror na literatura oitocentista, sobretudo quando os cenários sombrios são interiorizados na tentativa de representação total e demoníaca do homem. Quando Baudelaire se refere a Poe como um mestre da modernidade, não o faz para qualificá-lo como uma autoridade em determinado segmento, simplesmente, mas para alçá-lo à posição de mais importante escritor de sua época, gênio da revelação do espectro sombrio que dominaria o mundo. A importância de Poe para o debate literário do século XIX traduz a dispersão do horror na produção ficcional marcada por aproximações e distanciamentos em relação às tendências realistas triunfantes segundo os cânones literários. O horror literário aparece como conciliação da imaginação literária “antiga” com a “moderna” e se desenvolve com as representações da integridade humana redescoberta pela imaginação romântica. Relacionando deleite com apelo afetivo e refinamento estético com experiência do medo, serve às demandas de um mercado literário e tem ainda no horizonte o fortalecimento da solidariedade e a construção da autonomia moral do indivíduo. Antes de configurar um gênero ou subgênero específico, as diferentes formas de fabricação do horror servem como laboratórios da experiência estética; são exercícios de contemplação do mal que, por intermédio da ficção, tratam de um mundo misterioso fabricado pela racionalidade que finge atacar. Os textos analisados até aqui articulam alguns conceitos que marcam a produção ficcional da segunda metade século XVIII e do século XIX. Ao trazer à tona problemas acerca da constituição do romance como gênero, esses textos permitem uma avaliação das tensões que estruturam seu desenvolvimento histórico e apontam para os problemas relativos às formas do horror na literatura brasileira do século XIX. ! ! 71! 2. O horror acadêmico na literatura brasileira 2.1. A modelização literária do terror No prefácio de Macário, Álvares de Azevedo trata a obra como um gênero misto entre prosa e drama, situado entre o “teatro inglês, o teatro espanhol e o teatro grego”. Ressalta a necessidade de ênfase às paixões e propõe um tipo de representação humanamente íntegra que destaque os limites entre alma e instinto, mantendo, no entanto, preservadas as diferenças entre o humano e o animal. Define o texto como um produto desregrado, de inspiração confusa, cuja classificação precisa escaparia: “Chamem-no drama, comédia, dialogismo – não importa.”146 Na trama, baseada no encontro do jovem estudante Macário com Satã, o protagonista é descrito como amante das mulheres e inimigo do romantismo; prefere uma garrafa de vinho a um poema, um beijo ao soneto mais harmonioso. Seu hedonismo, porém, não consegue superar o tédio. “O luar é sempre o mesmo. Esse mundo é monótono a fazer morrer de sono”, afirma categoricamente. O cinismo do personagem fica mais evidente ao tratar do amor, que, comenta com seu interlocutor, só conhecera em sua expressão física; ignorara o sentimento casto e puro das representações românticas. Ao revelar sua origem degenerada, dizendo-se provável filho de uma libertina com um padre ou fidalgo, Macário descobre estar conversando com Satã e se alegra: “A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles.” Aceita sair junto com ele montado numa mula preta, rumo a uma cidade misteriosa descrita como um antro de devassidão. O lugar apresenta os perigos do vício e da monotonia, o tédio que a define é o efeito colateral do cinismo, retrato de uma imaginação melancólica que a poesia já não pode nutrir. Satã funciona como um personagem byroniano, expressão de um tipo soturno e terrível de estética literária com seus sintomas de ceticismo, melancolia e misantropia que marcam a vertente mais negra e macabra do romantismo.147 Na segunda parte do drama, Penseroso entra em cena. O personagem que desafia as ideias de Macário e Satã aparece como figura emblemática da luta contra o ceticismo, da postura mais positiva diante da arte e da vida. Macário comenta que, como George Sand, prefere a poesia áspera de Dante e de Shakespeare aos versos alexandrinos de Sainte-Beuve e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 146 147 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 195, vol. 2. BARBOZA, Onédia C. de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974, p. 270. ! ! 72! Turquety; já Penseroso, mesmo reconhecendo o valor poético da obra do italiano e do inglês, diz tratar-se de “uma poesia terrível”; sente “pena daqueles que se embriagam com o vinho do ceticismo”148. Mais adiante ataca a razão como elemento desencadeador do desespero. Por não permitir a evocação de Deus, sua instabilidade é apontada como origem do mal. “A razão do homem é incerta como a chama desta lâmpada: não a excites muito que se apagará.”149 A dúvida que se abate sobre Macário o faz considerar que a treva do corpo escurece a alma. Relutante, vislumbra a redenção e se ajoelha aos prantos, hora em que percebe o vazio do mundo. Penseroso insiste na beleza e na presença positiva de Deus, as lágrimas do amor seriam bênçãos expressas no aspecto sublime da natureza. Tentando convencer seu interlocutor, afirma que a razão corrói as esperanças: “A descrença é uma doença terrível; destrói com seu bafo corrosivo o aço mais puro: é ela quem faz de Rembrandt um avarento, de Bocage um libertino.”150. A libertinagem é tratada como desdobramento da descrença, mas Macário afirma que o amor, a poesia e a glória não passam de ilusões, e a voluptuosidade é a única força que anima seu corpo na “sede insaciável do gozo”; ele reconhece a descrença como filha bastarda do desespero. O debate existencial atrela-se a considerações estéticas e reflexões sobre as funções e características da poesia. Quando Macário indica um livro a Penseroso, este comenta tratar-se de um “poema frio como um cadáver”, um jogo de imaginação cética que remete à morte da alma, ao que o outro responde: “E o ceticismo não tem a sua poesia? […] O que é a poesia, Penseroso? Não é porventura essa comoção íntima de nossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com tudo que é belo e doloroso?”151. Penseroso, no entanto, recusa-se a louvar a poesia cínica que lhe é apresentada, reluta em abrir mão dos seus padrões de beleza. Crê que o referido poeta é um velho incapaz de se inspirar nas glórias de sua terra e de imaginar positivamente o futuro. O ceticismo impediria a louvação do sublime tornando-se entrave para o progresso, e a ênfase no mal transformaria o drama individual em desligamento do coletivo. Macário se mantém irredutível, e seu cinismo contagia Penseroso, que se mata, descrente em relação ao amor. A morte de Penseroso é também a negação da poesia atrelada a um ideal afirmativo da beleza. O mundo submerge em uma noite apavorantemente vazia que destrói sonhos e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 148 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 264. AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 265. 150 AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p.266. 151 AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p.258. 149 ! ! 73! esperanças. Diante do quadro absurdo, as expectativas de Penseroso parecem delírios inocentes que se desdobram no suicídio. Paradoxalmente, o personagem permanece um idealista. Sua morte provocada pela contaminação das ideias perversas é uma forma de não se curvar à aparente onipotência de Satã e de evitar a mesma vida daquele que o convenceu da falta de sentido desta. O idealismo é parcialmente derrotado pela desintegração racionalista que propõe uma representação humana da perspectiva do horror em escalada e visa denunciar a natureza desmedida do espírito. No final, quando Satã convida Macário a espreitar uma orgia pela janela, o drama é interrompido com o início de Noite na taverna.152 No relato dos crimes que marcam a novela, observa-se o triunfo melancólico do cinismo como forma de revolta contra a finitude de personagens “saudosos da plenitude impossível de si mesmos”153 que vivem a experiência do vazio na perda romântica dos ideais. Os devassos que narram suas histórias macabras negam a edificação da vida ao encenar a pertinência das perspectivas satânicas de Macário. O ceticismo que acompanha o programa desse romantismo negro suscita questões acerca da construção de uma identidade literária brasileira. É bastante conhecida a defesa da filiação da literatura portuguesa com a brasileira que Álvares de Azevedo apresenta em Literatura e civilização em Portugal. Estabelecendo o critério linguístico como essencial, pois segundo seu parecer “sem língua à parte não há literatura à parte”, questiona a proposta nacionalista de Gonçalves Dias indicando que o problema da nacionalidade não poderia se restringir à adoção temática de aspectos locais como expresso na coleção Poesias Americanas. Os poemas poderiam ter tons índicos como em Thalaba, de Robert Southey; ou “perfumes asiáticos”, como em As Orientais, de Victor Hugo ou em Noiva de Abydos, de Byron: que nem por isso perderiam sua nacionalidade literária.154 O problema central seria abdicar de um repertório consagrado sem nenhum ganho aparente. Ao querer se desvincular da matriz portuguesa, a literatura brasileira perderia obras !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 152 No ensaio “A educação pela Noite”, Antonio Candido propõe uma leitura articulada de Macário com Noite na taverna. Segundo o crítico, ambas as narrativas “podem ser vinculadas, formando uma grande modulação ficcional que vai do drama irregular à novela negra”. As obras estariam unidas pelo princípio da educação pela noite, pedagogia que partiria das noções de mistério e trevas para compor um discurso dilacerado cuja finalidade seria o derramamento sentimental característico de um romantismo sombrio. CANDIDO, Antonio. A educação pela Noite e Outros Ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 15. 153 HANSEN, João Adolfo. Forma romântica e psicologismo crítico. In: ALVES, Cilaine. O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia romântica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 1998, p. 14. 154 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 142. ! ! 74! canônicas, relacionadas ao desenvolvimento intelectual do país. Segundo Álvares de Azevedo, a originalidade não seria inimiga da filiação a qualquer tradição constituída, e se a nacionalidade pode estar presente nos quadros de uma linhagem consolidada, a tentativa de separação soaria mesquinha, “polêmica secundária” que pouco contribuiria para o progresso literário. Seria inútil “não querermos derramar nossa mão cheia de joias nesse cofre mais abundante da literatura pátria: por causa de Durão, não podermos chamar Camões nosso!” e sem propósito “resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos de Bocage!”155. A separação das literaturas brasileira e portuguesa é apenas uma digressão ao tema principal tratado por Álvares de Azevedo: o processo de desligamento das literaturas espanhola e portuguesa, tendo em vista os acidentes da civilização e a configuração de línguas diversas. No caso de Brasil e Portugal a língua comum implica na mesma experiência cultural e a presença de escritores e intelectuais brasileiros em terras portuguesas potencializa essa experiência. Segundo Álvares de Azevedo, “com pouca exceção, todos os nossos patrícios que se haviam erguido poetas tinham-se ido inspirar em terra portuguesa, na leitura dos velhos livros e nas grandezas da mãe-pátria”. A importância cultural dos literatos de além-mar não deveria ser desprezada ou sequer diminuída quando se tratasse de estabelecer uma separação literária que, nos argumentos do poeta, soaria arbitrária. A questão da originalidade se sobrepõe ao problema da nacionalidade. No mesmo texto, o autor lamenta os jovens que viram em Shakespeare o símbolo da independência e deixaram de ser clássicos como Eurípides e Sófocles para se tornarem românticos imitando Victor Hugo e Alexandre Dumas. A simples mudança de paradigma não representaria nenhum saldo positivo: “A imitação mata o gênio, a cópia destrói o lampejo da originalidade, seja de um clássico, seja de um romântico.” A defesa da originalidade o leva a criticar a posição de escritores que, abrigados sob a autoridade shakespeariana, teriam abdicado de projetos literários consistentes e se limitado a imitar os trejeitos românticos. O problema não se restringiria ao caso brasileiro: Goethe lamentava-se dos seus imitadores, criticava acerbo o sentimentalismo falso que seu Werther fizera brotar nos romances e o desregrado do drama que seu desordenado, mas belo Goetz de Berlichingen fizera bem-querer. Chateaubriand queixava-se do bronco de expressão, do exagerado de ideias, que sua reação romântica acordara nas escolas do belo horrível, que excederam todo o medonho da ronda de horrores e lascívias !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 155 AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 143. ! ! 75! de Lewis e das mortualhas dramáticas de Mathurin. É que os discípulos, na fascinação da apoteose que erguem ao gênio, no tresladar, no arremedo de suas belezas, imitam-lhe também, e mais que o resto, os defeitos, porque foi no embelezá-los, em escondê-los sob flores, que os mestres envidaram suas forças.156 O comentário sobre Lewis e Maturin faz eco ao problema da definição do gosto na estética do horror que marcou o debate literário na Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX. As chamadas “escolas do belo horrível” estariam baseadas em apropriações exageradas dos elementos românticos. O posicionamento subserviente de escritores menores evidenciaria os erros e os aspectos sinistros das obras tomadas como referência e deixaria expostas as marcas dispersas do horror que a genialidade teria o poder de disfarçar. No prefácio do poema O Conde Lopo, Álvares de Azevedo afirma que a única finalidade da poesia é o belo, “belo material, belo moral; do belo por assim dizer mimoso, até esse belo arrebatador que se chama sublime”157, e este último é seu estágio mais intenso. Assim, o único demérito de uma obra seria não ser bela, independentemente de qualquer aspecto temático ou moral. Como único critério valorativo legítimo, caberia ao leitor julgar segundo os critérios puros de beleza. Cita Byron lembrando o aspecto admirável de poemas como Don Juan. E ressalta: “O fim não torna moral uma obra da qual cada capitulo seja imoral”,158 ou seja, um final supostamente redentor não pode exaurir toda a devassidão anteriormente apresentada. Para Álvares de Azevedo, a exploração literária do mal deve ser assumida com vistas à beleza, E a conclusão é mera contingência que não asseguraria o sentido edificante do texto. “O imoral pode ser belo – as visões nuas do juízo derradeiro de Miguel Ângelo – Antony, Ângela, Thereza, quase todo o teatro enfim, quase todas as obras de Alexandre Dumas são imorais”, […] [no entanto] “Àquela alma de poeta quem negará contudo glórias e louros? Quem poderá não achar belas essas páginas do romancista-rei do século?”159. Salientando a diferença entre o imoral e o torpe, separa do cânone literário poemas menores que se prestariam exclusivamente à corrupção dos valores sem a devida consistência estética. No tocante ao sublime, aproxima-se de Edmund Burke ao considerar o fenômeno um passo adiante do belo: as metáforas ligadas à natureza traduzem o belo como experiência !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 156 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 149. AZEVEDO, Álvares de. O Conde Lopo. Rio de Janeiro: Leuzinger & Filhos, 1886, p. I. 158 AZEVEDO, Álvares de. O Conde Lopo, op. cit., p. V. 159 AZEVEDO, Álvares de. O conde Lopo, op. cit., p. VII. 157 ! ! 76! confortável, e o sublime como violência, perturbação dos sentidos pelo contraste e pela desorganização. Familiar aos debates estéticos que ganham força na Europa no século XVIII, Álvares de Azevedo tenta caracterizar diferentes níveis de revelação e apreciação que orientariam um conceito de literatura construído com base na noção de efeito. As preocupações de Álvares de Azevedo centram-se na originalidade, e a relação com determinada tradição se sobrepõe à abordagem temática em sua perspectiva nacionalizante. Em discurso proferido no dia 11 de agosto de 1849 na sessão acadêmica comemorativa do aniversário de criação dos cursos jurídicos no Brasil, o autor de Noite na taverna trata os estudantes como o futuro e o progresso da civilização brasileira, e os exorta a tomar definitivamente as rédeas da cultura nacional. Grande foi-nos sempre a missão. – E nós houvéramos renegar de todo um passado de ufanias, de um porvir inteiro de vitória das glórias; enjeitar o mar azul aceso dos lumes alvorecidos da esperança, pelo pântano, dormido e tabescente do marasmo e do indiferentismo? A regeneração literária de nossa terra deve sair do meio de nós. Falange do progresso, não há ficarmos imóveis. Como ao Ahasvero da tradição, uma voz nos brada sempre: – Caminha! O gênio é esse sôfrego corsel dos stepps do Mar Negro onde estorcia-se a transudar agonias cruentas o herói do poema de Byron – Away! away! Avante! avante! – Eis o brado das gerações inteiras. E, pois, coragem! Árdua embora a provança – a tarefa é sublimada!160 Além de chamar a atenção do grupo de estudantes para que se perceba como parte fundamental do processo de desenvolvimento das letras, o inflamado discurso questiona o marasmo e a indiferença. Diante de seus pares Álvares de Azevedo é o anti-Macário, como se Ariel se sobrepusesse a Caliban no horizonte da atuação política.161 O personagem cético que perdeu o amor pela poesia por considerá-la vulgar demais, recusando-se a qualquer filiação literária com a sociedade em que vive, é duramente questionado. Se o ceticismo é matéria esteticamente interessante, como postura política é um mal a ser combatido. A comoção pela morte de Álvares de Azevedo, em 1852, revela um pouco de seu destaque na produção literária brasileira. Na época, Joaquim Manoel de Macedo comentou !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 160 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p.18. A contraposição entre Ariel e Caliban é feita por Álvares de Azevedo no segundo prefácio de Lira dos Vinte Anos como forma de evidenciar os dois eixos que orientam a obra, um voltado ao sentimentalismo romântico e outro à sarcástica morbidez satânica. 161 ! ! 77! que ele deixou “como provas do muito que poderia fazer pelas nossas letras alguns belos discursos e grande número de excelentes poesias”; o Brasil perdia “um cidadão dedicado e prestimoso”162 que muito poderia fazer pelo país. Em 1872, em discurso proferido no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Joaquim Norberto de Souza assim se referiu ao falecido autor: “Sua alma ávida de trabalho e de glória ambicionava os louros da poesia, e seu gênio, abrindo as asas de ouro na imensidade, procurava os rastros luminosos de Byron, Dante, Shakespeare… eram eles seus mestres prediletos.”163 O jovem genial aparece como um talento promissor que foi perdido por uma fatalidade e, independentemente dos projetos literários em jogo, era visto como figura-chave da cultura brasileira. Ainda segundo o escritor fluminense, “o jovem poeta que via tudo com olhos de águia, sem ter ainda formado seu gosto, queria o drama com todo o seu aparato romântico, com todas as suas peripécias melodramáticas”. O talento ainda não refinado de Álvares de Azevedo teria convertido o palco “em lago de sangue e as cenas de horror elevadas das raias do possível, já por si repugnantes, ao infinito da exageração”.164 Apesar dos exageros juvenis, tratava-se de uma figura ímpar, responsável pela difusão de um determinado modelo romântico. Noite na taverna, por exemplo, seria notável “pela originalidade de suas extravagantes cenas, uma sequência de narrações monstruosas em que Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius, Hermann e Johann, libertinos que se apaixonam por mulheres perdidas, contam suas histórias românticas”165. Em maio de 1852, Félix Xavier da Cunha escreve no primeiro número do jornal O Acayaba: “Foi um busto que o Brasil perdeu para a galeria das grandes inteligências.” Produzido no âmbito acadêmico, o periódico exalta um escritor que se tornaria referência para jovens poetas e se destacaria, ainda, pela inserção no debate literário. Denominado por seus criadores “jornal científico e literário”, circulou entre 1852 e 1853 e teve como responsáveis o próprio Félix Xavier da Cunha e Quintino Ferreira de Souza, que mais tarde adotaria o sobrenome Bocaiuva. Contribuíram ainda para a publicação mensal Manuel Antonio Duarte de Azevedo e José Fernandes da Costa Pereira. Definida como publicação acadêmica, travava um diálogo muito direto com os estudantes paulistas. A escolha do nome acaiaba, um tipo de planta rasteira, simbolizaria as modestas aspirações dos editores: “Simpatizamos contigo !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 162 163 153. 164 165 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 256, vol. 3. SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Crítica reunida 1850-1892. Porto Alegre: Nova Prova, 2005, p. SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 160. SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 161. ! ! 78! porque teu solo inculto simboliza o nosso pensamento infante, e tuas cândidas flores, este álbum singelo”. O uso da palavra de origem tupi não parece gratuito: sugere filiação ao nacionalismo literário indianista e considera a infância do pensamento brasileiro – dele brotariam somente flores singelas. A planta teria sido “transportada para alheios climas, arrancada do silêncio e solidão em que habitava”, alusão metafórica à origem supostamente exógena da literatura brasileira. Na imagem da acaiaba, o processo de desenvolvimento do jornal e da cultura nacional é representado cautelosamente, como hipótese ainda incipiente perante tradições mais consolidadas. Seria necessário cuidado para que o caminho não degenerasse. “A rasteira acayaba não quer subir tão alto, lá onde as nuvens se estendem em listas alvacentas e rubras: o gelo das alturas lhe secaria a vida.”166 “Literatura pátria”, artigo de Manuel Antonio Duarte de Azevedo publicado em junho de 1852, define literatura como expressão popular: “O estilo é o homem, tinha dito Buffon, e nós diremos a literatura é o povo.” Se a individualidade define a diferença estilística, a capacidade de representar a coletividade define a qualidade e a maturidade do universo poético de uma nação. Critério valorativo preponderante, a capacidade refletiva da produção letrada transforma-se em parâmetro para definição do estágio civilizatório como um todo. A vida da nação atrela-se umbilicalmente à vida literária: “A literatura é sempre o espelho onde ele todo (o povo) se reflete, que tanto mais o representa mais límpido e puro”. À incisiva reflexão segue a constatação: “Nossa literatura está ainda na infância.”167. O artigo se estende até a edição seguinte, na qual defende claramente o indianismo como solução temática: “Negar-se a poesia de natureza indiana do Brasil é o mesmo que negar-se a poesia dos amores de Chactas, ou a do guerreiro Árabe do deserto.” A naturalidade do tema transforma a opção em desdobramento necessário para que não haja assimetria entre a realidade brasileira e suas formas de representação. O indianismo, mais do que uma possibilidade, é tratado como imanente. Na edição de abril de 1853, aniversário de um ano de O Acabaya, o editorial afirma que a iniciativa fora motivada “por um impulso de patriotismo e de amor pelas ciências e pelas letras”. O viés cívico nutre as intenções mesmo que não haja consenso em relação aos sentidos atribuídos à literatura. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 166 167 O Acayaba, São Paulo, p. 1, maio de 1852. AZEVEDO, Manuel Antonio Duarte de. Literatura Pátria. O Acayaba. São Paulo, p. 3, junho de 1852. ! ! 79! Em artigo publicado nas edições de maio e junho do mesmo ano, José Fernandes da Costa Pereira fala do desejo de construir uma literatura nacional em termos um pouco diferentes. “A poesia, ninguém poderá negá-lo, é uma nota desprendida do íntimo peito, um som partido desse instrumento melodioso que existe em nós e que deixa, a cada sopro das paixões, vibrar melancólico ou forte, terno ou sublime.” Mesmo sem estabelecer distinção radical entre a perspectiva poética intimista e a proposta nacionalista, é possível perceber um acento maior no problema da subjetividade. Na segunda parte do texto o posicionamento fica mais claro: “Devemos guardar as vagas lembranças de quimera fagueira ou entregá-la aos corações patrióticos que se designarem a ler nossas linhas? Talvez […] é a resposta que a esta última pergunta nos dá a voz do coração?”168. O patriotismo é representado como esforço de valorização da íntima produção poética dos estudantes, cuja obrigação de assumir papel preponderante na produção poética geraria a necessidade de levar a poesia ao benevolente público patriota. Não há um padrão rígido nos textos ficcionais publicados nos dois anos de existência de O Acayaba. Se em junho de 1853 Leandro Barbosa de Castilho publicou “Conto Americano”, de enredo indianista, cujo primeiro parágrafo descreve em tom de fábula “uma dessas florestas do Brasil gigantescas e belas, que parecem varrer o dossel acinzentado do céu”, eram comuns também contos sinistros como “A noite do bandido”, publicado anonimamente no ano anterior, que narra a história de um casal cuja felicidade é cruelmente interrompida pela ação de um criminoso. O conto traz cenas terríveis, como a do ataque do bandido à filha do casal: “esmigalhando-lhe a tenra cabeça de encontro a um pau”. Mesmo depois de preso, o criminoso se mostra orgulhoso de ao menos ter “passado uma noite ao lado da mulher”. A sugestão de um estupro encerra a narrativa que confronta polos opostos: o encantador e o terrível, o anjo e o demônio, o amor e a violência. Mesmo punida, a perversão parece triunfar, e ao grito raivoso do vilão que propaga seu crime segue-se o silêncio desconfortável diante da crueldade. O horror brutal divide espaço com dramas absurdos. Em “A fada do mistério”, de Félix Xavier da Cunha, o tema é o sofrimento de um jovem que declara seu amor a uma mulher que simplesmente não se comunica com ele. O silêncio cadavérico dela o leva ao desespero e à morte, o que, por sua vez, acaba desencadeando a morte da mulher misteriosa. A atmosfera estranha do conto é bem definida em uma de suas passagens: “Era como uma !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 168 PEREIRA, J. F. C. O Acayaba. São Paulo, p. 2, junho de 1853. ! ! 80! dessas visões dos contos de Hoffmann, como a sombra de Blanca resvalando à furto em noite de Luar.”169 “A confissão de um suicida”, de Leonel de Alencar, conta a triste história de Samuel, que se diz amaldiçoado por seu nascimento ter custado a vida de sua mãe. O fato trágico o leva a uma vida desregrada, perdida no vício, apodrecida nos “lugares pestíferos das orgias”. Enfim, “queria ser como o Trennor, de George Sand”170. Nesse caminho tortuoso, que mais parecia “um delírio de Hoffmann”, confessa a um padre que prostituiu a irmã e matou o pai. Ao final da confissão, decide se matar. As modalidades de exploração do horror que aparecem na publicação variam entre a exposição explícita da violência, a perversão moral, o estranho inexplicável e o desenlace funesto de um homem amaldiçoado. Em todas é possível perceber a centralidade da perspectiva de construção do efeito de horror, como se todo esforço de representação se justificasse pelo sentimento capaz de despertar. A busca pela mesma sensação se percebe em outras publicações. Em O Guaianá – periódico que Nelson Werneck Sodré classifica como estudantil e abolicionista171 –, uma crítica não assinada aos poemas de Pedro Calasans afirma: “Não há verdadeira poesia senão quando existe uma impressão e um sentimento por ela despertado” 172 , o que indica a perspectiva do efeito associado ao trabalho poético. Na mesma edição de julho de 1856 é publicado o conto “A confissão de um moribundo”, de Lindorf F. França, sobre um homem que espalhou tristezas por onde passou. Sua vida é marcada pela devassidão e pelo vício e já no fim dela, moribundo, ele decide confessar. Sobre uma mulher que encontra afirma: “Nunca porém pude conseguir um olhar dessa donzela meiga e vaporosa como um sonho de Hoffmann.” Enquanto narra seus crimes, um “calafrio de morte gelava a fronte do sacerdote” e a “chuva mais estridente rebramava por entre milhares de raios como a grita sussurrante de mil vozes por entre gargalhas do inferno!”173. O tema do homem errante castigado por seus vícios, consagrado pela tradição gótica, é atualizado sem abrir mão dos cenários europeus, e o nome de Hoffmann traduz a estranheza do horror fantástico no contexto da perversão dos valores. Se no plano ficcional a referência aponta para o problema dos desdobramentos de um romantismo em que os modelos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 169 CUNHA. F. X. da. A fada do mistério. O Acayaba, p. 6. São Paulo, maio de 1853. ALENCAR, L. de. A confissão de um suicida. O Acayaba, p. 2. São Paulo, agosto de 1853. 171 SODRÉ. Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 178. 172 O Guaianá, p. 1, São Paulo, julho de 1856. 173 FRANÇA, Lindorf F. A confissão de um moribundo. O Guaianá, p. 3. São Paulo, julho de 1856. 170 ! ! 81! consagrados por Matthew Lewis e Hoffmann parecem se encontrar, do ponto de vista crítico, as questões levantadas no periódico se voltam para o problema da originalidade. O artigo “O que é imitação em literatura”, assinado por Couto de Magalhães, traz a seguinte passagem: “Assim, o fato de adotar-se aquilo que nos grandes escritores é essencial, a arte não é imitar, é conhecer”, pois “tomar o que neles existe em virtude das crenças da nacionalidade a que pertencem é impossível, o que mata e quebra toda força e vigor de uma qualquer composição deste gênero”174. Fica clara uma tensão na relação com a tradição literária. A busca da originalidade na literatura brasileira deveria passar pelo exame do repertório estrangeiro disponível partindo do princípio de que a nacionalidade dos textos não é essencial. Seria preciso conhecer a verdadeira arte literária que transcende o problema local, deixando que a atualização nacional se desse quase naturalmente. A impossibilidade da cópia plena e o esforço de tradução específico separariam os termos “imitar” e “conhecer”, e o segundo seria a chave para o desenvolvimento de uma nação cuja literatura é percebida como incipiente. Dalmo, ou Os mistérios da noite, de Luís Ramos Figueira, apresenta as histórias vividas por um estudante paulista que, apesar da pouca idade, acumula aventuras: “Na cidade misteriosa por excelência é que Dalmo […] ficava sabedor do fio de muitos mistérios.”175 O livro publicado em 1863, dedicado aos estudantes paulistas, é dividido em sete noites e concentra-se na sedução de uma jovem por um cônego imoral. Dalmo é o herói que revela a verdadeira identidade do religioso à jovem. Trata-se de uma das poucas histórias na qual um estudante é representado como virtuoso. Dalmo é o protótipo do acadêmico dotado de valores, “cristão e católico”, filho de mãe zelosa. Os mistérios da noite s um dos poucos textos cujo final traz algum consolo, quando o pecador arrependido consegue o perdão de sua vítima. Pessanha Póvoa, em artigo publicado em seu livro Anos acadêmicos: 1860-1864, diz que Ramos Figueira é um talento feito, e Dalmo, a “palavra de ordem para o romance fantástico”. Os méritos do autor fazem com que o crítico tenha orgulho dos estudantes de São Paulo, pois sua capacidade poética – assim como a de Teodomiro Alves, mesmo considerando Gennesco uma obra ruim, inacabada e pouco original176 –, prova que é preciso valorizar a produção dos jovens e romper com os “maus instintos, que nos fazem ver tudo sem exame, o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1856. 174 MAGALHÃES, Couto de. O que é imitação em literatura. O Guaianá, p. 2, São Paulo, agosto de 175 FIGUEIRA, Luís Ramos. Dalmo ou os mistérios da noite. São Paulo: TYP Literária, 1863, p. VII. Trata-se do romance Gennesco: vida acadêmica, publicado em 1866. 176 ! ! 82! que tem concorrido para a condenação de muitas capacidades acadêmicas”.177 Depois de afirmar que o romance é melhor do que Noite na taverna, assegura que José de Alencar teria orgulho de fazer parte dessa comunidade acadêmica e “apertaria a mão do autor de Dalmo”, assim como Teixeira e Souza lhe abriria seus arquivos e Joaquim Manoel de Macedo teria orgulho da nova safra de prosadores. No livro de Póvoa, composto de artigos com temas variados, ficam claras duas propostas: a primeira é definir o corpo da produção acadêmica paulista como um grupo, para gerar a noção de que os estudantes, mesmo com discrepâncias, formariam uma unidade importante para os rumos políticos e culturais do Brasil. O segundo é a legitimação desse suposto grupo. Ao ressaltar a relevância do que é produzido na academia o autor tenta demarcar um lugar para essa produção. O comentário sobre uma hipotética recepção dos consagrados romancistas brasileiros é bastante eloquente nesse sentido, pois visa inserir a produção acadêmica no conjunto geral da literatura brasileira. Os autores aparecem como a novidade literária, responsáveis por levar adiante a produção ficcional ainda incipiente no Brasil. Essa novidade, baseada nos modelos europeus, estaria em condições de fortalecer a produção cultural nacional com prosa relevante e original. A formação de uma literatura própria do Brasil implica a reprodução de alguns modelos consagrados e o debate em torno dos sentidos atribuídos à ficção. Assim, a exploração do horror literário ganha espaço nas páginas dos jornais. “Dalzo”, texto de Zoroastro Pamplona, publicado no periódico acadêmico Ensaios da Sociedade Brazilia, é tão macabro quanto o texto de Leonel de Alencar. Nele a encenação do horror é o desdobramento de uma brutalidade humanamente estranha. Dalzo é um jovem cavaleiro que encontra um homem que carrega um cadáver e lhe oferece carne humana como alimento. O jovem o mata dizendo: “Morre, monstro! Some-te nas faces negras do inferno!”. Mais tarde Dalzo descobre que seu melhor amigo morrera vítima dos canibais em uma caverna denominada “covil dos lobos humanos”. Atordoado, depois de lutar e matar vários dos habitantes do lugar sombrio, já sem forças, mata-se diante de um estranho que julga ser do bando. Nas “Cartas-romance” – série de textos fictícios que Américo Basílio enviou para o periódico Esboços Literários em 1859 –, histórias atribuídas a uma “preta cega” com mais de um século de vida, relatam-se casos sinistros. Na primeira, “A viúva baioneta”, um estudante perambula por São Paulo e é atormentado pelo espectro de uma mulher que o persegue. E !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 177 PÓVOA, Pessanha. Anos acadêmicos: 1860-1864. Rio de Janeiro: Typographia Esperança, 1870, p. 15. ! ! ! 83! cuja descrição enfatiza seu aspecto físico medonho como um “fantástico espetáculo”. “Era um corpo sem vida, que estava ali, como arrancado da sepultura, e animado por um espírito estranho e misterioso.”178 Na segunda narrativa, uma jovem é enfeitiçada pela música macabra de um músico alemão. O galvanismo – ciência que defendia a possibilidade de reanimar partes de corpos por meio de impulsos elétricos e que serve de mote para o romance Frankenstein, de Mary Shelley – é citado várias vezes, mas a moça é acordada pelo canto de um pássaro. Quando o protagonista a vê pela primeira vez, em estado cadavérico, afirma: “Vendo-me no escuro, um terror subitamente apoderou-se de mim, e com tal intensidade que fui obrigado a sair […] Estava nervoso e perturbado como um pobre sineiro que se vê, de noite, às escuras no alto de uma torre.”179 “O estudante e os Monges”, texto de Couto de Magalhães publicado na Revista da Academia de São Paulo, em 1º de abril de 1859. O conto se passa nos domínios do Mosteiro de São Bento onde um manuscrito com histórias sinistras é encontrado por Antônio, estudante que narra aos amigos o que leu. As primeiras linhas afirmam: “Demônios vagueiam pelo mundo e não há quem o possa negar. Se não tomam hoje a forma de morcego, de cão tinhoso, ou de bode […] nem poderei dizer”. Em seguida, narra-se uma orgia sexual protagonizada por um estudante e vários monges na qual “Satanás toma a forma de homens devotados a Deus” 180 . A comparação com o romance de Matthew Lewis é inevitável, apesar de o personagem principal ser definido com base em outra referência, quando um dos ouvintes afirma: “És mesmo um esdrúxulo a gosto de Hoffmann, meu caro Antônio!”181 No conto, o hábito de contar histórias é tratado como uma opção ao tédio. Se “na Europa as comodidades da civilização, o luxo, os mil divertimentos, absorvem o resto do tempo que não é empregado nos livros”, no Brasil ocorreria o inverso. Afinal, “o spleen tão bem caracterizado pela palavra cinismo obriga-nos a fazer da conversação um elemento da vida moral e a buscar nela a compensação de outros divertimentos”182. Em 1861 é publicado no Fórum Literário – jornal acadêmico comandado por Macedo Soares, Zoroastro Pamplona e Américo Lobo – o “Conto fantástico”, de Américo !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 178 BASÍLIO, Américo. Cartas-romance. Esboços Literários, p. 4. São Paulo, março de 1859. BASÍLIO, Américo, op. cit., p. 14. 180 MAGALHÃES, Couto de. O estudante e os monges. Revista da Academia de São Paulo: Jornal Scientífico Jurídico e Histórico, p.16. São Paulo, 1º de abril de 1859. 181 MAGALHÃES, Couto de, op. cit., p. 8. 182 MAGALHÃES, Couto de, op. cit., p. 16. 179 ! ! 84! Lobo. Nele o protagonista tem sua fazenda amaldiçoada por uma escrava feiticeira que o acusa de ter matado seu filho, de quem ele era senhor. A ambientação sinistra de toda a narrativa promove o clima de mistério e pavor que permeia a história até o seu fim quando o protagonista consegue se livrar da feiticeira, que deixa um lastro de destruição. A cena final é marcada pela presença de um animal sinistro que circunda os cadáveres dos escravos e desaparece “para sempre no acaso, soltando três pios medonhos”. O Correio Paulistano, ainda que não fosse um jornal acadêmico, publicou alguns contos escritos por estudantes e classificados como fantásticos. Em “Leonel, o Trovador”, de Guimarães Júnior, publicado em 1862 em uma série denominada Contos à Tardinha, o protagonista se apaixona por uma jovem condessa que morre misteriosamente. No dia do enterro, ele se joga no caixão e beija o cadáver. O elemento fantástico reside no fato de Leonel ter conseguido por alguns instantes ressuscitar a jovem para logo morrer junto a ela. A trágica cena dos dois amantes mortos alude a Romeu e Julieta, mas as artimanhas do destino são substituídas por um mistério não resolvido; não são explicados nem o último suspiro tardio da condessa nem a morte repentina do rapaz. A narrativa é encerrada com um enigma: ao vasculhar a antiga casa da condessa, depara-se somente com escombros e “sob as ruínas um esqueleto de mulher”. Na chave do horror fantástico, destaca-se ainda Ruínas da Glória, de Fagundes Varela, história macabra narrada em uma caverna que trata mais de eventos sobrenaturais do que de amores perdidos e vidas desregradas. O protagonista conta que, após uma noite de bebedeira, ele e mais dois amigos decidem explorar as ruínas da Glória. A noite fria de tempestade trouxe surpresas funestas que levou um deles à loucura e o outro à morte. O desejo por aventuras sinistras teria sido motivado pela literatura. Segundo ele, “líamos nesse tempo fervorosamente todas as obras sombrias exaltadas que aviventam a imaginação e povoam a alma de quimeras e sonhos irrealizáveis”183. Do mesmo autor também foi publicado em 1861 o texto “As bruxas”, sobre mulheres fantásticas que seduziam marinheiros e cujo perfume “voluptuoso e sensual” os fariam “mudos, silenciosos, como os fantasmas de Anna Radcliffe”184. Ainda sob a classificação de “conto fantástico”, em 1862 são publicados “Perjura”, de João Correa de Moraes, e “Três Fadas”, sem indicação autoral. O primeiro narra a triste e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 183 VARELA, Fagundes. Ruínas da Glória. Correio Paulistano, p. 2. São Paulo, 13 de outubro de 1861. VARELA, Fagundes. As Bruxas. In: O fantástico brasileiro: contos esquecidos. Maria Cristina Batalha. (Org.). Rio de Janeiro: Caetés, 2011, p. 56. 184 ! ! 85! tipicamente romântica sina de um jovem cujo ceticismo o levou ao suicídio, mas sua alma é salva por um anjo. O segundo é uma fábula sobre três fadas constantemente insatisfeitas que são transformadas em homens. Um pequeno conto intitulado “Phantasmagoria”, publicado em 1863, traz o sonho terrível de um homem que adormece lendo Lucíola e é assombrado “pelo espectro de um gigante fantástico” enquanto passeia pelo Bairro da Luz, em São Paulo. A trama assinada apenas por R. justapõe as belezas do Jardim Botânico paulista com imagens aterrorizantes de uma tarde estranha em que “o terror chegou a um ponto indescritível!”185. O texto evoca a figura do “leitor romântico”, levado a lembrar as belezas da cidade. O jogo de oposições que configura o fantástico pressupõe uma descrição romantizada do ambiente para posterior inserção dos elementos sinistros, e o leitor classificado como romântico é inserido na trama por força dessa categorização; sua imaginação é evocada para ir do belo singelo ao sublime terrífico e inexplicável até a revelação do sonho. O sentido fantástico dos contos pode ser analisado da perspectiva de um texto publicado no Diário de S. Paulo em 1867. O colunista Errig Vamol diz: “O folhetim, como o drama e o romance, vive do ideal e do fantástico; o que é real pertence à gazetilha, rapariga bisbilhoteira da raça dos faladores da vida alheia.”186. O fantástico pertence ao domínio da imaginação e do inverossímil. Tanto na fala do comentarista quanto nos contos analisados, o termo “fantástico” serve para definir um espaço de estranhamento de uma ficção que não se presta aos juízos da realidade nem pretende corrigi-la. Sempre que o termo aparece – muitas vezes como subtítulo – identifica um tipo de narrativa comprometida com a construção de um efeito, deixando de lado os parâmetros de representação da realidade em nome da busca quase exclusiva da sensação. É a marca de um tipo de fabulação que apela tanto ao exagero da brutalidade quanto ao mistério do inexplicável para transformar o inverossímil em elogio da imaginação. A fantasia que toma Hoffmann como inspiração dramatiza sua própria potencialidade para enfatizar seu desapego à realidade como triunfo da ficção sobre o relato. O desenvolvimento de uma ficção fantástica não era consenso entre os acadêmicos. Um artigo de Macedo Soares publicado em 1861 no Forum Literário revela algumas tensões. Intitulado “Da literatura byroniana”, trata dos desdobramentos do horror literário em suas filiações com Byron e Goethe. Afirmando que seus heróis seriam “filhos legítimos de Werther”, comenta o horror nas definições de Victor Hugo: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 185 186 R. Phantasmagoria. Correio Paulistano, p. 3, São Paulo, outubro de 1863. Diário de S. Paulo, p. 1, 17 de março de 1867. ! ! 86! Há figuras feias que inspiram compaixão ou desprezo, outras não causam senão horror ou asco. As primeiras ou são grotescas e fazem a vida da comédia; ou sérias, e entram com todo direito no drama. As segundas são hediondas, o seu aspecto pode irritar o nervo dos espectadores; mas não confundamos o fenômeno fisiológico com o psicológico, não é essa emoção que a arte incumbe promover. Do grotesco fundiram Shakespeare e Molière tipos eternos e inimitáveis, do horrível criou Victor Hugo Hans da Islândia, Byron o Werner e Lewis o monge. O grotesco é essencial na comédia, porém no drama não vejo que seja um elemento indispensável, uma condição sine qua. Toda teoria do prefácio de Cromwell podia ser resumida nesta fórmula: o feio, o grotesco ou o horrível é um elemento negativo do belo, produzindo uma ação positiva pela antítese.187 A leitura dos pressupostos românticos legitima o uso do horrível em determinadas situações, mas indica também o risco do efeito hediondo. Imprescindível na comédia, possível no drama, o grotesco se estabelece como o oposto necessário à beleza. É o lado obscuro da representação íntegra da humanidade nos parâmetros modernos. No entanto, seu uso exagerado não se justificaria, dado o risco de irritar o espectador ou o leitor. O uso indiscriminado do horrível poderia confundir emoção com perturbação fisiológica; prazer com distúrbio. O equilíbrio de seu uso tem como objetivo a interferência emotiva saudável entre empatia e representação. Novamente o problema do horror se enquadra na dinâmica de um medo que ultrapassa os limites da ficção. Assim como romances góticos pareciam perigosos pelo fantasma da superstição, o horror defendido por Victor Hugo é visto como possível fonte de males psicológicos. A hipótese do risco fica ainda mais evidente quando Macedo Soares comenta a circulação de Hoffmann entre os literatos brasileiros. “Também Hoffmann tem feito escola e apadrinhado com seu nome ilustre os desvarios dos cérebros doentios da época. Não se vê aí uma lamentável perversão das ideias, do gosto e do sentimento estético?”188 O comentário lembra muito as acusações feitas por Walter Scott ao escritor alemão. A questão do gosto é retomada, e o uso indiscriminado do grotesco é visto também como fonte de degeneração. No mesmo texto Macedo Soares critica determinada apropriação de Shakespeare: “Tem se pretendido uma escola com o nome de escola shakespeariana, isto é, escola de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 187 188 SOARES, Macedo. Da literatura byroniana. Fórum Literário, p. 4, São Paulo, 3 de agosto de 1861. SOARES, Macedo, op. cit., p. 4. ! ! 87! fantasia exagerada, da extravagância e do paradoxo em matéria de arte.” Para o crítico, o modelo de representação baseado na apropriação romântica do dramaturgo inglês falha ao considerar como objeto a totalidade da natureza, pois cabe à arte ignorar as imperfeições desta e privilegiar exclusivamente a beleza. Macedo Soares não é o único a criticar a chamada escola shakespeariana. Fagundes Varela, em texto intitulado “Drama Moderno” publicado em 1869 na Revista Dramática comenta: As fúrias, os punhais, as taças de sangue, os sonhos pavorosos são extravagâncias e patacoadas que só comovem as crianças, assim como os colóquios amorosos à sombra dos salgueiros, as promessas de eterna fidelidade e constância podem apenas impressionar alguma inocente pensionista de colégio, ou tímido aluno de seminário. […] Nosso século quer a expressão fiel de suas paixões, a representação exata de suas amargas peripécias: para ele o Othelo é uma hipérbole ridícula.189 O comentário soa estranho se considerarmos que seu autor alguns anos antes publicara contos com muitos dos elementos condenados. A diferença de perspectiva pode indicar um olhar específico para o drama ou uma mudança de concepção literária. A primeira hipótese é menos plausível, pois os comentários não parecem restritivos a um gênero específico; quando Fagundes Varela fala de um desejo do século, fica clara a proposição de que a representação deve se voltar para a fidelidade das paixões de maneira ampla. A mudança de opinião é mais plausível, mas de qualquer forma, é preciso considerar a possibilidade de distanciamento entre proposições teóricas e realizações literárias. Independentemente da coerência dos argumentos, Fagundes Varela encampa uma crítica ao romantismo de base shakespeariana e – como Gottsched fizera na Alemanha – o considera pouco racional, cheio de equívocos e exageros. Com isso, modelos consagrados pela estética gótica são criticados como risco ao bom gosto, interessantes apenas para sensibilidades infantis. O problema do progresso da literatura nacional não sai do horizonte das publicações acadêmicas, que aglutinam propostas literárias diferentes e oferecem possibilidades divergentes de contato com uma tradição idealizada. Entre a busca da comoção pelo efeito do horror no qual a moral é secundária e a construção é edificante de um sentido de nacionalidade, ceticismo moral e otimismo nacionalista convivem medindo forças. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 189 VARELA, Fagundes. Drama moderno. Revista Dramática, p. 2. São Paulo, 6 de maio de 1869. ! ! 88! Em 1859, Couto de Magalhães, figura destacadamente nacionalista190, publica o texto “Destino das Letras no Brasil”, na Revista Acadêmica de São Paulo, em que lamenta o ceticismo dos poetas. O cinismo que dominaria boa parte dos jovens faria da sociedade o reflexo de personagens como Fausto e Werther, assim como das criações de Byron e Musset. Os traços seriam mais evidentes em São Paulo, e Álvares de Azevedo seria a manifestação mais perfeita, exemplo da tristeza de uma geração assolada pelo tédio. Analisando a atuação político-literária da juventude afirma: “O Brasil hoje está dividido em duas grandes frações; a mais numerosa é a dos que descreem do futuro e por desânimo abandonam as letras, e a segunda é a dos que esperam, trabalham e lutam pela causa do progresso da civilização.”191 A influência de Byron e do ceticismo romântico extrapola os limites da literatura. O efeito degenerativo não se aplicaria somente aos exageros do horror e do grotesco enquanto dispositivos literários. O problema se amplia para a atuação no campo cultural. Personagens como Macário não são condenados exclusivamente pela diretriz ficcional, mas são tratados como representações de uma geração desgastada pela falta de esperança. O posicionamento desses escritores é tratado como apologia do imobilismo diante da constatação da impossibilidade de erigir um edifício letrado sobre bases tão assustadoramente céticas. Ainda que Álvares de Azevedo seja extremamente engajado no esforço de construção de uma literatura pátria, sua atuação não inspira outros nomes de sua geração. Mesmo considerado um busto à inteligência nacional, seu projeto não parece ter força suficiente para despertar o surgimento de propostas alternativas ao romantismo tematicamente nacionalista192. Na edição do Forum Literário de agosto de 1861, Macedo Soares, no texto “Tendências novas”, comenta que O Guarani, de José de Alencar, teria sido o ponto decisivo de derrocada do modelo romântico de matriz byroniana. O romance evidenciaria os limites do !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 190 Sobre a atuação de Couto de Magalhães como artífice da nacionalidade brasileira, ver Um Mitógrafo no Império: A Construção dos Mitos Nacionalistas na História do Império, de Maria Helena Machado. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV, 2000. 191 Magalhães, Couto de. Destino das Letras no Brasil. Revista da Academia de São Paulo, p. 4, 1º de abril de 1859. 192 O objetivo aqui não é dar conta do problema do nacionalismo literário, apenas destacar sua relação com outros modelos literários presentes nos periódicos paulistas de meados do século XIX. Sobre a questão em si ver: MOREIRA LEITE, Dante. Romantismo e Nacionalismo. In: O amor romântico e outros temas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979; PERRONE-MOISÉS, Leila. Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; RICÚPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nação no Brasil: 1830-1870. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 2004; ROUANET, Maria Helena. Deitado em berço esplêndido. São Paulo: Siciliano, 1991; SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2000; WEBER, João Ernesto. A nação e o paraíso: a construção da ‘nacionalidade na historiografia literária brasileira. Florianópolis: Editora da UFSC, 1997; BAPTISTA, Abel Barros. O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2005. ! ! 89! “círculo acanhado” do byronismo e o abalaria profundamente ao revelar o universo de possibilidades da poesia brasileira. 193 O triunfo é tratado como a vitória das questões nacionais apresentadas nas famosas cartas sobre a Confederação dos Tamoios. Os comentários críticos de José de Alencar à obra de Gonçalves de Magalhães, além de promover o debate em relação aos tons assumidos pelo nacionalismo literário, teriam ajudado o romancista a criar um direcionamento parcialmente realizado em O Guarani. Em sua crítica a Lira dos vinte anos, publicada em 1866, Machado de Assis parece concordar com Macedo Soares: reconhece o talento e a influência de Álvares de Azevedo sobre sua geração, mas trata o ceticismo como águas passadas. Comenta a irregularidade da prosa de Azevedo: “Ensaiou-se na prosa muito, mas sua prosa não é igual ao seu verso. Era frequentemente difuso e confuso, faltavam-lhe precisão e concisão […] procurava abundância e caía no excesso.”194 A crítica se expande para a produção romântica como um todo, que teria apresentado ao público brasileiro “uma longa série de obras monstruosas, criações informes, sem nexo, sem arte, sem gosto, nuvens negras que escurecem desde logo a aurora da revolução romântica”.195 De maneira geral, é possível perceber um movimento da crítica – também de muitos acadêmicos – para classificar a produção literária dos periódicos como um fenômeno de juventude, trabalhos imaturos de uma geração que precisaria encontrar voz própria. A filiação ao romantismo de Byron, Musset e Hoffmann redundaria em uma literatura pouco original, exageradamente imaginativa e por vezes de mau gosto. Ainda que Álvares de Azevedo, por exemplo, seja alçado à condição de gênio, sua obra é frequentemente lida como a expressão do potencial não realizado de si mesma. Ferdinand Wolf, em sua obra O Brasil literário: história da literatura brasileira, publicada em 1863, entende, por exemplo, que os textos de Américo Basílio não passariam de “caricaturas fantásticas à Hoffmann”. As primeiras produções ficcionais brasileiras, sobretudo as vinculadas em periódicos acadêmicos paulistas, são classificadas como “pseudorromânticas” ultrapassadas, fruto de um tipo desregrado de imaginação. É preciso dizer, no entanto, que aparece ainda um grande número de produções semelhantes, nas revistas literárias e nos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 193 SOARES, Macedo. Tendências Novas. Fórum Literário, p. 2. São Paulo, 2 de agosto de 1861. ASSIS, Machado de. Obras completas. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W.M. Jackson Inc. Editores, 1938, p. 894. 195 ASSIS, Machado de. Op. cit., p. 862. 194 ! ! 90! folhetins dos jornais políticos. As que pudemos compulsar têm apenas um valor efêmero e, às vezes, não passam de enchimento puro e simples. A maior parte, como as provenientes da Academia de Direito de São Paulo, [grifo meu] são imitações exageradas das produções da pseudoescola, pseudorromântica, há muito tempo fora de moda na Europa, mas que procuram ultrapassar por sua imaginação desregrada. 196 José Veríssimo, por sua vez, ressalta a autenticidade da prosa de Azevedo – Noite na taverna seria expressão literária do teor da vida romântica, “composição singular, extravagante, mas acaso na mais vigorosa, colorida e nervosa prosa que aqui se escreveu nesse tempo”197 e, mas condena o byronismo por ter desviado “de sua atenção primitiva, cristã, patriótica, e moralizante, o movimento literário que aqui se iniciara a nossa literatura nacional”.198 Esse desvio define o sentido do debate. Os comentários dizem um pouco do lugar que essa produção ocupa, da restrição à aceitação para além do horizonte estudantil, independentemente da eventual qualidade estética. Frequentemente acusado de falta de autenticidade, o romantismo negro das academias é percebido como mera reprodução dos modelos europeus, e, nessa lógica, não ser original e não ser nacional é sinônimo de marginalização. Não é só o suposto valor artístico que importa, mas o fato de se tratar de um tipo literário desviante. A lógica da infantilização que classifica os textos como imaturos é um aparato crítico que ajuda a determinar padrões específicos para a fabulação literária. No controle sobre o suposto excesso imaginativo organizam-se os termos de um padrão normatizador a ser seguido tendo em vista o hipoteticamente correto e natural desenvolvimento das letras brasileiras. 2.2. A dramatização literária de tipos românticos O problema da forma é central para a estruturação tanto de Macário quanto de Noite na taverna, marcados pela busca de um gênero novo, misto. No texto que apresenta Macário, Álvares de Azevedo deixa claro que a atualização formal compreenderia uma adequação do antigo ao novo expresso em um extenso desfile de referências, que vão de Shakespeare a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 196 WOLF, Ferdinand. O Brasil literário: história da literatura brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955, p. 353. 