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Cultura e Identidade nas Organizações: Uma Visão Crítica
Autoria: Claire Gomes dos Santos
Resumo
Este trabalho tem por objetivo lançar luz sobre temas controversos nas organizações:
falamos aqui, basicamente, de cultura e identidade nas organizações. No momento em que
enxergamos um embate numa arena em que estão presentes não apenas a organização, mas
também seus membros, ou seja, os que a compõem e que lhe dão vida afinal de contas, temos
aí diferentes interesses, muitas vezes divergentes, o que dá margem ao surgimento de
conflitos, sejam eles no âmbito da organização ou no âmbito interno do indivíduo. É nesse
momento que se faz necessária a introdução da discussão sobre a tentativa de controlar e
ordenar as atividades da organização a partir de seus membros, a partir de uma padronização
dos indivíduos. Daí, o planejamento e a fabricação de uma determinada “cultura de empresa”,
negando a existência de seus membros, ou melhor, realizando-se um exercício de “cegueira
voluntária” por parte das organizações. Essa é a posição que toma esse artigo.
Introdução
Este trabalho tem por objetivo lançar luz sobre temas controversos nas organizações:
falamos aqui, basicamente, de cultura e identidade nas organizações. Mas por que
controversos? Ora, no momento em que enxergamos um embate numa arena em que estão
presentes não apenas a organização, mas também seus membros, ou seja, os que a compõem e
que lhe dão vida afinal de contas, temos aí diferentes interesses, muitas vezes divergentes, o
que dá vazão ao surgimento de conflitos, sejam eles no âmbito da organização ou no âmbito
interno do indivíduo. Para os fins específicos desse trabalho, ateremo-nos mais
profundamente ao âmbito da organização. E é nesse momento que se faz necessária a
introdução da discussão sobre uma atividade da organização que podemos denominar de tabu,
pois não é costume a discussão corrente e franca desse tema: a tentativa de controlar e ordenar
as atividades da organização a partir de seus membros, a partir de uma padronização dos
indivíduos. Daí, o planejamento e a fabricação de uma chamada “cultura de empresa”. Negase a existência dos membros da organização — ou realiza-se um exercício de cegueira
voluntária —, como sujeitos que possuem vontades e idéias próprias, e um histórico
individual, para que a aceitação homogeneizante da “cultura” imposta pela organização seja
aceita e que seus resultados possam ser apropriados pela organização. Nesse sentido, são
gerados diversos problemas decorrentes da negação desses membros como reais entidades
construtoras e mantenedoras da organização, a partir da tentativa constante de sua
homogeneização. Veremos adiante uma discussão mais aprofundada sobre o tema a partir de
questões-chave.
A seguir, veremos então uma discussão sobre se é abuso conceitual ou não o uso do
termo cultura nas organizações. Ainda sobre cultura, tratamos de responder a uma questão
proposta no trabalho que introduz o tema da possibilidade de administração da cultura nas
organizações. Para tanto, apresentamos uma visão a favor e outra contra essa possibilidade.
Admitimos, no entanto, e novamente, que esse trabalho tem um viés claro de crítica às
costumeiras ações tomadas pelas organizações, de forma que a visão a favor da administração
da cultura apresenta-se mais como contraponto a fim de ratificar o que se coloca na seção
contra a administração da cultura. O próximo assunto levantado nesse trabalho remete à
identidade dos indivíduos no âmbito das organizações e fora dele. Também discute-se a
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possibilidade de crise identitária, e se além de afetar o indivíduo, afetaria também as
organizações das quais ele participa. Esse é o cenário constituinte do pano de fundo sobre o
qual descortinamos a discussão que segue.
Cultura organizacional: abuso conceitual ou não?
A partir da leitura de Aktouf (1994), escritor que apresenta uma visão bastante crítica
do que é geralmente discutido e apresentado pela corrente predominante (mainstream) dos
estudos organizacionais, creio que houve e continua havendo um significativo engano ao se
transportar o termo “cultura” para o ambiente das organizações. No momento em que faltam
subsídios para que “cultura”, nesse sentido, seja entendida da mesma forma que na gênese do
termo, ou seja, na antropologia, não há razão para que o conceito seja aceito relativamente às
organizações, visto que é falho em sua transposição para o mundo organizacional. O
empréstimo do termo, mas não do que o conceito construído na antropologia carrega, reflete
uma apropriação inadequada e inconveniente para a reflexão a ser realizada na teoria
organizacional, sendo que, inadvertidamente, essa forma de cultura “transportada” para o
mundo das organizações abarca conceitos tais como “mitos”, “heróis”, “símbolos”,
“linguagem”, “ritos” e “rituais”.
