Casos-Limite: de que objeto se trata?
Camila Junqueira
Psicanalista, Mestre e Doutoranda em Psicologia pelo IPUSP, autora do livro Ética e Consciência
Moral na Psicanálise (2006, Via Lettera)
Resumo: O objetivo desse trabalho é por em discussão a amplitude da
diferença entre as noções de representação-objeto, o objeto da pulsão e dos
objetos de amor e identificação. Não se trata de tentar apagar as diferenças
entre eles em busca de uma teoria unificada do objeto em Freud, mas, tão
somente, de contornar melhor essas diferenças a fim de observar suas interrelações. Tal exercício é de suma importância para o encaminhamento de
questões relativas ao funcionamento dos casos-limite por pelo menos duas
razões, em primeiro lugar, na medida em que a literatura aponta que uma das
principais características desses quadros é a angustia de perda e de intrusão do
objeto concomitantemente, é necessário ter claro de que objeto(s) se trata(m) e
qual sua natureza; e em segundo lugar, mas não menos importante,
consideramos muito frutífera a idéia de que esses objetos estão interrelacionados, pois a falha em um explica a falha no outro, assim como o
trabalho com um resulta em trabalho com outro. Pensar que o objeto de
identificação possa ser uma constelação mais complexa de representaçõesobjeto é útil para pensar que as falhas identificatórias ou falhas na
representação do próprio corpo, que aparecem em alguns dos casos-limite,
têm relação com falhas representação-objeto, ou ainda, com falhas no
aparelho psíquico (representacional). (apoio FAPESP).
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Segundo Baranger (1994) o texto de Freud permite múltiplos desdobramentos
sobre o tema do objeto, de onde alguns de seus seguidores, tais como Klein,
Winnicott e Lacan, desenvolveram certos aspectos indo além de Freud, porém
ignoraram outros, perdendo a riqueza inicial do conceito, sobretudo no ímpeto
de construir uma teoria unificada, coerente e bem acabada sobre o objeto.
Desse modo, diante de tal alerta, não tenho a intenção de propor que há em
Freud uma teoria unificada do objeto. Contudo, penso ser necessário levantar
uma questão sobre as relações entre as diferentes concepções de objeto na
teoria freudiana, necessidades que está subliminarmente colocada no texto do
próprio Baranger (1994, p.285-6) que afirma: “a conclusão é ineludível: o
status metapsicológico do objeto descrito por Freud em Duleo y Melancolia e
por M.Klein em seus artigos correspondentes não é o de uma representação,
mas sim um status semelhante ao das instancias psíquicas (ego e superego),
um status de quase-pessoa (...) o trabalho de luto é a paulatina transformação
de um objeto morto-vivo em uma representação, em um conjunto de
lembranças como as demais. O objeto não é o mesmo quando falamos objeto
da pulsão e quando falamos de objeto de luto (...) então, neste momento se
coloca um problema: como pode um trabalho sobre representações conseguir
modificar algo que em si não é uma representação”. Baranger continua seu
pensamento falando dos tipos possíveis de modificação de objeto, enfatizando
como as teorias pós-freudianas não dão conta, cada uma isoladamente, de
explicar os modelos de modificação que podem envolver os objetos. Contudo,
o que é o mais fundamental em sua pergunta: ‘como pode um trabalho sobre
representações conseguir modificar algo que em si não é uma representação’,
é o que Baranger não desdobra: qual seria então a relação entre o objeto
enquanto representação e desse objeto quase-pessoa ou instância psíquica?
Pois se o trabalho com o ultimo o transforma no primeiro, alguma relação
entre eles necessariamente existe.
Nossa sugestão é pensar que os objetos só passam a fazer parte do psiquismo
quando são representados, e que as representações formam diferentes tipos de
constelação onde os objetos representados podem assumir diferentes funções,
tais como objeto da pulsão ou objeto de identificação; como átomos que a
depender do tipo de ligação entre eles formam um ou outro elemento, ou
como células do corpo que são potencialmente idênticas, porém a depender da
sua localização (tópica) fazem essa ou aquela função. A questão do id, como
um reservatório de pulsão independente dos objetos e que faz parte do
psiquismo, será comentada adiante. Essa sugestão, contudo, não poderá
prescindir do conceito de self, como um lugar onde se encontram os objetos
que são objetos para o sujeito, contudo não compõem sua rede psíquica, tal
como os ‘elementos-beta’ de Bion, por exemplo.