197 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1916, p. 300. 198 VERÍSSIMO, José, op. cit., p. 330. ! ! 91! Dumas passando por Lope de Vega e Ésquilo. O projeto dramático incerto tenta se estabelecer em bases sólidas, autoridades inegáveis que forneceriam suporte para a novidade. No mesmo texto o autor lembra que a primeira ideia de Milton para Paradise Lost seria compor uma tragédia, mas o tema transbordava, crescia como um oceano que não cabia nos “pentâmetros de mármore da tragédia antiga”. A invenção da nova forma deveria justamente atender à dificuldade de marcar o espaço de representação do homem para permitir expor as paixões, mas controlando-as, para que “não haja exageração, nem degenere o papel de fera no papel de homem”. 199 A estruturação de uma literatura assumidamente apaixonada, violenta e desesperada desprezaria as convenções dramáticas pela terrível violência do sangue tropical. Qualificando seu texto como produto de uma imaginação passageira e espontânea, “um filho pálido dessas fantasias que se apoderam do crânio e inspiram A Tempestade a Shakespeare; Beppo e o IX Canto de Don Juan a Byron; que fazem escrever Anunciata e O Conto de Antônia a Hoffmann ou Fantasio ao poeta de Namouna”. Álvares de Azevedo elenca um quarteto de referências: Shakespeare, Byron, Hoffman e Alfred de Musset, todos filiados por uma noção romântica de inspiração. Shakespeare reaparece citado em Macário como se seus personagens participassem da trama. Romeu e Julieta passam a figurar como representações centrais na análise que Macário faz do romantismo de Penseroso. A apropriação romântica do dramaturgo inglês inclui o despertar sem esperança como comparação à tragédia dos dois amantes. A dor é intensificada quando nem a cena trágica serve de apoio; Macário é o Romeu sem os momentos de amor, sem os momentos de prazer, o que torna ainda mais amarga sua desventura. Ainda em Macário, o demônio manifesta sua descrença em relação a referências letradas: personagens como Don Juan, Hamlet e Fausto não só exemplificariam a impossibilidade literária de compreensão da mulher como expressariam o ceticismo da vida cotidiana: “Amanhã em uma taverna poderás achar Romeu com a criada da estalagem, verás D. Juan com Julietas, Hamlet ou Fausto sob a casaca de um dandy. É que esses tipos são velhos e eternos como o sol”200, afirma Satã. A miséria dos personagens é a miséria de homens desgraçados que a literatura teria convertido em tipos ideais. Nas falas de Satã o repertório letrado advoga a favor do ceticismo e despreza o amor. A primeira epígrafe de Noite na taverna é uma citação do primeiro ato de Hamlet: “How now, Horatio? you tremble, and look pale. Is not this something more than fantasy? What think you !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 199 200 AZEVEDO, Álvares de. Macário , op. cit., p. 117. AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 120. ! ! 92! on’t.” A quinta narrativa, “Claudius Hermann”, é também precedida por uma citação do terceiro ato da peça: “[…] Ecstasy!/My pulse, as yours, doth temperately keep time,/And makes as healthful music; it is not madness/That I have utter’d.” A última parte da obra, intitulada “O último beijo de amor”, traz uma clássica fala de Romeu: “Well, Juliet, I will lie with thee to-night.” Na fala “Bertram”, segundo personagem a narrar sua história, encontra-se outra referência eloquente quando a ele afirma: “Na vida misteriosa de Dante, nas orgias de Marlowe, no peregrinar de Byron, havia uma sombra da doença de Hamlet: quem sabe?”201 Vida e literatura, personalidade autoral e ficção são confundidos para lançar a ideia de que Hamlet, com seu romantismo trágico, é o espectro de vários personagens ligados por uma apropriação romântica. Dante, Marlowe e Byron, romantizados, ligam-se a ele pela doença que se alastra no tempo e define a condição de autores e obras. Nesses termos o mal do século eclodiria como apoteose de males de origem shakespeariana. Na mesma chave, Gennesco: vida acadêmica, de Teodomiro Alves Pereira, tem a seguinte epígrafe atribuída ao Esprit des Journaux: “Il n’y a personne qui ne fasse son petit Faust, son petit Don Juan, son petit Manfred ou son petit Hamlet, le soir auprès de son feu, les pieds dans de très-bonnes pantoufles.” A frase, que abre também o texto da peça Aldo, Le Rimeur, de George Sand, faz dos personagens e das obras de Goethe, Byron e Shakespeare modelos universais, espectros incontornáveis que permeariam toda possibilidade de imaginação. A corrupção, a devassidão e as tragédias românticas são tratadas como dramas inatos da cultura ocidental. O aspecto misterioso da obra do dramaturgo inglês seria ressaltado também mais adiante, quando Gennesco, diante de uma noite sinistra, medonha e sem estrelas, afirma: “Por Deus! Eis uma noite shakespeariana!”202 Em A confissão de um moribundo, Lindorf E.F. França faz três citações que ajudam a definir os sentimentos agonizantes do protagonista por sua amada, e uma terceira, que amplia o efeito de suspense. Na primeira: “Eu que a amava, não como Djalma profanando Adrienne com seus beijos de fogo, mas como Romeu uivando de suspiros e crenças junto a sua Julieta”203, a pureza de seu amor remete à mais violenta das paixões shakespearianas. Romeu e Julieta se converte no paradigma romântico por excelência, mais significativo do que a história de amor narrada em Le Juif Errant, de Eugène Sue. A segunda, “Eu, que a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 201 AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna. Rio de Janeiro: Klick Editora, 1998, p. 40. PEREIRA, Teodomiro Alves. Gennesco: vida acadêmica. Rio de Janeiro: Typografia Perseverança, 1866, p. 143. 203 FRANÇA, Lindorf E.F. A confissão de um moribundo. O Guayaná, São Paulo, vol. 4, junho de 1856, p. 8. 202 ! ! 93! amava, não com o fogo deliroso e sensual de Hamlet, mas com a singeleza de um irmão”204, indica a natureza fraterna e não exclusivamente erótica do afeto. A terceira explica o aspecto sobrenatural de um fenômeno dramático: “És por Cristo alguma dessas visões encantadas, que se refletiam nos espelhos das feiticeiras de Macbeth.”205. Shakespeare é usado como paradigma da devoção ao desejo e ao amor, servindo também como referência para um tipo de horror que lança mão do sobrenatural, mas também se materializa pelas ações cruéis e mundanas dos personagens. A leitura romântica não se restringe aos usos na produção ficcional e é legitimada e abalizada pela crítica, que tende a lhe atribuir os mesmos adjetivos. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, no Resumo de história litteraria, de 1873, afirma que a originalidade de seu sistema dramático estaria na oposição ao padrão formal da Antiguidade, regido pelo princípio de separação dos estilos. A tragédia shakespeariana mescla o sério e o cômico, o patético e o burlesco na representação de acontecimentos terríveis e singulares, o que tornou o autor um mestre na arte de “excitar a comoção e o terror”206. Para Fernandes Pinheiro, o dramaturgo é como um gênio do horror; suas tragédias apontariam para a finitude humana ao ressaltar aspectos burlescos e patéticos da vida para a exposição do horror. Seu sistema dramático faria conviver o baixo e o sublime, expondo o desespero, o medo e a consequente perda da razão, que levariam a desfechos inevitavelmente funestos. Para o crítico, o caminho shakespeariano para a beleza é o mesmo pavoroso cortejo para a morte. Araripe Júnior, em artigo para a revista Novidades publicado em 1889, defende que o mais importante em uma obra é a “autointoxicação literária”, proveniente da “faculdade que possui o homem de tatear o invisível e sondar o inexprimível”207. O melhor exemplo desse fenômeno seria Hamlet e sua exploração do mistério que haveria entre as coisas do céu e da terra. Já Nestor Vítor, em texto de 1900, afirma que Hamlet seria uma obra-prima da tristeza que se recolhe em si mesma, “pesada, desfalecida, sufocante e devoradora”; Drama que ressaltaria a morte como redenção, uma vez que o personagem principal “anda constrangido no mundo dos vivos. Só está à vontade com os mortos”208. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 204 FRANÇA, Lindorf E.F., op. cit., p. 8. FRANÇA, Lindorf E.F., op. cit., p. 11. 206 PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Resumo de história litteraria. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1873, p. 257. 207 JÚNIOR, Araripe. Obra Crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1960, vol. II (1888-1894), p. 158. 208 VÍTOR, Nestor. Obras Críticas de Nestor Vítor. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, vol. I, pp. 335-336. 205 ! ! 94! A morte desponta como o motivo central da obra de Shakespeare, e Hamlet é o personagem fúnebre que dela se aproxima por rejeitar o mundo dos vivos. A atração exercida pela morte, segundo Nestor Vítor, seria o grande tema do teatro shakespeariano, que só poderia ser compreendido dentro das categorias cristãs de céu e inferno. O segredo misterioso do abismo e da queda configuraria a força de sua imaginação, “e a atração do abismo lá embaixo é a força que põe em movimento esse drama único e inteiro”209. A sedução fatal, o impulso para o abismo, teria como pano de fundo um “gosto pelo desespero e pela obscenidade”210, fazendo com que “algumas palavras sublimes, algumas cenas profundamente humanas se percam entre esses dois monstros e sejam depressa abafados por eles”211. Nesse drama unívoco, “há forças que chamam para o alto, mas há forças que atraem para o abismo também”212. Em outras palavras, trava-se um embate da vida com a morte, do altivo com o baixo, da alma com o corpo, do belo com o horrível. Apropriado na chave romântica, Shakespeare desponta como um mestre do horror que expõe a tragédia romântica do desejo e explora os insondáveis mistérios que assombram a vida entre o céu e a terra. Não por acaso a epígrafe de As mulheres perdidas, livro de Leo Junius, pseudônimo de José da Rocha Leão, publicado em 1858, é a fala de Macduff em Macbeth: “Horror! Horror! Horror!” Lorde Byron é outra referência incontornável para a prosa ficcional do romantismo veiculado em periódicos acadêmicos. Símbolo maior do cinismo poético, o poeta aparece citado inúmeras vezes. Macário diz humildemente que sua única semelhança com Don Juan de Byron é o fato de enjoar a bordo, e afirma: “O enjoo é tudo quanto há de mais prosaico. Sou daqueles de quem fala o corsário de Byron ‘whose soul would sicken o’er the heaving wave’.”213. Em Noite na taverna, a fala de Solfieri é precedida por uma passagem do drama Cain: “Yet one kiss on your pale clay/ And those lips once so warm! – my heart! my heart!” Já a parte de Bertram (mesmo nome de um personagem da tragédia Marino Faliero, de Byron) é apresentada com um trecho de Childe Harold Pilgrimage: “But why should I for others groan/ When none will sigh for me?” Outra fala de Bertram destaca a referência: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 209 VÍTOR, Nestor, op. cit., p. 336. VÍTOR, Nestor, op. cit., p. 336. 211 VÍTOR, Nestor, op. cit., p. 336. 212 VÍTOR, Nestor, op. cit., p. 338. 213 AZEVEDO, Álvares de. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p. 118. 210 ! ! 95! Quem eu sou? Na verdade fora difícil dizê-lo: corri muito mundo, a cada instante mudando de nome e de vida. – Fui poeta – e como poeta cantei […] Fui soldado, e banhei minha fronte juvenil nos últimos raios de sol da águia de Waterloo. – Apertei ao fogo da batalha a mão do homem do século. Bebi em uma taverna com Bocage – O português, ajoelhei-me na Itália sobre o túmulo de Dante – e fui à Grécia para sonhar como Byron naquele túmulo das glórias do passado. – Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta – sou um vagabundo sem pátria e sem crenças aos quarenta. Sentei-me a sombra de todos os sóis – beijei lábios de mulheres de todos os países – e de todo esse peregrinar só trouxe duas lembranças – um amor de mulher que morreu nos meus braços na primeira noite de embriaguez e de febre – e uma agonia de poeta. Dela, tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos.214 A imagem do libertino nômade e aventureiro se faz a partir de Bocage, Dante e Byron, mas com o último a relação é mais intensa. É deste que Álvares de Azevedo se aproxima para representar as alegrias e agonias do deboche. Jaci Monteiro, em texto de 1862, já destacava a relação entre os dois autores. Segundo ele, pelo excesso de leitura seria possível ver na obra de Álvares de Azevedo “esse delírio febricitante, esse arroubo de ideias, esses rasgos apaixonados, frenéticos e violentos que caracterizam o autor de Don Juan”215. Em discurso proferido na inauguração da Sociedade Acadêmica Paulista, no dia 9 de maio de 1850, o autor de Lira dos vinte anos comenta: “Em Byron há Childe Harold e Don Juan. Childe Harold […] é a vida que se estorce como a serpe na vasca moribunda, é o sangue que rebenta mais vivo. […] O coração que afana ao derramar das veias.” 216 . Adiante complementa: “A diferença é que Byron, ainda no satânico do seu rir de escárnio, era menos infernal que Voltaire […] Byron, sob seu manto negro de Don Juan, guardava no seu peito uma chaga dolorida e funda.”217. Esse pesar deságua em descrença absoluta, e o sofrimento da alma desemboca em volúpia física e imoralidade. Perversão e luxúria que remetem à peregrinação de Childe Harold, considerada o “último pesadelo do ceticismo de um século”218. Em Ideias íntimas, Álvares de Azevedo resume seu panteão com versos: “Juntos do leito meus poetas dormem/ Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron/ na mesa confundidos.”219. Em Gennesco, Byron aparece também como senhor do ceticismo quando o protagonista !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 214 AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna. Rio de Janeiro: Klick Editora, 1998, pp. 39-40. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas op. cit., p. 22. 216 AZEVEDO, Álvares de Obras completas, op. cit., p. 678. 217 AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 700. 218 AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 760. 219 AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p. 780. 215 ! ! 96! afirma: “Meu mestre Byron ensinara-me que os juramentos da mulher eram escritos sobre a areia”. O poeta inglês é aquele que enaltece as paixões na medida em que ressalta a perenidade dos sentimentos. A libertinagem resultante do ceticismo de Byron surge novamente como guia espiritual para os falidos de espírito. A referência ao poeta inglês é de fato inescapável quando se fala da produção literária brasileira de meados do século XIX. Machado de Assis, em artigo para a revista Semana Literária do dia 6 de dezembro de 1866 em que comenta a obra de Fagundes Varela, defende sua originalidade e rebate uma crítica de Ferreira de Meneses segundo a qual o poeta fluminense imitaria Byron demasiadamente. Segundo Machado, a referência seria incontornável, e caberia a Fagundes Varela o mérito de não se limitar a imitar os caracteres byronianos. A crítica evidencia o papel preponderante do autor de Don Juan na produção dos jovens poetas que viam em suas obras os protótipos românticos ideais. Byron é como um mestre na exaltação da perversão, na dramatização incessante do vício e do cinismo. É a chave de ligação com a imaginação cínica e o patrono perfeito para um tipo de literatura que se pretendia soturna, sensual e horrível. E.T.A. Hoffmann é outro nome constante nos textos analisados. Em Noite na taverna, aparece como autoridade em tramas sinistras como as que serão contadas ao longo da noite220. Archibald, por exemplo, proclama que será narrada “uma história sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos – como Hoffmann os delirava ao clarão doirado do Johannisberg” 221 . O escritor alemão interessa aos escritores acadêmicos pelo aspecto fantástico de suas novelas e contos. Suas histórias situadas entre a razão e a loucura, entre o delírio e o sobrenatural, viram referência à liberação da imaginação rumo ao extraordinário. Em Gennesco, encontra-se a seguinte passagem: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 220 Em “A fundação da literatura brasileira em Noite na taverna”, Cilaine Alves Cunha lembra que, nessa obra de Álvares de Azevedo, “não apenas os nomes de personagens como também certas cenas de obras da tradição são programaticamente aproveitadas. O motivo do roubo do corpo da cataléptica foi emprestado de Noites lúgubres, novela espanhola datada de 1771, de autoria de José Cadalso, traduzida por Francisco Bernardino Ribeiro e publicada em 1844, na revista Minerva Brasiliense. Aí, o angustiado e deprimido Tediato tenta roubar o cadáver de sua amada, sendo, no entanto, preso antes de realizar seu intuito. O motivo da antropofagia Azevedo extrai do Don Juan, de Byron. De outro livro desse autor, o episódio em que Herman mantém relações de adultério com Ângela após seu retorno é análogo ao de Beppo, em que o personagem homônimo reencontra, após uma longa viagem, sua Laura casada. Isto sem falar na estilização do incesto entre irmãos, que Byron alimentou como lenda que ronda sua biografia. Outra lenda a seu respeito é a de que teria por hábito organizar festas em que prestava culto a caveiras, aludida no crânio de poeta-louco que o velho de Noite na taverna carrega”. CUNHA, Cilaine Alves. A fundação da literatura brasileira em Noite na taverna. In: Itinerários, Araraquara, 22, 115/133, 2004, p. 131. 221 AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna, op. cit., p. 18. ! ! 97! Sentaram-se e acenderam os charutos. Gennesco quebrou o silêncio: vais ouvir uma curta mas terrível história, atinge pelo carregar das cores e caráter de seus dois heróis, as sombras de um conto fantástico, é porém, pura realidade, e a imaginação de Hoffmann não conseguiria torná-la mais dolorosa. E novas garrafas chegam, esgotam-se e renovam-se, e o silêncio continua. Ao ver aquela meditação Gennesco lembra-se de Hoffmann a quem um crítico chamou pilar da taverna e que encostado a uma cadeira rodeado de garrafas e namorando espumas, delirava seus sonhos extravagantes na excentricidade borbulhante de uma onda de cerveja.222 Ser o pilar da taverna significa fornecer os argumentos para um tipo bastante comum no padrão de ficção aqui analisado. Personagens ébrios que contam histórias de horror têm em Hoffmann um parceiro de fantasia; o suspense de suas narrativas fornece os recursos ideais para essa modalidade do fantástico. Se Byron é o ébrio devasso, Hoffmann é o embriagado dos sonhos excêntricos e extravagantes. Em “O estudante e os monges”, de Couto de Magalhães, a peculiaridade do narrador é definida pela comparação: “És mesmo um esdrúxulo a gosto de Hoffmann, meu caro Antônio!”223. Assim como a beleza de uma mulher em “A confissão de um moribundo”, de Lindorf França,: “donzela meiga e vaporosa como um sonho de Hoffmann.”224. Em Leonel, o trovador, de Guimarães Júnior, referenda a imaginação de uma condessa: “era amiga dos contos de Radcliffe, bebeu em Hoffmann aqueles mistérios profundos, que ressumbram nessas admiráveis páginas.”225. Já em “A fada do mistério”, de Félix Xavier da Cunha, o escritor alemão compõe o clima de uma cena fantástica: “E era como uma dessas visões dos contos de Hoffmann, como a sombra de Blanca resvalando a furto em noite de Luar.”226. Com Hoffmann, o fantástico encontra, assim, o macabro na perturbação da loucura. Ele se converte no mártir do delírio, referência para tudo que é estranho, que não pode ser explicado pela razão. Membro da galeria de referências, Alfred de Musset é constantemente evocado. Em “Poverino”, de J.F. de Meneses, por exemplo, aparece como epígrafe: “Pour écrire l’histoire de sa vie, it faut d’abord avoir vécu; aussi n’est-ce pas la mienne que j’écris.” Nesse exemplo, depreende-se o apelo à experiência, e as histórias de cinismo ganham mais força quando confundidas com a realidade, ainda que sem o compromisso de representá-la literalmente. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 222 PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. 46. MAGALHÃES, Couto de, op. cit., p. 8 224 FRANÇA, Lindorf E. F., op. cit., p. 15. 225 JÚNIOR, Guimarães. Leonel, o trovador (phantástico). Correio Paulistano, 1862, p. 23. 226 CUNHA, Félix Xavier da., op. Cit., p. 8. 223 ! ! 98! Não se perde a noção da literatura como artifício, mas ela se mescla com a vida. Jogando com os limites da representação do vivido, busca-se mais apelo, mais comoção. Em As mulheres perdidas, de Leo Junius, um dos personagens, antes de começar a ouvir uma história no clima febril de uma taverna, comenta com o amigo: “Estás poético hoje, meu boche, citas Jacques Rolla, o libertino herói de Alfred de Musset.”227 As histórias se confundem, o personagem poético é posto ao lado do protagonista das narrativas contadas pelos ébrios. Jacques Rolla acompanha os narradores e se transforma em parte da cena. No segundo capítulo de Gennesco, de Teodomiro Alves Pereira, a definição de um estudante paulista é feita segundo a seguinte comparação: “Byron e Musset, e o diabo e seu acólito, eram seus poetas favoritos, tinha-os a cabeceira, como se diz que Alexandre tinha o seu Homero.”228 O escritor francês é lido como um sacerdote de Byron. Novamente, vida e literatura se confundem e marcam o padrão de leitura dos textos. Byron e Musset são tratados como devassos, como se seus personagens fossem meros reflexos da personalidade libertina desses autores. Em grande medida, a apropriação romântica que se faz deles se estrutura na diluição da relação entre autor e obra, e o sucesso literário é atrelado à mitificação do nome. Byron e Musset não são meras assinaturas ou gênios artísticos, mas exemplos vivos daquilo que expressam como arte. Na introdução do livro de Teodomiro Alves Pereira, encontra-se a seguinte passagem: Ora, perdido em meio dos prazeres, com a fronte quente, o peito em palpite e as mãos trementes, eu sonhava ao ruído dos festins, ao tinir dos copos, em voltar louco de uma valsa, um conto fantástico, a perder-se ao longe nas sombras acumuladas onde a fantasia, tornando-o da terra, o deitava em delírio. Eu via, então, Musset, Hoffmann, Achin D’Arnim; e com o sentimentalismo de Lamartine ou a filosofia positiva de Vigny, eu desenhava em rudes traços, mão pesada, e lápis rombo as formas belas de Brigitta, Agandeca, Isabel, ou Katty Bell – a inglesa amante, castamente adúltera, do pobre Chatterton.229 A contemplação da amante imersa em fantasias reúne uma galeria romântica de autores com personagens que, confundidos, servem ao propósito comum de povoar a imaginação do jovem. A galeria de imagens não distingue realidade e ficção; sua fantasia !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 227 JUNIUS, Leo. As mulheres perdidas: Typos contemporâneos. In: Romances e typos. Rio de Janeiro: Typografia Americana de José Soares de Pinho, 1858, p. 121. 228 PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. 6. 229 PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. XVIII. ! ! 99! transforma tudo em objeto de contemplação e inspiração fantástica. Um dos exemplos mais marcantes dessa articulação entre vida e literatura se dá com Werther, de Goethe. Macário, por exemplo, lamenta: “Ai daquele a quem um verme roeu a flor da vida como a Werther!”230. Os sofrimentos do jovem Werther, romance de 1774, é um marco do desespero que o amor romântico pode acarretar. Por ser escrito em primeira pessoa e por enfatizar a intensidade da paixão do jovem por Charlotte, transforma-se em paradigma da confissão autoral. O texto parece extrapolar os limites da literatura para se converter em modelo comportamental, trágica lição de vida. Na introdução de Gennesco, o narrador proclama que se aceite como uma grande lição as páginas sublimes em que René, Werther, Obermann, Konrad, Manfred exalam o seu profundo amor; elas foram banhadas de suas lágrimas ardentes, pertencem mais ainda à história filosófica do gênero humano do que aos anais poéticos231. As vidas contadas viram modelos pela sinceridade com que supostamente foram escritas, pelo sofrimento que hipoteticamente refletem. São reverenciadas como lições oriundas de momentos superlativamente belos; dores e tragédias que edificam quando alcançam o sublime. No jogo que determina a dramatização de tipos românticos, Álvares de Azevedo também entra em cena. Mesmo com uma obra curta, seu nome passa rapidamente a figurar no cânone boêmio. Em Trindade maldita, de Franklin Távora, um personagem pergunta a outro se conhecia a obra do escritor paulista e este responde: “Só apreciei Noite na taverna.”232. No conto “A vingança de um irmão”, de Galvão Bueno, publicado no periódico Kaleidoscópio em 1860, a segunda parte é aberta por um trecho de Macário: “Abrir a alma ao desespero é dá-la a Satan.”233. Sílvio Romero, por sua vez, considerando que Noite na taverna teria “alguma beleza entre algumas extravagâncias e afetações”234, toma-a como referência para julgar a obra de Franklin Távora: “A trindade maldita é uma série de contos ultrarromânticos no estilo de Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, são fantasias de um rapaz de 18 anos.”235 No processo de confecção da linhagem estética que serve de modelo e confere sentido e legitimidade aos projetos literários em questão, autores mitificados e personagens !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 230 AZEVEDO, Álvares de. Macário , op. cit., p. 119. PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. VII. 232 TÁVORA, Franklin. A trindade maldita. Diário de Pernambuco, p. 4, Pernambuco, 1862. 233 BUENO, Galvão. A vingança de um irmão. Kaleidoscópio, Instituto Acadêmico Paulistano, São Paulo, 1860. 234 ROMERO, Sílvio. Compêndio de história da literatura brasileira. Luiz Antônio Barreto (org.). Rio de Janeiro: Imago Editora; Sergipe: Universidade Federal de Sergipe, 2001, p. 212. 235 ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 264. 231 ! !100! positivados encenam essa dramatização de tipos românticos. O grande número de citações que aparecem nesses textos ajuda a identificar a sua lógica de circulação. Por se tratar de uma comunidade de leitores relativamente fechada, formada basicamente por jovens ligados à academia (exceção feita a Álvares de Azevedo, que conquistara público mais amplo), parece haver certa sintonia de repertório entre autores e público. Escritores, obras e personagens são constantemente citados sem maiores explicações, como se houvesse uma suposição de entendimento por parte de quem lê. Ainda que funcionem também como exibição de erudição, o que confere valor ao texto e ao próprio autor, há ao menos a previsão de que o leitor tenha alguma familiaridade com as citações e seja capaz de se impressionar e situar a obra em uma tradição. Em “A literatura na evolução de uma comunidade”, Antonio Candido afirma que, a partir da década de 1830, em especial com a formação da Sociedade Filomática em 1833, os estudantes paulistas se organizam e criam certa consciência de coletividade configurada por uma sociabilidade específica e por uma atividade permanente do corpo estudantil: a literatura 236 . A formação de um grupo peculiar resultaria na estruturação de um senso corporativo e de uma “expressão intelectual própria” cujos pontos altos seriam a formação da Sociedade Epicureia, em 1845237. Esse “corpo acadêmico” construiria um ethos particular com base nas ideias de boemia e literatura e daria forma ao “tipo clássico do estudante paulistano”238. Como grupo destacado do restante da cidade, articularam um “sistema de intercâmbio literário” como mecanismo dinamizador da circulação de ideias e bibliografia: “Era uma bolsa de livros, trocados, emprestados, filados, circulando de qualquer forma, na falta de bibliotecas e livrarias.”239. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 236 CANDIDO, Antonio. A literatura na evolução de uma comunidade. In: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. Sobre o ambiente acadêmico paulista ver ainda FRANCHETTI, Paulo. O riso romântico: notas sobre o cômico nas poesias de Bernardo Guimarães e seus contemporâneos”, in: Remate de males. Campinas, n° 7, 1987. p. 717; e CAMILO, Vagner. Risos entre pares: poesia e humor românticos. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1997. 237 Antonio Candido define a sociedade Epicureia, formada por nomes como Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e Álvares de Azevedo como: “Espécie de ponto de encontro entre a literatura e a vida onde os jovens procuraram dar realidade às suas imaginações românticas. Foi uma experiência do maior significado para definir o que houve de mais característico no Romantismo paulistano, na qual o exemplo conscientemente seguido dos personagens de Byron e Musset foi entroncar-se inconscientemente na tradição do marquês de Sade”. CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 160. 238 Lembramos que muito da mitificação da vida estudantil paulista se deve à série de artigos escritos por Pires de Almeida para o Jornal do Commercio entre 1903 e 1905, nos quais reporta as várias aventuras supostamente vividas pelos estudantes. Eles foram publicados pela Empresa Gráfica carioca em 1962 sob o título A escola byroniana no Brasil. 239 CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 161. ! !101! As repúblicas constituiriam um público, um auditório permanente, que daria aos acadêmicos a possibilidade de divulgar suas produções. Ainda segundo Candido, foi o romantismo que forneceu as bases ideológicas do corpo acadêmico, divididos em três categorias “nacionalismo indianista, sentimentalismo ultrarromântico e satanismo. O primeiro, menos que os outros; o terceiro, mais do que todos”240. Esse “satanismo”241 como expressão de um romantismo negro prescinde da configuração da tradição soturna apresentada na lógica das citações; é construído com base nas referências dramatizadas que conformam um repertório a ser reproduzido e apropriado. José de Alencar, em Como e porque sou romancista, comenta que, muito antes de ser reconhecido como escritor, escrevia nas paredes de seu dormitório como forma de inserção no universo de experimentação das letras. O único tributo que paguei então à moda acadêmica, foi o das citações. Era nesse ano bom-tom ter de memórias frases e trechos escolhidos dos melhores autores, para repeti-los a propósito. /Vistos de longe, e através da razão, esses arremedos de erudição, arranjados com seus remendos alheios, nos parecem ridículos; e todavia é esse jogo de imitação que primeiro imprime ao espírito a flexibilidade, como ao corpo o da ginástica. /Em 1845, voltou-me o prurido de escritor; mas esse ano foi consagrado à mania, que então grassava, de baironizar. Todo estudante de alguma imaginação queria ser um Byron; e tinha pôr destino inexorável copiar ou traduzir o bardo inglês. /Confesso que não me sentia o menor jeito para essa transfusão; talvez pelo meu gênio taciturno e concentrado que já tinha em si melancolia de sobejo, para não carecer desse empréstimo. Assim é que nunca passei de algumas peças ligeiras, das quais não me figurava herói e nem mesmo autor; pois divertia-me em escrevê-las, com o nome de Byron, Hugo ou Lamartine, nas paredes de meu aposento, à Rua de Santa Tereza, onde alguns camaradas daquele tempo, ainda hoje meus bons amigos, os Doutores Costa Pinto e José Brusque talvez se recordem de as terem lido.242 Mais do que simples arremedo de erudição, a moda acadêmica das citações, é tratada como um exercício, um jogo capaz de imprimir flexibilidade ao espírito e com isso formar as !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 240 CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 162. Antonio Candido define o satanismo literário como “a manifestação mais típica dessa singularidade do poeta-estudante nos meados do século, fornecendo uma ideologia de revolta espiritual, de negação dos valores comuns, de desenfreado egotismo. Foi ele o ingrediente principal das lendas joviais e turvas que envolvem a vida acadêmica de São Paulo em uma atmosfera de desvario. A melancolia, o humor negro, o sarcasmo, o gosto da morte traçam à roda do grupo estudantil um círculo de isolamento que acentua, para o observador, o seu caráter de exceção na sociedade ambiente”. CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 164. 242 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Pará de Minas: M&M Editores, 2003, p. 19/20. 241 ! !102! diretrizes dos escritores. Aos jovens estudantes caberia a tarefa de repetir modelos como participação primária no mundo literário. Traduzir e copiar Byron é prerrogativa necessária para que se possa atingir a autonomia. Ao problema da construção de um panteão literário lido e relido – muito devido à escassez de livros, também retratada por José de Alencar em outro trecho do relato – acrescenta-se a questão da originalidade diante de um conjunto de textos que funcionam quase como manuais de tons e de regras para a imaginação. Se, como afirma João Adolfo Hansen, a invenção da originalidade romântica e de seus corolários ideais de “liberdade de expressão” e “ausência de regras” configura a livre concorrência no universo das artes243, os critérios de atribuição valorativa na lógica da estética naturalizante do sublime se estruturam, ao menos no caso dos escritores analisados, também graças a um elenco específico de citações legitimadoras. Assim como os autores de ficção gótica estabeleceram modelos como Shakespeare e Milton com a finalidade de construir uma forma literária supostamente nova; os artífices do romantismo acadêmico se valeram de um elenco parecido para formatar um tipo de novidade ficcional baseada em um repertório não simplesmente imitado, mas constitutivo do discurso autorreferencial. O dramaturgo inglês é apropriado como a chave da relação com a natureza nos romances góticos, no Brasil converte-se também no mestre da ausência de regras que possibilitaria uma representação mais íntegra das paixões humanas. Em ambos os casos a noção de originalidade é tributária de determinado repertório de modelos, e a invenção que se pretendia livre dos paradigmas clássicos passa a operar por meio de dispositivos que simbolizam uma pretensa autonomia. A necessidade de referências, no entanto, parece apontar justamente para a debilidade da suposta independência; o elenco cultuado acaba servindo de suporte para uma ficção que se percebe incipiente e em estado de infância. O tributo aos nomes citados oferece apoio a um edifício literário que se posiciona como subalterno em relação a literaturas consideradas mais adiantadas na linha positiva do progresso oitocentista. A originalidade que entra em cena como novidade imperativa é construída em grande medida da originalidade absoluta do outro. Na mitificação do heroísmo romântico expresso na relação imbricada de vida e literatura tem-se uma novidade explicitamente tributária, realizada como sincronia sentimental do mal do século. A evocação de um ethos romântico !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 243 Para o crítico, a originalidade é transformada a partir do século XVIII em valor de troca no campo artístico, o que leva as obras a serem recebidas como mediação intersubjetiva cuja intensidade variaria de acordo com a “genialidade” do autor. HANSEN, João Adolfo, op. cit., p. 21. ! !103! surge como filiação literária naturalizada tanto pelo espírito do tempo quanto pela suposta universalidade do efeito, difundida pelos debates estéticos a partir do século XVIII. No horizonte do sublime, o apelo patético cria a sensação de transcendência que permite uma compreensão natural do efeito produzido, a partir da qual regras e fronteiras perdem sentido. O que parece estar em jogo não é simplesmente a ausência de regras, mas uma relação particular com uma tradição intencionalmente inventada, tendo em vista a definição de determinado sentido de literatura. Na articulação entre vida e obra literária, essa tríade substancializada propaga modelos de experiências que integram práticas literárias com conceitos-chave como genialidade, originalidade e subjetividade. O drama romântico se converte em problema espiritual coletivo, e o ceticismo forjado literariamente se transforma em mecanismo de atribuição de sentido e princípio de uma solidariedade estética que organiza as lógicas de produção e recepção. Nas representações e apropriações do cinismo literário, a obra é o reflexo característico da vida de escritores, o que forja não só um padrão estético, mas também uma imagem para o personagem-autor. Inventar a boemia significa inventar uma instância na qual esses escritores possam interagir e constituir a própria identidade, na qual os textos funcionem como o retrato de uma nova geração de literatos cuja persona ébria e romântica de cada um se converte em literatura. As noites de excessos e os cenários de tavernas e ruas escuras funcionam como representações ideais que, presentes na imaginação romântica, são atualizados nas horas de leitura. Aquilo que exibem como repertório de práticas é, sobretudo, um esforço de representação, imagem pretendida dos prazeres e desilusões que a literatura europeia elegeu como tema e que acabou por fortalecer um tipo de boêmio como personagem representativo do século XIX. Essa figura entra em cena dramatizando o niilismo e o cinismo, percorrendo caminhos turvos na busca desesperada por algum prazer imediato que adie a encenada ausência do absoluto. Os “jovens românticos” são assim projetados de modo a fazer da ficção relato ampliado dos dramas de um determinado grupo. Estes dramas são alicerçados em uma tradição literária específica e em representações idealizadas de padrões comportamentais. Na simulação do prazer se refaz a emoção da leitura que reinventa a vida imaginária da boemia. O idealismo romântico afirma o absoluto em detrimento da circunstância, ao mesmo tempo que, ironicamente, se ressente da ausência de totalidade ao tentar negar a perenidade de valores e sentimentos. Assim, formaliza um patrimônio letrado cético para divulgá-lo como padrão universal. A ironia da apropriação consiste basicamente em propagar o cinismo ! !104! literário como repertório transcendental, e os mesmos nomes que encenam a decadência da poesia são convocados para constituir a base de um sistema poético. Imitar Byron ou compor personagens como Hoffmann, mais do que uma proposta mais cosmopolita de filiação, implica a opção irônica de um patrimônio que simbolize os valores caros ao cinismo programático de um romantismo macabro. A possibilidade de contar com um “auditório permanente” – cujas prerrogativas patéticas de leitura são determinadas por padrões reconhecíveis de acesso ao texto –, permite ainda a encenação das referências como um jogo de exibição erudita na qual o ceticismo se esconde para deixar ver os valores convencionais do conhecimento como a substância da degeneração que se encena. Nessa chave, o problema do alto e do baixo não se aplica exclusivamente ao sentido da oposição operativa do sublime e é, ainda, a marca que expressa o uso de uma tradição que inspira pela desintegração que propõe. Não só o repertório bastante específico de temas e eventuais problemas estruturais explicam a circulação restrita desses textos. Esse corpus forjado para um grupo muito específico de consumidores traz em suas definições marcas de exclusividade, evidenciadas na exibição exagerada das referências. Os nomes circulam encenando a veiculação a uma herança romântica convocada para, ao mesmo tempo, legitimar uma produção incipiente e de alcance restrito e para garantir sua territorialidade específica. O efeito é o da perversão respaldada nos limites de uma circulação segura, e a exibição do horror literário, que implica abuso de delitos, tem o aval de um cinismo “canonizado” e previamente conhecido. É possível perceber um projeto literário forjado nos cânones de um tipo específico de romantismo. A predominância do tom soturno não inviabiliza a construção de um patrimônio cultural celebrado por um grupo que pretendia despontar como legítimo defensor das letras nacionais. Nos textos analisados não se pode estabelecer um consenso entre a proposta indianista e o caminho de filiação proposto por Álvares de Azevedo, por exemplo, fazendo com que as disputas pela definição de sentido para a produção literária sejam evidentes. Entre o horror literário e o indianismo há uma diferença não apenas temática, mas também de ordem patrimonial no que diz respeito à definição do cânone. A noção de patrimônio literário expresso na lógica da dramatização literária de tipos românticos pressupõe uma concepção positiva e ideal do corpus literário. É bastante claro que a perspectiva romântica é onipresente no contexto das disputas e assume tons mais escuros dependendo das circunstâncias. O idealismo do esforço canônico reproduz os mitos ! !105! individualistas, seja para afirmar a riqueza das belas paisagens brasileiras, seja para glorificar a imagem “da bela alma revoltada e revolucionária”244. A crítica literária tenderá a reproduzir as mesmas categorias, o que implicará uma atribuição valorativa segundo o psicologismo definidor da autoria ou da leitura substancializada da abordagem temática. No caso de Álvares de Azevedo, por exemplo, a imagem de enfant terrible das letras oitocentistas funcionará como personificação mítica de uma possibilidade frustrada: a do jovem gênio rebelde cuja morte prematura levaria consigo um pouco das esperanças de desenvolvimento de uma civilização brasileira. O contexto em que se celebrava esse tipo de personificação, em meados do século XIX, expresso, por exemplo, nos discursos fúnebres em homenagem ao poeta, indica a dimensão positiva do entendimento literário, e o ceticismo alardeado como fundamento só se realiza como contradição. Sua morte encerraria as possibilidades de uma imaginação fantástica voltada para o lado mais negro do romantismo, como se fosse o fim de uma era incipiente marcada pela juventude e pela imaturidade. Sua curta obra ficcional se transformaria na estranha exceção da literatura brasileira oitocentista, e caberia aos textos construídos segundo as mesmas matrizes a permanência nas sombras. 2.3. A proximidade do estranho: do interdito ao fantástico Publicada postumamente em 1855, Noite na taverna transformou-se em um modelo cuja recepção oscilou entre a celebração da imaginação romântica e a condenação de seus exageros245. No primeiro capítulo, “Uma noite do século”, uma fala de Archibald é bastante eloquente acerca do quadro das situações fantásticas e macabras que marcam o texto. Depois de um conviva brindar a imortalidade da alma, ele ordena que todos se calem e questiona: “A imortalidade da alma! pobres doidos! e porque a alma é bela, porque não concebeis que esse ideal possa tornar-se em lodo e podridão, como as faces belas da virgem morta, não podeis crer que ele morra? Doidos!” 246. O ceticismo que duvida da imortalidade apontando a perenidade de sua beleza abrirá as portas para todo tipo de perversão e crueldade. Nas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 244 HANSEN, João Adolfo, op. cit., p. 21. Sobre a recepção da obra, ver: Um sussurro nas trevas, dissertação de Jefferson Donizete de Oliveira apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 2010. 246 AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna , op. cit., p. 16. 245 ! !106! histórias apresentadas pelo grupo de pervertidos, a ficção enfrenta o niilismo e oferece o desespero e o crime como respostas. Solfieri é o primeiro a tomar a palavra. Narra uma aventura que vivera em Roma quando, depois de uma noite de orgias, acorda em um cemitério e se apaixona pelo que imagina ser o cadáver de uma mulher. Conjugando o culto ideal da beleza feminina com os encantos da morte, a sedutora amante defunta representa a imortalidade fria do desejo na palidez do corpo inerte. O culto se completa quando, duas semanas depois de acordar, a amada de Solfieri realmente morre, ele a enterra e manda fazer uma estátua para imortalizar suas formas. Bertram toma a palavra e outra galeria de horrores se apresenta: assassinato, infanticídio, traição, tentativa de suicídio e antropofagia. Assim como o narrador anterior, seus infortúnios são motivados pelo desejo sexual. Ao se envolver com mulheres voluptuosas ao redor do mundo conhece toda sorte de maldade. O sexo perverte e a mulher é a figura sedutora que invariavelmente leva à depravação. Fonte inesgotável de toda luxúria é o motivo perturbador, a origem das desgraças. O ápice da perdição de Bertram é o canibalismo, limite da condição errante que a busca pelo prazer carnal lhe impôs. A história de Gennaro envolve adultério e vingança. Depois de engravidar a filha de seu mestre e de se deitar com a esposa dele, escapa de uma tentativa de assassinato e volta para se vingar. Encontra a mulher morta pelo marido, que se suicidara. Faz questão de narrar sua decomposição: “Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça… – Era Nauza! […] mas Nauza cadáver, já desbotada pela podridão. Não era aquela estátua alvíssima de outrora, as faces macias e colo de neve […] Era um corpo amarelo […]”247. O apodrecimento torna-se alvo de contemplação na secularização absoluta do corpo, e o espetáculo da morte é também a exibição da carne em putrefação no asqueroso triunfo do horror. A narrativa de Claudius Hermann segue os mesmos padrões. Apaixonado pela duquesa Eleonora, toma-a inicialmente contra sua vontade, até que um dia volta para casa e a encontra morta ao lado do cadáver de seu marido. Ele ri de sua tragédia com uma “risada sombria como a insânia – fria como a espada do anjo das trevas”248. Claudius é um devasso arquetípico, encarna o boêmio típico em seu culto pelo luxo e pelas orgias. É uma figura modelar que sintetiza os traços de uma proposta literária calcada no excesso e na perversão. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 247 248 AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna O, op. cit., p. 55. AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna , op. cit., p. 77. ! !107! Na última história, Johann representa um tipo romântico um pouco diferente de Claudius. Ao dormir com a irmã e matar seu irmão, vê-se em situação desesperadora e não encontra, como o narrador anterior, motivos para sorrir. Sua errância não é feita só de prazeres e crueldades, também é marcada pela culpa. A força da obra de Álvares de Azevedo pode ser medida pelas tentativas de emulação das quais A trindade maldita: contos de botequim, de Franklin Távora, é uma das mais bem-sucedidas. Conta os dramas de três jovens, Jorge, Eduardo e Carlos, que se hospedam na taverna de Germano. Depois de começarem a beber, Carlos sugere que cada um conte uma história macabra. Ele é o primeiro. Começa definindo-se como “um perdido, um réprobo excomungado e satânico de arvorar na câmara modesta, casta e singela da virgem o pavilhão negro ensanguentado da desonra e do crime […]”249. Asseverando sua condição errante, conta como se apaixonou pela filha de seu protetor e se envolveu com sua esposa em uma trama que o leva a assassinar o marido traído por engano: “Não sei como não rolei sobre essa matéria ensanguentada e lívida. Não foi somente espanto e estupefação o que me tomou nesse crítico momento; foi um terror de asfixiar”250. Terminada a sangrenta narrativa, Jorge começa a contar a sua, com uma introdução não menos enfática: “A minha história também é terrível como um antro de bandido, ou qual uma pistola em mãos homicidas, prestes a desfechar-se sobre uma vítima indolente.”251 A trama começa quando, em um baile, apaixona-se por uma espanhola casada e a persegue pela noite escura, marcando sua casa com o próprio sangue para reconhecê-la à luz do dia. O marido descobre a traição e mata a mulher, mas quando encontra o cadáver de sua amante, Jorge ainda tem um último momento de prazer: “Queres sabê-lo? Nesses restantes de noite fui ainda beber algumas gotas de deleite a essa vulva úmida e fria de espanhola, ouvistes?”. A cena de necrofilia encerra a história. A fala de Eduardo também se inicia enfaticamente: “O álbum da minha vida está repleto, em todas as suas páginas de sangue se acham escritas, mas com caracteres de luto: é um perfeito livro negro.”252 Sua vida de pecados é marcada pelo assassinato de um casal, o enforcamento de um homem e o estupro de uma mulher: “Quando amanheceu de todo, e eu voltei ao teatro infernal daquela cena de horror […] o enforcado era meu pai, e a mulher das !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 249 TÁVORA, Franklin. A trindade maldita: contos de botequim. Diário de Pernambuco, Pernambuco, abril de 1862, p. 8. 250 TÁVORA, Franklin. Op. cit., p. 8. 251 TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 8. 252 TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 9. ! !108! ruínas, em cujos lábios friorentos eu delibaria alguns átomos de gozo, era minha mãe.”253 Parricídio, incesto e necrofilia marcam a tragédia pessoal de Eduardo, revelada em uma noite de embriaguez cujo desfecho também é surpreendente. Depois de ouvir todas as histórias, o taberneiro revela ter algum tipo de parentesco com todas as vítimas e se vinga matando os três. Os desgraçados pagam com a vida os horrores cometidos na vida desregrada. A dramatização de uma sexualidade secular aponta para o vício, o mal do século, erro irremediável. As orgias, as noites de excessos, os cenários de tavernas e de ruas escuras funcionam como palcos do niilismo e do cinismo, caminhos turvos na busca desesperada por algum prazer imediato. A melancólica celebração da carne tem como pano de fundo um desespero simulado, que transforma decadentes em heróis imorais, figuras estigmatizadas pelo assombroso espírito do tempo. Ao aludirem a um passado maldito, os narradores fazem dos espaços fechados uma espécie de confessionário maldito. Se na obra do Marquês de Sade, por exemplo, universos privados como o boudoir são palcos de perversões apresentadas explicitamente ao leitor, aqui as aventuras narradas em tavernas escuras e quartos de estudante são lembrança macabra. As orgias são apresentadas como casos de um passado que escapa e supostamente deveria permanecer em segredo. A evocação dos horrores se faz necessária como forma de expurgar fantasmas erguidos como troféus da vida pervertida. Ao reviver pesadelos convertendo os espaços de enunciação em cenários de horror, mistura-se o culto do prazer com a desgraça. Eliane Robert Moraes, em Sade: a felicidade libertina, afirma que a viagem é um traço comum aos libertinos, pois “a vida no mundo do deboche implica constantes mudanças, não há libertino que não viaje”254. Tomando o mundo como um grande laboratório para experiências e palco sem fronteiras para a diversão, os devassos de Sade acumulam êxitos e prazeres ao longo de jornadas intermináveis. Reproduzindo em cenários variados a essência do deboche, a viagem libertina afirma o caráter universal do crime e exalta suas inúmeras possibilidades de manifestação. Na interminável exploração de novos lugares, reproduz-se a insaciabilidade de um desejo que não encontra limites. O tema da peregrinação é bastante comum aos autores góticos, mas as viagens estão geralmente ligadas à infortúnios. Os protagonistas experimentam percursos macabros como forma de exploração do horror, e o desenvolvimento das tramas se dá como um caminho sem fim, tentativa sempre frustrada de fuga do sinistro. No caso de Sade, a viagem se traduz em !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 253 254 TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 10. MORAES, Eliane Robert. Sade: a felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994, p. 3. ! !109! acúmulo de prazer e conhecimento, oportunidade para o deleite e para a busca da felicidade na forma da ciência sexual e da arte erótica 255 . Na lógica do romantismo negro, as peregrinações e orgias também são marcadas pelo prazer, mas não há uma dimensão positiva que se traduza como um saber. Resta aos protagonistas o peso da culpa e a tentativa de atenuação pela confissão. Se os “turistas esclarecidos, filósofos aventureiros” de Sade tomam o mundo como laboratório onde a devassidão pode se converter em aprendizado, para os tipos céticos de Álvares de Azevedo e Franklin Távora resta apenas o prazer de uma narração às vésperas da punição final. Os cenários onde se anunciam os horrores são invariavelmente marcados por uma escuridão sufocante e doentia. Em tavernas, nas ruínas de um mosteiro ou em um quarto de estudante, os espaços não funcionam como lugares do prazer pleno. São palcos para a apresentação de um teatro do passado onde os protagonistas se desafiam na exposição dos horrores. Se o castelo sadiano faz do claustro o cenário da libertação, “triunfo do libertino sobre o espaço e o tempo”256, a taverna é a imagem da deterioração pela culpa: é onde os criminosos anunciam o crime como marca e prenúncio da ruína. O álcool funciona mais como elemento desencadeador da fala do que como instrumento propulsor do crime e alimenta mais a fabulação do vício do que o próprio. Se temos na literatura libertina do marquês o horizonte de um aprendizado filosófico pela prática – como em de Les infortunes de la vertu –, no caso dos escritores brasileiros a arte de contar histórias aparece em primeiro plano. Os protagonistas se destacam pelos horrores que conseguem disponibilizar para a plateia de iguais. Como oradores, devem prender a atenção de seus semelhantes pela habilidade narrativa ao traduzir a degeneração do destino de cada um. Se na lógica da libertinagem a violência das sensações se traduz em felicidade, na chave do horror romântico é convertida em motor da culpa e motivo de punição. Os finais sangrentos de Noite na taverna e Trindade maldita punem os criminosos, e os assassinatos restituem certo sentido de ordem moral. Nesse caso, a ordem ritualística é a confissão seguida da punição. Isso não torna as tramas apologias da moral cuja finalidade é expressar a possibilidade da edificação, mas as aproxima da lógica do romance gótico inglês do século XVIII, no qual normalmente não há crime sem castigo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 255 256 MORAES, Eliane Robert, op. cit., p.51. MORAES, Eliane Robert, op. cit., p.103. ! !110! A restituição ainda que precária de um sentido de moralidade garante uma experiência particular de acesso ao horror, e a morte dos criminosos ou sua infelicidade definem a alteridade soturna dos personagens. É como se o leitor estivesse diante de um espetáculo estranho em que o horror faz sentido pelo exagero. A aspiração à universalidade construída na alusão a um repertório de amplo alcance transforma-se novamente no perigo distante da absurda taverna imaginária onde a lembrança do horror só é parcialmente atualizada. O arrependimento expresso em muitas das falas é a marca de um vício conscientemente esvaziado em que o crime é ao mesmo tempo projeto e acidente. Expressão de um cinismo doentio, limitado pela consciência moral embutida. Se em Sade o boudoir é o palco das paixões libertinas, “delicioso ninho”, como define Eugénie em La philosophie dans le boudoir, os espaços fechados do “horror acadêmico” funcionam como lugares de experimentação do horror como fenômeno narrativo nos quais o ambiente hostil por vezes se transforma no cenário da punição. Não há, no entanto, a possibilidade da redenção, e os infortúnios finais funcionam como ponto-limite do horror que consome e resolve o problema da narração. O desfecho apoteótico enfatiza a corrupção, mesmo recusando seu triunfo: não há a felicidade assustadora do escritor francês nem a redenção absoluta recorrente nos romances góticos; resta o fim como consolo. A não perpetuação dos crimes pelo arrependimento parcial ou pela morte violenta dos protagonistas surge como limite estratégico. Se o jogo de dramatização de tipos autorais e a construção mítica de personagens arquetípicos refazem um vínculo explícito com o publico leitor, a metanarrativa de horrores espetaculares forja a diferença necessária para que o limite entre transgressão acordada e fabulação do horror funcione. A vingança de um irmão, de Galvão Bueno, é mais uma história de um devasso, Henrique, amaldiçoado no nascimento. Ele mesmo afirma: “Algum mistério envolve o meu nascimento, talvez algum crime bem horrível borrifasse de sangue o meu berço infantil […] não sei quem são meus pais”.257 Criado por pais adotivos, apaixona-se pela irmã Júlia, mas viaja para o Rio de Janeiro para esquecer o amor e estudar. No entanto, entrega-se à devassidão, perdendo-se entre orgias e prostitutas. Narra sua trajetória afirmando: “O criminoso pode descrever a sangue os passos que o levou à perdição, porque cada passo é um !