Dado o que foi discutido até o momento, acredito que devemos nos perguntar: mas,
afinal, com que intuito as organizações realizariam tal procedimento? Ainda em Aktouf
(1994) encontramos algumas explicações que podem satisfazer a esse questionamento, ao
menos momentaneamente. Coloca ele que:
“uma ‘cultura de empresa’ seria um ‘conjunto de evidências’ ou um ‘conjunto
de postulados’ compartilhados pelos membros da organização, dirigentes e
empregados. Seria um ‘cimento’ que ‘mantém a organização como um todo’,
que lhe confere um ‘sentido’ e engendra ‘sentimento de identidade’ entre seus
membros” (Aktouf, 1994, p.43).
Faz-se necessário deixar claro, apenas como item informativo, que pelo menos grande
parte desses elementos componentes da “cultura organizacional” são decorrência da
interpretação norte-americana do modo japonês de administrar, a chamada “gestão
participativa”. O termo surgiu na década de setenta nos Estados Unidos como uma tentativa
de mobilizar o “fator humano” na produção como forma de responder à concorrência japonesa
que se mostrava cada vez mais agressiva. É de chamar a atenção o fato de esse falso discurso
humanista ter nascido e se desenvolvido num momento de crise econômica.
Incontestavelmente, apresenta-se de forma clara a noção estratégica dos dirigentes das
organizações em suscitar o nascimento de uma identificação comum entre os empregados
para que daí obtenham um sentimento compartilhado de lealdade e eficácia entre os
funcionários com o intuito de perseguir os objetivos por elas definidos, “impondo o seu
sistema de representações e de valores aos membros da organização” (Cuche, 1999, p.146).
A partir da conceituação de “cultura de empresa” que Aktouf (1994) proporciona,
creio que possamos nos ater novamente às funções desse procedimento para as organizações.
Primeiramente, é evidente que existe uma autêntica tentativa por parte das organizações no
sentido de provocar a criação de uma identidade coletiva comum, com o objetivo primordial
de fazer com que seus membros creiam que os objetivos coletivos seriam, de fato, seus
interesses pessoais (discutiremos mais adiante e com maior propriedade a questão da
identidade). E a manipulação que o uso desses artifícios aparenta só faz com que o termo
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“cultura organizacional” pareça ainda mais artificial, levando a que se note uma construção
forçada de relações entre indivíduos de uma determinada maneira, esta já planejada
anteriormente, como os demais elementos que compõem a “cultura da organização”. Em
segundo lugar, a transparência de uma racionalidade instrumental embutida na forma com que
se “trabalha” a “cultura” numa empresa — como se isso fosse factível, levando em
consideração o conceito de cultura no sentido antropológico (onde não há e não se procura o
consenso das conceituações: sempre há de ser feita uma escolha nesse sentido) (Smircich,
1983). No sentido usualmente mais utilizado, cultura é um meio que leva a um determinado
fim, e para as organizações não haveria outro propósito que não esse ou, pelo menos, não
haveria outro objetivo tão relevante quanto esse. Conforme Cuche (1999, p.146),
“o uso antropológico mais freqüentemente retido é o mais contestável, o que
remete para uma concepção da cultura como relevando de um universo
fechado, mais ou menos imutável, caracterizando uma coletividade
pretensamente homogênea, de contornos bem delimitados”.
É a cultura administrável?