Também segundo Marea (1994) não há em Freud um tratamento unificado do
conceito de objeto, que se apresenta na obra de Freud de pelo menos cinco
modos diferentes: 1) o objeto da percepção, 2) o objeto da pulsão, 3) o
narcisismo - o ego como objeto da pulsão, 4) os objetos de amor e os de
identificação e 5) os objeto internos que se relacionam com a formação das
instâncias psíquicas. Marea aponta como já no Projeto(1895) coexistem dois
tratamentos diferentes para o tema o objeto, um relacionado à experiência de
satisfação, onde o objeto é tratado de modo mais econômico, e outro
relacionado ao complexo do semelhante onde o objeto é tratado numa visão
mais estrutural (eu até diria tópica, para contrapor ao econômico). Contudo,
como Marea (1994, p.4, grifos meus) mesmo esclarece estes dois tratamentos
estão relacionados: “o objeto da vivência de satisfação é uma estrutura
corporal e representacional. O objeto do complexo do semelhante também o
é, mas pelos caminhos que percorre dentro do sujeito converte-se, em maior
medida, em objeto estruturante do intra e intersubjetivo”. Ou seja, na medida
em que esses dois níveis estão geneticamente articulados podemos sustentar a
idéia de que os objetos presentes nos dois níveis também estejam articulados.
Adiante Maera (1994, p.15) conclui “à medida que se faz a análise dos textos
freudianos surge a impressão de que em toda relação com o objeto coexistem
dois níveis: em um, o sujeito vincula-se com o objeto por um propósito
particular; no outro, a relação implica numa função estruturante. Seguindo a
essa distinção propostas por Baranger, diria que a primeira é uma relação de
objeto e a outra uma relação intersubjetiva”. Aqui, novamente, na medida em
que estes dois níveis se instalam a partir das mesmas experiências, ou seja,
estão geneticamente articulados, podemos supor que o objeto de um nível se
apresenta no outro de algum modo.
De acordo com Greenberg & Mitchell (1994) o primeiro desenvolvimento da
teoria psicanalítica foi construído em torno do conceito de pulsão, embora
Freud não desconsiderasse a importância das relações interpessoais, o estudo
das pulsões era mais importante e urgente. Porém, ainda segundo esses
autores, a primeira teoria pulsional se mostrou insuficiente quando Freud
passou a se interessar pelo estudo das relações do ego com o mundo externo,
fazendo então uso de uma estratégia que esses autores denominam de
‘acomodação’, Freud ampliou seu modelo conceitual original para acomodar
as relações de objeto, contudo, as relações com os outros seriam sempre
compreendidas em termos pulsionais, onde o objeto é, sobretudo, objeto da
pulsão. Uma outra estratégia possível para lidar com a necessidade de atenção
às relações de objeto, muito mais radical, é a de substituir o modelo pulsional
por outro, onde as relações com os outros estão no centro da construção da
vida mental, este é segundo esses autores o caminho seguido pelos teóricos
das Relações de Objeto.
A tese de Greenberg & Mitchell (1994) sobre a primazia da pulsão na
constituição do psiquismo em Freud e sobre a inclusão das relações de objeto
como apenas uma estratégia de acomodação é importante para que esses
autores possam contrapor a esse movimento de Freud o movimento dos
teóricos das relações objetais, objeto de seu estudo. Contudo, os argumentos
desses autores não resistem a um exame mais detido. Uma análise de textos
mais
iniciais
da
obra
de
Freud,
tais
como a
Interpretação
das
Afasias (1891) Projeto para uma Psicologia Científica (1895), revelam que o
objeto já era pensado desde dali como fundamental para a constituição do
psiquismo. Embora seja inegável que esse conceito foi mais profundamente
explorado de fato a partir de Luto e Melancolia (1917).
