Rev Bras Cardiol Invas 2003; 11(4): 27-30.
Machado MC, Castagna MTV, Reis G, Motta MS, Oliveira JV, Oliveira AL, Campos Neto MS. Nefropatia por Radiocontraste:
Tendências Atuais. Rev Bras Cardiol Invas 2003; 11(4): 27-30.
Artigo de Revisão
Nefropatia por Radiocontraste: Tendências Atuais
Maurício Cavalieri Machado1, Marco Túlio Villaça Castagna1, Gilmar Reis1,2, Mauro Soares Motta1,
Jordan Vieira de Oliveira1, Adriana Lúcia de Oliveira2, Milton Soares Campos Neto2
RESUMO
SUMMARY
Este artigo de revisão tem por objetivo descrever, resumidamente, o estágio atual de nosso conhecimento sobre a
nefropatia induzida por radiocontraste e as novas tendências
no sentido de sua profilaxia, baseada em evidências.
Radiocontrast Medium-Induced Nephropathy: Current Issues
DESCRITORES: Insuficiência renal. Nefropatias. Meios de
contraste.
A
disfunção renal causada por radiocontraste é uma
complicação potencialmente séria das angiografias
e cateterismo cardíaco, sejam exames diagnósticos ou
intervenções terapêuticas. A sua definição, embora varie
na literatura, é mais comumente aceita como o aumento
de 25 a 50% da medida basal ou aumento absoluto
de 0,5 a 1 mg/dl da creatinina sérica1. Estima-se, de
maneira geral, que até 5% dos pacientes submetidos
à cineangiocoronariografia possam ter, ao menos, elevação transitória da creatinina2. Usualmente, esta disfunção tem evolução benigna, não oligúrica e o aumento
de escórias se dá em 24 a 48h e retorna ao normal
em 7 a 14 dias2,3. Entretanto, esta incidência varia de
acordo com as condições clínicas e os fatores de risco
preexistentes, havendo nitidamente subgrupos de maior
risco para esta complicação. Ainda mais, para os pacientes que evoluem com lesão permanente dos rins,
os efeitos podem ser catastróficos. Está comprovada
morbimortalidade elevada nos indivíduos com lesão
renal após o procedimento, de até cinco vezes mais
que a esperada, quando comparada ao grupo que
mantém sua função renal intacta3. O presente trabalho
faz uma revisão da literatura recente para identificarmos e prevenirmos a nefropatia por contraste, com
base em evidências.
Fisiopatologia e diagnóstico diferencial
A medula renal é sabidamente mais sensível a
agressões do que o córtex. O contraste iodado leva à
This article tries to briefly describe our current knowledge
of radiocontrast medium-induced nephropathy and the
new trends in evidence-based prophylaxis.
DESCRIPTORS: Kidney failure. Kidney diseases. Contrast media.
lesão da medula externa e à hipóxia medular. A injúria
se dá por efeito tóxico direto e por alterações reológicas
e bioquímicas induzidas pelo contraste. A maior viscosidade em comparação ao sangue diminui o fluxo
sangüíneo medular. A liberação de endotelina, adenosina
e PGE-2 está elevada e a PGI-1 e o óxido nítrico
diminuídos, com conseqüente diminuição do fluxo
sangüíneo renal4. Ocorre liberação de radicais livres e
diminuição da atividade enzimática antioxidante. A
hipóxia medular gera vasoconstrição, diminuição da
IGF-I e precipitação da proteína de Tamm-Horsfall,
que culmina em obstrução e danos nos túbulos renais.
O diagnóstico diferencial da nefropatia por contraste
deve, evidentemente, ser feito em relação às outras
causas comuns de lesão (às vezes somatórias), como
insuficiência pré-renal por hipovolemia ou baixo débito,
nefropatias intrínsecas ou obstrutivas. Entretanto, merece
menção especial a insuficiência renal desencadeada
por êmbolos de colesterol, devido a sua relação específica
com os procedimentos angiográficos. A lesão dos rins,
neste caso, se dá pelo deslocamento de placas de ateroma,
através da manipulação do cateter e da liberação de
cristais de colesterol na circulação. Estes cristais se alojam
nos rins e diversos outros órgãos, podendo levar, além
da lesão renal, a dor abdominal, livedo reticularis, pancreatite, coagulação intravascular disseminada, gangrena de
extremidades, infarto cerebral e sinais periféricos de
múltiplos êmbolos, entre outros. Tais casos podem se
1
Instituto de Cardiologia de Minas Gerais - Hospital São Francisco de Assis, Belo Horizonte, MG.
Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, Belo Horizonte, MG.
Correspondência: Maurício Cavalieri Machado. Instituto de Cardiologia de Minas Gerais, Hospital São Francisco de Assis. Rua Itapagipe, 780
- Belo Horizonte - MG - Brasil. CEP 31110-590. Tel.: (31) 3425-5281 • Fax: (31) 3425-5281 • e-mail: [email protected]
Recebido em: 01/06/2005 • Aceito em: 09/06/2005
2
27
Cavalieri.p65
27
17/6/2005, 09:33
Machado MC, Castagna MTV, Reis G, Motta MS, Oliveira JV, Oliveira AL, Campos Neto MS. Nefropatia por Radiocontraste:
Tendências Atuais. Rev Bras Cardiol Invas 2003; 11(4): 27-30.
apresentar aguda ou insidiosamente, após 2 ou 6 semanas. Podem ser diferenciados da nefropatia por contraste
pelo seu tempo de aparecimento, assim como pelo seu
caráter mais agressivo (a maioria desenvolve insuficiência renal progressiva e irreversível), pela presença de
sinais periféricos de embolia e, em menor grau, devido
à presença de eosinofilia e ao aumento do VHS.
Fatores de risco
É consenso que os seguintes fatores aumentam o
risco de nefrotoxicidade pelo contraste:
• Presença de disfunção renal prévia, particularmente
secundária à nefropatia diabética, sendo este, isoladamente, o fator predisponente de maior importância;
• Desidratação;
• Hipotensão;
• Insuficiência cardíaca;
• Idade acima dos 70 anos;
• Portadores de mieloma múltiplo;
• Procedimentos complexos combinados e excesso
de contraste;
• Administração concomitante de drogas nefrotóxicas e antiinflamatórios não esteróides (AINES).
Os diabéticos são sempre um grupo de pacientes
que requerem cuidados especiais, embora o diabético
sem lesão renal prévia não pareça estar em risco aumentado5. O uso de metformim também merece questionamento direto, uma vez que a disfunção renal pode ser
agravada por acidose lática relacionada ao uso do medicamento. Assim, pedimos sempre que a medicação seja
suspensa um dia antes e só seja reiniciada 48 h após
o exame, se não houver sinais de insuficiência renal6.
Tipos de contraste
Os contrastes utilizados em cineangiocoronariografia são todos derivados ácidos tri-iodo benzóico. Podem
ser iônicos ou não iônicos; monoméricos ou diméricos
e de alta, baixa ou iso-osmolaridade, quando comparados ao sangue (Tabela 1).
Os agentes de baixa osmolaridade mostraram-se
superiores em seu perfil de segurança, tanto em relação
a efeitos adversos durante o exame, como no menor
risco de lesão renal. É necessário o alerta, entretanto,
que os não iônicos de baixa osmolaridade têm efeito
trombogênico maior e devem ser evitados em síndromes
coronarianas agudas7. O iodixanol (Visipaque® – contraste iso-osmolar) apresenta, consistentemente, menos efeitos colaterais de intolerância durante o exame e tem
mostrado resultados benéficos, mas ainda em estudo,
no que diz respeito à injúria renal, como visto no trial
Nephric8.
Medidas preventivas
Diversas foram as estratégias já utilizadas na tentativa
de prevenção da nefropatia (Tabela 2), a grande maioria sem êxito ou com resultados conflitantes. Devemos
ter em mente que não há solução mágica para sua
profilaxia e sim uma série de cuidados, que se forem
respeitados, terão grande índice de sucesso. Devemos
suspender, sempre que possível, medicações como
metformim, AINES e diuréticos. As medidas de maior
importância são manter a boa hidratação e limitar ao
máximo o volume de contraste, seguidas do uso de
agentes de baixa osmolaridade e cuidados específicos.
Propomos seguir os passos descritos adiante e utilizar
a profilaxia se creatinina > 1,5 mg/dl ou clearence
< 60 ml/min:
• Identificar, através do exame clínico e questionário
direcionado, os fatores de risco previamente citados.
• Calcular o clearence de creatinina pela fórmula:
(140 – idade) x peso
72 x Cr.
• Se paciente do sexo feminino, multiplicar o resultado por 0,85.