Visão contra a administração da cultura
Analisando com mais profundidade o primeiro ponto levantado no parágrafo anterior,
Prestes Motta (1993) vem ratificar o que já foi abordado. Coloca explicitamente que a
organização tem como pretensão influenciar o comportamento de seus membros na tentativa
de controlar seu desempenho. O papel da socialização dos valores, dos mitos, enfim, da
ideologia da organização ganha papel de destaque nesse sentido, de forma a catalisar o
processo. Dizendo mais claramente, há uma tentativa explícita de “produzir formas de
comportamento e formas de raciocínio”. O fenômeno contrário, a individuação, vem ocorrer
numa tentativa de resistência ao que a organização pretende com a socialização. Essa forma
de resistência no local de trabalho serve como forma de obter satisfação pessoal na
organização — como a personalização do espaço de trabalho através da decoração, por
exemplo (Fischer, 1994). No entanto, esse processo não deixa de despertar certo grau de
interesse da organização se o sujeito agir na direção de um “individualismo criativo”, a partir
do qual a empresa pode se apropriar de novas idéias. É nesse sentido que Prestes Motta (1993)
cita a “administração participativa” como exemplo de organização que aceita e incentiva,
muitas vezes, o individualismo criativo com o objetivo de assegurar o controle em relação ao
cumprimento das metas da organização, visto esse método ser mais efetivo nesse controle que
o tradicional, com hierarquia vertical bem estruturada.
Apenas a título de observação, é necessário que se deixe claro que, quando nos
referimos a ideologia da organização, por exemplo, de forma alguma estamos corroborando
com a reificação da organização. Muito pelo contrário. No momento em que fazemos
referência a decisões tomadas pela organização tentamos fazer entender que quem, na
verdade, toma as decisões são os dirigentes da organização. Esse ensaio, como já se faz
perceber na introdução, é uma crítica à atuação das organizações em âmbito geral, e não uma
validação das práticas percebidas e aclamadas na grande maioria dos textos sobre
organizações, sejam eles de teoria ou de prática organizacional.
Continuando, o segundo ponto já levantado diz respeito à racionalidade instrumental
imbricada na manipulação da “cultura organizacional”. Enriquez (1997) discute de forma
bastante crítica a questão da ética nas organizações. Inicia abordando o tema do triunfo da
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racionalidade instrumental no Ocidente. A partir daí descortina a idéia de que os indivíduos,
na medida em que são todos dotados de razão, não teriam particularidades entre si, seriam
todos iguais (perante à racionalidade instrumental). Não haveria sequer contexto que os
diferenciasse. E chama a atenção para que a racionalidade, se for levada à exacerbação, chega
ao que podemos denominar de perversão, na medida em que é comum que organizações
tratem de subjetividades intrínsecas aos indivíduos de uma maneira racional/funcional, como
também a seu favor. Vide o que já foi discutido sobre a “administração participativa”, que
incentiva a subjetividade entre os membros da organização visando à funcionalidade que esse
método proporciona, e não à união pura e simplesmente de seus membros para relaxamento
do estresse diário das atividades da empresa. Ao final desse processo, o estresse é ainda mais
majorado, dados alguns depoimentos informais dos quais tenho sido ouvinte nos últimos
tempos. Todos fazem alusão a grupos que, ao passarem a responder pelo desempenho da
equipe, e não mais por si só, iniciaram um processo de perseguição mútua entre seus pares
para que todos mantivessem as metas antes acordadas com a organização. Isso não ocorria no
momento anterior, quando cada um respondia apenas por si, o que vem denotar uma vez mais
os objetivos que as organizações costumam estabelecer sobre a união e a interação de seus
membros.
A fim de complementar esse segundo ponto discutido — racionalidade funcional
permeada na cultura organizacional —, o que parece ser razoável nos termos de Aktouf
(2004, p.209) é que
“os teóricos da administração dominante não percebem que a fatores de
sucesso profundamente diferentes deve corresponder uma filosofia de gestão e
uma concepção do trabalho e do trabalhador igualmente diferente (...). O
empregado do ‘fazer mais, mais rápido’ e da obediência passiva não é o
empregado capaz de adesão ativa, de vigilância pessoal, de iniciativa e de
criatividade a todos os instantes e em todos os níveis.”
Ou seja, não há como anular as idiossincrasias de contextos e de indivíduos, uma vez
que ao ambientes e os funcionários das organizações jamais serão os mesmos de uma
organização para outra, sendo que o mesmo também podemos dizer dos mesmos indivíduos
no tempo. A única regra é a mudança, não se pode esperar pela imutabilidade dos contextos e
dos sujeitos, até porque ambos se influenciam mutuamente.
Como decorrência do mau uso do termo “cultura”, podemos falar ainda que haja
mesmo uma manipulação ideológica ao nível organizacional, e é inadmissível que a
organização se mostre comparativamente a uma família ou a uma tribo, coisa que muitas o
fazem despudoradamente.