O objeto, no texto A Interpretação das Afasias (1891), pode tanto ser um
objeto externo e real como um conceito abstrato. As percepções desses objetos
são impressões que vão formar as associações de objeto que só formarão a
representação-objeto no momento em que essa se ligar a uma representaçãopalavra; e é só nesse segundo momento que essas impressões adquirem um
significado. Desse modo, para Freud (1891) o significado não está no objeto,
nem nas imagens mnêmicas, está na articulação entre a representação-objeto e
a representação-palavra. Enquanto a representação-palavra é um complexo
representativo fechado, a representação-objeto é um complexo aberto formado
por múltiplas associações de objeto, onde a representação-palavra se liga à
representação-objeto
somente
pela
imagem
acústica.
Assim,
nas Afasias (1891) encontramos um modelo de como os objetos da percepção
se organizam para formar a linguagem; não se menciona ainda a idéia de
pulsão. Essas idéias corroboram com a hipótese de que o objeto psíquico é o
objeto representado; e os objetos não-representados (e também os
irrepresentáveis) poderiam ser objetos para o sujeito, localizados no self, e não
serem propriamente objetos psíquicos.
No Projeto (1895) a idéia de um aparelho psíquico constituído a partir da
representação das percepções dos objetos é mantida, contudo já se leva em
consideração a idéia de algo muito próximo da pulsão que é denominada nesse
momento de Qη ou de estímulos endógenos, que são provocados por
necessidades internas do organismo, ou pela urgência da vida (Not Des
Lebens). Esses estímulos têm importância fundamental na constituição do
aparelho psíquico, serão o seu motor. O objeto no Projeto (1895) é o objeto da
realidade externa que proporciona descarga e cria facilitações, ou a memória
em ψ. O objeto se transforma uma representação-lembrança, que através do
pensamento e de uma ação específica vai ser equalizada com uma
representação-percepção, para que novas descargas ocorram. O objeto
alucinado é um índice de satisfação, mas não satisfaz. Os processos de
satisfação dos estímulos endógenos (pulsões) que criam o aparelho psíquico
exigem um objeto externo. Mas é bom lembrar que se trata de um objeto
externo ao psiquismo, mas não necessariamente externo ao sujeito, pode ser
seu próprio corpo, como no auto-erotismo, como pode ser sua própria voz, ou
seja, é um objeto real, mas não necessariamente papável. O objeto da fantasia
será constituído num segundo momento a partir dos objetos reais alucinados e
de suas associações de objeto.
Assim como a segunda tópica, a segunda teoria pulsional, ou ainda a segunda
teoria da angustia não invalidam e sim suplementam suas primeiras versões,
porque teríamos que pensar que a consideração das relações de objeto produz
um enxerto da teoria da constituição do psiquismo e não seja simplesmente o
resultado de uma ampliação dos interesses de Freud que desenvolve outros
pontos da teoria? Segundo Greenberg & Mitchell (1994) Freud passa a se
interessar pelas relações de objeto, pois se interessa mais pelo ego e por suas
relações. Mas porque isso ocorre? Segundo o próprio Freud na História do
Movimento Psicanalítico (1914), ao longo de seus estudos seu interesse
passou do conteúdo reprimido para as forças repressoras, e é nesse contexto
que Freud passa a se interessar pelo ego e por suas relações. Desse modo, me
parece que quando Freud passou a falar mais do objeto ele não estava
introduzindo um elemento novo, mas está apenas olhando mais detidamente
um elemento que já estava lá em sua relação com o reprimido e que vai ser
visto por outro ângulo para esclarecer pontos relativos à teoria das forças
repressoras.
Como nos lembra Coelho Junior (2002) nas escolhas anaclíticas do objeto de
amor esse é escolhido com base nas primeiras relações objetais, ou seja, a
escolha do objeto de amor está baseada nas primeiras experiências de
satisfação pulsional, onde a satisfação sexual nasce apoiada na satisfação da
necessidade e nesse sentido Freud afirma nos Três Ensaios (1905) que
encontrar um objeto é na realidade reencontra-lo. Contudo, ainda segundo
esse autor, “os estímulos, ou se quisermos, os ‘convites’ que partem do mundo
externo serão sempre secundários nessa concepção. Não há aqui nenhum
poder de constituição do sujeito atribuído aos objetos enquanto fonte
primária. A fonte primaria das ações e escolhas será sempre algo ‘interno’ ao
próprio sujeito, ou melhor, ao próprio movimento pulsional (...) é só a partir
do momento que Freud passa a valorizar os objetos de identificação, que esse
modelo poderá ser modificado” (Coelho Junior, 2002, p.16). O que de certo
modo corrobora com a idéia de Greeberg & Mitchell (1994, p.30) de
que “uma vez que no modelo pulsional o objeto é uma criação da pulsão as
relações objetais permanecem uma função da pulsão”. Porém, se o objeto de
instala por apoio porque dizer que ele é uma criação da pulsão? O objeto
parece assim muito mais uma criação da experiência de satisfação da
necessidade na qual a pulsão veio apoiada e encontrando, também, satisfação
marca o objeto dessa experiência como seu objeto; e desse modo as relações
objetais seriam muito mais uma criação das contingências ambientais (ou
objetais) das experiências de satisfação primárias, do que uma criação da
pulsão.
