A IDEIA DE JUSTIÇA 1 2 A IDEIA DE JUSTIÇA A IDEIA DE JUSTIÇA AMARTYA SEN A Ideia de Justiça 3 4 A IDEIA DE JUSTIÇA A IDEIA DE JUSTIÇA AUTOR AMARTYA SEN TÍTULO ORIGINAL The Idea of Justice Copyright © 2009 by Amartya Sen First published by Penguin Press an imprint of Penguin Books Ltd, 2009 TRADUÇÃO Nuno Castello-Branco Bastos REVISÃO Madalena Requixa EDITOR EDIÇÕES ALMEDINA. SA Av. Fernão Magalhães, n.º 584, 5.º Andar 3000-174 Coimbra Tel.: 239 851 904 Fax: 239 851 901 www.almedina.net [email protected] DESIGN DE CAPA FBA. PRÉ-IMPRESSÃO | IMPRESSÃO | ACABAMENTO G.C. GRÁFICA DE COIMBRA, LDA. Palheira – Assafarge 3001-453 Coimbra [email protected] Outubro, 2010 DEPÓSITO LEGAL 317468/10 Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es). Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infractor. Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação SEN, Amartya, 1933A ideia de justiça ISBN 978-972-40-4324-1 CDU 330 340 304 A IDEIA DE JUSTIÇA Em memória de JOHN RAWLS 5 6 A IDEIA DE JUSTIÇA A IDEIA DE JUSTIÇA ÍNDICE Prefácio 9 Agradecimentos 25 Introdução – Uma Perspectiva da Justiça 35 PARTE I As Exigências da Justiça 1. Razão e Objectividade 71 2. Rawls e para lá de Rawls 97 3. Instituições e Pessoas 125 4. Voz e Escolha Social 141 5. Imparcialidade e Objectividade 173 6. Imparcialidade Fechada e Aberta 185 PARTE II Formas de Racionalidade 7. Posição, Relevância e Ilusão 223 8. A Racionalidade e os Outros 247 9. A Pluralidade das Razões Imparciais 273 10. Realizações, Consequências e Agência 291 PARTE III Os Materiais da Justiça 11. Vidas, Liberdades e Capacidades 311 12. Capacidades e Recursos 345 13. Felicidade, Bem-Estar e Capacidades 365 14. Igualdade e Liberdade 391 7 8 A IDEIA DE JUSTIÇA PARTE IV Argumentação Pública e Democracia 15. A Democracia como Racionalidade Pública 425 16. A Prática da Democracia 447 17. Direitos Humanos e Imperativos Globais 469 18. A Justiça e o Mundo 509 Notas 543 Índice Onomástico 571 Índice de Matérias 581 A IDEIA DE JUSTIÇA PREFÁCIO «No pequeno mundo em que as crianças vivem a sua existência», diz Pip no livro Grandes Esperanças, de Charles Dickens, “nada há que seja mais finamente percebido e sentido do que a injustiça»1. Quer-me realmente parecer que Pip tem toda a razão: depois do seu encontro humilhante com Estella, acorreu-lhe vivíssima a memória de como, enquanto criança, ele fora alvo de uma «coacção caprichosa e violenta» às mãos da sua própria irmã. Mas esta aguda percepção da injustiça evidente é algo que também acontece nos seres humanos adultos. O que nos toca, e é razoável que o faça, não é o darmo-nos conta de que o mundo fica aquém de um estado de completa justiça – coisa de que poucos têm esperança –, mas o facto de que, à nossa volta, existam injustiças manifestamente remediáveis e que temos vontade de eliminar. Na nossa vida do dia-a-dia, isto torna-se muito claro diante de iniquidades ou subjugações de que possamos ser alvo e das quais tenhamos boas razões para nos podermos ressentir; mas é algo que também verificamos quando procedemos a um mais amplo diagnóstico da injustiça que se pode encontrar nesse mundo mais vasto em que todos vivemos. Parece razoável admitir que nem os parisienses teriam invadido a Bastilha, nem Gandhi teria desafiado esse império em que o sol não se punha, nem Martin Luther King teria combatido a supremacia branca nessa land of the free and the home of the bravent, se não fosse a sua percepção da existência de injustiças evidentes que podiam ser vencidas. Não se tratava para eles de tentar conseguir um mundo perfeitamente justo (ainda que, em qualquer dos casos, tenha chegado a haver um qualquer acordo sobre como nt Nota do tradutor. Extraído do hino dos Estados Unidos da América: «país dos homens livres e terra dos bravos». 9 10 A IDEIA DE JUSTIÇA deveria ser um tal mundo), mas, o que, isso sim, já queriam era remover as injustiças evidentes na medida do que lhes fosse possível. A identificação da injustiça superável não é somente aquilo que nos leva a reflectir sobre a justiça e a injustiça, é, a mais disso, algo de central para a teoria da justiça, e é esse um ponto que pretendo demonstrar neste livro. Na investigação que aqui apresentamos, o diagnóstico da injustiça aparecerá amiúde como ponto de partida para discussões críticas2. Todavia – é o que logo nos podemos perguntar – se este é um ponto de partida razoável, porque não poderá ser também um bom ponto de chegada? Que necessidade há de ir para além do nosso sentido de justiça e injustiça? Porquê a necessidade de possuirmos uma teoria da justiça? Entender o mundo é sempre muito mais do que apenas registar as nossas percepções imediatas. Entender implica iniludivelmente uma acção discursiva, um raciocínio. Temos de “ler” o que sentimos e o que temos a impressão de ver, e, depois, perguntar o que é que indicam tais percepções e como haveremos de as ter na devida conta sem, ao mesmo tempo, sermos por elas sobrepujados ou arrebatados. Uma destas questões relaciona-se com a fiabilidade das nossas sensações ou impressões. Um sentimento ou sentido de justiça poderia funcionar como um sinal que nos move, mas um sinal exige sempre um exame crítico, e toda a conclusão que se baseie sobretudo em sinais há-de pedir um determinado grau de escrutínio relativamente à respectiva solidez. Adam Smith tinha a convicção da importância dos sentimentos morais, mas nem por isso se viu impedido de procurar uma “teoria dos sentimentos morais” nem de insistir em que o sentimento de uma conduta errónea devesse ser examinado criticamente por meio de um escrutínio discursivo, a fim de se descobrir se poderia vir a ser a base de uma condenação sustentável. E uma semelhante necessidade de escrutínio também se aplicará aos casos em que o que sintamos é uma inclinação que nos move a louvar uma pessoa ou uma coisa*. * O clássico de Adam Smith, Teoria dos Sentimentos Morais, foi publicado há exactamente 250 anos, em 1759, e a sua última edição revista – a sexta – em 1790. Na introdução à edição comemorativa do aniversário de A Teoria dos Sentimentos Morais (Nova Iorque, Penguin Books, 2009), tive a oportunidade de discutir a natureza do comprometimento moral e político de Adam Smith e o modo como ele continua a ser relevante no mundo contemporâneo. PREFÁCIO Temos também de nos perguntar que tipos de raciocínio deverão ser adoptados quando quisermos avaliar conceitos éticos e políticos como os de justiça e injustiça. De que maneira poderão ser objectivos um diagnóstico da injustiça ou a identificação de tudo aquilo que a possa reduzir ou eliminar? Será que isso exigirá um particular tipo de imparcialidade, como, por exemplo, o desapego dos próprios interesses já adquiridos? Será que isso exigirá também um reexame de certas atitudes, mesmo que estas não sejam relativas a interesses já adquiridos, reflectindo porém alguns pré-juízos ou preconceitos locais, sendo que estes poderão não conseguir sobreviver ao confronto argumentado com outras atitudes que já não se vejam restringidas pelo mesmo tipo de “paroquialismo” (parochialismnt)? Que papel hão-de desempenhar a racionalidade e a razoabilidade no processo que nos leva a entender as exigências da justiça? Estas preocupações e também algumas outras questões de carácter geral serão vistas nos primeiros dez capítulos, após o que tratarei de passar para temas de tipo aplicativo envolvendo uma avaliação crítica dos fundamentos que servem de base aos juízos sobre a justiça (sejam aqueles liberdades, capacidades, recursos, a felicidade, o bem-estar ou outros), a especial relevância de certos considerandos que figurarão sob o título geral de igualdade e liberdade, mas ainda a evidente conexão entre a prossecução da justiça e a busca da democracia, esta, enquanto é vista como um (regime e modo de) governo pela discussão, e ainda a natureza, viabilidade e alcance das reivindicações em prol dos direitos humanos. UMA TEORIA, MAS DE QUE TIPO? O que aqui se apresenta é uma teoria da justiça num sentido muito lato. O seu escopo é mais o de clarificar como havemos de tratar as questões da amplificação ou reforço da justiça e da eliminação da injustiça, e menos o de oferecer soluções para as questões que se nt Nota do tradutor. De paróquia, expressão geral aplicável a qualquer tipo de tendência acrítica para a protecção de interesses locais, nacionais ou regionais. Preferimos ficar mais próximos da letra, pois, embora pudesse corresponder à expressão “provincianismo”, o campo semântico de ambas não é propriamente coincidente. 11 12 A IDEIA DE JUSTIÇA levantam acerca da natureza da justiça perfeita. Neste ponto, ela difere claramente das teorias da justiça que são mais preeminentes na filosofia moral e política contemporâneas. Como se dirá mais de espaço na Introdução que se segue, há sobretudo três diferenças que merecem uma atenção específica. Primeiro: uma teoria da justiça que possa servir de base para uma racionalidade prática terá de incluir meios para ajuizar de como reduzir a injustiça e incrementar a justiça, em vez de apenas procurar uma caracterização das sociedades perfeitamente justas – prática esta que é traço assaz dominante em muitas das teorias da justiça da hodierna filosofia política. Os dois procedimentos que servem, respectivamente, para identificar quais sejam os arranjos ou combinações de factores perfeitamente justos e para determinar se uma particular alteração social traria um incremento de justiça, se é certo que têm entre si ligações motivacionais, são porém analiticamente disjuntos. Esta última questão, sobre a qual se debruça este trabalho, é central para a tomada de decisões acerca das instituições, comportamentos e outros determinantes da justiça, sendo certo que o modo pelo qual se chega a tais decisões não pode deixar de ser crucial para uma teoria da justiça que pretenda ser um guia para a razão prática no momento em que a mesma discorre sobre o que se deve fazer. Quanto à convicção de que esta operação de comparação não se pode levar por diante sem primeiro proceder à identificação de quais sejam as exigências da justiça perfeita, pode-se demonstrar ser ela totalmente incorrecta (ponto que será tratado no capítulo quarto, “Voz e Escolha Social”). Segundo: conquanto possamos resolver com sucesso muitas das questões comparativas relativas à justiça – sobre as quais se pode chegar a acordo discorrendo a partir de um confronto de argumentos racionais –, pode bem acontecer que haja outras comparações em que pontos de vista conflituantes fiquem à míngua de uma completa resolução. Pretende-se aqui sustentar que é possível existirem diferentes razões de justiça, cada uma delas conseguindo sobreviver ao teste de um escrutínio crítico e cada uma delas conduzindo, ainda assim, a conclusões divergentes*. De pessoas com experiências e * A importância da pluralidade valorativa foi extensamente – e poderosamente – explorada por Isaiah Berlin e Bernard Williams. As pluralidades podem sobreviver dentro PREFÁCIO tradições diferentes podem emanar argumentos dotados de razoabilidade que seguem em direcções conflituantes, mas podem provir outrossim do interior de uma determinada sociedade, e, aliás, nada impede que provenham de uma mesma pessoa*. Ao lidar com pretensões conflituantes, impõe-se a necessidade de uma discussão assente em argumentos de razoabilidade, seja consigo próprio seja com os demais, e não tanto aquilo que poderíamos chamar de “tolerância descomprometida” (“desengaged toleration”), com o conforto de uma solução preguiçosa do género: «o senhor tem razão para a sua comunidade e eu tenho razão para a minha». O raciocínio e o escrutínio imparcial são coisas essenciais. Contudo, até mesmo depois do mais vigoroso dos exames críticos, poderão sobrar ainda argumentos conflituantes e concorrentes que não foram eliminados pelo escrutínio imparcial. No texto que segue, terei algo mais a dizer sobre isto, mas quero aqui enfatizar que de modo algum ficam o raciocínio e o escrutínio prejudicados pela possibilidade de haver prioridades concorrentes que venham a sobreviver, não obstante o seu confronto com a razão: esta pluralidade com que, no final, nos veremos a braços há-de ser o resultado do exercício da razão e não de uma abstenção do mesmo. Terceiro: a presença de injustiças remediáveis pode muito bem estar relacionada com transgressões comportamentais, mais ainda do que com deficiências institucionais (a memória que, em Grandes Esperanças, Pip tinha daquela sua irmã coactiva era isso mesmo, e não uma dedução de acusação contra a família como instituição). Em última análise, a justiça está ligada à maneira como vai correndo a vida que as pessoas vivem e não apenas à natureza das instituições de uma mesma comunidade, ou até numa mesma pessoa, e nem por isso têm de ser necessariamente o reflexo de valores de “comunidades diferentes”. No entanto, as variações dos valores entre pessoas de diferentes comunidades também poderão ser significativas (ponto que foi debatido de vários modos nas importantes contribuições de Michael Walzer, Charles Taylor e Michael Sandel, entre outros). * Marx, por exemplo, invocava a possibilidade quer da eliminação da exploração do trabalho (relacionada com o facto de ser ajustado que se obtenha aquilo que pode ser visto como produto do próprio esforço) quer de uma afectação de recursos de acordo com as necessidades (relacionada com as exigências da justiça distributiva). Mais tarde, vê-lo-íamos a discutir o conflito inarredável que subsiste entre estas duas prioridades; seria no seu último trabalho substancial: A Crítica do Programa de Gotha (1875). 13 14 A IDEIA DE JUSTIÇA que as rodeiam. Em contrapartida, e contrastando com isso, muitas das principais teorias da justiça concentram-se abundante e principalmente em como chegar a fundar “instituições justas”, deixando para um papel derivado e subsidiário os aspectos comportamentais. Seja um exemplo: a perspectiva de John Rawls que via a “justiça como fairness”nt e que é merecidamente aclamada, fornece-nos um conjunto único de “princípios de justiça” preocupados exclusivamente com a edificação de “instituições justas” (que viessem a constituir a estrutura básica da sociedade”), ao mesmo tempo que reclamava das pessoas um comportamento que se conformasse inteiramente com as exigências de funcionamento dessas mesmas instituições3. Na perspectiva da justiça que aqui se apresenta, defender-se-á a existência de algumas inadequações cruciais numa perspectiva que opte por dedicar uma atenção dominante às instituições (com o comportamento humano a ser tomado como necessariamente conforme), em detrimento de se concentrar nas vidas que as pessoas conseguem ir construindo. Ora, pôr o foco de atenção nas vidas reais, quando se trata de avaliar da existência da justiça, é algo que trará consigo muitas implicações de longo alcance no que toca à natureza e ao alcance da ideia de justiça*. A diferente perspectiva que, enquanto ponto de viragem na teoria da justiça, se pretende explorar neste trabalho, irá ter um impacto directo no campo da filosofia política e moral, como tentarei mostrar. Além disso, também tentarei pôr em confronto a relevância dos argumentos que aqui se apresentam com algumas das posições que hoje se vão tomando no campo do direito, da economia e da política; e, se estivéssemos dispostos a ser optimistas, eles até poderiam chegar a mostrar a sua pertinência no âmbito de debates e decisões nt Justice as Fairness, expressão que é também o título de uma obra deste autor e que poderíamos traduzir, como já fizemos acima, por justeza e/ou lisura (fairness), mas empregaremos a já costumada tradução de equidade. * A recente investigação em torno do que se veio a chamar de “capability perspective” (“perspectiva da capacidade ou das capacidades”) relaciona-se directamente com o entendimento que vê a justiça à luz das vidas humanas e das liberdades que as pessoas possam exercer por si mesmas. Vide Martha Nussbaum e Amartya Sen (coord.), The Quality of Life, Oxford, Clarendon Press, 1993. O alcance e as limitações de uma tal perspectiva serão analisados nos Capítulos 11-14. PREFÁCIO sobre políticas a seguir em concreto e programas de actuação de tipo prático*. O recurso a uma abordagem comparativa, indo muito além da limitada – e limitante – moldura do contrato social, pode-nos trazer aqui um contributo valioso. Com efeito, ver-nos-emos ocupados a proceder a comparações que tenham em conta a progressão da justiça, seja pela luta contra a opressão (como no caso da escravatura ou da subjugação das mulheres), seja pelo protesto contra um sistemático abandono em termos de assistência médica (devido à ausência de instalações e recursos médicos em várias partes de África ou da Ásia, ou à inexistência de uma assistência médica universal na maioria dos países no mundo inteiro, incluindo os Estados Unidos), seja ainda pelo repúdio da admissibilidade da tortura (que continua a ser empregue no mundo contemporâneo com uma notável frequência – e, por vezes, por pilares do cenário institucional mundial), ou pela rejeição da silenciosa tolerância das situações crónicas de fome (assim por exemplo, na Índia, apesar de se ter conseguido abolir as grandes carestias)†. Suceder-nos-á não poucas vezes darmos a nossa anuência ao facto de que algumas das mudanças previstas (tais como a abolição do apartheid, para nos valermos de um exemplo doutro tipo) irão diminuir a injustiça, mas ainda que todas essas mudanças previamente acordadas se venham a aplicar, o resultado que teremos nunca há-de ser algo a que possamos chamar justiça perfeita. Tanto quanto o discurso racional teorético, também as preocupações práticas * Seja, por exemplo, o caso do que chamarei de “imparcialidade aberta”, a qual, na interpretação da justiça das leis, admite a presença de vozes que venham de perto ou de longe (não apenas para fazer jus a um tratamento justo e equitativo dos demais, mas também para que assim melhor se possa evitar o fenómeno do “paroquialismo” (parochialism), ponto já tratado por Adam Smith na sua obra Teoria dos Sentimentos Morais e nas suas Lições de Jurisprudência); a defesa de uma tal “imparcialidade aberta” terá uma relevância directa no âmbito de alguns dos debates que têm hoje lugar no Supremo Tribunal dos Estados Unidos, como veremos no capítulo que encerra este livro (Capítulo 18). † A 11 de Agosto de 2008, por convite do seu presidente, Somath Chatterjee, tive a honra de me dirigir ao parlamento indiano a propósito do tema “As Exigências da Justiça”, tendo essa sido a primeira das “Lições em Memória de Hiren Mukerjee”, que se destinam a ser um acontecimento anual do parlamento. A versão integral do discurso encontra-se disponível numa brochura impressa pelo parlamento indiano, encontrando-se publicada uma versão abreviada in The Little Magazine, vol. 8, tomos 1 e 2 (2009), sob o título “What Should Keep Us Awake at Night”. 15 16 A IDEIA DE JUSTIÇA parecem vir exigir uma ruptura radical no tipo de análise da justiça que se tem feito. ARGUMENTAÇÃO PÚBLICAnt, DEMOCRACIA E JUSTIÇA MUNDIAL É certo a perspectiva da justiça que aqui se apresentará não tratará de definir os princípios da justiça em termos de instituições, mas antes em ligação com as vidas e liberdades das pessoas envolvidas; todavia, as instituições não podem deixar de desempenhar um papel instrumental significativo na busca da justiça. A par dos determinantes de comportamento individual e social, uma escolha adequada das instituições também há-de ter um papel de importância crítica na empresa de ampliação e reforço da justiça. As instituições hão-de ser tidas em linha conta de várias maneiras. Elas podem contribuir directamente para as próprias vidas das pessoas, na medida em que elas tentam conduzi-las de acordo as coisas a que por algum motivo dão valor, mas também poderão ser importantes com vista a facilitar a nossa capacidade para submeter a escrutínio os valores e prioridades que haveremos de levar em conta, especialmente através das oportunidades de discussão pública que venham a ser proporcionadas (no que se incluirão considerações relativas à liberdade de expressão e ao direito à informação, para além de serem proporcionados espaços e meios para uma discussão informada). Nestas páginas, a democracia é vista em termos de argumentação pública (public reasoning, Capítulos 15-17), o que conduz a um entendimento da democracia como regime de “governo pela discussão” (uma ideia cuja expansão muito ficou a dever a John Stuart Mill). Todavia, impõe-se também que se veja a democracia de uma maneira mais geral, como capacidade para reforçar a participação ou nt “Public Reasoning”, que ao longo da obra traduziremos por expressões várias, tais como, ou na linha de raciocínio, racionalidade, argumentação, discurso, deliberação, reflexão argumentativa/argumentada, exercício retórico, exercício/actividade raciocinante, uso da razão, ou, simplesmente, razão, e, sendo o caso, (exercício de um/uma) raciocínio público, racionalidade pública, pública argumentação, senão mesmo pública discussão raciocinada/ argumentada. PREFÁCIO comprometimento discursivamente sustentados por meio de um alargamento das disponibilidades informacionais e da viabilidade de discussões interactivas. Há que julgar a democracia não só tendo em vista as instituições formalmente existentes, mas atendendo igualmente à medida em que se fazem efectivamente ouvir as vozes dos diferentes sectores da população. Mais ainda. Esta maneira de olhar para a democracia pode vir a ter impacto também na prossecução da mesma a nível global – e não apenas no seio de cada estado-nação. Se a democracia não for vista tão-somente em termos de constituição de específicas instituições (tal como um órgão de governo global ou eleições à escala mundial), mas também na perspectiva da possibilidade e do efectivo alcance de uma argumentação pública, então, fazer progredir – ao invés de meramente aperfeiçoar – tanto a democracia como a justiça mundiais já não nos parecerá uma ideia incompreensível, antes passando a ser uma ideia extraordinariamente compreensível, e é plausível que ela venha a inspirar e a influenciar acções práticas transfronteiriças. O ILUMINISMO EUROPEU E A NOSSA HERANÇA GLOBAL Que dizer sobre os antecedentes da perspectiva que aqui estou a tentar apresentar? Tratarei desta questão de modo mais exauriente na Introdução que se seguirá, mas, ainda assim, gostaria de salientar que a análise da justiça que apresentarei neste livro pretende traçar linhas de argumentação racional que foram alvo de uma particular exploração nesse período de descontentamento intelectual que ocorreu durante o Iluminismo Europeu. Todavia, e não obstante isto mesmo que acabámos de dizer, devo apressar-me a fazer de imediato duas clarificações para evitar possíveis mal-entendidos. Na primeira dessas clarificações, cumpre explicar que a sua ligação à tradição do Iluminismo Europeu não fará deste livro uma obra com uma bagagem intelectual particularmente “europeia”. Com efeito, um dos traços pouco habituais – alguns provavelmente dirão excêntricos – deste livro, quando comparado com outros escritos dedicados à justiça, é o amplo uso que fiz de ideias oriundas de sociedades não ocidentais, em especial da história intelectual indiana, mas também de outras. No passado intelectual da Índia, bem assim 17 18 A IDEIA DE JUSTIÇA como no pensamento que foi florescendo em várias outras sociedades não ocidentais, podemos verificar que existem poderosas tradições de argumentação e reflexão racional, mais até do que tradições que repousem na fé e em convicções a-racionais. A confinarmos a nossa atenção quase inteiramente à literatura ocidental, teria de concordar que, na nossa era, as demandas da filosofia política, em geral, e a prossecução das exigências da justiça, em particular, têm sido em certa medida de tipo “paroquial”*. Todavia, não pretendo com isto afirmar que haja nestas matérias uma qualquer dissonância radical entre pensamento “ocidental” e “oriental” (ou, em geral, não ocidental). Há muitas diferenças no seio do pensamento discursivo do Ocidente como naquele do Oriente, e seria absolutamente fantasioso pensar em termos de um Ocidente unido que se viesse confrontar com prioridades “orientais na sua quinta-essência”†. Tais opiniões, que não são alheias às discussões contemporâneas, estão bem longe daquele que é o meu entendimento das coisas. O que pretendo afirmar, ao invés, é que em muitas e diferentes partes do mundo se tem procurado atingir ideias semelhantes – ou intimamente ligadas – de justiça, equidade, lisura, responsabilidade, dever, bondade e rectidão, e isso pode vir alargar o alcance de certos argumentos que se vêem reflectidos na literatura ocidental; * A