Visão a favor da administração da cultura
Na visão de Pettigrew (1989) as coisas são bastante diferentes do que foi disposto
acima. Apesar de o autor realizar tentativas seqüenciais em seu texto com o objetivo de fazer
parecer que a cultura não é algo propriamente moldável, ele mesmo se faz a pergunta da
questão-título dessa seção e admite que “sim”, a cultura das organizações é administrável,
porém “com a maior dificuldade”. Responde mais realisticamente em seguida, dizendo que “a
resposta mais acadêmica à pergunta depende do que se entende por cultura organizacional e
administração” (Pettigrew, 1989, 145), indo ao encontro do que encontramos em Smircich
(1983). Muito embora Pettigrew faça referência a uma gama maior de possíveis escolhas
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quanto ao conceito de cultura organizacional e administração, o autor já realizara sua escolha
ao longo do texto, e não parece apresentar dúvidas quanto a isso. O que está em questão aqui
é exatamente o ponto que o autor levantou em seu trabalho: como admitir que a cultura
organizacional é administrável, visto que apesar de Pettigrew considerar cultura como sendo
uma variável dependente de diversos fatores mensuráveis, existe a maior dificuldade nesse
sentido?
Referindo-se a processos de mudança estratégica em geral, e não só os relativos à
cultura, Pettigrew (1989) acredita que todos — e não só a gerência e a diretoria da empresa—,
desempenham sua parte, preparando o momento propício para a mudança, denotando aí um
controle objetivo e racional da mudança. Ainda propõe ser mais fácil alterar as manifestações
de cultura (estruturas, símbolos, mitos, padrões de recompensa) do que o núcleo de crenças e
pressupostos básicos em uma organização (a cultura organizacional em si) embora, para
modificar uma cultura, seja necessário atuar em ambos os níveis. Um ponto bastante
significativo que Pettigrew (1989) admite é que a maioria das organizações possui uma
pluralidade de subculturas — incluem-se aí, portanto, também as contraculturas. Esse ponto
especificamente suscita reflexão sobre o assunto, visto que o autor acaba por admitir que
existem espaços onde a cultura da organização não alcança, e isso acaba mais uma vez por
contradizer o que o autor defendia desde o início: que a cultura é administrável.
Um aspecto-chave da mudança é partir na tentativa de modificar as crenças básicas
dos principais tomadores de decisão visto que são estes que inibem ou facilitam as mudanças
na empresa, denotando que, como já discutimos, a cultura para ser eficaz tem que ser imposta
de cima para baixo, embora isso não garanta de forma alguma que alcançará todos os escalões
da organização. Dessa forma, costuma-se fazer uso de expedientes tais como recompensas
para os que alcançam metas estabelecidas pelas mudanças. Alterações culturais casadas com
mudanças estruturais, seguidas por sistemas de premiação aos colaboradores e funcionários,
busca e uso de modelos de desempenho, como também treinamento para a introdução da
mensagem cultural o mais profundamente possível na organização seria o indicado. E
novamente nos encontramos cara a cara com a prescrição e a generalização da racionalidade
instrumental, o que já criticamos logo no início desse trabalho.
Apesar de não esgotado o tema, mesmo porque esse não era o objetivo desse trabalho,
mas apenas lançar luz e participar do debate contemporâneo sobre o alcance da organização
na vida de seus “colaboradores”, devemos partir para uma outra faceta da atuação da
organização: a identidade. Por isso a questão que segue na próxima seção.
Há controvérsia entre identidade organizacional e identidade individual?
Identidade e cultura
Vemos a partir de Cuche (1999) que o termo “identidade” representa uma nova moda
fora do campo das ciências sociais (de acordo com alguns pesquisadores). Usualmente,
também existe a tessitura de uma relação direta entre “identidade” e “cultura”. Todavia, há de
se estabelecer uma distinção clara entre cultura e identidade, para que possamos tentar
desfazer os nós de uma possível confusão conceitual. Pois bem, a cultura (em termos
antropológicos, e não como o conceito utilizado pelas organizações) encerra em seu âmago
grande parte de processos inconscientes. Já a identidade remete à consciência porque é capaz
de estabelecer oposições simbólicas. É nesse sentido que o autor coloca que
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“No limite, a cultura pode existir sem consciência identitária, ao passo que as
estratégias identitárias podem manipular, e inclusivamente modificar, uma
cultura que deixará de ter grande coisa em comum com o que antes era”
(Cuche, 1999, p.123-124).