Comentário: O clearence é uma medida mais fidedigna do que o valor isolado da creatinina e pode
detectar disfunções renais insuspeitas, especialmente
em indivíduos idosos e de menor peso.
• Sempre evitar exames desnecessários.
• Usar contraste de baixa osmolaridade nos pacientes de risco.
TABELA 1
Tipos de contraste e suas características
Osmolaridade (mOsm/kg)
Ionicidade
Anéis de Benzeno
Nome
Viscosidade a 37 graus (cps)
Alta
Iônico
Monômero
Diatrizoate
Baixa
Iônico
Dímero
Ioxaglate
14
15
Baixa
Não iônico
Monômero
Iohexol
Iopamidol
Ioversol
Iopromide
10-20
28
Cavalieri.p65
28
17/6/2005, 09:33
Iso
Não iônico
Dímero
Iodixanol
26
Machado MC, Castagna MTV, Reis G, Motta MS, Oliveira JV, Oliveira AL, Campos Neto MS. Nefropatia por Radiocontraste:
Tendências Atuais. Rev Bras Cardiol Invas 2003; 11(4): 27-30.
TABELA 2
Algumas estratégias já utilizadas para prevenção da nefropatia por contraste
Agente
Tipo de Estudo
Resultados
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro-Ran
Pro-Ran
Pior
Pior
Benéfico
Neutro
Neutro
Neutro
Neutro
Neutro
Não adequadamente estudados
Monômero = Dímero
Baixa osmolaridade benéfico
Benéfico, mas questionado
Benéfico
Benéfico
Benéfico (pouco estudado)
Furosemide
Manitol
Hidratação
Peptídeo Natriurético Atrial
Dopamina
Fenoldopam9
Antagonista de endotelina
Antagonista de adenosina
Antagonista do cálcio
Contraste de baixa osmolaridade
Contraste de baixa X alta osmolaridade
N-acetilcisteína
Bicarbonato de Sódio
Hemofiltração
Ácido ascórbico
Pro= estudo prospectivo; Ran= estudo randomizado.
• Hidratação com soro fisiológico 0,9% no mínimo
1 ml/kg de peso/hora, se possível 100 a 150 ml/h por
12h pré-procedimento e após, estando atento ao risco
de sobrecarga de volume10.
• Considera-se, hoje, mais eficaz que o item prévio,
o uso de bicarbonato de sódio 3 ml/kg/h, 1 hora antes
do procedimento, mantendo-se 1 ml/kg/h por 6 horas
após. A concentração recomendada é de 154 meq/L
em solução glicosada11.
• Usar o mínimo de contraste possível, respeitando
a dose < 3 ml/kg de peso.
• Em caso de creatinina elevada, limitar ainda
mais o volume de contraste a ser utilizado. Para tal, é
sugerida a fórmula:
5 ml contraste/kg de peso
Creatinina
• Administrar n-acetilcisteína 600 mg VO 12/12h
1 dia antes e 24h após o procedimento12.
• Em emergências, considerar o uso de n-acetilcisteína venosa 150 mg/kg em 500 ml de SF 0,9% 30
min antes e 50 mg/kg por 4h após o procedimento,
segundo a recomendação do trial Rappid13.
Comentário: O uso da n-acetilcisteína pode ainda
ser recomendado, mesmo baseado em fracas evidências e apesar da ultima metanálise de seus vários estudos não a apoiar14. Isto se deve a seu excelente perfil
de segurança. A decisão de usar ou não a droga,
portanto, pode variar em cada instituição.
• Considerar uso de ácido ascórbico 3g VO 2h
antes do procedimento e 2g na noite e na manhã
seguintes, seguindo-se a mesma linha de raciocínio
empregada para o uso da n-acetilcisteína.
Comentário: A idéia para se usar a vitamina C
também se alicerça em seus efeitos antioxidantes. Foi,
até o momento, menos estudada do que a n-acetilcisteína, mas tem a seu favor, ao menos, um trabalho
prospectivo e randomizado mostrando benefício15. Mais
estudos esclarecerão melhor o seu papel, no futuro.