moderna literatura, nos casos em que se deu conta da existência de Kautilya, um antigo escritor indiano em matérias de estratégia e economia políticas, chegou por vezes a descrevê-lo como o “Maquiavel indiano”. De certa maneira, não é de espantar que o tenha feito, uma vez que há, de facto, certas semelhanças entre as ideias de ambos no que toca a estratégias e tácticas (sem embargo de profundas diferenças em muitas outras áreas – áreas amiúde mais importantes), mas não deixa de ser divertido que um analista político indiano do século IV a.C. tenha de ser apresentado como uma versão local de um escritor europeu que haveria de nascer no século XV. Já se vê que isto não é o reflexo da crua asserção de uma ordem geográfica que se quisesse afirmar por pura implicância, mas tão-somente de uma falta de familiaridade com a literatura não ocidental por parte dos intelectuais ocidentais (e, aliás, por parte dos intelectuais de todo o mundo moderno, dado o domínio global que a educação de tipo ocidental exerce hoje em dia). † De facto, já noutro sítio tive a ocasião de defender que não existem prioridades orientais na sua quinta essência oriental, e nem mesmo prioridades de quinta essência tão-só indianas, porquanto, na história intelectual de tais países, sempre poderemos encontrar argumentos que vão em muitas e diferentes direcções (veja-se os meus The Argumentative Indian, Londres e Nova Déli, Penguin, e Nova Iorque, FSG, 2005, e Identity and Violence: The Illusion of Destiny, Nova Iorque, Norton, e Londres e Nova Déli, Penguin, 2006). PREFÁCIO por outro lado, nas tradições dominantes do discurso ocidental contemporâneo, é frequente que se passe por alto ou se marginalize a presença a nível mundial daquele tipo de raciocínio. Assim, por exemplo, alguns dos raciocínios de Gautama Buddha (o paladino agnóstico do “caminho do conhecimento”) ou dos escritores da escola Lokayata da Índia do século VI a.C. (apostada num escrutínio incansável de todo o tipo de crença tradicional) poderão soar extremamente alinhados, muito mais do que em confronto, com muitos dos escritos críticos dos principais autores pertencentes ao Iluminismo Europeu. Porém, não há porque nos abespinharmos a tentar decidir se deveríamos ver em Gautama Buddha um membro percursor de uma qualquer liga do Iluminismo Europeu (afinal, o seu nome adoptado, em sânscrito, sempre quer dizer “iluminado”); e tão-pouco somos forçados a seguir a rebuscada tese segundo a qual as origens do Iluminismo Europeu se hão-de encontrar na influência de um remoto pensamento asiático. Nada há de particularmente estranho em reconhecer que tais ligações ou perfilhações intelectuais sempre se deram em diferentes partes do globo e em distintas épocas da história. A levarmos em conta que frequentemente se foram tecendo diferentes teses a propósito de questões deste género, é bem possível que, como confinemos a nossa investigação a uma dada região, nos acabem por escapar algumas das pistas possíveis para a reflexão argumentativa sobre a justiça. Exemplo disso, com certo interesse e relevância, é a importante distinção entre dois diferentes conceitos de justiça que encontramos na primitiva jurisprudência indiana, isto é, a diferença entre niti e nyaya. O primeiro, niti, corresponde a uma nota de propriedade que, em geral, caracteriza o arranjo organizacional, associada à correcção dos comportamentos, ao passo que o segundo, nyaya, diz respeito às coisas que se passam, como realmente se passam, e, em particular, à vida que efectivamente as pessoas levam. Esta distinção, de cuja relevância se curará na Introdução, ajuda-nos a ver claramente que existem duas espécies de justeza bem diferentes, ainda que não desconexas, e a ideia de justiça deverá beber de ambas*. * A distinção entre nyaya e niti não é apenas significativa no seio de uma determinada comunidade política, mas também para lá das fronteiras dos estados, como tive ocasião de referir no meu ensaio “Global Justice”, apresentado no Fórum Mundial da Justiça de Viena, 19 20 A IDEIA DE JUSTIÇA A minha segunda observação, e explicação, prende-se com o facto de os autores do Iluminismo não falarem em uníssono. Como mostrarei na Introdução, há uma dicotomia substancial entre duas diferentes linhas de raciocínio acerca da justiça, que podem ser observadas em dois grupos de filósofos de nomeada, associados, todos eles, ao pensamento mais radical do período iluminista. Uma das perspectivas concentrava-se na identificação do arranjo ou combinação de factores sociais que se apresentasse como perfeitamente justa e tomava por tarefa principal da teoria da justiça – e amiúde a única a ser especificada – a qualificação do que fossem “instituições justas”. Teceram importantes contributos nesta linha de pensamento e à volta da ideia de um hipotético “contrato social”, Thomas Hobbes, no século XVII, e, mais tarde, John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant, entre outros. A perspectiva dita contratualista (“contractarian”) tem vindo a ser a influência dominante na filosofia política contemporânea, especialmente desde que, em 1958, vimos surgir um estudo pioneiro (Justice as Fairness, Justiça como Equidade) de John Rawls, que é o antecessor daquela que haveria de ser a sua última palavra relativamente a esta perspectiva, a sua obra clássica, Uma Teoria da Justiça4. Em contraste, outros filósofos iluministas (por exemplo, Adam Smith, Condorcet, Wollstonecraft, Bentham, Marx, John Stuart Mill) seguiram perspectivas variadas que partilhavam entre si o interesse comum em proceder a comparações entre os diferentes tipos de vida que as pessoas podem levar, e nisso deixaram-se influenciar tanto pelas instituições como pelo real comportamento dessas mesmas pessoas, pelas interacções sociais e por outros determinantes dignos de significado. Em grande medida, este livro socorrer-se-á desta última tradição alternativa*. A esta segunda linha de investigação pertence a em Julho de 2003, patrocinado pela Associação Americana das Ordens dos Advogados, juntamente com a Associação Internacional das Ordens de Advogados, a Associação Interamericana das Ordens de Advogados, a Associação Interpacífica das Ordens de Advogados e a Union Internationale des Avocats. Integra o “Programa de Justiça Global” da Associação Americana das Ordens dos Advogados, e foi publicado in Global Perspectives on the Rule of Law, James Heckner, Robert Nelson e Lee Cabatingo (coord.), Nova Iorque, Rowtledges, 2009. * No entanto, isso não me impedirá de também me socorrer das considerações daquela primeira perspectiva, bem assim como das iluminações que podemos colher, por exemplo, nos escritos de Hobbes e Kant, ou, nos nossos tempos, naqueles de John Rawls. PREFÁCIO disciplina analítica – e de feições bem matemáticas – da “teoria da escolha social”, que podemos fazer remontar às obras de Condorcet, no século XVIII, tendo assumindo a forma que hoje tem graças às contribuições pioneiras de Kenneth Arrow em meados do século XX. Como tentarei mostrar, uma abordagem deste tipo, desde que devidamente adaptada, pode trazer um contributo substancial para o tratamento das questões atinentes à ampliação e reforço da justiça e à eliminação da injustiça em todo o mundo. O LUGAR DA RAZÃO Apesar das diferenças entre estas duas tradições do Iluminismo – uma contratualista e a outra comparativa –, há também entre elas muitas semelhanças. Entre os traços comuns encontra-se a confiança na razão e uma invocação das exigências próprias da discussão pública. Não obstante este livro mostre afinidade sobretudo com a segunda perspectiva exposta, e não tanto com a argumentação contratualista desenvolvida por Immanuel Kant e outros, uma grande parte dele será motivada por uma concepção kantiana fundamental (nas palavras de Christine Korsgaard): «Trazer a razão para o mundo torna-se a principal empresa da moralidade, não tanto da metafísica, e também a obra e a esperança da humanidade»5. Claro está que saber até que ponto a racionalidade pode fornecer uma base fiável para uma teoria da justiça é algo já de si controverso. Ora, o primeiro capítulo do livro tratará precisamente do papel e do alcance da razão. Aí, contesto a plausibilidade de, sem uma certificação raciocinada, se vir encarar as emoções, a psicologia ou os instintos como se fossem fontes independentes de valoração. Sem embargo disso, os impulsos e as atitudes mentais não perderão a sua importância, pois temos boas razões para os levar em conta nas nossas avaliações sobre a justiça e a injustiça à face da terra. Nem se vê que haja aqui um conflito irredutível entre razão e emoção – como pretendo mostrar –, havendo muito boas razões para dar o devido espaço à importância das emoções. 21 22 A IDEIA DE JUSTIÇA Há, contudo, um outro tipo de crítica dirigida à confiança na razão, segundo a qual o que neste mundo prevalece é tudo aquilo que nos aparece como “não-razão”, pretendendo então mostrar como é irrealista partir do princípio de que o mundo seguirá na direcção ditada pela razão. Numa crítica gentil, mas firme, ao meu trabalho em áreas relacionadas com esta, Kwame Anthony Appiah veio defender que «por muito que alarguemos a nossa compreensão da razão, seguindo os tipos de caminhos que Sen nos quereria ver a trilhar – e, note-se, este é um projecto cujo interesse é por mim brindado –, nunca conseguiremos chegar ao fim»6. Enquanto esta for uma descrição do que se passa no mundo, claro está que Appiah tem razão, e a sua crítica, que não tem a intenção de elaborar uma teoria da justiça, apresenta sólidos fundamentos para um cepticismo acerca da eficácia prática de uma discussão raciocinada em torno de temas sociais confusos (tal o caso, por exemplo, das políticas a adoptar em matéria de identidade). A prevalência e a tenaz resistência de tudo o que é “não-razão” podem levar a uma muito menor eficácia das respostas dadas a questões difíceis e que se queiram basear na razão. Este tipo de cepticismo acerca do alcance da racionalidade não apresenta – nem é suposto que pretenda apresentar (como Appiah deixa claro) – qualquer fundamento para que as pessoas deixem de empregar a razão até ao limite do que lhes seja possível, quando decidam ir em busca da ideia de justiça ou de qualquer outro conceito com relevo social, como seria o caso da noção de identidade*. Por outro lado, ele também não prejudica que se argumente no sentido de nos tentarmos persuadir mutuamente a fazer um escrutínio que permita verificar a validade das nossas respectivas conclusões. Além disso, é importante fazer notar que aquilo que a alguns poderá parecer um exemplo claro do domínio da “não-razão”, pode, afinal, não o * De facto, há sobejas provas de que a promoção de discussões públicas interactivas pode ajudar a enfraquecer a rejeição de uma reflexão racional. Sobre este ponto, veja-se o material empírico apresentado in Development as Freedom, Nova Iorque, Knopf, e Oxford, Clarendon Press, 1999, e Identity and Violence: The Illusion of Destiny, Nova Iorque, Norton, e Londres, Penguin, 2006. † Como faz notar James Thurber, se é verdade que os supersticiosos preferem evitar passar por debaixo de escadotes, bem pode acontecer que as mentes científicas que «se propõem desafiar a superstição» saiam «a procurar escadotes para se deliciarem a passar por debaixo deles» (James Thurber, Let Your Mind Alone!, New Yorker, 1 de Maio de 1937). PREFÁCIO ser†. Uma discussão assente na razão pode levar ao acolhimento de posições conflituantes que, para os demais, poderiam parecer meros preconceitos “não-raciocinados” (isto é, não ponderados ou reflectidos racionalmente), quando, afinal, o caso não era bem esse. Diferentemente do que às vezes se presume, perante diferentes posições obtidas por meio de um processo argumentativo ou raciocinado, nada exige que se tenha por compulsiva e necessária a eliminação de todas as alternativas à excepção de uma. De qualquer modo, o que principalmente interessa a este propósito é que, normalmente, os preconceitos andam a cavalo de um certo tipo de racionalidade – por muito fraca e arbitrária que ela possa ser. Na verdade, até as pessoas mais dogmáticas costumam ter as suas razões, quaisquer que elas sejam (possivelmente muito toscas), que possam servir de fundamento para os seus dogmas (pertencem a este domínio os preconceitos racistas, sexistas, de classe ou de casta, entre outras espécies de intolerâncias que nos aparecem assentes em raciocínios grosseiros). O mais das vezes, a “não-razão” não é uma prática que consista em dispensar por completo o raciocínio, mas sim uma prática que se vê apoiada em raciocínios muito primitivos e deficientes. Ora, aqui ainda há lugar para esperança, pois a um mau raciocínio sempre se pode contrapor um raciocínio melhor. Assim sendo, mesmo neste caso, não se pode dizer que seja despropositado pensar-se num compromisso com a razão, ainda que, pelo menos a princípio, muitas pessoas se possam recusar a comprometer-se com ela, apesar de a isso serem desafiadas. Para os argumentos contidos neste livro não interessa de todo que, no presente momento, se possa afirmar uma omnipresença da racionalidade na maneira de pensar por todos seguida; uma tal presunção não é nem possível nem necessária. A concepção de que as pessoas haveriam de chegar a acordo acerca de uma determinada proposição, se tivessem a oportunidade de raciocinar sobre ela de um modo aberto e imparcial não implica afirmar que, de facto, as pessoas já se achem empenhadas em fazê-lo, nem que estejam ansiosas por assumir um tal compromisso. O que nos interessa sobretudo é examinar quais as exigências que a racionalidade faz quando se tenta alcançar justiça – aceitar a possibilidade de que possam existir diferentes posições, todas elas razoáveis. Ora, isso é perfeitamente compatível com a possibilidade, e até com a certeza, de que num dado 23 24 A IDEIA DE JUSTIÇA momento histórico, nem toda a gente está disposta a levar a cabo um tal exame. A racionalidade é imprescindível para a compreensão da justiça, mesmo num mundo repleto de muita “não-razão”. Mais, é num mundo assim que ela se poderá revelar particularmente importante. PREFÁCIO AGRADECIMENTOS Ao agradecer a ajuda que recebi na realização do trabalho que aqui se apresenta, tenho de começar por deixar dito que a minha maior dívida é para com John Rawls, que me inspirou a trabalhar nesta área de estudo. Além do mais, ele foi também um magnífico professor por várias décadas e as suas ideias continuam a influenciar-me, mesmo quando discordo de algumas das suas conclusões. Este livro é dedicado à sua memória, não só por causa da instrução e do afecto que dele recebi, mas também pelo encorajamento para que fosse no encalço das minhas dúvidas. O meu primeiro contacto mais demorado com Rawls aconteceu em 1968-1969, quando vim da Universidade de Nova Déli para Harvard como professor visitante, tendo aí ministrado um seminário conjunto ao curso de licenciatura com Kenneth Arrow. Arrow foi também outra influência poderosa para este livro, como sucedeu em muitos dos meus livros anteriores. A sua influência resulta não só das amplas discussões que tivemos ao longo de muitas décadas, mas também do facto de eu recorrer à moldura analítica da moderna teoria da escolha social, por ele iniciada. A obra que aqui se apresenta foi elaborada em Harvard, que desde 1987 tem sido a minha principal base, e no Trinity College, em Cambridge, especialmente durante os seis anos entre 1998 e 2004, altura em que regressei a Harvard como Professor daquela grande universidade, onde, cinquenta anos antes, iniciara a pensar sobre temas filosóficos. Fui influenciado, em particular, por Piero Sraffa e por C.D. Broad, e Maurice Dobb e Dennis Robertson encorajaram-me a seguir as minhas inclinações. Este livro levou o seu tempo a fazer-se, porque as minhas dúvidas e as minhas reflexões construtivas também precisaram de um longo período para se desenvolverem. Ao longo destas décadas, tive 25 26 A IDEIA DE JUSTIÇA o privilégio de receber comentários, sugestões, questões, discordâncias rotundas e encorajamentos de um grande número de pessoas, e tudo isso me foi de grande préstimo. Assim, a minha lista de agradecimentos não vai ser curta. Em primeiro lugar, tenho de salientar a ajuda e o conselho que pude receber da minha mulher, Emma Rothschild, cuja influência se reflecte ao longo de todo o livro. A influência de Bernard Williams no meu pensamento em matérias filosóficas também será evidente para quem esteja familiarizado com os seus escritos. Esta influência deriva de muitos anos de uma “amizade conversadeira” e ainda de um produtivo período de trabalho conjunto, em que planeámos, editámos e escrevemos a introdução de uma colectânea de artigos acerca da perspectiva utilitarista e das suas limitações (Utilitarianism and Beyond, 1982). Tive também a dita de ter colegas com quem pude travar diversas conversas instrutivas sobre filosofia política e moral. Além de Rawls, tenho aqui de reconhecer a minha enorme dívida para com Hilary Putnam e Thomas Scanlon, por tantas charlas iluminantes ao longo dos anos. Também aprendi muito à conversa com W.V.O. Quine e Robert Nozick, que, infelizmente, já nos deixaram. O facto de ter dado aulas em conjunto, em Harvard, também foi para mim uma constante fonte de instrução dialéctica, que recebi tanto dos alunos como dos professores que partilhavam comigo essas aulas. Robert Nosick e eu regemos todos os anos cursos conjuntos durante cerca de uma década; em algumas ocasiões, fizemo-lo também com Eric Maskin, e ambos foram uma influência que marcou os meus pensamentos. Em algumas alturas, também ministrei cursos com Joshua Cohen (do MIT – Massachusetts Institute of Technology, que não fica assim tão longe), Christine Jolls, Philippe Van Parijs, Michael Sandel, John Rawls, Thomas Scanlon e Richard Tuck, e ainda com Kaushik Basu e James Foster quando vinham visitar Harvard. À parte o absoluto prazer tirado destas aulas dadas em conjunto, a verdade é que elas também foram tremendamente úteis para que pudesse desenvolver as minhas ideias, frequentemente graças a troca de argumentos com os professores com quem fui partilhando a regência desses cursos. AGRADECIMENTOS Sempre beneficiei muitíssimo das críticas e observações dos meus alunos em todos os meus escritos, e este livro não é excepção. Ora, no que diz respeito a este livro em particular, gostaria de registar em particular as impressões que fui trocando com Prasanta Pattanaik, Kaushik Basu, Siddiqur Osmani, Rajat Deb, Ravi Kanbur, David Kelsey e Andreas Papandreou, ao longo de várias décadas, e, mais tarde, com Stephan Klasen, Anthony Laden, Sanjay Reddy, Jonathan Cohen, Felicia Knaul, Clemens Puppe, Bertil Tungodden, A.K. Shiva Kumar, Lawrence Hamilton, Douglas Hicks, Jennifer Prah Ruger, Sousan Abadian, entre outros. Também gostaria de lembrar as importantes discussões que fui tendo com outros alunos meus, sobre diferentes assuntos, mas sempre relacionados com os temas aqui tratados, nomeadamente com Sourin Bhattacharya, Luigi Sparento, D.P. Chauduri, Kanchan Chopra, John Wriglesqorth, Yasumi Matsumoto e John Riley. No que me diz respeito, as alegrias e as vantagens de um ensino interactivo remontam já aos anos 70 e 80, altura em que dei aulas – e segundo me dizia um estudante, mais pareciam um “motim” – em Oxford, regendo a disciplina em conjunto com Ronald Dworkin e Derek Parfit, agregando-se mais tarde G.A. Cohen. As minhas gratas memórias dessas discussões e trocas de argumentos foram recentemente reavivadas graças à gentileza de Cohen, que organizou um seminário extremamente cativante na Universidade de Londres, em Janeiro de 2009, dedicado à principal tese apresentada neste livro. A assembleia que aí se juntou estava agradavelmente repleta de opiniões discordantes, incluindo Cohen (claro está), mas também Jonathan Wolff, Laura Valentis, Riz Mokal, George Letsas e Stephan Guest; as diferentes críticas que todos eles fizeram foram-me de grande valia (Laura Valentis teve a bondade de enviar mais comentários, mesmo depois do seminário). Se bem que uma teoria da justiça seja algo que pertence primariamente ao domínio da filosofia, este livro expõe também certas ideias que são do âmbito de outras disciplinas. Um dos grandes campos de investigação de que este livro trata abundantemente é também o da teoria da escolha social. Apesar de os meus contactos com quem trabalha nesta vasta área serem demasiado numerosos para poderem caber nestas curta linhas, seja-me ainda assim permitido declarar o quanto beneficiei de ter trabalhado com Kenneth Arrow e Kotaro 27 28 A IDEIA DE JUSTIÇA Suzumura, com os quais tenho estado a editar o Handbook of Social Choice Theory (o primeiro volume já saiu, mas o segundo já vai atrasado), mas também celebrar o notável papel de liderança neste campo que tem cabido a Jerry Kelly, Wulf Gaertner, Prasanta Pattanaik e Maurice Salles, em especial devido ao seu trabalho incansável e visionário que levou ao aparecimento da revista Social Choice and Welfare e que, agora, a faz florescer. Gostaria ainda de poder confessar os préstimos que recebi do longo caminho percorrido em conjunto e das amplas discussões acerca de problemas relacionados de alguma maneira com o tema a escolha social que fui tendo com (a juntar aos nomes já mencionados) Patrick Suppes, John Harsanyi, James Mirrlees, Anthony Atkinson, Peter Hammond, Charles Blackorby, Sudhir Anand, Tapas Majumdar, Robert Pollak, Kevin Roberts, John Roemer, Anthony Shorrocks, Robert Sugden, John Weymark e James Foster. É ainda antiga e constante a influência sobre o meu estudo da justiça, em especial em matéria de liberdade e capacidade, vinda de Martha Nussbaum. O seu trabalho, combinado com o seu firme empenho em desenvolver a “perspectiva da capacidade”, influenciou profundamente muitos dos seus progressos recentes, incluindo a exploração das ligações com as ideias clássicas de Aristóteles sobre “capacidade” e “florescimento”, e ainda com estudos em matéria de desenvolvimento humano, diferença dos sexos e direitos humanos. A relevância e o recurso à perspectiva da capacidade foi explorada de modo poderoso nos últimos anos graças à investigação de um grupo de académicos notáveis. Muito embora seja certo que os seus escritos influenciaram grandemente o meu pensamento, um sua listagem seria demasiado extensa para que a pudesse incluir aqui. Ainda assim, sinto-me obrigado a mencionar a influência que recebi das obras de Sabina Alkire, Bina Agarwal, Tania Burchardt, Enrica Chiappero-Martinetti, Flavio Comim, David Crocker, Séverine Deneulin, Sakiko Fukuda-Parr, Reiko Gotoh, Mozaffar Qizilbash, Ingrid Robeyns e Polly Vizard. Há ainda uma estreita conexão entre a perspectiva da capacidade e o nova área relativa ao desenvolvimento humano, de que foi pioneiro o meu amigo já falecido, Mahbub ul Haq, e que exibe também a influência de Paul Streeten, Frances Stewart, Keith Griffin, Gustav Ranis, Richard Jolly, Meghnad Desai, Sudhir Anand, Sakiko Fukuda-Parr, Selim Jahan, entre outros. É certo AGRADECIMENTOS que o Journal of Human Development and Capabilities tem um forte envolvimento no trabalho relativo à perspectiva da capacidade, mas a revista Feminist Economics também tem vindo a mostrar um interesse especial nesta área, e as minhas conversas com a sua directora, Diana Strassman, têm sido sempre estimulantes, versando sobre a relação entre uma abordagem feminista e a perspectiva da capacidade. Já no Trinity College, pude desfrutar da excelente companhia de filósofos, pensadores jurídicos e outros mais que se interessavam pelos problemas da justiça, tendo tido a oportunidade de interagir com Garry Runciman, Nick Denyer, Gisela Striker, Simon Blackburn, Catharine Barnard, Joanna Miles, Ananya Kabir, Eric Nelson e, ocasionalmente, com Ian Hacking (que, de quando em vez, voltava à sua antiga faculdade, onde, ainda estudantes e colegas, nos encontrámos e falámos pela primeira vez nos anos 50). Tive, além disso, a fantástica oportunidade de travar conversas com matemáticos, cientistas da natureza, historiadores, cientistas das áreas sociais, teóricos do direito e académicos do ramo das humanidades, todos notáveis e fora de série. Beneficiei ainda substancialmente das minhas conversas com diversos outros filósofos, entre os quais (e juntando a quantos já mencionei) Elizabeth Anderson, Kwame Anthony Appiah, Christian Barry, Charles Beitz, o já falecido Isaiah Berlin, Akeel Bilgrami, Hilary Bok, Sissela Bok, Susan Brison, John Broome, Ian Carter, Nancy Cartwright, Deen Chatterjee, Drucilla Cornell, Norman Daniels, o falecido Donald Davidson, John Davis, Jon Elster, Barbara Fried, Allan Gibbard, Jonathan Glover, James Griffin, Amy Gutmann, Moshe Halbertal, o falecido Richard