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 257 BUENO, Galvão, op. cit., p. 18. ! !111! crime e cada crime glória para o seu nome.”258. Depois de experimentar os sabores da vida desregrada que o conduz ao crime, passa a procurar uma virgem para se casar, imaginando “quanto é bela a imagem da virtude e hediondo o vulto do vício!”259. Na parte intitulada “Páginas de um libertino”, entra em cena a figura de Antônio Gonçalves, um mendigo que teria tramado em silêncio toda a vida de Henrique; no entanto, seu sofrimento poderia ser evitado se o protagonista levasse em consideração a voz misteriosa que sempre lhe falara aos ouvidos: “Insano! Arrasta a existência pelo chão da pobreza, e não ergas os olhos à filha do rico!”260. O tema da degeneração dos costumes reaparece em As mulheres perdidas, de Leo Junius, obra na qual a moral do século XIX é assim descrita: “Despreza-se a virtude e propaga-se a imoralidade. Bane-se a honra e lisonjeia-se a fraude.” 261 Seu objetivo é apresentar os tipos perdidos responsáveis pela decadência moral da época. Na primeira parte narra-se uma orgia na qual os convivas se preparam para ouvir as histórias de devassidão: “Libertinos companheiros que deliras de ebriedade como Shelley, o ateu, céticos sacerdotes da descrença, gelados como eu pelo sensualismo: Eia! Cantemos, Bacco, amor, loucuras!”. Ao longo da narrativa são descritos tipos pervertidos como Amélia, que fora seduzida por um homem casado, e uma mulher conhecida como mandrágora, dona de uma vida tão horrível que o narrador prefere o silêncio e recomenda ao leitor que feche os olhos e passe adiante. Outro tipo terrível é o homem que leva sua mulher à libertinagem: “Um salafrário que mancha a pureza do casamento, que peca e faz pecar a mulher fazendo-a compartilhar todos os crimes que ele comete”. A citação redime as mulheres pela inocência e pela ignorância. Seus vícios seriam perdoáveis: “Pobres mulheres! Cercadas de tantos perigos que vos seduzem, nós encaramos suas fraquezas como uma desgraça e não como um crime.”262. A perdição, no entanto, é vista como traço característico dos universos urbanos, nos quais a virtude falha e o horror é disseminado como peste: “A vagabundagem, originada pela mendicidade, outras vezes pelo vício, esse flagelo quase igual ao da peste e da fome no dizer !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 258 259 BUENO, Galvão, op. cit., p. 18. BUENO, Galvão, op. cit., p. 18. 260 BUENO, Galvão, op. cit., p. 17. JUNIUS, Leo. As mulheres perdidas: Typos contemporâneos. In: Romances e Typos. Rio de Janeiro: Typografia Americana de José Soares de Pinho, 1858, p. 121. 262 JUNIUS, Leo, op. cit., p. 233. 261 ! !112! de Hantude, foi sempre uma das pragas das grandes cidades.”263 Nesse cenário tétrico, a única solução é a busca da edificação espiritual pelo claustro. Menos terrível que Noite na taverna, Gennesco, de Teodomiro Alves Pereira, reproduz o clima ébrio de contação de histórias fantásticas, narradas em uma república de estudantes em São Paulo por um típico boêmio, “mancebo original e misterioso”264. A trama é centrada em uma conversa entre Malthus e seu amigo Gennesco, que entre debates filosóficos narra a história do estudante Candido e de sua amante Georgina, desprezada depois da primeira noite de amor. Inconformada com a atitude do homem que lhe jurara amor eterno, passa a assombrá-lo e, em uma noite medonha, assusta-o: “Cheguei a vê-la ao rosto… e recuei assombrado diante do olhar terrível de Georgina. Era ella, ou sua sombra? O Cognac me tornava tudo fantástico. Quem és, gritei, sombra, sylpho, demônio ou mulher. Vens do céu, ou do inferno?”.265 Depois da cena sinistra, ela o deixa em paz e Candido volta para as orgias. A experiência terrível e a relação cínica com a amante levam Malthus a afirmar que Gennesco seria a reencarnação de Candido pelo processo de metempsicose.266 Sem perder de vista que o destinatário ideal dessas histórias pode ser entendido como “um tipo sentimental e patético, melodramático e declamatório como o ‘eu’ na poesia”,267 é preciso observar a articulação dos contrastes. Entre a identificação projetada e a arquitetura da diferença, o efeito de horror é ainda o centro do problema. No esquema da empatia controlada se estabelece uma solidariedade parcial que garante a construção do sublime entre os pares. Não há repercussão do problema moral como na perseguição sofrida por Sade ou como nos debates em torno das obras de Charles Robert Maturin e Ann Radcliffe, por exemplo. Os textos em questão foram criticados pela falta de originalidade ou pelo excesso de fantasia. Mas, talvez por circularem em uma comunidade específica, não foram alvos de grandes debates em torno da moralidade. As críticas ao ceticismo diziam respeito mais à apatia e à falta de originalidade do que à perversão. O máximo que se fazia era apontar a vida desregrada dos escritores, como se observa nos comentários sobre a sociedade epicureia, por !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 263 JUNIUS, Leo, op. cit., p. 185. PEREIRA, Teodomiro Alves. Op. cit., p. 1. 265 PEREIRA, Teodomiro Alves. Op. cit., p. 33. 266 Existem algumas dúvidas quanto à continuação da narrativa, no supracitado estudo sobre a recepção crítica de Álvares de Azevedo. Jefferson Donizete comenta que no fim do volume I da edição por ele analisada é prometida uma continuação não encontrada. Já o pesquisador Hildon Rocha menciona que Teodomiro Pereira teria planejado a obra em três volumes, do qual o último teria ficado inédito. Pessanha Póvoa, em resenha de 1862, comenta apenas a existência de dois volumes. Na versão de 1866 da Typografia Perseverança, usada neste estudo, a obra é editada em volume único, e, apesar de o final estar aparentemente inconcluso, não há indicação de outro volume. 267 HANSEN, João Adolfo. Op. cit., p. 18 264 ! !113! exemplo . Quando assumiam tom mais grave, esses apontamentos levavam ao entendimento das obras como fruto de mentes perturbadas, sem que houvesse condenação explícita dos textos como portadores de um perigo a ser evitado a todo custo. A imaturidade dessa vertente romântica defendida por boa parte da crítica desde meados do século XIX foi também um fator de suavização. Caracterizadas como obras de jovens estudantes aspirantes a libertinos, elas perderam um pouco do possível efeito perturbador e circulavam como peças literárias de menor impacto. Tratados como literatura de juventude, as novelas e contos escritos pelos acadêmicos não suscitaram polêmicas como os romances Melmoth the Wanderer e The Italian, obras referenciais da literatura inglesa na passagem do século XVIII para o XIX. No entanto, a prescrição de uma modalidade amenizada de leitura não anula totalmente as particularidades dessa imaginação literária que assume o mal e o representa como matéria ao mesmo tempo nobre e baixa. A máxima sadiana expressa em Les 120 journées de Sodome de que “toda felicidade do homem está na imaginação”268 reaparece no romantismo negro dos estudantes como o obscuro prazer do horror. E se, diferentemente do caso do escritor francês, a paixão não pode “provar que a liberdade humana só se realiza plenamente no mal”, posto que este mais aprisiona que liberta, resta em sua contemplação apavorante a possibilidade do deleite. No famoso prefácio da segunda parte de Lira dos vinte anos, Álvares de Azevedo define como binomia o pressuposto romântico de articulação dos contrastes,269: o livro teria sido escrito “por duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta”, o que faria dele “verdadeira moeda de duas faces” na qual o homem se revelaria em fibras e sonhos, pois “antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem um corpo”270. A constatação vem após uma indicação de perigo para o leitor, que deveria ter cuidado ao se debruçar sobre as páginas, pois estaria diante de um tipo novo de poema que flertaria com o erotismo sem recair na obscenidade, estruturado pela verdade e pela natureza. A supremacia !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 268 MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade: Ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo: Editora Iluminuras, 2006, p. 9. 269 No ensaio “A educação pela noite” Antonio Candido comenta que a mistura do horrível e do sublime na obra de Álvares de Azevedo teria resultado em escritos de nível inferior. Segundo o crítico: “o desejo de modular todos os sentimentos costeou o caos psicológico, enquanto o desejo de desrespeitar as normas estéticas tradicionais levou à desorganização do texto. Sob este aspecto, tais, escritos inferiores são interessantes para se verificar, pelos casos extremos, certas características da sua escrita.” A crítica aparece também no segundo volume de Formação da literatura brasileira onde o problema é relacionado com o traço adolescente do romantismo brasileiro do qual Álvares de Azevedo seria o maior representante. 270 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas, op. cit., p. 203, vol. 1. ! !114! do corpo se revela ainda na afirmação de que “todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos”. O imperativo do prazer exige um rebaixamento estilístico que priorize o corpo não só como objeto de representação, mas também como foco da recepção. A ironia expressa na binomia condiciona os movimentos de elevação e de rebaixamento necessários ao sublime. A razão passa a ter papel secundário para a definição da natureza humana: já não é a fonte exclusiva da construção de sentido. O irracional, o subjetivo e o incontrolável ganham a cena, e a razão é transformada no mecanismo de controle dessas forças que eclodem, no caminho por onde é possível regular a dimensão da irracionalidade. A contemplação estética possibilita a observação do ser essencial das coisas e faz do idealismo platônico a realidade do pensamento. Na chave da sensação o ser dá lugar ao atemporal, ao “puro sujeito do conhecimento”, alheio à vontade. A contemplação estética funciona então como um antídoto temporário à ruína da experiência. A força do fenômeno apaga o tempo, criando um momento único, sem lugar, sem dor. A arte deve buscar apenas a revelação do essencial, expressando-se como um conhecer puro, destituído de vontade. Ainda que a satisfação estética possa se dar também com a contemplação da natureza, a obra artística é facilitadora do conhecimento na medida em que é forjada especificamente com esse objetivo. A observação de uma obra de arte faz cessar todos os sofrimentos do querer insaciável, que são imediatamente suspensos. Desaparecem tanto a infelicidade quanto a felicidade; o sujeito é destituído de si mesmo na apreensão intuitiva da ideia platônica. A formulação se aproxima da noção de sublime de Arthur Schopenhauer, para quem o sublime age de maneira hostil e violenta, como um choque aos sentidos cujas consequências podem ser agressivas ao corpo. O desdobramento do sublime é angustiante quando a tentativa de salvação reprime qualquer outro sentimento. Sua intensidade pode romper as fronteiras da subjetividade e do mundo objetivo, pelo espanto causado pela plena impressão do sublime ocasionada pela visão de uma potência superior ao indivíduo “além de qualquer possibilidade de comparação, e que o ameaça com o aniquilamento”271. Ainda segundo o filósofo alemão, as grandes tragédias como Hamlet ou Fausto, representariam as ações e os traços do caráter humano de maneira assustadoramente próxima, gerando identificação imediata. A maldade mantém um caminho aberto até o espectador, que, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 271 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005, p. 278. ! !115! sentindo-se capaz de realizar os mesmos atos infames, vê-se incapaz de se revoltar contra as injustiças. Quanto menos absurdamente monstruosa for uma tragédia mais potente ela será. A perversidade apresentada no cotidiano, sem grandes e engenhosos desdobramentos dramáticos, é mais violenta e horrível, pois arrasta os espectadores para dilemas morais profundos e os deixa “horrorizados, já no meio do inferno”272. O horror exposto na tragédia é o drama da vida em si. Ele é eloquente porque a experiência humana é trágica. A morte, a miséria, a corrupção, a maldade, a perversão, o sofrimento são representações funestas da vontade e expõem sua verdadeira e terrível face. O sublime, que insinua a aniquilação do sujeito, encontra nesse cenário decadente e sinistro sua realização máxima, ao menos no que tange às produções poéticas. É o aspecto calamitoso da encenação que oferece o quadro mais legítimo dos pesares humanos e o horror é seu incontornável desfecho. Nas cenas horripilantes, o que está em jogo não são apenas as contradições do espírito, mas sobretudo o efeito fúnebre da vontade. Nas dramatizações em questão, o desespero e a crueldade são apenas materializações dessa mesma vontade, objetos de cena da autêntica e incontornável tragédia do desejo. As considerações de Schopenhauer em O mundo como vontade e como representação fazem clara alusão ao romantismo alemão, cujo representante mais proeminente é Goethe. Os sofrimentos de personagens como Werther, Jacques Rolla ou Childe Harold, originam-se na frustração do desejo sexual. Como vítimas da vontade, esses personagens erram, evocam desgostos e penúrias, e dificilmente conhecem a redenção. Os cenários traduzem a decadência moral e o triunfo da maldade, do cinismo e da perversão. São apavorantes e causam espanto pela devassidão sem limites que se desdobra em horror. Para o Schopenhauer, a exposição dessas paisagens degradantes, assustadoras, é um dos mecanismos mais eficazes para a produção do ápice da fruição estética, intervalo necessário, que serve como bálsamo para a vida, na incessante rota do pesar. O antídoto temporário se faz a partir da matéria bruta da miséria, em uma estranha e eloquente contradição. Nela percebe-se o lado obscuro da vida ultrapassando o palco e o texto e ameaçando o espectador, vítima solidária de todas as dores representadas. Na oposição ideal da binomia, os polos estilísticos do grotesco e do sublime representam a tentativa de resolução de uma angústia pelo todo que a poesia parece incapaz de resolver. Percebe-se uma agonia retroalimentada que não pode escapar à frustração. Daí !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 272 SCHOPENHAUER, Arthur, op. cit., p. 335. ! !116! talvez a recorrência do tema sexual, muitas vezes resolvido como expressão de violência e prenúncio da morte. As forças sinistras que invariavelmente surgem na prosa aqui analisada são a energia oculta de um mundo negro onde o prazer não pode ser pensado sem a dor, assim como o espetáculo da vida se confunde com seu fim. A eclosão dramática do horror traduz uma busca estética pelo sentido como resposta pragmática à perda da experiência absoluta. Na lógica das sensações perdidas, a sensibilidade romântica refaz a possibilidade da transcendência como fantasia necessária na restauração da experiência estética como afetação. “Uma noite do século” apresenta uma síntese das perspectivas filosóficas dos personagens de Noite na taverna. Rejeitando uma poesia edificante, alheia às contradições, o hedonismo consensual filia o conhecimento à sensibilidade. Bertram faz do fumo e do vinho metáforas do idealismo alemão; Solfieri crê que mesmo a alma imortal pode se impregnar com a sujeira do mundo, e para ambos a existência só tem sentido “na febre do libertino”273. Tomando o prazer como matéria poética tem-se o paradigma do desequilíbrio que, segundo Mario Praz, passa a definir a identidade romântica pela contraposição ao equilíbrio do classicismo274. Produzidas sob uma programática desordem imaginativa, as tramas soam estranhas e levam seus protagonistas a tentar provar a verdade das peripécias narradas. Solfieri, por exemplo, quando termina de expor sua história, garante a autenticidade mostrando uma grinalda de flores mirradas que seriam da lápide da mulher que enterrara. Na novela de Teodomiro Alves Pereira, Gennesco avisa ao começar a narrar: “Vais ouvir uma curta mas terrível história, atinge pelo carregar das cores e caráter de seus dois heróis, as sombras de um conto fantástico; é porém pura realidade, e a imaginação de Hoffmann não conseguiria tornála mais dolorosa.”275. As reflexões filosóficas baseadas em autoridades como Spinoza, Hume, Platão, Schiller e Schelling legitimam o culto da lama. Com elas, as falas dos personagens anunciam uma escalada do horror e tornam as desventuras progressivamente mais assustadoras. Noite na taverna e Trindade maldita parecem disputar qual é a mais sinistra e macabra. Na expressão da agonia a tensão entre a expectativa e a impossibilidade de representação, o modelo excessivo encontra no erotismo soturno seu caminho mais eloquente. A dramatização da sexualidade macabra toma como parâmetro uma “violência elementar que anima, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 273 CUNHA, Cilaine Alves. A fundação da literatura brasileira em Noite na taverna, op. cit., p. 122. PRAZ, Mario. The romantic agony. London: Oxford University Press, 1970, p. 8. 275 PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. 3. 274 ! !117! quaisquer que eles sejam, o movimento do erotismo”276, entendendo este como o domínio da violência e da dominação, elemento fronteiriço entre a morte e o assassinato. Como busca de uma continuidade virtual, a morte revela o aspecto indecente da carne em sua procura por uma liberdade ameaçadora. Se o sentido último é a fusão, a supressão do limite que condiciona o ser, a morte como sua apoteose instauraria o fim da angústia, o fim da nostalgia de uma continuidade perdida. Na fabulação do horror desse romantismo soturno, o sexo é o ponto central do crime, motivo preponderante do horror misterioso e fascinante que caracteriza o cinismo literário. É a chave de deflagração dos mistérios humanos, ponto de confluência entre o humano e o animal onde o ser caminha para além de si mesmo na expectativa ideal da representação íntegra de um homem fictício que se reinventa como triunfo do afeto sobre as regras de composição. A percepção de que o excesso prevalece sobre a razão e de que a arte pode ser uma força aniquiladora e prazerosa traz para o esforço ficcional o desejo paradoxal da lembrança do perigo. Assim como o limite do erotismo é a morte, o horror incita a superação das fronteiras. Reforçando o caráter transgressor do erotismo como celebração do prazer, a consciência do interdito se estabelece na relação complementar entre o sentido de transgressão e a força do proibido. Quanto mais se avança no território que deveria permanecer intocado, mais os dispositivos de enunciação do horror ganham força. Em certo sentido o medo é refém de um silêncio precário que, por nunca ser absoluto, abre as portas para a violação. Não há interdito que não possa ser transgredido e horror que não possa avançar. Em sua escalada mais elevada tende a superar a morte na violência da necrofilia e no limite da antropofagia. Em Trindade maldita, Jorge se delicia com o cadáver de sua amante e Eduardo conta como “havia gozado em uma mulher cadáver”. Em Noite na taverna, Solfieri narra com horror a ideia singular que teve ao pegar uma defunta nos braços: “Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os despe a noiva. Era mesmo uma estátua: tão branca era ela […] o gozo foi fervoroso – cevei em perdição aquela vigília.”277. Bertram, depois de sofrer um acidente a bordo de um barco em alto-mar, mata um homem para se alimentar, servindo-se do cadáver por dois dias. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 276 277 BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987, p. 13. AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna, op. cit., p 35. ! !118! “Depois, as aves do mar já baixavam para partilhar minha presa; e às minhas noites fastientas uma sombra vinha reclamar sua ração de carne humana […] Lancei os restos ao mar…”278. Entre a necrofilia e a antropofagia surge um horror para além da morte que se desdobra como violação dos limites. O corpo permanece alvo de violência, e o cadáver não é mais a última fronteira do mal: ressurge como objeto do desejo infinito. Em “Ruínas da glória”, Alberto encontra o amor na visão fantasmagórica de uma mulher bela como um anjo, de olhos puros e meigos, e “uma onda negra de espumoso sangue corria em borbotões de uma larga ferida, e ensopava-lhe a vestimenta”279. O desejo pela morta converte-se então em desejo de morte: “Agora todas as noites eu a vejo bela, ensanguentada sempre!” e quando “o gelo da morte me cair sobre os olhos eu serei eternamente feliz; oh! eu não quero mais viver!”280. Esse desejo se compara ao do personagem do conto de Franklin Távora, Eduardo, que faz do estupro do cadáver de sua mãe o ponto-chave da manifestação do horror. O amor ideal revela-se recorrentemente, portanto, na frieza pálida do cadáver e faz do vício e do crime as marcas de uma literatura transformada em imagem de um mal coletivo. A morte não limita a fabulação do horror: é apenas a curva acentuada da transgressão, escalada sinistra de um horror que faz do exagero sua solução convencional. O sentido de uma profanação constante define a arquitetura dessas tramas, e o choque ideal às sensações assenta-se no uso de cadáveres como escadas para a progressão do mal que extrai do interdito sua energia dramática 281 . A permanência do proibido, do escandaloso, é fundamental para a lógica da maquinaria do horror e sua garantia de sobrevivência. A repetição e o excesso dependem da precariedade da profanação, e nessa falha reside a possibilidade de reprodução. No fim, essas representações do mal que apontam para o torpe dependem de uma sacralidade consensual que garanta seu estatuto. Como afirma Henrique em “A vingança de um irmão”: “O criminoso pode descrever a sangue os passos que o levou à perdição, porque cada passo é um crime e cada crime glória para o seu nome.”282. Conversando com Gennesco, Malthus aponta o sentido da transgressão quando afirma que o heroísmo do amigo é o triunfo do cinismo glorificado no deboche dos valores !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 278 AZEVEDO, Álvares de, op. cit., p 36. VARELA, Fagundes. Ruínas da Glória, op. cit., p. 4. 280 VARELA, Fagundes, op. cit., p. 4. 281 Giorgio Agamben define o ato de profanar como tocar no que é sagrado e assim restituir à comunidade humana aquilo que lhe foi historicamente subtraído pela sacralização. Profanar é, portanto, libertar e trazer ao uso comum o que permaneceu intocável. Ver AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. 282 BUENO, Galvão, op. cit., p. 17. 279 ! !119! convencionais. O jovem pálido e altivo que se entusiasma nas orgias “despejando em catadupas torrentes de poesia” é definido como “o mesmo homem que se ri infernalmente dos sentimentos mais puros que a sociedade consagrou. Pelo Papa! Eis uma maravilha”283. O deslumbre com o cinismo é exemplo raro entre heróis que preferem professar suas aventuras como gloriosas maldições. A culpa traduzida em conquista dá o tom de transgressões resignadas, e resta aos sorrisos o tom infernal que os controla. Em geral não há a alegria sadia de uma filosofia afirmativa do prazer sem limites, mas um pesar romantizado, por vezes convertido em riqueza simbólica do crime. O lamento paradoxal – como o de Bertram, que sofre por ter sido levado à perdição por uma mulher e ter sido “abandonado no mundo, como a infanticida que matou o seu filho”284 – dá o tom dos horrores e mantém as excessivas perversões na chave da alteridade marginal. No corpus analisado, a figura central é quase sempre um tipo próximo e estranho, personagem modelar, o perverso padrão de onde se espera o comportamento imoral. Na imagem do estudante ébrio, do religioso devasso, do amaldiçoado no nascimento, do frequentador de sombrias tavernas, constrói-se uma imaginação literária do horror em torno de arquétipos perigosos. O horror parece não assombrar o homem comum. Unidos pelos vínculos da perversão e do crime e pelos signos da noite, os textos acumulam cenas terríveis, como em um desfile fantástico de atrocidades que beiram o grotesco285. A estética sombria que constrói o horror com o absurdo da crueldade funciona na lógica da transgressão consentida, pois a possibilidade de exagerar o tom é garantida pela propagação mapeada. Circulando entre pares, o horror literário cria vínculos estéticos que se transformam em monumentos de práticas literárias comuns e fortalecem identidades autorais que, no jogo da mitificação da vida literária estudantil, se confundem com determinado sentido de boemia. O horror que tem o cinismo como base prolifera no campo relativamente hermético em que é convertido em sinal do tempo, ou mal do século. Assim, a origem da representação do medo deve-se à dramatização de um mal ao mesmo tempo pernicioso e glorioso. No limite, trata-se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 283 284 PEREIRA, Teodomiro Alves, op. cit., p. 4. Referência ao drama Otelo, de Shakespeare. AZEVEDO, Álvares de. Noite na taverna, op. cit., p. 14. 285 Vagner Camilo identifica uma matriz rabelaisiana na poesia romântica dos estudantes paulistas. Em riso entre pares: poesia e comicidade no romantismo brasileiro, afirma que, ao imprimirem o selo de pantagruelismo nos seus versos, os estudantes estariam sugerindo “uma aproximação desejada com um universo que traduzisse, a despeito do hiperbolismo que os separa, o espírito reinante na boemia estudantil de São Paulo. A matriz rabelaisiana estaria assim muito mais presa ao clima reinante no ambiente estudantil, embora não se possa pensar os bestialógicos sem ele”. CAMILO, Vagner. Riso entre pares: poesia e comicidade no romantismo brasileiro. Dissertação apresentada ao Departamento de Teoria Literária do Instituto de Teoria da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, 1993, p. 119. ! !120! de um jogo de cartas marcadas, literatura de estudante e para estudante na qual a suposta transgressão da ordem moral é pensada no domínio da recepção previsível. Ainda que se trate de um horror da alteridade controlada, na inscrição do outro reside a formulação arquetípica de um tipo ideal capaz, como Dalmo, de simbolicamente representar o universo estudantil paulista. A representação do mal como uma excentricidade relativamente próxima implica em uma forma de horror em que a busca do efeito não se dá exatamente pelo suspense ou pela apresentação do desconhecido, mas por um aprofundamento exagerado dos princípios da degeneração de valores que pretensamente ultrapassam os limites literários. O horror fundado no ceticismo avança em para transformar em medo a sensação do reconhecimento parcial. A empatia balanceada na figura do outro estranho garante ao mesmo tempo reconhecimento necessário e a distância para que, no fim, o cinismo funcione nos limites da solidariedade parcial. A circulação restrita das obras permitiu a exploração de um horror excessivo que tem, no controle do interdito, o domínio de uma noção romântica do homem sentimental que encarna a idealização de uma representação íntegra. O personagem estranho e íntimo protagoniza a trama virtual de um século corrupto que transforma a referência literária em substância positiva da experiência para que a invenção soe como reflexo de um mal historicamente reconhecível. Na tentativa de serem progressivamente mais assustadoras, as tramas incidem no mesmo problema que Clara Reeve detecta na obra de Walpole: o excesso de fantasia esvazia o efeito de horror. Na interminável galeria de horrores, o medo perde força diante da dramatização de um cinismo doentio que afirma seu pertencimento ao tempo como elogio de uma decadência forjada nos quadros de uma formulação estética, que tem no sublime a chave de realização de uma arte de contrastes. O horror literário publicado majoritariamente em periódicos acadêmicos em meados do século XIX apresenta alguns motivos que reaparecerão em textos impressos em jornais de maior circulação a partir da segunda metade do século. No entanto, observa-se uma suavização dos temas em novas abordagens que enfatizam o aspecto lúdico do medo ficcional. A ampliação do público leitor se dará a medida que forem mudando os parâmetros da empatia. O horror se difunde de acordo com o desenvolvimento de um mercado literário interessado nos deleites que as histórias assustadoras prometem fornecer. Com a representação de tipos mais comuns o horror aparecerá como imagem de um passado sombrio, mas também será o traço de um cotidiano eventualmente aberto ao fantástico. ! !121! 3. O horror nas chaves da amenidade e da ironia 3.1. A difusão do medo em jornais e folhetins No artigo “O jornal e o livro”, publicado no Correio Mercantil entre 10 e 12 de janeiro de 1859, Machado de Assis ressalta o caráter “democrático” dos jornais, sobretudo seu poder de divulgar ideias. Tratando o veículo como “a verdadeira forma da república do pensamento”, defende seu papel decisivo na modernidade como “a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos”. Divulgador dinâmico do conhecimento, lugar da “literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das convicções”.286 Afirmando relativa superioridade em relação ao livro, em especial no que tange ao fervor dos debates, destaca a ascensão do talento “à tribuna comum” promovida pela imprensa. O caráter de literatura cotidiana faria das colunas jornalísticas a “reprodução diária do espírito de um povo, espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos”287 onde reverberaria o pensamento popular. A ideia de que o jornal teria como missão popularizar a literatura é especialmente significativa para analisar a ampliação do público consumidor de poesia e narrativas ficcionais em meados do século XIX. Marlyse Meyer lembra que, já entre 1839 e 1842, os romances-folhetim 288 são publicados quase diariamente no Jornal do Commercio. São comuns os textos do francês Paul de Kock e narrativas sombrias como Os mistérios da torre de Londres, publicada em 1842 e atribuída ao Comendador Leo Lespés. Romances nacionais são raros, mas são abundantes os textos traduzidos, majoritariamente do francês, nos quais predominam os temas góticos ou que remetem ao romance de cavalaria. Dentre eles destacam-se ainda O noivo de além-túmulo, sem indicação autoral, além de A capela gótica, publicado em 1844, Othon, o arqueiro, de 1839, e Legenda de Pedro, o cruel, de 1839, de Alexandre Dumas. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 286 ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1859. ASSIS, Machado de. O jornal e o livro. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1859. 288 A autora defende a origem francesa do romance-folhetim afirmando: “De início, ou seja, começos do século XIX, le feuilleton designa um lugar preciso do jornal: o rez-de-chausée (rés do chão, rodapé, geralmente o da primeira página). Tinha uma finalidade precisa: era um espaço vazio destinado ao entretenimento”. Ao longo do tempo, poemas e narrativas ficcionais ocupariam esse espaço dedicado a frivolidades para atrair o público. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 57. 287 ! !122! Poucas publicações foram tão marcantes na década de 1840 quanto a edição fracionada de Os mistérios de Paris, de Eugène Sue, traduzido por Justiniano José da Rocha e publicado entre 1o de setembro de 1844 e 20 de janeiro de 1845. A procura foi tão grande que o primeiro volume da primeira parte, lançado por J. Villeneuve & Cia, esgotou em poucos dias. O romance que revela uma Paris cinza, subterrânea e assustadora, recheada de misérias e criminosos, porém, traz o humor de personagens como Pipelet, que deu origem a uma febre de leitura e deu origem a uma série de edições sucessivas289. Na edição de O Guaianá de 4 de julho 1856, um artigo assinado apenas por A.P.S. compara Alexandre Dumas a Eugène Sue: o primeiro “pinta melhor o belo, o grandioso, o sublime, o maravilhoso, o sobre-humano”; o segundo “pende mais para o feio, o mal, o crime, as trevas, o horror!”290. Histórias sinistras continuariam a aparecer nos anos seguintes, dentre elas As noites do cemitério e O vampiro de Val de Grâce, de Leon Gozlan, publicadas em 1850 e 1862, respectivamente; A boneca do diabo, em 1862, de Eugène Guinot, e A alma do outro mundo, em 1862, de Ponson du Terrail. A publicação desses textos indica não somente a rápida ascensão do folhetim francês como também sugere a formação de um corpo de leitores capazes de fazer desse gênero elemento crucial no volume de vendas dos jornais. Segundo Marlyse Meyer, o romance-folhetim teria penetrado na cultura letrada brasileira pelo espaço aberto por novelas consideradas de segundo time, como Oscar e Amanda, de Regina Maria Roche, autora cuja obra era associada à de Ann Radcliffe; e Sinclair das Ilhas, de uma novelista e educadora inglesa. Essa novela chegou ao Brasil, na tradução francesa feita por Mme. de Montolieu, como um típico romance gótico inglês. “Nele de tudo se encontra: enredos cheios de suspenses, raptos, sequestros, abandonos, torneios medievais, castelos góticos ruínas, capelas, exaltação da natureza, a velha Escócia, ilhas selvagens, nobres cavaleiros e horríveis vilões”291. O Jornal das Senhoras – periódico dominical voltado para “moda, literatura, belas artes, teatro e crítica” que circulou entre 1852 e 1855 – publica um romance de sua fundadora, Juana Paula Manso de Noronha, Misterios del Plata. O título, segundo a autora, não seria “mera imitação servil aos Mistérios de Paris ou aos de Londres”, mas uma alusão às !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 289 Em “Edição, recepção e mobilidade do romance Les mystères de Paris no Brasil oitocentista”, Nelson Schapochnik relaciona essa febre de leitura com as diversas estratégias editoriais de divulgação da obra no Brasil. Varia hist., vol. 26, nº 44, Belo Horizonte, jul./dez. 2010. 290 A. P. S. Rápido paralelo crítico entre Alexandre Dumas e Eugène Sue. O Guaianá, São Paulo, 4 de julho de 1856. 291 MEYER, Marlyse, op. cit., p. 46. ! !123! atrocidades do ditador argentino Juan Manuel de Rosas. Os sofrimentos de suas vítimas no contexto da Guerra do Prata “permanecerão um mistério para as gerações vindouras, apesar de tudo contra ele que se tem escrito”. Noronha comenta a necessidade de produzir uma literatura local, latino-americana ou propriamente nacional, recusando o uso constante dos “tipos da velha Europa”. Afirma a dificuldade de revelar o passado do continente americano porque, apesar dos progressos da civilização, o século XIX conservaria “preconceitos e horrores e, mesmo frente a frente com a verdade, custa-lhe sair dos góticos edifícios cujos carcomidos alicerces por toda parte se desmoronam”292. A origem argentina da autora talvez ajude a explicar o interesse pelo tema, assim como a defesa de uma literatura latino-americana, projeto não muito comum entre os homens de letras brasileiros. Mesmo que a autora negue a subserviência aos modelos estrangeiros, o romance, que trata especificamente da derrocada de Rosas, reproduz a estrutura típica do gótico com o personagem do jurista Alsina como herói ideal, defensor da liberdade de imprensa e dos direitos do cidadão. É curioso que a proposta folhetinesca que inaugura o jornal tenha esse tom indicativo de que a noção de literatura feminina para “gentis leitoras” abarca também o drama político de tons graves. Ao propor “propagar a ilustração e cooperar com todas as suas forças para o melhoramento social e para emancipação moral da mulher”, o Jornal das Senhoras – que ainda publica romances como Amor, ciúme e vingança, de Pereira da Silva, e A jarilla, de D. Carolina Coronado – configura-se como espaço de divulgação tanto de traduções como de literatura original em meados do século XIX. A repercussão da obra de Eugène Sue geraria ainda outros frutos. Vicente Félix de Castro publicaria, primeiramente em folhetim no Jornal de Guaratinguetá, e posteriormente em livro em 1861, Os mistérios da roça. O texto, como o romance de Sue, começa em tom sombrio: “Seriam onze horas mais ou menos, um vulto caminhava a passos lentos por uma das ruas da cidade […] e parando defronte a porta principal de uma casa de boa aparência, bateu com mistério três pancadinhas compassadas.”293. A trama transforma as ruas de uma cidade no interior de São Paulo no cenário tétrico de homicídios e tabernas escuras onde “o vício do jogo corrompe a alma”. A obra de Félix de Castro inclui ainda Os dramas de sangue !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 292 MEYER, Marlyse, op. cit., p. 300. CASTRO, Vicente Félix de. Os mistérios da roça. Guaratinguetá: Typografia Comercial de V. R da Fonseca, 1861, p. 1, Tomo I. 293 ! !124! ou os sofrimentos da escravidão, romance de traços realistas que dramatiza as dores da escravidão com as cores carregadas do romantismo rocambolesco dos folhetins. Os pequenos romances e as novelas aliavam o tom soturno gótico às cores mais leves das aventuras do folhetim francês para formar um conjunto de textos que, além de agradar os leitores, servia de referência para novas produções. Lembremos o depoimento de José de Alencar: Nosso repertório romântico era pequeno; compunha-se de uma dúzia de obras entre as quais primavam a Amanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas, Celestina e outras de que já não me recordo. Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e muitas vezes o mesmo romance, quiçá contribuiu para mais gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura literária, que mais tarde deviam servir aos informes esboços do novel escritor.294 Esse pequeno repertório forneceria modelos para a produção de uma prosa que buscava se adequar ao gosto de um público emergente. A mescla da peripécia com o mistério, da paixão desmedida com os infortúnios, seria a chave de uma ficção de apelo sentimental que não perderia a noção de efeito do horizonte. Tendo como eixo comum o romance gótico tipificado, por exemplo, na obra referencial de Ann Radcliffe, o folhetim e o melodrama ajudam a estruturar um corpus de grande apelo que serviria ainda como “primeira lição de literatura para muitos escritores”295. Essa “educação literária” pelo romance folhetinesco é bem representada nas memórias literárias de José de Alencar que conta sua chegada a São Paulo: Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam uns cadernos escritos em letra miúda e conchegada. Eram o meu tesouro literário. Ali estavam fragmentos de romances, alguns apenas começados, outros já no desfecho, mas ainda sem princípio. De charadas e versos, nem lembrança. Estas flores efêmeras das primeiras águas tinham passado com elas. Rasgara as páginas dos meus canhenhos e atirara os fragmentos no turbilhão das folhas secas das mangueiras, a cuja sombra folgara aquele ano feliz de minha infância. Nessa época tinha eu dois moldes para o romance. /Um merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o recebera das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas de um castelo, amortalhadas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 294 295 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista, op. cit., p.13 ALENCAR, José de, op. cit., p.14. ! !125! pelo baço clarão da lua; ou n’alguma capela gótica frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa. O outro molde, que me fora inspirado pela narrativa pitoresca do meu amigo Sombra, era risonho, loução, brincado, recendendo graças e perfumes agrestes. Aí a cena abria-se em uma campina, marchetada de flores, e regada pelo sussurrante arroio que a bordava de recamos cristalinos. Tudo isto, porém, era esfumilho que mais tarde devia apagar-se.296 Ainda no mesmo texto, o escritor relata suas primeiras experiências de leitura como momentos de comunhão familiar, lembrando o curioso caso de quando o Padre Carlos chega a sua casa e surpreende sua mãe e algumas amigas aos prantos, comovidas pela leitura de um dos volumes da biblioteca. Esses moldes, que no caso do autor de O guarani seriam posteriormente superados pelos estudos acadêmicos da literatura francesa de Balzac e Voltaire, compunham um corpus que ajudaria a formar os padrões de gosto literário das camadas letradas da população brasileira297. O gótico definido por seus arquétipos aparece ao lado do tipo risonho e perfumado característico de uma versão mais suave do romantismo. A junção desses dois tipos aparecerá em incontáveis folhetins, formatando um modelo ficcional em que o soturno e o suave convivem por vezes medindo forças. Não há necessariamente contradição entre os estilos e tonalidades: eles se articulam na literatura cotidiana oitocentista como ficção “do segundo time”, voltada essencialmente para o público feminino. As ruínas dos castelos, as capelas góticas, as graças e os perfumes agrestes ocupam as páginas dos jornais e atendem prontamente a demanda por literatura amena. É leitura as horas de ócio , mercadoria barata no campo literário brasileiro do século XIX. Importante meio de divulgação ficcional, a Revista Popular, editada por Garnier, circula entre 1859 e 1862 com a declarada proposta editorial de “escrever de tudo para todos” e tem como domínio “tudo o que abrange o entendimento humano”. A prosa e a poesia deverão servir aos momentos de lazer, sem se esquecer que “recreando pode-se instruir disfarçadamente” e que o recreio que se busca nos livros “deve ser uma instrução amena”. O periódico, “uma das publicações mais conceituadas do tempo”298, contaria com a contribuição !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 296 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista, op. cit., p.15-16. Apenas como referência, lembramos que segundo o Censo de 1890, a população da capital federal era de 522 mil habitantes, dos quais 57,9% dos homens e 43,8% das mulheres foram registrados como alfabetizados, o que totalizava cerca de 270 mil pessoas capazes de ler e escrever. Os números são apresentados por Alessandra El Far em Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro 1870-1924. São Paulo: Companhia das Letras, s/d, p. 13. 298 SODRÉ, Nelson Werneck, op. cit., p. 192. 297 ! !126! de nomes como Justiniano José da Rocha, Bernardo Guimarães e Joaquim Manuel de Macedo escrevendo para leitores e leitoras, inclusive, para quem não só nenhuma de suas seções seria vedada como lhes caberia um “cantinho” especial: “Os trabalho de agulha para as solteiras, a economia doméstica para as casadas e as modas para todas.”299. Em relação à publicação literária, a proposta dos redatores da Revista Popular é declaradamente nacionalista. “Longe de banir a literatura estrangeira, dar-lhe-emos generosa hospitalidade, mas não esqueceremos que escrevemos no Brasil e em língua portuguesa. Não correremos os da casa para afagar os de fora.”300 A ênfase na divulgação do produto local se faria no número de poemas e narrativas curtas de autores nacionais e de artigos críticos a eles dedicados. Em 1861, por exemplo, é publicado um longo artigo de Joaquim Norberto de Souza Silva intitulado “Originalidade da literatura brasileira”, em que se discute a relação com a literatura europeia. O tom mais grave é relativamente raro, pois o espaço dedicado ao tema geralmente traz assuntos menos complexos. Ainda em 1861, um comentário sobre os acontecimentos da quinzena anterior revela determinadas perspectivas sobre arte e literatura: Grande foi o movimento da quinzena que hoje finda: a nossa pobre cidade, desde muito entregue à monotonia da insipidez, viu-se de súbito tomada de assalto por variados passatempos e assistiu ao agradável espetáculo dado pela literatura no ato de proteger a arte e de transformar em rápidas horas de prazer os dias que escoavam-se lânguidos e saturados de aborrecimento.301 Entendido como antídoto contra o tédio, o espetáculo da literatura converte em prazer o aborrecimento cotidiano. Essa atividade de puro deleite tem no entretenimento seu compromisso maior. Em outra edição da mesma crônica quinzenal, comentando a obra de Leonel de Alencar o colunista afirma que este não seria mais “o folhetinista, que ao correr da pena conversa com suas leitoras, e lhes conta meia dúzia de intrigas, ouvidas em um ou noutro baile”, nem o viajante que narra suas singelas impressões de viagem: “Menos risonho do que este e mais grave do que aquele, dedica-se agora ao romance, e torna lembrados o folhetim e o viajor.”302. A separação entre o folhetim e o romance atribui pouca densidade ao !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 299 Revista Popular, p. 4, Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1859. Revista Popular, p. 3, Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1859. 301 Revista Popular, p. 6, Rio de Janeiro, 10, junho de 1861. 302 Revista Popular, p. 3, Rio de Janeiro, 8 de abril de 1861. 300 ! !127! primeiro e entende o segundo como trabalho de maior seriedade. Ao folhetim caberia tratar as pequenas vicissitudes do cotidiano, ao romance a gravidade dos grandes temas. Um dos mais constantes colaboradores da revista, Padre Francisco Bernardino de Souza – poeta, memorialista, ensaísta, orador, tradutor, jornalista, professor e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – escreve textos curtos catalogados tanto na seção Variedades, quanto na Descrições e narrativas. Em 1861, publica “O cadáver”, conto publicado na seção de variedades e que narra os últimos suspiros de vida de um homem. Trata-se de uma descrição do “aspecto horrível da morte” apresentada em detalhes que enfatizam a aparência terrível do moribundo: “Aqueles olhos embaciados, que nenhum movimento, nenhum sopro anima: aquele semblante sem cor; aqueles lábios frios e roxos; aquela rigidez dos membros” constituem um espetáculo tétrico, um “horror que esvoaça em torno da morte, esse silêncio pavoroso que eriça os cabelos e faz cair em bagas o suor da fronte! Como é feia a morte!”303. O horror reside na decomposição do cadáver e serve de reflexão sobre a perenidade da vida. O homem que até pouco tempo experimentava a riqueza do mundo transforma-se em “pasto de nojentos vermes, que lhe devorarão os membros, vai sentir o frio da terra, vai envolver-se no silêncio, nas trevas e no horror do túmulo!”. Além da dimensão moral da reflexão de como a vaidade mundana se converte no horror da putrefação, há a constatação de que se pode aprender com a morte: “Quanta lição não há no meditar do túmulo, no contemplar do cadáver!”304, conclui o padre. Com enredo simples, o texto concentra-se na narração do espetáculo terrível oferecido pela morte retratada minuciosamente em seus mais repugnantes detalhes. Esse não é o único texto do padre dedicado a cenas naturalmente terríveis. Em 1862 publica “A tempestade”, apresentado como páginas soltas, “fragmento de um livro inédito”. Nele narra um terrível desastre marítimo enfatizando o horror de uma tripulação à beira da morte. A natureza é descrita com grandiloquência; a tempestade e o mar são apresentados como forças incontroláveis as quais o homem pode apenas contemplar. A representação romântica surge como fonte da arrebatadora experiência do sublime: “homens que soçobram, cadáveres que boiam, sulcam o espaço cavado em que a tempestade brame. E mais logo – !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1861. 303 SOUZA, Francisco Bernardino de. O cadáver. Revista Popular, Rio de Janeiro, p. 52, março de 304 SOUZA, Francisco Bernardino de. O cadáver, Revista Popular, p. 53, Rio de Janeiro, março de 1861. ! !128! outra montanha de mar, outra reunião de vagas vem cobrir esta cena e sepultar esses cadáveres de homens e de navios.”305. Em agosto do mesmo ano publica um texto de maior fôlego, “A lenda do judeu errante”, na seção Descrições e narrativas. A história, apresentada como uma lenda que transcenderia séculos, povos e parte do repertório da imaginação popular “que os livros não escrevem”, revelaria a queda para “o maravilhoso e o sobrenatural” que caracterizaria a humanidade306. O “fantástico personagem”, apesar de nunca ter sido visto, teria sua história reproduzida oralmente, mas ninguém de boa fé acreditaria em sua existência. Sua história se perpetuaria como um mito, uma “alegoria engenhosa” sobre o povo judeu. A trama fala de um homem amaldiçoado e condenado a vagar errante pela eternidade por não permitir que Jesus descansasse próximo a sua porta. O horror residiria justamente na impossibilidade da morte: “Arrastar eternamente este montão de poeira, com a lividez de cadáver e a exalar podridão! […] Contemplar por milhares de anos a uniformidade, esse monstro de goela aberta […]”307. Considerada “o mais horrível dos anátemas”, a perambulação eterna é tratada como parte de um repertório imaginário fantástico que se aproxima dos romances góticos. A escrita de tramas fantásticas que os livros não necessariamente contemplariam aparece como esforço de transcrição letrada de um repertório disperso que, na chave do gótico e do fantástico, entra na cena literária como um artefato para um mercado de consumo diário. O processo se assemelha ao que Defoe fez com as histórias de fantasmas em meados do século XVIII: compilou-as e transformou-as em produto para periódicos. “O monge” é outra narrativa publicada na Revista Popular que apresenta um tema tipicamente gótico308. Trata-se da história de um homem que decide entrar para o mosteiro arrependido de se casar com uma mulher demoniacamente atraente. Ele assume uma “expressão terrível”, vagando pelo mosteiro como “um fantasma a correr seu fadário aqui na terra”, tentando esquecer a mulher que “morrera perdida no torvelinho da vida” 309 . Reproduzindo o tema da mulher demoníaca, a trama se vale da obscuridade do mosteiro para !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1862. Nerval. 305 SOUZA, Francisco Bernardino de. A tempestade. Revista Popular, Rio de Janeiro, p. 48, março de 306 O autor afirma que seu relato é baseado na tradução de um artigo publicado em Paris por Gérard de 307 SOUZA, Francisco Bernardino de. A lenda do judeu errante, Revista Popular, Rio de Janeiro, p.280, 1 1º de setembro de 1862. 308 A narrativa é assinada apenas por “F”. É provável que tenha sido escrita por Padre Francisco Bernardino de Souza, pois também traz a indicação “fragmento de um livro inédito”, muito comum em seus textos na Revista Popular. 309 SOUZA, Francisco Bernardino de. O monge. Revista Popular, Rio de Janeiro, p. 280, 15 de setembro de 1862. o ! !129! compor uma atmosfera sinistra em que a esperança da redenção religiosa se mistura com a angústia gerada pela sedução satânica. A inspiração demoníaca aparecerá também em “Um raio”, texto assinado por Insulano e publicado em 1o de fevereiro de 1861. Inspirado por forças malignas, um jovem casal apaixonado foge para uma floresta sinistra, onde são atacados por um tigre. A noite em que a donzela morre é descrita com ênfase na terrível atmosfera de medo que a floresta traduz. A angústia do rapaz é retratada com “dó e pena que se inundam em lágrimas de sangue; horror de crime que enluta o arrependimento e a morte”310. Os eventos horríveis continuam. Um barco com homens à procura do casal sofre com o mar revolto e é atingido por um raio, o que dá origem a um “grito uníssono, terrível e desesperado”. Passado o incidente, deu-se “a mesma escuridão e tormenta, a mesma fúria do mar, o mesmo roncar da trovoada e a mesma confusão e terror”311. O demônio aparece como propulsor da trama, mas é a natureza que se revelará a verdadeira agente do horror. Nas imagens do tigre, do mar revolto e do raio, o sublime aparece como dispositivo deflagrador da experiência sensível. A possível conclusão moral que condena a atitude rebelde do casal é ínfima diante dos quadros eloquentes da ação da natureza. Há um esforço muito maior em comover pelas românticas descrições de seu poder devastador do que em refletir sobre a atitude dos jovens, para os quais o narrador ao final pede aos leitores que rezem uma prece. O sobrenatural é menos importante do que a potencialidade terrível do mundo natural. Em “O punhal de marfim”, J.F. de Meneses comenta que o título sugeriria “um romance fantástico”, mas trata-se de um fato real a ele relatado por um fantasma, uma aparição noturna e misteriosa do tipo que teria inspirado também autores como Charles Dickens e Archim d’Arnim. O texto narra eventos ocorridos com Maria, uma princesa contemporânea, que “não habitava castelos góticos”, mas “ricos palácios de escadaria de mármore”. Maria apaixona-se por Alberto, poeta romântico incapaz de amar. Mas o narrador previne não se tratar de um “herói de Byron, Shakespeare ou Musset”, nem de “um desses cínicos de Paris”. A caracterização de Alberto se dá no contraste entre modelos românticos distintos: ele não é o devasso dos poemas de Byron, mas o tipo apaixonado mais próximo dos folhetins. Representado como um jovem que sofre o amor perdido, Alberto atua em uma trama que não pretende exibir os horrores do cinismo, mas afirmar o caráter definitivo da !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 310 311 INSULANO. Um raio. Revista Popular. Rio de Janeiro, p. 142, 1o de fevereiro de 1861. INSULANO. Um raio. Revista Popular. Rio de Janeiro, p. 145, 1o de fevereiro de 1861. ! !130! paixão, desdobrado em “estigma de maldição”. A caracterização de Maria como um tipo mais moderno marca as fronteiras com o gótico sem abrir mão de sua estrutura básica. O autor diz não contar com a crença do leitor, mas, sugerindo uma chave de leitura, afirma que existe na trama “um fato real”, escondido na forma de uma alegoria ou símbolo. Caberia ao leitor “a descortinação deles”312. O conto, inicialmente atrelado à lógica do romance fantástico vale-se de personagens sobrenaturais para, no fim, revelar-se uma trama tipicamente romântica com crimes motivados por ciúmes e juras de amor eterno. Ao jogar com as possibilidades de crença do leitor, o narrador impõe um jogo que deve se resolver pela verossimilhança. A investigação da alegoria ou do símbolo transformaria uma narrativa inicialmente fantástica em representação de uma realidade escondida. As capacidades interpretativas do leitor são explicitamente convocadas para construir o sentido da trama. O uso da fantasia é legitimado pela proposta de sua negação, como se os artifícios ficcionais precisassem ser descortinados para que a trama fizesse sentido. Se o fantasma da inspiração estimula o conto, a técnica interpretativa deve lhe atribuir significado. Em setembro de 1861, J.F. de Meneses publica “Poverino”313, conto que lembra Noites da taverna. Narra as aventuras libertinas do jovem Francisco por diversas cidades do mundo314. Contando sua vida para uma plateia de jovens que bebem e fumam em uma sala, diz como, em Veneza, à beira da morte, fora salvo por Raimundo, outro jovem brasileiro que viajava e caíra “nos braços de mulheres perdidas” após desilusão amorosa. A atmosfera de cinismo marca todo o conto; há divagações literárias, citações de George Sand e especulações filosóficas sobre o amor e o materialismo, bem aos moldes da literatura romântica acadêmica. Destaca-se, no entanto, o momento em que o protagonista, em suas andanças pela Europa depois de se encostar-se às “pilastras e colunas dos templos gregos” e beijar “o pó de suas glórias e ruínas”, sente saudade do Brasil e recita os versos melancólicos de “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. A saudade da pátria, parcialmente saciada no encontro com Raimundo, que se lamentava pelo mesmo motivo, quase o leva à morte, mas atenua o ceticismo. O conto é como !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 312 1862. MENESES, J. F. de. O punhal de marfim. Revista Popular, Rio de Janeiro, p. 204, 15 de agosto de 313 A palavra italiana do título pode tanto designar pobre ou desgraçado como constituir uma alusão à novela Teverino, de George Sand, citada no próprio conto, que por sua vez narra também a história de um homem desafortunado. 314 O conto é dedicado a Augusto Emílio Zaluar, autor de O Doutor Benignus (1875), considerado um protótipo da ficção científica brasileira. ! !131! um ponto de convergência entre os textos acadêmicos e o tipo de horror literário que figuraria em jornais com o perfil da Revista Popular. Se a fórmula ”narrador que conta histórias terríveis para uma plateia” se repetiria em muitos outros casos, a ênfase na vida libertina vai perdendo força. O horror passará a se instalar no drama de personagens menos excêntricos, e por vezes não será mais que uma peça pregada pelo narrador. 3.2. Um terror de interesse doméstico Em janeiro de 1863, a Revista Popular transforma-se em Jornal das Famílias, dentro da seguinte linha editorial: Jornal das Famílias é a mesma Revista Popular doravante mais exclusivamente dedicada aos interesses domésticos das famílias brasileiras. Mais do que nunca dobraremos os nossos zelos na busca na escolha dos artigos que havemos de publicar, escolhendo sempre os que mais importarem ao país, à economia doméstica, à instrução moral e recreativa, à higiene, em uma a palavra, ao recreio e utilidade das famílias.315 A mudança feita para atingir mais especificamente os interesses domésticos femininos, garantiria ao assinante, no fim de um ano, um “elegante volume de 384 páginas” cujo conteúdo seria, fundamentalmente, “literatura amena, [grifo do meu] algumas ilustrações, muitas gravuras sobre aço, desenhos a aquarela coloridos, ditos de trabalho de crochê, lã e bordados; moldes de enfeites para senhoras, figurinos e peças de músicas inéditas, etc.”