Existe uma particularidade perversa das organizações em usar o conceito de
identidade, afora o uso que dela faz a racionalidade funcional. Estabelecer uma identidade
cultural, o que é já faz parte do senso comum no âmbito da organização, implica em tocar
também o conceito mais amplo de identidade social. Isto é, sendo resultado de diversas
interações entre os indivíduos e seu meio social, a identidade representa a característica de
pertencimento de indivíduos a classes sociais, classes sexuais, classes etárias, etc. Não só os
indivíduos são dotados de identidade, mas também os grupos aos quais eles pertencem.
Portanto, na identidade social estão presentes tanto a inclusão, quanto a exclusão. E é nesse
sentido que podemos compreender a perversidade da organização ao incentivar uma cultura
organizacional manipulada e manipuladora que desencadeia uma identidade cultural
propulsora da diferenciação que a organização deseja entre seus membros. A organização
acredita ter o direito de decidir que grupos e que indivíduos são aceitos e quais são renegados,
já que fabrica uma identidade preexistente ao indivíduo que venha a fazer parte de seus
quadros, com base na pura atribuição de valores que são impostos de cima para baixo. Nas
organizações, isso pode vir até mesmo a aumentar a discriminação de grupos já excluídos
socialmente. Além disso, entende-se que a identidade (da forma como as organizações
costumam entendê-la) não é passível de evolução, dado que nem o indivíduo nem o grupo tem
qualquer influência sobre ela. É estática, enraizada e enraizadora dos indivíduos, sempre
remetendo-os e ancorando-os a um grupo de origem, não possibilitando a mudança. Não
encaram a possibilidade subjetivista que pode haver na construção social de uma identidade,
quando na verdade o mais plausível é que a identidade cultural seja pautada pelas
representações que os indivíduos possam fazer da realidade social que os cerca. Convém
ressaltar, no entanto, que não podemos relegar a construção da identidade ao embate
subjetividade versus objetividade. Também devemos considerar a concepção dessa formação
que leva em conta que
“a construção da identidade faz-se no interior de quadros sociais que
determinam a posição dos agentes e, por isso mesmo, orientam as suas
representações e as suas escolhas” (Cuche, 1999, p.127).
Dessa forma, Cuche (1999) atesta que há certos enraizamentos que podem não
determinar objetivamente as escolhas, os gostos e as interpretações dos agentes, mas
influenciar de diversas maneiras as práticas sociais dos atores. Nesses mesmos termos,
também a abordagem identitária relacional joga mais luz a essa tentativa de interpretação
mais realista da questão, fugindo à simplicidade da oposição subjetividade versus
objetividade. Teria sido Fredrik Barth (1969) o pioneiro a tratar do tema, discorrendo que é na
forma como se dão as relações entre os grupos sociais que devemos entender a formação
identitária. Melhor dizendo, não é através da simples diferença cultural que surgem as
diferentes identidades: estas surgem a partir das interações entre os grupos e das condutas que
esses grupos representam para diferenciarem-se entre si. Dessa forma é que podemos dizer
que uma identidade está sempre em constante construção e reconstrução conforme vão se
dando as trocas sociais. É da alteridade que se constrói a identidade. Portanto, devemos
primeiro reconhecer o outro, o diferente, para então reconhecermos a nós mesmos, como uma
identidade dinâmica e multidimensional.
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Identidade cultural na pós-modernidade: existe crise?
Sob o mesmo panorama conceitual, Hall (1998) se mostra bastante explorador do
sentido “moderno tardio” de identidade, numa tentativa de investigar qual o caminho a que o
homem contemporâneo está sendo levado a desbravar, dada a alegação de que muitos apoios
sociais sobre os quais o indivíduo costumava-se ancorar esvaeceram. É deixado claro que o
tema discutido não é consenso na comunidade sociológica, tanto por ser recente e mesmo por
não haver acordo sobre o conceito de “identidade”, atestando apenas a complexidade e a falta
de uma suficiente abordagem sobre o assunto (o que poderemos supor do tratamento dado ao
assunto pelas organizações, então!).
O que Hall (1998) afirma em certos pontos entra em conflito com o que foi visto em
Cuche (1999). Para começar, Hall (1998) se refere a identidades diversas, até contraditórias,
num mesmo indivíduo:
“A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada
uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (Hall,
1998, p.13).