Hare, Daniel Hausman, Ted Honderich, Susan Hurley, também já falecida, Susan James, Frances Kamm, o falecido Stig Kanger, Erin Kelly, Isaac Levi, Christian List, Sebastiano Maffetone, Avishai Margalit, David Miller, Sidney Morgenbesser, também falecido, Thomas Nagel, Sari Nusseibeh, o falecido Susan Moller Okin, Charles Parsons, Herlinde Pauer-Struder, Fabienne Peter, Philip Pettit, Thomas Pogge, Henry Richardson, Alan Ryan, Carol Rovane, Debra Satz, John Searle, Judith Shklar, falecida, Quentin Skinner, Hillel Steiner, Dennis Thompson, Charles Taylor e Judith Thomson. No que tange ao pensamento jurídico, foram-me muitíssimo vantajosas as discussões com (para além de outros já citados) Bruce Ackerman, Justice Stephen 29 30 A IDEIA DE JUSTIÇA Breyer, Owen Fiss, o falecido Herbert Hart, Tony Honoré, Anthony Lewis, Frank Michelman, Martha Minow, Robert Nelson, Justice Kate O’Regan, Joseph Raz, Susan Rose-Ackerman, Stephen Sedley, Cass Sunstein e Jeremy Waldron; de todas estas discussões tirei grandes benefícios. Sendo verdade que, de facto, o meu trabalho para este livro começou com as minhas “Conferências John Dewey” (sobre “Well-being, Agency and Freedom”) no Departamento de Filosofia da Universidade de Columbia, em 1984, e que veria o seu termo com outro conjunto de lições de filosofia, na Universidade de Stanford (com o tema “Justice”), apesar disso, não deixei de ensaiar os meus argumentos em torno da teoria da justiça em diversas faculdades de direito. A juntar a várias conferências e seminários nas Faculdades de Direito das Universidades de Harvard, Yale e Washington, tive também ocasião de apresentar as “Conferências Storrs” (sob o tema “Objectivity”), na Faculdade de Direito de Yale, em Setembro de 1990, as Conferências “Rosenthal” (sobre “The Domain of Justice”), na Faculdade de Direito da Northwestern University, em Setembro de 1998, e uma aula especial (sobre o tema “Human Rights and the Limits of Law”) na Faculdade de Direito de Cardozo, em Setembro de 2005*. No âmbito das economias, que foi a primeira área a que me dediquei, e que, aliás, tem uma considerável relevância para a ideia de justiça, recebi grandes contributos de regulares discussões que fui tendo ao longo de muitas décadas com (além dos nomes que já mencionei) George Akerlof, Paul Anand, Amiya Bagchi, o falecido Dipak Banerjee, Nirmala Banerjee, Pranab Bardhan, Alok Bhargava, Christopher Bliss, Samuel Bowles, Samuel Brittan, Robert Cassen, Sukhamoy Chakravarty, já falecido, Partha Dasgupta, Mrinal Datta-Chaudhuri, Angus Deaton, Meghnad Desai, Jean Dre‘ze, Bhaskar Dutta, Jean-Paul Fitoussi, Nancy Folbre, Albert Hirschman, Devaki Jain, Tapas Majumdar, Mukul Majumdar, Stephen Marglin, Dipak Mazumdar, Luigi Pasinetti, o falecido I.G. Patel, Edmund Phelps, K.N. Raj, V. K. Ramachandran, Jeffrey Sachs, Arjun Sengupta, * As “Conferências Dewey” foram promovidas sobretudo por Isaac Levi, as “Conferências Storrs”, por Guido Calabresi, as Lições “Rosenthal”, por Ronald Allen, e aquela aula na Faculdade de Direito de Cardozo, por David Rudenstine. Muito me serviram também as discussões que pude manter com eles e com os seus colegas. AGRADECIMENTOS Rehman Sobhan, Barbara Solow, Robert Solow, Nicholas Stern, Joseph Stiglitz e Stefano Zamagni. Tive também conversas utilíssimas com Isher Ahluwalia, Montek Ahluwalia, o falecido Peter Bauer, Abhijit Banerjee, Lourdes Beneria, Timothy Besley, Ken Binmore, Nancy Birdsall, Walter Bossert, François Bourguignon, Satya Chakravarty, Kanchan Chopra, Vincent Crawford, Asim Dasgupta, Claude d’Aspremont, Peter Diamond, Avinash Dixit, David Donaldson, Esther Duflo, Franklin Fisher, Marc Fleurbaey, Robert Frank, Benjamin Friedman, Pierangelo Garegnani, os já falecidos Louis Gevers e W.M. Gorman, Jan Graaff, Jean-Michel Grandmont, Jerry Green, Ted Groves, Frank Hahn, Wahidul Haque, Christopher Harris, Barbara Harris White, John Harsanyi, já falecido, James Heckman, Judith Heyer, o falecido John Hicks, Jane Humphries, Nurul Islam, Rizwanul Islam, Dale Jorgenson, Daniel Kahneman, Azizur Rahman Khan, Alan Kirman, Serge Kolm, Janos Kornai, Michael Kramer, Jean-Jacques Laffont, o falecido Richard Layard, Michel Le Breton, Ian Little, Anuradha Luther, James Meade, também falecido, John Muellbauer, Philippe Mongin, Dilip Mookerjee, Anjan Mukherji, Khaleq Naqvi, Deepak Nayyar, Rohini Nayyar, Thomas Piketty, Robert Pollak, Anisur Rahman, Debraj Ray, Martin Ravallion, Alvin Roth, Christian Seidl, Michael Spence, T.N. Srinivasan, David Starrett, S. Subramanian, Kotaro Suzumura, Madhura Swaminathan, Judith Tendler, Jean Tirole, Alain Trannoy, John Vickers, o falecido William Vickrey, Jorgen Weibull, Glen Weyl e Menahem Yaari. Lucrei também enormemente com conversas que fui tendo ao longo dos anos, e a propósito de temas variados relacionados com a justiça, com Jasodhara Bagchi, Alaka Basu, Dilip Basu, Seyla Benhabib, Sugata Bose, Myra Buvinic, Lincoln Chen, Martha Chen, David Crocker, Barun De, John Dunn, Julio Frenk, Sakiko Fukuda-Parr, Ramachandra Guha, Geeta Rao Gupta, Geoffrey Hawthorn, Eric Hobsbawm, Jennifer Hochschild, Stanley Hoffmann, Alisha Holland, Richard Horton, Ayesha Jalal, Felicia Knaul, Melissa Lane, Mary Kaldor, Jane Mansbridge, Michael Marmot, Barry Mazur, Pratap Bhanu Mehta, Uday Mehta, o falecido Ralph Miliband, Christopher Murray, Elinor Ostrom, Carol Richards, David Richards, Jonathan Riley, Mary Robinson, Elaine Scarry, Gareth Stedman Jones, Irene Tinker, Megan Vaughan, Dorothy Wedderburn, Leon 31 32 A IDEIA DE JUSTIÇA Wieseltier e James Wolfensohn. A parte do livro que trata da democracia e da sua relação com a justiça (Capítulos 15-17) inspira-se nas minhas três conferências sobre “Democracy”, na School of Advanced Studies (SAIS) da Universidade John Hopkins, e que tiveram lugar no seu campus universitário de Washington DC, em 2005. Estas conferências foram o resultado de uma iniciativa de Sunil Khilnani, com o apoio de Francis Fukuyama, tendo recebido de ambos sugestões muito úteis. Depois, as conferências acabaram por gerar outras discussões ao longo destes encontros do SAIS, e também elas viriam a ser muito úteis. O novo “Programa de Justiça, Estado Social e Economia” (“Program on Justice, Welfare and Economics”) de Harvard, que dirigi durante cinco anos, entre Janeiro de 2004 e Dezembro de 2008, também me deu uma excelente oportunidade para contactar com estudantes e colegas interessados em problemas semelhantes, ainda que no âmbito de ramos diferentes. O novo director, Walter Johnson, está a dar continuidade a todas estas oportunidades de interacção – e a ampliá-las – com grande liderança, tendo eu tomado a liberdade de apresentar o principal filão deste livro no meu discurso de despedida ao grupo, após o que recebi muitas questões e comentários excelentes. Erin Kelly e Thomas Scanlon foram de grande ajuda e imensamente prestáveis ao aceitarem ler uma parte considerável do manuscrito, tendo feito diversas sugestões de importância crítica. Estou-lhes, por isso, muitíssimo reconhecido. Tive também a grande ventura de poder dar a minha colaboração a Sudhir Anand ao longo de várias décadas e de ter podido travar debates regulares com ele sobre assuntos variados relacionados com o tema deste livro, os quais vieram engrandecer o meu entendimento acerca das exigências da justiça. As despesas da investigação e do trabalho de assistência à mesma foram cobertas parcialmente por um projecto de cinco anos sobre democracia, desenvolvido pelo Centro de História e Economia do King’s College da Universidade de Cambridge, custeado juntamente pelas Fundações Ford, Rockfeller e Mellon, entre 2003 e 2008; mas também, subsequentemente, por um novo projecto custeado pela Fundação Ford, dedicado ao tema “A Índia no Mundo Global”, com uma atenção especial dirigida à relevância da história intelectual da AGRADECIMENTOS Índia para os problemas dos nossos tempos. Estou muito grato por este apoio e também quero mostrar o meu reconhecimento pelo notável trabalho de coordenação de ambos os projectos, levado a cabo por Inga Huld Markan. Tive ainda a felicidade de ter junto de mim assistentes de investigação extremamente capazes e imaginativos, que se empenharam profundamente no livro e fizeram comentários vários e muito produtivos que me ajudaram a melhorar o conteúdo e a apresentação dos meus argumentos. Por isso, sinto-me muito penhorado para com Pedro Ramos Pintos, que trabalhou comigo mais de um ano, deixando uma influência no livro que viria a ser duradoura, e, presentemente, para com Kirsty Walker e Afsan Bhadelia pela sua ajuda e contributo intelectual, ambos extraordinários. O livro é publicado pela editora Penguin e, nos Estados Unidos da América, pela Harvard University Press. O meu editor de Harvard, Michael Aronson, também fez várias sugestões gerais excelentes. Além disso, houve dois revisores anónimos do manuscrito que me proporcionaram comentários úteis. Visto que ao cabo de uma investigação de detective, revelou-se que eram eles Frank Lovett e Bill Talbott, agora, também lhes posso agradecer citando os seus nomes. A preparação e a montagem do livro, na Penguin Books, foram levadas a bom porto de modo excelente e sob grande pressão de prazos, tudo graças ao trabalho desembaraçado e incansável de Richard Duguid (o editor-chefe), Jane Robertson (editora de texto) e Philip Birch (editor-assistente). A todos eles, estou profundamente reconhecido. Não tenho palavras para expressar adequadamente a minha gratidão ao editor desta obra, Stuart Proftt, da Penguin Books, que contribuiu com sugestões e comentários inestimáveis a propósito de todos os capítulos (para dizer toda a verdade, a propósito de quase todas as páginas de cada capítulo) e me convenceu a reescrever muitas das partes do manuscrito, para o tornar mais claro e acessível. Além disso, os seus conselhos acerca da organização geral do livro também foram indispensáveis. É fácil imaginar qual não será o seu alívio, quando vir que, finalmente, já não tem este livro entre mãos. AMARTYA SEN 33 34 A IDEIA DE JUSTIÇA AGRADECIMENTOS INTRODUÇÃO UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA 35 36 A IDEIA DE JUSTIÇA AGRADECIMENTOS UMA PERSPECTIVA SOBRE A JUSTIÇA Em Paris, cerca de dois meses e meio antes da invasão da Bastilha, ponto que foi, de facto, o início da Revolução Francesa, o filósofo político e orador Edmund Burke, declarava o seguinte no parlamento de Londres: «Deu-se um facto sobre o qual é difícil falar e impossível ficar calado.» Estávamos a 5 de Maio de 1789. O discurso de Burke não tinha nada que ver com a tempestade que ia crescendo em França. Nessa ocasião, tratava-se sobretudo da acusação formal de Warren Hastings, que então estava à frente da Companhia Britânica das Índias Orientais. A companhia tinha a função de estabelecer o domínio britânico na Índia, tarefa a que deu início com a vitória da Batalha de Plassey (a 23 de Junho de 1757). Ao fazer a acusação de Warren Hastings, Burke invocou as «leis eternas da justiça», que, assim o dizia Burke, Hastings teria «violado». A impossibilidade de permanecer calado sobre certo assunto é algo que pode ser declarado a propósito de muitos casos de injustiça manifesta, quando esta nos move até ao ponto de nos incitar a um tipo de raiva que a nossa linguagem tem dificuldade em retratar, pois é aquele tipo de raiva que não se deixa aprisionar em palavras. E no entanto, qualquer análise que se faça da injustiça (ou de uma injustiça) sempre reclamará uma sua clara articulação e um escrutínio que passe pela razão. Porém, Burke até nem deu mostras de que lhe faltassem as palavras: foi com eloquência que ele veio falar, não apenas sobre um erro de Hastings, mas sobre uma pilha deles, e, partindo daí, passou a apresentar em simultâneo várias razões separadas e perfeitamente distintas que justificavam a necessidade de proceder à acusação seja de Warren Hastings seja da natureza do emergente domínio britânico sobre a Índia: 37 38 A IDEIA DE JUSTIÇA «Acuso Warren Hastings, Esquire, de gravíssimos crimes e contravenções. Acuso-o em nome dos Comuns da Grã-Bretanha, reunidos em assembleia no Parlamento, cuja confiança parlamentar ele traiu. Acuso-o em nome dos Comuns da Grã-Bretanha, cujo carácter nacional ele desonrou. Acuso-o em nome do povo da Índia, cujas leis, direitos e liberdades ele subverteu, cujas propriedades ele destruiu, em cujo país ele lançou a devastação e a desolação. Acuso-o em nome e pela virtude das leis eternas da justiça que ele violou. Acuso-o em nome da própria natureza humana, que ele cruelmente ultrajou, injuriou e oprimiu, em ambos os seus sexos, em todas as suas idades, posições, situações e condições de vida.»1 Nenhum destes argumentos é identificado à parte como sendo a razão da acusação de Warren Hastings – à maneira de soco que põe o adversário knock-out. Em vez disso, o que vemos é Burke que expõe uma colecção de razões distintas para que ele seja acusado*. Mais adiante, nesta obra, vou ter a oportunidade de examinar um procedimento que se pode apelidar de “fundamentação plural”, isto é, o uso de diferentes linhas de condenação, sem que se procure um acordo acerca dos méritos relativos de cada uma delas. A questão que está aqui subjacente é a de saber se devemos concordar com uma particular linha de censura para que se chegue a um consenso argumentado acerca do diagnóstico de uma injustiça que reclame uma urgente rectificação. O que aqui importa notar, enquanto aspecto 1 Não tratarei aqui da veracidade das afirmações de Burke, mas apenas do modo como ele, por princípio, apresenta uma fundamentação plural para a acusação. Na verdade, esta tese de Burke acerca da perfídia pessoal de Hastings é bastante injusta. Por mais estranho que possa parecer, tempos antes, Burke chegara a defender o manhoso Robert Clive, que teve responsabilidades bem maiores na ilícita pilhagem da Índia, estando esta sob o controlo da Companhia – algo que Hastings tentou deter apelando fortemente para a necessidade de respeitar a ordem e a legalidade (mas também introduzindo uma dose de humanidade na administração exercida pela Companhia, coisa de que tinha sido muito falha até então). Tive ocasião de discutir estes factos históricos num discurso comemorativo proferido na Câmara Municipal de Londres, por altura do 250.º aniversário da Batalha de Plassey (“The Significance of Plassey”), em Junho de 2007. A conferência foi publicada, numa versão ampliada, sob o título Imperial Illusions: India, Britain and the Wrong Lessons, The New Republic, Dezembro, 2007. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA central da ideia de justiça, é que pode acontecer ficarmos com uma forte sensação de injustiça com base em fundamentos múltiplos e diferentes, e, apesar disso, poderemos não dar o nosso acordo à eleição de um particular fundamento como a razão dominante desse diagnóstico de injustiça. Considerando um acontecimento recente, talvez possamos oferecer uma ilustração mais imediata, e mais contemporânea, desta questão geral que trata da existência de implicações congruentes: os factos relativos à decisão do governo dos Estados Unidos que levou à invasão militar do Iraque em 2003. Há várias maneiras de julgar decisões deste tipo, mas o que aqui se deverá ter em conta é o facto de ser possível que argumentos distintos e divergentes poderem, ainda assim, conduzir à mesma conclusão – neste caso, a de que o curso de acção política escolhido pela coligação liderada pelos Estados Unidos, e que levou a iniciar uma guerra no Iraque em 2003, estava errado. Repare-se nos diferentes argumentos que foram sendo apresentados, todos bastante plausíveis, como críticas contra a decisão de entrar em guerra no Iraque*. Em primeiro lugar, a conclusão de que a invasão era um erro pode basear-se na necessidade de obter mais vozes concordantes a nível global, especialmente através da Nações Unidas, para que um país possa desembarcar as suas tropas noutro país. Um segundo argumento já se poderá centrar sobre a importância de se estar bem informado – por exemplo, quanto aos factos relativos à existência ou inexistência de armas de destruição maciça antes da invasão do Iraque –, antes de se tomar decisões militares deste tipo, decisões que inevitavelmente iriam pôr muitíssimas pessoas em risco de serem chacinadas, mutiladas ou desalojadas. Um terceiro argumento já seria atinente à noção de democracia como “governo pela discussão” (para usarmos uma antiga expressão associada frequentemente a John Stuart Mill, mas que já antes fora empregue por Walter Bagehot), e gira em torno do significado político que podemos atribuir à distorção informacional operada sobre aquilo que venha a * Claro está que também se apresentaram argumentos em favor da intervenção. Um consistia na crença de que Saddam Hussein era responsável pelo acto terrorista de 11 de Setembro; outro, que ele era unha com carne com a al-Qaeda. Provou-se que nenhuma destas acusações era exacta. É verdade que Hussein era um ditador brutal, mas, afinal, também havia – e há – muitos outros por todo o mundo a quem coubesse o mesmo epíteto. 39 40 A IDEIA DE JUSTIÇA ser apresentado ao povo de um certo país, no que se inclui um certo tipo de ficção culta (tal o caso das ligações imaginárias de Saddam Hussein aos acontecimentos de 11 de Setembro ou à al-Qaeda); com tudo isso, dificulta-se aos cidadãos americanos o acesso à decisão executiva de abrir guerra. Um quarto argumento poderia achar que nenhuma das precedentes seria a questão principal, identificando-a antes nas consequências da intervenção militar: seria ela capaz de trazer a paz e a ordem ao país invadido, ao Médio Oriente ou ao mundo, e teria sido de esperar que ela viesse reduzir o perigo da violência e do terrorismo mundiais, ao invés de os vir intensificar? Todas elas são considerações sérias e envolvem implicações valorativas muito diferentes, nenhuma das quais poderia ser excluída à partida por ser irrelevante, ou sem importância, para uma avaliação de acções deste tipo. Mais: em geral, elas podem nem levar à mesma conclusão. Todavia, se se mostrar, como sucede neste exemplo específico, que todos os critérios sustentáveis conduzem a um mesmo diagnóstico, apontando para um erro crasso, então uma tal conclusão não precisará de esperar por uma determinação das prioridades relativas que se poderiam associar a cada uma desses critérios. Com efeito, a redução arbitrária de princípios múltiplos e potencialmente conflituantes a um único e solitário sobrevivente, com o guilhotinar de todos os demais critérios valorativos, não é um pré-requisito para que se obtenham conclusões úteis e robustas acerca do curso de acção a seguir. Isto tanto se aplica à teoria da justiça como a qualquer outra parte da disciplina que tem por objecto a razão prática. RACIONALIDADE E JUSTIÇA A necessidade de termos uma teoria da justiça surge quando nos detemos a elaborar uma disciplina para este particular exercício da razão que tem por objecto um tema sobre o qual, como bem dizia Burke, é muito difícil falar. Tem sido sustentado que a justiça não é de todo uma questão de raciocínio, mas simplesmente uma questão de se ser apropriadamente sensível e de se ter faro para a injustiça. É muito fácil deixarmo-nos tentar a pensar desta maneira. Por exemplo, quando deparamos com o grassar de uma carestia assoladora, o que nos parece natural é que protestemos, e não que nos ponhamos a UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA raciocinar elaboradamente acerca da justiça e da injustiça. E no entanto, uma calamidade só será um caso de injustiça se pudesse ter sido evitada, e, em especial, se quem pudesse ter adoptado acções preventivas tivesse deixado de tentar fazê-lo. Há sempre uma qualquer forma de exercício da razão quando partimos da observação de uma tragédia e passamos para um diagnóstico que identifica uma injustiça. A mais disso, os casos de injustiça podem ser bem mais complexos e subtis do que a mera verificação de uma calamidade observável. Pode acontecer que haja diferentes argumentos passíveis de sugerir conclusões díspares, e então, as valorações relativas à justiça serão tudo menos óbvias. Amiúde, a evitar oferecer uma justificação raciocinada não são tanto os manifestantes que protestam indignados, mas sim os plácidos guardiães da ordem e da justiça. Ao longo de toda a história, atraídos por uma tal reticência, foram aqueles que tinham funções de governo, os que estavam investidos em autoridade pública e que não estavam certos de quais fossem os fundamentos que pudessem justificar um certo curso de acção, ou que não estavam dispostos a fazer o exame dos motivos em que assentavam as suas políticas. Lord Mansfield, o poderoso juiz inglês do século XVIII, deu este famoso conselho a um recém-nomeado governador colonial: «Tome em consideração o que acha que a justiça pede e aja em conformidade. Mas nunca diga quais são as suas razões, pois o seu juízo provavelmente estará certo, mas as suas razões certamente estarão erradas2». Este será, com certeza, um bom conselho para governar com tacto, mas de nenhuma maneira há-de ser um modo de garantir que as medidas certas sejam tomadas, como também não ajudará a ter a certeza de que as pessoas afectadas estarão a dar-se conta de que se estará a fazer justiça (aspecto que é, como veremos mais à frente, uma parte da disciplina que deve regular uma tomada de decisões sustentáveis em matéria de justiça). Os requisitos que uma teoria da justiça deve preencher incluem chamar à cena a razão para que desempenhe o seu papel no diagnóstico acerca da justiça e da injustiça. Ao longo de centenas de anos, os autores que, em diferentes partes do mundo, foram escrevendo sobre a justiça têm tentado providenciar a base intelectual que permita passar de um sentido geral de injustiça para um seu diagnóstico particular e raciocinado, e, a partir daí, para a análise dos meios para 41 42 A IDEIA DE JUSTIÇA se fazer progredir a justiça. As tradições da argumentação acerca da justiça e da injustiça têm uma longa – e espantosa – história em todo o mundo, e dela podemos retirar sugestões iluminantes sobre as razões da justiça, a fim de sobre elas reflectirmos (o que passaremos a fazer já de seguida). O ILUMINISMO E UMA DIVERGÊNCIA DE BASE Sendo embora certo que o tema da justiça social tem sido discutido ao longo dos tempos, esta matéria recebeu um impulso particularmente forte durante o período do Iluminismo europeu, nos séculos XVIII e XIX, com o encorajamento que provinha de um clima político de mudança e com a transformação económica e social que então ocorria na Europa e na América. Entre os principais filósofos associados ao pensamento mais radical desse período, encontramos fundamentalmente duas linhas de pensamento acerca da justiça, que sobre ela discorrem de modo divergente. Segundo creio, a distinção entre estas duas perspectivas tem recebido muito menos atenção do que aquela que, sem dúvida, merece. Começarei por referir esta dicotomia, porque isso ajudará a localizar a concepção da teoria da justiça que tento apresentar ao longo deste livro. Uma das perspectivas, liderada por Thomas Hobbes no século XVII, e seguida de maneiras diferentes por pensadores tão notáveis como o era Jean-Jacques Rousseau, concentrava-se na identificação das combinações ou arranjos institucionais que mostrassem ser justos para uma sociedade. Esta perspectiva, que pode ser chamada de “institucionalismo transcendental”, apresenta dois traços distintos. Primeiro: ela concentra a sua atenção naquilo que pode caracterizar a justiça perfeita, mais do que em comparações relativas entre justiça e injustiça. Assim, ela tenta apenas identificar as características sociais que, em termos de justiça, não são passíveis de ser transcendidas; deste modo, o seu foco de atenção não consiste em comparar sociedades que existam na realidade, que sempre poderão ficar aquém dos ideais da perfeição. A sua investigação aponta para a identificação da natureza do que é “o justo”, ao invés de tentar encontrar critérios para uma alternativa que fosse “menos injusta” do que uma outra. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA Segundo: ao tentar encontrar a perfeição, o institucionalismo transcendental aposta, a título primário, em tentar que as instituições sejam as certas, não se ocupando directamente das sociedades efectivas que, em última análise, possam acabar por emergir. É claro, todavia, que a natureza da sociedade que resultasse de um dado conjunto institucional dependerá outrossim de aspectos não institucionais, tais como os comportamentos efectivos adoptados pelas pessoas no curso das suas interacções sociais. Assim, ao discorrer sobre as consequências prováveis que adviriam das instituições – isto é, acaso um institucionalista transcendental opte por comentá-las ou quando o decida fazer –, abraçam-se certas suposições comportamentais que hão-de ser uma ajuda para o funcionamento das instituições que venham a ser escolhidas. Ambos os aspectos têm a ver com a maneira de pensar “contratualista” (“contractarian”) que Thomas Hobbes encetara e que viria a ser continuada por John Locke, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant3. Muito claramente, um hipotético “contrato social”, que se presume ter sido objecto de escolha, terá que ver com uma certa alternativa ideal que se prefere a esse caos que, de outra maneira, haveria de caracterizar a sociedade; ora os contratos que, de modo proeminente, vemos serem configurados por estes autores tratam primariamente da questão relativa à escolha das instituições. E o resultado global haveria de ser a elaboração de teorias da justiça que se centravam numa identificação ou caracterização transcendental de instituições ideais*. Chegados aqui, é no entanto importante fazer notar que os institucionalistas transcendentais, esses mesmos que estavam em busca * Iniciada por Hobbes, é certo que esta perspectiva da justiça que parte do contrato social combina transcendentalismo e institucionalismo, contudo, vale a pena notar que estes dois traços não têm de andar juntos necessariamente. Podemos ter, por exemplo, uma teoria transcendental que esteja centrada não tanto sobre as instituições e mais sobre as realizações conseguidas no âmbito das actividades sociais (a busca do mundo perfeitamente utilitário povoado de pessoas radiantes e felizes, eis aí um exemplo de uma perspectiva que apenas persegue uma “transcendência assente na realização”). Ou então, podemos centrar-nos numa avaliação das instituições partindo de perspectivas comparativas, em vez de enveredarmos por uma mera investigação transcendental do pacote perfeito de instituições sociais (uma ilustração de um institucionalismo comparativo poderia ser a preferência dada a um maior – ou até mesmo um menor – papel do mercado). 43 44 A IDEIA DE JUSTIÇA das instituições perfeitamente justas, por vezes, deixaram-nos também análises profundamente iluminadoras dos imperativos morais ou políticos que rodeiam os comportamentos tidos por socialmente apropriados. Isto é válido, em particular, no caso de Immanuel Kant e de John Rawls. Ambos participaram desta investigação transcendental das instituições, mas também nos deram análises de longo alcance sobre as características das normas de comportamento. Conquanto se tenham dedicado ao estudo das escolhas institucionais, as suas análises assumem o semblante mais amplo de perspectivas da justiça “centradas em combinações” de factores, onde a par das instituições acertadas se incluem também os comportamentos acertados*. Obviamente, há um contraste radical entre uma concepção da justiça “centrada em arranjos”nt (“arrangement-focused”) e uma perspectiva “centrada em realizações” (“realization-focused”): esta última deverá atender, por exemplo, ao efectivo comportamento que as pessoas adoptam, ao invés de partir do princípio de que todos seguirão o comportamento conforme o ideal. Contrastando com o institucionalismo transcendental, houve outros teóricos do Iluminismo que assumiram uma variedade de perspectivas comparativas preocupadas com as realizações sociais (aquelas que resultam de instituições reais, de comportamentos reais e de outras influências mais). Podemos encontrar diferentes versões deste tipo de pensamento comparativo, por exemplo, nas obras de Adam Smith, do Marquês de Condorcet, de Jeremy Bentham, de Mary Wollstonecraft e de John Stuart Mill, entre vários outros líderes de correntes de pensamento inovadoras, ao longo dos séculos XVIII e XIX. Se bem que estes autores, com as suas diferentes ideias acerca das exigências da justiça, tenham proposto maneiras também muito diferentes de proceder a comparações sociais, ainda assim e correndo o risco de exagerarmos, sim, mas apenas um pouco, podemos dizer * Eis a explicação de Rawls: «A outra limitação das nossas discussões é o facto de que, na sua maior parte, estou ocupado a examinar os princípios da justiça que regulariam uma sociedade bem ordenada. É suposto que todos ajam segundo a justiça e que façam a sua parte com vista à preservação das instituições justas» (A Theory of Justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1971, pp. 7-8). nt Para esta expressão, poderíamos alternar entre “arranjo” (de elementos/factores) e “combinação” (de elementos/factores), mas optaremos pelo vocábulo português de idêntico étimo. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA que eles se envolvem em comparações de sociedades que já existiam ou, então, que tinham toda a viabilidade de virem a existir na realidade, não confinando por isso a sua análise a indagações transcendentais em busca da sociedade perfeitamente justa. O mais das vezes, aqueles que tinham por escopo comparações centradas em realizações sociais estariam primariamente interessados em remover as injustiças patentes do mundo que viam à sua frente. A distância que separa estas duas perspectivas, o institucionalismo transcendental e a comparação centrada em realizações, é digníssima de nota. Como podemos observar, é precisamente a primeira destas tradições de pensamento – a do institucionalismo transcendental – que, em grande medida, serve de inspiração para a corrente dominante da actual filosofia política, no que respeita à investigação da teoria da justiça. A exposição mais marcante e mais poderosa desta perspectiva, encontramo-la na obra do principal filósofo político do nosso tempo, John Rawls (cujas ideias e cujos contributos, com as suas implicações de longo alcance, serão estudados no Capítulo 2, “Rawls e Para Lá de Rawls”)*. De facto, os “princípios da justiça” de Rawls, como aparecem na sua Teoria da Justiça, são inteiramente definidos a partir da sua relação com instituições perfeitamente justas, embora ele também trate de investigar – e com particular luminosidade – as normas que hão-de reger os comportamentos acertados em contextos políticos e morais†. Nos dias de hoje, há ainda vários outros proeminentes estudiosos da teoria da justiça que, pelo menos em traços largos, optaram por enveredar pela rota do institucionalismo transcendental – estou a * Veja-se a explicação que dava em A Theory of Justice (1971): «O meu escopo é apresentar uma concepção da justiça que generalize e leve para um plano superior de abstracção a já familiar teoria dos contratos sociais, tal como se pode encontrar, por exemplo, em Locke, Rousseau ou Kant» (p.10). Vide também o seu Political Liberalism, Nova Iorque, Columbia University Press, 1993. As rotas “contratualistas” (“contractarian”) trilhadas pela teoria da justiça de Rawls já tinham sido por ele enfatizadas num ensaio anterior – e pioneiro –, “Justice as Fairness”, Philosophical Review, 67 (1958). † Ao sugerir a necessidade daquilo a que chama “equilíbrio reflexivo” (“reflective equilibrium”), Rawls enxerta na sua análise social a necessidade de que cada um submeta os seus valores e prioridades a um escrutínio crítico. Além disso, como já se mencionou antes, na análise rawlsiana, as “instituições justas” aparecem identificadas com a presunção de uma efectiva conformidade da conduta com as regras de comportamento mais apropriadas. 45 46 A IDEIA DE JUSTIÇA pensar em Ronald Dworkin, David Gauthier e Robert Nozick, além de outros. As suas teorias, tendo-nos fornecido diferentes – mas, em todos os casos, importantes – reflexões que perscrutam as exigências apresentadas pela “sociedade justa”, têm em comum o objectivo de identificar as regras e instituições justas, ainda que a caracterização destes arranjos apareça com feitios muitos diferentes. Pode, pois, dizer-se que a caracterização das instituições perfeitamente justas se tornou a tarefa central das modernas teorias da justiça. O PONTO DE PARTIDA Contrastando com a maioria das modernas teorias da justiça, que giram em torno da “sociedade justa”, este livro tentará levar a cabo uma investigação de comparações que partirão das realizações sociais e que se manterão centradas na observação dos avanços e recuos da justiça. Deste ponto de vista, este livro não se mostra alinhado com essa tradição mais forte e filosoficamente mais aclamada que é a do institucionalismo transcendental, a mesma que vimos emergir durante o Iluminismo e que, sendo chefiada por Hobbes, foi desenvolvida por Locke, Rousseau e Kant, entre outros; antes alinhará ao lado da “outra” tradição, que ganhou forma pela mesma altura ou um pouco mais tarde (e que, embora de maneiras de diferentes, foi seguida por Adam Smith, Condorcet, Wollstonecraft, Bentham, Marx, Mill e outros). Como é bom de ver, o facto de partilhar o mesmo ponto de partida com estes diferentes pensadores não quer dizer que dê o meu acordo às suas teorias substantivas (coisa que, aliás, deveria ser óbvia, ou não se desse o caso de eles próprios diferirem tanto entre si); mas, uma vez que passemos além desse ponto de partida partilhado, será mister dar também atenção a alguns pontos de chegada eventuais*. O resto do livro tratará precisamente de explorar essa viagem. * Para além disso, estes autores empregam a palavra “justiça” de muitas maneiras diferentes. Como fazia notar Adam Smith, o termo “justiça” tem vários significados diferentes (The Theory of Moral Sentiments, 6.ª ed., Londres, T. Cadell, 1790, VII. ii. 1. 10, na edição da Clarendon Press, 1976, p. 269). Iremos examinar as ideias de Smith sobre a justiça no seu sentido mais amplo. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA A importância do ponto de partida não pode ser negada, em especial, no que toca à selecção de certas questões que devem ser respondidas (por exemplo: “Como se pode obter o progresso da justiça?”) em detrimento de outras (por exemplo: “O que seriam instituições perfeitamente justas?”). Este ponto de partida provoca um duplo efeito: primeiro, o de se enveredar por uma rota comparativa e não por uma de tipo transcendental; segundo, o de ter por foco central de atenção as realizações efectivas das sociedades implicadas e não meramente regras e instituições. Considerado o actual equilíbrio de ênfases na filosofia política contemporânea, tudo isso exigirá uma mudança radical no modo de formular da teoria da justiça. Mas para esta viagem, por que motivo precisamos nós de uma tal partida dupla? Começo pelo transcendentalismo. Logo aqui, vejo já dois problemas. Primeiro: mesmo sob condições estritas de imparcialidade e de um escrutínio feito com abertura de espírito (por exemplo, tal este aparece caracterizado por Rawls na sua “posição original”), pode não chegar a haver um acordo argumentado acerca da natureza da “sociedade justa”, e eis-nos assim diante da questão da viabilidade de se conseguir uma solução transcendental com a qual todos estejam de acordo. Segundo: um exercício da razão prática que implique uma escolha efectiva exigirá uma moldura para essas comparações relativas à situação da justiça, a fim de que se possa escolher entre as alternativas viáveis, não bastando a identificação e a caracterização de uma situação perfeita que não pudesse ser transcendida, mas possivelmente inacessível, e, desta feita, temos a questão da redundância de uma busca da solução transcendental. Passarei de imediato a discutir estes problemas levantados pelo ponto de vista transcendental (tanto a sua viabilidade como a sua redundância), mas, antes disso, seja-me permitido comentar brevemente o acento posto no aspecto institucional que vai implicado na perspectiva do institucionalismo transcendental. Esta segunda vertente do ponto de partida trata da necessidade de pôr o foco de atenção sobre realizações e resultados efectivos, em vez de tão-só o apontar para o estabelecimento das instituições e das regras que venham a ser identificadas como apropriadas. Como já antes se mencionou, aqui, o contraste prende-se com uma dicotomia geral – e muito mais ampla – entre uma visão da justiça “centrada em arranjos” e um seu entendimento “centrado em realizações”. A primeira 47 48 A IDEIA DE JUSTIÇA linha de pensamento vem propor que se construa uma concepção da justiça em termos de arranjos ou combinações organizacionais – certas instituições com certas regulamentações e certas regras de comportamento –, pelo que uma presença activa das mesmas seria o indicador de que se estaria a cumprir a justiça. Neste contexto, impõe-se uma pergunta, a de saber se a análise da justiça deverá ficar limitada ao esforço de se conseguir acertar ao indicar as instituições fundamentais e as regras gerais mais apropriadas. Não deveríamos também examinar o que se passa na sociedade, incluindo aí os diferentes tipos de vida que, na realidade, as pessoas conseguem levar perante determinadas regras e instituições, mas ainda outras influências que inelutavelmente acabariam por afectar as vidas humanas, entre as quais os efectivos comportamentos que se possam observar? Irei, pois, considerar à vez os argumentos a favor de cada um dos pontos de partida. Começarei pelos problemas levantados pela caracterização de tipo transcendental, tratando à cabeça da questão da viabilidade, para lidar depois com o problema da redundância. VIABILIDADE DE UM ACORDO TRANSCENDENTAL ÚNICO Pode acontecer que haja sérias divergências entre princípios de justiça concorrentes que acabem por resistir a um escrutínio crítico, sem que isso afecte as pretensões de imparcialidade. Isto causa um problema de não pouca monta, desde logo em relação à tese de John Rawls, segundo a qual deveria ocorrer uma escolha unânime de um único conjunto de «dois princípios de justiça» numa hipotética situação de igualdade primordial (que ele apelida de «a posição original») em que os interesses próprios ou de parte não seriam conhecidos pelos próprios interessados. Isto leva a presumir que, basicamente, há apenas uma espécie de argumento imparcial livre de interesses de parte e capaz de satisfazer as exigências da equidade ou da justeza. Quer me parecer, contudo, que isto é um erro, e é isso que me proponho mostrar. Por exemplo, de uma banda, pode haver diferenças de posição quanto aos exactos pesos a dar comparativamente em matéria de igualdade distributiva, e, ao mesmo tempo, pode aquiescer-se num acréscimo global ou por agregação. Na sua caracterização transcen- UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA dental, John Rawls individualiza uma fórmula deste tipo (a regra lexicográfica maximin, de que se tratará no Capítulo 2), por entre várias que estão à nossa disposição; aí, não existem argumentos convincentes que pudessem eliminar todas as demais alternativas que se mostrassem capazes de competir com a fórmula especialíssima de Rawls para a garantia de uma atenção ou consideração imparciais*. Pode ainda haver muitas outras divergências argumentadas relativamente a fórmulas particulares sobre as quais Rawls se debruça ao tratar dos seus dois princípios de justiça, sem que isso nos explique por que motivo não seria possível que outras alternativas pudessem continuar a captar a nossa atenção na atmosfera imparcial da sua posição original. Se um diagnóstico sobre arranjos sociais perfeitamente justos se mostrar irremediavelmente problemático, então toda a estratégia do institucionalismo transcendental ficará seriamente comprometida, ainda que todas as alternativas possíveis e imaginárias estejam à nossa disposição e fossem acessíveis. Assim, por exemplo, os dois princípios da justiça presentes no estudo clássico de John Rawls dedicado à “justiça como equidade” (e que merecerá uma discussão mais exaustiva no Capítulo 2) versam precisamente sobre instituições perfeitamente justas num mundo em que todas as alternativas estão à nossa disposição. No entanto, o que nos falta saber é se a pluralidade de razões que podem fundar a justiça iria permitir que, na posição original, emergisse um único conjunto de princípios de justiça. Por isso, esta elaborada investigação da justiça social de Rawls, que vai progredindo de degrau em degrau a partir da caracterização e da constituição de instituições justas, ver-se-ia encravada logo na sua base. Nos seus escritos posteriores, Rawls faz algumas concessões no sentido de reconhecer que «é claro que os cidadãos irão divergir acerca de quais as concepções de justiça política que têm por mais razoáveis». Aliás, no The Law of Peoples (1999) chega mesmo a dizer: * Diferentes tipos de regras imparciais de distribuição são discutidas no meu On Economic Inequality, Oxford, Clarendon Press, 1973, e a edição ampliada com um novo Apêndice, elaborado em parceria com James Foster, 1997. Vide também Alan Ryan (coord.), Justice, Oxford, Clarendon Press, 1993, e David Miller, Principles of Social Justice, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1999. 49 50 A IDEIA DE JUSTIÇA «O conteúdo da razão pública é dado por uma família de concepções políticas sobre a justiça, não apenas por uma. Há muitos liberalismos e visões correlatas, e, por isso, haverá muitas formas de razão pública, a serem especificadas por uma família de concepções políticas razoáveis. De entre estas, a justiça como equidade, quaisquer que sejam os seus méritos, não é mais do que uma delas.»4 No entanto, não fica ainda claro como é que Rawls iria lidar com as amplas implicações de uma tal concessão. As instituições específica e firmemente escolhidas para integrarem a estrutura básica da sociedade iriam exigir uma resolução também específica quanto aos princípios da justiça, tal como foi delineado pelo próprio Rawls nas suas obras anteriores, e, entre elas, em Uma Teoria da Justiça (1971) *. Uma vez que se deixasse cair a pretensão de unicidade reclamada pelos princípios de justiça rawlsianos (e os argumentos nesse sentido aparecem delineados nas obras mais tardias de Rawls), então, o programa institucional passaria a sofrer de uma séria indeterminação; e Rawls não nos adianta muito sobre como um particular conjunto de instituições poderia vir a ser escolhido com base num conjunto de princípios de justiça concorrentes que viriam exigir diferentes combinações institucionais para tecer a estrutura básica de uma sociedade. Claro está que Rawls sempre poderia resolver este problema abandonando simplesmente o institucionalismo transcendental das suas primeiras obras (em particular, Uma Teoria da Justiça); ora, uma tal opção teria sido a que mais teria agradado a quem vos escreve†. Temo, no entanto, não poder asseverar que fosse essa a * As dificuldades encontradas ao se tentar chegar a um conjunto único de princípios que sejam capazes de guiarem a escolha institucional no âmbito da posição original são discutidas no seu livro posterior, Justice as Fairness: A Restatement, a cargo de Erin Kelly, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2001, pp. 132-134. Estou muito reconhecido a Erin Kelly por ter aceite discutir comigo as relações entre os primeiros escritos de Rawls e as suas formulações mais tardias acerca da teoria da justiça como equidade. † O cepticismo de John Garay acerca da teoria rawlsiana da justiça é muito mais radical do que o meu, mas ambos concordamos em rejeitar a crença de que as questões valorativas só admitem uma única resposta correcta. Concordo também que «a diversidade dos estilos de vida e de regimes é uma marca característica da liberdade humana, e não de um erro» (Two Faces of Liberalism, Cambridge, Polity Press, 2000, p. 139. A minha investigação prende-se com acordos argumentados que se possam no entanto alcançar sobre como reduzir a injustiça, não obstante as nossas diferentes visões acerca do regime “ideal”. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA direcção que, em última análise, Rawls estava a seguir, muito embora os seus trabalhos posteriores nos levem necessariamente a levantar essa questão. TRÊS CRIANÇAS E UMA FLAUTA: UMA ILUSTRAÇÃO No âmago do particular problema relativo à hipótese de uma solução imparcial única que nos indique a sociedade perfeitamente justa, encontramos a possível sustentabilidade de razões de justiça plurais e concorrentes, tendo todas elas bons títulos de imparcialidade, sem embargo de divergirem entre elas – e de entre si rivalizarem. Permitam-me ilustrar este problema com um exemplo. Nele, o leitor terá de decidir qual de entre três crianças – Ana, Bernardo e Carla – deverá ficar com essa flauta sobre a qual os vemos a discutir. Ana reivindica a flauta com fundamento no facto de ser ela a única dos três que a sabe tocar (os outros não o negam), e de que seria muito injusto que se negasse a flauta à única pessoa que, de facto, consegue tocar flauta. Se tudo o que o leitor sabe se resumisse a isto, então a tese favorável a que se desse a flauta à primeira criança seria muito forte. Num cenário alternativo, já seria Bernardo a não se deixar ficar. Agora é a sua vez de falar, e para fazer valer a sua pretensão sobre a flauta, lembra que, dos três, ele é único a ser tão pobre que não tem quaisquer brinquedos. A flauta seria, pois, algo com que pudesse brincar (os outros dois concedem que são mais ricos e mais bem fornecidos no que toca a amenas diversões). Acaso o leitor se limitasse a ouvir o Bernardo e não tivesse ouvido nenhum dos outros, a tese favorável a que se lhe desse a flauta seria realmente forte. Seja ainda outro cenário alternativo. Desta feita, é a vez de falar da Carla, e ela lembra-nos que esteve a trabalhar com grande afinco durante vários meses para conseguir construir a flauta com o trabalho das suas próprias mãos (coisa que é confirmada pelos outros); e no preciso momento em que ela tinha conseguido acabar o seu trabalho, «nesse preciso instante», queixa-se ela, «vêm estes expropriadores e tentam arrancar-me a flauta das mãos». Como a declaração de Carla fosse a única que o leitor tivesse tido a ocasião de ouvir, então bem poderia estar inclinado a dar-lhe a flauta, assentindo na sua pretensão muito compreensível de vir reivindicar algo que ela própria fez. 51 52 A IDEIA DE JUSTIÇA Depois de ter ouvido os três e os seus diferentes raciocínios, o leitor tem agora entre mãos uma difícil decisão. Teóricos de correntes várias, tais como os utilitaristas ou os igualitaristas económicos, ou ainda os libertários puros e duros, cada um deles poderá seguir a perspectiva de que há uma solução justa que, de tão óbvia, salta aos olhos, pelo que encontrá-la não levantará qualquer dificuldade. Porém, é quase certo que todos eles, cada um por seu turno, haveriam de chegar a uma solução diferente, e em todos os casos, a título de solução obviamente correcta. Bernardo, o mais pobre dos três, conseguiria facilmente o apoio declarado do igualitarista económico, estando este apostado em reduzir o fosso entre os recursos económicos das pessoas. Já por outro lado, Carla, a que fabricou a flauta, receberia imediatamente a simpatia do libertário. O utilitarista hedonista poderia ver-se confrontado com o desafio mais espinhoso, mas decerto que se inclinaria, mais do que o libertário ou o igualitarista económico, a dar peso ao facto de que, provavelmente, o prazer de Ana seria o mais forte, visto ser ela a única que sabe tocar flauta (e há ainda a máxima geral “quem guarda tem”). Todavia, o utilitarista também deveria reconhecer que a relativa privação de Bernardo poderia tornar muito maior o seu ganho acrescido de felicidade ao conseguir a flauta. O “direito” de Carla a obter o que ela própria construiu pode não comover imediatamente o utilitarista, mas, ainda assim, uma mais aturada reflexão utilitarista acabaria por aconselhar a dar alguma atenção às exigências dos incentivos laborais para a construção de uma sociedade, pelo menos, se se quiser que, nela, a criação de utilidade venha a ser sustentada e encorajada pelo facto de se permitir que as pessoas conservem aquilo que produzem com o seu próprio esforço*. No entanto, o apoio do libertário a que se dê a flauta à Carla não será condicionado como acontece necessariamente no caso do utilitarista, que o faz depender dos efeitos gerados pelo funcionamento dos incentivos, pois que para um libertário, o direito de cada * Naturalmente, aqui, apenas estamos a observar um mero caso em que se pode identificar de imediato quem produziu o quê. Uma tal tarefa pode até ser bastante fácil num caso como este, de uma flauta que a Carla construiu sozinha. Contudo, esse tipo de diagnóstico pode levantar problemas sérios quando estão envolvidos vários factores de produção, incluindo recursos não laborais. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA um a obter tudo aquilo que produzir por si próprio seria tomado em consideração a título imediato. A noção de direito aos frutos do próprio trabalho é sempre capaz de unir libertários de direita e marxistas de esquerda (por muito grande que seja o desconforto que possam sentir ao se verem assim na companhia uns dos outros)*. O ponto central em tudo isto consiste em ver que não é fácil atirar para um canto, por desprovidas de fundamento, qualquer uma destas pretensões, assentes respectivamente na busca da realização pessoal, na eliminação da pobreza ou na faculdade de fruir do produto do próprio trabalho. As diferentes soluções têm todas elas argumentos sérios a seu favor, tanto assim que poderemos não ser capazes de escolher sem arbitrariedade um dos argumentos alternativos, dizendo ser esse aquele que há de prevalecer necessariamente em todos os casos †. Quero ainda chamar a atenção para um facto algo óbvio, o de que as diferenças entre os argumentos que as crianças apresentam a título de justificação não representam divergências sobre o que gera uma vantagem individual (conseguir a flauta é tido por vantajoso por todos eles e é secundado por cada um dos respectivos argumentos), mas antes acerca dos princípios que, em geral, devem disciplinar a afectação dos recursos. São eles princípios que indicam como se deverão organizar as combinações sociais, que instituições escolher e que realizações sociais acabarão por se conseguir graças a umas e a outras. Não se trata apenas de ver que os interesses próprios das crianças diferem entre si (embora isto também aconteça), mas também * Dá-se o caso, aliás, de o próprio Karl Marx se ter tornado bastante céptico em relação ao “direito sobre o trabalho próprio”, que ele acabaria por ver como um “direito burguês” a ser rejeitado, em última análise, em favor de uma “distribuição segundo as necessidades”, ponto de vista que ele desenvolveu com alguma ênfase na sua última obra de fôlego, A Crítica do Programa de Gotha (1875). A importância desta dicotomia é discutida no meu livro On Economic Inequality, Oxford, Clarendon Press, 1973, Capítulo 4. Vide também G. A. Cohen, History, Labour and Freedom: Themes from Marx, Oxford, Clarendon Press, 1988. † Como aventava Bernard Williams: «Nem sempre é necessário ultrapassar o desacordo». De facto, ele «pode ser um traço importante e constitutivo das nossas relações com os outros, e pode também ser visto meramente como algo com que se há-de contar, atendendo às melhores explicações de que dispomos acerca do modo em que surge um tal desacordo» (Ethics and the Limits of Philosophy, Londres, Fontana, 1985, p.133). 53 54 A IDEIA DE JUSTIÇA que cada um dos três argumentos aponta para um diferente tipo de razão imparcial e não arbitrária. Ora, isto não se aplica apenas à disciplina da equidade na posição original rawlsiana, mas também a outras exigências de imparcialidade, como será o caso do requisito de Thomas Scanlon segundo o qual os nossos princípios deverão satisfazer «aquilo que os demais não poderiam razoavelmente rejeitar»5. Como já foi referido, pode muito bem acontecer que pensadores de diferentes filiações, sejam eles utilitaristas, igualitaristas económicos, teóricos dos direitos dos trabalhadores ou libertários puros e duros, venham defender, cada um por si, que há uma só solução justa óbvia e que a mesma é facilmente detectável, no entanto cada um deles iria argumentar em favor de uma solução diferente como sendo obviamente correcta. De facto, poderá não existir um qualquer arranjo social perfeitamente justo e identificável, em torno do qual pudesse emergir um acordo imparcialmente obtido. UMA MOLDURA COMPARATIVA OU TRANSCENDENTAL? O problema da perspectiva transcendental não deriva apenas da possível existência de uma pluralidade de factores concorrentes que pretendem afirmar a respectiva relevância para a avaliação da justiça. É verdade que a inexistência de uma combinação de factores perfeitamente justa que seja identificável é um problema importante, ainda assim, importa reconhecer que a inviabilidade da teoria transcendental não é o único argumento com importância crítica que depõe a favor de uma abordagem comparativa da razão prática da justiça, é-o também a sua redundância. Se é suposto que uma teoria da justiça deve guiar a escolha raciocinada das instituições, estratégias e políticas a seguir, então a individualização de combinações sociais inteiramente justas não será necessária nem suficiente. Exemplifiquemos: se estivermos a tentar escolher entre um Picasso e um Dalí, não nos serve de ajuda invocar um diagnóstico (admitindo que um tal diagnóstico transcendental fosse possível) segundo o qual, de entre todos, no mundo inteiro, o quadro ideal é a Mona Lisa. Pode ser um discurso interessante, mas não aquece nem arrefece no que toca à escolha entre um Dalí e um Picasso6. Com UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA efeito, não é de todo necessário desatar a falar sobre qual possa ser o maior e o mais perfeito dos quadros em todo o mundo, se o que queremos é escolher entre as duas alternativas com que estamos confrontados. Mas também não é suficiente, nem sequer tem especial serventia, virmos a saber que a Mona Lisa é a pintura mais perfeita do mundo, se, na realidade, a escolha é entre um Dalí e um Picasso. Este ponto pode até parecer enganadoramente simples. Uma teoria que caracterize uma alternativa transcendental, por esse mesmo processo, não nos dirá também o que queiramos saber acerca da justiça comparativa? E a resposta é não, não diz. É claro que podemos ser tentados pela ideia de graduar as alternativas de acordo com a respectiva proximidade em relação à escolha perfeita, de modo que uma tal caracterização transcendental também acabaria por gerar indirectamente uma graduação (ranking) de alternativas. Mas uma tal abordagem não nos levará muito longe, em parte, porque os objectos podem diferir entre si em dimensões de apreciação diferentes (pelo que surge o problema acrescido de avaliar a importância relativa da distância em distintas dimensões), mas também porque a proximidade descritiva não é necessariamente um guia da proximidade valorativa (uma pessoa que prefere o vinho tinto ao branco pode também preferir qualquer dos dois a uma mistura de ambos, apesar de, num sentido descritivo óbvio, a mistura ser mais próxima do vinho tinto, o preferido, do que o seria um vinho branco puro). Claro está que é possível termos uma teoria que faz ambas as coisas: uma avaliação entre pares de alternativas e uma identificação ou caracterização transcendental (sempre que isso não se torne impossível pela sobrevivência de uma pluralidade de razões imparciais que tenham um título para reivindicar a nossa atenção). Tal seria o caso de uma teoria “conglomerada”, mas os dois tipos de juízo não decorrem um do outro. Mais imediatamente, as teorias da justiça que normalmente andam associadas a uma identificação transcendental (por exemplo, as de Hobbes, Rousseau e Kant, ou, no nosso tempo, Rawls e Nozick) não são, de facto, teorias conglomeradas. É verdade, todavia, que no processo de desenvolvimento das respectivas teorias transcendentais, alguns destes autores chegaram a propor certos argumentos que se bandeiam para o lado de uma operação de tipo comparativo. Contudo, em geral, a individualização de uma alternativa 55 56 A IDEIA DE JUSTIÇA transcendental não oferece uma solução para o problema relativo a comparações entre duas alternativas não transcendentais. A teoria transcendental limita-se, pura e simplesmente, a tratar de uma questão que, em si, é diferente da avaliação comparativa – questão aquela que poderá ser de grande interesse intelectual, mas que não tem relevância directa para o problema da escolha com que nos venhamos a confrontar. Em vez disso, precisaremos, isso sim, de um acordo que, baseando-se numa argumentação pública, cure da graduação das alternativas realizáveis. A distância que separa o que é transcendental do que é comparativo é ampla e pluricompreensiva, como se mostrará com mais pormenor no Capítulo 4 (“Voz e Escolha Social”). Aliás, a perspectiva comparativa é um elemento central na disciplina analítica da “teoria da escolha social”, que foi iniciada pelo Marquês de Condorcet e por outros matemáticos franceses do século XVIII, a maior parte dos quais trabalhava em Paris7. Por longo tempo, a escolha social, enquanto disciplina formal, não foi muito usada, não obstante se continuasse a trabalhar na subárea da teoria do voto. Aquela disciplina viria a ser reanimada e organizada na sua forma actual por Kenneth Arrow, em meados do século XX8. Nas últimas décadas, esta abordagem tornou-se uma área muito activa da investigação analítica, dedicando-se a explorar os meios e as modalidades que permitam basear as avaliações de alternativas sociais nos valores e prioridades das pessoas nelas envolvidas*. Ainda assim, a abordagem central proposta pela teoria da escolha social tem vindo a colher uma atenção relativamente diminuta, especialmente da parte dos filósofos, o que se deve ao facto de as sua obras terem geralmente um teor bastante técnico e, em grande medida, matemático; aliás, e é este um motivo acrescido, muitos dos resultados a que se chegou neste campo, de facto, não podem ser confirmados a não ser por meio de extensos raciocínios matemáticos†. E no entanto, esta perspectiva e o * Acerca das características gerais desta perspectiva da escolha social, que permite fundar e motivar os resultados analíticos, veja-se a minha Conferência “Alfred Nobel”, em Estocolmo, em Dezembro de 1998, que mais tarde viria a ser publicada com o título “The Possibility of Social Choice”, American Economic Review, vol. 89 (1999), e in Les Prix Nobel 1998, Estocolmo, The Nobel Foundation, 1999. † No entanto, as formulações matemáticas revestem-se de alguma importância no que toca ao conteúdo dos argumentos apresentados por meio de teoremas e axiomas. Para a UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA raciocínio que lhe subjaz são até muito próximos do entendimento de senso comum sobre o que sejam decisões sociais apropriadas. Certo é que, na perspectiva construtiva que tento apresentar nesta obra, as conclusões a que chegou a teoria da escolha social vão ter um importante papel*. REALIZAÇÕES, VIDAS E CAPACIDADES Agora, é chegada a altura de me voltar para a segunda parte da dupla partida a que aludi, para poder, então, excogitar a necessidade de uma teoria que não esteja confinada a uma escolha das instituições, nem à mera identificação e caracterização de arranjos sociais ideais. A necessidade de um entendimento da justiça assente nas realizações conseguidas liga-se ao argumento de que a justiça não pode ser indiferente às vidas que as pessoas podem efectivamente viver. A importância das vidas dos homens, das experiências e realizações não podem ser suplantadas pela informação que nos chega sobre instituições existentes e regras que funcionam. As instituições e as regras, são, com certeza, de grande importância pela influência que exercem sobre tudo o que acontece, e também elas são parte inseparável do mundo real, todavia essa que é a realidade vigente e realizada vai muito além do quadro puramente organizacional, e inclui em si as próprias vidas que as pessoas conseguem – ou não conseguem – viver. Ao observarmos a natureza e o teor das vidas humanas, temos boas razões para nos interessarmos, não apenas pelas variadas coisas que conseguimos fazer com sucesso, mas também pelas liberdades que efectivamente temos quando se trata de escolher entre tipos de discussão de algumas das conexões entre argumentos formais e informais, veja-se o meu Collective Choice and Social Welfare, São Francisco, CA, Holden-Day, e reedição, Amesterdão, North-Holland, 1979, onde os capítulos matemáticos e informais se vão alternando. Veja-se ainda a minha pesquisa crítica à literatura da área, “Social Choice Theory”, in Kenneth Arrow e Michael Intriligator (coord.), Handbook of Mathematical Economics, Amesterdão, North-Holland, 1986. * As interconexões entre a teoria da escolha social e a teoria da justiça serão exploradas de modo particular no Capítulo 4, “Voz e Escolha Social”. 57 58 A IDEIA DE JUSTIÇA vidas diferentes. A liberdade de escolher a vida que queremos pode ser algo que contribui significativamente para o nosso bem-estar; mais do que isso, e indo para além da perspectiva do bem-estar, a própria liberdade, considerada em si mesma, também pode ser vista como algo já de si importante. Ser capaz de raciocinar e escolher é uma faceta significativa da vida humana. De facto, não acontece que estejamos sujeitos à obrigação de apenas procurarmos o nosso bem-estar: cabe-nos a nós decidir quais são as coisas em relação às quais achamos ter boas razões para tentar alcançar (esta questão será alvo de maior discussão nos Capítulos 8 e 9). Não é preciso ser Gandhi, Martin Luther King Jr., Nelson Mandela ou Desmond Tutu, para reconhecer que temos objectivos e prioridades para além da mera busca individualista do nosso bem-estar próprio*. As liberdades e capacidades de que dispomos, em si mesmas, também podem ser algo que nos é valioso, e, em última análise, é a nós que cabe decidir que uso a dar a essa liberdade que é nossa. Mesmo nesta breve resenha (uma mais aturada investigação será desenvolvida mais adiante, particularmente nos Capítulos 11-13), é importante sublinhar que as realizações sociais, a serem avaliadas tendo em conta as capacidades efectivas das pessoas e já não segundo a sua felicidade ou as utilidades obtidas (como Jeremy Bentham e outros utilitaristas nos recomendam), darão lugar a que se abram dissídios de grande monta. Primeiro, e estando assim as coisas, as vidas humanas passam a ser vistas de modo inclusivo, isto é, tomando devida nota das liberdades substantivas de que as pessoas gozam, ao invés de se ignorar tudo aquilo que não sejam prazeres ou utilidades que possamos acabar por conseguir. E depois, há ainda um segundo aspecto da liberdade que é significativo: ela torna-nos responsáveis por aquilo que fazemos. A liberdade de escolha dá-nos a oportunidade de decidirmos o que havemos de fazer, mas com essa oportunidade vem também a responsabilidade por tudo o que façamos – isto, na medida em que * Adam Smith defendia que até no caso de um egoísta «há evidentemente alguns princípios presentes na sua natureza que o levam a interessar-se pelo destino dos outros»; e aventava o seguinte: «O maior dos rufiões, o mais empedernido dos infractores das leis da sociedade, não estará inteiramente desprovido disso» (The Theory of Moral Sentiments, 1.i.1.1., segundo a edição de 1976, p. 9). UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA as nossas acções forem, de facto, acções escolhidas. Considerando que uma capacidade é o poder de fazer algo, a responsabilização que emana dessa aptidão – desse poder – também passa a fazer parte da perspectiva das capacidades, e isto pode dar lugar a que se fale de um dever – aquilo que, em termos amplos, podemos apelidar de exigências deontológicas. Deparamos aqui com uma sobreposição de preocupações centradas na agência e de implicações resultantes da abordagem baseada nas capacidades; já na perspectiva utilitarista nada há que seja imediatamente comparável a isto (perspectiva utilitarista que, no fundo, consiste em vir atar a responsabilidade de cada um à felicidade de cada qual)*. A perspectiva das realizações sociais, onde se incluem as efectivas capacidades de que as pessoas estão dotadas, conduz-nos inelutavelmente a uma ampla variedade de questões ulteriores que acabam por se revelar centrais na análise da justiça sobre a terra, e são estas as questões que teremos de examinar e escrutinar. UMA DISTINÇÃO CLÁSSICA DA JURISPRUDÊNCIA INDIANA Ao tentarmos aperceber-nos do contraste entre a visão da justiça que se centra nos arranjos sociais e aquela que se centra nas realizações, será útil invocar uma antiga distinção, vinda da literatura sânscrita, sobre ética e jurisprudência. Tomemos dois vocábulos, niti e nyaya, ambos significando justiça no sânscrito clássico. Entre os principais casos em que se emprega o termo niti, contamos a propriedade enquanto característica organizacional e a correcção dos comportamentos. Contrastando com niti, o termo nyaya corresponde a um conceito compreensivo que aponta para a justiça realizada. Na sua linha, se bem que instituições, regras e organização sejam importantes, o seu papel há-de ser avaliado segundo a perspectiva mais abrangente que é a própria do nyaya, estando este inevitavelmente ligado ao mundo que realmente emerge e se produz perante nós, e, * Esta questão será mais amplamente tratada nos Capítulos 9, “A Pluralidade das Razões Imparciais”, e 13, “Felicidade, Bem-Estar e Capacidades”. 59 60 A IDEIA DE JUSTIÇA portanto, não apenas às instituições ou às regras que acaso existam entrem nós*. Seja agora uma aplicação particular disto que acabou de se dizer: os antigos pensadores jurídicos da Índia tinham o hábito de falar do que, de modo pouco abonador, designavam de matsyanyaya, “justiça no mundo dos peixes”, onde o peixe maior pode livremente devorar o mais pequeno. E avisam-nos de que evitar a matsyanyaya há-de ser uma parte essencial da justiça, pelo que é crucial que nos asseguremos de que à “justiça dos peixes” não se permita que invada o mundo dos seres humanos. A conclusão central que vemos decorrer daqui é a de que a realização da justiça, no seu sentido de nyaya, não é apenas uma questão de emitir um juízo sobre instituições e regras, mas antes um juízo sobre as sociedades como elas são em si mesmas. De nada adiantará que as organizações estabelecidas sejam as mais próprias, se, mesmo assim, um peixe grande puder devorar o mais pequeno a seu talante, pois isto, a acontecer, sempre haverá de ser uma patente violação da justiça humana entendida como nyaya. Permitam-me tomar um exemplo para ilustrar melhor a distinção entre niti e nyaya. Ficou famosa esta afirmação, no século XVI, de Ferdinando I, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico: «Fiat justitia, et pereat mundus» – que poderá ser traduzida por «Que se faça a justiça, ainda que o mundo deva perecer». Esta dura máxima poderia corresponder ao niti – um niti bem austero – que é advogado por alguns (e que era, aliás, o caso do Imperador Ferdinando), mas o facto é que será bem difícil imaginar que uma catás- * O mais famoso dos antigos pensadores jurídicos indianos, Manu, nutria, de facto, um grande interesse pelo nitis, e, aliás, na mais severa das suas modalidades (nas discussões indianas contemporâneas, tenho ouvido descrever Manu como um “legislador fascista”, o que tem o seu quê de verdadeiro). Mas até mesmo Manu não conseguiria resistir a ser confrontado com as realizações próprias do nyaya, sempre que quisesse justificar a correcção de um tipo particular de nitis. Assim por exemplo, é-nos dado conta do seguinte: mais vale ser desdenhado do que desdenhar, «pois aquele que é desdenhado dorme tranquilo, acorda tranquilo e anda tranquilo pelo mundo; já o homem que desdenha perece» (Capítulo 2, instrução 163). E na mesma linha: «onde as mulheres não são reverenciadas, todos os rituais são infrutíferos», pois «onde as mulheres de família andam infelizes, não tardará muito para que a família seja destruída, mas já é sempre pujante onde as mulheres não andam infelizes» (Capítulo 3, instruções 56 e 57). As traduções são tiradas da excelente tradução de Wendy Doniger, The Laws of Manu, Londres, Penguin, 1991. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA trofe geral possa passar por um exemplo de um mundo justo, se entendermos a justiça de acordo com a categoria mais ampla do nyaya. Se o mundo realmente viesse a perecer, não haveria muito para celebrar nesse feito, ainda que se pudesse conceber os mais sofisticados e variados argumentos para sair em defesa desse áspero e severo niti que conduzira a tão extremado resultado. Uma perspectiva centrada nas realizações também permite compreender mais facilmente a importância de, neste mundo, nos aplicarmos a tentar impedir os casos de injustiça manifesta, ao invés de sairmos em busca do que é perfeitamente justo. Como fica claro no exemplo do matsyanyaya, o objecto da justiça não consiste apenas em tentar conseguir – ou em sonhar com isso – uma qualquer sociedade perfeitamente justa ou arranjos sociais também perfeitamente justas, mas consistirá outrossim em afastar a severidade das injustiças manifestas (tal seria o caso de se tentar evitar esse lastimável estado de coisas que é próprio do matsyanyaya). Por exemplo, quando, nos século XVIII e XIX, vieram as agitações que pretendiam a abolição da escravatura, as pessoas que delas participavam não o faziam por terem a ilusão de que a abolição da escravatura iria transformar o mundo dando lugar a um mundo perfeitamente justo; o que sim pretendiam defender era que uma sociedade com escravos era uma sociedade totalmente injusta (por entre os autores já mencionados, Adam Smith, Condorcet e Mary Wollstonecraft estavam muito apostados em mostrar o bem fundado desta perspectiva). Na escravatura, foi o diagnóstico de uma intolerável injustiça a fazer com que a abolição se tornasse numa prioridade avassaladora, e para isso não foi preciso que se tentasse obter um consenso acerca de qual deveria ser o semblante da sociedade perfeitamente justa. Aqueles que pensam – e com boas razões – que a Guerra Civil americana, que acabou por conduzir à abolição da escravatura, foi uma grande conquista para a justiça na América, teriam de conceder que, a seguirmos a perspectiva do institucionalismo transcendental (para a qual o único contraste é o que existe entre aquilo que é perfeitamente justo e o resto), não haveria muito para dizer acerca de uma possível vantagem da abolição da escravatura para o reforço da justiça*. * É interessante notar que o diagnóstico feito por Karl Marx sobre «o único grande acontecimento da história contemporânea» levou-o a atribuir esta distinção à Guerra Civil 61 62 A IDEIA DE JUSTIÇA A IMPORTÂNCIA DOS PROCESSOS E AS RESPONSABILIDADES Os que se inclinam para ver a justiça em termos de niti e não em termos de nyaya – independentemente do nome que dêem a tal dicotomia – poderão ser influenciados pelo medo de que uma atenção centrada sobre as realizações efectivas possa levar a ignorar o significado dos processos sociais, nos quais teremos de incluir o exercício dos deveres e das responsabilidades individuais. Podemos fazer o que é certo e ainda assim podemos não ser bem sucedidos; ou então, pode acontecer que se obtenha um bom resultado, não porque o tivéssemos em vista, mas por qualquer outra razão, talvez até acidental, e, ainda assim, poderemos iludir-nos continuando a pensar que foi feita justiça. Todavia, seria possível argumentar de outra maneira, lembrando que não seria de todo conveniente que nos concentrássemos tão-só naquilo que realmente acontece, ignorando por completo tudo o que tenha a ver com processos, esforços ou condutas. Quanto aos filósofos que acentuam o papel do dever e de outros aspectos daquilo que dá pelo nome de abordagem deontológica, esses serão assaltados pela especial suspeita de que a distinção entre arranjos e realizações faz lembrar muito vivamente o antigo contraste entre outras duas perspectivas da justiça, a deontológica e a consequencial. Sendo embora importante não desconsiderar esta particular inquietação, sempre poderíamos contrapor que ela parece estar aqui deslocada. Uma caracterização das realizações que se queira exaustiva deverá incluir sempre o exacto processo pelo qual um eventual estado de coisas acaba por emergir. Num artigo dedicado a econometria (Econometrica), umas décadas atrás, chamei a isto o “resultado com- americana, que haveria de conduzir à abolição da escravatura (Capital, vol. I, Londres, Sonnenschein, 1887, Capítulo X, Secção 3, p. 240). Se bem que Marx sustentasse que os arranjos capitalistas do trabalho eram exploradores, nem por isso deixava de insistir em como era um melhoramento enorme passar de um sistema de trabalho escravo para um de trabalho assalariado – sobre este tema, veja-se também a obra de Marx, Grundrisse, Harmondsworth, Penguin Books, 1973. A análise que Marx fez da justiça foi muito além dessa sua fascinação, que os críticos tanto discutem, em torno do «último estádio do comunismo». UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA preensivo” (“comprehensive outcome”); nele vão incluídos todos os processos que ocorram e devemos distingui-lo do “resultado de culminação” (“culmination outcome”)9; por exemplo: uma detenção arbitrária é mais do que a mera captura e detenção de alguém, é precisamente o que a expressão nos diz, uma detenção arbitrária. De maneira semelhante, também o papel da agência humana não poderá ser obliterado só porque