Coelho Junior (2002, p.19) afirma que na medida em que Freud avança em
suas reflexões o ego vai ser compreendido como um precipitado de
identificações e a constituição psíquica concebida como um processo de
sucessivas identificações, de onde esse autor aponta que, a partir do conceito
de identificação: “o sujeito criaria seu objeto, da mesma forma que o objeto
criaria o sujeito através de sucessivas relações (...) não há anterioridade
entre sujeito e objeto e também não há mais termos fixos, já constituídos. O
que há é um processo de mutua constituição. Essas são as exigências
reflexivas que as propostas freudianas sobre a identificação acabam por nos
colocar. Nenhuma dessas idéias está explicitada na obra freudiana”. Coelho
Junior (2002) sustenta assim que com a introdução do conceito de
identificação a relação entre pulsão e objeto na obra de Freud será de
suplementariedade. “Não penso que haja anterioridade das pulsões com
relação aos objetos de identificação, como tampouco me parece possível dizer
que os objetos antecedam os movimentos pulsionais. Seria necessário
reconhecer em Freud uma lógica não-identitária, uma lógica da
suplementariedade para dar a essa concepção sua formulação mais
rigorosa” (Coelho Junior, 2002, p.23). Porém, me pergunto se não será
possível evidenciar essa suplementariedade desde o início da obra, mesmo
antes da identificação, ao considerarmos que a representação-objeto é o
substrato
do
aparelho
psíquico
exposto
nas Afasias (1891)
e
no Projeto (1985), como foi visto acima, antes ainda do objeto ser o objeto da
pulsão nos Três Ensaios (1905), onde o objeto também será amplamente
valorizado, e antes mesmo da sistematização do conceito de pulsão
em Instinto e suas Vicissitudes (1915) onde o objeto será finalmente parte
integrante da pulsão.
Também não é pouco importante observar que no texto Dois Princípios do
Funcionamento Mental (1911) Freud introduz funções tais como o teste de
realidade, que permite o adiamento da descarga até que o objeto esteja de fato
presente. Alias essa já era uma preocupação do Freud no Projeto (1895), que
se utiliza da noção de período para explicar como o aparelho psíquico pode
diferenciar o objeto alucinado do objeto percebido, a fim de não realizar a
descarga na ausência do objeto. A importância disso é pensar que não apenas
a realidade é sempre presente em Freud, mas o objeto externo e real também,
e que esse objeto pode ser ora o outro, ora um traço do outro, ora um objeto
concreto, ora uma idéia abstrata; e que o objeto da fantasia não passa de uma
derivação desse objeto através das repetidas experiências de satisfação
pulsional.
Ainda sobre a participação das pulsões e dos objetos na formação das
instâncias psíquica, temos que Laplanche e Pontalis (1967) afirmam em
seu Vocabulário que o pensamento freudiano nos leva a separar o objeto
pulsional do objeto de amor e fundamentam sua idéia numa afirmação de
Freud que diz que “os termos amor e ódio não devem ser utilizados para as
relações das pulsões com os seus objetos, mas preservados para as relações
do ego total com os seus objetos” (Freud, 1915, p.159). Ou seja, o objeto de
amor é um objeto para o ego, e não para a pulsão; como não? Se um objeto é
objeto para o ego, ele só o é porque foi um dia objeto para as pulsões do ego;
ou como um objeto se transforma num objeto para o ego sem um dia ter sido
objeto pulsional? No processo de identificação que resulta na formação do
superego, o ego quer se amoldar ao seu ideal de ego para satisfazer tanto o
superego quando ao id, satisfazer como senão pulsionalmente? Como se pode
conceber uma relação de objeto que não seja animada pulsionalmente?