Hall (1998) concorda com o fato de que estaria havendo o que ele chama de
“descentração” das identidades modernas, que eram centradas até então nos preceitos
iluministas. Esse seria um ponto bastante importante na diferenciação das sociedades ditas
“tradicionais” (que valorizavam símbolos, o passado e suas representações, costurando uma
teia de ligação entre o passado, o presente e o futuro, através de atividades recorrentes) e as
sociedades ditas “modernas” (onde a mudança dita as regras, e as práticas sociais alteram-se a
todo momento).
Ainda no início de seu livro, Hall (1998) fala de algo que se aplica perfeitamente às
organizações, embora esse não seja seu objetivo: diz que as sociedades modernas tardias são
pautadas pela diferença. No entanto, apesar das diferenças, é possível que haja articulação
entre as diversas partes, ainda que parcial. Porém, isso somente é possível sob determinadas
circunstâncias, uma vez que as identidades estão sempre em constante reestruturação. Esse
argumento é, a meu ver, o que as organizações deveriam perseguir, sem esperar prescrições:
parar de praticar o que já chamamos anteriormente de “exercício da cegueira voluntária” e
tentar enxergar seus membros nas mais diversas dimensões que estes possam apresentar. Seria
mais realista, mais ético, mais honesto para com os empregados e para com o próprio futuro
da organização, sabendo finalmente que se está pisando em terra firme e não mais vivendo e
sustentando uma ilusão.
Crise do indivíduo: crise da organização?
Abarcando nessa seção tanto cultura como identidade, podemos utilizar um artigo de
Dejours (1996) que apresenta certas características do trabalho e do indivíduo no trabalho que
nos levam a refletir um pouco mais sobre o tema. Não objetivando que esse trabalho recaia na
crítica simplesmente pelo caráter da crítica, Dejours (1996) traz um argumento que nos
auxilia nesse sentido: o de que o local de trabalho é um lugar onde se pode cultivar a
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felicidade, não é obrigatoriamente um local de infelicidade. É claro que, para isso, os
trabalhadores costumam utilizar artifícios, tais como os que veremos a seguir.
Geralmente é esperado que os objetivos da produção tenham seu foco no mundo
exterior à organização, em detrimento das condições de trabalho internas. Mas, afinal:
podemos questionar a responsabilidade humana e social da organização? Se sim, que extensão
ela alcançaria? Não levando em consideração aqui avaliações psicanalíticas da questão, e
voltando aos temas de cultura e identidade, podemos reformular a questão: se a cultura e a
identidade organizacional que tentam inculcar nos empregados fossem autênticas,
substituiriam elas a cultura e a identidade trazidas pelo sujeito para o interior da organização?
Acredito que não substituiriam porque não são autênticas. Como já expusemos, ambas são
forjadas no interior da organização para o uso interno à organização. Não há preocupação
quanto ao que o indivíduo faça fora das dependências de onde trabalha, visto que é comum
que até um colega de trabalho diga a outro que “não se devem misturar as coisas” (referindose à vida pessoal e à vida organizacional). Ora, entender a organização como um objeto
reificado já é algo que se pode questionar. Mas ainda propor que o sujeito deixe do lado de
fora do trabalho sua identidade e seus problemas, de modo que do lado de dentro da
organização só permaneçam os sorrisos e as alegrias, é pedir que seus funcionários
desempenhem suas funções de maneira automática e automatizante, levando adiante a
ideologia alienante da organização. Daí os artifícios que são colocados em prática pelos
funcionários para que seja possível suportar a estrutura por vezes esmagadora presente em
algumas organizações.
Como já visto com Prestes Motta (1993), a individuação representa uma dessas
estratégias na tentativa de obter satisfação pessoal na organização, indo contra a maré da
socialização — artifício representativo das necessidades stricto sensu da organização. O
sujeito pode agir através do individualismo criativo, embora a organização possa tentar se
apropriar de novas idéias que possam surgir. Sobre esse ponto especificamente, quando
Prestes Motta (1993) critica a administração participativa, está implicitamente censurando a
Administração de Recursos Humanos, uma vez que essa costuma aceitar e incentivar muitas
vezes o individualismo criativo com o objetivo de assegurar o controle em relação ao
cumprimento das metas da organização.
