As (re)construções estratégicas da ideia de uma economia social
Sílvia Ferreira
Departamento de Sociologia, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
O conceito de economia social pertence ao conjunto de conceitos que apontam para
outras economias, como contraponto à ideia de que existe um só tipo de relações
económicas (para outras, ver Cattani et al., 2009). Indica um conjunto de relações
sociais de produção ou troca, organizações, racionalidades e princípios de acção nos
quais predomina a actividade económica que não tem como objectivo principal o lucro
mas, sim, o benefício de um grupo social ou da sociedade (utilidade social), em que se
valoriza a cooperação e o colectivo, e não a concorrência e o individualismo, se
incorporam princípios de participação, bem como o princípio democrático de uma
pessoa, um voto, e onde o poder de decisão não depende da quota de capital detido. Em
termos societais, a economia social propõe a democracia económica, a igualdade e a
solidariedade como princípios organizadores das relações económicas na sociedade.
Muitos outros conceitos, com nuances particulares, maior ênfase em alguns aspectos e
menor em outros, que dependem dos contextos sociais específicos ou das teorias sociais
subjacentes, tendem a descrever relações idênticas, como, por exemplo, o de terceiro
sector, empresas sociais ou economia solidária. Os conceitos de empresas sociais e de
economia solidária, por exemplo, procuram assinalar formas descritas como inovadoras,
inclusivamente em relação à economia social tradicional, por incluírem formas
organizativas (p. ex.: cooperativas de solidariedade social) ou actividades novas (p. ex.:
ambiente, cultura), práticas de gestão novas (p. ex.: participação dos utilizadores na
gestão, co-produção de serviços) e novas fronteiras e misturas entre racionalidades mais
típicas das organizações públicas ou das empresas, dos profissionais e dos leigos.
Na crise económica e social actual presta-se uma nova atenção a conceitos e teorias que
em tempos normais são remetidos para um lugar periférico. São questionados os
pressupostos estabelecidos acerca do funcionamento da economia e da sociedade.
O conceito de economia social e o de economia solidária e o pensamento subjacente a
estes conceitos regressam por razões que não se prendem apenas com a crise das
explicações monocausais e a busca por modelos explicativos e de política diferentes,
mas também porque propõem soluções para a crise económica e social que se
aprofunda. Mas não são só os conceitos que regressam. São também as práticas
concretas, as inovações sociais que emergem como resposta a condições concretas.
É possível fazer uma periodização dos regressos da ideia de economia social associados
a momentos de transformação social, em particular nos países onde estas
transformações foram mais profundas. O primeiro surgimento do conceito de economia
social dá-se no contexto da revolução industrial e dos movimentos operários e sociais
que reflectiam uma nova sociedade. O segundo momento de emergência do conceito de
economia social, para o qual os pensadores recuperam as ideias formuladas no primeiro
momento, é em finais da década de 1960, correspondente à crise do Estado-Providência,
provocada não só pela crise económica mas – e num primeiro momento – pela crítica ao
carácter burocrático, opressivo, machista e produtivista do Estado-Providência
formulada pelos novos movimentos sociais.
Cedo, porém, o que eram as preocupações por uma sociedade menos centrada no
modelo produtivista e a aspiração por novas relações no trabalho, como as de coprodução, e o experimentalismo encetado dentro do próprio Estado-Providência cedem
lugar à preocupação com o desemprego, sobretudo na Europa, e as políticas de Estado
mínimo, sobretudo no mundo anglo-saxónico. A economia social torna-se uma das
soluções para a crise do emprego e calcula-se a importância deste sector contabilizando
o número de trabalhadores e voluntários das suas organizações (como ainda hoje se faz).
Esta versão da economia social afirma-se sobretudo na Europa mas também é formulada
por pensadores americanos como Rifkin, nos anos 1990. Um conceito paralelo, que
emerge simultaneamente nos EUA e em França, sobretudo nos anos 1980, é o de
terceiro sector, como esfera de organizações entre o Estado e o mercado, e sofre
também o impacto ideológico da emergência dos movimentos sociais e da preocupação
de fazer melhor o que o Estado não faz ou faz pouco. Nos países que seguiram mais de
perto o modelo de Estado mínimo, o terceiro sector foi usado como um bom argumento
dos governos para a redução do papel do Estado em nome do aumento da capacidade da
sociedade para resolver os seus próprios problemas. A ideia de diferença e oposição em
relação ao Estado ajudou a promover esta ideia e ocultou as interdependências e a coevolução entre os serviços públicos e os do terceiro sector. O conceito de economia
social recusou esta separação e enfatizou as relações de cooperação entre o Estado e as
organizações da economia social, mas afirmou as separações em relação às
organizações lucrativas, também descritas como sendo da economia capitalista, ou
obscurecendo também as interdependências neste campo.
É que estes conceitos, mais do que descritivos, devem ser vistos como estratégicos pois
correspondem a um objectivo de afirmar um conjunto de organizações e actores sociais
como pertencendo a um campo institucional, a um sector, ou a um conjunto específico
de relações sociais. Tornam-se, assim, actores sociais actuando para se protegerem em
relação ao avanço de determinado tipo de racionalidade (em especial mercantil ou
burocrática) ou reivindicando um espaço próprio e um campo de acção crescente como
alternativa ou complemento das relações sociais típicas dos outros sectores. Estas
estratégias poderão também mudar em momentos e contextos históricos específicos. No
momento actual parecemos estar perante uma actuação pró-activa que, para além da
emergência concreta de inovações sociais, aproveita o espaço deixado pela quebra da
hegemonia do modelo de racionalidade económica do pensamento neoliberal.