. O repertório apresentado para atrair consumidores enfatiza peças artísticas cujo objetivo maior seria o deleite cotidiano para as horas de ócio. A ênfase nos temas de moda e literatura estaria relacionada ainda ao fato de o jornal passar a ser impresso em Paris, o que teria melhorado a qualidade da impressão e barateado os custos mas o teria deixado desatualizado como noticiário. No ano de sua fundação é publicada “Flor do baile”, história de J.F. de Meneses retratada como fato verídico, pois seu narrador, citando Dumas Filho, comenta: “Não tendo ainda idade de inventar, contento-me em referir”. Diz estar cumprindo ordens dos editores: “A redação deste jornal recomendou-me um conto simples e breve, e que pudesse entrar no vosso toucador” e se diz honrado, pois “o toucador de uma dama é um templo: ali nas dobras !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 315 Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, p. 6, janeiro de 1863. ! !132! d’aquelas cortinas, quanto mistério e quanta poesia dormem em silencio”316. Trata-se de uma história de amor com final trágico em que Luiz Antonio, poeta, estudante, sofre com a morte de Thereza, descrita como “débil e mórbida”. O caráter boêmio do protagonista é destacado, e, ao caracterizá-lo como diabinho, o narrador se justifica: “Leitoras, este termo aqui é um sacrilégio, mas lembre-se de que Luiz Antonio era estudante”. A figura do acadêmico romântico é utilizada na chave amena dos exageros do amor. O sofrimento não redunda em orgias, mas no velar eterno do cadáver da amada, cujos restos mortais foram depositados no cemitério São João Batista. A tensão entre relato e ficção expressa na modéstia do narrador se faria presente em outra história publicada no ano seguinte, “A fantasia da morte”, assinada apenas por Hopes. O narrador – depois de lembrar as leis que escapam à razão humana – conta um “drama sinistro” passado em uma capital da América do Sul. Trata-se de um “romance doloroso e triste” que infelizmente não pertenceria “à fantasia do narrador”, e seria transcrito conforme lhe permitissem os limites de sua memória. Quando relata o interesse da protagonista Angelita pelos relatos das viagens de Júlio, amigo de seu marido, afirma: “Não há nada como as descrições em que toma parte o maravilhoso para alucinar as imaginações femininas!”317. Um passageiro interesse sexual de Angelita por Júlio a fez corroer-se pela culpa e a transformou em um ser estranho que estampava no “semblante o selo fúnebre da sepultura”. Para se redimir, a morta-viva matou o amante imaginário e se suicidou. Nos dois contos as histórias de amor e morte são apresentadas como relatos verídicos de um narrador que é apenas um relator. Tenta-se, pela recusa à dimensão ficcional das tramas, uma identificação direta com as leitoras. Tratadas como verdades esquecidas ou fatos testemunhados, as histórias transformam os salões de baile e salas de jantar em espaços de representação de um medo eventualmente verdadeiro. As leitoras são convidadas a partilhar os dramas de personagens comuns em situações carregadas de sofrimento. As páginas dedicadas à literatura amena por vezes se transformam em crônicas de dramas possíveis, descrições de supostos horrores cotidianos. Essa literatura que adentra os mistérios do toucador tem a punição dos pecados como um de seus mais recorrentes motes. Em “A mão de Deus”, de D. Maria de Albuquerque, Leonor de Paiva convalesce aos vinte anos de idade. Confessa ao padre Arsênio ter o inferno dentro do peito, devastada pelos prazeres acumulados nas orgias. Morre com “ondas de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 316 317 MENESES, J. F. de. A flor do baile. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, abril de 1863. HOPES. A fantasia da morte. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, janeiro de 1864. ! !133! sangue que lhe saíam dos lábios” 318. O horror emana das descrições de seu corpo em perecimento e atinge o auge em sua súplica inútil pela vida. O tema da devassidão punida reaparece no Jornal das Famílias não simplesmente como educação moral, mas como enlace de dois modelos românticos diferentes. Mas se, como dito anteriormente, o cinismo triunfante do horror literário acadêmico e as possibilidades de redenção da literatura amena têm matrizes distintas, não raro elas se encontram. Em “Ada”, conto assinado por Candido, o narrador lembra a beleza da poesia de Lorde Byron319 ao mesmo tempo que lamenta ser o autor uma “alma infelizmente obcecada pelas ideias do ceticismo perigoso introduzido na moderna filosofia”320. Na louvação da beleza, mas também na crítica ao ceticismo de Byron, constrói-se uma trama cujo final terrível se deve à renúncia sentimentos. A sublimação do desejo de uma das personagens permite que o horror da morte seja redimido na felicidade conjugal de uma mulher nascida sob o signo “de um dos maiores poetas do tempo”. O mesmo tema que daria origem a histórias de perversão é apresentado como contraponto virtuoso, e o medo que no horror acadêmico se estabelecia no jogo da identificação com a libertinagem manifesta-se nas descrições de uma morte heroica.. O fúnebre desenlace da trama é atenuado pela expectativa de amor eterno entre Ada e João da Cunha. Apresentada como relato verídico de aterradores acontecimentos passados no interior do Pará durante a revolta da Cabanagem321, “Ida”, de Viriato Duarte, aproxima o romance histórico do gênero gótico. Conta a história de amor entre Ida e Vimy, dificultada pela presença do vilão indígena Aley-Ass. Os amantes fogem inspirados pela “virtude da paixão” que os eleva para além da “vida real”, “esse charco imundo de vícios, de hipocrisia, de ambição e de sangue”322. O contexto é descrito também com imagens fortes: “Corria o ano de 1835, tão funesto à província do Pará. As bacchanalias de sangue estavam em seu apogeu, e os gritos das vítimas do punhal do assassino consternavam todo o império”. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 318 1867. ALBUQUERQUE. D. Maria de. A mão de Deus, Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, julho de 319 O título é uma referência ao nome da única filha do poeta inglês, Ada Augusta Byron King. CANDIDO. Ada. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, fevereiro de 1869. 321 Sobre a revolta ocorrida na província do Grão-Pará promovida por grupos políticos interessados na permanência da região como parte do Império português, ver: CHIAVENATO, Júlio José. Cabanagem, o povo no poder. São Paulo: Brasiliense, 1984. 322 DUARTE, Viriato. Ida. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, junho de 1865. 320 ! !134! As cores desses “dias horríveis” eram dadas pela onda crescente de violência, e “aqueles mesmos que matavam, e se embriagavam com o sangue, não sabiam o porquê dessa carnificina!”. No final, o narrador lembra ser tudo verdade: nomes e lugares teriam sido alterados, mas tudo se passara em alguma região do Pará. A violenta narrativa recorre a determinado contexto histórico para lançar mão de mecanismos típicos da estética gótica. Um vilão que tenta separar um casal apaixonado, lutas sangrentas, ambientes escuros, selvas sinistras e desfecho melodramático compõem um cenário de horror em que a evocação de um passado bárbaro cria a sensação de um mundo distante e amedrontador. O sublime reaparece de maneira muito clara. Ao final da primeira parte há uma reflexão sobre as belezas naturais que contrastam radicalmente com o horror dos crimes humanos. A divindade da natureza ofereceria a possibilidade de redenção para o mais sanguinário dos bárbaros, que deveria se curvar diante de tal magnitude e atingir “sensações novas e elevadas”. Na contemplação, a alma abandonaria as misérias do mundo material para repousar no “espaço sem fim” das harmonias celestes. Mais do que uma chave de apreciação, o efeito é evocado em sua dimensão transcendental e regeneradora, a qual fomenta o belo diante do horror disseminado. O que se observa tanto em “Ida” quanto em Adelaide de Sargans, romance histórico de D.C. Figueiras publicado em 1869, é a ênfase nas cenas de horror, como se toda a narrativa convergisse para esses momentos de contrução do medo. A trama, sobre as infelicidades de uma condessa, teria sido baseada em um livro de história encontrado pelo narrador em uma noite de insônia na casa de um amigo, aonde fora para fugir dos temores noturnos: “Quantas ideias esquisitas, quantos rumores indecifráveis, quantas extravagâncias me esvoaçaram pela mente! Como andou veloz e fecunda a fantasia em criar-me sombras, preocupações e terrores infantis!”323. A história seria fielmente baseada em fatos ocorridos com a nobreza suíça, com castelos suntuosos como palcos de crimes e cenas violentas. A proximidade com o romance gótico é evidente. Heróis e vilões nobres se articulam pelo poder, e a condessa de Wart é um modelo de virtude que passa por numerosos infortúnios enquanto Ignez da Hungria cumpre o papel de vilã sem escrúpulos. Eis uma amostra dos horrores da época nas palavras do narrador: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! ! !135! O sangue que corria dos teus cadafalsos tingia de carmim as águas azuladas do teu lago, e o braço do carrasco cansou! A desconfiança, a espionagem, o furor da vingança derramaram um véu de luto sobre ti e teus arredores, e o próprio céu, escondendo as límpidas estrelas, pareceu recusar-se a refletir as hediondas cenas! Não pensem nossas leitoras que exagero quando assim me exprimo. A história oferece aos curiosos exatos pormenores de todos os fatos e acontecimentos daquela época, e são tão precisos os dados, e acordes os historiadores, que não é lícito duvidar da veracidade do que contam. É fora de duvida, por exemplo, que subiu a muito mais de mil e trezentos o número de vítimas oferecidas em holocausto sobre o túmulo de Alberto de Áustria, por sua viúva e por sua filha Ignez, rainha de Hungria.324 O esforço de representação do horror se vale do expediente histórico para exagerar os quadros assustadores da violência. Há uma deliberada ênfase na dor das vítimas e nas atrocidades da vilania. A redenção afigura-se improvável quando considerados os momentos de tortura. Mesmo a história de amor entre Adelaide e Rodolfo aparece como suporte às cenas chocantes que o narrador precisa reafirmar como verdadeiras, sob o risco da descrença e a consequente perda do efeito de horror. Apesar de toda a desgraça narrada e mesmo após o assassinato dos heróis, há lugar para redenção, quando a malévola Ignez tem uma visão, quase enlouquece e se arrepende de seu passado vingativo. No entanto, restam as cenas de horror como mecanismo de dramatização de um mal que não se apaga completamente e que é baseado na representação violenta de um passado medieval, obscuro e estranho. Um sentido histórico diferente define “A cruz de fogo”, assinado por Leo Junius325 em 1871. Contando o drama de uma linhagem de homens desgraçados, marcados pela cicatriz de uma cruz no peito, o texto traz arrepiantes cenas de violência passadas no Brasil: O Brasil com seus campos matizados de flores vicejantes, com suas florestas virgens, seus regatos que murmuram docemente, seus rios caudalosos e seus rochedos e montanhas majestosas, encerra no solo abençoado riquezas imensas, que olhos observadores ainda não puderam de todo pesquisar. Este solo, porém, mais de uma vez tem sido juncado de cadáveres, regado com o sangue de mais de uma vítima, que a sede de ouro, ou a vingança terrível de seus filhos tem derramado. Mais de um crime se tem cometido, mais de um drama horrível com todas as suas peripécias tem passado despercebido, sem que o historiador narrando os acontecimentos da época, pintando os !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 324 325 FIGUEIRAS, D. C. Adelaide de Sargans. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, março de 1869. Lembramos que se trata do pseudônimo de José da Rocha Leão. ! !136! costumes, ou descrevendo os tipos fisionômicos de seus autores, escreva a crônica desses fatos, e assim leve ao conhecimento da geração vindoura a história desses dramas sanguinolentos, que fazem estremecer de horror o coração humano.326 É como se o narrador denunciasse a ausência de relatos sobre os crimes cometidos em terras brasileiras. Se nem as belezas naturais foram devidamente retratadas, os delitos foram ainda menos contemplados por historiadores. O drama de João da Cruz, sujeito amaldiçoado que vaga pelo mundo envolvido em crimes e cujo destino trágico – morrer na estrada e ser devorado por corvos – é transmitido para outras gerações, serve de mote para a dramatização de um Brasil violento, temível e sem leis. O tema do errante desgraçado reaparece no sofrimento de um homem que expõe sua miséria “aos raios do sol abrasador do Brasil”. A nacionalização do motivo, enfatizada na categorização de “romance original brasileiro”, implica a descrição de alguns cenários locais, mas se efetiva sem descaracterizar a dimensão trágica fundamental. O drama sangrento pressupõe um esforço inicial de identificação histórica, apresentado como verdade oculta motivada pela ganância e pela vingança, e a trama que se resolve nas previsões de uma feiticeira busca alicerçar-se como possibilidade verossímil apenas temperada com elementos fantásticos. O caráter histórico, no entanto, não está delineado em uma estrutura política, é apenas a imagem de um passado obscuro não necessariamente superado. As cenas de crueldade são oferecidas às gentis leitoras como entretenimento; horror ao mesmo tempo possível e distante; imagens de uma terra estranha, mesmo que brasileira. A relação entre romance gótico e romance histórico na chave da literatura amena seria marcada pela nacionalização dos motivos, e o principal objetivo é aparentemente a empatia. Obviamente o problema do nacionalismo está no horizonte, mas, no caso específico dos textos analisados, a ênfase parece recair na descrição do horror, potencializado por se passar em território comum. A dramatização do passado, portanto, serve às representações de um Brasil imaginado na mesma medida em que constrói um cenário conveniente para a imaginação literária do horror. De maneira geral, a representação do Brasil não será prioritária na chave do horror ameno. Ele será mais claramente definido pela presença de um narrador astucioso que joga !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 326 JUNIUS, Leo. A cruz de fogo. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, novembro de 1871. ! !137! com as expectativas dos leitores. Em “Horrível tragédia”, de D. Maria Medeiros de Albuquerque, a narradora conta que, uma noite, Margarida, ao voltar do teatro, entra em seu quarto de toucador e percebe uma desordem em sua casa, como se “um terrível drama se tivesse representado”. Indo ao outro cômodo encontra seu marido morto. Desesperada, grita e é amparada pela criada, que lhe diz que tudo não passara de um “sonho, filho das tristes impressões desta noite”327. A começar pelo título, toda a estrutura sugere uma história terrível, mas a expectativa é desfeita em um final que resolve os efeitos de suspense como um jogo. Essa forma particularmente gentil de horror terá em Machado de Assis um dos mais recorrentes artífices328. Sílvio Romero afirmou em uma de suas críticas que os textos machadianos são recheados com doses de humor e “às vezes de cenas com pretensão ao horrível”329. Tais características teriam se manifestado em um segundo momento de sua obra, como desvio de um lirismo suave que lhe seria característico e consequência de suas pretensões filosóficas, que se expressariam no humor e no horror. Mantendo o tom crítico em relação ao escritor carioca, disse ainda que faltaria um grau de impávida loucura que fizesse suas cenas de horror tão medonhas quanto as de Edgar Allan Poe, ou de Dostoiévski em Recordações da casa dos mortos. O primeiro conto de Machado de Assis publicado no Jornal das Famílias foi “Frei Simão”, em junho de 1864. A frequência de sua participação no periódico aumentaria com o tempo, e no que tange ao problema do horror, “O capitão Mendonça”, publicado em 1870, é o marco inicial.330A história começa quando Amaral, querendo fugir da solidão, decide ir a um espetáculo no teatro São Pedro sem saber exatamente qual peça seria apresentada. Ao se sentar tem seu nome chamado por um desconhecido que se apresenta como o Mendonça e que diz ter sido amigo de armas de seu falecido pai. Diante da peça enfadonha e pelo fato de o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 327 1867. ALBUQUERQUE, D. Maria de. Horrível tragédia, Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, maio de 328 Os textos machadianos analisados neste e no próximo tópico foram selecionados tendo em vista a tentativa de construção de efeitos específicos. Contos como “O país das quimeras” e “A igreja do diabo”, por exemplo, apesar da alusão ao fantástico não foram selecionados por não se enquadrarem exatamente na lógica de imaginação do medo priorizada neste estudo. De qualquer maneira o objetivo aqui não é dar conta de toda extensa produção de contos do escritor, apenas analisar duas modalidades distintas de exploração do horror. 329 ROMERO, Sílvio. Compêndio de história da literatura brasileira. Org. Luiz Antonio Barreto. Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 28. 330 Segundo Daniela Magalhães Silveira Machado de Assis teria publicado 84 contos no Jornal das Famílias, alguns assinados com pseudônimos. SILVEIRA, Daniela Magalhães. Contos alinhavados: a participação de Machado de Assis em periódicos de moda e literatura. Vol. 8, nº 11, junho de 2011. Dossiê História e literatura. Disponível em: http://migre.me/hyCKW . Acesso em: 20 nov. 2012. ! !138! capitão parecer uma figura interessante, Amaral aceita o convite para cearem em sua casa. Ao entrar o jovem se depara com um cenário sinistro: a entrada da casa parecia o “corredor do inferno”. Mesmo tremendo de medo e desconfiando tratar-se de uma emboscada, decide continuar. O sentimento de horror é apaziguado pela presença de Augusta, moça de belos olhos verdes que Amaral julga ser filha do capitão. O jantar transcorre bem, a jovem passa a ser seu laço com a realidade naquele cenário fantástico que o próprio dono da casa define como “purgatorial”. Os três conversam descontraidamente quando Mendonça comenta a beleza dos olhos de Augusta e obtém total concordância de Amaral. Surpreendentemente, o capitão oferece os olhos da moça ao rapaz, que se assusta. De maneira tragicômica, Amaral descobre que a moça era uma criação de Mendonça, sua obra-prima, esforço de anos de dedicação ao conhecimento científico, especialmente à química e à alquimia. Assustado, mas curiosamente atraído por Augusta, decide ir embora, mas, ameaçado de morte, promete voltar no dia seguinte. O acontecimento fantástico o lembra uma trama literária: “Ocorreu-me um conto fantástico de Hoffmann em que um alquimista pretende ter alcançado o segredo de produzir criaturas humanas. A criação romântica de ontem não podia ser a realidade de hoje?”331. Perdido entre os limites da razão e a loucura, Amaral se apaixona por Augusta assim como Natanael se apaixonara por Olímpia, autômato do clássico O Homem da areia. Dando vazão ao absurdo, Amaral a pede em casamento, obtendo o consentimento do seu criador, que afirma serem o amor e a ciência as duas grandes faces da vida. A aquiescência de Mendonça acompanha um estranho pedido: o rapaz deveria ser cobaia em uma experiência que visava transformá-lo em gênio – afinal, a perfeição de Augusta exigia um par à altura. Quando acorda imaginando que lhe fora introduzida determinada quantidade de éter no cérebro, Amaral se encontra sozinho deitado na cadeira do teatro São Pedro. Tudo não passara de um sonho. Ao sair, o bilheteiro lhe entrega um bilhete do capitão: ele estava dormindo quando o capitão o encontrou e, para não incomodá-lo, deixou nas mãos do funcionário o convite para uma visita. Mesmo convencido de que o Mendonça real não era o do sonho, declina do convite afirmando: “Berrem os praguentos, embora: tu és rainha do mundo ò superstição.”332 Um dos elementos centrais do conto é o tratamento jocoso de um dos mais marcantes temas românticos: o amor fulminante. Amaral se apaixona por Augusta mesmo depois que seu pai lhe oferece, literalmente, seus olhos. Mesmo sabendo tratar-se de uma máquina, não !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 331 332 ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p.970. ASSIS, Machado de, op. cit., p. 974. ! !139! resiste aos seus atributos, e, por força desse encantamento, penetra cada vez mais profundamente em uma situação absolutamente absurda quando a reação evidente seria fugir. O clima de horror se faz nessa tensão, nessa articulação entre o que deveria ser uma resposta óbvia e o que de fato acontece. Por que Amaral volta ao cenário de horror? Por que insiste em se envolver com um cientista louco e um autômato sedutor? As perguntas encaminham a leitura, e o aspecto propriamente inacreditável fica em segundo plano. O crível e o não crível ganham outra dimensão, passam a se referir mais às ações imponderadas do protagonista do que à possibilidade de construir autômatos. Zombar das perspectivas românticas aparece uma forma de jogar com os limites da ficção. Quando, comentando Hoffmann, Amaral se indaga sobre a possibilidade da criação romântica de ontem ser a realidade de hoje, ele suspende o sentido fantástico para tentar lhe atribuir verossimilhança. Orienta seus atos entre a crença e a desconfiança, perdido entre aquilo que seus olhos veem e o que determinado princípio de realidade define como possível. Quando acorda do pesadelo anuncia uma resolução: “Não mais recorrer, em casos de arrufo, aos dramas ultrarromânticos: são pesados demais.”333. Tão pesados e enfadonhos que lhe fizeram sonhar uma história fantástica que ri de seus princípios e por isso torna-se interessante334. Se o drama apresentado no teatro era marcado por assassinatos e tinha caráter trágico, o sonho de Amaral ganha a cena como anedota fantasiosa, um pesadelo que se esclarece no final. Esclarece, mas deixa uma sombra de dúvida manifestada na superstição do protagonista. No retorno ao princípio de verossimilhança evidencia-se a estratégia de ir do familiar ao estranho, do crível ao incrível. Se o amor de Amaral parece possível pela via romântica, o fato de o alvo da paixão ser uma boneca ressalta o absurdo, assim como a revelação do pesadelo opera um retorno ao verossímil imediatamente questionado na permanência da superstição. O universo onírico é explorado também em “A vida eterna”, publicado no Jornal das Famílias, em 1870, sob o pseudônimo de Camilo da Anunciação. O conto apresenta a história de um homem que, depois de jantar com um amigo, estando quase a dormir, recebe a visita de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 333 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 973. Outro conto que claramente zomba de temas românticos é “A mulher pálida”, publicado em 1881 no periódico A Estação. Um jovem morre procurando a mulher mais pálida por quem se apaixonar: “Alguns creem simplesmente que ele estava doido; e esta opinião, posto que menos romântica, é talvez a mais verdadeira. Em todo caso, foi assim que ele morreu, pedindo uma pálida, e abraçando-se à pálida morte. Pallida mors, etc.”. No sofrimento do protagonista, tanto o idealismo do amor perfeito quanto a obsessão um tanto mórbida pela brancura da pele são alvos de ironia, tratados como possível traço de loucura. 334 ! !140! um estranho chamado Tobias, que lhe fala do pressentimento de que morreria no dia seguinte. Seu último desejo seria que Camilo, o dono da casa, se casasse com sua filha Eusébia. Depois da recusa inicial, é forçado a aceitar o convite sob a mira de uma arma. Chegando à estranha mansão de Tobias, o noivo é saudado pelos convidados que o aguardavam. O mais estranho, porém, viria a seguir, quando Camilo se depara com a jovem noiva. A paixão inusitada parece correspondida; Eusébia diz que seu pai não poderia ter escolhido melhor pretendente, mesmo considerando a idade avançada do noivo. Depois do casamento, Eusébia revela o segredo por trás daquela história absurda. Seu pai havia descoberto, no Egito, o elixir da eternidade e, para que funcionasse, foi necessário “organizar uma associação secreta, e cear todos os anos no dia de S. Bartolomeu, um velho maior de sessenta anos de idade, assado no forno, e beber vinho puro por cima”335. Conta que inúmeras vítimas já haviam sido sacrificadas, e ele seria a próxima. Nesse instante seu pai entra no quarto, prende Camilo e o amarra em uma mesa, matando-o com um punhal. O banquete que se segue é narrado em tons de uma comédia grotesca. De repente, o esquartejado ouve a voz do Dr. Vaz. Assustado, pergunta pelos canibais, para logo descobrir que tudo não passara de um pesadelo. No outro dia, Camilo sai para jantar com o amigo, que lhe sugere que escreva e mande a história ao Jornal das Famílias, comprometendo-se a entregá-la pessoalmente ao editor Garnier. O jogo de pistas falsas que cria a atmosfera de horror se dá logo no início do texto. O narrador deixa claro que se encontra naquele incomparável estado de espírito entre o sono e a vigília. É como se dissesse de antemão para o leitor que os acontecimentos que se seguirão não são de todo confiáveis. Um narrador duvidoso torna toda a trama isenta de grandes responsabilidades com a verossimilhança. O leitor é convidado a seguir um caminho turvo, avisado de que o que está por vir deve surpreendê-lo. Todavia, algumas estratégias são utilizadas para encobrir a fantasia. Quando Camilo se apaixona por Eusébia, toda a falta de sentido como que se desfaz. Novamente aqui, o tema romântico do amor incondicional é utilizado para injetar realidade no absurdo. Por um momento o amor imediato de Camilo parece dar rumo à trama sem nexo. O inverossímil é quase coerente pela lógica de uma hipótese sentimental igualmente difícil de acreditar. Tais contradições reforçam a debilidade do texto e deixam permanecer um clima de incerteza resolvido pelo final anedótico. A incerteza, no entanto, não polariza !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 335 ASSIS, Machado de. Contos fantásticos de Machado de Assis. MAGALHÃES Júnior, Raimundo (Org.). Rio de Janeiro: Bloch, 1973, p.112. ! !141! realidade e ficção, mas níveis ficcionais distintos. Em nenhum momento se duvida do caráter irreal da narrativa, haja vista que, durante o clímax, o protagonista morto é capaz de ouvir as vozes daqueles que o esquartejam. A dúvida gira em torno do desfecho, da expectativa pelo momento em que o absurdo ficcional encontrará seu limite – a falsa fictio encontrará a vera fictio336. O retorno ao verossímil é garantido por uma metalinguagem humorística, quando o conto se anuncia como tal – ele chega a ser assinado pelo protagonista. O pseudônimo nesse caso reforça a piada, o jogo, que não chega de fato a iludir o leitor, mas o coloca em uma situação curiosa, na qual o mais deliberadamente ficcional é sobrepujado pela ficção verossímil. Trata-se de um conto publicado no jornal que esse leitor tem nas mãos. O fantástico está a serviço da verossimilhança absoluta, e a ilusão se completa quando um narrador-autor se transforma no relator de uma história ao mesmo tempo insólita e real. A tensão entre o simples relato e a ficção reaparece em “Sem olhos”, que Machado de Assis publicou em 1876. O conto se inicia na sala de chá onde o casal Vasconcelos recebe quatro convidados. Quando a conversa passa a ser sobre almas do outro mundo, o Sr. Bento Soares se diz surpreso quanto ao fato de um adulto levar crendices a sério; ele entende histórias sobrenaturais como coisa de criança. O desembargador Cruz retruca: A vida de um homem “não passa de uma série de infâncias, umas menos graciosas que as outras”337. O evento transcorre bem, apesar do clima de flerte entre Maria do Céu, mulher de Bento Soares, e o bacharel Antunes, um dos convidados. A certa altura, o desembargador Cruz revela ter vivido uma experiência extraordinária que levaria todos a rever seus conceitos sobre tais almas de outro mundo. Mesmo relutante, depois dos convivas muito insistirem, decide contar a história. Ela começa quando Cruz, jovem estudante da capital paulista, visita a fazenda do pai no Rio de Janeiro. Certa noite um vizinho lhe bate a porta perguntando se o rapaz sabia ler hebraico, pois estava às voltas com uma passagem bíblica, um versículo de Jonas, o 11º do capítulo IV: “Homens, que não sabem discernir entre a sua mão direita e sua mão esquerda”. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 336 Em “O imortal” e a verossimilhança”, João Adolfo Hansen define ficção verdadeira, vera fictio, como narração que relaciona a essência verdadeira de algo com eventos não acontecidos; já a ficção falsa, falsa fictio, inventa algo impossível de existir e, assim, de acontecer. O autor salienta ainda que ambas são produtos de uma operação da imaginação, uma técnica, forma e efeito aplicados ora ao conhecimento da essência, ora ao conhecimento da existência. HANSEN, João Adolfo. O imortal e a verossimilhança. In: Teresa: Revista de Literatura Brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Editora 34, vols. 6/7, p. 58. 337 ASSIS, Machado de. Sem olhos. In: Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira. ESTEVES, Lainister de Oliveira. (Org.). Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2010, p. 73. ! !142! Diz não compreender exatamente o significado daquelas palavras, mas oferece uma estranha explicação que Cruz ignora tentando rapidamente se despedir do homem que lhe pareceu louco. No outro dia, ao buscar informações sobre o vizinho misterioso, descobre se tratar de um médico que algumas pessoas da comunidade local julgavam ter pacto com o diabo. Interessado no que poderia se transformar em “uma anedota romântica” a ser contada em São Paulo, o jovem vai visitar o médico identificado como Damasceno Rodrigues. Rapidamente começam uma amizade. Cruz descobre em Damasceno uma figura fascinante e excêntrica o suficiente para afirmar que a Lua não existe, é apenas uma ilusão de óptica. Em uma das visitas encontra o velho adoecido que, pressentindo a morte, lhe dá um conselho: “Mancebo, disse ele com a voz cava; não olhe nunca para a mulher do seu próximo” e “sobretudo não a obrigue a olhar para o senhor. Comprará por esse preço a paz de sua vida toda”. Dito isso lhe conta a terrível história de quando, no interior da Bahia, se apaixonara por Lucinda, mulher casada com um médico da região que ousou lhe retribuir os olhares apaixonados e foi punida pelo marido. Ele mostra uma foto ao jovem e lhe diz que, ao saber de boatos sobre sua morte, decide ir falar com o marido. Chegando a casa se depara com uma cena terrível, em que Lucinda é castigada. Narrando a história macabra, que Cruz destaca ter sido relatada com lucidez não habitual ao narrador, Damasceno se debate ao olhar para um canto do quarto: “Seus olhos resumiam todo o terror que é possível conter a alma humana”. Assustado, Cruz olha na mesma direção e vê “uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os olhos […] Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensanguentadas”. O desembargador diz que depois de se refazer da experiência, e do médico ter morrido, fez uma pesquisa para escrever a história para um jornal acadêmico. Descobre que Damasceno nunca fora a Bahia, e a foto que lhe dera era de uma sobrinha morta. “Não havia dúvida: o episódio que ele me referira era uma ilusão como a da Lua, uma pura ilusão dos sentidos, uma simples invenção de alienado.”338. No entanto fica a dúvida: quem seria a mulher sem olhos que ele vira no quarto? Não é dada nenhuma resposta definitiva ao mistério, e o conto termina com Maria do Céu com os olhos baixos, estremecida com as palavras do desembargador enquanto o bacharel Antunes vai para janela tomar um ar, “talvez refletir a tempo no risco de vir a interpretar algum dia um hebraísmo das Escrituras”339. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 338 339 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 102. ASSIS, Machado de, op. cit., p. 102. ! !143! Não é muito difícil imaginar que a história não passe de uma anedota inventada pelo desembargador Cruz a fim de repreender o discreto flerte entre Maria do Céu e Bento Soares. “Não olhe nunca para a mulher do seu próximo”, afirma o protagonista adiantando a moral da trama. Também não é difícil imaginar que esse tipo de mensagem seja conveniente em um jornal voltado para mulheres da boa sociedade. Moralismos à parte, o que sobressai é o efeito persuasivo de uma história aparentemente fantástica que se resolve como alucinação psicológica, uma vez que um dos convidados tenta solucionar o mistério, o que sugere que a visão fantasmagórica de Cruz teria sido condicionada pelos desvarios do moribundo. O desembargador chega a concordar, resignado: a história seria melhor se Lucinda de fato tivesse existido; afinal “que outro rival de Otelo há aí como esse marido que queimou com ferro em brasa os mais belos olhos do mundo, em castigo de haverem fitado outros olhos estranhos?”340. Caso a história fosse completamente verdadeira estariam todos diante de uma monumental tragédia de intrigas e traições comparáveis aos melhores dramas shakespearianos. Mas, infelizmente para o auditório, a trama não é tão misteriosa, nem tão interessante. Ela tem apenas o objetivo de entreter a plateia enquanto repreende o casal de possíveis amantes. É preciso lembrar que, logo no início do conto, Bento Soares afirma que a crença no sobrenatural é coisa de criança, ilusão imprópria para homens feitos. Em um texto de 1927 sobre o humor Freud diz que o humorista trata a plateia como criança, pois ri de seus dilemas e sofrimentos e os tratas como triviais. Com ares de superioridade, zomba: “Olhem! Aqui está o mundo que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas que se faça dele uma pilhéria!”341 O narrador apresenta uma história sobrenatural e tenta torná-la factível na medida, por exemplo, em que ressalta o ar de sanidade do médico, mas logo a desmonta ao revelar a inexistência de Lucinda. Literalmente infantiliza sua plateia, manipulando-a em um jogo de pistas que se contradizem. No final, ao expressar sua frustração com o fato de a história não ser de todo real, apresenta sua feição sarcástica. A astúcia fica ainda mais evidente se lembrarmos que, no início da conversa, é justamente ele que defende a possibilidade da crença no sobrenatural, quando afirma que a vida do homem não passa de uma série de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 340 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 102. FREUD, Sigmund. O humor. [1927]. Rio de Janeiro: Imago, 1980, p. 68. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, vol. XXI.) 341 ! !144! infâncias. Defende matreiramente a fantasia para garantir o ar de verossimilhança a uma história que se revela falsa. Talvez seu único objetivo seja, no papel de humorista, divertir-se com o constrangimento de Bento Soares e Maria do Céu. Não por acaso, assim que termina a narração pergunta: “Crê agora em fantasmas, D. Maria do Céu?”. Importante também é destacar que o interesse de Cruz pelo mistério tem como motivo a intenção de publicar a história em um periódico acadêmico de São Paulo. O mesmo interesse por tramas macabras une diferentes perfis de leitores, e o que interessaria aos estudantes como evento sobrenatural transforma-se em literatura amena no singelo constrangimento dos possíveis amantes. Assim como “Sem olhos”, “Um esqueleto”, conto de 1875, começa com uma conversa sobre assuntos variados que envereda pelo caminho do estranho. A figura exótica, nesse caso, é Dr. Belém, e quem narra a história é Alberto, seu aluno de alemão que fala comovido de saudades: “Não me posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime em rebentar-me dos olhos.”342. Passa então a contar a história do esqueleto, pois, segundo ele, seria suficiente para demonstrar toda a excentricidade do erudito doutor. Instaura-se um clima tétrico, e Alberto diz que um dia, no fim de uma das aulas, conversando sobre casamento o professor, que era viúvo, subitamente decide se casar. Já teria até a noiva em mente, uma jovem viúva chamada Marcelina. Perguntado sobre a esposa anterior, sem grandes cerimônias Dr. Belém convida Alberto para ir vê-la. Já dentro de seu gabinete, arranca o pano verde de um armário e mostra o esqueleto da ex-mulher, surpreendendo o estudante. Este comenta com os ouvintes: “Ainda hoje, apesar dos anos que lá vão, e da mudança que fez o meu espírito, não posso lembrar-me daquela cena sem terror.”343 Assustado, o jovem vai embora e decide nunca mais voltar àquele cenário horrível. No entanto, diante da insistência do doutor, que apela para sua amizade, depois de algumas semanas está de volta à casa do Dr. Belém, que já havia se casado com Marcelina. O pior ainda estava por vir. Dr. Belém se revela o assassino de sua primeira esposa, em um crime passional por suspeita infundada de traição. Diz ainda que o esqueleto funciona como um alerta para que a atual esposa não dê margens a suspeitas, pois faria justiça com as próprias mãos mesmo antes de apurar os fatos. Embora assustado, Alberto continua com as visitas até que um dia os três saem para um passeio no campo e se deparam com o esqueleto. O doutor explica seu plano de matar a ambos, pois recebera uma carta anônima que revelava um caso !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 342 ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 814. ASSIS, Machado de, op. cit., p. 815. 343 ! !145! entre os dois. Os acusados negam a história, mas o marido continua desconfiado. No entanto, desiste dos assassinatos e some no mato carregando o esqueleto. A história termina com Marcelina aos prantos nos braços de Alberto. Diante do clima de horror instaurado entre os convivas, Alberto anuncia que a história não passava de uma anedota. O excêntrico Dr. Belém nunca existiu. Cabe analisar as estratégias de persuasão que orientam a busca de credibilidade. A articulação do sentido duvidoso do conto se manifesta, basicamente, na representação de Dr. Belém como homem “extremamente singular”, cuja bondade é sempre destacada pelo narrador, que chega a justificar a presença do esqueleto como desdobramento possível do amor que o doutor sentia pela esposa. A incerteza em relação a seu caráter faz com que Alberto nutra uma relação de atração e repulsa. Ele tenta deixar de visitar a casa, sempre sem sucesso. Seu retorno constante é um traço marcante das histórias de horror nas quais o protagonista insiste em voltar para o lugar onde será vítima de alguma situação macabra. É o caso, por exemplo, de “O barril de amontilhado”, de Edgar Allan Poe. Fortunato insiste em entrar na catacumba sinistra onde será assassinado, apesar das irônicas tentativas de dissuasão de seu assassino.344 Alberto, por sua vez, retorna para surpresas cada vez mais assustadoras: primeiro vê o esqueleto no armário, depois na mesa de jantar e no final ainda é levado a uma emboscada, da qual sobrevive graças a um arrependimento de última hora. Construindo um personagem entre a loucura e a razão, com motivações sinistras e precariamente explicadas, o narrador consegue prender a atenção da plateia sem ser interrompido. A relação entre o crível e o absurdo garante o prolongamento satisfatório da narrativa, mas o instrumento de persuasão mais eficaz aparece antes mesmo de a história começar. Vale lembrar que Alberto chora ao começar a falar do personagem inventado. As lágrimas são sua mais expressiva piada e o mais poderoso mecanismo de fazer crer. Com o truque ganha o auditório, que se frustra ao se descobrir enganado, não sem antes manifestar-se revoltado contra o tal Dr. Belém. A malícia do narrador é o próprio motor dramático do horror. Este, por sua vez, só funciona graças à articulação de diferentes níveis de ficção. A frustração da plateia antecipa a do leitor e o que era crença parcial no absurdo transforma-se em convicção absoluta nos limites da realidade. O horror desaparece quando o artifício é escancarado; desaparece sem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 344 POE, Edgar Allan. Tales of grotesque and arabesque. London: Worth Press, 2009. ! !146! nunca se completar perfeitamente porque o esse artifício nunca se camufla por completo, está presente como um pressuposto da lógica da amenidade. A artimanha do narrador novamente dá lugar ao sonho no conto “A chinela turca”, de Machado de Assis, publicado no jornal A Época345, em 1875. Logo no início da história, bacharel Duarte aguarda a visita do major Lopo Alves; visita inoportuna, pois o bacharel estava ansioso para ir a um baile encontrar sua amada Cecília. Porém, sendo o major aparentado com a jovem, não pode negar o encontro. A visita se mostra ainda mais desagradável quando Lopo Alves, inspirado por um drama ultrarromântico, diz ter escrito seu próprio, e exige um parecer imediato de Duarte. Sem ter como negar, senta-se em seu gabinete para ler a peça. Dividida em sete quadros, o drama não traz nada de novo, “somente a letra do autor”; trata-se de um desfile de clichês românticos. Depois de ler o segundo quadro, enfadado e furioso por ter perdido o baile, dá-se conta de que o major já não se encontra na casa. Um dos empregados de Duarte o informa de outra visita, desta vez de um policial. O homem lhe dá uma notícia inusitada: Duarte está sendo acusado de roubar uma valiosa chinela turca vinda do Egito. Ainda sem entender o que se passa, Duarte descobre que na verdade está sendo vítima de sequestro. É levado para uma casa elegante onde é obrigado a se casar com a dona da tal chinela, uma belíssima mulher loura de olhos azuis como os de Cecília. Duarte, no entanto, mostra-se contrário ao casamento, mas o mestre da estranha cerimônia o obriga a fazer três coisas: casar-se, assinar um testamento e tomar veneno, fazendo da moça herdeira universal de sua “fortunazinha de cento e cinquenta contos”. Desesperado, o bacharel consegue fugir por uma janela entreaberta. Cansado e ofegante, entra em outra casa, onde se depara com um homem que está lendo o Jornal do Commercio: era Lopo Alves, que aguardava o parecer sobre seu drama. Descobre que tudo não passara de um sonho, diz sarcasticamente ter gostado da peça, e o major vai embora. Novamente se está diante de um narrador ardiloso que tenta fazer crer no absurdo. Ardiloso e sarcástico, pois narra a história comicamente fazendo pastiche dos dramas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 345 Revista literária fundada por Machado de Assis e Joaquim Nabuco em 1875 que durou apenas quatro números. Sobre o conto e o periódico o escritor comenta: “Este conto foi publicado, pela primeira vez, na Época nº 1, de 14 de novembro de 1875. Trazia o pseudônimo de “Manassés”, com que assinei outros artigos daquela folha efêmera. O redator principal era um espírito eminente, que a política veio tomar às letras: Joaquim Nabuco. Posso dizê-lo sem indiscrição. Éramos poucos e amigos. O programa era não ter programa, como declarou o artigo inicial, ficando a cada redator plena liberdade de opinião, pela qual respondia exclusivamente. O tom (feita a natural reserva da parte de um colaborador) era elegante, literário, ático. A folha durou quatro números”. ASSIS, Machado de. Obras completas, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, vol. II. ! !147! românticos. Enganado por sua imaginação, devolve a peça ao leitor, vítima de uma ilusão que o salvou do tédio; retribui seguro de não ser ela entediante justamente por escapar dos lugares-comuns de um romantismo clichê. O fim do conto guarda uma atribuição de valor: a história pode ser falsa, absurda, mas é original e não há de ser entediante. Toda a trama gira em torno da fuga, fuga mental de uma história enfadonha que se converte em fuga de uma cerimônia macabra, devaneio fantástico como forma de escapar do tédio. No retorno a determinado sentido de realidade, quando uma forma ficcional verossímil se sobrepõe a uma menos crível, o mistério se esclarece na exaltação dos momentos de triunfo da fantasia. Na dramatização do confronto entre a vera ficio e a falsa fictio, a primeira, apesar de mais poderosa, mecanismo de fechamento da narrativa, faz um tributo à segunda, dispositivo mais eficaz de dissolução do tédio. O agradecimento do protagonista à ninfa vem acompanhado da constatação de um “bom negócio”: um pesadelo é ainda melhor que o tédio, o medo é ainda melhor companheiro que o clichê. Tendo como ponto em comum uma explicação final que garante certa estabilidade ao sentido das tramas, os contos analisados fazem do horror anedota cômica. Trazem situações que beiram o inexplicável para que a explicação venha em um tipo de metalinguagem que denuncia o artificial como artifício. Quando a resolução, ao mesmo tempo frustrante e reconfortante, é apresentada e o jogo de cartas marcadas se esclarece, ficam evidentes as artimanhas literárias de persuasão para o suspense. O final é então a última risada de um narrador malicioso e pretensamente onisciente que não só passa a impressão de ter o domínio do sentido do texto como o faz como zombaria. Aqui o horror é definitivamente uma piada forjada para exaltar uma retórica do suspense, é um mecanismo de triunfo do verossímil sobre o inverossímil. Talvez a lógica de circulação dos textos de Machado de Assis até aqui apresentados (somente “A chinela turca” não foi publicado no Jornal das Famílias) ajude a explicar o dispositivo anedótico de retorno a um sentido ficcional verossímil. Escritos dentro de uma proposta editorial de literatura amena, os contos são compostos em torno de uma autoexplicação. As cenas perturbadoras e os mistérios dramatizados encontram solução, resolvem-se para que o sentido de amenidade seja preservado, ainda que parcialmente. As conclusões preestabelecidas garantem certa segurança à tecedura das tramas, resolvidas entre a satisfação precária da explicação fácil e a frustração contraditória de um perigo que se perde. Na articulação entre a vera fictio e a falsa fictio a segurança parece garantida pela aproximação da ficção com determinado sentido de verossimilhança. O curioso é que nesse ! !148! retorno a ficção potencializa seu efeito de realidade simplesmente por ter sido posta diante de uma versão mais radical de si mesma. Na restituição da verossimilhança, o literário ganha força como imaginação segura ao consagrar a ficção como artefato de consumo cotidiano. O fantástico aparece como dispositivo controlado contra o tédio, marca de uma ficção que faz uso objetivo da fantasia para fins de entretenimento. A noção de literatura amena que Carlos Augusto Ferreira classificou no prefácio de suas Histórias cambiantes (1874) como “leitura fácil”, contos lidos de “um sorvo, duas horas antes de a leitora adormecer”346, implica uma lógica de recepção baseada na relação de confiança entre texto e leitor. Ao se pronunciar como amenidade, essa literatura antecipa a recusa de qualquer aspecto mais potencialmente perigoso. Vendida de antemão como produto aprazível para horas de lazer, a literatura amena garante seu espaço no jornal, pois convive harmoniosamente com artigos sobre moda e culinária. A estranha presença do horror ficcional alude à demanda por um tipo particular de ficção, entendida como repertório anedótico de casos pitorescos e engraçados. A presença do narrador se estabelece com certo grau de intimidade com o leitor e se expressará mais claramente no tom jocoso dos finais. Frequentemente representando sua própria plateia, essas histórias apontam o lado perturbador e tenso das dramatizações do insólito, mas ao serem resolvidas como amenidade, zombam dos crédulos eventualmente seduzidos pelo narrador. Nesse jogo os lugares-comuns do horror literário anunciam a troça pregada em seus consumidores. O paradigma dessas tramas é o tratamento infantil dado ao leitor e consequentemente o próprio horror, que, anunciado como o fantástico, não passa de uma fabulação simples, artimanha despretensiosa para passar o tempo. Nessa chave, a ficção se estabelece ao mesmo tempo como invenção parcial de um medo pueril e verossimilhança absoluta de um narrador transformado em contador de histórias. O universo doméstico, com tramas reais e imaginárias sobre matrimônios e traições, é o cerne dessas histórias de toucador, sem que isso implique necessariamente uma constante preocupação moralizante347. Não que esses textos rejeitem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 346 FERREIRA, Carlos Augusto. Histórias cambiantes. Rio de Janeiro: Editora Três, 1974, p. 21. Comentando os textos machadianos publicados no Jornal das Famílias, Lúcia Miguel Pereira afirma não passarem de “literatura amena de pura fantasia sem nenhum fundamento na realidade”, “onde tudo gira em torno de olhos bonitos, de suspiros, de confidências trocadas entre damas elegantes”. O comentário feito em Machado de Assis: estudo crítico e biográfico (1955) serviria de base para outras análises, como as de José Guilherme Merquior, que os considera “cheios de anedotas e convenções românticas” (De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira, 1977), ou como os comentários de Ivan Teixeira, para quem esses textos representariam uma primeira fase do autor, caracterizada pela imaturidade (Apresentação de Machado de Assis, 347 ! ! !149! completamente uma possível dimensão edificante ou moralista, mas esse não parece ser o problema central. As conclusões que restituem a verossimilhança são marcas de uma proposta ficcional que faz ver o estranho, o pecado e o mal para depois rir de suas próprias formulações. Ao brincar com o leitor, o narrador apresenta um universo que flerta com o horror sem ter de se aprofundar em seus termos e que resolve como anedota os suspenses construídos ao longo do processo. No entanto, e talvez paradoxalmente, o fim não pode ser o objetivo principal, sob o risco de perda do efeito desejado, mas o mecanismo de afirmação de uma estabilidade parcialmente perdida nas insinuações do fantástico. Se o pacto se reproduz na certeza da promessa de amenidade, o jogo se configura como uma via de mão dupla em que o autor e seu público vão a cada atualização testando os limites da crença e da descrença que viabilizam a configuração do horror. Nos lugares-comuns que as tramas evocam – o toucador, o salão de baile, a sala de estar – e na natureza estranha de alguns personagens, as técnicas narrativas configuram uma espécie de retórica do horror que deve sobreviver à certeza de sua precariedade e previsibilidade. A contínua publicação dessas histórias revela a persistência de um sistema dramático menos articulado em uma suposta suspensão da descrença do que no interesse pelo jogo lúdico que o horror propõe. As bases de negociação entre o texto e sua recepção são dadas de antemão, restando apenas o princípio do prazer, expresso como delicado gesto cotidiano. O horror na chave amena da literatura compreende desde o romance histórico até narrativas anedóticas. O ponto comum de ambos é certo princípio apaziguador, expresso tanto nos quadros de um horror historicamente distante quanto na figura de um narrador declaradamente jocoso. No primeiro caso, os artifícios literários são disfarçados em nome do relato verídico, mas a construção do efeito de horror prescinde de uma noção de fidelidade histórica imediatamente enfraquecida pela recorrência dos motivos mais fantásticos do gótico. Já no segundo, a dimensão artificial é ressaltada como fundamento: um narrador francamente embusteiro se transforma em referência e garantia de amenidade. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1988). Dessa perspectiva, segundo Jaison Luís Crestani a produção da chamada “primeira fase” tende a ser definida por “categorias simplificadoras e generalizantes: romântica, conformista, moralizante, convencional, prolixa, enfadonha, fantasiosa, etc.”. CRESTANI, Jaison Luís. Machado de Assis no Jornal das Famílias. São Paulo: Nankin; Edusp, 2009, p. 24. ! !150! Esses contos não estariam exatamente alinhados em um processo pedagógico que visaria criar um distanciamento crítico para evitar “o pacto ingênuo e de boa-fé do narrador”; 348 no caso dos textos analisados, seria mais propriamente o oposto. O funcionamento desses textos depende justamente de um pacto de boa-fé que deixa claro o papel confiável do narrador, que fatalmente revelará a farsa. São narradores absolutamente confiáveis cuja restituição da verossimilhança é contratualmente garantida na promessa de entrega de literatura amena. Ao mesmo tempo que deseja vitimar seus leitores – pois do contrário a narração perderia um pouco de sua razão de ser –, o arranjo prévio garante um pacto de confiança que reafirma o estatuto artificial da fantasia. Mais do que qualquer imposição moralizante, é a relação franca que garantirá a possibilidade de exploração do horror e que poderá levar este a assumir formas mais abruptas e dificilmente categorizáveis como amenas. Do grotesco banquete de canibais à convivência mórbida com esqueletos e à presença de autômatos sedutores, o horror literário explora a loucura e o assassinato sem perder o caráter gentil; transforma-se em hábito literário das famílias como o perigo possível e o prazer desejado. Se há alguma lição a ser aprendida é que a ficção, disfarçadamente, sorrateiramente, exploraria aquilo que poderia parecer vedado – talvez aí se expresse a última troça do narrador. O horror ameno traz o universo do pecado, do crime, do mistério, do desejo e do desconhecido na forma segura da anedota. Inscreve-se nas práticas cotidianas de leitura, punindo as pequenas perversões para também lembrar que existem. As insinuações de traição e as inusitadas possibilidades do amor se articulam em cenários sinistros, o que assegura a promessa do deleite na fabulação de uma diferença familiar proporcionada pelo sonho e pelo delírio. No fim, o flerte moderado com o insólito mantém o controle sobre o fantástico, o que indica a sedução de uma literatura que fabrica o perigo controlado349. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 349 “Dos contos de Machado de Assis analisados, apenas “A chinela turca” foi novamente publicado na coletânea Papéis avulsos, de 1882, preparada pelo autor. Os textos do Jornal das Famílias só foram novamente editados postumamente em obras completas e numerosas outras coletâneas. É difícil precisar o motivo da exclusão, mas o fato de outros contos que exploram o horror, não necessariamente marcados pela chave da amenidade, reaparecerem em seleções editadas pelo escritor talvez indique uma predileção por outra modalidade de imaginação do medo mais evidentemente irônica. ! !151! 3.3. O irônico horror machadiano A Estação: Jornal Ilustrado Para a Família foi publicado quinzenalmente entre 15 de janeiro de 1879 e 15 de fevereiro de 1904, pela tipografia Lombaerts, como continuação da revista francesa La Saison, publicada entre 1872 e 1878. Era dividido em seções de moda e de literatura; a primeira era traduzida da revista alemã Die Mondenwelt, e a segunda era originalmente brasileira. Nela Machado de Assis publicou 37 contos, seis poemas, uma novela, Casa velha, e um romance, Quincas Borba350. Assim como o Jornal das Famílias, seu foco era o público feminino, e já no primeiro editorial da edição com título em português anuncia ser voltado “para as amáveis leitoras e para economia doméstica”. Confirma-se que a parte da moda continuaria a ser parisiense, mas “na parte agradável e recreativa devíamos torná-lo nosso e assim o fizemos. Confiamos a parte literária da Estação a pessoas de conhecida habilidade”351. A intenção de contar com autores renomados e de se voltar para a literatura brasileira indica a importância dada às questões literárias. Em 1896, um artigo assinado por Eloy, o Heroe, comenta Flor de sangue, de Valentim Magalhães: “O livro tem páginas magníficas e é muito discutido […] e vendido; mas eu não o aconselho às leitoras deste periódico. Flor de sangue não é exatamente a leitura que mais convém às senhoras, e o próprio autor declara que não o daria a ler a sua filha.”352. Em 1900, o mesmo colunista afirmaria que tanto O crime do padre Amaro quanto Primo Basílio seriam “literatura pouco recomendável a senhoras”. A crença de que alguns livros seriam perniciosos para as leitoras é questionada em um artigo escrito por Maria Amália Vaz de Carvalho, que, à pergunta de uma leitora sobre que tipo de literatura poderia indicar para sua filha, responde: “Só o que é falso e funesto é corruptor.” Defendendo a leitura de Shakespeare, afirma: “Os grandes escritores são aqueles que sacodem a alma de seu entorpecimento”, e completa: “Livros falsos e livros medíocres são tudo que há de mais próprio para deformar e empobrecer um entendimento, aliás bem-dotado.”353. A noção de literatura amena é problematizada e considerada insuficiente de acordo com a resposta dada à leitora. As tensões entre diferentes funções atribuídas à literatura tendo em vista suas possibilidades perniciosas seriam ironizadas em um dos contos de Machado de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 350 A informação é dada por Jaison Luís Crestani, no artigo “O perfil editorial da revista A Estação: Jornal Ilustrado Para a Família. Disponível em: <http://migre.me/hyCNl>. Acesso em: 24 mar. 2014. 