Até o momento não parece haver nada nos leve a abandonar a idéia de que,
embora Freud não tenha dado um tratamento unificado às suas concepções de
objeto, há entre eles relações muito precisas - precisas nos dois sentidos – pois
clinicamente é muito frutífera a idéia de que mexendo num nível eu mexemos
no outro, ou que falhando num nível falhamos no outro, que constituindo um
objeto estaremos constituindo outros.
Dessa forma, continuamos a apostar na idéia exposta no início do texto de que
os objetos só passam a fazer parte do psiquismo quando são representados, e
que as representações formam diferentes tipos de constelação onde os objetos
representados podem assumir diferentes funções, tais como objeto da pulsão
ou objeto de identificação; como átomos que a depender do tipo de ligação
entre eles formam um ou outro elemento, ou como células do corpo que são
potencialmente idênticas, porém a depender da sua localização (tópica) fazem
essa ou aquela função.
Embora essa idéia questione um pouco a literatura discutida nesse texto eu
não diria que essa é uma idéia completamente contrária à metapsicologia, nem
mesmo completamente inovadora, pois parece ser com base numa visão como
essa que Green (1990, p.55) consegue articular o modelo exposto
no Projeto de Freud (1895) com a primeira e a segunda tópica, apresentando
essa articulação num mesmo esquema gráfico. Infelizmente não há espaço
nesse texto para a apresentação das idéias de Green, contudo esse autor nos
inspira afirmar que a articulação dos diferentes objetos da metapsicologia
Freudiana é fundamental para a articulação entre as diferentes partes da
própria metapsicologia.
A partir da segunda tópica, quando as pulsões encontram no id seu principal
reservatório, podemos afirmar que as pulsões, independentemente de qualquer
objeto, estão incluídas no aparelho psíquico, o que contradiz minha hipótese
de que a pulsão não representada (através da experiência de satisfação no
encontro com um objeto) não faz parte do psiquismo - sendo tão somente um
estímulo endógeno em busca de satisfação. Porém, se a pulsão é um conceito
que está na fronteira entre o somático e o psíquico, porque não pensar que o id
também está na fronteira do psiquismo, que não está nem dentro nem fora o
aparelho psíquico? Pensamos que essa idéia poderia corroborar com a
afirmação que a instauração do psiquismo depende o encontro da pulsão com
o objeto sem desprezar a lógica das idéias freudianas.
Se aceitarmos a teoria do apoio proposta por Freud (1905) onde a pulsão
sexual se inscreve apoiada numa pulsão de auto-preservação que tem seu
objeto pré-definido, o leite, por exemplo; se aceitamos que a pulsão sexual se
inscreve quando há um plus de prazer na satisfação da necessidade, temos que
admitir que a pulsão sexual se inscreve ao mesmo tempo que seu objeto, que
não será o leite sozinho, e sim aquilo tudo associado ao plus de prazer, o seio,
a boca, o cheiro, os sons. Dessa forma, os objetos da percepção dependem do
enlace pulsional para entrar no psiquismo; registramdo-se no psiquismo
através de associação de objeto que formam representações-objeto, que
formarão as representações-palavra. Entretanto, podemos então imaginar que
um dos problemas causados pelos objetos totais, a mãe, por exemplo, é que
ela contém muito mais do que objetos pulsionais parciais (o leite, etc); esses
objetos que não são objeto pulsionais para aquele indivíduo podem representar
um excesso de estímulo que não pode ser ligado pelo psiquismo; ou que ao
menos demora um certo tempo até que seja ligado. Essas idéias nos colocam
mais um problema que pode ser resolvido com o conceito de self, como aquilo
que engloba todo o sujeito, onde o psiquismo é apenas uma parte organizada
do self com vistas à metabolizar os estímulos pulsionais, tal como nos propõe
Freud, como também os estímulos objetais, tal como nos sugere Green.
Objetos não-metabolizados ou não inegrados ao psiquismo, tais como os
‘elementos-beta’ descritos por Bion, fazem parte do self, deixam suas marcas,
mas não pertencem, ao menos por hora, ao psiquismo.