Outro meio escolhido para burlar o controle da organização sobre o funcionário é o
cinismo. Fleming e Spicer (2003) falam basicamente sobre a adoção do cinismo como
mecanismo de defesa contra a tentativa dos dirigentes de disporem da subjetividade dos
trabalhadores, impingindo uma cultura organizacional, com seus símbolos e crenças. Ou seja,
fazer com que os trabalhadores se identifiquem com a organização de forma que acreditem
que os objetivos da organização são os seus próprios. Muitas vezes os funcionários fingem
estar de acordo com as normas — embora não compartilhem efetivamente de seus valores —,
e acabam por realizar os objetivos da organização, o que lhes dá apenas uma sensação de
liberdade interna (manutenção de sua subjetividade) na medida em que acreditam não estar de
acordo com a organização, mas agem como se estivessem. Na realidade, não são autônomos
como acreditam ser por ainda praticarem os rituais da organização, ratificando as relações de
poder já existentes.
A sabotagem também se mostra como uma forma de resistência. Fleming e Spicer
(2003) esclarecem que é uma forma de cinismo, visto que o indivíduo finge estar de acordo
com as normas — e no geral as executa —, embora seja realizada alguma manobra tal que
possa por até em risco sua função na organização. Podemos citar como exemplo um caso
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recorrente na mídia: uma pessoa qualquer encontra uma barata numa garrafa de refrigerante e
processa juridicamente o fabricante. Isso quando não é encontrado um objeto que, de outra
forma que não a sabotagem, não poderia estar presente numa fábrica engarrafadora com as
mínimas condições de higiene.
Retornando a uma questão anterior, podemos questionar a responsabilidade humana e
social da organização? Se sim, que extensão alcançaria essa responsabilidade? Apesar de
considerar que essa questão não poderá ser de maneira alguma explorada na sua magnitude
desejada e necessária, tentaremos fazer um esforço para que esta não termine no vazio.
Compartilho da opinião de Dejours (1996) sobre a organização ter tanto dever para com seus
membros — seu “capital humano” —, quanto para com o meio-ambiente. Pode parecer
estranha a comparação mas, na medida em que ela pode ser responsabilizada pela poluição
ambiental que libera, por que não deveria também atuar no combate e na prevenção de sua
poluição psíquica e social? É claro que as pessoas trazem felicidades e tristezas de fora para
dentro da estrutura da organização. Não se pode aplaudir ou culpar as organizações por isso.
Por outro lado, quando as organizações deliberadamente atuam sem se importar se suas ações
implicam conseqüências positivas ou negativas nas vidas de seus membros, deixo de acreditar
que seu tão aclamado “capital social” tenha tanta importância quanto se diz. E é óbvio que,
sendo as organizações locais de onde parte “rica” bibliografia sobre a vida de seus líderes e
suas formas de administrar para o sucesso, são nitidamente modelos prescritos na e pela
sociedade de como devemos nos comportar para que sejamos congratulados com o maior
volume de dinheiro possível. A conclusão só pode ser essa. Mas afinal, corremos contra o quê
ou contra quem? Por que a corrida desenfreada da concorrência entre as organizações deve
chegar aos lares de seus “colaboradores”? Seria mais efetivo ou mais eficiente subjugá-los a
partir de seus lares para que ao chegarem na organização estes já estivessem “programados”,
tais como as máquinas compradas para a produção? Talvez estas perguntas e suas possíveis
— e pessimistas —, respostas levem a outro trabalho, visto que esse tema não condiz com a
pretensão desse ensaio. Porém, são questões pertinentes ao que aqui quisemos abordar, dado o
poder manipulador que está por trás da elaboração de culturas de empresa e da criação de
identidades inerentes a esse processo.
Enfim, de fato não pretendemos “esconjurar” aqui as organizações, visto que elas
seguem a racionalidade instrumental com o intuito de alcançar seu objetivo principal: o lucro.
Também não desejamos fazer uso desse artigo como peça panfletária. Todavia, não podemos
deixar de reconhecer que são pessoas que realizam a função da produção, e que essas estão
sujeitas a serem tratadas pela mesma razão instrumental que apenas racionaliza as coisas num
sentido de meio/fim. Eticamente falando, esse tipo de racionalidade não pode ser levada a
cabo quando se lida com sujeitos, sob pena de mutilar sua subjetividade, afetando sua
identidade e, portanto, transformando-os em indivíduos incompletos. Quando uma gama
maior de organizações levar em consideração a subjetividade dos indivíduos as organizações
poderão, enfim, tornarem-se mais completas e mais coesas. Não haveria sequer o problema da
contracultura porque não haveria também a imposição insidiosa de um cultura forjada.