se decide centrar a atenção exclusivamente sobre o que vem a suceder no ponto de culminação; por exemplo: existe uma diferença real entre o facto de algumas pessoas morrerem à fome devido a circunstâncias que estão para lá do controlo de quem quer que seja e o facto de as mesmas pessoas serem mortas à fome devido a um projecto desenhado por alguém que quisesse provocar esse resultado (é claro que estamos diante de uma tragédia em ambos os casos, mas o tipo de conexão que cada uma dessas duas tragédias apresenta com a justiça não poderá ser o mesmo). Ou, para vermos outro tipo de casos, se um candidato às eleições presidenciais vier afirmar que, para si, o que é realmente importante não é apenas vencer as eleições que se avizinham, mas «vencer com lisura e equidade», teremos nesse caso que o resultado procurado vai ser algo que certamente andará na linha de um resultado compreensivo. Seja ainda um exemplo de outra espécie. No épico indiano, Mahabharata, mais especificamente, naquela sua parte que se intitula Bhagavadgita (ou, abrevidamente, Gita), na véspera da batalha, que é o episódio central deste épico, o guerreiro invencível, Arjuna, manifesta as suas profundas dúvidas acerca da oportunidade de chefiar um combate que, por certo, irá redundar numa enorme mortandade. Diz-lhe o seu conselheiro, Krishna, que ele, Arjuna, deve dar a prioridade ao seu dever, que é o de combater, sejam quais forem as consequências. Essa famosa conversa costuma ser interpretada como um debate que contrapõe deontologia a consequencialismo, e no qual Krishna, o deontologista, urge Arjuna a cumprir o seu dever, ao passo que Arjuna, o suposto consequencialista, se preocupa com as terríveis consequências da guerra. Neste debate, conta-se que a levar a melhor seja a canonização das exigências proclamadas por Krishna, pelo menos do ponto de vista religioso. Na verdade, o Bhagavadgita tornou-se um tratado de grande importância teológica para a filosofia hindu, centrando-se ele especialmente na “remoção” das dúvidas de Arjuna. A posição moral 63 64 A IDEIA DE JUSTIÇA de Krishna também foi perfilhada eloquentemente por muitos comentadores filosóficos e literários em todo o mundo. Nos Quatro Quartetos, T. S. Eliot resume o ponto de vista de Krishna sob a forma de advertência: «E não penseis no fruto da acção. / Segui avante.» E Eliot passa a explicar, não se desse o caso de não percebermos a questão: «Não: segui bem; / Mas: segui avante, viajantes»10. Já disse noutro sítio (em O Indiano Argumentativo ) que como passemos além dos estreitos confins do final do debate que aparece neste particular ponto do Mahabharata e que se intitula Bhagavadgita, reparando no modo como Arjuna apresenta o seu argumento nas primeiras secções da Gita, ou como olhemos para o Mahabharata como um todo, logo veremos também como se tornam evidentes as limitações da perspectiva de Krishna11. De facto, após a completa devastação do país que se seguiu ao epílogo bem sucedido daquela “guerra justa”, já perto do final do Mahabharata, enquanto as piras funerárias ardiam em uníssono e as mulheres carpiam as mortes dos seus familiares, seria difícil convencermo-nos de que a perspectiva mais ampla de Arjuna tivesse saído derrotada por Krishna de uma vez por todas. Mais parece, aliás, que ainda poderão restar poderosos argumentos a favor de “seguir bem” e não só “avante”. Muito embora aquele contraste possa ser retratado adequadamente pela diferenciação entre as perspectivas consequencialista e deontológica, o que aqui se afigura particularmente relevante é que possamos ir além do simples contraste, para passarmos então a analisar quais eram, na sua globalidade, as preocupações de Arjuna acerca do seu “não seguir bem”. Arjuna não se preocupa apenas com o facto de que, a haver guerra, com ele a chefiar a carga ao lado da justiça e da propriedade de uma certa situação, muitas pessoas encontrarão a sua morte. É certo que também isso o preocupa, mas, no início da Gita, Arjuna manifesta, além disso, a preocupação de que seria ele próprio a executar uma grande parte dessas mortes, e, em muitos casos, de pessoas por quem tinha estima e com as quais mantinha relações pessoais, pois a batalha era entre dois ramos da mesma família, aos quais se tinham vindo juntar outras pessoas que eram bem conhecidas dos dois lados. Assim sendo, o facto que preocupa Arjuna, nos seus contornos exactos, vai muito para além de uma perspectiva independente do processo que só mira às consequências. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA Um entendimento adequado do que seja uma realização social – e que é central para a justiça como nyaya – requer aquele tipo de consideração compreensiva que é capaz de incluir o processo12. Não seria pois curial que se quisesse desqualificar a perspectiva das realizações sociais só com o fundamento de que ela se mostra estreitamente consequencialista ignorando as preocupações deontológicas subjacentes. INSTITUCIONALISMO TRANSCENDENTAL E FALTA DE CUIDADOS À ESCALA GLOBAL Este arrazoado introdutório terminará com uma observação final relativa a um particular aspecto restritivo que detectamos nas actuais correntes dominantes da filosofia política, isto é, a sua excessiva concentração em redor do institucionalismo transcendental. Pensemos ao acaso numa das inúmeras mudanças que se podem propor com vista a reformar a estrutura institucional do mundo actual, para assim o tornar menos injusto e iníquo (de acordo com os critérios geralmente aceites). Atente-se, por exemplo, no caso da reforma da legislação das patentes com o fito de tornar os remédios de grande circulação e de produção barata mais acessíveis a doentes deles necessitados, mas pobres (como será o caso dos doentes de SIDA) – e não pode haver dúvida de que este é um tema com alguma importância para a justiça mundial. Eis então a pergunta que temos de nos fazer: quais as reformas internacionais de que necessitamos para tornar o mundo um pouco menos injusto? Contudo, este tipo de discussão acerca do reforço da justiça em geral, e sobre a extensão da justiça mundial em particular, poderá parecer mera “conversa fiada” aos que tenham ficado convencidos pela pretensão de Hobbes – e de Rawls – de que precisamos de um estado soberano que trate de aplicar os princípios da justiça através da escolha de um conjunto perfeito de instituições: esta mais não é do que uma directa implicação de se enquadrar as questões da justiça na moldura do institucionalismo transcendental. Uma justiça a nível global, conseguida por meio de um conjunto de instituições impecavelmente justo – mesmo admitindo que se poderia chegar a definir uma tal coisa –, certamente iria requerer a existência de um estado 65 66 A IDEIA DE JUSTIÇA soberano global; ora, não existindo um tal estado, aos olhos dos transcendentalistas, as questões de justiça global parecerão impossíveis de dirimir ou sequer de discutir. Considere-se a firme rejeição de uma qualquer relevância da «ideia de justiça global» por parte de um dos filósofos contemporâneos mais originais, poderosos e humanos, o meu amigo Thomas Nagel, graças a cujo trabalho tanto tenho aprendido. Num interessantíssimo artigo publicado na Philosophy and Public Affairs de 2005, vemo-lo a inspirar-se precisamente na concepção transcendental de justiça, a fim de concluir que a justiça global não é tema passível de ser discutido, pois que, no momento presente, os elaborados requisitos institucionais que cabe cumprir para obter um mundo justo são impossíveis de satisfazer a nível mundial. Nas palavras dele: «Parece-me muito difícil resistir ao argumento de Hobbes acerca da relação entre justiça e soberania», e «se Hobbes estiver certo, a ideia de uma justiça global sem um governo mundial é uma quimera»13. Por conseguinte, diante de um contexto mundial, Nagel concentra os seus esforços na clarificação de outro tipo de requisitos, diferentes das exigências que seriam próprias da justiça – tais como uma «moralidade humanitária mínima» (a qual «governa a nossa relação com todas as outras pessoas») –, dedicando-se também ao estudo de estratégias a longo prazo com vista a uma alteração radical das combinações institucionais («creio que o caminho mais viável para alcançar uma certa versão da justiça global passa pela criação de estruturas de poder global manifestamente injustas e ilegítimas que sejam toleráveis à luz dos interesses dos estados-nações actualmente mais poderosos»)14. O contraste com que podemos deparar neste caso será entre uma visão das reformas institucionais que atende ao papel destas para nos conduzirem à justiça transcendental (tal como ela é delineada por Nagel) e uma avaliação que atenda ao melhoramento que as ditas reformas realmente trarão, especialmente através da eliminação de todas as situações que sejam vistas como casos de injustiça manifesta (o que é parte integrante da perspectiva que se apresenta neste livro). Também na abordagem rawlsiana se pode dizer que a aplicação de uma teoria da justiça requer uma extensa panóplia de instituições, sendo ela a determinar a estrutura básica de uma sociedade completamente justa. Não espanta, pois, que Rawls chegue mesmo a aban- UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA donar os seus próprios princípios de justiça, quando se trata de proceder à avaliação da maneira de pensar a justiça a nível mundial, e, por isso, que não enverede pela opção fantasiosa de vir reclamar um estado global. Num trabalho posterior, A Lei dos Povos, Rawls vem invocar uma sorte de “suplemento” a acrescer à prossecução nacional (ou interna a um país) das exigências da “justiça como equidade”. No entanto, este suplemento aparece sob uma forma muito suavizada, isto é, como uma espécie de negociação entre representantes de diferentes países sobre questões muito elementares de civilidade e humanidade – coisas que, afinal, poderão ser vistas como aspectos muito limitados da justiça e nada mais. De facto, Rawls não tenta fazer derivar “princípios de justiça” que pudessem vir a emanar destas negociações (mais: daí não derivaria coisa alguma a que se pudesse dar esse nome), concentrando-se, em vez disso, sobre alguns princípios gerais de comportamento humanitário15. Na verdade, a teoria da justiça, tal como nos aparece formulada pelo institucionalismo transcendental presentemente dominante, reduz muitas das questões mais relevantes da justiça a uma retórica vazia – ainda que reconhecidamente “bem intencionada”. Quando, por todo o mundo, vemos que as pessoas se mobilizam para conseguir mais justiça mundial – e quero aqui enfatizar a palavra comparativa “mais” –, não pensemos que elas estão a bradar por uma qualquer espécie de “humanitarismo mínimo”. Mas também não se estão a mobilizar para obter uma sociedade mundial “perfeitamente justa”. Mobilizam-se tão-somente para que se chegue à eliminação de algumas combinações injustas e ultrajantes, e para que se venha a reforçar a justiça mundial, precisamente da mesma maneira que, a seu tempo, o fizeram Adam Smith, Condorcet e Mary Wollstonecraft – e sobre isto há acordos que podem ser gerados por meio da discussão pública, mesmo persistindo a divergência de pontos de vista acerca de outras questões. A não ser assim, as pessoas que hoje se sentem vilipendiadas sempre poderão encontrar uma boa expressão da sua voz neste enérgico poema de Seamus Heaney: 67 68 A IDEIA DE JUSTIÇA «Diz a história: Não tenhais esperança Do lado de cá da campa, Mas eis que na vida uma vez verão, A ansiada onda gigante da justiça, Que enfim poderá erguer-se imensa, E aí esperança e história rimarão.»16 Por mais apelativo que possa ser este fundo desejo de que, um dia, história e esperança possam vir a rimar, a verdade é que a justiça do institucionalismo transcendental mostra grande relutância em acolher tal apelo. Uma tal limitação é apenas uma ilustração de como as teorias da justiça hoje dominantes estão precisadas de uma grande viragem substancial. E é esse, precisamente, o objecto deste livro. UMA PERSPECTIVA DA JUSTIÇA PARTE I AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA 69 70 A IDEIA DE JUSTIÇA AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA 1. RAZÃO E OBJECTIVIDADE Ludwig Wittgenstein, um dos maiores filósofos do nosso tempo, escreveu o seguinte no Prefácio à sua primeira grande obra filosófica, o Tractatus Logico-Philosophicus, publicado em 1921: «O que, de alguma maneira, pode ser dito, pode ser dito claramente; e sobre o que não se pode falar, deve-se calar»*. Wittgenstein viria a reexaminar as suas posições sobre o discurso e sobre a clareza do mesmo, na sua investigação posterior, mas é um alívio verificar que, mesmo enquanto escrevia o seu Tractatus, este grande filósofo nem sempre seguiu aquele seu peremptório mandamento. Numa carta dirigida a Paul Engelmann, escrita em 1917, Wittgenstein faria esta admirável e enigmática observação: «Estou a trabalhar com grande afinco e só queria ser melhor e mais inteligente. E estas duas são uma e a mesma coisa»1. A sério? São uma e a mesma coisa, ser-se um ser humano mais inteligente e ser-se uma pessoa melhor? Naturalmente, estou bem ciente de que o moderno uso transatlântico da língua veio afogar a distinção entre “ser-se bom” (“being good”), enquanto qualidade moral, e “estar bem” (“being well”), enquanto comentário acerca do estado geral de saúde (nada de dores ou maleitas, boa pressão arterial e por aí fora), e já há muito que deixei de me preocupar com a manifesta imodéstia de alguns dos meus amigos que, quando se lhes pergunta como estão, respondem em tom de aparente auto-elogio: «Eu sou muito bom» («I am very * É interessante notar que também Edmund Burke aludia à dificuldade de se falar em certas circunstâncias (veja-se a Introdução, onde citei Burke a este propósito), todavia, e ainda assim, Burke continuou a falar sobre o tema, pois que era, obtemperava ele, «impossível ficar calado» sobre um assunto de tal gravidade como aquele de que estava a tratar (a causa de acusação de Warren Hastings). Por muitos motivos, a posição de Wittgentein, que nos aconselha a calar quando não podemos falar com suficiente clareza, poderá parecer o oposto da perspectiva de Burke. 71 72 A IDEIA DE JUSTIÇA good»)nt. Sucede, porém, que Wittgenstein não era americano e, em 1917, estávamos ainda muito longe da conquista do mundo pelos fogosos usos linguísticos americanos. Quando Wittgenstein disse que ser-se “melhor” (being “better”) e ser-se mais inteligente (being “smarter”) eram “uma e a mesma coisa”, decerto que estava a enunciar uma asserção de tipo substancial. Subjacente a isto, poderemos encontrar uma certa forma de reconhecimento de que muitos actos de malvadez são cometidos por pessoas que, de alguma maneira, estão iludidas acerca do objecto. A falta de inteligência pode certamente constituir uma fonte de falhas morais que hão-de afectar um bom comportamento. Por vezes, reflectir detidamente sobre qual seria o passo inteligente a dar poderá ajudar-nos a agir melhor em relação aos outros. Que tal pode ser o caso em muitas circunstâncias foi mostrado muito claramente pela moderna teoria dos jogos2. Entre as razões prudenciais que levam ao bom comportamento poderá, com certeza, contar-se o ganho que, para si próprio, se retirará de um tal comportamento. De facto, poderá gerar-se um grande ganho para todos os membros de um grupo, quando se opta por seguir as regras daquele bom comportamento que poderá trazer ajuda para todos. Nem seria especialmente inteligente que um grupo de pessoas agisse de uma maneira que causasse a ruína de todas elas3. Mas quem sabe se não era outra coisa o que Wittgenstein queria dizer. Ser mais inteligente pode também dar-nos a aptidão para pensar com mais clareza acerca dos nossos objectivos, finalidades e valores. Se o interesse próprio é, em última análise, um pensamento primitivo (sem embargo de todas as complexidades acabadas de mencionar), já a clareza acerca de prioridades e obrigações mais sofisticadas que queiramos acarinhar e cumprir haverá de depender do nosso poder de raciocínio. Uma pessoa pode ter razões para agir de maneira socialmente decente que foram alvo de aturada reflexão e que não consistem na mera promoção de ganhos pessoais. nt Como é bom de ver, esta comparação é eficaz em inglês, pois nessa língua o mesmo verbo, to be, pode ter o significado de “ser” ou “estar”, pelo que a mesma expressão inglesa valeria para traduzir a correspondente portuguesa “eu estou muito bom”, expressão esta, no entanto, que não ressaltaria a chicana linguística que o Autor pretende sublinhar. AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA Ser-se mais inteligente é algo que pode ajudar a perceber não apenas os próprios interesses, mas igualmente o facto de que as vidas das outras pessoas podem ser fortemente afectadas pelas nossas acções. Os corifeus da designada “Teoria da Escolha Racional” (que foi proposta pela primeira vez no campo económico, vindo então a ser entusiasticamente perfilhada por vários pensadores políticos e jurídicos) esforçaram-se com denodo para nos fazer aceitar a peculiar concepção de que a escolha racional consiste tão-só numa hábil e inteligente promoção do interesse próprio (e, por mais estranho que pareça, é isto que corresponde à definição proposta para “escolha racional” pelos defensores desta corrente que tem como nome de marca “teoria da escolha racional”). Contudo, deve dizer-se que nem todas as cabeças se deixaram colonizar por esta crença tão profundamente alienante; ainda se vai notando uma considerável resistência à ideia de que não pode deixar de ser manifestamente irracional – e estúpido – que se tente fazer alguma coisa pelos demais, excepto na medida em que fazer o bem aos outros possa vir aumentar o nosso próprio bem-estar4. “Aquilo que devemos uns aos outros” é um importante tema para uma reflexão inteligente5. Uma tal reflexão pode levar-nos para além da prossecução de uma visão do interesse próprio demasiado estreita, e até poderemos acabar por descobrir que esses nossos objectivos, que tão bem ponderámos exigem que atravessemos por completo as estreitas fronteiras da busca exclusiva do interesse individual. Pode ainda haver casos em que teremos razões para refrear a exclusiva prossecução dos nossos objectivos (sejam eles ou não, em si mesmos, exclusivamente votados à busca do próprio interesse), para podermos seguir regras de comportamento decente que permitam contemporaneamente a prossecução de objectivos (ligados ou não ao interesse próprio) por parte de outras pessoas que compartilham o mundo connosco*. * A alguns comentadores causa perplexidade que se entenda ser razoável admitirmos uma cedência na busca individualista e exclusiva dos objectivos próprios, para deixar espaço aos outros, a fim de que possam também prosseguir os seus objectivos (alguns chegam a ver nisto uma espécie de “prova” de que aquilo que achávamos serem os nossos objectivos não eram, afinal, os nossos objectivos reais), mas já não haverá nisto qualquer perplexidade, sempre que façamos uma correcta apreciação do alcance da razão prática. Estes temas serão tratados nos Capítulo 8, “A Racionalidade e os Outros”, e 9, “Pluralidade e Razões Imparciais”. 73 74 A IDEIA DE JUSTIÇA Considerando que, mesmo ao tempo de Wittgenstein, já havia precursores da “teoria da escolha racional”, talvez ele quisesse dizer, afinal, que ser mais inteligente nos ajuda a pensar mais claramente acerca dos nossos empenhos e responsabilidades sociais. Tem sido sugerido que certas crianças cometem actos de brutalidade sobre outras crianças ou sobre animais, precisamente por causa da sua inaptidão para perceberem de modo adequado a natureza e a intensidade da dor sofrida pelos outros, e que, geralmente, esta percepção acompanha o desenvolvimento intelectual que leva à maturidade. Como é óbvio não podemos ter a certeza sobre qual o sentido das palavras de Wittgenstein*. Ainda assim, temos sobejas provas de que dedicava uma considerável parte do seu tempo e do seu intelecto a pensar sobre as suas próprias responsabilidades e compromissos. E contudo, nem sempre o resultado foi muito inteligente ou sensato. É assim que vemos Wittgenstein firmemente decidido a ir para Viena em 1938, no preciso momento em que Hitler fazia um cortejo triunfante através da cidade, apesar da sua linhagem judia e da sua incapacidade para ser diplomático e ficar em silêncio; tiveram de ser os colegas de universidade, em Cambridge, a segurá-lo e a impedi-lo de ir†. Nas conversas mantidas por Wittgenstein temos, contudo, bastantes indicações de que ele pensava que, decididamente, a sua capacidade intelectual deveria ser usada para se conseguir um mundo melhor‡. * Esta questão interpretativa é tratada de maneira iluminante por Tibor Machan em A Better and Smarter Person: A Wittgenstein Idea of Human Excellence”, apresentado no 5.º Simpósio Internacional sobre Wittgenstein, 1980. † Piero Sraffa – o economista que teve uma grande influência sobre Ludwig Wittgenstein, contribuindo para que este revisse a posição filosófica que defendera anteriormente no Tratactus Logico-Philosophicus (ajudando assim a preparar o terreno para as obras posteriores de Wittgenstein, entre as quais se incluem as Philosohical Investigations, Oxford, Blackwell, 1953) – desempenhou um papel preponderante em dissuadir Wittgenstein de ir a Viena para apresentar um severo discurso diante de um Hitler triunfante. A sua relação intelectual e pessoal é revisitada no meu ensaio “Sraffa, Wittgenstein e Gramsci”, Journal of Economic Literature, 41 (Dezembro, 2003). Sraffa e Wittgenstein foram amigos muito próximos e chegaram ainda a ser colegas como professores no Trinity College, em Cambridge. Veja-se o Capítulo 5, “Imparcialidade e Objectividade”, para uma discussão da ligação intelectual de Sraffa, primeiro com Antonio Gramsci, e depois com Wittgenstein, e da relevância dos conteúdos deste intercâmbio tripartido para alguns dos temas deste livro. ‡ Este seu empenho está em correlação com aquilo que o seu biógrafo, Ray Monk, chama de “dever do génio” (Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius, Londres, Vintage, 1991). AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA CRÍTICA DA TRADIÇÃO ILUMINISTA Se era isso realmente que Wittgenstein queria dizer, então, ele estava fortemente alinhado com a poderosa tradição do Iluminismo europeu, que via no raciocínio límpido um grande aliado do desejo de melhorar as sociedades humanas. O melhoramento social por meio de um raciocínio sistemático era um filão proeminente dos argumentos correntes durante a animação intelectual que se associou ao Iluminismo europeu, especialmente no século XVIII. No entanto, é difícil fazer generalizações acerca de um qualquer avassalador predomínio da razão no pensamento prevalente do período dito do Iluminismo. Como demonstrou Isaiah Berlin, durante a “Era do Iluminismo” houve também uma gama de diferentes espécies de correntes que eram contra-racionais6. Mas decerto que foi a profunda – e algo deliberada – confiança na razão um dos principais pontos de viragem que distanciou o pensamento iluminista das tradições que haviam prevalecido até então. Aliás, nas discussões políticas contemporâneas tornou-se bastante comum vir defender que o Iluminismo encareceu demasiado o alcance da razão. De facto, também já se aventou que a excessiva confiança na razão, que a tradição iluminista ajudou a instilar no pensamento moderno, influiu na propensão para cometer atrocidades que vimos acontecer no mundo saído do Iluminismo. Juntando a sua voz a este remoque que se lhe faz e engrossando esta particular linha de pensamento crítico, temos também o conhecido filósofo Jonathan Glover, o qual, na vibrante arguição que nos oferece em The Moral History of the Twentieth Centurynt, nos vem afirmar que «a visão iluminista da psicologia humana» se foi tornando cada vez mais «estreita e mecânica», e ainda que «as esperanças iluministas de progresso social pela expansão do humanitarismo e da atitude científica» parecem-nos agora bastante «ingénuas»7; e de seguida, vemo-lo a ligar as modernas tiranias a essa mesma visão (como o fizeram outros críticos do Iluminismo), sustentando que não só «Estaline e os seus herdeiros» estavam em completa «servidão diante do Iluminismo», mas também Pol Pot «foi indirectamente influenciado por ele»8. Porém, dado que nt “A História Moral do Século XX”. 