A não-metabolização de um objeto, sua não inscrição psíquica, ou sua
irrepresentabilidade, pode ser estrutural: aquela que funda da diferença
psíquico/não-psiquico, bem como pode ser circunstancial e reversível, estando
relacionada à falta completa do objeto de satisfação pulsional, bem como ao
seu excesso de presença, pensando que a inscrição da representação psíquica
se dá no jogo presença-ausência dentro das experiências de satisfação
pulsional.
Casos-Limite: de que objeto se trata? Finalmente estamos chegando perto
dele. Se todos os objetos estão interligados o objeto-limite pode ser qualquer
um deles? Não. Pensamos que essa interligação se dá uma cadeia onde o
objeto pode ir e vir entre representação de objeto, objeto pulsional, objeto de
amor, objeto de identificação. Contudo, só há uma porta de entrada para essa
cadeia, que se localiza na passagem do objeto externo (ao psiquismo) para a
representação-objeto através de uma experiência de satisfação pulsional. É
através dessa experiência que o objeto adquire seu bilhete de entrada para o
psiquismo, aonde vai então operar como objeto de amor/ódio ou de
identificação, a depender de que forma estiver se relacionando com o ego, sem
perder de vista que esse relacionamento é sempre animado pela pulsão. O
objeto-limite, o objeto que está na origem da angustia (de intrusão e perda)
para os ditos pacientes-limite, são aqueles objetos que estão na borda do
psiquismo, que não estão nem lá, do lado dos elementos-beta, por exemplo,
nem cá, do lado do psiquismo, são objetos que só muito precariamente
funcionam como estruturantes do psiquismo, e diante dos quais os pacienteslimite vivem as constantes ameaças de intrusão e perda.
Mas esse é apenas um breve esboço de idéias ainda em constituição que estão
em relação com a hipótese mais frutífera dessa comunicação, que diz respeito
ao intimo relacionamento entre os diferentes objetos: clinicamente frutífera,
pois a falha em um explica a falha no outro, assim como o trabalho com um
resulta em trabalho com outro. Pensar que o objeto de identificação possa ser
uma constelação mais complexa de representações-objeto é útil para pensar
que as falhas identificatórias ou falhas na representação do próprio corpo, que
aparecem em alguns dos casos-limite, têm relação com falhas representaçãoobjeto, ou ainda, com falhas no aparelho psíquico (representacional).
(apoio FAPESP)
Referências Bibliográficas:
Baranger, Willy (1994) Conclusões e problemas a respeito do objeto, in: Contribuições ao
Conceito de Objeto em Psicanálise, Willy Baranger (coord.), Gisele Groeminga de
Almeida (trad.), São Paulo: Casa do Psicólogo.
Coelho Junior, Nelson (2002) Variações do lugar do objeto na psicanálise freudiana, in: Simão,
Livia M., Souza, Maria Thereza C. C & Coelho Junior, Nelson, Noções de Objeto,
concepção de sujeito: Freud, Piaget e Boesch, São Paulo: Casa do Psicólogo.
Freud, Sigmund (1891[1977]) A Interpretação das Afasias: um estudo crítico, trad. Antonio
Pinto Ribeiro, Lisboa: Edições 70.
Freud, Sigmund (1895[1989]) Projeto para uma Psicologia Científica, in: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Imago: Rio de Janeiro.
_________ (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
_________ (1911) Dois princípios do funcionamento mental,
_________ (1912) Tipos de desencadeamento de neuroses,
_________ (1914) História do Movimento Psicanalítico,
_________ (1914) Narcisismo: uma introdução,
_________ (1915) Instintos e suas Vicissitudes,
Green, André (1990) Conferencias Brasileiras de André Green: metapsicologia dos limites, trad.
Helena Besserman Vianna, Rio de Janeiro: Imago.
Greenberg, Jay & Mitchell (1994), Relações Objetais na Teoria Psicanalítica, trad. Emilia de
Oliveira Diehl, Porto Alegre: Artes Médicas.
Marea, E. César (1994) Os conceitos de objeto na obra de Freud, in: Contribuições ao Conceito
de Objeto em Psicanálise, Willy Baranger (coord.), Gisele Groeminga de Almeida
(trad.), São Paulo: Casa do Psicólogo.
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