Termino aqui esse trabalho com uma frase de efeito de Aktouf (1994), que exprime
bem o sentimento impresso nesse trabalho:
“Tornar o explorado cúmplice ativo de sua própria exploração é um sonho
milenar. Estaríamos aproximando-nos disso?” (Aktouf, 1994, p.79).
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Sinceramente, acredito que não. E tenho a convicção de que compartilha essa crença
comigo uma considerável parte de nossa sociedade, seja essa parcela composta por
empregados, dirigentes ou proprietários de organizações.
Conclusão
Já na ocasião da introdução, foi possível ter acesso ao horizonte que se desejava
descobrir nesse artigo: a discussão acerca da existência ou não de cultura e identidade da
organização. No decorrer do trabalho, fomos chegando a algumas conclusões. Quais sejam
elas: a reafirmação de que o que existe é mais um abuso conceitual sobre o termo “cultura” do
que, na verdade, o uso com propósitos louváveis que legitimem o emprego desvirtuado da
palavra. Esse “cimento” que mantém unida a organização como um todo, que lhe confere um
“sentido” e engendra “sentimento de identidade” entre seus membros, tal qual descreveu
Aktouf (1994), nada mais é que o uso que dela tenta fazer a organização na perseguição por
uma efetividade que a palavra não pode oferecer, em toda sua potencialidade, afora na
antropologia e na etnologia. É o resultado da imaginação, de uma fantasia coletiva, que
através de bibliografia especializada — há controvérsias sobre o quão especializada assim ela
seja, a chamada “bibliografia de aeroporto” —, é perpetuada. Na seqüência, discutimos sobre
a racionalidade funcional que permeia o tratamento da cultura na organização. Não
consideramos ser desculpável o uso dessa racionalidade, visto que ela pode desencadear
resultados inconseqüentes e incomensuráveis tanto na vida dos membros que trabalham, como
na vida dos que mantêm contato com as organizações. Obviamente que temos consciência de
que a maneira mais comum e disseminada de exercitar o raciocínio seja através dela, da
racionalidade instrumental — meios que levam a determinados fins. Porém, por que quando
nos percebemos com uma grande resolução nas mãos recorremos a outros artifícios que não a
racionalidade instrumental, pura e simples? Será porque tememos seus resultados já
esperadamente catastróficos, em se tratando de assuntos de grande importância?
Respondidas as questões propostas ao longo do artigo de forma relativamente
satisfatória, temos o compromisso de anunciar — principalmente àqueles que esperam por
isso —, que não pretendemos prescrever possíveis soluções para os problemas administrativos
que possam aparecer nas mais diversas organizações, como é de praxe relativamente à escrita
acadêmica da administração seguidora do mainstream.
Falamos sobre “mitos”, “heróis”, “símbolos”, “linguagem”, “ritos” e “rituais”,
componentes da cultura proveniente da antropologia de raiz simbólica. Por fim, o que temos
como certo é que nós, atores do dia-a-dia, que sustentamos as organizações com consciência
de que desempenhamos o verdadeiro papel de “herói” ao suportarmos, sempre, mais um dia
de trabalho em que nos é exigida a maior força possível para que aceitemos os “ossos do
ofício” que nos são impingidos pelas empresas e pela sociedade em geral: a necessidade de
uma mutação identitária e cultural permanente, sob pena de que o reconhecimento de um “eu”
essencial, opinador e questionador seja banido do “círculo dos legitimados” na sociedade. É
fato que essa não-obrigatoriedade de ter a identidade cravada para sempre na cultura em que
se nasceu proporciona certa liberdade. Mas não se estaria fazendo mau uso e mau
entendimento dessa liberdade, sobretudo com fins de “desenraizamento” para a imposição de
uma cultura mais poderosa sobre os indivíduos, que possa extrair deles ainda mais, sob um
controle mais efetivo? Enfim, tomamos a liberdade de prescrever, apenas por um breve
momento e por uma boa razão. Mas não às organizações, e sim aos sujeitos que com elas
mantêm contato estreito: cuidado! Muito cuidado!
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Cultura e Identidade nas Organizações: Uma Visão Crítica