351 A Estação, p. 1, Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1879. 352 A Estação, p. 6, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1896. 353 CARVALHO, Maria Amália Vaz de. A Estação, p. 7, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1898. ! !152! Assis publicados no jornal em 1892. “Um sonho e outro sonho” começa com uma pergunta. “Crês em sonhos?” Segundo o narrador, há quem os despreze, quem acredite e outros que tentam explicar. Pede então a atenção das leitoras, sobretudo das que já perderam o marido, e começa a contar a história de Genoveva, mulher jovem, bonita e viúva do bacharel Marcondes. O casamento durara apenas três anos, vividos com intensa paixão. Marcondes tinha inclinações literárias. Aos vinte anos escreveu o romance A bela do sepulcro, em que a heroína passa os dias ao lado da sepultura do marido. No cemitério um jovem a pede em casamento. Ela nega e morre oito dias depois. Genoveva tinha muito apreço pelo romance do marido: lera-o mais de vinte vezes e mandara fazer uma edição para distribuir aos amigos. Três anos depois de ficar viúva, aparece-lhe um pretendente, Oliveira, bacharel como o finado. Diferentemente dos demais que vinham cortejá-la, chegou devagar, sem exigir nada além de sua estima. A mãe do bacharel e a mãe da viúva tornaram-se muito amigas, a ponto de a primeira se mudar para uma casa mais próxima, o que fortaleceu os laços de amizade entre as famílias. As visitas eram frequentes, mas uma delas em especial marcou profundamente a jovem: quando Oliveira disse que se caso ficasse viúvo entraria para um mosteiro. A ideia não lhe saía da cabeça, imaginando que o comentário seria uma repreenda a sua vida mundana. Passava os dias pensando nas palavras do bacharel, até que teve um pesadelo: Nhonhô (apelido de seu finado marido) vinha lhe perguntar se o havia esquecido. Sugere então que se ainda o amava não deveria ceder às carícias de outro homem. O pesadelo deixou claro que Genoveva começava a nutrir sentimentos por Oliveira, mas acreditando ter sido um aviso, ela decide cortar qualquer possibilidade de envolvimento com o pretendente. No entanto, um mal-entendido a leva a acreditar que o bacharel se casaria com outra, o que a deixa sensivelmente abalada. Mais algumas visitas e ele, finalmente, pedea em casamento, mas Genoveva fica em dúvida. Tem então outro sonho sinistro, em que o marido morto lhe cobra a promessa de fidelidade, enquanto Oliveira assume a figura de um carrasco que lhe tapa a boca. Ao acordar, Genoveva não se abala. “Ergueu-se trêmula; o susto foi passando, e mais tarde, ao cuidar do caso, dizia consigo: ‘Casou e não morreu’.” O final cômico ridiculariza o pesadelo medonho e as crendices da protagonista e assim reverte a expectativa criada. São apresentados dois pesadelos terríveis, repletos de imagens sinistras e demoníacas que, ao final, se revelam inúteis, ao menos para o destino de Genoveva. Cabe refletir sobre a verdadeira função dos pesadelos. Eles fazem parte do argumento central da trama, mas não motivam a protagonista. Aparecem como atrativos de uma história que sem eles seria ridiculamente banal. Na cena em que Oliveira diz que não se casaria novamente há um irônico comentário sobre a situação do casal. ! !153! A última declaração teve por fim dar um grande golpe, por modo que a desafiasse a desmentir-se. E pareceu-lhe, ao sair, que algum efeito produzira, visto que a mão de Genoveva tremia um pouco, muito pouco, e que a ponta dos dedos […] Não, aqui foi ilusão; os dedos dela não lhe fizeram nada.[…] Notem bem que eu não tenho culpa destas histórias enfadonhas de dedos e contradedos, e palavras sem sentido, outras meio inclinadas, outras claras, obscuras; menos ainda dos planos de um e das promessas de outro. Eu, se pudesse, logo no segundo dia tinha pegado em ambos, ligava-lhes as mãos, e dizia-lhes: Casem-se. E passava a contar outras histórias menos monótonas. Mas, as pessoas são estas; é preciso aceitá-las assim mesmo.354 Zombando de clichês românticos, das mãos trêmulas e dos planos e promessas de amor, o narrador se mostra entediado com a história: os personagens são chatos, e a trama que os envolve, monótona. Mais adiante, comentando a expectativa do casamento, diz que o que se passa são coisas infinitas que não caberiam nem em um conto nem mesmo em um romance. “Não teria graça escrito”, afirma. “Sabe-se o que sucede desde a aceitação de um noivo até o casamento. O que se não sabe, porém, é o que aconteceu com esta nossa amiga, dias antes de casar. É o que se vai ler para acabar.”355. Anuncia o enfadado narrador à espera do fim que parece guardar algo de especial, fora do comum, um “sonho extraordinário”. A seguir narra o pesadelo final, aquele em que uma língua de fogo lambe o céu. Claramente as únicas coisas interessantes nesse conto são os pesadelos de Genoveva. As imagens fortes e as cenas de ação, com pragas e carrascos, são os pontos altos da trama. O horror aparece como salvação da trama insossa em que nada acontece. Mas, ironicamente, um conto que praticamente só se justifica pela apresentação de “um sonho e outro sonho”, por enfatizar sua pouca relevância para o destino da protagonista. Mas se eles não são tão significativos para Genoveva, são fundamentais tanto para o narrador quanto possivelmente para as leitoras, por eles salvos do tédio. Confirmando o tratamento irônico dos pressupostos românticos, a última fala “Casou e não morreu” é um comentário de Genoveva à obra literária do marido. O fato de em A bela do sepulcro a protagonista morrer depois de recusar um casamento transforma-se em argumento favorável ao novo matrimônio da viúva. Ironicamente, os devaneios sentimentais de Nhonhô ajudaram a definir o destino de Genoveva e foram fundamentais para que ela o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 354 355 ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p.300. ASSIS, Machado de, op. cit., p. 305. ! !154! esquecesse. Curiosamente, a castidade exemplar da viúva do romance serve de aviso para que Genoveva negue os exageros românticos e funciona como uma lição moral às avessas. “A segunda vida”, conto publicado em 1884 na Gazeta Literária356, começa quando um desconhecido entra na casa do monsenhor Caldas para contar sua história. Um pouco assustado, o religioso pede discretamente a um de seus empregados que vá buscar ajuda para se livrar do “sujeito doido”. Enquanto isso, José Maria narra sua trajetória fantástica. Diz ter morrido em 20 de março de 1860 e que sua alma voara pelo espaço até ser-lhe dada a oportunidade de nascer novamente, como príncipe ou condutor de ônibus. Indiferente, afirma que só fazia questão de nascer experiente para evitar os erros anteriores. O resultado é uma vida aborrecida, por demais cautelosa. Define sua nova mocidade como “expansiva e impetuosa enfreada por uma experiência virtual e tradicional”357. O monsenhor continua a ouvir a história, metaforizando a situação na imagem de “um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés”. Concordando com a imagem, o homem começa mexer os braços como se batesse asas enquanto fala de seu relacionamento com Clemência, mulher que sacrificara tudo, até mesmo uma herança de vinte mil réis, para se casar com ele, mas que mesmo assim não conseguiu vencer suas desconfianças. Duvidava de tudo, das pessoas nas ruas, do futuro: “A experiência dera-lhe o terror de ser empulhado.” Exaltado, fala ao monsenhor de um sonho sinistro em que o diabo lê o evangelho e lhe oferta lírios, de onde surge um “réptil fedorento e torpe”. Zombando de seu medo o diabo solta uma gargalhada macabra e, referindo-se aos lírios, diz: “José Maria: são os teus vinte anos”. Tem-se então a estranha cena final. "Não, miserável! não! tu não me fugirás! bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando […] recuando […] Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés”358. É evidentemente irônica a trama de José Maria, um homem que escolhe a experiência para evitar o sofrimento e sofre amargamente pela prisão que ela representa. Seu desejo realizado o impede de viver: eis a contradição ardilosa que não teria melhor arquiteto senão o demônio. O sentido fantástico da narrativa aparece controlado pelo argumento da loucura. Ela sustenta os delírios ficcionais ao explicá-los de antemão. Vale lembrar que, logo !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 356 Periódico dedicado à literatura fundado por Teixeira de Melo e Vale Cabral publicado somente durante o ano de 1888. 357 ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 445. 358 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 445. ! !155! no início do conto, monsenhor Carlos pede ajuda, ciente de estar diante de um louco. Porém uma questão permanece: o que garante o mistério de uma trama resolvida no segundo parágrafo? Ao mesmo tempo que adianta a possibilidade de uma narração do improvável, a loucura anunciada previamente a qualifica como essencialmente falsa. O problema se desdobra: como se envolver com a história de um louco? Tem-se então novamente uma articulação entre o estranho e o familiar. A história iniciada com uma viagem pelas estrelas passa pela infância aborrecida do narrador, ganha tensão dramática em um casamento marcado por desconfianças e tem seu clímax na perseguição de um homem que parece possuído. O inverossímil das primeiras linhas vai se reestruturando como reflexão filosófica. Se o argumento central, a possibilidade de uma segunda vida, não faz sentido, o drama é pertinente como hipótese da experiência inibidora da vida. Ironicamente, na reflexão de um louco, encontra-se a chave da coerência. A cena final opera uma reversão em relação à inicial. A fuga do religioso pelas escadas não traz nenhuma conclusão evidente. Ele foge e ouve-se “um rumor de espadas e de pés”. A história termina com suspense, apenas um rumor que se espalha. Não há nenhuma resolução concreta, ficam somente perguntas. O que João Maria queria com monsenhor Caldas? Por que o persegue? Quem afinal está louco? Seria o homem endemoniado uma alucinação que poria em xeque a fé de Caldas? Não é difícil pensar que a metáfora de um “pássaro amarrado pelos pés”, forjada pelo próprio monsenhor, possa valer para a vida de um homem religioso359. Estaria então se autodescrevendo ao analisar a suposta segunda vida do louco? Estaria o monsenhor arrependido dos sacrifícios da vida religiosa? Será que o demônio não estaria de fato o tentando? Por que a ajuda solicitada nunca chega? Perguntas e mais perguntas sem resposta. Na incerteza o narrador aplica seu golpe. Começa com uma trama explicada pela loucura, mas a certeza se perde na medida em que já não se sabe em que personagem ela está encarnada. Então o horror se estabelece como dúvida, como um rumor perdido nas escadas. A história que parecia resolvida no primeiro parágrafo ganha força e termina em aberto. A profusão de eventuais suposições e explicações, independentemente da pertinência, evidencia seu sucesso como horror. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 359 Essa imagem pode ser entendida como resposta a outra, em que José Maria diz estar “atado ao próprio cadáver como Eurico”, referindo-se às imposições da vida religiosa experimentadas por Eurico em Eurico, o presbírito, de Alexandre Herculano. ! !156! Segundo Kierkegaard, a ironia tem o mal-entendido como base. Portanto, é também um desvio para o falso. Diferentemente da dissimulação que objetiva encobrir uma suposta realidade e, por conseguinte, guarda uma intenção externa, o dispositivo irônico se apresenta como um fim em si mesmo, uma liberação em relação à realidade. É uma intenção metafísica resolvida em si, autossuficiente e independente de referentes exógenos360. O gozo irônico estaria justamente na libertação irresponsável dos paradigmas da realidade. Sua força é essencialmente negativa, não cria nada, não resolve nada, apenas se estabelece como marca da falha, exercício do vazio, recurso no qual o nada prevalece. A ironia é aliada do horror por negar a substância da realidade, em alusão ao silêncio do que não se explica, seja pela falta de recursos da razão que escapa, seja pela falta de interesse, seja pelo primado de um jogo de sombras no qual não há conclusão desejável que restaure na íntegra qualquer discurso sobre uma dispersa realidade. Na medida em que permanece negativa, a ironia estabelece teoricamente um desacordo entre ideia e realidade e, no aspecto prático, demarca a distância entre possibilidade e realidade361. Nesse desacordo os contos expõem distintos planos ficcionais que se relacionam para que um mistério se produza. O verossímil passa a servir de escada para o inverossímil, que ganha a cena transformado em fantasia do medo. No caso de Machado de Assis, essa tendência de investimento na ironia se radicaliza nos contos publicados na Gazeta de Notícias362. “A cartomante”, conto publicado em 1884, apresenta logo na primeira linha a sugestão de um mistério. “Hamlet observa a Horácio que há mais coisa no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”363. A citação abre a história de Camilo e sua amante Rita, que lhe fala da visita a uma cartomante feita no dia anterior. Diante dos risos de Camilo, “ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo”364. Ela se mostrava tranquila, pois a senhora lhe havia tirado as dúvidas em relação ao amor de Camilo, que, tornado cético com a idade, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 360 KIERKEGAARD, S.A. O conceito de ironia ⎯ constantemente referido a Sócrates. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 220. 361 KIERKEGAARD, S.A., op. cit., p.245. 362 Nelson Werneck Sodré considera o surgimento da Gazeta de Notícias “o acontecimento jornalístico de 1874”. Seu fundador, Ferreira de Araújo, seria “um homem de iniciativas saneadoras, tendo reformado a imprensa de seu tempo, para dar espaço à literatura e às grandes preocupações, com desprezo pelas misérias e mesquinharias”. O pesquisador o considera um dos mais importantes do século XIX, “barato, popular, liberal”. SODRÉ, Nelson Werneck, op. cit., p. 224. 363 ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 477. 364 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 478. ! !157! continuava a zombar. O homem liberto das crendices incutidas pela mãe e pela fé religiosa “não acreditava em nada”. A explicação para a história dos amantes vem logo a seguir. Camilo e Vilela, marido de Rita, eram amigos de infância, mas a convivência com o casal o levou a se apaixonar pela jovem. Mesmo tendo se afastado, recebe um bilhete de Vilela pedindo que fosse a sua casa. Apavorado, julgando que o marido traído havia descoberto o caso, parte imaginando "a ponta da orelha de um drama” na qual Vilela planejava seu assassinato. No caminho decide consultar a cartomante e é confortado pela afirmação que nada de mal lhe aconteceria. A mulher ressalta o amor que os amantes nutriam um pelo outro. Agradecido e aliviado, Camilo pergunta o preço e a mulher diz que pague quanto mande seu coração. Ele lhe dá uma nota de dez mil reis, surpreendendo a cartomante acostumada a receber dois mil pelo serviço. No caminho até a casa de Vilela, contempla o mar com uma sensação do “futuro longo, longo, interminável”. Porém, ao entrar na casa “não pôde sufocar um grito de terror: ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão”365. A história reverte expectativas. A citação de Hamlet traz o tom do mistério, sugere que a trama terá elementos inexplicáveis. A advertência feita a Horatio, que Benedito Nunes lembra ser uma apropriação do topos medieval da inutilis inquisitio philosophiae, bastante recorrente na obra machadiana366, evidencia uma relação particular e irônica com a tradição letrada. A referência é utilizada para gerar o engano. Ela introduz o que seria um mistério insondável que se resolve de maneira absolutamente previsível 367 . Mas a tensão da expectativa perpassa todo o conto. Quando Rita vai à cartomante, está confusa em relação ao amor de Camilo, também nervoso quando a procura, mas ambos são tranquilizados por suas palavras. A cartomante torna-se a figura central do drama. Nela expectativas são criadas e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 365 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 483. NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In: Travessia. Santa Catarina: Editora UFSC, 1989, vol. 19, p. 11. 367 Em Machado de Assis e a literatura vitoriana: notas de pesquisa sobre autoria, autoridade e plágio, João Cézar de Castro Rocha argumenta que Machado de Assis seria um “leitor malicioso da tradição” e defenderia a ideia de que uma citação criativa seria aquela capaz de reescrever a própria citação. Nesse sentido, o crítico avalia que Machado, recuperando um relacionamento dinâmico entre emulatio e imitatio, seria autor de cópias originais e, por sua condição periférica, aprendera a ser, ao mesmo tempo, pré-romântico e pós-moderno. Independentemente do caráter problemático das noções de pré e pós, para o caso específico dos contos aqui analisados o efeito não parece ser o da criação de “cópias originais”. Se por um lado concordamos que Machado de Assis seja de fato um leitor malicioso da tradição e que o uso de algumas citações tem o propósito da reescrita, o resultado não é exatamente cópia, mas um uso estratégico que busca efeitos específicos de persuasão, quebra de expectativa e articulações irônicas. 366 ! !158! dissolvidas. Transforma-se no ponto de equilíbrio dos amantes, que, na confusão dos sentimentos, apelam ao sobrenatural. Esse é o primeiro erro que levará ao desfecho trágico. O segundo e mais grave é o envolvimento de Camilo com a ideia do drama368, explicitado em pelo menos duas passagens: no momento em recebe o bilhete de Vilela e sente a “ponta da orelha de um drama” e quando está no tílburi e próximo à casa da cartomante e ouve a voz do marido, que lhe sussurrava a orelhas as palavras da carta: “‘Vem, já, já’ […] E ele via as contorções do drama e tremia.” A encenação imaginária, a imagem de Rita chorando subjugada enquanto Vilela, possesso, planeja matá-lo, contraditoriamente o seduz. Por que atender ao convite da visita quando tudo parecia anunciar uma tragédia? Não seria mais fácil desaparecer por uns tempos, o que até já fizera antes? Sofrendo, angustiado, Camilo vai ao encontro do casal como se não tivesse opção senão cumprir seu drama pessoal. Parece inconcebível ficar fora da encenação de sua própria tragédia: “Repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando”. É possível que esse seja o verdadeiro mistério da trama, talvez esteja nos passos de Camilo o dado inexplicável, aquilo que nem sequer a filosofia pode supor. A motivação pelo drama é como uma versão da vontade de sinistro que anima diversos protagonista das histórias de horror. O personagem de “A queda da mansão de Usher”, por exemplo, mesmo amedrontado pela visão da casa aceita o convite de Roderick para lá passar uns dias; ajuda a sepultar sua irmã morta e ainda lhe lê uma história fantástica em uma terrível noite de tempestade. Atos insensatos motivados por aquilo que ele mesmo define como “lei paradoxal de todos os sentimentos fundados no terror”369. É preciso investigar as origens dessa lei de atração e repulsa a fim de entender o que está por trás desse fascínio pelo perigo. Aqueles que se dedicaram ao assunto, como Lovecraft, Freud e Todorov, com argumentos distintos, tendem a respostas psicológicas. A atração pelo medo refletida na literatura de horror seria fruto de instintos humanos atemporais, por si sós misteriosos e insondáveis. Sem entrar no mérito do que seriam as perturbações do espírito humano, é preciso marcar que essa lei de atração, essa vontade de sinistro, é condição da literatura de horror, ou seja, ela existe para que as tramas funcionem adequadamente. É ela que garante a tensão das tramas e possibilita seu desenvolvimento. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 368 Devo ao professor Abel Barros Baptista a sugestão de investir na relação de Camilo com o drama como forma de interpretação de “A cartomante”. 369 POE, Edgar Allan, op. cit., p. 44. ! !159! Os protagonistas do horror só existem motivados pela incapacidade de fugir do que obviamente deve ser evitado. O sistema ficcional é forjado na falha no entendimento da realidade, e a lei da atração é naturalizada como motor dramático. Se ninguém for à casa de Usher não haverá história, se Camilo simplesmente fugir não haverá drama. Por isso “A cartomante” é também um conto sobre a possibilidade do horror, pois faz a exposição dramática de um de seus princípios fundamentais. O mistério nesse caso é o próprio Camilo, preso nas redes do drama, motivado por uma vontade inexplicável se pensada fora da própria trama, condenado por protagonizar o horror que lhe inspira. O mesmo dilema reaparece em “A causa secreta”, publicado em 1885, que conta a história da relação entre Garcia e o casal Fortunato e Maria Luísa. Os dois homens se conhecem quando Fortunato, sabendo que Garcia estudava medicina, leva um homem ferido a sua casa, demonstrando grande interesse no estado da vítima. Volta ainda algumas vezes para visitá-la, mas depois desaparece sem maiores explicações. Gouveia, o ferido em questão, procura Fortunato para agradecer, mas é recebido com indiferença. Tal comportamento contraditório chamou a atenção de Garcia, que possuía “em germe, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo”370. Quando Garcia conhece Maria Luísa percebe que entre o casal haveria “alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral”. Durante uma conversa Fortunato lembra o dia em que ajudou Gouveia, e a mulher, surpresa, “insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração”371. No entanto, a forma com que o homem ria da visita que o ferido havia lhe feito deixa Garcia intrigado: “Singular homem”, conclui. Fortunato propõe ao amigo a fundação de uma casa de saúde. Com a aceitação o plano cumpre-se rapidamente, e logo passam a trabalhar juntos. Garcia se espanta com a dedicação do homem, sempre disposto a ajudar os feridos; acompanhava os procedimentos, sobretudo os cáusticos: “Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele”. Com o trabalho a amizade se estreita e o médico começa a perceber uma mudança de comportamento em Maria Luísa. Seu sofrimento aumentou quando Fortunato, estudando anatomia, passa a sacrificar cães e gatos em casa. Compadecido, Garcia convence o amigo a parar com os experimentos. Uns dias depois Garcia presenciaria a famosa e estarrecedora cena da tortura de um rato. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 370 371 ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p.513. ASSIS, Machado de, op. cit., p. 515. ! !160! O “vasto prazer quieto e profundo” que o torturador sente é um espetáculo repugnante para todos. O estado de saúde de Maria Luísa, que já inspirava cuidados, agravase, e com o tempo descobre-se uma doença fatal. Quando Maria Luísa morre, Garcia sugere a Fortunato que vá descansar e se põe sozinho diante do cadáver. Em um gesto final, inclina-se para beijá-la. O que ele não percebe é que Fortunato o observa, julgando não ser aquele um simples gesto de amizade, mas o “epílogo de um livro adúltero”. Garcia tenta beijá-la novamente, mas explode em “lágrimas de amor calado e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”372. O conto gira em torno da figura de Fortunato. Ele é o mistério a ser solucionado, e Garcia faz o papel do investigador. O problema é que as pistas são contraditórias e apontam para caminhos diferentes. O enigma Fortunato confunde tanto o detetive quanto o leitor, parte fundamental dessa trama. Na primeira cena o leitor é apresentado ao trio de personagens, a qual Eliane Robert Moraes define como um quadro vivo, uma cena estática como um teatro sem ação373. No centro do palco os três nada falam e já são dados como mortos. Os fatos cotidianos da vida de Fortunato são as peças a serem encaixadas na busca da causa secreta. No primeiro encontro com Garcia ele está saindo da Santa Casa; no segundo está no teatro assistindo a um dramalhão “cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos”, e sua atenção é redobrada nas cenas dolorosas. Os dois se conhecem quando Fortunato leva um homem ferido à casa de Garcia – o mesmo homem que depois de curado será tratado com indiferença. Os dois amigos abrem uma casa de saúde à qual ele se dedica plenamente, com especial atenção aos cáusticos. Começam então os sacrifícios de animais em nome do estudo de anatomia. Certa noite mata cruelmente um rato. No episódio da doença de sua esposa dedica-se plenamente aos seus cuidados e, por fim, sente prazer ao ver seu amigo chorar sob o cadáver de Maria Luísa. São esses os fatos sobre Fortunato. Apesar de Garcia suspeitar de algo estranho em sua personalidade, nada há de extremamente bizarro em seus gestos. À exceção do último pecado, todos podem, dependendo da interpretação, serem encarados como triviais. Gostar de um drama sangrento; ajudar um homem ferido e depois não se importar tanto; abrir uma clínica e se dedicar aos cáusticos; sacrificar animais em nome da ciência; matar um rato; e se aproximar da esposa em !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 372 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 518. MORAES, Eliane Robert. Um vasto prazer, quieto e profundo. Estudos Avançados. São Paulo, vol. 23, no 65, 2009. Disponível em: http://migre.me/hyCQQ. Acesso em 24 mar. 2014. 373 ! !161! um momento de doença. Esses fatos, nem tão extravagantes assim, são os que Garcia têm disponíveis para decifrar Fortunato. O problema é que na cena central ele é protagonista e não observador. Os dados que Garcia possui oferecem uma visão parcial e um tanto dúbia da personalidade de Fortunato. Analisando-os ele consegue perceber seu interesse pela dor alheia, mas a apoteose de seu sadismo, o fato crucial que transforma o homem excêntrico em um verdadeiro sádico ele é impossibilitado de ver; está de costas, no centro da cena. Aí a figura do leitor, observador privilegiado, que vê tudo de fora com visão ampliada, torna-se fundamental. O verdadeiro mistério é revelado só a ele, único com possibilidade de perceber a densidade do enigma Fortunato. A visão parcial de Garcia é a base da narrativa. Até a cena final sua visão é a única disponível; a verdadeira revelação é feita nos instantes derradeiros, em uma cena que confirma e, ao mesmo tempo, torna praticamente irrelevantes as anteriores. Bastaria aquele episódio para que se descobrisse a causa secreta, todo o resto é estratégia para despistar. Os limites da inteligência de Garcia formam o núcleo da trama. Ao fim descobre-se que ele não sabia de algo que só o leitor é capaz de perceber, não por sua particular capacidade de análise, mas pela posição estratégica. Aliás, a ele não é atribuída nenhuma qualidade investigativa. Durante toda a trama seus olhos são os de Garcia, e no final, quando o investigador não vê, o narrador resolve a parte clara do enigma. Em certo sentido, também o leitor é ludibriado, menos que Garcia, todavia. A busca da pista secreta que revelará a personalidade do personagem revela um pouco da malícia do narrador, que tem todos os elementos à mão e os vai disponibilizando aos poucos. Existem dois Fortunatos que se diferem em níveis de insanidade: o excêntrico, revelado a Garcia pela cena da tortura do rato, e o verdadeiramente sádico, revelado ao leitor pelo prazer que sente ao contemplar a dor do amigo374. Duas revelações e uma verdade, a trama tem dois desfechos e não deveria deixar nada em aberto. O problema é que, diante do enigma supostamente solucionado, outro surge. Fortunato permanece estranho. Sabemos que se trata de um sádico, mas o que faz um sádico, qual a causa secreta desse fetiche sinistro? Na dúvida e no limite da capacidade do narrador o horror permanece, ganha força em silêncio. O texto parece ir até o limite da narração para apresentar um mistério maior que permanece inconcluso; forja suas próprias limitações para funcionar movido pelo enigma. A !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 374 Sobre a relação entre as duas cenas ver o texto A emenda de Sêneca, de Abel Barros Baptista, publicado em: Teresa: Revista De Literatura Brasileira. São Paulo: Edusp e Editora 34, vol. 6/7. ! !162! imaginação literária fabrica uma limitação artificial para potencializar o drama transformando o silêncio em alegoria do inexplicável. A ironia reaparece como mal-entendido estratégico que fomenta a dúvida. A ironia também será a base do “Conto alexandrino”, de 1883. Trata-se de uma história em que o excêntrico cientista Stroibus diz ser possível transformar o caráter de um homem dando-lhe sangue de rato para beber. Depois de numerosas tentativas, Stroibus e seu companheiro Pítias começam a sentir os efeitos de suas experiências. Pítias passa a roubar ideias de Stroibus, que posteriormente também furta do amigo “quatro comparações e uma teoria dos ventos”. Seguiram-se então roubos de livros e documentos raros da biblioteca de Ptolomeu, que, após descobrir os furtos, ordena que ambos sejam levados aos carrascos. Surpreso com a habilidade dos homens para roubar, o rei decide utilizá-los com mais atenção a fim de descobrir os fundamentos biológicos do crime. O conto termina com a observação de que, segundo os alexandrinos, “os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino”. Porém, nenhum convidado teria aceitado o convite por atenção ao comentário de um cão “que lhes disse melancolicamente: – ‘Século virá em que a mesma coisa nos aconteça’. Ao que retorquiu um rato: ‘Mas até lá, riamos !’”375. O traço irônico do conto é bastante evidente: o argumento científico de busca da verdade que motiva os dois cientistas é o mesmo que fará deles vítimas de experiências terríveis. O desejo da verdade imortal que os anima se volta contra eles, custa-lhes a vida. Há uma evolução do argumento científico finalista que culmina no horror. Quando acusado de estar exagerando em suas experiências, Stroibus defende-se, pois “a verdade valia todos os ratos do universo”, da mesma maneira que o mestre Herófilo dirá mais adiante que “a verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinquentes do universo”376. Do mesmo modo que se fazia crer que a cidade lucrava com a extinção dos ratos, lucraria também com o sacrifício dos criminosos. O debate filosófico ganha tons tão absurdos que, quando Stroibus pede por sua vida, Herófilo argumenta que se ele fosse de fato filósofo não poderia ignorar que “a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em comparação com o entendimento” 377 . O resultado macabro da evolução do argumento científico no capítulo estrategicamente intitulado Plus, ultra! deixa em aberto uma ironia mais !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 375 ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p.415. ASSIS, Machado de, op. cit., p. 412. 377 ASSIS, Machado de. Obra completa, op. cit., p. 412. 376 ! !163! profunda. Os cientistas torturados estavam certos, tornaram-se a prova viva de que a tese fazia sentido ao se transformarem em ladrões ágeis como ratos. Trata-se de uma verdade que se perdeu na busca constante por ela, mas não foi a única. As conclusões tiradas com a tortura dos dois cientistas haveriam também de desaparecer, e a análise de suas mãos “produziu ótimos resultados, que se perderam com a queda dos Ptolomeus”378. Trata-se de um conto de verdades perdidas e de argumentos absurdos que passam a fazer sentido e comandar as ações dos personagens. Ironicamente, verdade e absurdo se confundem, e o inconcebível é superado pela instabilidade dos princípios e torna-se possível. Na tensão da crença com a descrença, na inconsistência de qualquer valor absoluto permanece, inabalado, o horror. Aqui ele é resultado da falta de um sistema realmente sólido de interpretação das coisas. No conto absurdo em que a verdade falha, desaparece ou é ignorada, ratos sarcásticos riem diante de um possível destino trágico e parecem mais sábios que os obstinados homens da ciência. O conto, que deve sua legitimidade à clara exposição de um argumento, narra uma empreitada científica para se fazer crível explorando os paradoxos do absurdo e torna-se verossímil no senso de humor dos ratos. À sentença final segue a sugestão de um horror futuro, ironicamente incontornável. “O espelho”, publicado em 1882, retoma o problema da relação entre narração e silêncio. Começa em uma sala onde cavalheiros discutem questões de “alta transcendência”. A conversa se dá em tom tranquilo até que um dos convivas sugere uma teoria sobre a existência de duas almas humanas. O homem misterioso explica que “cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”379. Esclarece, sem admitir ser interrompido, que a alma exterior pode ser qualquer coisa, um botão ou uma pátria inteira. Seu objetivo seria transmitir a vida e completar a alma interior como as duas metades de uma laranja. No entanto, a alma exterior de um indivíduo pode mudar: “Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos”380. Jacobina, o narrador misterioso, começa a narrar sua história pessoal obtendo total atenção de todos. Conta que, aos 25 anos, foi nomeado alferes da Guarda Nacional, deixando muito orgulhosa sua família de origem pobre. Todos tratavam com muita admiração o “senhor !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 378 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 414. ASSIS, Machado de. p. 345. 380 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 346. 379 ! !164! alferes”, que recebeu de presente da tia Marcolina um belo espelho antigo. O problema é que o excesso de atenção, carinhos e mimos fez com que a condição de alferes se sobressaísse demais e “a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem”381. Quando Marcolina deixa a casa para atender uma filha doente, a situação se complica. Jacobina se vê sozinho com os escravos, e sua alma exterior é alimentada somente por aqueles “espíritos boçais”. Para piorar, os escravos decidem fugir, deixando o alferes sozinho. Atormentado pelo tique-taque do relógio da sala que soava como o estribilho Never, for ever!, de um poema de Longfellow, sente os dias se confundirem com a noite no silêncio sinistro da casa. Seu sentimento era mais estranho que um simples medo; “Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico”382. Diante da terrível condição em que se encontrava decide olhar no espelho buscando a companhia de sua imagem, mas o reflexo não foi de uma “figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”383. Atribuindo o estranho fenômeno a sua perturbação psicológica, decide vestir a farda de alferes e olhar novamente: “O vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso” – o alferes encontrava sua alma exterior. Daí em diante vestir as roupas que lhe salvavam de ser um autômato seria sua estratégia para lidar com a solidão. Assim termina a história, e “quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas”384. A última frase do conto solidifica o caráter misterioso no narrador. Jacobina desce as escadas sem maiores explicações, abandonando sua pequena plateia. Lembramos que uma das condições que estabelece para contar a história é não ser interrompido sob nenhuma circunstância. O homem que permanecera calado durante a maior parte da noite exige total atenção de seus ouvintes e vai embora sorrateiramente, o que reforça a dimensão enigmática da narrativa. Parece claro que se está diante de uma trama construída para não ser completamente entendida. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 381 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 349. ASSIS, Machado de, op. cit., p. 350. 383 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 351. 384 ASSIS, Machado de, op. cit., p. 352. 382 ! !165! Ao não admitir intervenção dos ouvintes, inviabiliza debates e discordâncias; ao sair em silêncio, foge das explicações. A tese das duas almas pressupõe uma atmosfera particular para fazer sentido. É preciso um cenário soturno, silencioso e tenso para que essa verdade se revele; a força da mensagem de Jacobina depende muito do teatro que constrói em torno da ideia. Ele é tão, ou talvez mais importante, que a precisão filosófica. As proposições possibilitam infinitas especulações conceituais; é possível interpretá-las de maneiras distintas, e Jacobina parece saber disso385. É possível definir rapidamente a tese como uma articulação entre diferentes representações e projeções de si, no que concerne tanto à vida social quanto à vida interior. No entanto, estabelecer o quanto as dimensões internas e externas se misturam e como uma condiciona a outra é um problema bem mais complexo. Talvez por isso Jacobina não permita intervenções, talvez por isso desça as escadas apressado. O jogo se configura sempre em torno do aspecto questionável da tese, do narrador misterioso, do final silencioso e do título que a qualifica como um esboço de teoria. De fato, a plateia composta de “investigadores de coisas metafísicas” devotados aos “mais árduos problemas do universo” é tratada, como costuma acontecer nas histórias de horror, como crianças. Proibidos de se manifestar sob a ameaça de ficarem sem a história, os homens se calam e se deixam levar pelos ditames de Jacobina, que lhes conta uma história sinistra na qual é transformado em autômato. O som perturbador do relógio dá o tom enlouquecedor da experiência do protagonista. Nessa sinistra cadência conquista a atenção dos convivas. É notável a ansiedade que se instaura quando reluta em anunciar a estratégia de se vestir de alferes. Com o público em suas mãos, anuncia o final da trama e, como último ato, deixa a sala tão misteriosamente quanto no início da narração. No enigma que se instaura, no esforço dos leitores para entender essa teoria das duas almas, tem-se o triunfo do narrador, astucioso para prender a atenção de todos e vitorioso por gerar dúvida, elemento básico de qualquer boa história de horror. Jacobina pode não ser um filósofo muito consistente, pois apresenta uma tese controversa extraída de uma anedota, mas é inegavelmente um grande contador de histórias. Constrói o horror para além da trama !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 385 Cilaine Alves Cunha, no texto Tristezas de uma geração que termina, argumenta que a tese das duas almas seria uma apropriação de conceitos filosóficos de Schopenhauer que dividem o homem em sua porção exterior (eminentemente social) e interior (relativo ao que se pode definir como uma vida do espírito). A autora defende que o argumento machadiano seria uma metáfora crítica em relação ao idealismo romântico. Dessa forma, “O espelho” dialogaria diretamente com Noite na taverna ao apresentar uma visão objetiva da alma em detrimento do transcendentalismo exposto na obra de Álvares de Azevedo. O texto foi publicado na revista Teresa: Revista De Literatura Brasileira. São Paulo: EDUSP e Editora 34, vol. 6/7. ! !166! lançando mão de uma encenação completa, um teatro de gestos no qual se torna ao mesmo tempo autor e personagem. No famoso texto crítico sobre O primo Basílio, Machado de Assis comenta que o realismo de Zola e o de Eça de Queirós não teriam esgotado os aspectos da realidade: “Há atos íntimos ínfimos, vícios ocultos, secreções sociais que não podem ser preteridas nessa exposição de todas as coisas. Se são naturais para que escondê-los?”386. A investigação da matéria submersa que orienta, por exemplo, a investigação moral do organismo de Fortunato empreendida por Garcia, aparece no horror irônico em revelações imprecisas, mistérios parcialmente revelados a um leitor que precisa lidar com pistas diversas e contraditórias. A tarefa da leitura torna-se particularmente complexa pela dramatização do caráter supostamente intraduzível da experiência terrífica. Sem uma chave precisa que expresse a razão por trás das motivações dos personagens, figura o vazio insólito de um discurso incompleto. A interpretação tem de lidar com seu limite. Está sujeita à malícia de um narrador que oscila entre o domínio dos elementos encenados e a fragilidade de quem não pode traduzir o essencial. Nas páginas do horror, vemos sempre a impossibilidade de compreensão plena das coisas. Não são gratuitas as constantes citações de Hamlet, autoridade na proclamação da miséria da filosofia. Não interessado ou impossibilitado de exercer sua autoridade, esse mesmo narrador anuncia o horror como ruína da interpretação. 387 Uma vez encenada, a interpretação fragmentada exige um leitor capaz de agir no jogo de dispersões. Os contos escritos sob a lógica da “literatura amena”, tentam restabelecer um princípio de segurança que garanta aos mistérios apresentados a perspectiva da fantasia deliberada. Diante do retorno à realidade em um jogo narrativo em que o verossímil se sobrepõe ao inverossímil, a experiência interpretativa tende a parecer mais sólida. O narrador que tem o público em suas mãos reforça a infantilização do leitor ao resolver a trama em termos lúdicos: o horror se extingue na anedota, os vazios se preenchem como fábula. Já o horror irônico de Machado de Assis aprofunda a dissolução narrativa ao investir na dissonância que tangencia o absurdo e rejeita qualquer princípio de unidade. Não havendo uma tentativa de resolução do imponderável, o intraduzível é tangenciado para fins de exaltação do mistério. Nesse movimento, o que pode ser dito funciona como escada para o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 386 ASSIS, Machado de. Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 387 Para Abel Barros Baptista, a encenação da ruína da interpretação nos contos de Machado de Assis é uma forma de expor o caráter indecifrável da ação humana, “não porque seja destituída de sentido, antes porque lhe falta a autoridade no narrador”. É a ausência da consciência narrativa absoluta que cria a impressão da falha interpretativa. A ideia é desenvolvida no supracitado texto “A emenda de Sêneca”. ! !167! silêncio. No entanto, há em todos os contos analisados neste capítulo um horror, sempre no limite entre falsa fictio e vera fictio, insinuando invariavelmente um ponto-cego da narrativa e, nos casos mais radicais, anunciando um discurso não dito que faz do silêncio alegoria do inexplicável. Assim, o interdito do horror é efeito almejado de uma técnica que faz desse limite da consciência o motor dramático por excelência. As cenas violentas e fantásticas apontam para um momento posterior de incerteza, momento este que a ficção se mostra incapaz de imaginar. Forjando sua própria limitação, o horror literário machadiano cria as armadilhas em que é apanhado – última brincadeira do narrador. O horror é quase sempre uma piada, um jogo de desconfianças proposto por narradores mais ou menos cientes daquilo que está sendo jogado. E o leitor entra nesse jogo por diversão, um pouco pelo prazer de ser enganado. A vontade lúdica que faz com que Garcia insista em se aproximar de Fortunato é a mesma que leva o personagem de Poe a insistir em procurar amontilhado em uma caverna macabra: ela ignora todas as evidências em nome do jogo. Na advertência de Várias histórias, coletânea de dezesseis contos publicados na Gazeta de Notícias (entre eles “A cartomante” e “A causa secreta”), de 1896, Machado de Assis comenta: As várias histórias que formam este volume foram escolhidas entre outras, e podiam ser acrescentadas, se não conviesse limitar o livro às suas trezentas páginas. É a quinta coleção que dou ao público. As palavras de Diderot que vão por epígrafe no rosto desta edição servem de desculpa aos que acharem excessivos tantos contos. É um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do filósofo. Não são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros escritos da América. O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos.388 Além de destacar a relevância de Edgar Allan Poe e Mérimée, a advertência lembra um dos aspectos fundamentais do conto, que é a duração. É possível fazer relação com o texto The philosophy of composition, de Poe, publicado em 4 de abril de 1846 na Graham’s !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 388 ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 470. ! !168! Magazine. Nele, o escritor americano analisa seu processo de criação do poema “O corvo”, destacando a relação entre duração e efeito, definindo o tempo de leitura de uma assentada como modelo para a poesia. A contemplação do belo e a afetação do leitor seriam mais intensas nessa curta duração em virtude da sensação de unidade. O horizonte é sempre a construção de determinado efeito que permita associar eficácia técnica com sucesso do texto. O entendimento da completa inteligibilidade da forma como promotora das consequências no ato de leitura implica a busca de uma forma ideal capaz de enaltecer os afetos389. A busca do sublime por intermédio da contemplação do belo seria mais rápida no poema, mas quando se leva em conta a busca da satisfação intelectual pela verdade ou a paixão baseada na excitação do coração, a prosa permitiria uma engenharia mais eficaz. O valor estético é atrelado à capacidade de causar uma sensação à alma, ao poder de elevá-la pela excitação. Por mais efêmero que possa ser o efeito, dele depende a força do poema, e o caminho que leva à experiência do prazer estético passa necessariamente pela beleza. É sua contemplação que atinge os sentidos, por isso é ela a meta de todas as formas de arte. A criação do belo está para o artista como a busca da verdade está para o cientista: é seu domínio, seu território. “O corvo” é a síntese de suas concepções poéticas. Devassando o próprio processo de composição, o escritor americano aponta os dois elementos cruciais do poema. Se a morte é a forma mais expressiva que a melancolia pode assumir, e se a beleza feminina é a mais admirável manifestação do belo, nada mais lógico do que unir os dois elementos, nada mais sublime do que uma mulher morta. A relação entre a morte, a mulher e a fruição estética condensa alguns elementos cruciais do programa literário romântico, reforçando a noção da obra de arte como veículo de emoções. É conhecida a tradução feita por Machado de Assis de “O corvo”, publicada na Gazeta de Notícias em 1888, e por mais que não se possa extrair exatamente uma “teoria do conto” da composição de Poe, a preocupação com a engenharia do efeito de horror literário marca a ficção de ambos390. A tentativa de construção da comoção pelo suspense, assim como !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 389 Segundo Abel Barros Baptista, o princípio aludiria à poética de Aristóteles. BAPTISTA, Abel Barros, op. cit., p. 210. 390 Segundo Renata Philippov: “A ressonância da obra de Edgar Allan Poe na de Machado de Assis é apontada e analisada por vários críticos, de Herman Lima (1971) a Patrícia Lessa Flores da Cunha (1998), principalmente por causa do caráter fantástico de alguns contos, como em “A chinela turca” e “Entre santos” e da escolha do duplo como um tema recorrente, como em “O espelho”, “Teoria do medalhão”, etc. Tanto Poe quanto Machado valorizam extremamente os aspectos formais na construção de seus textos. Enquanto o primeiro cria uma estrutura anterior, que só depois vem a ser preenchida pelo episódio, subordinado ao efeito, o segundo ! ! !169! a exploração da ironia como base construtora do medo, une os dois escritores. É como se um riso sarcástico pudesse ser ouvido na consideração dos infortúnios sofridos pelos protagonistas, apresentados por narradores cuja autoridade é estrategicamente diluída. Esse mesmo riso irônico que, como afirmou Alcides Maia, poderia ser leve nas palavras mas bastante sombrio nos juízos se afirma na constatação do vazio diante da morte e por vezes assume tom mórbido391. É um gesto de desesperança, triunfo do niilismo, que assusta tanto monsenhor Caldas quanto Camilo. A exploração do absurdo e do mal dá origem a uma melancolia de nuances sombrias que, tanto em Poe quanto em Machado, fundamenta o horror literário nos limites da loucura392. O riso é como o produto de uma descida aos infernos. A essência do humor, segundo as considerações de Henri Bergson, aparece como a visão de um moralista que se disfarça de sábio assumindo a postura de um anatomista sádico cujo único objetivo é causar nojo expondo as entranhas do repugnante. Si notre analyse est exacte, ce n’est pas là un trait accidentel de l’humour, c’en est, là où il se rencontre, l’essence même. L’humoriste est ici un moraliste qui se déguise en savant, quelque chose comme un anatomiste qui ne ferait de la dissection que pour nous dégoûter; et l’humour, au sens restreint où nous prenons le mot, est bien une transposition du moral en scientifique.393 Diante de uma plateia que tenta encontrar sentido no jogo de dispersões, exploram-se os estágios do prazer e da dor, do deleite e do horror apresentados como o limite da consciência. Na contemplação fragmentada da dor do outro, a repugnância e o desejo entram em sintonia como exercício de leitura, e o perigo limitado pela segurança da alteridade implica o prazer do encontro com a dramatização da morte. Se no riso e no horror os extremos da vida e da morte se encontram é porque atração e medo medem forças infinitamente e, não !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! se esmera, por exemplo, na exploração variada dos recursos composicionais, construindo vários tipos diferentes de narradores que fazem a narrativa progredir através do diálogo com seus interlocutores, ironizando personagens, citando outros textos, criando alegorias, relatando experiências testemunhadas ou protagonizadas, escrevendo um diário.” PHILIPPOV, Renata. Edgar Allan Poe e Machado de Assis: intertextualidade e identidade. Itinerários, Araraquara, nº 33, p. 39/47, jul./dez. 2011, p. 42. 391 MAIA, Alcides. Machado de Assis; algumas notas sobre o humour. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1912. 392 Lembramos ainda o caso de “O alienista” em que, segundo Simão Bacamarte, o horror é o pai da loucura, ao passo que a fabricação da loucura gera o horror. 393 BERGSON, Henri. Le Rire: essai sur la signification du comique. Paris: Éditions Alcan, 1924, p. 57. ! !170! podendo triunfar uns sobre os outros, reforçam-se mutuamente.394 A imaginação literária do horror, quando assume sua face mais evidentemente irônica, investe nos paradoxos das possibilidades de instabilidade da narrativa como forma de acesso aos interditos que, convertidos em silêncio, traduzem como mistério a experiência estrategicamente perturbadora do estranho. Como visto no primeiro capítulo, para críticos como Andrew Smith, o gótico no século XIX aproxima o mal do universo privado e doméstico. O movimento pode ser entendido à luz do desenvolvimento das técnicas realistas que, segundo Erich Auerbach, permitiram a articulação do sublime com o grotesco para além “de uma espécie estilística baixa ou média” 395 . Essas duas categorias, quando tecnicamente manipuladas para a configuração do horror trouxeram o absurdo, o fantástico e o estranho para servirem de mecanismos de imaginação do medo literário. No caso da literatura brasileira o horror assume primeiramente a imagem exagerada de um romantismo sombrio cujos artífices se fazem representar nos excessos de uma libertinagem fabricada. O terror sanguinário das tabernas, ainda que mais realista que os eventos sobrenaturais passados em castelos distantes e experimentados por heroínas e vilões arquetípicos, investe em uma estranheza compartilhada por poucos. As formas do horror que se espalham nos periódicos de maior circulação como a Revista Popular e a Gazeta de Notícias variam entre o gótico histórico de fundo evidentemente político e a exploração do medo domiciliar que, na formulação silenciosa da ironia, encontra na loucura do sujeito parcialmente representado sua chave máxima de realização. Nesse caso, não só as tabernas dão lugar aos salões e ao toucador, como a violência do crime se converte em distúrbio psicológico, em drama íntimo. Da anedota inofensiva ao misterioso mundo do silêncio, a loucura aparece como a última velada possibilidade de verossimilhança e resistência ao sobrenatural. É ela que poderá, na sua paradoxal formulação, restituir certo grau de inteligibilidade para que o horror continue a funcionar nos padrões de um realismo subjacente. A mudança nos traços de um cinismo libertino para o flerte com o anedótico que se transforma em terror psicológico se dá no caminho da conquista de um público mais amplo. A !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 394 A relação entre erotismo e morte, atração e horror é também é desenvolvida por Georges Bataille no ensaio “O erotismo”. 395 AUERBACH. Erich. Mimeses: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 500. ! !171! mudança temática do horror é também um direcionamento na representação do estranho. O libertino devasso, caricatural, dá lugar ao homem supostamente comum, envolto em situações macabras não mais pelo esforço consciente e voluntário de aprofundamento no cinismo, mas pelo envolvimento circunstancial em situações insólitas arquitetadas por um narrador estrategicamente precário. Mais próximo do realismo literário pela representação de um cotidiano um tanto quanto misterioso, essa forma de imaginação literária do horror não precisa lidar tão recorrentemente com o problema do excesso imaginativo por atuar sempre com um pano de fundo verossímil, recorrendo seja ao histórico, seja ao anedótico, seja à loucura ou por intermédio do artifício da ironia. Recusando a tradicional separação entre imaturidade e maturidade dos contos machadianos, Jason Luís Crestani afirma que os contos publicados no Jornal das Famílias trariam elementos sofisticados, centrados na reconfiguração da relação entre narrador e leitor. Os narradores seriam inconfiáveis o que realçaria a dimensão ficcional da literatura e reforçaria seu estatuto artificial. No caso dos contos aqui analisados ocorre justamente o contrário: o narrador mostra-se a figura confiável que, na chave da amenidade, revela o mistério e garante um retorno seguro à verossimilhança. Menos confiáveis são os narradores do irônicos que deixam o leitor diante de estranho silêncio. Nos contos de horror publicados no Jornal das Famílias a quebra do sentido fantástico ou sobrenatural não necessariamente visaria “desestabilizar os hábitos de leitura cristalizados, exigindo do leitor um posicionamento crítico e distanciado em face do texto literário” 396 . Representa apenas um pacto que possibilita a exploração do horror como mercadoria literária amena. Esse acordo prévio não significa uma amarra definitiva, mas torna viável a representação do horror para um público previamente demarcado. Ao menos nos casos analisados, fica bastante claro que o veículo é determinante para a estruturação dos textos. Escrevendo para um público “gentil” e regido sob a premissa da literatura amena, estes assumem determinada configuração, e na medida em que o públicoalvo muda e a amenidade desaparece do contrato editorial, as regras se alteram. Tal postulação não implica a impossibilidade de publicação de contos amenos na Gazeta de Notícias nem de narrativas mais radicalmente irônicas no Jornal das Famílias, mas indica como as estruturas narrativas se relacionam com determinada expectativa de um público !