75 76 A IDEIA DE JUSTIÇA Glover não pretende encontrar uma solução através da autoridade da religião ou da tradição (a este respeito, ele faz notar que «não podemos escapar ao Iluminismo»), o que ele faz é dirigir a sua chama contra convicções veementes que nos vejamos compelidos a aceitar, para as quais também contribui substancialmente o uso excessivamente confiante da razão. «A crueza do estalinismo», afirma ele, «teve a sua origem nas convicções»9. Seria difícil disputar a apreciação de Glover relativamente ao poder exercido por crenças fortes e por persuasões terríveis, como o seria desafiar a sua tese acerca do «papel da ideologia no estalinismo». A questão que aqui temos de colocar não tem tanto a ver com o temível poder das más ideias como com o diagnóstico de que esta é, de alguma maneira, uma crítica acerca do alcance e das potencialidades da razão em geral, e da perspectiva iluminista em particular10. Será realmente ajustado que se atire para cima da tradição iluminista a culpa pela propensão para ter certezas prematuras e pelas crenças acríticas e irreflectidas de sombrios líderes políticos, especialmente se se considerar a importância preeminente que tantos autores iluministas assacaram ao papel do uso da razão sempre que se tratasse de fazer escolhas, em particular para obstar a uma mera confiança em crenças cegas? E seguramente, «a crueza do estalinismo» podia ser contrastada, como de facto o foi por dissidentes que se serviram de uma demonstração argumentada do enorme fosso existente entre promessa e prática, e que, além disso, vieram expor como um facto a brutalidade desse regime, mau grado as pretensões por ele próprio assumidas – uma brutalidade que as autoridades tiveram de esconder através da censura e da expurgação, subtraindo-a assim a qualquer escrutínio. Decerto que um dos principais pontos a favor da razão é o facto de ela nos ajudar a submeter a escrutínio a ideologia e a crença cega*. E de facto, por certo que não foi a razão a principal aliada de 6 É com certeza verdade que há muitas crenças cruas e rudes que têm a sua origem nalguma espécie de razão – possivelmente espécies de razão de tipo bem primitivo (por exemplo, muitas vezes, os preconceitos racistas e sexistas conseguem sobreviver assentes no facto de se conceber uma “razão” segundo a qual os que não são brancos e as mulheres são biológica ou intelectualmente inferiores). Advogar a tese da confiança na razão não implica uma negação desse facto facilmente verificável de que as pessoas, de facto, oferecem AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA Pol Pot. Esse papel coube a uma convicção frenética e não argumentada, sem qualquer espaço para um escrutínio racional. É inegável o interesse e a importância destes pontos da muito persuasiva Na apreciação crítica que Glover faz da tradição iluminista, estes pontos, cujo interesse e importância são inegáveis, são-nos apresentados de modo particularmente persuasivo e contêm em si a seguinte questão: onde se há-de encontrar o remédio para um mau uso da razão? Há também esta outra questão que se relaciona com a anterior: qual é a relação entre a razão e as emoções, nomeadamente com a compaixão e a simpatia? E, para além disso, deve-se também perguntar o seguinte: qual a justificação última para que se confie na razão? Será que a razão é acarinhada por ser um bom instrumento, e se assim for, um instrumento para conseguir o quê? Ou será que a razão se justifica por si mesma, e se assim for, em que é que difere de uma crença cega e irreflectida? Estes pontos têm sido matéria de discussão ao longo de todas as eras, mas aqui temos uma necessidade especial de nos defrontarmos com eles, tendo conta que este livro se centra sobre o papel da razão na investigação da ideia de justiça. AKBAR E A NECESSIDADE DA RAZÃO Na margem da sua cópia de A Genealogia da Moral, de Nietzsche, W.B. Yeats escreveu o seguinte: «Mas porque pensa Nietzsche que a noite não tem estrelas e que nada mais há que não sejam morcegos, corujas e uma lua demente?»11 O cepticismo de Nietzsche acerca da humanidade, a sua arrepiante visão do futuro faziam a sua entrada em cena quando estava para começar o século XX (ele morre em 1900). Os acontecimentos do século que se lhe seguiu, incluindo as guerras mundiais, dão-nos razões suficientes para nos inquietarmos e para nos interrogarmos sobre se este cepticismo de Nietzsche em razões de alguma espécie para defender as suas crenças (por mais cruas ou rudes que estas sejam). O objectivo de fazer do uso da razão uma disciplina é o de submeter as crenças ou convicções dominantes e as suas alegadas razões a um exame crítico. Estas questões serão tratadas mais de espaço nos Capítulos 8, “A Racionalidade e os Outros”, e 9, Pluralidade e Razões Imparciais”. 77 78 A IDEIA DE JUSTIÇA relação à humanidade não estaria, afinal, absolutamente certo*. De facto, quando, no fim do século XX, Jonahthan Glover se dedicou a estudar as preocupações de Nietzsche, concluiu que «temos de olhar muito atentamente e com clareza para os monstros que habitam dentro de nós», e pensar em maneiras de os «enjaular e domar»12. O fim de um século é uma dessas ocasiões que muitos acham serem momentos oportunos para proceder a um exame crítico sobre as coisas que estão a acontecer e sobre o que se deve fazer no futuro. É certo que nem sempre tais reflexões atingem o grau de pessimismo e cepticismo de Nietzsche (ou Glover) acerca da natureza humana e da possibilidade de mudar as coisas com o uso da razão. Em tempos bem mais remotos, na Índia, pode-se encontrar um interessante contraste nas deliberações do imperador mogol, Akbar, e também aí estávamos diante de um ponto de viragem, mas desta feita milenar, e não apenas secular. Como se aproximasse o fim do primeiro milénio do calendário muçulmano hijri, em 1591-1592 (tinham passado mil anos lunares desde a épica viagem de Maomé, de Meca para Medina, em 622)†, Akbar entregou-se a um aturado escrutínio dos valores sociais e políticos, da prática legal e da vida cultural. Em especial, dedicou atenção aos desafios postos pelas relações entre comunidades diferentes e à perene necessidade de uma paz comum e de uma colaboração frutuosa nessa Índia do século XVI, já então multicultural. Não podemos deixar de reconhecer como as políticas de Akbar eram fora do comum para a época. A Inquisição estava em grande actividade e Giordano Bruno era queimado por heresia em 1600, em Roma, ao mesmo tempo que Akbar proferia palavras de tolerância religiosa na Índia. Akbar não se limitou a insistir que era dever do Estado assegurar-se de que «nenhum homem devia ser incomodado por causa da sua religião, e a todos se deve permitir que sigam a religião que lhes aprouver»13; além disso, também promoveu na capital, Agra, diálogos regulares entre hindus, muçulmanos, * Para usar as palavras em ghazal do poeta urdu Javed Akhtar: «Religião e guerra, castas e raças, destas coisas nada sabe/ Diante da nossa selvajaria como podemos julgar a besta selvagem» (Javed Akhtar, Quiver: Poems and Ghazals, trad. David Matthews, Nova Déli, Harper Collins, 2001, p. 47. † Um ano lunar tem a duração média de 354 dias, 8 horas e 48 minutos, pelo que corre bem mais depressa do que o ano solar. AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA cristãos, jainas, persas, judeus e outros, chegando a incluir neles agnósticos e ateus. Tomando em boa conta a diversidade religiosa do seu povo, Akbar estabeleceu por diversos meios os fundamentos do secularismo e da neutralidade religiosa do estado; a constituição secular que a Índia adoptou em 1949, depois de obter a independência do domínio britânico, apresenta muitos traços que já eram propugnados por Akbar nos anos 90 do século XVI. Os elementos comuns incluem a interpretação do secularismo como requisito para que o estado mantenha a equidistância em relação às diferentes religiões e para que não venha a dar um tratamento de favor a nenhuma delas. Subjacente à perspectiva geral de Akbar quanto à avaliação dos usos e das políticas seguidas, estava a sua tese – e chave de volta do seu pensamento – de que «a demanda em busca da razão» (em vez daquilo a que ele chamava «a terra pantanosa da tradição») é o meio apropriado para tratar dos problemas difíceis do bom comportamento e dos desafios postos pela construção de uma sociedade justa 14. A questão do secularismo é apenas um dos muitos casos em que vemos Akbar a insistir que deveríamos ser livres para examinar se um uso tem ou não o suporte da razão, ou se ela nos fornece justificação para uma política já em curso; por exemplo: ele decidiu abolir todos os impostos especiais sobre os não muçulmanos com o fundamento de que eram discriminatórios, pois não tratavam todos os cidadãos como iguais, e, em 1582, resolveu libertar «todos os escravos imperiais», pois «é alheio ao reino da justiça e da conduta boa» tirar dividendos do uso da «força»15. É fácil encontrarmos ilustrações das críticas de Akbar às práticas sociais dominantes nos argumentos que ele próprio apresentou. Por exemplo: ele opunha-se ao casamento de crianças, que ao tempo era prática comum (e que infelizmente ainda não está completamente erradicado deste subcontinente), uma vez que, argumentava ele, «o objecto pretendido» no casamento «está ainda longínquo e há uma possibilidade imediata de dano». Além disso, também criticava a prática hindu de não permitir às viúvas que se casassem em segundas núpcias (uso que só iria ser reformado vários séculos mais tarde), e juntava que «numa religião que proíbe o novo casamento à viúva», «é muito maior» a provação que advém de permitir o casamento de crianças. No que toca à sucessão hereditária, Akbar atalhava que «na 79 80 A IDEIA DE JUSTIÇA religião muçulmana, confere-se à filha uma parte menor da herança, ainda que, devido à sua debilidade, ela merecesse receber uma parte maior». E um tipo de raciocínio bem diferente é o que podemos detectar na sua decisão de permitir os rituais religiosos, ainda que sobre eles nutrisse uma visão muito céptica. Quando o seu segundo filho, Murad, tomou conhecimento de que Akbar se opunha a todos os rituais religiosos, foi perguntar-lhe se tais rituais deveriam ser banidos, ao que Akbar imediatamente obtemperou que «impedi-lo a um homem simples e sem sensibilidade que considera que o exercício físico é culto divino equivaleria a impedi-lo [por completo] de se lembrar de Deus». Apesar de se ter mantido um muçulmano praticante, Akbar propugnava a necessidade de que todos submetessem as crenças e prioridades que houvessem herdado a um escrutínio crítico. Aliás, o mais importante argumento que usou a favor da sua defesa de uma sociedade multicultural secular e tolerante talvez tivesse a ver com o papel que, no meio de tudo isto, conferia ao uso da razão. Para Akbar, a razão era suprema, pois, mesmo quando a quiséssemos pôr em questão, sempre teríamos de dar razões para a questionar. Quando, no seio da sua própria religião, se viu atacado por férreos tradicionalistas que defendiam uma fé inquestionável e instintiva na tradição islâmica, Akbar disse ao seu amigo e fiel lugar-tenente, Abul Fazl (um notabilíssimo académico estudioso de sânscrito, árabe e persa): «A demanda em busca da razão e a rejeição do tradicionalismo são tão brilhantemente manifestos que estão acima da necessidade de argumentos»16. E concluía dizendo que o «caminho da razão» ou o «império do intelecto» (rahi aql) têm de ser o determinante fundamental do comportamento bom e justo, sendo também uma moldura aceitável para os deveres e títulos legais*. * Akbar teria alinhado ao lado do diagnóstico de Thomas Scanlon (no seu esclarecedor estudo acerca do papel da razão quando se trata de determinar «o que devemos uns aos outros»), segundo o qual não deveríamos «considerar a ideia da razão como algo de misterioso, ou como ideia que carece de, ou à qual se pode fornecer, uma explicação filosófica que assente numa qualquer outra noção mais básica» (What We Owe Each Other, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1998, p. 3). AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA OBJECTIVIDADE ÉTICA E ESCRUTÍNIO ARGUMENTADO Akbar tinha razão quando salientava que a razão é indispensável. Como passaremos agora a mostrar, até mesmo a importância das emoções é passível de ser apreciada no âmbito da operação da razão. Na realidade, o lugar significativo que as emoções ocupam nas nossas deliberações pode ser explicado através das várias razões que nos fazem levá-las a sério (ainda que não de modo acrítico). Se somos movidos por uma emoção particularmente forte, temos toda a razão em perguntar que conclusão podemos tirar daí. Razão e emoção desempenham papéis complementares na reflexão humana, e mais adiante, neste capítulo, iremos analisar mais demoradamente a complexa relação que se estabelece entre elas. Não é difícil observar que os juízos éticos requerem sempre o rahi aql – o uso da razão. Porém, fica ainda uma questão por responder: porque é que temos de aceitar que a razão deve ser a última instância a funcionar como árbitro das convicções éticas? Haverá algum especial papel que o uso da razão deva desempenhar – talvez uma racionalidade de tipo particular – e que deva ser visto como crucial para os juízos éticos, como se fora a chave de volta dos mesmos? Pois que a simples existência de um fundamento dado pela argumentação, em si mesma, não há-de ser necessariamente uma qualidade atributiva de valor, teremos então de nos perguntar o seguinte: porque será tão crítico que exista um fundamento argumentado? Poder-se-á propugnar que o escrutínio racional é capaz de fornecer uma qualquer espécie de garantia quanto à possibilidade de alcançar a verdade? Uma tal tese seria difícil de manter, não só porque a natureza da verdade em matéria de convicções morais e políticas é um objecto cheio de dificuldades, mas sobretudo porque, em ética como em qualquer outra disciplina, no fim mesmo as mais rigorosas investigações podem falhar. Mais, pode acontecer às vezes que um procedimento mais dúbio, acidentalmente, acabe por produzir uma resposta mais acertada do que uma argumentação extremamente rigorosa. Em epistemologia, isto é até bem óbvio: muito embora um procedimento científico tenha uma maior probabilidade de sucesso, quando comparado com procedimentos alternativos, pode sempre acontecer que um procedimento aloucado venha fornecer a resposta certa para um caso parti- 81 82 A IDEIA DE JUSTIÇA cular (neste caso, uma que fosse mais acertada do que a obtida por meio de procedimentos mais profusamente argumentativos). Seja um exemplo: uma pessoa que depõe a sua confiança num relógio parado para saber as horas, terá sempre a hora certa duas vezes ao dia, e se se desse o caso de querer saber as horas num desses momentos, este seu relógio, conquanto imobilizado, bem poderia levar a melhor sobre todos os relógios mobilizados a que pudesse deitar a mão. Contudo, quando toca a escolher um procedimento, preferir confiar num relógio inerte e não num relógio com movimento e que anda próximo da hora certa não é coisa digna de particular louvor, pese embora o facto de que o relógio mobilizado sempre seria vencido duas vezes por dia pelo relógio estacionário*. Faz sentido pensar que existe um argumento semelhante quando toca a escolher o melhor de entre os procedimentos de argumentação, conquanto continue a não haver garantia de que ele venha a estar invariavelmente certo, como não haverá garantias de que ele venha a estar mais certo do que um outro que seja menos argumentativo (e isto ainda que fôssemos capazes de ajuizar com segurança da correcção dos próprios juízos). A defesa do recurso a um escrutínio argumentado assenta, não numa noção de que disporemos de um meio à prova de fogo que nos permita obter conclusões absolutamente certas (pois isso é coisa que não poderá nem existir), mas na possibilidade de se ser tão objectivo quanto se possa razoavelmente ser†. Diria, pois, que o que subjaz a esta defesa do uso da razão na altura de proceder a juízos éticos são também as exigências da objectividade, as quais nos pedem uma particular disciplina do (e no) uso da razão. O importante papel que neste livro se atribui ao uso da * Numa história para crianças, Leela Majumdar, a escritora bengali (e tia do grande realizador de cinema Satyajit Ray), recorda que, nos tempos em era uma estudante universitária rebelde em Calcutá, certo dia parara na rua para perguntar o seguinte a um desconhecido que passava – apenas para o amofinar ou confundir: «Ó, olá, quando é que voltou de Chittagong?» E o homem, sem perceber, respondeu espantado: «Ontem, como é que sabia?» † Veja-se a poderosa análise de Bernard Williams acerca da possibilidade de encarar uma convicção argumentada como «tendo em mira» a verdade (“Deciding to Believe”, in Problems of the Self, Cambridge, Cambridge University Press, 1973). Vide também Peter Railton, Facts, Values and Norms: Essays towards a Morality of Consequence, Cambridge, Cambridge University Press, 2003. AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA razão relaciona-se com a necessidade de uma argumentação objectiva quando se trata de reflectir sobre questões de justiça e injustiça. Tendo em conta que a objectividade é já em si mesma uma questão de grande dificuldade para a filosofia moral e política, este tema vai exigir-nos uma discussão mais demorada. Será que a busca da objectividade se faz sob a forma de uma busca de objectos éticos? Sendo embora certo que uma boa parte da discussão acerca da objectividade da ética se inclinou para um tratamento da questão em termos ontológicos (em especial, a questão metafísica acerca de “quais os objectos éticos existentes”), é-nos difícil perceber qual poderia ser o aspecto destes objectos éticos. Em vez disso, inclinar-me-ia para seguir o argumento de Hilary Putnam, segundo o qual esta linha de investigação é por de mais inútil e, em larga medida, mostra-se mal orientada*. Quando nos pomos a debater as exigências da objectividade, não se trata de nos pormos a desembainhar a espada por causa da natureza e do conteúdo de tais ou tais alegados “objectos” éticos. Há, com certeza, algumas declarações éticas que pressupõem a existência de certos objectos identificáveis e que podem ser observados (tal aconteceria, por exemplo, no caso de um exercício em se tentasse encontrar provas observáveis para decidir se uma pessoa é corajosa ou compassiva), mas a matéria sobre que incidem outras declarações éticas já poderá não permitir este tipo de associação (por exemplo, um juízo pelo qual se diga que uma pessoa é totalmente imoral ou injusta). Contudo, apesar de uma certa sobreposição entre descrição e valoração, a ética não poderá ser meramente uma questão de descrição verdadeira de objectos específicos. Em vez disso, como defende Putnam, «as autênticas questões éticas são uma espécie das questões práticas, e as questões práticas não envolvem apenas * Hilary Putnam, Ethics without Ontology, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2004. Putnam não trata apenas da inutilidade da perspectiva ontológica para a objectividade em ética, mas também do erro que tal perspectiva comete ao tentar fixar o olhar em algo que está muito distanciado da natureza da matéria em questão. «Na tentativa de fornecer uma explicação ontológica da objectividade da matemática, vejo, na realidade, uma tentativa de fornecer razões que não são parte da matemática a respeito da verdade de declarações matemáticas, e, na tentativa de fornecer uma explicação ontológica da objectividade da ética, vejo uma tentativa similar de fornecer razões que não são parte da ética a respeito da verdade de declarações éticas; ambas as tentativas estão profundamente enganadas.» 83 84 A IDEIA DE JUSTIÇA valoração, envolvem também uma mistura complexa de convicções, juntamente, filosóficas, religiosas e factuais»17. Os processos que são efectivamente empregues para procurar a objectividade podem não ser sempre claros, nem inteiramente explicitados nos seus vários passos, mas, como propõe Putnam, tudo isto pode ser feito com clareza se as questões subjacentes forem adequadamente escrutinadas*. O raciocínio que se deseja para a análise dos requisitos da justiça deverá incorporar algumas exigências básicas de imparcialidade, que são partes integrantes da ideia de justiça e injustiça. Chegados a este ponto, ser-nos-á de valia convocar agora as ideias de John Rawls e a sua análise da objectividade moral e política, a mesma que ele expôs ao apresentar a sua defesa da objectividade enquanto traço da «justiça como equidade» (tema a que se dedicará o próximo capítulo)†. Eis o que afirma Rawls: «O primeiro requisito essencial é o de que uma concepção de objectividade tem de estabelecer uma moldura pública de pensamento que se mostre suficiente para que se lhe aplique o conceito de juízo e para que, depois de uma discussão e da devida reflexão, se chegue a conclusões com base em razões e provas.» E continua: «Dizer que uma convicção política é objectiva é dizer que há razões suficientes, especificadas por uma concepção * No meu livro Development as Freedom (Nova Iorque, Knopf, 1999), abstive-me de encetar uma discussão séria sobre metodologia ética, limitando-me a basear a pretensão de aceitabilidade de algumas prioridades de desenvolvimento em fundamentos que tinham muito de senso comum. Hilary Putnam analisou de modo límpido e definitivo a aplicação da metodologia subjacente àquele livro à área da economia de desenvolvimento, mostrando como essa particular metodologia se ajusta (em boa hora, para mim) à sua perspectiva geral em matéria de objectividade – veja-se o seu The Collapse of the Fact/Value Dicotomy and Other Essays, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2002. Veja-se também Vivian Walsh, “Sen after Putnam”, Review of Political Economy, 15 (2003). † Neste ponto, cumpre sublinhar que existem diferenças substanciais entre, por um lado, a maneira em que Putnam olha para o problema da objectividade, deixando espaço para o seu cepticismo quanto a «princípios universais» (Ethics without Ontology: «poucos problemas reais podem ser resolvidos tratando-os como meras instâncias de uma generalização universal», p. 4), e, por outro lado, a maneira em que Rawls encara o problema, com o seu recurso a princípios universais ao mesmo tempo que procede à investigação das especificidades dos problemas éticos particulares (Political Liberalism, p. 110-118). No entanto, nenhum dos dois se mostra tentado a ver a objectividade da ética em termos de ontologia, ou em termos de uma busca de objectos reais. Nesta obra, inspiro-me tanto na análise de Putnam como naquela de Rawls, mas não progredirei na exploração dos pontos específicos em que assentam as suas diferenças. AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA política razoável e mutuamente reconhecível (que preencha aqueles requisitos essenciais), para que se convença todas as pessoas razoáveis de que ela é razoável»18. Poder-se-ia gerar uma interessante discussão para saber se este critério de objectividade – que contém alguns elementos claramente normativos (especialmente no que tange à caracterização e identificação de «pessoas razoáveis») – tenderia ou não a coincidir com o critério que exige a circunstância de que algo tenha boas probabilidades para resistir a uma discussão pública e informada. Assim, em contraste com Rawls, Jürgen Habermas veio centrar-se nesta última rota de índole fortemente procedimental, ao invés de se fundar numa caracterização independente do procedimento com vista à identificação daquilo que estivesse em condições de convencer todas as pessoas que são «razoáveis» e que, por isso, haveriam de tomar por igualmente «razoável» uma certa convicção política19. Não me é difícil ver a força do argumento de Habermas e a correcção da distinção categorial a que ele procede, sem embargo de não estar completamente persuadido de que as perspectivas de Rawls e Habermas sejam, de facto, radicalmente diferentes do ponto de vista das respectivas estratégias de raciocínio. A fim de conseguir aquele tipo de sociedade política que usualmente é o foco da sua atenção, Habermas vem também ditar um número considerável de exigências estritas para a deliberação pública. Se as pessoas são capazes de ser razoáveis ao tomar nota dos pontos de vista dos demais e ao agradecer toda essa informação, coisa que se deve contar entre as requisitos essenciais de um diálogo público e de espírito aberto, então o hiato entre as duas perspectivas tenderá a não ser necessariamente abissal*. * Habermas defende também que o tipo de acordo que acabaria por emergir no sistema por ele proposto seria substancialmente diferente do conjunto de regras e prioridades mais “liberais” propostas por Rawls (“Reconciliation through the Public Use of Reason: Remarks on John Rawls’s Polital Liberalism”, The Journal of Philosophy, 1995). O que cabe determinar é se tais diferenças entre as conclusões de Habermas e as de Rawls quanto aos resultados substantivos serão realmente o resultado de dois diferentes procedimentos, usados respectivamente pelos dois autores, e que não resultam, em vez disso, das suas respectivas convicções acerca de quão abertas e interactivas poderão ser as deliberações por que se pode esperar no âmbito de intercâmbios livres e democráticos. Vide também Jürgen Habermas, Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics, trad. Ciaran Cronin, Cambridge, MA, MIT Press, 1993. 