As condições são favoráveis, pois este sector da economia social, ou terceiro sector, tem
vindo a construir a sua institucionalização desde os anos 1990. Em torno destes
conceitos há actualmente organizações federativas e confederações, departamentos
governamentais, até secretarias de Estado, pensadores, académicos, revistas
internacionais, associações de investigadores, disciplinas e cursos.
Como se coloca a economia social em Portugal ou o terceiro sector português neste
panorama? Basicamente numa enorme heterogeneidade e fragmentação. Apesar de
existir um conjunto importante de organizações que podemos facilmente classificar
como sendo da economia social ou do terceiro sector, como as mutualidades, as
cooperativas, as associações e as fundações, quase não existe, senão na Constituição da
República, e sobretudo entre os académicos, a ideia de um sector único. Falta uma
organização confederadora que fale em nome do sector, falta um interlocutor
governamental, falta legislação geral, faltam estudos gerais que contabilizem e
caracterizem um sector, falta o consenso acerca de um interesse comum ou uma
identidade mínima comum, etc. As organizações encontram-se fragmentadas em redes
sectoriais ou mesmo subsectoriais, em múltiplas identidades e discursos, e ignoram-se
mutuamente. Mas se não existe esse actor estratégico existe o campo que ele povoa. Um
estudo recente identificou um total de 210 mil empregos remunerados em cooperativas,
mutualidades e associações em Portugal, representando 4,4% do total do emprego
remunerado e 5,5% do emprego assalariado. Trata-se de um valor ainda relativamente
baixo quando comparado com a média da Europa dos 15 (6,4% do emprego remunerado
e 7% do emprego assalariado), ainda que superior ao de 10 dos novos membros (3,2%
do emprego remunerado e 4,3% do emprego assalariado. Em termos dos subsectores,
verifica-se que o emprego nas cooperativas representa cerca de um quarto do emprego
total na economia social, sendo o restante sobretudo nas associações, mas também nas
misericórdias e nas mutualidades (Chaves Ávila e Monzon Campos: 2008). Destas, é
inegável o peso das organizações que prestam serviços sociais de carácter semipúblico,
de tal modo que, quando se fala em terceiro sector em Portugal, a leitura geral tende a
reduzir este às Instituições Particulares de Solidariedade Social. E no entanto existem
subsectores tão importantes como os bombeiros voluntários, as organizações de
desenvolvimento local, as associações de cultura e recreio, para mencionar apenas
algumas.
O que explica esta situação em Portugal? Muitas razões, entre as quais o facto de não
termos sofrido, ou apenas lentamente (e por vezes mimeticamente), processos de
transformação idênticos aos de muitos países de onde provêm os modelos de economia
social. Em segundo lugar, a estrutura do Estado e da sociedade em Portugal, marcada
por elementos fortes de pré-modernidade, de onde se evidencia uma maior mistura entre
as esferas do Estado, da economia e da sociedade do que aquelas que são típicas dos
países industrializados, um semi-Estado Providência que se desenvolveu com condições
e temporalidade diferentes da maioria dos Estados-Providência na Europa, aliado a um
certo grau de corporativismo onde o Estado, selecciona os parceiros privilegiados com
os quais partilha a governação, um forte paternalismo nas relações sociais que atravessa
a relação entre o Estado e o cidadão, desde a fraca autonomia da sociedade civil até às
relações particularistas que se desenvolvem entre políticos ou profissionais que
desempenham tarefas públicas ou em nome do Estado e os cidadãos.
Mas também pode acontecer que em Portugal não tenha existido capacidade de
construir estrategicamente essa identidade da economia social tendo em conta as
particularidades da sociedade portuguesa e que nos preocupemos demasiado em
identificar, no tecido organizativo português, traços de organizações que se
desenvolveram em outras sociedades. Por exemplo, onde poderemos encontrar as
fronteiras ou as misturas entre as economias populares e a economia social?
Além disso, actualmente já não faz sentido a delimitação rigorosa de fronteiras,
nomeadamente para perceber o significado da economia social, podendo ser que o
mesmo se passe em Portugal. Estamos num contexto global onde se verificam misturas
no que antes eram considerados sectores estanques do Estado e do mercado. As técnicas
de gestão das empresas penetram no sistema público e das organizações da economia
solidária, o interesse público é colocado como pressuposto de algumas parcerias entre
Estado e empresas, as próprias empresas são chamadas a prestar contas à sociedade em
geral e desenvolvem práticas de responsabilidade social. Por isso, se estrategicamente é
importante continuar a identificar um conjunto de práticas e ideias específicas nas
organizações da economia social, também se torna importante dar conta da crescente
hibridização nas sociedades. A economia social tem de se reconstruir à medida em que
também o seu “outro” se encontra em reconstrução. A grande transformação
contemporânea parece passar por aí. Assim, torna-se mais importante refinar os
instrumentos analíticos para identificar as misturas que potenciam as ideias que são
defendidas pelo campo institucional da economia social – desde as organizações aos
académicos – e os objectivos com que são constituídas as organizações. Se durante o
período de constituição e consolidação estratégica da economia social foi necessário
afirmar fronteiras, torna-se agora estratégico afirmar as misturas virtuosas e a
capacidade de contágio dessas misturas, ultrapassando as fronteiras que cada vez menos
descrevem o mundo adequadamente.
Bibliografia
ÁVILA, Rafael Chaves; José Luis Monzón Campos — La economía social en la Unión
Europea, Bruxelas/Comité Económico y Social Europeo, 2008.
CATTANI, Antonio D., Jean-Louis Laville, Luiz I. Gaiger, Pedro Hespanha (orgs.) —
Dicionário Internacional da Outra Economia, Coimbra: Almedina, 2009.
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