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 396 CRESTANI, Jason Luís, op. cit., p. 207. ! !172! ideal. Ainda que a preocupação com maior ou menor sofisticação dos textos possa indicar determinado grau de maturidade autoral, as análises avaliam como mais frutífera a observação dos diferentes locais de publicação dos contos considerando as estratégias em jogo na configuração do mercado literário oitocentista. A popularização do horror literário se deveu em grande medida à publicação de histórias macabras em periódicos de grande circulação, nos quais assumiu formas diversas: apresentava para diferentes tipos de leitor uma maquinaria de exposição do medo. Dispositivos de representação de um mal secularizado tornaram-se alvo de investigação ficcional de literatura interessada tanto em divertir pelo medo quanto em revelar certo caráter obscuro da modernidade. Como afirmaria Baudelaire sobre os contos de Poe, há nesse esforço de representação uma devoção ao mundo do silêncio e uma fascinação pelo distúrbio psicológico que transforma o fantástico em mecanismo de diluição das fronteiras entre a realidade e o pesadelo. Ocorre também na literatura brasileira uma difusão da experiência do mal em que o horror deixa de ser atributo de personagens tipificados e fantasmas monstruosos para ser o subtexto de homens comuns espalhados pelas cidades. Nesse processo, o artifício literário vai aos poucos ganhando autonomia em relação à possível edificação moral; a literatura se fortalece como máquina da exploração de sensações e configura um sistema de promoção do deleite oriundo da promoção da incerteza. Na trilha dos contos de horror produzidos ao longo do século XIX, a tácita condenação moral aos poucos perde espaço para o silencioso mistério do fantástico. A fantasia transforma o secreto e o indefinito em formas de experimentação do terror e se espalha nas trevas cotidianas das páginas dos jornais. O programa romântico é atualizado na medida em que assume a modernidade como confluência do belo com o horrível no horizonte do sublime. Na investigação do estranho, eventualmente na forma do humanamente cruel, essas “histórias de terror” exploraram vícios e virtudes enfatizando a incerteza como traço marcante da experiência de leitura. Sem corresponderem a projetos literários audaciosos, eram consumidas na fugacidade dos dias, o que ajuda a explicar o esquecimento de algumas delas. Escritas tanto por autores que não fariam parte do cânone literário brasileiro quanto por escritores reconhecidos, popularizaram-se também em virtude da eficácia da leitura rápida, de uma assentada. No entanto o horror figuraria também em obras de maior fôlego. Romances e novelas que representariam em alguns casos o ápice de determinadas carreiras literárias e em outros desvios circunstanciais de projetos que seguiam outras direções. ! !173! 4. A exceção do horror em causos, lendas e romances 4.1. Autores menores No artigo intitulado “No rastro dos Assassinos misteriosos, de Justiniano José da Rocha”, Karin Volobuef afirma que o texto, publicado em folhetins no Jornal do Commercio entre 25 e 27 de março de 1839, seria uma adaptação da novela Das Fräulein von Scuderi, de Hoffmann. Essa adaptação deriva de uma tradução clandestina francesa intitulada Olivier Brusson, cuja autoria é atribuída a Hyacinthe de Latouche397. O próprio Justiniano afirma não se importar se a obra seria uma tradução ou adaptação. Diz ter ampliado alguns pontos e reduzido outros, traduzido o que parecia conveniente e substituído o que deveria ser mudado. Nas palavras do escritor carioca, autoria e tradução se confundem no objetivo maior de agradar o “benévolo” leitor. Na figura de um tradutor que se recusa a ser fiel, observa-se um tipo dúbio de autor plagiador um pouco distante dos padrões românticos de originalidade. Assassinos misteriosos ou A paixão dos diamantes, considerado uma das primeiras obras de ficção escritas no Brasil, trata de uma onda de crimes ocorridos na Paris de Luís XIV envolvendo um famoso ourives (Cardillac), sua filha (Matilde), seu noivo (Oliveiro) e a renomada escritora Mme. Scudéry – que ajuda a resolver um misterioso assassinato. Justiniano inicia a trama com um comentário sobre Paris e a Marquesa de Brinvilliers398 no qual destaca a decadência e a degradação social da cidade como um “teatro de crimes e suplícios horrorosos” 399 . Já a versão francesa da obra de Hoffmann começa com uma descrição de Mme. Scudéry. O primeiro parágrafo tenta envolver o leitor na atmosfera dos acontecimentos, e o clima de horror aumenta junto com os relatos dos crimes. A intervenção do tradutor brasileiro fica clara no estabelecimento de um padrão para os atentados, padrão inexistente na tradução francesa: “Uma só ferida feita com o mesmo instrumento: uma só, no coração, profunda e triangular.” !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 397 VOLOBUEF, Karin. No rastro dos Assassinos Misteriosos, de Justiniano José da Rocha. In: Anais do V Congresso ABRALIC, CD-ROM. 398 Marie-Madeleine Marguerite d’Aubray, a Marquesa de Brinvilliers, viveu em Paris no século XVI e é apontada como responsável por uma série de envenenamentos e mortes. Sobre o assunto ver WALCH, Agnès. La Marquise de Brinvilliers, Paris: Perrin Éditions, 2010. 399 ROCHA, Justiniano José da. Os assassinos misteriosos ou a paixão dos diamantes. Rio de Janeiro: J. Villeneuve & Companhia, 1839, p. 3. ! !174! Quando Cardillac é assassinado, tanto Oliveiro quanto Matilde são acusados, mas a jovem fica sob a proteção de Scudéry enquanto o primeiro é preso. Certa da inocência do rapaz, a escritora vai à prisão ouvir sua versão dos fatos e lhe é revelada a trama: Cardillac, amaldiçoado na infância pela ganância de sua mãe e atormentado por fantasmas noturnos, matava para ter de volta as joias que ele mesmo confeccionava: “Vê, olha a morte como está enfeitada com suas joias. – Dizia então um hediondo espectro […] tinha sede de sangue: horrorizava-me de mim mesmo!”400. Oliveiro torna-se cúmplice do ourives devido ao amor por Matilde. Deste ponto em diante as duas versões diferem. Na tradução de Latouche um militar da guarda confessa ter matado Cardillac, deixando a culpa recair sobre Oliveiro como forma de puni-lo por sua cumplicidade nos crimes. Mme. Scudéry consegue provar a inocência do jovem com a ajuda do depoimento de Matilde401. Na versão de Justiniano não aparece a figura do militar e não é explicado como o depoimento de Matilde consegue livrar seu amante da acusação; indica-se apenas que ela adoece e morre depois de libertá-lo. Na adaptação brasileira, o texto é resumido e a suposta confissão de Matilde torna o final um pouco confuso e repentino. Justiniano esconde alguns elementos para somente revelar ao final. Seu texto, apesar de não ser tão eficaz na construção da atmosfera de suspense, é mais ágil e simples de ler. A adaptação, talvez para atender à demanda de um incipiente consumidor de folhetins, tende a facilitar a montagem do quebra-cabeça, mas o leitor não é poupado das cenas de horror. “Dia e noite rondavam como fantasmas as imagens das pessoas para as quais havia esmerado meu talento […] e uma voz infernal repetia aos meus ouvidos, toma-as, são tuas, de que servem as joias aos mortos!”, afirma o ourives contando seu drama. E ainda confessa: “Eu não tinha descanso, mais constantes que nunca perseguiam-me terríveis fantasmas, dominavam-me pensamentos de sangue e homicídio.”402. São várias as descrições do horror experimentado tanto por Cardillac quanto por Oliveiro, mas apesar de publicar a obra como “novela histórica”, Justiniano José da Rocha claramente abre mão de traduzir a contextualização histórica para enfatizar o horror e o suspense. Fala brevemente sobre a Marquesa de Brinvilliers e sobre a Chambre ardente403, temas muito mais explorados em Olivier Brusson. Entre a tradução e a criação, o tom sombrio !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 400 ROCHA, Justiniano José da, op. cit., p.24. Na versão francesa apenas no final o nome de Ana Guiot aparece para revelar que Oliveiro era afilhado de Scudéry. Justiniano apresenta a personagem logo no início e somente no final revela que Oliveiro era seu filho. O artifício reforça o efeito de quebra-cabeça. 402 ROCHA, Justiniano José da, op. cit., p.25. 403 Corte extraordinária de justiça responsável por julgar casos específicos, em geral relativos à heresia, na França durante o Antigo Regime. 401 ! !175! ganha espaço. As passagens mais assustadoras são destacadas em uma síntese convenientemente estruturada com vista ao efeito de horror . Nas mãos de um dos mais importantes tradutores brasileiros da primeira metade do século, a novela criada por Hoffmann (e traduzida indiretamente) aparece como um dos marcos iniciais da produção ficcional brasileira, em um contexto em que a noção de originalidade é aparentemente menos importante que o desejo de agradar um leitor ainda pouco conhecido. A novela histórica tem sua contextualização esvaziada para que as cenas sombrias e fantásticas se destaquem. O cenário parisiense é menos importante do que as motivações fantasmagóricas do assassino. Na tradução adaptada, o medo triunfa sobre a descrição dos cenários e torna verossímil o trauma psicológico do protagonista. Antes de realizar a popular tradução de Os mistérios de Paris, com Os assassinos misteriosos Justiniano José da Rocha empreende uma tarefa mais modesta que garantiria, entretanto, seu nome entre os primeiros autores de ficção brasileiros. Ainda que a noção de autoria não esteja muito definida, por não revelar sua fonte e não especificar a natureza de seu trabalho o escritor publica uma obra cuja originalidade parece residir na ênfase do mistério. A adaptação marca o início da formação de um público para o folhetim, isto é, um caminho para a exploração do medo como dispositivo de comoção e entretenimento literário. Cabe lembrar que no ano anterior o escritor já havia publicado no periódico O Cronista, o conto “Um sonho”, em que uma jovem morre misteriosamente depois de um terrível pesadelo em que é arrastada para o inferno por causa dos pecados de uma vida de luxo. Também considerado por críticos como Sílvio Romero, José Veríssimo e Antonio Candido como um dos primeiros romances originalmente brasileiros, O filho do pescador, de Teixeira e Souza, editado em 1843 pela tipografia de Paula Brito, apareceu nas páginas do jornal O Brasil entre 6 de julho e 22 de agosto do mesmo ano404. O romance, editado entre 17 de julho e 20 de setembro de 1859 no periódico A Marmota, divide-se em vinte capítulos e traz a história de amor entre Maria Laura e Augusto. Ele, o filho do pescador, é um típico jovem romântico apaixonado por uma bela mulher de passado duvidoso. Depois de salvá-la de um naufrágio, Augusto se casa com Maria Laura, mas a jovem se interessa por outros homens e tenta assassinar o marido. Dado como morto, Augusto volta no final para revelar o disfarce que lhe permitiu acompanhar a vida da mulher e se vingar de suas traições. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 404 Para uma análise mais específica da obra de Teixeira e Souza ver Teixeira e Souza e seus contemporâneos: vida, obra, recepção e textos selecionados, trabalho de Hebe Cristina da Silva. ! !176! Mesmo gozando de certa popularidade no século XIX – ainda em 1859 foram feitas duas edições do romance em livro – o texto não foi totalmente bem-aceito pela historiografia literária brasileira. Alfredo Bosi, por exemplo, não considera Teixeira e Souza do mesmo nível de prosadores como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Bernardo Guimarães. Ele ressalta a “inegável distância em termos de valor que os separa de todos”.405 Sílvio Romero diz que este, apesar de ter tentado ser nacional, teria fracassado por “falta de imaginação e vigor artístico”. Condena-o também por se valer de alguns recursos menores, frívolos. Seus romances seriam “escritos em um estilo descurado e em linguagem por vezes incorreta” e estariam “cheios quase sempre de salteadores, esconderijos, subterrâneos, assassinatos, incêndios, envenenamentos, ressurreições, e toda a patacoada, todas as ficelles do gênero pavoroso”406. Característicos de uma literatura menor e lidos como truques baratos, assassinatos e reviravoltas diminuiriam o valor da obra. Por outro lado, as descrições de cenas e de ambientes que remetem à “cor local” são enfatizadas. A descrição de uma festa popular, por exemplo, estaria muito mais em sintonia com a função que a prosa deveria assumir do que as “patacoadas” de subterrâneos e cenas de ação, artimanhas vazias de um gênero condenável. As peripécias de um herói que retorna para se vingar aproximam O filho do pescador do folhetim francês do início do século XIX, além de carregar elementos góticos na figura da mulher adúltera e assassina, romântica representação do demônio. Na “carta que serve como de proêmio”, o autor diz escrever para atender ao pedido de Emília, uma amiga que, ao ler Três dias de noivado, teria solicitado um romance que pudesse ser lido por ela, pelo marido e pelos filhos. A missão parece desafiadora: “Que tarefa! Um romance para uma senhora casada e mãe, para um marido e pai, e enfim para dois jovens!”407. A solução encontrada é narrar uma história que lhe teria sido contada: “Escrevo para agradar-vos; junto aos meus escritos o quanto posso de moral, para que vos sejam úteis; junto-lhes as belezas da literatura, para que vos deleitem.”408. Curiosamente, em um romance dedicado à moral e ao deleite pelas graças da literatura, encontram-se cenas de horror nas quais se destaca a crueldade humana. A explicação talvez esteja no último capítulo, “Um !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 405 406 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1981, p. 112. ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, 7a ed., vol. 3, p. 834. 407 SOUZA. A. G. Teixeira e. O filho do pescador. Rio de Janeiro, Typografia da Escola de Serafim José Alves, s/d, p. III. 408 SOUZA. A. G. Teixeira e, op. cit., p. IX. ! !177! epílogo e reflexões”, no qual, fazendo um balanço do que fora apresentado, Emiliano, filho de Laura, toma a palavra: Acabamos uma cena de lágrimas! Nossas sensações foram terrivelmente abaladas à vista de um espetáculo de lutuosos sentimentos! Nossa alma está fatigada por tantas impressões dolorosas! Nossos corações foram despedaçados nessa luta sentimental da natureza, da humanidade e da religião! No meio de uma chusma de diversas afeições nossa imaginação vagou incerta, declinando equívoca entre a piedade e a vingança! Nós provamos afetos horrivelmente dolorosos, e não sem traços de júbilo! Agora a justiça não está sem alguma satisfação. A natureza exulta, a humanidade folga, e a religião está contente! Justo é que descansemos de tantas fadigas morais!409 O arrependimento de Laura e seu exílio em um convento aliviam as dores que ficaram pelo caminho de uma intensa experiência de leitura. O programa romântico implica uma aventura sentimental dolorosa, por onde se alcança o prazer graças a afetos exagerados. O sublime aparece no jogo de contrastes, no horror que leva ao júbilo, na satisfação moral que garante um imprescindível sentimento de justiça. No cansativo processo de contato com o texto, subsiste a lógica das sensações agudas, marcas de um deleite que se realiza no confronto com o abominável. As sensações supostamente abaladas marcam a projeção do sucesso da narrativa no caloroso espetáculo do conflito entre natureza e religião. Assim como nos contos escritos na chave da amenidade, o final aqui é reconciliador. Se não nega a realidade dos fatos narrados, reconduz a imaginação, que vagara entre a piedade e o desejo de vingança rumo às zonas de conforto da redenção da vilã e do discurso moralista de seu filho. Ainda assim, o sentido moral aparece apenas como um elemento da concretização do prazer. A resolução não diminui o esforço de exposição do horror, assim como este não pode ficar indiferente à redentora conclusão. É justamente esse arranjo do deleite pela afetação sustentado pela recorrência de eventos sinistros, um dos pilares da condição de “escritor menor”, que marca a fortuna crítica de Teixeira e Souza na maioria das histórias literárias. A condenação de seu estilo é também uma forma de censurar determinados recursos e dispositivos considerados de mau gosto, inconvenientes para o desenvolvimento da literatura brasileira. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 409 SOUZA. A. G. Teixeira e, op. cit., p. 219/220. ! !178! O mesmo tipo de crítica recai sobre Januário Garcia ou O sete orelhas, de Joaquim Norberto de Souza Silva, publicado em 1843 no periódico Espelho Fluminense, e em 1852 na coletânea Romances e Novelas, organizada pelo autor e publicada pela Tipografia Fluminense de Candido Martins Lopes410. A trama é mais simples do que a de O filho do pescador. Conta a história de Januário Garcia que, para vingar o brutal assassinato de seu filho, abandona a mulher e a filha em casa e sai em busca dos sete assassinos411. Volta para casa depois de dez anos com um colar feito com as sete orelhas dos bandidos. Criticado por Massaud Moisés pelo “terror grosso”412, o romance se vale de cenas fortes para enfatizar o caráter do drama de Januário. A descrição da reação do homem ao ouvir a narração do esquartejamento é um bom exemplo do tipo de horror que o define: Transido de horror, com os cabelos eriçados como a coma de javali, apareceu Januário Garcia, cuja figura infundia terror a quantos a viam; em pé, com a sua sombra estendida ante si, estava todo convulsivo, que os dentes lhe rangiam de raiva, os músculos estremeciam, e os trajos balançavam com ele; como quando palpita a terra, que tremem os troncos, e que se agita a folhagem, parecendo convulsas as árvores. Quis falar, mas as fauces secas, mas a língua presa, não lhe permitiram; e assim se conservou embargado por algum tempo ante o estalajadeiro e a mulher, mudo e imóvel como os troncos robustos do ermo.413 A taberna está no centro da trama, não como palco das perversões, mas como o lugar onde as verdades se revelam e a vingança se completa. Não é o espaço do cinismo e sim o ponto estratégico no qual o honrado protagonista articulará sua sangrenta reação. A crueza da narrativa lembra o sentido de horror que Ann Radcliffe apresenta no artigo “On the supernatural in poetry”, publicado postumamente na New Montly Magazine em 1826. A famosa definição estabelece que o terror teria caráter expansivo capaz de elevar a alma enquanto o horror a contrairia414. O romance de Joaquim Norberto de Souza Silva reserva aos leitores essa experiência mais fria, pois as cenas de fúria se sobrepõem ao mistério e recusam qualquer aspecto !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 410 No jornal o texto aparece como “crônica fluminense”; já na coletânea é classificado como “romance”. Fazem ainda parte da coletânea as novelas Maria ou vinte anos depois e O testamento falso; além do romance As duas órfãs. 411 A novela Januário Garcia ou O sete orelhas é baseada na história real de Januário Garcia Leal que no início do século XIX vingou a morte dos assassinos de seu irmão no interior de Minas Gerais. 412 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira: das origens ao realismo. São Paulo: Cultrix, 2012, vol. 1, p. 369. 413 SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 126. 414 RADCLIFFE, Ann. On the supernatural in poetry. New Monthly Magazine, vol. 16, no 1, p. 145/152. ! !179! fantástico para se concentrarem em um realismo brutal que traduz o horror como violência. Em uma das cenas mais contundentes, diante da súplica dos assassinos de seu filho Januário brada: “Ele chorava, e vós, abutres de carne humana, lhe arrancáveis a pele; ele gemia, e vós, onças esfaimadas e carniceiras, lhe decepáveis membro por membro; e ele dava o último arranco, e vós, algozes da barbaridade, lhe tiráveis as entranhas ainda palpitantes!”415. O contraste entre a objetividade fria dos assassinatos e a possível legitimidade dos atos não mascara o sentido geral de um texto construído em torno do espetáculo da vingança. Se os leitores de O filho do pescador terminariam a leitura extenuados pelas intensas sensações experimentadas no turbilhão do juízo moral, os de Januário Garcia, ou O sete orelhas precisariam lidar com cenas explícitas cujo ápice se dá na confecção de um grotesco colar. Na introdução de Romances e novelas, Joaquim Norberto afirma que o romance no Brasil seria tão recente que não se poderia esperar “senão débeis ensaios”416. Nessa busca inicial por uma forma romanesca, o escritor mineiro opta por explorar os apelos do crime e da violência em uma imaginação ficcional que investe mais na dissecação do corpo do que no crime. Sem investigar as motivações, debruça-se sobre os efeitos de um horror explícito e constrói uma trama seca que se sustenta apenas pela sequência de cenas terríveis. Como um ensaio para o romance, a novela se apoia em uma tradição sombria e se aproxima do universo de Noite na taverna, para vingar o cinismo com a virtude de um herói cruel. Comentando a obra de Teixeira e Souza, Antonio Candido ressalta sua importância histórica, mas afirma que a qualidade literária é de “terceira plana”. Os romances do escritor fluminense fariam convergir elementos já presentes nos trabalhos de Pereira da Silva, Gonçalves de Magalhães e Norberto de Souza Silva e representariam o “triunfo da subliteratura” em virtude da complicação dos enredos. Ainda segundo o crítico, a “peripécia” seria o elemento central em todas as suas obras, e os personagens não passariam de elementos “na concatenação dos acontecimentos”417, foco absoluto das tramas. O traço folhetinesco, que permite a comparação com Eugène Sue, se reforçaria ainda na recorrência da conclusão moral, na qual a fatalidade age como a providência que restitui o sentido de justiça. Teixeira e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 415 SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 132. SILVA, Joaquim Norberto de Souza, op. cit., p. 5. 417 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, vol. 2, p. 126. 416 ! !180! Sousa é tratado como pioneiro do romance brasileiro que atingiria a maturidade com Machado de Assis. José Veríssimo, por sua vez, diria que os trabalhos de Teixeira e Souza, “criador do romance no Brasil”, teriam se tornado ilegíveis com o passar do tempo, “tanta é a insuficiência de sua invenção, composição e também da sua linguagem”. Já sobre Joaquim Norberto, considerado precursor da “ficção novelística”, diz não ter tido a preocupação de escrever bem: “É geralmente desataviado, mas não raro também incorreto”. A principal crítica o pesquisador extrai de um comentário feito pelo próprio Norberto em sua análise da obra do autor de O filho do pescador, na qual afirma que Teixeira e Souza tenderia a “perder-se em reflexões filosóficas e demorar-se nas trivialidades de um enredo cheio de incidentes para retardar o desenlace da ação principal”418. A suposta ênfase aos fatos menores e as estratégias para prender a atenção do leitor permanecem como elementos-chave para a crítica. Heron de Alencar considera O filho do pescador um “pequeno volume de umas poucas dezenas de páginas” cuja fabulação parece o “resultado de demoradas leituras do romance negro e do folhetim de capa e espada, tantas são as peripécias, os crimes e os pactos diabólicos que se sucedem”419. Também Temístocles Linhares critica a relação com o romance negro: “Os recursos utilizados são os do chamado ‘romance negro’, a se desdobrar em quadros a Ponson du Terrail, sem nenhum caráter local, em plano puramente imaginativo”.420 Nos comentários fica clara a tendência de valorização de determinado padrão narrativo que diminui o impacto dos acontecimentos para se concentrar na exploração psicológica dos personagens, que, no caso específico da análise de Antonio Candido, teria seu apogeu na prosa machadiana. Identifica-se um paradigma de análise que diminui o valor dos textos no que tange a problemas estilísticos, à falta de cor local e ao excesso de peripécias forjadas basicamente, segundo Alfredo Bosi, para atingir um público nivelado por baixo, “um novo público menos favorecido que busca algum tipo de entretenimento sendo o folhetim o que melhor responde a demanda e melhor se estrutura no seu nível”421. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 418 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Brasília: Editora UNB, 1998, p. 169. 419 ALENCAR, Heron. José de Alencar e a Ficção Romântica. In: COUTINHO, Afrânio (org.). A Literatura no Brasil. Estilos de época: era romântica. 3.ed. v. III. São Paulo: Global, 1997. , p. 243. 420 LINHARES, Temístocles. História crítica do romance brasileiro 1728-1981. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, vol. 1, p. 41. 421 BOSI, Alfredo, op. cit., p. 102. ! !181! Independentemente do grau de pertinência de tais comentários, fato é que eles colocam a literatura folhetinesca e o chamado romance negro como matrizes menores, referências que teriam originado obras de pouco valor estético, restando certa importância histórica pelo fator pioneirismo. Quando entram na história literária brasileira, essas obras são apontadas como subliteratura “puramente imaginativa”, fantasias românticas imaturas que não traduziriam literariamente o Brasil. O horror ganha outra tonalidade em D. Narcisa de Villar, romance de Ana Luísa de Azevedo e Castro. Inicialmente publicado em A Marmota entre 13 de abril e 6 de julho de 1858, foi editado no ano seguinte pela editora de Paula Brito, que manteve o pseudônimo Indígena do Ypiranga. Unindo estrutura semelhante à dos romances góticos ingleses do século XVIII com personagens comuns na literatura brasileira, a trama se apresenta como uma lenda contada por uma índia. Narrando como a Ilha do Mel se tornou mal-assombrada, a velha indígena relata a trágica história da heroína Narcisa e do pobre Leonardo, proibidos de se casar pelo ganancioso D. Martim de Villar. A descrição da protagonista corresponde ao modelo ideal da heroína romântica: “A moça tornou-se bela como uma divindade. Os seus modos eram tão benévolos, quando tratava com os pobres, sua caridade tão extensa, que ganhou no povo um amor universal”422. A delimitação do vilão não foge à regra: era um governador sórdido, “um dos tiranos mandados ao Brasil em quem recaíra a má escolha do governo português”. Recusando se casar com Coronel Pedro Paulo, pretendente arranjado por seu irmão, Narcisa foge com Leonardo, e ambos são assassinados na gruta da Ilha do Mel, o que deu origem à maldição. A história é contada por mãe Michaella em volta de uma fogueira como uma “legenda do tempo colonial” e uma história de Anhangá, espírito maligno. A relação com um passado distante e nebuloso marcado pelo obscurantismo ganha forma na imagem do período colonial. O vilão aristocrata assume a feição de um poderoso fidalgo, fazendeiro politicamente influente, enquanto o plebeu aparece na forma de Leonardo, filho de uma escrava. Os elementos sobrenaturais surgem nas histórias locais como o sinistro uivo do menino queimado, que a autora explica ser uma ave noturna de mau agouro, “um fantasma com que as amas metem medo às crianças; por isso ninguém o ouve sem muito pavor”423. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 27. 422 CASTRO, Ana Luíza de Azevedo. D. Narcisa de Villar. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997, p. 423 CASTRO, Ana Luíza de Azevedo, op. cit., p. 34. ! !182! A conclusão aponta para outra lenda que reproduziria os horrores cometidos contra o casal: pombas brancas e corvos simbolizariam a perseguição sofrida. Michaella termina sua narração “não sem derramar muitas lágrimas”, pois “todos quantos a ouviram estavam comovidos” pela tocante narração. O tom de crítica à nobreza, aspecto propriamente moderno do gênero gótico que tende a afirmar o valor da autonomia individual ao fazer da tirania do poder uma fonte privilegiada de horror, aparece em D. Narcisa de Villar como desaprovação à relação política entre colônia e metrópole. A origem portuguesa dos vilões D. Martim e Pedro Paulo contrasta com a figura nacional de Leonardo. O romance não é exatamente uma alegoria política, mas, ao tratar do drama do casal, adapta uma estrutura típica do gótico encontrada, por exemplo, em The mysteries of Udolpho. E, como em todos os romances de Radcliffe, o clima se constrói também com a representação terrível da natureza: trovões assustadores lutam no ar e são reproduzidos “pavorosamente nas entranhas do mar”, iluminando “cena de horror com uma luz esverdeada”424. O sublime aparece na força destruidora da natureza capaz de abalar os personagens. A mesma tempestade tem papel preponderante na trama ao retardar a busca dos vilões pelo casal. Aparece como elemento inexplicável e invencível ressaltar a impotência dos homens e redobrar o medo. É um dos elementos centrais de comoção que prepara o objetivo final: levar leitores e ouvintes às lágrimas. Os ouvintes da história “fielmente” transcrita são como leitores ideais que atestariam o sucesso da trama. As lágrimas são marcas do êxito nessa metalinguagem que articula narração oral com técnica de escrita no processo de imaginação literária do horror. O interesse gótico por tempos medievais aparece em D. Narcisa de Villar como dramatização da época colonial. Seja na forma de antigos pergaminhos perdidos no tempo, seja na de histórias contadas pelos mais velhos, esse tempo distante reaparece como domínio no qual são possíveis barbaridades inconcebíveis na modernidade. O passado se converte em um fantasma assustador. No prefácio, sob o pseudônimo “Indígena do Ypiranga”, a escritora diz ter escrito aos dezesseis anos e pede desculpas pela “mediocridade da linguagem” e a singeleza das cenas. No entanto, mesmo sem ser um grande sucesso editorial, com apenas uma edição ao longo de todo século XIX, o livro se tornaria o ponto central da obra de Ana Luíza de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 424 CASTRO, Ana Luíza de Azevedo, op. cit., 97. ! !183! Azevedo Castro. Ainda que a história tenha componentes nacionais, a clara filiação ao gótico parece diminuí-la. Ajuda a explicar, por exemplo, por que a obra só despertará algum interesse crítico a partir da década de 1990, na chave dos estudos de gênero. Analisando um pouco mais atentamente a História da literatura brasileira, de Sílvio Romero – obra basilar dos estudos literários brasileiro, fundamental na consolidação institucional da disciplina –, é possível observar como no século XIX a força do pertencimento à nação se torna elemento decisivo para o estabelecimento das bases da ficção brasileira. Expressar relação íntima com temas, sentimentos e traços do espírito nacional desponta como o subsídio crucial para a formação de um cânone forjado nas linhas de um progressivo aprofundamento do problema da representação do Brasil. A história da literatura brasileira é vista como “a descrição dos esforços diversos do nosso povo para produzir e pensar por si”, e se traduz como “a solução vasta do problema do nacionalismo”425. De forma ainda mais taxativa, Romero afirma: “Quer se queira, quer não, esse é o problema principal de nossas letras e dominará toda a sua história”. Mas a questão não se resume à mera adoção de temas nacionais. Não é o sentimento profundo que se busca, e ele não deve corresponder a nenhum projeto articulado. Para Romero, “um caráter nacional não se procura, não se inventa, não se escolhe; nasce espontaneamente, bebe-se com o leite da vida, respira-se no ar da pátria”426. O nacionalismo legítimo é o que nasce espontaneamente e se naturaliza. Por esse caminho, a formação do cânone ganha ares de condição intrínseca à evolução de um estado espiritual refletido em fatos históricos. O caminho literário brasileiro, tornado espontâneo por força dessa tese, veicula a ideia de um repertório que deve se consagrar necessariamente e a ilusão de uma única trajetória possível. Analisada como uma ramificação da história social, como “necessidade orgânica da vida das nações”, a história literária manifesta-se como desdobramento de um Zeitgeist moderno invariavelmente canonizador. Respondendo sobre o que seria um livro romântico, afirma: “É um livro fantástico, eivado de miragens, de encantamentos, como o Ahasvérus de Quinet. Que é um herói romântico? É um ente raro, miraculoso, uma espécie de arquétipo em contraste com o mundo positivo, vivendo duma vida ideal.” E comentando a obra de Victor Hugo diz: “Por menos que se deseje uma literatura que seja uma expressão da realidade, uma notação da vida !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 425 426 ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 406. ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 407. ! !184! mundana, não é possível desconhecer a falsidade das criações dos romances e dramas do grande lirista francês”427. Os supostos excessos da imaginação romântica são condenados pelo imperativo de realidade. Esse é, aparentemente, o único alvo legítimo de qualquer obra que almeje reconhecimento. A crítica à fantasia estabelece um programa relativamente preciso para a produção literária: o caminho da grande literatura é a busca pelo real sem devaneios frívolos e artificiais. A determinação do princípio de representação da realidade como definidora do romance moderno não é uma exclusividade da obra de Sílvio Romero nem da crítica literária brasileira. A ideia de que o romance teria um compromisso com o real marca a definição do gênero e aparece claramente, por exemplo, na clássica síntese da literatura ocidental feita por Erich Auerbach. Ainda no século XVIII, Clara Reeve, em The progress of romance, uma das primeiras tentativas de historicização do discurso ficcional, difere os termos novel e romance. O primeiro seria como uma “fábula heroica, que trata de pessoas e coisas fabulosas”, e o segundo seria “um quadro da vida real e dos costumes e dos tempos em que ele é escrito”. Se um descreveria “o que nunca ocorreu nem é provável que ocorra”, o outro “faz um relato familiar daquelas coisas que se passam todos os dias diante de nossos olhos”; a perfeição deste seria “representar cada cena de maneira tão acessível e natural” a ponto de nos confundir com a sensação de que tudo é real428. A história do romance parece relegar à imaginação fantástica e ao horror literário a qualificação de subproduto da ficção oitocentista. O longo debate em torno da literatura inglesa nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, aponta o triunfo do modelo realista que conduzirá o discurso ficcional aos problemas de um cotidiano reconhecível pela grande massa de leitores, o que fortalece a ideia de que a prosa literária é a imagem refletida de um tempo histórico francamente determinável. Também no Brasil os exageros da imaginação romântica serão condenados em nome da observação realista, e a noção do efeito estruturado na lógica do sublime se torna alvo de críticas. Na advertência de Favos e travos, romance de Rozendo Moniz publicado em 1872, o autor se desculpa pelas falhas do texto e comenta: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 427 ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 779. REEVE, Clara. The progress of romance. Apud. VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002, p. 45. 428 ! !185! Também, a não ser fantástico o romance da vida íntima, o escritor moderno pouco aproveita da fibra da sociedade atual, cujos lances mais patéticos cifram-se numas ameaças, nuns prantos, nuns faniquitos e numas costumélias que não desafiam o trabalho de penas como o pincel de Rembrandt. À leitora que se enfastiar do frouxo enredo que aqui vai, promete o autor deste livro apresentar mais tarde um romance tão cheio de peripécias como as Proezas de Rocambole, que tanto lhe deram no gosto. Não há remédio senão viajar com a fantasia nos mares do sublime-horrível, ainda que naufraguem o bom senso e a verossimilhança, até porque já vai caindo em desuso ou esquecimento aquele belo hemistício de Boileau: Rien n’est beau que le vrai”.429 Antes de começar a narrativa – sobre a história de amor entre Virgínia e Alfredo, dificultada pelos interesses financeiros do pai da jovem –, afirma: “O romance fantástico é quase sempre o caprichoso parto de fogosas imaginações”. E avisa à leitora: “Quem se deleita com romances e gosta de cenas inverossímeis, não leia estas páginas escritas pelo coração e para o coração. Este romance é verdadeiro.”430. Rozendo Moniz parece lamentar os exageros da ficção de seu tempo que fazem a verdade perder força. As palavras de Boileau soam ultrapassadas em um universo no qual o sublime-horrível aparece como a melhor maneira de seduzir os leitores dados a faniquitos sentimentais. Ironicamente, lamenta não ter sucumbido a esse atentado ao bom gosto e à verossimilhança, mas reassegura sua posição sobre a verdade do texto. Favos e travos, editado pela Garnier, é apresentado como avesso ao fantástico e faz valer a verossimilhança, ainda que à custa do sucesso de público. Reafirmando novamente a verdade do relato, o autor diz que não transcreveria a história se terminasse em “cenas de arrepiar o cabelo, em que entram prantos e lutos, o punhal e o veneno, enfim honra paga pela morte ou a inocência exposta para sempre à desonra”431. Justificando o final convencional e a felicidade conjugal de Virgínia e Alfredo, pede aos leitores que “aproveitem esses quadros lutuosos e horripilantes ao mau gosto de certos escritores que, para comoverem mais no desfecho de suas narrativas, não se importam de abrir um epitáfio em cada período” com o espúrio objetivo de fazer com que “de uns olhos femininos chovam lágrimas desmentidoras do coração presumido de insensibilidade !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 429 MONIZ, Rozendo. Favos e travos. Rio de Janeiro: Garnier,1872, p. 4. MONIZ, Rozendo, op. cit., p. 15. 431 MONIZ, Rozendo, op. cit., p. 297. 430 ! !186! marmórea”432. Condena a exploração barata dos sentimentos e o apelo ao sublime-horrível como recurso baixo na busca do êxito literário. Ao narrar a bem-sucedida aventura amorosa de um estudante paulista, apesar dos percalços, faz, portanto, a antítese de Noite na taverna. Descreve o protagonista como um jovem de bom senso, diferente de outros daquele tempo, presos à “desgraçada moda pela qual muitas vezes o sublime chega a ser sinônimo do extravagante”. Um tempo em que “a imaginação mistura com os vômitos do cognac, com as fezes da saturnal”, em que a “Noite na taverna, Jacques Rolla, D. Juan, e os Cantos fantásticos são os principais estimulantes com que a mocidade, mais doudejante que as mariposas, busca esbrasear as asas do pensamento no fogo do ceticismo para logo cair no gelo de precoce marasmo”433. Com um romance muito simples, Rozendo Moniz critica não só determinado comportamento juvenil como também um tipo de literatura condenável pelo caráter patético. Se o jovem cínico influenciado por Álvares de Azevedo e Lorde Byron representava o imobilismo cético, a literatura fantasiosa oriunda das academias seria a imagem do mau gosto. Alfredo é o oposto de todos os miseráveis frequentadores das tabernas, assim como Favos e travos se opõe aos exageros fantásticos com uma trama assumidamente banal que faz de sua simplicidade um modelo de retidão e honestidade literária. O exemplo deixa claro que a crítica aos excessos da imaginação romântica não é um problema proposto apenas pelo olhar retrospectivo e sintetizador da história literária, mas uma das questões centrais no debate em prol da definição dos termos para o desenvolvimento do romance no século XIX. O realismo aparece como parâmetro distintivo na definição dos padrões de bom gosto e refinamento estético. No prefácio de Flor de sangue, por exemplo, Valentim Magalhães explica que em seu primeiro “trabalho sério”, obra de fôlego tão cobrada pelos críticos, não se preocupou em escrever um “romance naturalista, nem de aventuras, nem de psicologia nem simbolista”, apenas um “romance filiado à escola da verdade”. Os tipos seriam inspirados em pessoas reais, e a conotação moral dependeria muito dos olhos do leitor. O autor chega a justificar o suicídio de um dos personagens como desdobramento possível de seu caráter, e não como solução única e necessária. Confessa ainda que não daria o livro a seus filhos, pois os “romances sinceros e verdadeiros, isto é, honestos e morais, não se escrevem para serem lidos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 432 MONIZ, Rozendo, op. cit., p. 297. MONIZ, Rozendo, op. cit., p. 168. 433 ! !187! por donzelas e dônzeis”. No entanto, defende a soberania do texto citando Edmond de Goncourt: Hoje que o romance se alarga e cresce, que vai sendo a grande forma séria, apaixonada, viva, do estudo literário e do inquérito social, que se vai tornando, pela análise e pela pesquisa psicológica, a história moral contemporânea, hoje que o romance se impôs aos estudos e aos deveres da ciência, ele pode também reivindicar suas liberdades e privilégios. Os privilégios se referem ao direito de investigar a moral de seu tempo sem pudores: afinal, como afirma adiante, nenhum romance poderia ser mais libertino que as conversas correntes tanto na baixa quanto na alta sociedade. Ainda segundo Magalhães, o romance e a poesia são as matrizes fundamentais da literatura moderna, mas o primeiro destaca-se em um mundo “despoetizado pela indústria, pela ciência e pelo epicurismo”. Acredita que o gênero ganhou força como instrumento de interpretação da sociedade e deve ser um dos caminhos para sua reestruturação moral. E conclui: “O romance era fábula: hoje é história e crítica, será filosofia amanhã.”434. O livro, publicado em 1897, é apenas mais um indício do triunfo de determinado projeto para o romance que vai gradualmente e com inúmeras variações exercendo o papel de intérprete da realidade social. Nesse projeto, o gênero deixa de ter a conotação de fábula para se tornar instrumento de reflexão histórica e mecanismo de investigação crítica; enquanto “trabalho sério”, preconiza a interpretação verossímil do mundo, e o sentido de compromisso com o público se desdobra em defesa da verdade. Curiosamente, a fantasia é condenada também por aquele que é considerado um dos primeiros esboços da ficção científica brasileira. O doutor Benignus, romance de Augusto Emílio Zaluar publicado originalmente em 1875, foi, como afirma o próprio autor, o primeiro romance brasileiro a fazer da ciência tema de fabulação. Tomando como modelo textos como Viagem ao redor da Lua e Cinco semanas num balão, de Júlio Verne, conta a história de Benignus, cientista que decide sair em uma expedição pelo interior do Brasil. O romance não traz nenhum elemento de horror e tem muito pouco de fantástico; é uma espécie de tratado em favor das maravilhas da ciência, considerada o caminho para o progresso e a felicidade. No prefácio, o autor reproduz uma nota dada pela redação do jornal !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 434 MAGALHÃES, Valentim. Flor de sangue. São Paulo: Editora Três, 1974, p. 29. ! !188! Globo: “O doutor Benignus foi na literatura nacional o primeiro ensaio do romance científico ou instrutivo, nobre empresa literária cometida pelo estimado poeta e escritor o Sr. Antonio Augusto Zaluar”. E agradece a acolhida: seu trabalho seria “um simples pressentimento da nova fase em que necessariamente vai entrar a literatura contemporânea”435. A crença na evolução da literatura baseia-se no mesmo positivismo expresso na trama: o espírito humano enriquecido com as conquistas científicas não poderia se contentar “com leituras frívolas ou livros de exageradas e às vezes perigosas seduções”. Segundo Zaluar, em sociedades mais avançadas, como a inglesa, a alemã e a americana, seriam “raras as obras de pura imaginação”, e as poucas existentes passariam despercebidas. A imprecisão dos comentários acerca das devidas literaturas evidencia seu comprometimento com um tipo sério de imaginação apoiada no discurso científico. Naquela que é apontada como a primeira obra de ficção científica brasileira depreende-se um senso de seriedade que inibiria os traços mais imaginativos característicos desse tipo de romance se consideradas, por exemplo, obras como Paris no século XX, do próprio Júlio Verne, e A máquina do tempo, de H.G. Wells. Augusto Emílio Zaluar conclui seu recado aos leitores com uma passagem do livro Conflitos da ciência e da religião, do cientista americano John William Draper: “Estamos em véspera de uma grande revolução intelectual e as leituras frívolas vão ceder lugar a uma literatura grave e austera, a que os interesses da Igreja em perigo comunicarão a paixão e a força”436. Fica claro que a apropriação de Júlio Verne é apenas parcial, pois, como afirma José Murilo de Carvalho na introdução da edição de 1994, Benignus é um cientista à moda antiga, muito mais aos moldes dos naturalistas europeus de metade do século do que aos do entusiasta das novas tecnologias, como os personagens do escritor francês. Essa diferença ajuda a explicar o caráter menos fantasioso do texto e a preocupação de seu autor com uma literatura séria e engajada no progresso da civilização. Novamente observa-se um imperativo de realidade que busca orientar a ficção oitocentista no caminho da verdade dos fatos. As leituras frívolas e exageradas fazem parte de um passado infantil a ser superado pela razão e pelas formas austeras de imaginação. As previsões idealistas do autor de O doutor Benignus não se realizaram plenamente, pois ainda que o discurso científico ganhasse espaço na literatura brasileira nas últimas décadas do século XIX e tenha sido incorporado, por exemplo, pelo naturalismo, não houve no Brasil !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 435 436 ZALUAR, Augusto Emílio. O doutor Benignus. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994, p. 28. ZALUAR, Augusto Emílio, op. cit., p.28 ! !189! uma produção ficcional dedicada ao culto da ciência, como sugere o escritor. Todavia, em Fortaleza, no fim do século XIX, seria publicada uma das mais bem-sucedidas tentativas de reprodução da estrutura do romance gótico no Brasil. Valendo-se do discurso científico como mecanismo de exploração do fantástico, A rainha do Ignoto, escrito por Emília Freitas e editado em 1899, fala de uma sociedade paralela comandada por mulheres situada em uma ilha na costa nordestina. Aludindo ao espiritismo, à hipnose e à psicologia, a narrativa explora o maravilhoso apoiado no horror. O centro da trama é o envolvimento do Dr. Edmundo com a líder das misteriosas mulheres, a rainha do Ignoto, figura mítica da Amazônia que teria pacto com fadas e demônios e lançaria mão de magias, hipnotismo e parapsicologia para lutar contra injustiças, curar enfermos e salvar vítimas de acidentes – tudo isso com a colaboração de uma legião de “paladinas”, mulheres que a ela se juntaram depois de sofrer alguma forma de violência ou desilusão. A trama se articula entre a ocorrência de situações estranhas e a possibilidade de explicação racional para os fenômenos. Antes de começar a narrar, a autora comenta que o “livro não teve padrinho assim como não teve molde”. Não seria tampouco resultado das conversas de salão, mas uma tentativa de estudar a alma feminina, “sempre sensível e muitas vezes fantasiosa”. Afirma que a personagem principal, ainda que pareça extravagante, seria verossímil, um “gênio possível” que no campo da ficção encontrou espaço para realizar os “caprichos de sua imaginação raríssima”. Cita Joana D’Arc como um exemplo de que história e lenda se confundem. A rainha do Ignoto representaria uma peculiar possibilidade histórica, realizada apenas como literatura cujos horizontes teriam se ampliado com a emergência de outros discursos: “Hoje com mais razão podemos nos apoderar do inverossímil; pois estamos na época do espiritismo, e das sugestões hipnóticas, nas quais fundamentarei meu romance”437. A preparação para a leitura é também uma explicação. O leitor é avisado de que os fatos extraordinários que se seguirão estão fundados em ideias contemporâneas, que legitimam os devaneios da imaginação e refugiam o sentido fantástico em determinada racionalidade. Quando avista pela primeira vez a misteriosa mulher ao lado de alguns estranhos personagens, Dr. Edmundo se pergunta: “Por que capricho aquela criatura formosa, romântica e ideal misturava o belo com o horrível? Por que se acompanhava com figuras tão irrisórias? !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 437 FREITAS, Emília. A rainha do ignoto. Florianópolis: Editora Mulheres, p. 30. ! !190! Mistério!”438. A dúvida serve como mote para o romance em si. Misturando o belo das descrições maravilhosas da natureza e dos feitos fantásticos das heroínas com o horrível das cenas noturnas de horror, A rainha do Ignoto mantém o suspense das peripécias ao cultivar a dúvida em relação aos seus desdobramentos e implicações. Na conclusão, depois de tomar conhecimento do suicídio da protagonista, o leitor é levado a refletir sobre a real existência da ilha e os mistérios que a cercam. No final, a protagonista explica que tanto a Ilha do Nevoeiro quanto o palácio do Ignoto eram heranças espirituais e por serem de origem vulcânica desapareceriam por um fenômeno natural. A predominância do “sobrenatural explicado”, nesse caso por um misto de espiritismo e ciência, leva à inevitável comparação com os romances de Ann Radcliffe. As descrições majestosas da natureza e a recorrente oposição entre o belo e o horrível fazem do romance de Emília Freitas uma versão fin-de-siècle do gótico inglês do século XVIII. A rainha do Ignoto, que teve três edições, uma em 1899, outra em 1980 e a mais recente em 2004, traz, em todas elas, o sugestivo subtítulo de “romance psicológico”. Por se dedicar a interpretar “a alma feminina” e fazer da suposta vocação imaginativa do gênero feminino argumento para a exploração do fantástico. Apoiado nos parâmetros de uma cientificidade que se popularizava como exploração da subjetividade – das sugestões hipnóticas ao espiritismo –, tem-se o exemplo de um romance que, também pelo fôlego, remete a um gênero já em decadência na Europa e que no Brasil nunca chegou a despertar muito interesse da crítica. Em O romance cearense, por exemplo, Abelardo Montenegro acusa A rainha do Ignoto de ser “um dramalhão” sem “veracidade” nem “naturalidade nos diálogos”. O texto, graças à defesa feita por Otacílio Colares por ocasião de sua segunda edição – assim como D. Narcisa de Villar a, voltaria a despertar interesse só no fim do século XX, também na chave dos estudos de gênero. Na medida em que as prerrogativas para o romance passam a priorizar a capacidade de observação da realidade, ocorre um duplo movimento: de diminuição de determinados autores e de marginalização de obras centradas tanto na exploração de uma fantasia menos comprometida com a realidade quanto na promoção de um efeito de comoção específico. Consequentemente, as diferentes formas de horror literário ocuparão espaços paralelos, seja como dispositivos centrais nas obras de nomes pouco importantes, seja como recursos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 438 FREITAS, Emília, op. cit., p. 36. ! !191! secundários nos trabalhos de autores canônicos. Reproduzindo paradigmas estabelecidos ainda no século XIX, as histórias literárias brasileiras tenderão a consagrar a representação da realidade como meta virtual, muitas vezes ignorando as lógicas de circulação e consumo para enfatizar um amadurecimento estético ideal cujo valor intrínseco se sobrepõe às particularidades históricas da literatura. 4.2. Os alfarrábios de José de Alencar Publicado em dois volumes, em 1873, pela Garnier, Alfarrábios traz em seu primeiro tomo “O garatuja”, uma “crônica dos tempos coloniais”, e no segundo os contos “O ermitão da Glória” e “A alma do lázaro”. Baseado em um episódio registrado por Baltasar da Silva Lisboa, “O garatuja” conta como a história de amor entre dois jovens, articulados com o autoritarismo do poder eclesiástico, dá origem a um grande motim no Rio de Janeiro do século XVII. No prefácio, José de Alencar lembra que o caráter histórico da narrativa poderia ser comprovado no terceiro volume dos Anais do Rio de Janeiro, mas confessa ter descoberto a trama – que também serviu de mote para o poema “O Almada”, de Machado de Assis – em conversas com um velho que conhecera no Passeio Público. Uma figura indefectível que parecia “a metempsicose de algum poento in-fólio da Biblioteca Nacional, que porventura fugira pela janela; e se abrigara à sombra dos castanheiros para livrar-se da fúria arqueológica dos antiquários”.439 Em nota no primeiro volume de Guerra dos mascates, obra publicada no mesmo ano de Alfarrábios, o escritor cearense afirma que “O garatuja” já estava esboçado havia muito tempo; faltava apenas tomar forma. Diz ainda que, de tanto estudar, conhecia mais o Rio de Janeiro colonial do que o imperial, e que a “crônica despretensiosa” escrita “sem esforço nem cuidado” seria apenas uma forma de atenuar o tédio advindo com a doença que o acometia. No prefácio da edição publicada nas obras completas editadas pela José Olympio em 1955, Mário Casasanta diz que a versão de José de Alencar do motim ocorrido no século XVII não só é superior à de Machado de Assis como é uma verdadeira obra-prima. O crítico destaca que o autor conseguiu se afastar dos recursos dos romances portugueses no tocante à !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 439 ALENCAR, José de. Alfarrábios. São Paulo: Ler Editora, s/d, p. 6. ! !192! “linguagem, instituições, modas e personagens”, tarefa improvável por se tratar de crônicas coloniais. Afirmando que os textos reunidos seriam composições antigas, Mário Casasanta sustenta que “O ermitão da Glória” e “A alma do lázaro” teriam sido lançados praticamente como o autor os concebeu na juventude, com os “sinais da iniciação”; já em “O garatuja”, o “escritor manifesta a plena posse de seus recursos”440. “O ermitão da Glória” é baseado em lembranças de viagens marítimas de quando Alencar foi de Fortaleza a Recife em 1838 e em “reminiscências de Cooper”. “A alma do lázaro” foi escrita em Olinda nos tempos da faculdade “e da silenciosa biblioteca de São Bento”441. Um dos últimos trabalhos de José de Alencar, Alfarrábios, reúne histórias que têm em comum a dramatização do passado. “O garatuja” é uma típica crônica histórica com apelo documental, enquanto as outras flertam claramente com o fantástico e com o horror. Seriam trabalhos abandonados na época de estudante, retomados poucos anos antes da morte do escritor. São comumente enquadradas na segunda fase de sua produção. Fase esta que segundo José Veríssimo seria marcada “por um mau gosto malsão do extravagante, mesmo do monstruoso, uma afetação do desengano e da desilusão que lhe revê a chaga da alma mal ferida”442. O crítico não comenta especificamente Alfarrábios, mas entende que a crise marca todos os seus últimos romances, dentre eles O gaúcho, Til, A pata da gazela e Tronco do ipê. Já Sílvio Romero discorda daqueles que preferem a primeira fase, considerada mais suave e graciosa, e ressalta obras em que por vezes se destacam traços “mórbidos e desequilibrados”, resultado de uma visão de mundo mais pessimista e irritada443. Na advertência do segundo volume o leitor é avisado de que não encontrará naquelas páginas o humor de “O garatuja”, mas será conduzido a situações dramáticas que poderão levar ao choro artificial próprio das narrativas românticas. Começa então a narrar as aventuras de “O ermitão da Glória”, passadas no ano de 1608, época em que “andavam os mares do Rio de Janeiro muito infestados por piratas”. A trama se inicia com uma luta travada pelo comandante Ayres de Lucena que resulta no assassinato de um francês, chefe da embarcação !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 440 ALENCAR, José de. Alfarrábios: crônicas dos tempos coloniais. Prefácio de Mario Casasanta. In: Obras completas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955, vol. XIII, p. 18. 441 PROENÇA, Miguel Cavalcanti. José de Alencar na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 28. 442 VERÍSSIMO, José, op. cit., p. 198. 