85 86 A IDEIA DE JUSTIÇA Não me deterei a fazer uma grande distinção entre aqueles que Rawls subsume à categoria de «pessoas razoáveis» e todos os outros seres humanos, mau grado as frequentes alusões que ele faz à – e a sua evidente mobilização da – categoria de «pessoas razoáveis». Já noutro sítio tentei demonstrar que, grosso modo, todos nós somos capazes de razoabilidade, bastando para isso que mantenhamos uma mente aberta, estando por isso dispostos a receber informação de bom grado e a reflectir sobre os argumentos que nos chegam de diferentes direcções, e, a par disso, que aceitemos proceder a deliberações e debates interactivos acerca de como encarar as questões subjacentes20. Não vejo em que é que esta presunção difere da ideia do próprio Rawls sobre «pessoas livres e iguais», todas com «poderes morais»*. De facto, a análise de Rawls parece concentrar-se mais na caracterização dos seres humanos deliberantes do que na categorização de algumas «pessoas razoáveis» com a consequente exclusão de outras†. Vemos, pois, que o papel do uso público e irrestrito da razão é um ponto verdadeiramente central para a vida política democrática, em geral, e para a demanda de justiça social, em particular‡. ADAM SMITH E O ESPECTADOR IMPARCIAL O uso público da razão é claramente um traço essencial da objectividade em matéria de convicções políticas e éticas, e se Rawls propõe uma certa maneira de pensar sobre a objectividade quando se trata de avaliar a justiça, logo aparece Adam Smith invocando o espectador imparcial para nos fornecer outra. Esta “antiga” abordagem (no mo* Rawls refere-se em particular a «dois poderes morais», a saber, «a capacidade para um sentido de justiça» e «a capacidade para uma concepção do bem» (Justice as Fairness: A Restatement, coord. por Erin Kelly, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2001, pp. 18-19. † De facto, da boca de Rawls não ouvimos dizer muito sobre a maneira em que aqueles que poderiam ser vistos como “pessoas irrazoáveis” conseguiriam, por fim, formar uma ideia acerca da justiça, nem sobre como viriam a ser integradas na ordem social. ‡ Vide Joshua Cohen, “Deliberation and Democratic Legitimacy”, in Alan Hamlin e Philip Pettit (coord.), The Good Polity: Normative Analysis of the State, Oxford, Blackwell, 1989, e Politics, Power and Public Relations, Tanner Lectures at the University of California, Berkeley, 2007. Vide também Seyla Benhabib (coord.), Democracy and Difference: Contesting the Boundaries of the Political, Princeton, NJ, Princeton University Press, 1996. AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA mento em que escrevo estas linhas, passaram-se quase 250 anos desde a primeira edição da obra de Adam Smith, Teoria dos Sentimentos Morais, em 1759) tem um larguíssimo alcance; mas não só, ela também se mostra particularmente dotada de conteúdos procedimentais e substantivos. Quando se tenta uma resolução por meio de uma argumentação pública, há fortes motivos para não deixar de fora quaisquer perspectivas ou raciocínios que sejam apresentados por alguém cujas avaliações se mostrem relevantes, seja porque os seus interesses estão envolvidos no caso, seja porque a sua maneira de pensar sobre os temas em causa pode trazer alguma luz para os particulares juízos que devam ser formulados – luz que poderia escapar à nossa atenção caso não se desse a essas perspectivas uma oportunidade para serem ventiladas. Enquanto que Rawls parece dirigir a sua atenção para as variações dos interesses e das prioridades pessoais, já Adam Smith vai além disso, preocupando-se com a necessidade de alargar a discussão a fim de evitar o apego acrítico a valores de tipo local (“paroquialismo local” dos valores, local parochialism), pois este poderia levar a ignorar certos argumentos pertinentes que fossem pouco familiares no âmbito de uma cultura particular. Dado que a discussão pública pode assumir uma forma contrafactual (“o que diria sobre isso um espectador imparcial que olhasse para as coisas com uma certa distância?”), uma das principais preocupações metodológicas de Adam Smith consiste na necessidade de convocar uma ampla variedade de pontos de vista e modos de ver, baseados em experiências diferentes, próximas ou longínquas que sejam, em vez de nos contentarmos em ter confrontos – actuais ou contrafactuais – apenas com aqueles outros que vivem no mesmo meio sociocultural e que têm o mesmo tipo de experiências, preconceitos e convicções acerca do que é razoável e irrazoável, ou com o mesmo tipo de convencimentos sobre o que é viável e inviável. A insistência de Adam Smith em que, entre outras coisas, olhemos para os nossos sentimentos “a uma certa distância (de nós próprios)” encontra o seu motivo na necessidade de submeter a escrutínio não só os interesses próprios, mas também o impacto exercido por usos e tradições já estavelmente entrincheiradas*. * Vide também a análise de Simon Blackburn acerca do papel desempenhado pelo «ponto de vista comum» e, em particular, as contribuições de Adam Smith e David Hume 87 88 A IDEIA DE JUSTIÇA Sem menoscabo das diferenças entre os diferentes tipos de argumentos apresentados por Adam Smith, Habermas e Rawls, encontramos porém uma semelhança essencial nas suas perspectivas sobre a objectividade, na medida em que, em todos eles, a objectividade aparece ligada, directa ou indirectamente, à aptidão para resistir e sobreviver aos desafios que sejam postos por escrutínios informados provindos de áreas diversas ou de diferentes direcções. E também nesta obra, irei tomar o escrutínio racional, operado a partir de diferentes pontos de vista, como uma das exigências essenciais da objectividade em matéria de convicções éticas e políticas. No entanto, chegado a este ponto, devo juntar – trata-se, aliás, de uma verdadeira asserção – que os princípios que sobrevivam a um tal escrutínio não têm de fazer parte de um conjunto único (pelas razões já apresentadas na Introdução). Na verdade, isto representa um maior distanciamento em relação a Rawls do que em relação a Putnam*. De facto, qualquer perspectiva da justiça, como a de Rawls, que proponha dever seguir-se uma escolha dos princípios da justiça assente na rigidez de uma estrutura institucional global única (o que é parte do institucionalismo transcendental de que se tratou na Introdução) e que se entregue a contar-nos, passo por passo, a história do emergir da justiça em chave de “como se”, não poderá condescender facilmente em aceitar a co-sobrevivência de princípios concorrentes que não falem a sua língua. Como já se disse na Introdução, o que pretendo é defender a possibilidade de que haja posições que são contrárias e que, ao mesmo tempo, conseguem sobreviver; posições que não podem ser submetidas a uma cirurgia radical que as reduza a todas até que formem uma caixa bem arrumada de exigências entre si perfeitamente articuladas – é para satisfazer este requisito que, na teoria de Rawls, somos levados a ter de enveredar por uma particular rota institucional única (que deverá ser cumprida por um estado soberano). Conquanto se notem diferenças entre as distintas perspectivas sobre a objectividade que aqui considerámos, há entre elas um ponto para o desenvolvimento dessa perspectiva, Ruling Passions: A Theory of Practical Reasoning, Oxford, Clarendon Press, 1998, maxime, Capítulo 7. * E decerto não se trata de qualquer distanciamento em relação a Bernard Williams; vide Ethics and the Limits of Philosophy, Londres, Fontana, 1985, Capítulo 8, e também John Gray, Two Faces of Liberalism, Londres, Polity Press, 2000. AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA semelhante sobrepujante que em todas é fundamental e que assenta no comum reconhecimento da necessidade de um confronto argumentado que parta de uma base imparcial (estas perspectivas diferem sobretudo na definição da imparcialidade requerida, como se verá com mais pormenor no Capítulo 6). Claro está que a razão pode assumir formas distintas com usos muito variados*, todavia, na medida em que estejamos à procura de uma objectividade ética, a racionalidade que nos é necessária terá de satisfazer aqueles que são vistos como os requisitos de imparcialidade. As razões da justiça podem diferir das razões do «amor próprio» – para usar uma expressão de Adam Smith – e também das razões da prudência, mas continuarão, ainda assim, a ocupar um vasto domínio. Muito do que a seguir se dirá terá a finalidade de explorar esse imenso território. O ALCANCE DA RAZÃO O uso da razão é uma fonte robusta de esperança e de confiança num mundo ensombrado por feitos lúgubres – passados e presentes. E nem é difícil que se perceba porquê? Mesmo quando achamos de imediato que uma coisa é preocupante, sempre podemos pôr isto em questão perguntando se é essa a reacção apropriada e se nos deveremos deixar guiar por ela. O uso da razão pode servir para reflectirmos sobre a maneira certa de ver e tratar as outras pessoas, as outras culturas e as pretensões alheias, mas também sobre os diferentes fundamentos que levam ao respeito e à tolerância. Podemos ainda discorrer racionalmente sobre os nossos próprios erros e tentar aprender para que não os repitamos, da mesma maneira que Kenzaburo Oe, o grande escritor japonês, espera que a nação japonesa possa continuar empenhada «na ideia de democracia e na sua determinação de não mais entrar em guerra», sendo nisso ajudada pelo conhecimento da sua própria «história de invasão territorial»†. * Algumas destas diferenças serão apreciadas nos Capítulos 8, “A Racionalidade e os Outros”, e 9, “A Pluralidade das Razões Imparciais”. † Kenzaburo Oe, Japan, the Ambiguous, and Myself, Tóquio e Nova Iorque, Kodansha International, 1995, pp. 118-119. Vide também Onuma Yasuaki, “Japanese War Guilt and Postwar Responsabilities of Japan”, Berkeley Journal of International Law, 20 (2002). 89 90 A IDEIA DE JUSTIÇA Não menos importante é a necessidade de uma perscrutação intelectual que nos identifique as acções que não tiveram intenção danosa, ainda que tenham tido esse efeito; por exemplo: horrores como as terríveis carestias podem ficar por verificar, por causa da falsa presunção de que não podem ser evitadas senão aumentando a disponibilidade total de alimentos, coisa que é difícil de organizar com celeridade. Centenas de milhares, e até de milhões, de pessoas podem morrer mercê da calamitosa inacção derivada de um fatalismo não raciocinado que vai mascarado sob um disfarce de compostura plena de realismo e senso comum*. Acontece, porém, que as grandes carestias até são fáceis de prevenir; em parte, porque só afectam uma proporção pequena da população (raramente ultrapassará os 5% e quase nunca mais de 10%), e pode-se então providenciar a redistribuição dos alimentos existentes usando instrumentos imediatos, como será o caso da criação de empregos de emergência, para que se possa dar aos indigentes um rendimento imediato que lhes permita comprar o que comer. Como é óbvio, em geral, dispor de mais alimentos é algo que sempre viria facilitar as coisas (por um lado, poderá agilizar a distribuição pública de alimentos, e, por outro, mais alimentos disponíveis no mercado pode também significar uma ajuda para que os preços se mantenham mais baixos); contudo, ter mais alimentos à disposição não é uma absoluta necessidade para acorrer com sucesso a uma situação de fome (como frequentemente se dá por adquirido, vendo nisso uma justificação para a inacção, isto é, para a omissão das medidas necessárias para um socorro imediato). A redistribuição do fornecimento de alimentos, necessária para evitar Algo de semelhante é o que se tem passado na Alemanha do pós-guerra, onde aprender com os erros passados, particularmente os do período nazi, também tem sido um tema importante. * Tive a ocasião de tratar das causas das situações de fome e dos requisitos para uma política de prevenção das mesmas em Poverty and Famines: An Essay on Entitlement and Deprivation, Oxford, Claredon Press, 1981, e também, em parceria com Jean Drèze, em Hunger and Public Action, Oxford, Clarendon Press, 1989. É esta uma ilustração do problema mais geral de como uma teoria errada pode ter consequências fatais. Sobre este ponto, veja-se o meu Development as Freedom, Nova Iorque, Knopf, e Oxford, Clarendon Press, 1999; e Sabina Alkire, “Development: A Misconceived Theory Can Kill”, in Christopher W. Morris (coord.), Amartya Sen, Cambridge, Cambridge University Press, 2010. Veja-se também Cormac Ó Gráda, Famine: A Short History, Princeton, NJ, Princeton University Press, 2009. AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA que as pessoas morram à fome é uma operação relativamente pequena, e mais, pode ser conseguida criando o poder de compra daqueles que estão privados de qualquer tipo de rendimento por causa de um qualquer infortúnio, situação esta que é geralmente a causa primária da fome*. Considere-se agora um outro tema que, finalmente, começa agora a receber a atenção que merece, a saber: o desprezo e a deterioração da natureza. Como se vai percebendo cada vez mais, trata-se de um problema enorme, que, além disso, anda ligado aos efeitos negativos do comportamento humano; contudo, o problema não surge de um qualquer desejo da presente geração de lesar os que estão para nascer, ou sequer do desejo de ser deliberadamente insensível a respeito dos interesses das futuras gerações. E no entanto, devido à falta de um empenho e de uma acção racionalmente escorados, continuamos a não cuidar adequadamente do meio ambiente e das condições de sustentabilidade que poderiam garantir uma vida com qualidade. Para prevenir as catástrofes causadas pela negligência dos homens ou pela sua insensível obstinação, temos necessidade de proceder a um escrutínio crítico, isto é, não nos basta a boa-vontade de uns para com os outros21. Nisso, a razão é nossa aliada, não uma ameaça que nos venha pôr em risco. Ora, se assim é, porque será que ela é vista de maneira tão diferente por todos aqueles que acham ser profundamente problemática esta confiança que assim se deposita no uso da razão? Um * Mais ainda, uma vez que a maioria das vítimas de fome sofre de doenças conhecidas, das quais frequentemente acabam por morrer (com a agravante da debilitação e do alastramento de infecções que sobrevêm por estarem à míngua), muito há que pode ser feito usando de cuidados médicos vários e recorrendo a centros médicos. Mais de quatro quintos do número de mortes na Grande Carestia de Bengala de 1943 estiveram directamente relacionados com doenças que eram comuns naquela região, e as mortes devidas apenas à fome não ultrapassaram um quinto do total. (vide Apêndice D do meu Poverty and Famines, Oxford, Clarendon Press, 1981). Um quadro semelhante pode-se também encontrar em muitos outros casos de fomes generalizadas. Vide, em particular, Alex de Waal, Famine that Kills: Darfur, Sudan, 1984-1985, Oxford, Clarendon Press, 1989; e ainda o seu Famine Crimes: Politics and the Disaster Relief Industry in Africa, Londres, African Rights and the International African Institute, 1997. Este problema é também examinado na entrada “Human Disasters”, in The Oxford Textbook of Medicine, Oxford, Oxford University Press, 2008. 91 92 A IDEIA DE JUSTIÇA dos aspectos a ter em consideração é a possibilidade de que os críticos da confiança na razão sejam influenciados pelo facto de que algumas pessoas se deixem sobre convencer com facilidade pelo seu próprio raciocínio, passando a ignorar quaisquer contra-argumentos ou quaisquer outros fundamentos que possam gerar conclusões opostas. Talvez seja isto mesmo aquilo que preocupa Glover, e diga-se que pode ser realmente uma preocupação legítima. Porém, é bom de ver que a dificuldade que aqui se apresenta deriva de uma certeza precipitada, que, por sua vez, é fruto de um mau raciocínio, e não do facto, em si mesmo, de se fazer uso da razão. Ora, o remédio para um mau raciocínio é um bom raciocínio, e passar de um para o outro é precisamente a tarefa que cabe a um escrutínio argumentado. Pode também acontecer que em alguns passos de “autores iluministas” não se dê o devido relevo à necessidade de se usar de cautelas e de se proceder a reavaliações, mas não seria curial fazer derivar daí uma qualquer acusação generalizada da atitude iluminista no seu todo, ou, mais do que isso, pôr no banco dos réus o papel global que a razão desempenha na determinação dos comportamentos justos e das boas políticas sociais. RAZÃO, SENTIMENTOS E O ILUMINISMO Há ainda a considerar, no entanto, um outro tema, o da importância relativa dos sentimentos instintivos, por um lado, e do frio cálculo, por outro – e sobre isso muito foi dito por vários autores iluministas. Os argumentos de John Glover em prol da necessidade de uma «nova psicologia humana» tiram a sua inspiração do facto de se reconhecer que política e psicologia estão entrelaçadas, e é difícil imaginar que se nos deixarmos conduzir pela razão, baseados nas provas de que dispomos acerca do comportamento humano, não seremos levados a aceitar esta interconexão. Quando se trata de evitar atrocidades, sem dúvida que um importante papel preventivo caberá à instintiva repugnância causada pela crueldade e por todos os tipos de comportamentos insensíveis; e Glover tem razão quando sublinha a relevância, entre outras coisas, da «tendência para se relacionar com as pessoas usando de respeito (de vários tipos)» e «simpatia: preocupando-nos com as misérias e com a felicidade dos demais». AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA Todavia, não é forçoso que aqui deva surgir um qualquer conflito com a razão, que, aliás, também poderá vir endossar essas mesmas prioridades. E foi este, sem dúvida, o papel que desempenhou o bom uso da razão na investigação de Glover acerca dos perigos das convicções unilaterais e excessivamente confiantes (em relação a isso, é com certeza relevante a observação de Akbar de que até mesmo para contestar a razão, será necessário oferecer razões que fundem uma tal contestação). Por outro lado, também não se terá de partir do princípio de que o uso da razão implica suster a concepção – admitindo que a mesma se justifica – de que uma confiança plena e exclusiva no frio cálculo pode não ser uma boa maneira – ou uma maneira razoável – de garantir a segurança humana. De facto, ainda que prestemos homenagem à razão, não temos qualquer fundamento para negar o papel amplo e de longo alcance que é desempenhado pela psicologia instintiva e pelas reacções espontâneas22. Tudo isto pode ser um suplemento para a razão e vice-versa, e, em muitos casos, compreender o papel amplificador e libertador dos nossos sentimentos pode constituir em si mesmo um bom objecto de estudo para a própria razão. Adam Smith, figura axial do Iluminismo escocês (mas também muito influente no Iluminismo francês) discutiu abundantemente o papel central das emoções e das reacções psicológicas na sua Teoria dos Sentimentos Morais*. Pode ser que Adam Smith não tenha ido tão longe quanto David Hume e que não tenha chegado a afirmar que «razão e sentimento concorrem em quase todas as determinações e conclusões morais»23, mas ambos viam o raciocinar e o sentir como actividades profundamente inter-relacionadas. Tanto Hume como Smith eram claramente “autores iluministas” na sua quinta essência, e, enquanto tal, em nada ficaram atrás de Diderot ou de Kant. Contudo, a necessidade de um escrutínio raciocinado das atitudes psicológicas não desaparece só porque se dê de barato o poder das emoções e se aclame o real papel que cabe a muitas reacções instintivas (como é o caso do sentimento de repulsa diante da crueldade). Coube em especial a Adam Smith – quiçá até mais do que a * Ver também Martha Nussbaum, Upheavels of Thought: The Intelligence of Emotions, Cambridge, Cambridge University Press, 2001. 93 94 A IDEIA DE JUSTIÇA Hume – dar à razão um importantíssimo papel na avaliação dos nossos sentimentos e das nossas deambulações psicológicas. De facto, para Hume, muitas vezes, a paixão parece ser mais poderosa do que a razão. Sobre isto, eis o que diz Thomas Nagel nessa sua vigorosa defesa da razão que nos aparece no seu livro A Última Palavra: «É notório que Hume acreditava que uma “paixão” imune à avaliação racional deve supeditar todo o motivo, e, por isso, nada poderá haver que se possa chamar especificamente de razão prática, ou tão-pouco especificamente razão moral»*. Adam Smith não seguiu esta posição, muito embora, à semelhança de Hume, considerasse as emoções importantes e influentes, e sustentasse que as nossas «primeiras percepções» de certo e errado «não podem ser objecto da razão, mas sim do sentimento e do sentir imediatos». Todavia, Adam Smith sustentava ainda que mesmo estas reacções instintivas às condutas particulares não podem deixar de repousar – ainda que tão-só implicitamente – na nossa compreensão racional das conexões causais que subsistem entre conduta e consequências, e isto seria assim numa «vasta variedade de instâncias». Mais ainda, as primeiras percepções também podem modificar-se como reacção a um exame crítico; por exemplo, um que assente numa investigação causal empírica que venha a revelar, como assinala Adam Smith, que um certo «objecto é o meio para obter um outro»24. O argumento que levou Adam Smith a reconhecer a extrema necessidade de proceder a um escrutínio racional aparece bem ilustrado no passo em que ele trata da maneira de avaliar as nossas atitudes em face de práticas comummente seguidas. Este ponto é claramente importante no âmbito da sua apologia das reformas, como é o caso, por exemplo, da abolição da escravatura, da diminuição do fardo provocado pelas restrições burocráticas arbitrárias sobre * Thomas Nagel, The Last Word, Nova Iorque, Oxford University Press, 1997, p. 102. No entanto, Hume parece tergiversar no que toca à questão da prioridade a dar. Não obstante dê à paixão uma posição de alta estatura que parece ser mais dominante do que o papel concedido à razão, Hume não deixa todavia de afirmar que: «No momento em que nos apercebemos da falsidade de qualquer concepção assumida, ou da insuficiência de quaisquer meios, as nossas paixões rendem-se à nossa razão sem oferecer resistência» (David Hume, A Treatise of Human Nature, coord. L. A. Selby-Bigge, Oxford, Clarendon Press, 1988, 2.ª ed., 1978, p. 416). AS EXIGÊNCIAS DA JUSTIÇA a actividade comercial entre países diferentes, ou ainda do abrandamento das restrições punitivas impostas aos indigentes como condição para que pudessem beneficiar do apoio económico providenciado pelas Poor Laws (Leis sobre a Pobreza)*. Sendo embora certo que as ideologias e as convicções dogmáticas podem derivar de fontes que não sejam nem a religião nem o costume – como, de resto, aconteceu frequentemente –, isso não vem contradizer o papel da razão no momento de discernir o elemento de racionalidade que se esconde por detrás das atitudes instintivas, papel esse que não é menor do que o que lhe cabe na apreciação dos argumentos que venham a ser expendidos a fim de se justificar políticas deliberadas. O que Akbar chamava de «caminho da razão» não exclui que se tome em consideração o valor das reacções instintivas, nem implica que se ignore o papel informativo que as nossas reacções mentais desempenham frequentemente. E tudo isto é ainda assaz compatível com o facto de não permitirmos que instintos por escrutinar possam ter uma última palavra incondicional. * No seu ensaio finamente argumentado, “Why Economics Need Ethical Theory”, John Broome afirma o seguinte: «Os economistas não gostam de impor às pessoas a sua opinião ética, mas não é disso que se trata. Muito poucos economistas estão em posição de impor a sua opinião a quem quer que seja... A solução é que eles consigam arranjar bons argumentos, para poderem então construir uma teoria, e não esconderem-se por trás das preferências de outros, quando essas preferências poderão não estar bem fundadas ou quando esses outros até podem estar à espera de uma ajuda por parte dos economistas, para assim chegarem a formar preferências melhores» (Arguments for a Better World: Essays in Honor of Amartya Sen, coord. Kaushik Basu e Ravi Kandur, vol. I, Oxford, Oxford University Press, 2009, p. 14). E fica claro que foi precisamente isto o que Adam Smith tentou fazer. 95