443 ROMERO, Sílvio, op. cit., p. 245. ! !193! atacada. Sua filha acaba nos braços de Ayres quando a mãe, desesperada pela morte do marido, se lança ao mar. Daí em diante se desenvolve a tentativa de redenção do comandante, que, para garantir o sustento da criança, a deixa aos cuidados de Úrsula. A trama se complica quando, dezesseis anos depois, Ayres reencontra Maria da Glória, apaixona-se por ela e passa a ser perturbado pelo reflexo da imagem da jovem no rosto de Nossa Senhora da Glória, sua santa de devoção. No dia de seu casamento, Maria da Glória morre. O terrível acontecimento levou o noivo a uma vida de devassidão. Sua escuna, dada por Ayres e antes dedicada à Virgem, transforma-se em uma taberna de ébrios cujo nome é trocado para Maria dos Prazeres, em homenagem a uma cortesã de Salvador. O comandante se refugia em uma gruta e transformase no lendário ermitão. Alguns anos depois é encontrado morto por Antônio de Caminha, que assume seu legado e passa a viver uma vida santa, que justificaria a construção da igreja de Nossa Senhora da Glória por volta de 1714. A explicação para a tragédia que se abate sobre Ayres de Lucena é dada no meio da história. Uma espécie de punição teria sido empreendida pela santa, “agastada por terem-na escolhida padroeira de um navio corsário tomado de hereges”, já que todos os eventos sobrenaturais da trama – aparições sinistras e acidentes incompreensíveis – giram em torno dos mistérios da fé. Nossa Senhora da Glória é figura central por trás dos acontecimentos decisivos. A dimensão fantástica da narrativa baseia-se nesse elemento extraordinário que governa os rumos dos personagens. Quando o autor avisa que a leitura poderá provocar lágrimas, antecipa o resultado do contato tanto com o sofrimento gerado pelos desencontros amorosos quanto com o aspecto maravilhoso das aparições religiosas. Ao fazer do passado matéria de fabulação fantástica, José de Alencar busca no território nebuloso da lenda e na mistura do “paganismo com a devoção cristã” os motivos ideais para exploração do mistério. Produz uma ficção que exalta a presença do sobrenatural e também o põe em xeque. Narrando uma passagem em que a imagem da santa teria se deslocado até a embarcação sem tocar o chão, lembra que, apesar da crença de muitos devotos, “não faltavam incrédulos que metessem o caso à bulha”. A narrativa ganha densidade dramática na medida em que parece ao mesmo tempo comum, dadas as crenças do povo, e extraordinária, tendo em vista a impossibilidade de comprovação. “O ermitão da Glória”, história que teria sido contada pelo mesmo homem que lhe apresentou “O garatuja”, revela um sistema ficcional articulado na tênue fronteira das diferentes possibilidades de crença. A empatia necessária para gerar os “choros de artifício” ! !194! depende da história ser dotada de algum grau de verossimilhança, constantemente confrontada com eventos sobrenaturais justificados nos limites da fé religiosa. O estranho se articula com o fantástico, mas faz das verdades comuns a matéria de identificação. Nesse esforço, um passado obscuro transforma-se em matéria literária na medida imprecisa do insólito com o familiar. A cidade que José de Alencar diz conhecer graças a seus estudos é a imagem de um tempo distante, configurado segundo elementos que também definem a narrativa gótica: eventos inexplicáveis, mocinhas virtuosas e vilões condenados à miséria, punidos pela devassidão. As matrizes mais evidentes dessa aventura literária nos mares aparecem citadas em Como e porque sou romancista, quando José de Alencar diz ter devorado os “romances marítimos” de Walter Scott e Cooper”, que lhe teriam alimentado a fantasia enquanto atravessava o oceano. Tendo também como referência as obras de Frederick Marryat, escritor inglês considerado um dos precursores de histórias marítimas, o escritor se vale de mitos, lendas e costumes locais para inventar uma cidade supersticiosa que deve emocionar alimentando fantasias. É a racionalização dramática de um repertório supostamente comum. Na dramatização da abusão há uma operação essencialmente desmistificadora que transforma crença em matéria de consumo literário, mas prevê a gratuidade dos riscos envolvidos na leitura, a afetação menor que a realidade, o choro artificial da tristeza fabricada. Quando promete narrativas mais alegres para os próximos volumes, o autor anuncia o fim do jogo garantindo na promessa de um novo prazer o aspecto jocoso daquele que se apresenta. Viramse as páginas, muda-se o clima, e o sofrimento artificial deverá dar lugar a novos risos fabricados pela fabulação literária. É justamente a busca desses sofrimentos inventados o cerne de “A alma do lázaro”, último dos textos de Alfarrábios que narra a vida triste de um homem com hanseníase. O clima de mistério que envolve a descoberta da história é parte fundamental da atmosfera sombria da obra. Já na advertência o leitor tem pistas de sua origem: Este alfarrábio, não o devo ao meu velho cronista do Passeio Público. É, como se disse no prólogo, uma escavação dos tempos escolásticos. Tem ele porém, se me não engano, o mesmo sabor de antiguidade que os outros, e ao folheá-lo estou certo que o leitor há de sentir o bafio de velhice, que respira das cousas por muito tempo guardadas. Para alguns esse mofo literário é desagradável. Há porém antiquários que acham ! !195! particular encanto nestas exsudações do passado que ressumam dos velhos monumentos e dos velhos livros.444 A história terá a mesma evocação do passado que marca as outras, mas seu gosto de antiguidade é de origem muito mais curiosa. Na primeira parte, intitulada “Alma penada”, revela-se que o autor de “Diário do lázaro” seria poeta, assim como o narrador, um jovem estudante da academia de Olinda que gostava de vagar na calada da noite nos arredores das ruínas do convento do Carmo. Procurava nos muros da antiga edificação inspiração para escrever, alguma história que a imaginação completaria para saciar sua “sede de poesia e mistério”. Uma noite pensa ter visto um fantasma, mas acaba conhecendo um velho pescador que lhe fala sobre o diário que enterrara a pedido do lázaro. Juntos decidem desenterrá-lo e Assim é anunciada a segunda parte, “O diário”, datado de 1752.Trata-se basicamente do relato dos numerosos sofrimentos de um homem afastado da sociedade, tratado como monstro, que depois da morte de sua mãe só podia contar com a companhia esporádica da irmã. Destinado a causar horror, afirma que “realmente um lázaro não é mais um homem. Foi concebido pela mulher, mas a praga o abortou. No horror que infunde é fera, no asco que excita é verme”445. Vagando solitário, apaixona-se de longe pelo vulto de Úrsula, mas o horror que sentia de si mesmo o obriga a se afastar. Uma noite, porém, enquanto a observa por trás das sombras das árvores um clarão revela sua imagem em uma cena sinistra: Eis rasga-se a escuridão e vomita sobre mim uma chama do inferno. Alaga o rúbido clarão todo o arvoredo, e cinge-me de uma labareda sinistra. […] Corro; mas além está o luar alvacento, que amortalha-me em fantasma. Volvo esvairado sobre os passos, e entro de novo na flama vermelha que me persegue como a língua de Satanás. […] Nisto surge o corpo alquebrado de um velho e afasta-se horrorizado. –"É"o lázaro!… É o lázaro!… […] Ainda ouvi o grito de angústia que despedaçou a alma de Úrsula, mas vindo doutro mundo diverso daquele onde eu estava. Do mais não soube, até as alvoradas que me acharam estremunhando na vasa onde eu jazera o resto da noite; da noite dos outros, que não desta contínua e perpétua que se estende sobre minha vida. […] Mas até o sono do jazigo me rouba a sorte ímpia.446 !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 444 ALENCAR, José de. Alfarrábios, op. cit., p. 102. ALENCAR, José de, op. cit., p. 146. 446 ALENCAR, José de, op. cit., p. 169. 445 ! !196! A situação terrível culmina com a morte de Úrsula, pela qual o homem se sente culpado, como se a repugnância de sua figura fosse capaz de matá-la. No dia do velório, entra na igreja à meia-noite para roubar o cadáver, o que insufla o ódio na população, que põe fogo em sua casa e nos restos mortais de sua amada. Sua vida miserável, no entanto, é preservada, pois até o fogo lhe teria asco. Expulso da cidade, refugia-se em uma casa abandonada em Olinda, “onde terminou afinal a imensa e cruel agonia de uma existência nunca vivida, mas tão penada”447. Analisando as duas partes da narrativa observa-se inicialmente um convite ao mistério. Depois de advertir que a trama teria o sabor da antiguidade, o narrador apresenta as condições peculiares que o levaram ao conhecimento do pergaminho. Nas andanças motivadas pelos anseios da “febre da imaginação que delira”, observa o choque entre as novas gerações e as ruínas do passado, aliança misteriosa de dois mundos. Sua vida descuidada de estudante soava como “profanação no meio desses muros aluídos, desses claustros ermos, sobre esse túmulo de uma população extinta, à face dessa cidade múmia”448. Na observação solitária de um passado imaginado, busca inspiração nas histórias guardadas pelo tempo, mas “a eloquência do silêncio que plainava sobre o templo dizia apenas a ruína”. A busca pelo mistério termina quando avista um fantasma que poderia finalmente satisfazer sua vontade de fantasia, mas segue-se a frustração de ter a visão fantástica sucumbida à banal realidade do encontro com o pescador. Desde o início o leitor sabe tratar-se de uma história narrada por um amante de mistérios cuja imaginação precisaria apenas de uma fagulha para desencadear uma aventura fantástica. Sabe também que o “mofo literário” que exala pode ser desagradável para os que não se interessam pelas coisas antigas. Enquanto a primeira expectativa é quebrada pela ausência do sobrenatural, a segunda é confirmada com a aparição de um manuscrito do século XVIII que justificará o conto em si. A articulação da verossimilhança com o estranho parece ser a chave do mistério. Em sua busca por motivos sinistros, o estudante só encontra relatos da miséria de um homem doente; quando anuncia a possibilidade do fantástico, o narrador apresenta uma narrativa comovente pelo horror do sofrimento humano. O horror que se insinuou sobrenatural revela-se na materialidade de um diário, e a trama que parecia seduzir pelo mistério se consolida como a verdade de um relato íntimo. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 447 448 ALENCAR, José de, op. cit., p. 174. ALENCAR, José de, op. cit., p. 107. ! !197! Na segunda parte, o narrador sai de cena e o leitor acompanha as anotações do diário, tão tristes que levam o estudante a esperar vinte anos para publicar. As páginas narram basicamente o horror da experiência de um homem tratado como monstro que lamenta por sua vida e clama pela morte. O medo que desperta nas pessoas se confunde com o nojo de “um cadáver ambulante cujo corpo arde”. Em alguns pontos o personagem se aproxima da criatura protagonista de Frankenstein, de Mary Shelley. Guardadas as devidas proporções de fôlego e engenhosidade dos enredos, temos um personagem excluído que, observa o mundo dos homens a distância, escondido entre as árvores. Não entende a razão de sua existência. E tal como o monstro que, na narrativa inglesa, culpa seu criador, Victor Frankenstein, pela tristeza, é Deus o culpado neste caso. Os horrores narrados no diário tratam desde o aspecto repugnante do condenado até o desprezo pela feiura e o perigo de contágio. Um amaldiçoado que não consegue sequer juntar suas cinzas às de sua amada, e mesmo quando se imagina livre dos infortúnios, o destino pune-o poupando-lhe a vida e condenando-o a uma morte solitária. O diário tem como função levar às previstas lágrimas. O sofrimento injustificável do protagonista que só conhece o prazer na rápida contemplação de Úrsula é um argumento para a comoção. O passado não é mais tema de fabulação histórica. A trama não pode ser verificada nos Anais do Rio de Janeiro nem foi contada por um homem erudito: trata-se apenas da fantasia de uma imaginação ficcional afeita, senão às ruínas do castelo gótico, aos restos de um mosteiro antigo. Imaginação que remete aos primeiros modelos para o romance elencados por José de Alencar: “merencório e cheio de mistérios e pavores”, iniciado nas ruínas de um castelo “ou nalguma capela gótica frouxamente esclarecida”449. É difícil apontar exatamente os motivos que levaram o escritor cearense a retomar esses modelos ficcionais já no fim da vida. Alfarrábios, um de seus últimos trabalhos, revela um escritor diferente do autor de O guarani, Iracema e O gaúcho. Não constrói tipos nacionais nem investiga profundamente costumes locais. Os contos parecem exclusivamente dedicados ao entretenimento, sem obedecerem a projetos literários ambiciosos. Só se aproximam de sua obra mais consagrada pelo caráter imaginativo. Esta característica marcante de sua literatura motiva as críticas de Franklin Távora nas famosas “Cartas a Cincinato”, publicadas no jornal Questões do Dia entre 14 de setembro de 1871 e 22 de fevereiro de 1872 e reunidas em livro no mesmo ano por José Feliciano de Castilho. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 449 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista, op. cit., p. 17. ! !198! Sob o pseudônimo de Semprônio, o autor de O cabeleira critica os devaneios imaginativos de seu conterrâneo. Na série de críticas centradas nos romances O gaúcho e Iracema, Franklin Távora argumenta que o artista deve se concentrar na separação entre o belo e o grotesco para enaltecer os elementos voltados ao prazer. Tomando como referência A ciência do belo, de Lévêque, defende a arte como apelo das formas ideais e censura Iracema tanto por não ter sido fiel à natureza quanto por “reproduzir seus aspectos inconvenientes”450. Entendendo que o romance deve ser edificante, cita Bacon, que prefere “o romance verossímil, possível”; “o romance junto das coisas”. Seu ideal estético submete a imaginação à pesquisa e à fidelidade documental: eis uma crítica aos ideais românticos de originalidade e genialidade. Opera uma “desqualificação da imaginação como princípio maior da atividade criadora”451, anunciando o que a crítica consideraria o declínio do paradigma romântico. Questiona o valor de O gaúcho como romance de costumes e nega sua qualidade como mera fantasia: esta “importa uma corrupção do sentimento natural e racional, o rebaixamento vivo e indecoroso da espécie”452. Critica ainda o mesmo romance por não pintar a vida, tarefa que deveria priorizar. O vigor da literatura americana estaria justamente nessa vocação para pintar os majestosos quadros da natureza em diferentes perspectivas, o que não somente dispensava, como “excluía o uso da imaginação fantasiosa”. Iracema seria resultado do mesmos erro: um “esbanjamento de imaginação” que manteria o romance distante da verdade. Esse controle da imaginação literária ultrapassa os limites da crítica específica e se estabelece como princípio para o desenvolvimento das letras brasileiras. Em carta publicada no dia 8 de dezembro de 1871, afirma: “A crítica que se preza justa e independente é inquestionável agente do progresso: põe diques aos extravasamentos das imaginações superabundantes, alimenta e aguça os estímulos produtivos, apura o licor das boas fontes sem estancá-las”.453 Para Semprônio, a natureza teria de ser posta em primeiro plano, ser o alvo de “complexa e completa” observação. Segundo Eduardo Vieira Martins, os argumentos de Franklin Távora se baseariam no conceito de imaginação de Philarète Chasles apresentado em Études sur la littérature et les moeurs des anglo-américans. Para o filósofo francês, a imaginação funcionaria como memória; não criaria nada de novo, apenas construiria imagens !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 450 TÁVORA, Franklin. Cartas a Cincinato. Apresentação de Eduardo Vieira Martins, Campinas: Editora da Unicamp, p. 23. 451 TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 31. 452 TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 47. 453 TÁVORA, Franklin, op. cit., p. 125. ! !199! com base nos elementos percebidos e armazenados pelos sentidos. Nessa chave, a noção de gênio criador perde força e a arte é apreendida nas metáforas do daguerreótipo e da fotografia. Nessas proposições nota-se uma tentativa de controle da atividade ficcional que pressiona a fabulação literária para um compromisso com determinado sentido de verdade e realidade. Comparando os comentários de Franklin Távora com os de Walter Scott acerca da obra de Hoffmann, por exemplo, observamos que a condenação da fabulação romântica é mais radical nas palavras do crítico brasileiro. Se para o escritor escocês o excesso de apelo imaginativo resultaria em literatura de mau gosto, no caso de Franklin Távora os riscos parecem maiores, como se a legitimidade do discurso ficcional estivesse em jogo. Ao atribuir à imaginação a tarefa de observação da realidade, o crítico oferece um eloquente exemplo de como o cenário literário brasileiro se torna hostil aos apelos de uma arte literária que enfatiza a afetação em detrimento da representação realista. Os comentários parecem mais curiosos quando lembramos que, uma década antes, Franklin Távora publicara, no Diário de Pernambuco, Trindade maldita: contos de botequim. A diferença em relação aos sentidos atribuídos à ficção talvez se explique porque, em 1862, o escritor era aluno da faculdade de direito do Recife. A literatura mais evidentemente fantasiosa parece legítima apenas como traço da vida estudantil, mas é inadequada quando se considera o verdadeiro destino das letras nacionais. Em Como e porque sou romancista, José de Alencar lamenta a fria recepção de O guarani, lembrando que Iracema foi mais bem recebido. Para Pinheiro Chagas, por exemplo, o livro estaria “destinado a lançar as bases de uma literatura verdadeiramente nacional”454, e Machado de Assis, em artigo publicado no Diário do Rio de Janeiro em 1866, reclama que a obra não teria tido o merecido acolhimento. Os relatos evidenciam a centralidade das duas obras, tanto no projeto literário de Alencar quanto nas ambições da crítica engajada no desenvolvimento de uma literatura nacional. Ambas, apesar das críticas ao excesso de imaginação que recaem sobre a obra do escritor, estão diretamente relacionadas ao processo de nacionalização da ficção brasileira, e O guarani é tratado como primeiro exemplo de um romance propriamente brasileiro. A configuração desse projeto faz com que Alencar despreze seus primeiros arremedos de novela, peças do tempo de estudante guardadas no fundo do baú. A difícil e nobre tarefa da criação romanesca “séria” inibe o desenvolvimento de temas menores, que são !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 454 SCHWAMBORN, Ingrid. A recepção dos romances indianistas de José de Alencar. Fortaleza: Edições UFC, 1990, p. 60. ! !200! “desprezados ao vento” e só retornam nas modestas ambições de Sênio, pseudônimo adotado na “velhice literária” que traduz menos empenho em relação às causas literárias nacionais. Alfarrábios, então, surge como obra de pouco valor que depois de alguns anos traria a público os ensaios da imaginação de um leitor de histórias marítimas que escreve como distração às tarefas da vida de estudante. Assim como também fizera seu adversário anos antes de escrever as polêmicas “Cartas a Cincinato”. 4.3. As lendas e os causos de Bernardo Guimarães A obra ficcional de Bernardo Guimarães ficou marcada na crítica literária brasileira tanto pelo regionalismo, ou seja, pela exploração de cenários, temas e costumes do interior do Brasil, quanto pela abordagem de alguns temas centrais para sociedade brasileira do século XIX, como nos casos dos romances O seminarista (1872) e A escrava Isaura (1875). Por vezes considerado melhor poeta que prosador, destacam-se no conjunto de suas produções os poemas escritos na juventude. “O elixir do pajé”, paródia byroniana que satiriza o indianismo de Gonçalves Dias e “A orgia dos duendes”, que Antonio Candido compara à Noite na taverna pela manifestação de “diabolismo; luxúria desenfreada e pecaminosa” centrada no jogo de contrastes e na “volúpia do mal”455. O humor refinado desses poemas456 contrastaria com uma prosa que, segundo José Veríssimo, seria espontânea, “sem propósito estético ou filiação consistente a nenhuma escola”. O escritor mineiro seria apenas um contador de histórias, sem a ingenuidade popular que a formação letrada teria anulado457. Interessado em causos populares publicou Lendas e romances em 1871; Histórias e tradições da província de Minas Gerais em 1872 e A ilha maldita em 1879. Nas três obras lendas locais são apresentadas como histórias misteriosas e por vezes assustadoras, articuladas na tensão entre a crença do leitor e a legitimidade de um narrador que, apesar de apenas ter “ouvido falar”, do que se passou, tenta garantir a verdade dos relatos. .Em Lendas e romances !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 455 CANDIDO, Antonio, op. cit., 177. Sobre o humor nas poesias de Bernardo Guimarães, ver FRANCHETTI, Paulo. O riso romântico: notas sobre o cômico na poesia romântica de Bernardo Guimarães e seus contemporâneos. In: Germina: revista de literatura e arte. Disponível em: <http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pfranchetti_ago5.htm> Acesso em: 24 mar. 2014. Para uma análise da relação dos poemas de Bernardo Guimarães com a obra de Rabelais, ver CAMILO, Wagner. O riso romântico: poesia e comicidade no romantismo brasileiro. Dissertação apresentada ao departamento de Teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp em 1993. 457 VERÍSSIMO, José, op. cit., p. 201. 456 ! !201! foram compilados os textos “Uma história de quilombolas”, “A garganta do inferno” e “A dança dos ossos”. O primeiro é o relato da resistência de negros refugiados contado da perspectiva de uma história de amor, e os dois outros merecem atenção especial pela exploração do horror literário. “A garganta do inferno” apresenta-se como uma lenda passada em meados do século XVI. Conta a história de Nina, bela jovem cujo único defeito seria a imaginação exaltada e o gosto por “contos de fadas e histórias de encantamentos”. O narrador afirma que “se tivesse tido educação literária teria sido uma poetisa, ou artista sublime”458 antes de narrar seus terríveis sonhos fantásticos sobre uma gruta repleta de ouro e uma serpente de fogo. Seduzida por um rico fidalgo, sai de casa abandonando sua mãe, que recebe altas quantias de ouro como compensação. Gertrudes, no entanto, convencida de se tratar de um “presente de Satanás” recusa as ofertas. Quando descobre que o jovem não pretendia se casar, Nina volta para casa e, junto com sua mãe, joga todo o ouro recebido na misteriosa gruta, que atrairá ambas para a morte. A cena de ambos os suicídios é descrita em tons sombrios: a “pobre velha transida de angústia e pavor” e a jovem enfeitiçada pela imagem de uma serpente de fogo em um “delírio que lhe escaldava o cérebro”. Diante do horror dos moradores de Lavras-Novas, o bispo de Mariana manda construir no sinistro local em que “morava o diabo em pessoa” um templo a Nossa Senhora dos Prazeres. Nos entulhos da antiga gruta é talhada a letra S, e o narrador completa: “Cremos que quer dizer segredo, mas quem o descobrirá?”459. O elemento mais insólito da trama é a atração de Nina pela gruta revelada em sonhos e concluída com sua morte. No entanto, o poder sobrenatural do lugar é parcialmente explicado pelo caráter da protagonista de imaginação fantasiosa. A manifestação de seus delírios associada às crenças religiosas de sua mãe dá o tom fantástico de uma história que assustaria todos os moradores da região remota. Apresentado como uma lenda, o conto é destituído de maiores explicações por parte do narrador, que o anuncia como trama de um passado distante cujas crenças populares perpetuariam. A pergunta final reativa um mistério que recai sobre o leitor, a chave do segredo está perdida no tempo e sua inacessibilidade torna a história mais interessante. O problema da verossimilhança é deslocado da origem da narrativa para seu final. Diante de um mistério consolidado como lembrança, cabe ao leitor imaginar o enigma da conclusão tomando como !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 458 459 GUIMARÃES, Bernardo. Lendas e romances. São Paulo: Martins Fontes, s/d, p. 112. GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p. 149. ! !202! possíveis os eventos sinistros que a antecedem. Garantido pelo poder persuasivo evocado pela lenda e respaldado pela imaginação de Nina, o narrador não problematiza o inverossímil e trata a fantasia como instrumento do sublime, expresso nas “visões terríveis” que assombram as noites das duas infelizes. A história tradicional de uma “povoação quase desconhecida”, que nem sequer “figura nas cartas geográficas”, desperta a curiosidade como um mito que, distante no tempo e no espaço, não ultrapassa os limites de Minas Gerais. É o estranho familiar que foge à ordem citadina na proximidade excitante de um Brasil misterioso. A pequena comunidade afastada é a imagem de um povo esquecido, de passado obscuro revelado como fábula. Nesse espaço ignorado pela representação oficial da nação, crença e fantasia organizam um mundo de inocente obscuridade tornado fantástico nos delírios de uma típica heroína romântica. A narrativa de um Brasil pitoresco é transformada em produto destinado a um mercado literário interessado nas excentricidades lúdicas de uma terra longínqua cujas fronteiras são demarcadas pela adesão à modernidade. Em “A dança dos ossos” os pressupostos não são muito diferentes. O estranho causo de uma ossada que assombra os moradores de uma pequena cidade é contado pelo barqueiro Cirino, mas a veracidade é questionada pelo narrador-personagem, um homem da cidade em viagem pelo interior de Minas Gerais e Goiás. Segundo Cirino, os ossos seriam de Joaquim Paulista, e seu brutal assassinato explicaria as assustadoras danças macabras. O narrador destaca a eloquência do relato do barqueiro. Considera-a tosca, porém muito mais viva que a transcrição que o leitor tem em mãos. A gesticulação “selvática e expressiva” não poderia ser completamente descrita, assim como o clima não poderia ser reproduzido: “A hora avançada, o silêncio e solidão daqueles sítios, teatro desses assombrosos acontecimentos, contribuíram também grandemente para torná-los quase visíveis e palpáveis.”460. As descrições apavorantes deixavam os ouvintes boquiabertos, “transidos de pavor e estremecendo”, mas o narrador questiona se não seria o álcool o responsável pelas visões. A imaginação exaltada do contador associada ao medo da escuridão da mata o levaria a transformar em “coisas de outro mundo” tudo que vira na floresta mal iluminada por um luar escasso. Cirino insiste na veracidade dos fatos; garante que a sepultura de Joaquim se fecharia só no dia em que fossem rezadas tantas missas quanto o número de ossos do corpo humano. Respaldado pelo povo que lhe servia de testemunha, consegue convencer seu interlocutor que, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 460 GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p. 162. ! !203! resignado, conclui: “Espero que os meus leitores acreditaram comigo, piamente, que o velho barqueiro do Parnaíba, uma bela noite, andou pelos ares montado em um burro, com um esqueleto na garupa.”461. A história é evidentemente contada para não ser levada a sério, e a irônica adesão do narrador apenas ressalta a leveza bem-humorada da narrativa do barqueiro. Quando relata o momento em que o suposto causo lhe teria sido contado, o narrador avisa que os mistérios soaram muito mais intensos na dramática teatralização de Cirino, a qual o texto não poderia reproduzir. A tradução letrada da experiência particular de ouvir histórias macabras em torno da fogueira transforma a leitura em uma simulação secundária que, por fim, enfatiza uma teatralidade virtual e distante. O texto se converte na imagem pitoresca de uma prática própria dos lugares representados, tratados, eles próprios, como fantasmas de um Brasil afastado e curioso. Tanto o barqueiro quanto os acompanhantes que lhe servem de plateia são personagens de um mundo exótico de onde emanam narrativas excêntricas. Forjando estrategicamente sua diferença, o narrador os define como homens bons “dessa raça semisselvática e nômade, de origem dúbia entre o indígena e o africano”, que vagam pelas florestas mas “não se acham inscritos nos assentos das freguesias, e nem figuram nas estatísticas que dão ao Império”462. A representação do outro afirma sua estranheza decisiva, ainda que positiva. Suas histórias, mesmo que eventualmente verdadeiras, soam estrangeiras. O outro e suas fantasmagóricas aventuras chegam como vozes de um mundo estranho cujo registro escaparia à organização do império. No entanto, persiste na alegoria simpática do sertanejo familiar o traço de solidariedade que permite ao narrador experimentar com prazer as pitorescas aventuras sem se chocar por completo. Sem o grito de horror que Marlow conta ter ouvido do capitão Kurtz em O coração das trevas, de Joseph Conrad. Aqui o medo é apenas anedótico, serve a uma literatura interessada em representar outro Brasil e busca nas entranhas desse país imaginado um repertório de tramas ingênuas que permitam o exercício lúdico do horror literário. Na edição preparada por Hélio de Seixas Guimarães publicada em 2006, “A garganta do inferno” é interpretada como “uma lenda sobre os vexames da miséria” dada a pobreza da !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 461 462 GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p. 178. GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p. 154. ! !204! protagonista. “A dança dos ossos” seria por sua vez uma “projeção do medo senhorial”463 considerando as diferenças sociais entre orador e ouvinte. As interpretações se esforçam para enxergar nas lendas e nos causos as tensões da sociedade oitocentista. Na tentativa de comprovar que as narrativas são contemporâneas delas mesmas, as análises procuram traços de um Brasil naturalizado como chave interpretativa. O sucesso do interesse pelas coisas nacionais passa a ser medido por sua capacidade de representá-lo. O interesse pelo interior se converte em traço exclusivo do nacionalismo literário, e o exotismo apresentado se prestará sempre à descoberta da imensidão nacional, nunca como configuração artificial propícia à exploração de temas como o horror, por exemplo. Essa representação pitoresca do interior como instrumento de fabricação de tensão é central em outras obras do escritor mineiro, particularmente nas três narrativas de Histórias e tradições da província de Minas Gerais. Na primeira, A cabeça de Tiradentes, o narrador avisa no primeiro parágrafo: Quereis, minhas senhoras, que vos conte uma história para disfarçar o enfado destas longas e frigidíssimas noites de maio? […] Mas, por melhor que seja a minha vontade, não sei como possa satisfazer ao vosso pedido […] digo mal, – cumprir as vossas ordens. […] Este frio enregela-me as asas da imaginação; este vento glacial, que uiva pelos telhados, como uma matilha de cães danados, estes guinchos de corujas, que parecem lamentos de precitos, fazem a inspiração recolher-se toda encolhida aos mais íntimos esconderijos do crânio, tiritando de frio e de medo. […] A falar-vos verdade, minhas senhoras, tenho o espírito tão seco e estéril, como a caveira de um defunto enterrado há cem anos. […] Ah! falei-vos em caveira!.. […] E não é que esta idéia de caveira veio despertarme a reminiscência entorpecida pelo frio?! Foi como a vara mágica de Moisés, que fez rebentar água em jorros da aridez do rochedo do deserto. […] E pois vou contar-vos a história de uma caveira memorável. […] Não se arrepiem, minhas senhoras; não é história de almas do outro mundo, de trasgos, nem de duendes. […] É uma simples tradição nacional, ainda bem recente, e da nossa própria terra. Essa história eu a poderia intitular: História de uma Cabeça Histórica.464 Com o subtítulo “Lenda mineira”, a história fala sobre um homem que velava a cabeça do mártir da independência em uma praça de Vila Rica em meados do século XVIII. O !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 463 GUIMARÃES. Bernardo. Lendas e romances. Edição preparada por Hélio de Seixas Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XXXIV. 464 GUIMARÃES. Bernardo. Histórias e tradições da província de Minas Gerais. Textos literários em meio eletrônico <http://is.gd/ukS5iy>. Acesso em: 23 mar. 2014. ! !205! sinistro objeto cravado no alto de um poste inspirava horror nos cidadãos, até que em uma “noite tenebrosa e horrenda” é roubada por um velho “de vida misteriosa e retraída”. O narrador afirma que os fatos seriam pouco conhecidos, porém tradicionais: “Perguntem aos velhos, e mesmo a alguns moços mais curiosos, das coisas antigas da nossa terra, e se convencerão de que esta história não é de minha lavra”, afirma ao final. O dispositivo da lenda local é evocado para justificar uma história que só veio à tona como tentativa de eliminar o enfado de uma noite fria. A menção à imagem de uma caveira desperta uma lembrança sinistra, que não é um caso sobrenatural, apressa-se o narrador em avisar, mas uma “tradição nacional”. Tratada como repertório cultural pouco conhecido, a trama ganha ares de verdade tanto para as ouvintes representadas quanto para os leitores, de quem são reprodução ideal. A dimensão histórica passível de ser assegurada por “velhos” e “curiosos” garante o horror na falta do fantástico. As figuras ausentes estabelecem um ponto fictício de veracidade que, não podendo ser alcançado, transforma a lenda em um tipo conveniente de verdade lúdica. Diferentemente da fidelidade fria dos arquivos nos quais os fatos podem ser averiguados, a imprecisa autenticidade da lenda funciona perfeitamente na articulação entre crença e desconfiança, marca necessária das histórias de terror. Essa introdução dá o tom da história e ajuda a forjar um clima para o livro como um todo. A segunda narrativa, “A filha do fazendeiro”, conta a história de uma fazenda abandonada depois de servir de cenário para eventos sinistros relativos aos desencontros amorosos entre Eduardo, Paulina e Roberto. O narrador avisa que para saber mais o leitor deveria ler toda a história contada “há tempos por um morador daquelas paragens” e que ele teria tratado de “reproduzir com toda fidelidade e individuação”, obedecendo aos limites de sua memória. É justamente esse compromisso com suas lembranças que leva o narrador a sugerir uma comparação com o poema gótico “A noite do Castelo”, de autoria do escritor português Antônio Feliciano de Castilho, que serviria de mote para a ópera homônima de Carlos Gomes estreada no Teatro Lírico Fluminense em 1861. Diante do tema da revolta de um jovem que observa o casamento de sua amada com outro, o narrador comenta que o leitor possivelmente estaria esperando uma cena brutal de vingança aos moldes do poema no qual o cavalheiro negro dá um tiro no rival, rouba a noiva e desaparece como um fantasma. “Isto seria por certo mais dramático, e talvez mesmo sublime”, mas, reiterando sua isenção, limita-se aos fatos tal como lhe “contaram há bastantes anos.” ! !206! A suposta expectativa dos leitores indica a popularidade da estrutura do romance gótico que, a despeito da fala do narrador, está plenamente representada na narrativa. A fazenda sinistra e abandonada guarda segredos e mistérios como o castelo medieval, e novamente os quadros da aristocracia aparecem na forma das elites coloniais. O triste final, com a morte de Paulina e o desaparecimento de Eduardo, ressalta as virtudes dos personagens e intensifica o drama. O gótico é evocado como imagem do exagero, e a narrativa que lança mão de seus lugares-comuns renuncia à filiação para reafirmar um caráter supostamente verídico. Os elementos sobrenaturais – aparições fantasmagóricas que abrem e encerram a história – são atribuídos à fala do povo. Durante toda a ação o narrador apresenta os fatos sem questioná-los, mas as aparições são consideradas coisas do “povo supersticioso”. A desconfiança deixa um mistério no ar, e os eventos aparentemente inexplicáveis permanecem como fruto de uma imaginação popular que a narrativa não questiona, pois precisa dela para ganhar força. Sem os fantasmas estaríamos diante de um simples desventurado triângulo amoroso que se recusa a ser violento, finge não ser gótico465. Para José Veríssimo Bernardo Guimarães é o criador do romance regional brasileiro, porém o escritor mineiro não conseguiu imprimir em suas obras “a imagem exata, seja na representação objetiva, seja na sua idealização subjetiva”466 da paisagem nacional. Em todos os seus trabalhos faltaria “uma pintura ou expressão exemplar” do meio sertanejo; Bernardo Guimarães falharia também na composição de romances históricos. A análise é posteriormente corroborada por uma fala que Alfredo Bosi atribui a Monteiro Lobato, para quem o autor de O garimpeiro tenderia a “falsificar o nosso mato”. Por ser um mau contador de histórias, não teria expressão própria: “Vinte vergéis que escreva são vinte invariáveis amenidades”. A crítica ao regionalismo fraco acompanha o menosprezo à ideia de literatura amena e condena os textos analisados à banalidade. O posicionamento dos narradores, isto é, suas advertências aos leitores, visa imprimir imediatamente o aspecto despretensioso de histórias, lendas e causos, que devem servir de entretenimento ameno como simulação letrada de aventuras representadas como partes de um repertório popular. O flerte com o gênero gótico, que por vezes organiza a dinâmica dessas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 465 “Jupira”, a última das narrativas da coletânea, conta a história de um infeliz triângulo amoroso que termina com a morte dos envolvidos, mas sem os elementos insólitos que caracterizam as duas primeiras. 466 VERÍSSSIMO, José, op. cit., p. 203. ! !207! histórias, indica um esforço de exploração de determinadas sensações literárias, especialmente o horror. A representação de uma paisagem exótica pode funcionar como traço de um nacionalismo literário, pois obviamente a tradução dessas narrativas implica uma escolha estratégica que defina tanto o que é popular quanto o que é nacional, mas também obedece às regras dispersas da imaginação literária do horror. Na medida em que se articulam nacionalismo literário e fabulação do horror o cenário passa a estar a serviço da construção de um efeito. Sua idealização não poderá ter somente um sentido documental de realidade no horizonte. Na tentativa romântica de afetar pelo terror, o escritor sacrifica o quadro natural para lhe impor tonalidades mais escuras. A proposta pressupõe um esforço de representação do outro que assegure, na chave técnica da evocação do estranho, a imagem de um Brasil misterioso e anedótico. Sobre a literatura sertanista, Nelson Werneck Sodré comenta que sua preocupação fundamental seria substituir o indianismo, condenando os quadros litorâneos e urbanos, para pintar um Brasil mais verdadeiro, fazendo dos cenários do interior “o sentido nacional de seus trabalhos” 467 . A legitimidade do esforço estaria na fuga dos modelos estrangeiros que pautariam o indianismo, e, apesar de fracassarem pela ingenuidade, os sertanistas seriam mais originais ao buscar no homem do interior um tipo diferente, mais tipicamente brasileiro. A simplicidade e a candura dos romances seriam desdobramentos de um “realismo da minúcia”, esforço inútil de imaginação que impede a definição do que “realmente existe de nacional na literatura”. Nesse arranjo crítico, o nacionalismo literário infuso, traço do empenho literário oitocentista, traduz-se em necessidade realista, uma vez que só se justifica na medida em que representa o Brasil em tons mais ou menos verossímeis. A realidade é sempre a matéria-prima fundamental. Mesmo que possam ocorrer algumas pequenas distorções no processo de representação, caberia à literatura construir poeticamente imagens e dramas do real. Positivados, literatura e realidade aparecem como entidades que se encontram e se afastam sem nunca se perderem no horizonte. Operando sentidos diferentes de verdade e historicidade, as lendas revelam uma ideia desviante de literatura em que os pressupostos realistas da fabulação são desprezados em nome da sensação do mistério. Em 1879, Bernardo Guimarães publica o romance A ilha maldita em um volume editado pela Garnier no qual aparece também o conto “O pão de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 467 SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 323. ! !208! ouro”, inicialmente publicado no Jornal das Famílias em fevereiro de 1872. O romance conta a história da misteriosa Regina, mulher sedutora ligada ao mar, um “misto estranho de qualidades opostas, ao mesmo tempo que inspirava simpatia e amor causava terror e repulsão”468. A trama é contada por um pai em resposta à curiosidade de seu filho a respeito da ilha que avista ao longe. O homem enfatiza não ser história da carochinha, mas um drama verdadeiro ocorrido para a desgraça do povo local. A ilha seria o abrigo de uma “sereia ou fada” dotada de poderes satânicos que atraía os jovens e os aprisionava. O narrador adverte que contará a história como o pescador a contou, mas sem a linguagem “tosca e singela”, porém “pitoresca e animada” empregada pelo orador. Imitaria com os andrajos emprestados pela “pobre musa que lhe inspira”. Não seria uma reprodução fiel, mas “uma tradução livre e ampliada da história” contada ao longo de várias noites. A versão menos animada, mas inspirada, da lenda conta como Regina, encontrada na praia pelos moradores da região quando ainda era criança, é a única a não se assustar com o que se diz sobre a ilha, sentindo-se na verdade atraída por ela: “A ilha maldita era para ela afortunada”. Como que “animada por um espírito diabólico”, a jovem, cujo destino estaria nas mãos da terrível fada, seduz e desgraça a vida de três irmãos, morrendo abraçada a um deles quando a ilha desaparece, submergindo “com todos os seus fantasmas, encantos e maldições”. Mas segundo os pescadores, nas noites de luar ela reapareceria rodeada de “terrores e encantamentos”469. Os dois amantes não conseguem escapar das perseguições da terrível entidade. O amor não os salva, o que frustra o narrador, que contava com a redenção para não ter de dar ao romance um “fim lúgubre e sinistro” que desagradaria “as ternas e compreensivas almas” dos leitores.. Na tradução livre e aumentada da lenda, o narrador brinca com as expectativas dos leitores ao sugerir a possibilidade de um final feliz para, nos capítulos seguintes, realçar as cores de um fim terrível. Lembrando que o livro não fez muito sucesso – veio a ser reeditado só em 1930 –, Basílio de Magalhães, biógrafo do autor, aponta falhas no texto. Tomando o povo como “melhor juiz das obras de arte”, questiona os elogios de Dilermando Cruz, também biógrafo do escritor mineiro, lamentando a “ostensiva inaturalidade” do texto, de onde sequer seria !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 468 469 GUIMARÃES, Bernardo. A ilha maldita ou a filha das ondas. São Paulo: Pauliceia, 1931, p. 28. GUIMARÃES, Bernardo, op. cit., p.118. ! !209! possível extrair “uma ideia simbólica” capaz de justificá-lo. Nas suas palavras em A ilha maldita: Não se compreende como é que Regina, uma jovem de músculos por natureza franzinos, pudesse vencer a remos vagalhões e obstáculos que foram insuperáveis a hábeis e valentes pescadores, e ainda menos se justifica tardassem tanto a conhecê-la e a apaixonar-se por ela os três irmãos Rodrigo, Ricardo e Roberto, numa pequena aldeia litorânea, da qual era ela a moça mais formosa, a beleza fatal, que arrastava todos os rapazes ao amor mais desatinado, cujo fim era a fuga ou o suicídio. Inexplicável é também casar-se Regina, tão desambiciosa quanto resistente a outros mais nobres e sólidos afetos, com um aventureiro opulento, ali fortuitamente aparecido. A morte violenta deste pelos três filhos do fidalgo português e a vingança trágica, de que foi autora a viúvavirgem, borbulham de tangíveis inverosimilhanças.470 Em uma das poucas críticas que o romance recebeu, destaca-se a inverossimilhança e o aspecto pouco natural. A trama de traços evidentemente fantásticos, história de pescador transmitida de geração em geração, é considerada inconsistente por não transmitir nenhum sentido de verdade, mesmo que simbólica. Falha por não possibilitar sequer uma interpretação alegórica que explique suas fantasias. O horizonte do texto que representa seus leitores como portadores de almas ternas e sensíveis não pode ser o da verossimilhança esperada pelo crítico. Há uma evidente discordância entre a chave interpretativa estabelecida e a proposta de um romance de fantasia baseado em uma lenda em que uma sereia maligna habita uma ilha amaldiçoada. Os apontamentos se reproduzem nos comentários a “Pão de ouro”, dramatização da lenda da “mãe de ouro”, segundo a qual bandeirantes buscam uma terra prometida repleta de ouro e riquezas. Na versão de Bernardo Guimarães, os principais adversários do protagonista Gaspar e de seus companheiros são os tatus brancos, horríveis e violentos canibais habitantes da floresta. A cena em que Gaspar é capturado é bastante representativa do clima do conto: Gaspar pensava ter caído vivo no inferno, e sua pavorosa situação ainda mais cruel se tornava pela lembrança do rico e delicioso vale, que tinha ali tão perto de si, e que ainda há pouco acabava de atravessar com o coração a transbordar de esperanças e o espírito cheio dos mais brilhantes projetos. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 470 MAGALHÃES, Basílio de. Bernardo Guimarães: esboço biográfico e crítico. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1926, p. 56. ! !210! Atravessar o paraíso para cair de chofre naquele inferno de eterna escuridão! Oh! Que era um transe de pungir, de ralar o coração! Gaspar foi atirado no chão, amarrado como estava como um porco, que se vai sangrar. Pelo tropel e vozeria dos selvagens compreendeu que a furna se dilatava interiormente em um vasto subterrâneo, cuja atmosfera pesada e quente estava carregada de miasmas infectos e nauseabundos. Posto que transido de horror sua curiosidade era grande, e ao menos para disfarçar sua angústia desejava conhecer aquele inferno, onde a sorte o precipitava por modo tão estranho e desapiedado.471 Ainda segundo Basílio de Magalhães, ao escrever a história Bernardo Guimarães teria se deixado “guiar pela mesma desordenada fantasia do romance A ilha maldita”. Isso porque a medonha tribo seria pura invenção. Não haveria nenhum relato de cronista que atestasse a existência desses improváveis seres “claros e de pequena estatura com unhas formidáveis, residindo em buracos de morros e saindo das suas luras somente à noite, por nada avistarem à luz meridiana”. O narrador, por sua vez, tenta persuadir o leitor afirmando que não poderia assegurar a veracidade do relato, mas garante que lhe fora narrado por uma pessoa “muito sensata e autorizada”, merecedora de todos os créditos. Reaparece o problema da relação entre a expectativa de certo compromisso com a fidelidade e as artimanhas da confecção literária. A inserção de um elemento que comprometeria a legitimidade da tradução da lenda é tratada como invenção arbitrária, pouco pertinente. É como se o escritor, infiel à lenda da “mãe de ouro”, deturpasse sua originalidade e sentido. Na horrível aventura, os índios inventados são peças fundamentais, pois toda a ação se dá em torno dessas criaturas medonhas que garantem as cenas de “horror e asco”. As descrições pormenorizadas de assassinatos e violência canibal acionam um tipo diferente de descrição das terras brasileiras que, como lugar de riquezas e belezas naturais, abriga também índios macabros. O Brasil selvagem é representado como uma terra sinistra, em descrições horripilantes publicadas nas páginas de um jornal dedicado à literatura amena. O mundo bizarro narrado por Bernardo Guimarães tem como referência os “sertões profundos e remotos” e torna-se a imagem misteriosa de um território forjado para atender tanto aos esforços de um projeto literário nacional articulado na idealização de uma cultura não urbana quanto às demandas de um público interessado em mistérios e peripécias literárias. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 471 GUIMARÃES, Bernardo. A ilha maldita/ O pão de ouro. Rio de Janeiro: Garnier, 1879, p. 86. ! !211! A tradução letrada das histórias populares se desenvolve no horizonte da fabricação ficcional do horror que potencializa a sinistra carga dramática que as define. Um Brasil estranho revela-se nos termos de uma paisagem estrategicamente desconhecida e por vezes macabra. Nas páginas dos jornais, as histórias pitorescas são reveladas por mecanismos ficcionais que tentam reproduzir a impossibilidade da circunstância de um relato vivo e transformam em literatura a experiência animada da contação de histórias. Surge assim uma linguagem particular que tenta ser o meio-termo entre a teatralidade da reprodução oral e a eficácia técnica da escrita. Na defesa de uma literatura nacional menos centralizada, Bernardo Guimarães faz um pequeno inventário de histórias populares traduzidas na chave de uma imaginação literária do horror que tenta tornar atraente um mundo de mistérios cujo maior encanto reside na encenação espontânea da tradição. Introduzidas no mercado literário, essas histórias serão criticadas tanto pela falta de vigor quanto pelo excesso de imaginação. Caberia ao regionalismo o pequeno mérito da tentativa de ampliação das representações do Brasil e o peso da falha de ser apenas a imagem superficial de um território imaginário. 4.4. Aluísio Azevedo e o misterioso Victor Leal Em sua primeira versão, publicada em 1893, a coletânea Demônios trazia doze contos com temas variados, da anedota ao conto fantástico. Essa seria a base de Pegadas, seleta de contos publicada em 1898, um ano depois de Aluísio Azevedo desistir da carreira literária e vender seus direitos autorais para a Garnier. Somente em 1934 M. Nogueira da Silva, responsável pela edição de suas obras completas pela F. Briguet & Cia., publicaria Demônios em um volume que incluía todos os contos anteriormente publicados472. O mais famoso dos textos selecionados nomeia duas das versões. “Demônios” foi publicado na Gazeta de Notícias em 1891 como um típico conto de horror473. Um jovem estudante acorda diante de um cenário sinistro no qual encontra mortos os habitantes de uma !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 473 Na introdução de uma edição de 2007, Lúcia Sá lembra que o texto publicado em Pegadas difere em alguns pontos do de 1893: alterações pontuais que teriam em comum “a tendência ao pudor e ao recato”,473 como se na segundo versão a autor tornasse o texto menos detalhista e grosseiro. A tendência se repetiria na segunda versão de “Cadáveres insepultos”. ! !212! sombria casa de pensão. Antes das terríveis visões, o estudante trabalhava em seu quarto “escrevendo com volúpia, exercitando suas ‘doidas fantasias de poeta’”. Sente suas ideias se confrontarem como “um bando de demônios” devorando-se uns aos outros, até que adormece lutando contra o voo febril de sua imaginação. Ao acordar percebe que a noite parecia não ter mais fim e, ao se deparar com os primeiros cadáveres, descreve angustiado os seus sentimentos: E o meu terror cresceu. E apoderou-se de mim o medo do incompreensível; o medo do que se não explica; o medo do que se não acredita. E saí do quarto querendo pedir socorro, sem conseguir ter voz para gritar e apenas resbunando uns vagidos guturais de agonizante. E corri aos outros quartos, e já sem bater fui arrombando as portas que encontrei fechadas. A luz da minha vela, cada vez mais lívida, parecia, como eu, tiritar de medo. Oh! que terrível momento! que terrível momento! Era como se em torno de mim o Nada insondável e tenebroso escancarasse, para devorar-me, a sua enorme boca viscosa e sôfrega. Por todas aquelas camas, que eu percorria como um louco, só tateava corpos enregelados e hirtos.474 A passagem poderia servir de epígrafe a qualquer história de horror. O medo crescente toma o absurdo como base e, potencializado, inibe o grito. A sensação de que o nada se transforma em uma força perigosa constrói um momento terrível quase impossível de traduzir. A instauração de um horror de origens metafísicas deixa o protagonista “perdido em um grande Nada indefinido, vago, sem fundo nem contornos”, suplicando a Deus pelo fim da escuridão. Em meio a essa estranha experiência, sente fome e devora como um animal os alimentos encontrados na cozinha antes encontrar sua amada Laura ainda com vida em um momento místico “completamente alheio à vida animal”. O jogo de contrastes entre os desejos animais e as “mais altas regiões do ideal e do amor” se reproduz na fantástica transformação da cidade, cujas ruas se estreitavam entre duas florestas que surgiam. Monstros crescem e acumulam toda atividade molecular e atômica da terra. O mundo natural converte-se na expressão da “grande alma do mal”. Os corpos vão se alimentando dessa matéria sinistra enquanto o espírito enfraquece e os dois únicos sobreviventes da terra vão se transformando em animais, “como os dois últimos parasitas do cadáver de um mundo”. Animalizam-se no impulso contraditório de existir para morrer na medida em que reúnem suas forças humanas para tentar o suicídio no mar. Mas quando a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 474 AZEVEDO, Aluísio. Demônios. São Paulo: Marins Fontes, 2007, p. 16. ! !213! transformação se completa, desistem da morte, encontrando a felicidade na falta do pensamento. As mutações evoluem levando-os à condição vegetal para experimentarem uma existência tranquila sem desejos nem saudades que se desdobrará em uma desmaterialização completa cujo fim é um vagar pelo firmamento, “como um casal de estrelas errantes e amorosas que vão espaço afora em busca do ideal”475. Completado o estranho ciclo que percorre as angústias do horror humano para chegar à paz etérea da ausência de matéria, o narrador se volta para o leitor avisando que tudo não passara de delírios literários de um jovem escritor em uma noite de insônia, “capítulos desenxabidos” escritos à espera do nascer do sol. Mesclando elementos de literatura fantástica com discurso científico, a narrativa apresenta o drama da involução como dissolução do mundo. Curiosamente, a narração do fim dos tempos narra também a decomposição da tensão dramática, pois, na medida em que caminha para a conclusão, a história vai se tornando menos terrível apesar de mais insólita. Os momentos mais tensos são apresentados logo no início, no encontro com os cadáveres e na atmosfera desesperadora de um terror metafísico que assombra o protagonista. Quanto mais humana, mais assustadora a história se apresenta. O processo de animalização que culminará com a fluidez absoluta é narrado como libertação de angústias e apresenta um final feliz mesmo antes de se revelar a farsa. Elementos do romantismo e do naturalismo se articulam não só na construção do horror quanto no dimensionamento da fantasia. Às detalhadas descrições dos corpos em decomposição seguem-se as declarações de amor eterno e de culto da beleza ideal. Os termos precisos de uma fantástica involução natural são acompanhados pelo inabalável caso de amor que supera os limites do corpo e do tempo. São representados como as verdadeiras fontes do horror, pois na medida em que vão sendo superados a paz vai se instaurando na fantasia de um espaço ideal, em um esquema evolucionista rumo ao nada. O pesadelo do fim do mundo une elementos da literatura gótica com argumentos da ciência do fim do século XIX, o que aproxima “Demônios” da ficção científica praticada por H. G. Wells e dos contos fantásticos de Maupassant, que também explorou a possibilidade da extinção da humanidade em “Le Horla”, por exemplo. Porém, no texto de Aluísio Azevedo o grande motivo é a literatura em si. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 475 AZEVEDO, Aluísio, op. cit., p. 51. ! !214! Os demônios que assombram a tenebrosa noite sem fim são suas ideias que surgem freneticamente e contra as quais luta como se enfrentasse um “feroz inimigo” disposto a aniquilá-lo. Sua imaginação de poeta é a verdadeira responsável pelos suplícios. Confusa e endemoniada ela construirá uma situação fantástica derivada da inversão da hipótese evolucionista ao narrar o fim do mundo como a aventura de seu início e o desenvolvimento da natureza como uma insólita história de amor. Dispositivos ficcionais variados se encontram para que no final se revele a farsa previsível. Nessa solução o fantástico se dissolve como se as ambiguidades do corpo e do espírito, da razão e da loucura só fizessem sentido no jogo proposto. Quando a literatura se apresenta como tal, o drama do mundo às avessas revela-se como a farsa insossa de uma imaginação entediada. A virulência da representação do pensamento que aparece no início dá lugar à modéstia de um passatempo vulgar. O demônio revelado já não é tão perigoso. Explorando tanto o horror físico dos corpos em decomposição quanto o horror metafísico do desespero diante da aniquilação, “Demônios” afirma o caráter lúdico da imaginação ao representar o medo literário como um recurso especulativo que possibilita não só uma inversão do tempo como do clímax. A história que se torna mais leve na medida em que se revela mais fantástica, menos assustadora quanto mais estranha. Aproxima e afasta o horror e o insólito para evidenciar o descompromisso com verossimilhança sem renunciar às certezas do discurso científico. A fábula romântica da involução lança mão de uma complicada maquinaria literária para se completar como devaneio despretensioso e inofensivo. A mesma densidade que o afasta da chave da amenidade, faz dele uma versão mais complexa dos textos publicados no Jornal das Famílias na medida em que o final transforma o retorno à verossimilhança no desmascaramento de uma imaginação controlada que finge ser perigosa apenas para fins dramáticos. Na conclusão que confirma a morte anunciada da fantasia, revela-se também a artificialidade das fronteiras ficcionais que separa as categorias romantismo, naturalismo, realismo, verossimilhança e verdade no jogo da fabulação do horror. O conto “Demônios” difere um pouco dos outros textos da coletânea homônima marcados em geral por um humorismo leve e despretensioso. Outra exceção é “Músculos e nervos”, tensa história de um acidente circense. Ainda que “Demônios” não tenha tido grande repercussão na época de seu lançamento, o texto ganhou certa notoriedade ao ser considerado um dos precursores da ficção científica no Brasil. Em 2010 foi adaptado para os quadrinhos ! !215! por Eloar Guazzelli476. Dramatizando os limites da imaginação literária posta em contraste com ela mesma, a narrativa articula diferentes representações do horror para enfatizar sua banalidade. A representação lúdica do fantástico reaparece no último conto da coletânea, “Como o Demo as arma”. A personagem Teresinha, influenciada pela leitura de Une larme du diable, de Théophile Gautier, acredita ser demoníaco o homem que deseja. A “singularíssima novela”, “extravagante fantasia do rei dos boêmios”477, assombra os pensamentos da moça que, ao final, convencida da banalidade de suas crenças, casa-se com Lucas. O conto bemhumorado enfatiza a separação entre a realidade e as impressões da jovem, inocente vítima das artimanhas do escritor francês de “alma doente e sonhadora, eleito da decadência romântica” cuja “alma desvairada” de “fumador de ópio” teria embriagado os devaneios de Teresinha com “a delícia de um vinho traiçoeiro”478. A imaginação romântica aparece como delírio de uma fabulação da decadência aplicado na composição de um texto insidioso que engana seus leitores. Nos dois contos, a ilusão representada sucumbe a um princípio forjado de realidade cujo contraste reforça a dimensão do ficcional no fictício para que o fantástico funcione no espaço determinado de um horror ridicularizado. Tratado como produto de um desvario inofensivo, o fantástico não pode resultar senão em literatura menor. A imaginação romântica reaparece como devaneio decadente e passa a representar toda a disposição ficcional essencialmente fantasiosa e descompromissada com a realidade. Legítima apenas em ambiente controlado, é evocada e diminuída ao sabor de um deleite pontual sem maiores consequências. É justamente pelo entendimento da dimensão paralela e inferior desse tipo de literatura que Aluísio Azevedo escreve A mortalha de Alzira, sob o pseudônimo de Victor Leal. A primeira obra de Victor Leal que depois se revelaria uma criação coletiva de Coelho Neto, Pardal Mallet, Olavo Bilac e do próprio Aluísio Azevedo foi publicada em 1890 na Gazeta de Notícias. O esqueleto – trama que ironiza as aventuras amorosas da juventude de D. Pedro I – foi inicialmente atribuído a Aluísio Azevedo pelos organizadores de suas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 476 A coletânea Demônios teve apenas uma edição pela editora original Teixeira & Irmão, e o conto homônimo reapareceria só nas edições de 1898 e 1934 das obras completas do autor. A seleta seria integralmente reeditada apenas em 2007. 477 AZEVEDO, Aluísio. Demônios. São Paulo: Marins Fontes, 2007, p. 163. 478 AZEVEDO, Aluísio, op. cit., p. 163. ! !216! obras completas, mas foi escrito a quatro mãos por Olavo Bilac e Pardal Mallet, como atesta uma crônica escrita por Bilac na Gazeta de Notícias no dia 17 de outubro de 1893. Agradecendo o recebimento de um volume de A mortalha de Alzira, lembra que, após a publicação de O esqueleto, de Paula Matos ou O Monte do Socorro e do referido romance, todos queriam saber quem seria o misterioso escritor que os assinava. Afirma ainda que bastaria observar os traços do retrato feito por Hastoy estampado nas páginas do jornal para perceber traços físicos dos quatro escritores no “romântico Victor Leal”. Revela quem seriam os autores de O esqueleto, confirma que Coelho Neto e Aluísio Azevedo escreveram Paula Matos e lembra que a autoria de A mortalha de Alzira já havia sido revelada por seu autor no prefácio da obra. Comentando o mesmo prefácio em que o autor de O cortiço trata a obra como filha bastarda, Bilac explica que ao levar o texto para ser publicado pela casa Fauchon, Aluísio reconheceria a paternidade e permitiria que A mortalha de Alzira convivesse ao lado de Mulato e Casa de pensão. Faz questão ainda de rechaçar a imagem “naturalista” do escritor maranhense que, ao ter sua obra comparada à de Zola seria acusado de “esmiuçador de coisas sujas! Um banido do Ideal! Um espontapeteiador da Poesia!”479. Aluísio seria em verdade um poeta e, portanto, reconheceria a importância de “viver uma vida extra-humana, amando e praticando coisas que não se veem, como os viciosos solitários que amam e gozam mulheres que não existem”. Sua capacidade de investigação da verdade não excluiria a imaginação poética, e a edição ainda no prelo de Demônios seria uma “prova flagrante” do argumento. “Um poeta que ama a vida da terra, apesar de todos os seus horrores e todas suas misérias – é isso o autor de A mortalha de Alzira”, afirma antes de concluir com uma enfática crítica ao texto: Obra romântica, A mortalha de Alzira? Tanto melhor! Esqueceremos o que estamos vendo, para ver o que viam Gautier e Hugo. Tem o defeito de ser um romance, cuja ação se desenrola na França? Tanto melhor! O que está agora desenrolando no Brasil só pode perturbar a digestão e desesperar a alma. O livro é bom. Tanto basta. Victor Leal fez bem em abandonar as penas de pavão com que revestia as asas de sua gralha, e Aluísio Azevedo fez bem em assinar o livro. O livro é bom. Que podemos exigir além disso?480 !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 479 480 BILAC, Olavo. Gazeta de Notícias, 17 de outubro de 1893, p. 2. BILAC, Olavo, op. cit., p.3. ! !217! A defesa do romantismo é como um necessário desvio no olhar que amplia os horizontes das atuais tendências literárias brasileiras de uma visada retrospectiva e exalta duas referências da literatura francesa. É um clamor para reabilitar o romantismo diante da desagradável realidade nacional. Tomada como critério único, a qualidade estética deve sobrepor-se a qualquer projeto contingente. Bilac defende a coragem de Aluísio Azevedo em assumir a autoria da obra de um pseudônimo forjado para ser a voz da imaginação em tempos em que a observação crua da verdade se estabelecia como paradigma. Segundo Brito Broca, desde 1878, com a publicação de O primo Basílio, naturalismo e romantismo mediam forças na cena literária dividindo opiniões. Machado de Assis afirmaria, por exemplo: “Nós que bebemos o leite romântico não suportamos o rosbife naturalista” em alusão às diferenças entre as duas estéticas481. Curiosamente, foi Aluísio Azevedo o autor do romance que marcou o triunfo do naturalismo que no ano seguinte lhe faria uma das mais contundentes críticas. Após publicar O cortiço em 1890, Aluísio Azevedo anuncia o primeiro capítulo de A mortalha de Alzira nas páginas da Gazeta de Notícias, ainda sob o pseudônimo de Victor Leal. Dizendo-se consciente de que a obra seria severamente julgada por aqueles “que supõem excluídos do gosto público o sentimento e a verdadeira poesia”482, promete não se incomodar com os “emperrados naturalistas” que teriam como objetivo “anular a única e sincera comoção que existe no mundo artístico, a comoção romântica”. Afirma de maneira ainda mais contundente que o naturalismo não convém aos padrões de gosto dos brasileiros porque a verdade nua e crua nunca será mais bela do que aquela trabalhada pela inspiração do artista. Ao romance caberia tanto o deleite do espírito quanto o conforto do coração, como ensinaram os mestres da “primeira e melhor metade deste século”. O naturalismo e sua vocação para o indecoroso aparecem como inimigos da beleza, querendo eliminar o sublime do mundo para que reste “senão a podridão e o mal”. Com irônica e melodramática indignação pergunta: “Querem fazer da terra um lameiro vil, nauseabundo? Pois então que nos arranquem a alma e convertam-nos o coração em máquina de julgar e não de sentir.”483. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 481 BROCA, Brito. Aluísio Azevedo e o romance folhetim. In: O esqueleto: mistério da casa de Bragança. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2000, p. 113. 482 LEAL, Victor. Gazeta de notícias, Rio de Janeiro, 4 de fevereiro de 1891. 483 LEAL, Victor, op. cit., p. 8. ! !218! O romance seria um estudo das dores do coração humano, ignorado somente por indivíduos de “alma embotada”. Clama os leitores sentimentalmente puros e imunes aos modismos das escolas literárias a ler a “chorada narrativa” sem se preocuparem com regras artísticas arbitrárias. Termina seu manifesto romântico tardio defendendo uma arte da comoção com o predomínio da sensação sobre a observação exclusivamente analítica. A farsa teria rendido mais se Valentim Magalhães não a tivesse revelado em um artigo publicado no Paiz, juntamente com a verdadeira identidade do sensível Victor Leal. Diante das evidências, Aluísio Azevedo assume a autoria no prefácio da edição do romance, feita pela Fauchon em 1893, e explica as razões que o levaram a escrevê-lo, deixando claro tratar-se de um trabalho paralelo ao seu projeto literário. Dirigindo-se àqueles que acompanham sua obra literária desde 1880 e o “revolucionário movimento artístico do naturalismo no Brasil”, dá satisfações aos homens de letras que tomam seu trabalho a sério. Diz que escreveu por encomenda da Gazeta de Notícias, que lhe pedira um romance com qualquer enredo que não fosse naturalista, mas romântico e bem fantasioso para agradar a “grande massa de leitores sentimentais” sem desagradar os que não admitem obras sem arte e sem verdade. Apesar de árduo o trabalho, compensaria por ser bem remunerado e por ser-lhe assegurado total controle dos direitos autorais. Além das vantagens financeiras, seria uma oportunidade para “repousar um pouco o espírito em um romance de fantasia”. Diz ter adotado o pseudônimo para construir um adversário francamente romântico, capaz de rivalizar com seus pacientes estudos do natural “obtidos a frio esforço de observação e análise”484. O empreendimento parece ter surtido efeito, pois, com a boa acolhida do romance, críticos e amigos chegaram a imaginar que o escritor maranhense tinha finalmente encontrado um rival à altura capaz de questionar seu sucesso literário e de abalar “com seus golpes de imaginação” toda sua empreitada naturalista. Na inusitada disputa, comenta que quase teve medo de si mesmo, ou seja, do misterioso Victor Leal. Lembra que o artigo que introduz o romance no jornal está cheio de blasfêmias literárias e pede perdão aos sérios e fiéis leitores afirmando que era preciso lutar contra alguém e que, na falta de oponentes, forjou seu próprio adversário. Diz ainda ter hesitado em editar um volume da obra, mas foi convencido pela demanda dos leitores: “Se o público quer !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 484 AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira. Rio de Janeiro: Fauchon & Cia, 1893, p. XIV. ! !219! essa obra e se diverte com ela, que a leia!”. Libertando-se do inimigo que inventou e que não mais deseja aturar, sugere que Victor Leal se rejubile vitorioso e “vá para o diabo que o carregue ou para os braços de seus leitores sentimentais”. A dedicatória que vem antes do prefácio evidencia ainda mais a condição paralela de A mortalha de Alzira: Aqui entre nós, leitor idealista, dou-te este livro assim com o ar de quem te faz um obséquio, quando o verdadeiro obsequiado sou eu, pois que achei esta ocasião de desabafar os contidos suspiros da minha velha alma romântica. O livro que se abre agora defronte dos teus olhos tem para mim os efeitos de uma válvula de segurança. Recebe-o de bom coração e não suponhas que recolhes no teu regaço carinhoso alguma impura fancaria de especulador. Não! A obra que te dedico é sincera sob o ponto de vista da comoção, posto não seja honestamente e logicamente irmã das minhas outras filhas literárias que constituem a honradíssima família de que sou chefe. É um filho que não reconheci logo, nem batizei com o meu nome, mas que, a despeito disso, não foi produzido com menos amor ou desejo. É o filho de uma ilusão fugitiva, de uma loucura de amor boêmio; é um filho bastardo, mas é meu filho. Nasceu fora do meu casal, em noites de amor e fantasia; pobres beijos trocados à luz de velhas estrelas que nunca mais se apagaram; sonhos embalsamados de passageiras flores que para sempre se extinguiram; mas eu o amo. Segue pois o teu destino, meu querido pecado! Já não és um simples capricho de teu pai; és uma obra atirada ao público. Não te envergonhes de abraçá-lo, leitor que também o amas. Beija-o, mas sem rumor; beija-o, mas cuidado que as irmãs não ouçam nem venham sabê-lo nunca! Não imaginas, meu bom amigo, os zelos, os ciúmes que elas têm dos teus carinhos! Aí o tens. Cuidado!485 Francamente romântica, a obra serve para dar vazão a um estilo pouco explorado pelo autor, a válvula de escape que lhe permitiria desenvolver temas que normalmente não apareceriam nos romances que constituem sua verdadeira e honradíssima família literária. Devaneio de quem abandona a seriedade para se deixar levar pelas emoções, filho bastardo que reconhece sem negar um constrangimento inicial, o romance é apresentado quase com pedido de desculpas. A fantasia que o define também não deve ser motivo de vergonha para o leitor, que é alertado para não esquecer as obras que realmente importam, ciumentas possivelmente por não serem tão populares. Realmente o sucesso de A mortalha de Alzira poderia ofuscar um pouco as outras obras do autor, pois M. Nogueira da Silva, organizador das obras completas publicadas pela !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 485 AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira, op. cit., p. IX/ XI. ! !220! Briguet & Cia., lembra que a segunda edição do romance, feita em 1895, chegou a dez mil unidades. Êxito incontestável, parece ter causado furor no público que já havia tido acesso à obra no jornal e na primeira edição que se esgotou em pouco mais de um ano. O filho desprezado se impôs pela popularidade. O pecado das noites de amor e fantasia não conquistou a crítica mas rendeu ao menos uma notável marca de vendagem. Atingir o décimo milheiro é realmente um feito para os padrões do mercado no século XIX. Como base de comparação, A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, considerado o primeiro sucesso de vendas brasileiro, teve quatro edições de mil exemplares entre as décadas de 1840 e 1850. O Moço loiro do mesmo autor e outro romance de grande sucesso, atingiu a marca de cinco edições em vinte anos. Obras como Lucíola e Diva, de José de Alencar, destacam-se por terem seus primeiros milheiros esgotadas rapidamente486. O constrangimento que ronda a obra diz muito sobre o lugar do horror na cena literária brasileira do fim do século XIX. Essa literatura de comoção que mexe com os sentimentos explorando a fantasia e o medo não se enquadra nos padrões ideais, parece condenada à marginalidade, mesmo com sucesso editorial. A medida de sua popularidade é balanceada pela mediocridade que lhe é imposta. Mesmo tendo a honestidade defendida pelo autor, é evidente o tom de desprezo que considera menor esse delírio ficcional feito apenas para satisfazer a demanda de um periódico. Na afetuosa condenação da obra, percebe-se o juízo acerca de um tipo de ficção que pode até funcionar como deleite para o público, mas está fadada a resignar-se como objeto de atenção pontual, como pequeno desvio de conduta revestido de prazer. É um descanso ao difícil trabalho de escritor, intervalo no desenvolvimento da verdadeira ciência literária que, nesse contexto, atende pelo nome de naturalismo. Ainda assim, esse tipo específico de fabulação assumidamente recreativa não estará imune aos paradigmas que norteiam o projeto literário de Aluísio Azevedo. Ainda no prefácio, Aluísio Azevedo alerta que o romance se vale do mesmo motivo do conto fantástico “La morte amoureuse”, de Théophile Gautier, acrescido de alguns personagens e eventos. Uma das principais diferenças, no entanto, estaria na lenda do vampiro que, principal motivo do conto, é excluído na versão do escritor maranhense. “A mortalha de Alzira substitui o truc maravilhoso do vampirismo pelos fenômenos naturais que podem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 486 Os números aparecem em A vida literária no Brasil durante o romantismo, de Ubiratan Machado. ! !221! apresentar certas crises histéricas de um neuropata”487, afirma o autor, destacando a troca do argumento fantástico pelo científico. De resto a trama é basicamente a mesma: um jovem e virtuoso sacerdote é atormentado pelo espírito de uma sedutora cortesã que o leva a uma vida dupla: religioso na vigília e devasso durante o sono. Ângelo (Romuald no original) é um talentoso pregador que consegue pela força de suas palavras tocar o coração da comunidade parisiense e particularmente o da fria Alzira (Clarimond no conto de Gautier). A Paris do século XVIII é representada como uma cidade de vícios onde imperam a orgia e o pecado em uma atmosfera de desenfreada decadência moral e onde o jovem tenta fazer valer a palavra de Deus. O romance de Aluísio enfatiza o aspecto decadente do período, assim como dá maior destaque à formação teológica do protagonista, o que pode ser atribuído à necessidade de expandir a trama e dar-lhe caráter mais descritivo. Mais curiosa é a explicação para a comoção causada pelos sermões do jovem que aparecem como excitação nervosa causada pelo fanatismo religioso. O esclarecimento é feito pelo Dr. Cobalt, personagem inventado por Aluísio Azevedo. O fisiologista com “novas ideias materialistas” empenha-se em provar que as convulsões dos fiéis não passariam de “fenômenos nervosos de histeria”, o que dá início ao estudo desse tipo de moléstia na França. Quando Ângelo é chamado para rezar pela alma de Alzira, os dois se reencontram na cidade de Monteli, onde o jovem se exilara para fugir dos encantos da cortesã. Enquanto declara seu amor ao cadáver, Alzira tem um lapso de vida, os dois se beijam e o religioso fica prostrado diante do corpo novamente inerte, aterrorizado com a cena fantástica que acabara de protagonizar. Quando avistam o jovem, todos ficam assustados, mas Dr. Cobalt lembra que o mistério se inseriria no ainda desconhecido, porém “extraordinário, fantástico, impalpável, quase incompreensível mundo de fenômenos psíquicos fornecido pelas afecções nervosas!”488. Comentando que no futuro suas ideias seriam reconhecidas e que já no século XIX o “brilhante cortejo de loucuras não seria mais um mistério”, Dr. Cobalt resume todos os pressupostos da narrativa fantástica e os resolve na chave do distúrbio psicológico. O estranho e o inexplicável encontram na coerência de seu discurso científico a substância de um mistério que se dissolve parcialmente nos limites de um pressuposto a ser confirmado pelo futuro. De extraordinário mesmo, apenas a ignorância de um tempo anacronicamente analisado por um personagem forjado no fim do século XIX. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 487 488 AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira, cit., p. XXII. AZEVEDO, Aluísio, op. cit., p. 127. ! !222! O cientista criado por Aluísio Azevedo é um contraponto que demarca as fronteiras da fantasia para que o horror das cenas insólitas apareça no espaço do evidente delírio. O conto de Gautier coloca o leitor em situação mais dúbia. Sonho e realidade se confundem sem o espectro de uma explicação plausível como pano de fundo. No texto do escritor francês, a articulação entre verossimilhança e irrealidade é mais tênue: ao tentar dissolver os limites do sonho e da vigília, ele equaliza os dois polos que extravasam somente quando a cortesã se revela uma vampira. Em A mortalha de Alzira, sonho e delírio se confundem sem efetivamente se fundirem com a realidade: a vida noturna de Ângelo é claramente fruto de sua confusão mental, o que permite maior exploração do lado fantástico da experiência noturna como comprova o capítulo “O mundo dos mortos”. Nele é narrada uma orgia macabra com homens e mulheres – “uns com os ossos à mostra, outros envolvidos em longas túnicas sombrias” – que saem de sepulturas dançando ao som do piano de um carcomido esqueleto. Ângelo é apresentado aos seres sinistros como um vivo que perambula entre os mortos, celebrando ao lado de Alzira o pacto de dedicar suas noites a esse estranho convívio, o que solidifica a ideia do duplo. A noite segue com uma viagem ao passado em visitas a figuras históricas e termina com o êxtase sexual do estranho casal. No capítulo seguinte, o religioso acorda condenando sua “imunda fantasia” e a “danosa imaginação” que o obrigaram a percorrer um mundo de pecados ao lado do fantasma de uma cortesã. Daí surge a dúvida sobre ter ou não pecado e sobre a angústia de se sentir vítima dos desejos. E são eles que o levam ao encontro de um demônio de ouro no interior de uma caverna e revelam sua ambição pelo poder absoluto, mas, diferentemente do que acontece em Fausto, o pacto não se completa. Vivendo uma vida miserável em que o padre condena o devasso enquanto este ri de sua tristeza, Ângelo vê sua vida noturna vencer aos poucos a vida real. À noite enfrenta os horrores do cinismo assassinando um libertino que conhecera em um de seus delírios. A passagem que lembra muito Noite na taverna debate as belezas do amor ideal contra os prazeres do amor físico e marca uma interferência do religioso no libertino, já que Ângelo assume a defesa da perfeição romântica. Após o embate, o vigário acorda desesperado, debatendo-se no leito, estrangulado pela ilusão de sua sombra levando Salomé, sua empregada, a recorrer aos conhecimentos do Dr. Cobalt. Tentando explicar a situação, o cientista fala da singularidade do caso. Refere-se a ele como uma nevrose encefálica e aproveita para discursar novamente sobre a revolução científica que ocorrerá no século seguinte, quando se descobrirá finalmente a complexidade da “vida autômata dos nervos”. Enquanto isso, o jovem se convence de que é mais feliz nos ! !223! sonhos e faz Ozéas, seu pai adotivo, tomar uma medida drástica: levá-lo ao cemitério para desencavar o corpo da cortesã. Com a caveira nas mãos, abstraído e mudo, Ângelo tem mais um terrível desvario: Alzira levanta-se da cova vestida com seu roupão funerário e condena a tentativa de lucidez do amante: “Conheces por acaso alguma coisa no mundo que não seja delírio e loucura?”489, pergunta o fantasma lembrando a insânia da virtude, da ciência e da religião. Diante da certeza de que tudo não passa de ilusão e de que o amor e a felicidade são “sonho e loucura”, Ângelo percebe que deixava de ser um vivo entre os mortos para se tornar um morto entre os vivos, renega seu pai e se joga em um abismo à procura sono eterno. O final dramático é também uma invenção de Aluísio Azevedo. Na versão original, o padre – que diferentemente da versão brasileira é o narrador – simplesmente lamenta que o amor por Deus não tenha sido suficientemente forte para suplantar o que sentia pela cortesã e sofre resignado. Em ambos a quebra da vida dupla causa desolação, mas Romuald não é um suicida. Ele lamenta o fim do estranho relacionamento, mas aconselha seu ouvinte a jamais olhar para uma mulher, sob o risco de perder a eternidade. A diferença entre o relato de um homem que conta resignado sua trajetória de sofrimento e um suicida que não suporta a ausência de amor na vida terrena pode ser entendida como uma prerrogativa folhetinesca. O fim mais dramático de Ângelo está diretamente ligado à demanda sentimental dos leitores ideais que Aluísio Azevedo tem no horizonte. Da mesma maneira que Ambrósio, personagem de The monk, é empurrado de um penhasco pelo demônio, Ângelo se lança no abismo seduzido por uma figura demoníaca. Assim como o romance de Matthew Lewis fez enorme sucesso na Inglaterra do século XIX, A mortalha de Alzira registra um recorde de vendas que não acompanha o ponto de vista da crítica. As tramas diferem em outros pontos fundamentais. O personagem de Gautier faz questão de ressaltar que suas aventuras não são marcadas por qualquer grau de loucura, pelo contrário. Comentando sua condição, destaca que sempre percebeu muito nitidamente a duplicidade de sua vida; estranha apenas que dois homens completamente distintos possam habitar um mesmo corpo. Ainda que sua percepção da realidade por vezes se confunda por força das ilusões, a loucura não aparece como o dispositivo capaz de reconciliar as duas dimensões. Aliás, em “A morte amorosa”, de Gauthier, essa relação é muito mais sutil: sonho !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 489 AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira, op. cit., p. 213. ! !224! e realidade estabelecem uma oposição menos grave que no romance de Aluísio Azevedo, que conta com a loucura como terceiro elemento. Ela invade o sono tornando-o mais fantástico e dá o tom da vigília como a fonte de todos os delírios. É com ela e com as explicações de Dr. Cobalt que o romance será ao mesmo tempo mais fantástico e mais realista que o conto. A doença mental é o argumento que legitima a fantasia e permite devaneios na chave do sobrenatural explicado. Ao retirar o motivo do vampiro, entendido como um truque maravilhoso, Azevedo lança mão do discurso científico para pensar os fenômenos naturais que dão origem a uma história muito próxima da literatura de autores como Edgar Allan Poe e Robert Stevenson. Com uma trama que envolve a figura do duplo em cenas libertinas, conflitos religiosos em sonhos fantásticos, além de assassinatos, traições e personagens demoníacos, A mortalha de Alzira é como uma síntese do horror literário oitocentista, construída sob uma razão explicativa que conduz a imaginação romântica e fantástica para uma imaginação literária do horror que não se afasta completamente dos padrões ideais do realismo e do naturalismo. Na introdução de uma edição de 1961, Jamil Haddad apresenta o romance como um livro romântico, escrito por um romancista básico do realismo ou naturalismo brasileiro. Entende o romantismo como um “desbragamento da imaginação e hipertrofiada sensibilidade” que leva muitas vezes ao alambicado e ao piegas. Afirma que esse desvario seria influência de Noite na taverna, pois, como no byronismo paulista, observa-se o “cortejo de catalepsia, necrofilia e o resto”490. Questiona-se ainda sobre a possibilidade de um romance ser apenas “romantismo delirante”, afirmando que, por mais que seu autor dirija sua imaginação às nuvens, continuará “por muito que se iluda” ancorado “nas praias do país natal”. Nesse sentido, ainda que o escritor maranhense tenha tentado retratar uma realidade francesa, seria impossível fugir de um pano de fundo essencialmente brasileiro: “Onde está escrito França, leia-se Brasil e o mistério será desvendado”. Para Jamil Haddad A mortalha de Alzira é um documento “subconsciente” que retrata os dilemas de um padre como imagem do catolicismo brasileiro corrompido pela escravidão. A profanação do culto e a mistura do sagrado com o profano revelariam traços decisivos da psicologia coletiva brasileira e provariam não haver força de evasão romântica capaz de desarticular realização ficcional e realidade nacional. Conclui, afirmando que, “como era de gosto da época”, o livro poderia trazer a epígrafe de “romance brasileiro”. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 490 AZEVEDO, Aluísio. A mortalha de Alzira. Introdução de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Martins, 1961, p. XII. ! !225! Nessa chave o romantismo aparece como um esforço imaginativo de negação da realidade, agregando em si deferentes possibilidades de fabulação. Na medida em que seu sentido é garantido pela oposição ao realismo, transforma-se em um epíteto da fantasia ficcional que reúne o fantástico, o maravilho e o gótico em seus desdobramentos e atualizações. No entanto, parece não poder se realizar completamente. Frustrado, deixa entrever uma realidade por trás das aparências que revela a força da verdade diante do mero artifício. Essa chave interpretativa reconhece a virtude na falha para defender o que aparenta ser indefensável, consagrando ora uma imaginação que fracassa, ora uma genialidade que esconde o que só a romântica ideia de uma leitura profunda pode ressaltar. Revelando o mistério, essa análise “mais atenta” transforma em nacional mesmo o que não parece projetado para ser. Aponta a verossimilhança do que busca prioritariamente uma sincera comoção; e se estrutura no universo dos fenômenos naturais como caminho para uma versão fantástica do discurso científico. Ao analisar a importância de Aluísio Azevedo, José Veríssimo critica sua versão um pouco popularesca do naturalismo de Zola e de Eça de Queiroz, mas ressalta os bons serviços prestados à literatura brasileira pelo “sentimento justo de realidade”, interesse humano e clara inteligência tanto dos fenômenos individuais quanto da alma individual. O mérito de uma “representação menos defeituosa da nossa vida” caberia exclusivamente aos romances: O mulato; Casa de pensão; O momem; O cortiço e O livro de uma sogra. O resto de suas obras teria menor valor por serem produzidas por “pura inspiração industrial” 491 . O caráter folhetinesco que define esse outro lado do escritor divide criticamente sua obra ao meio, e Victor Leal é a consciência absoluta dessa bipartição que já está clara no momento da arquitetura de seu projeto literário. Apesar de ter lançado mão do pseudônimo somente uma vez, é com ele que contrasta a relação entre literatura séria e trabalho paralelo 492 . Curiosamente, são justamente esses flertes temporários que garantem a possibilidade de dedicação às letras e levam Valentim Magalhães a afirmar que Aluísio seria o único escritor de seu tempo a viver somente, ainda que modestamente, “à custa de sua pena”.493 Essa “inspiração industrial” marca a inserção do escritor em um mercado literário variado que tem demandas específicas por literatura de entretenimento. É a possibilidade de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 491 VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira, op. cit., p. 243. Assina seu nome em A condessa Vésper e Girândola de amores, considerados ao lado de A mortalha de Alzira seus mais bem-sucedidos folhetins. 493 BOSI, Alfredo, op. cit., p. 188. 492 ! !226! utilização de sua “velha alma romântica” que reaparece depois de muito sufocada pelos imperativos naturalistas. Ele obtém boa resposta de um público que ainda no fim do século XIX tem na afetação sentimental um pragmático critério de gosto não necessariamente articulado com os pressupostos da crítica. Araripe Júnior chega a comentar que Aluísio teria interrompido sua carreira para “produzir obra de mera fantasia”, o que seria espantoso se não houvesse a explicação posterior. Comenta ainda que no romance faltaria o assombro encontrado nos contos fantásticos de Hoffmann e nos romances de Ann Radcliffe.494 A separação entre a verdadeira literatura capaz de ler e representar a realidade nacional contra a falsa e artificial imaginação ficcional, mais preocupada com o efeito circunstancial do que com a ideia de amadurecimento estético gradual não é somente um paradigma crítico anacrônico do século XX. Está no centro das práticas literárias oitocentistas, criando critérios de valor e indicando a projeção do cânone e da margem. Nessa tensão, um romance de imaginação fantástica como A mortalha de Alzira, depois de ter sua misteriosa autoria revelada, é publicado com um constrangido pedido de desculpas, mas se impõe pela popularidade. A postura de Aluísio Azevedo, muito parecida com a de Horace Walpole em relação ao seu primeiro romance, evidencia os desencontros entre público e crítica e a própria sobrevivência de um romantismo polissêmico. Central em meados do século e periférica em suas décadas finais, a imaginação romântica passa a simbolizar toda construção ficcional desinteressada em uma realidade artificialmente substancializada e transformada em matéria para fabulação séria. Desviantes, as formas de imaginação literária do horror fazem do descompromisso um trunfo para que o horror assuma caráter lúdico. De certa maneira, o romance de Aluísio Azevedo se encontra com o de Justiniano José da Rocha no movimento de adaptação do horror segundo determinada lógica de mercado, muito mais clara no caso do escritor maranhense. A noção mais bem definida de um mercado literário composto de um “público romântico” permite que A mortalha de Alzira seja uma adaptação mais bem-sucedida que Os assassinos misteriosos. Tendo mais clareza em relação às demandas do leitor, seu autor explora mais os artifícios de comoção. Partindo do mesmo objetivo de agradar que orienta a obra de Justiniano José da Rocha, Aluízio Azevedo se sai melhor porque domina plenamente as regras do folhetim, já bastante popular na época. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 494 JÚNIOR, Araripe. Obra crítica. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1960, vol. II, 1895/1900, p. 173. ! !227! Com base nas novelas e romances analisados, é possível entrever uma tensão constante entre diferentes sentidos atribuídos à prosa de ficção. A defesa de alguns paradigmas que visam dar sentido quase oficial à produção literária – convocada para acompanhar em sua linha progressiva o desenvolvimento da nação brasileira – convive, não necessariamente de maneira harmônica, com propostas mais modestas atreladas às demandas da ordem do dia. Com uma relação estreita com o público que a consome na chave romântica do afeto, essa literatura menos programática explora recorrentemente o horror como atrativo. Por vezes considerada excessiva, exagerada, desordenada, a imaginação romântica – que, ao longo do século, ganha feições mais ou menos escuras, abrigando também o fantástico e eventualmente o gótico – tem seu apogeu em meados do século XIX com o indianismo de José de Alencar, mas é duramente questionada na segunda metade do século XIX. Depois de ditar os rumos da prosa ficcional brasileira, transforma-se em traço de atividade paralela sustentada pelo apelo comercial dos folhetins. Os problemas sob os quais se debruçam a crítica e os escritores “sérios” formam um debate estético que reforça a condição paralela de outras práticas. Nesse sentido, a fabulação do horror encontra espaço nas margens dos projetos oficiais, aparecendo ainda na forma de causos e mistérios de um Brasil exótico. Sem se afastar em completamente dos modelos prioritários, lançando mão tanto do idealismo romântico quanto da investigação da realidade, as formas de imaginação literária do horror em suas diferentes atualizações exploram o tema da libertinagem, exibem a crueldade sangrenta de um horror bruto e encenam o maravilhoso investindo também na ficção de um passado que assume tom de antiguidade curiosa, como no caso dos Alfarrábios, de José de Alencar. Bernardo Guimarães, por sua vez, tanto na sua atuação crítica quanto como autor de ficção, mostrou-se preocupado com os rumos da literatura brasileira ao fazer apologia de sua diversidade temática e estilística 495 . Na transcrição de lendas, explorou o medo como ferramenta de comoção e assim se aproximou do fantástico e do gótico. Essa relação entre horror literário e narrativas regionais não seria exclusividade do escritor mineiro. Ganhou força em obras como A fome, de Rodolfo Teófilo, Pelo sertão, de Afonso Arinos, e Contos gauchescos, de João Simões Lopes Neto. Praticado tanto por autores centrais no universo literário oitocentista quanto por nomes hoje desconhecidos, o horror literário assume nos romances formas variadas sem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 495 Ver GOMES, Ednaldo Cândido Moreira. A contribuição da imprensa na revisitação da obra de Bernardo Guimarães. In: Anais do SILEL. Uberlândia: EDUFU, 2009. ! !228! configurar um gênero específico. Aparece como dispositivo-chave no esforço de comoção que garante ao mesmo tempo popularidade e descrédito sem definir um segmento próprio. Sem a autonomia necessária para definir um horizonte particular de consumo, surge como desdobramento de uma imaginação romântica que, aplicada às peripécias folhetinescas, busca no desenlace ideal da sensação de horror sua sedução e sentido. Romances como O doutor Benignus e A rainha do Ignoto se aproximam de uma fantasia científica ou de um típico romance gótico aos moldes ingleses, mas surgem como casos isolados que ao mesmo tempo comprovam a circulação desse tipo de literatura no Brasil e apontam seu papel secundário nas letras nacionais. O triunfo do paradigma realista na segunda metade do século XIX não impede a proliferação desse tipo de ficção condenada por soar fantasiosa demais, por evidenciar a dimensão artificial da ficção isentando-se da responsabilidade de observar precisamente o mundo. Dividindo espaço com uma escrita cujo engajamento na realidade oferece uma imagem verossímil do tempo e das circunstâncias, as diferentes formas de imaginação literária do horror no Brasil se apropriam das narrativas do horror que marcam a produção ficcional dos séculos XVIII e XIX, sem nunca obter a importância que o gênero gótico e seus desdobramentos circunstancialmente conquistaram no cenário europeu, por exemplo. Fazendo-se presente ora como desvio estratégico, ora como elemento secundário no desenvolvimento do romance brasileiro no século XIX, coube ao horror a condição de motivo menor, protagonista de uma história particular, escrita nas margens das práticas literárias cotidianas. ! !229! Conclusão Ao delimitar a construção da identidade nacional como a grande missão dos homens de letras do século XIX, os estudos literários brasileiros tendem a vincular inelutavelmente o projeto de construção da nacionalidade e o processo de consolidação da independência política brasileira com a autonomização da produção literária. A literatura forneceria o enredo do país em construção, a serviço da composição de um suposto “vínculo de nacionalidade” e da constituição de um repertório cultural comum. Nesse cenário, o romantismo assume o papel de construir e interpretar o Brasil. A nação triunfa para além das adversidades, impondo-se como tema fundamental, colocada, assim, no centro de uma trama análoga aos volumosos romances oitocentistas e centrada num desenvolvimento progressivo e redentor. O triunfo desse padrão de legibilidade naturaliza, nos estudos literários, os pressupostos herdados da crítica do século XIX. A linguagem torna-se veículo de acesso a conteúdos de um real concebido fora dos textos, e, ainda que convertida em estrutura interna, uma realidade positivada passa a servir de referência a um passado que escapa. No acesso a esse mesmo passado objetivado – ainda que em estruturas submersas a serem desvendadas pelo crítico –, formula-se um critério de juízo: quanto mais representacional, melhor. A teleologia do nacional passa a corresponder também ao privilégio do realismo. A enunciação aparece em formulações correntes, como “literatura e sociedade” e “literatura e história”, que propõem o social e a história como os espaços exteriores reais que devem ser relacionados com a instituição literária. O privilégio do tema nacional é bem expresso na obra referencial História da literatura brasileira, de Sílvio Romero que chegou a ser considerada por Antonio Candido o “monumento central da historiografia literária brasileira”. Publicada em 1888, a obra tem um caráter de prestação de serviço ao Brasil: organizar a história literária significava oferecer ao povo brasileiro uma imagem de sua evolução como nação civilizada. A monumentalização romântica dos escritores faz com que a literatura seja entendida como produto de uma cultura específica, resultado de uma equação que envolve termos como “raça” e “meio”, sem necessariamente excluir a apropriação de tradições literárias supostamente mais consolidadas. Para Sílvio Romero a adaptação das ideias europeias marcaria a literatura no Brasil. Elateria deixado de ser “mais ou menos inconsciente” nos tempos coloniais para se tornar deliberada na segunda metade do século XIX. Ao definir um lugar na cultura brasileira para a produção letrada, Sílvio Romero atribui funções bem específicas para a literatura. Só interessa ! !230! a literatura que sirva à nação, ou seja, que a represente a partir de sua expressão popular, nativa. O mérito do romantismo consistiria no fortalecimento do sentimento nacional como desdobramento do novo estágio civilizatório que o Brasil experimentaria com a independência política. O conceito de literatura de José Veríssimo, por sua vez, é bem mais restrito do que o de Sílvio Romero, que incluía todos os gêneros de produção letrada, dos textos jurídicos às canções populares. Para José Veríssimo só poderiam ser considerados propriamente literários os textos escritos com o propósito de atingir determinado sentido artístico. O crítico privilegia o que chama de “Belas-Letras, conforme a vernácula noção clássica”, distinguindo-as do que considera uma “pseudonovidade germânica” que define qualquer produção letrada como literatura. Suas concepções o filiam a outra tradição, mais eminentemente francesa, expressa, sobretudo, em Histoire de la littérature française, de G. Lanson, de 1894. Para José Veríssimo a história literária brasileira se traduz como história da manifestação literária de um espírito nativo que não se deixa abalar pela opressão portuguesa. Não há como distinguir, nesses termos, literatura e vocação nacional, pois a primeira se define por seu caráter atavicamente nacionalista. O século XIX, com o advento do programa romântico, surge assim como o momento da afirmação absoluta da nacionalidade literária coadunada com a afirmação de um Brasil politicamente autônomo. Em José Veríssimo o elemento histórico-social não é desconsiderado, mas tem peso infinitamente menor do que nos trabalhos de Sílvio Romero. Em sua busca pelos textos-chave defende que a história deve se ocupar daqueles que permaneceram na memória da nação, ou seja, de autores que sobreviveram ao tempo – seja pela qualidade estética, seja pela importância estratégica em momentos decisivos – e são partes fundamentais do repertório nacional. Debruçando-se sobre um corpo de textos legitimados pela vida literária, o historiador deve confirmar um panteão consagrado pela história. Nesse cenário, a história literária se transforma em uma máquina poderosa de canonizar o canonizado, de consagrar as obras já “consagradas pelo tempo”. O efeito é de uma representação laudatória das Belas-Letras constitutivas do espírito nacional, em uma sacralização que exclui o circunstancial e garante o transcendental. A transcendência, nesse caso, é assegurada pela qualidade estética que não pode se dissociar de certo sentimento sobre a nação brasileira. Interpretada como desvio momentâneo, a literatura de matriz byroniana, por exemplo, rapidamente se esgota e é substituída por tendências referenciadas em Victor Hugo. Estruturada em um conceito delimitado de literatura e com intuito mais claramente canônico, a História da literatura brasileira, de José Veríssimo, corrobora a construção do ! !231! panteão literário brasileiro. É basicamente em torno desse mesmo corpus canônico que Antonio Candido viria a estruturar seu sistema literário, garantindo definitivamente a consagração do nacionalismo como referência nos estudos literários brasileiros. Publicado em 1957, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos é, como se sabe, o modelo analítico de maior triunfo nos estudos literários brasileiros. O caráter consistente e abrangente de seu sistema o fez figurar como referência no ensino universitário no tocante à história literária nacional. A construção desse sistema literário como fenômeno da civilização depende da articulação de escritores conscientes de sua função e da formação de um público leitor, a partir de uma linguagem que estabelece necessariamente a relação entre os termos. Para Antonio Candido, o despertar da consciência literária, ao menos no que se refere aos produtores, se daria no arcadismo. Colocando-se ao lado dos primeiros românticos e de críticos estrangeiros como Ferdinand Denis e Almeida Garret, define seu projeto de pensar “a literatura no Brasil como expressão da realidade local” numa “história dos brasileiros em seu desejo de ter uma literatura”. A tendência se acentuaria com a independência política, posto que a atividade literária atuaria na construção de um país livre, de acordo com um programa supostamente estabelecido sob a premissa de especificação temática que visaria representar o Brasil em seus mais variados aspectos. Essa tomada de consciência se torna o fator-chave do processo de “formação”. A missão cívica e a vocação nacionalista das letras brasileiras teriam como um de seus mais sensíveis efeitos imediatos o veto à imaginação que redundaria no caráter necessariamente realista da literatura do século XIX. A coerência das obras, sua organização e sua integração orgânica, seriam questões recorrentes para o Antonio Candido, que dedicaria boa parte de sua obra a equacionar a relação entre o externo e o interno nas obras literárias. A associação entre fatores como meio, vida, ideias, temas e imagens, pode ser considerada uma das chaves de seu sistema crítico, que, nos ensaios que compõem o volume Literatura e sociedade, se torna mais evidente: ao tentar esclarecer suas concepções acerca da relação entre crítica e sociologia, o crítico defende uma visão integradora que considera o caráter indissociável da crítica textual e da análise sociológica. Com Antonio Candido, a literatura brasileira assume, assim, de maneira quase definitiva o problema nacional. Torna-se praticamente impossível, uma vez aceita a ideia da “formação”, desvincular literatura e nacionalidade. Como mostrou largamente Abel Barros ! !232! Baptista 496 , a hegemonia deste paradigma estabelece os termos de compreensão e de canonização da produção literária oitocentista: seja exposto na superfície do texto, seja nas estruturas profundas, um Brasil subjacente surge como necessidade ontológica da literatura que desponta como herdeira de uma razão universal, tal um arbusto transportado e fecundado que gera novos galhos. A oposição entre local e universal, convertida em formalização estética de determinado sentimento de realidade, expressa, enfim, o drama da adequação formal e da originalidade das letras nacionais. Organizadas na chave autoral que privilegia obras centrais, as histórias literárias tendem a desprezar motivos considerados menores, como evidentemente acontece com o horror. A construção de uma autoridade literária cujo objetivo principal é a consolidação de uma noção romântica de gênio criador e de obra-prima encontra no nacional seu motivo ideal. A legitimação de uma originalidade que se pretende evidente e que, portanto, deve romper com tradições literárias exógenas, transforma o nacionalismo em expressão da particularidade, que passa a ser o elemento necessário para a consagração da tipologia do autor romântico. Ao enfatizar recorrentemente a galeria de matrizes literárias “estrangeiras” e lançar mão de matérias baixas como o assassinato e a perversão sexual, o horror literário se posiciona como motivo de difícil canonização, sobretudo quando confrontado ao projeto nacionalizante de cariz indianista. No caso das obras centradas no horror, a originalidade esbarra na monumentalização igualmente romântica de autores como Byron e Hoffmann e na recorrente adaptação de textos estrangeiros, (como é o caso de A mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo). A construção desse cânone sombrio, ao mesmo tempo em que legitima o horror referendando-o numa tradição, dificulta a participação no registro da originalidade nacionalista. A dramatização do autor romântico monumentalizado que caracteriza, sobretudo, as primeiras expressões do horror literário no Brasil, revela uma disputa entre diferentes possibilidades de construção do cânone. A proposta de manter a filiação da literatura brasileira à portuguesa que Álvares de Azevedo defende, por exemplo, indica uma ideia de originalidade que não prioriza o rompimento, mas cultua o vínculo com autores considerados excepcionais. A genialidade se sobrepõe a qualquer particularidade nacional, tida por elemento decisivo que deve nortear a configuração do patrimônio literário. Nesse sentido, a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 496 BAPTISTA, Abel Barros. O livro Agreste. Campinas: Unicamp, 2005. ! !233! proposta do autor de Noite na taverna, corroborada por muitos de seus pares, pode ser entendida como mais propriamente romântica do que o projeto indianista triunfante. Ao apresentar o horror como motivo de uma geração de autores marcados por um mesmo ethos decadente, o terror literário produzido nas academias, em meados do século XIX, permanece marcado por um cosmopolitismo infuso que soa imaturo, ao menos para os defensores do nacionalismo literário. Mesmo tratada por boa parte dos críticos como potencialmente genial, a obra de Álvares de Azevedo seria problemática, nesse contexto, por ter momentaneamente desviado o caminho naturalmente nacional da literatura brasileira. Foi quando se deu a primeira crítica sistemática ao horror, na disputa romântica pela monumentalização de autores e obras, que fez com que o teor nacional se sobrepusesse ao romantismo soturno de Azevedo. Ainda que os dois projetos operassem a partir de uma mesma tipologia autoral romântica, o primeiro se ajustava melhor à consagração da originalidade. Não podendo figurar como projeto literário mais consistente, o horror se consolida, assim, como atividade paralela da vida estudantil. Foi o passatempo de homens de letras como Couto de Magalhães, autor do conto de horror “O estudante e os monges”, publicado em 1859, quando cursava a faculdade de Direito em São Paulo, pouco menos de vinte anos antes de lançar a sua grande obra O Selvagem – Trabalho preparatório para o aproveitamento do selvagem e do solo por ele ocupado no Brasil, digna do General e do Presidente de Província que foi497. É certo que o triunfo do nacionalismo indianista inviabilizou o desenvolvimento do horror como problema literário “sério”, dificultando a produção de obras consistentes que pudessem ser tomadas como referências. Talvez por isso Noite na taverna, de 1855, seria ao longo de todo o século XIX a expressão máxima de literatura de horror no Brasil, por mais que tenha sido consagrada como “desvio”. Trata-se da exceção que serve para confirmar o caráter malogrado de uma tendência, mobilizado recorrentemente nas histórias literárias para afirmar o triunfo do nacional como paradigma. Fora do ambiente acadêmico, o horror assume outras formas e funções. Na extensa galeria de contos de Machado de Assis, por exemplo, aparecerá pontualmente, tanto na chave da literatura amena quanto em narrativas calcadas numa ironia cuja matriz remete à obra de Edgar Allan Poe. Nesses textos, a disputa entre temas nacionais e motivos sombrios já não tem tanta importância. Os contos machadianos buscam o efeito de horror a partir de tramas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 497 COUTO DE MAGALHÃES, José Vieira. O Selvagem. São Paulo/Rio de Janeiro: Livraria Magalhães Editora, s.d. [1876]. ! !234! mais cotidianas, publicados em espaços de consumo literário diário, tanto em periódicos para o público feminino quanto em jornais de repertório temático mais amplo. Assim, esse horror não terá mais a excentricidade boêmia, nem tampouco será atrelado tão explicitamente a um esforço romântico de automonumentalização. Sem aderir expressamente a preceptivas nacionalistas e sem visar uma linhagem romântica específica, o horror machadiano se estrutura fundamentalmente nas condições do narrador que pode ou não explicar a estranheza do que relata. Em contos como “O país das quimeras”, ou em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis lança mão do fantástico sem necessariamente buscar o efeito de horror. Já nos contos em que ele busca o efeito de horror, toma a narração como problema fundamental. É a autoridade do narrador que está em jogo; é o seu caráter eventualmente malicioso que determina o sentido do medo. Por uma lado, na chave da amenidade, a ficção autorreferenciada se converte em anedota; por outro, na perspectiva mais evidentemente irônica, a ausência de explicações fortalece o suspense. Operando a partir dessas duas chaves, os contos de Machado de Assis exemplificam o tipo de horror literário que passa a circular a partir da segunda metade do século XIX, e encontrará seu lugar na progressiva demanda de um público interessado em histórias assustadoras. Seus contos serão o antídoto ideal para combater o tédio das horas ociosas, mas também terão espaço no patrimônio literário brasileiro promovendo mistérios deliberadamente insolúveis. No momento em que o realismo e o naturalismo passam a dividir espaço na literatura brasileira, o horror é encarado como uma proposta antiquada que só poderia interessar aos “leitores sentimentais”, ou seja, os românticos. Esse tipo de leitor, afeito à chamada literatura amena e emocionalmente apelativa, é tratado com descaso pelos críticos. Tratado como influência perniciosa que atrasaria o desenvolvimento da literatura brasileira, esse padrão de gosto não é levado a sério, apesar de representar uma parcela significativa do público consumidor de literatura. A mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo, é um exemplo paradigmático dessa relação entre literatura “séria” e passatempo literário de menor valor. No prefácio enfático em que revela ser Victor Leal, Aluísio Azevedo evidencia o lugar a ser reservado à imaginação romântica, que deve englobar o fantástico, o horror e as propostas literárias menos empenhadas numa representação objetiva da realidade. Em muitas edições do século XX, as obras analisadas serão parcialmente reabilitadas por leituras que tentam descobrir na superfície do texto a profundidade de uma realidade debaixo das tramas. Analogamente, na chave documental, imposta pelos críticos, o horror é ! !235! enfraquecido ao ser afastado da perspectiva de seu efeito. Em todo caso, ao menos de acordo com a forma como é apresentado, é impedido de cumprir uma de suas funções primordiais: causar medo. Como se sabe, a crítica ao romantismo serve para definir os parâmetros do debate literário no final do século XIX. Se o realismo e o naturalismo medem forças na tentativa de guiarem os rumos da literatura brasileira, o romantismo figura como um adversário comum progressivamente posto em segundo plano. No entanto, coletâneas como Dentro da noite, de João do Rio, de 1910, Coivara, de Gastão Cruls, de 1920, e O monstro e outros contos, de Humberto de Campos, de 1932, atestam a popularidade do horror literário nas primeiras décadas do século XX. Outro exemplo marcante é a publicação da seleta Contos brasileiros, lançada em 1922 pela Livraria Garnier. Organizada por Alberto de Oliveira e Jorge Jobim, reúne contos escolhidos por serem, segundo os organizadores, “alguns dos principais, dos mais belos ou dos mais estimados do público e dos nossos homens de letras”. Dos trinta e seis contos, ao menos dezenove fazem do horror tema principal, com destaque para “Crime”, de Olavo Bilac; “Mão sangue”, de Coelho Netto; “Dentro da noite”, de João do Rio; “A cartomante”, de Machado de Assis; “G.C.P.A.”, de Gastão Cruls; “A Salomé do sertão”, de Gustavo Barroso e “Confirmação”, de Gonzaga Duque. Na perspectiva dos organizadores esses contos seriam, portanto, “elementos orgânicos de agremiação social”, e não simplesmente “entretenimento fácil dessas horas de ócio”. Aludindo a uma tradição que incluiria Homero e Boccaccio, Oliveira e Jobim comentam o caráter incipiente produção de contos no Brasil e destacam Machado de Assis como “precursor” do gênero, que privilegia “o extraordinário, ou o maravilhoso em que imaginação extravasa e delira, o picaresco ou o jocoso e toda sorte de diatribes”498. Esses exemplos indicam que, mesmo havendo uma crítica ao romantismo no final do século XIX, o horror permanece no horizonte de produção e de consumo literários no Brasil. As publicações que datam do início do século XX atestam a sua recorrência como motivo literário, ainda que em propostas diferentes, apesar das acusações de superficialidade e de pouca originalidade que lhe reservaram papel secundário na trama do amadurecimento estético da ficção brasileira ao longo de todo o século anterior. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 498 OLIVEIRA, Alberto de; JOBIM, Jorge. (Org.). Contos brasileiros. 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