• Em pacientes com insuficiência renal mais grave
(clearence 25 ml/min), devemos, em consulta com o
nefrologista, considerar o início, em ambiente semiintensivo ou unidade coronária, de hemofiltração 4 a
6h antes da intervenção percutânea. A filtragem é interrompida para o procedimento e reiniciada após, sendo continuada por 18 a 24h. Esta estratégia se mostrou
efetiva em prevenir a deterioração renal e teve resultados benéficos estatisticamente significativos em termos
de morbidade e mortalidade hospitalar e até de longo
prazo (mortalidade acumulada de 30% em 1 ano do
grupo controle contra 10% no grupo hemofiltrado,
p = 0,01). Embora o ponto de corte para esta estratégia
invasiva não esteja bem definido, o clearence médio
dos grupos estudados era próximo a 25 ml/min, daí a
sugestão prévia16.
• A hemodiálise convencional não é recomendada profilaticamente. Também não há diretriz que recomende alterar os dias habituais do paciente dialítico
com vistas à remoção do contraste. Apesar disso, é
justificável que isso seja feito, intuitivamente, por boa
parte dos serviços, não pela nefrotoxicidade do contraste
e sim pela sobrecarga de volume que este acarreta.
29
Cavalieri.p65
29
17/6/2005, 09:33
Machado MC, Castagna MTV, Reis G, Motta MS, Oliveira JV, Oliveira AL, Campos Neto MS. Nefropatia por Radiocontraste:
Tendências Atuais. Rev Bras Cardiol Invas 2003; 11(4): 27-30.
CONCLUSÃO
A nefropatia induzida pelo radiocontraste pode
ser complicação grave, levando inclusive a maior mortalidade nos pacientes de risco. A identificação deste
subgrupo de doentes é fácil, seguindo-se os passos
corretos. Nos últimos anos, reforçou-se a necessidade
de hidratação e limitação do volume de contraste como
principais medidas preventivas e se consolidou a superioridade dos contrastes de baixa osmolaridade. As
propostas mais recentes de uso de bicarbonato e hemofiltração devem ser mais difundidas para sua maior
aplicação, pelo impacto positivo que demonstraram
nos estudos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Morcos SK, Thomsen HS, Webb JA. Contrast-media-induced
nephrotoxicity: a consensus report. Contrast Media Safety
Committee, European Society of Urogenital Radiology (ESUR).
Eur Radiol 1999;9:1602-13.
2. Baim SD, Grossman W. Cardiac catheterization, angiography,
and intervention. Pennsylvania:Williams and Wilkins;1996.
3. Kandarpa K, Aruny JE. Handbook of interventional radiologic
procedures. Philadelphia: Lippincott Williams and Wilkins;
2002.
4. Leite RS. Contrastes iodados. Tipos e implicações clínicas
de suas diferenças. In: I Curso de Revisão em Cardiologia
Intervencionista da SBHCI (on line); 2003 Julho 23; São
Paulo. Disponível em URL: http://www.sbhci.org.br/aulas_
conferencias.asp
5. Loggins CH, Fang LST. Acute renal failure associated with
antibiotics, anesthetic agents and radiographic contrast agents.
In: Brenner BM, Lazarus JM, editors. Acute renal failure.
New York:Churchill Livingstone;1988. p.295-352.
6. Nawaz S, Cleveland T, Gaines PA, Chan P. Clinical risk
associated with contrast angiography in metformim treated
patients: a clinical review. Clin Radiol 1998;53:342-4.
7. Scheller B, Hennen B, Pohl A, Schieffer H, Markwirth T.
Acute and subacute stent occlusion; risk-reduction by ionic
contrast media. Eur Heart J 2001;22:385-91.
8. Erdogan A, Davidson CJ. Recent clinical trials of iodixanol.
Rev Cardiovasc Med 2003;4(suppl. 5):S43-50.
9. Stone GW, McCullough PA, Tumlim JA, Lepor NE, Madyoon
H, Murray P. Fenoldopam mesylate for the prevention of
contrast-induced nephropathy: a randomized controlled trial.
JAMA 2003;290:2284-91.
10. Thomsen HS. How to avoid CIN: guidelines from the European
Society of Urogenital Radiology. Nephrol Dial Transplant
2005;20(suppl 1)i18-22.
11. Merten G, Burgess WP, Gray LV, Holleman JH, Roush TS,
Kowalchuk GJ et al. Prevention of contrast-induced nephropathy with sodium bicarbonate: a randomized controlled
trial. JAMA 2004;291:2328-34.
12. Kay J, Chow WH, Chan TM, Lo SK, Kwok OH, Yip A et
al. Acetylcysteine for prevention of acute deterioration of
renal function following elective coronary angiography and
intervention: a randomized controlled trial. JAMA 2003;289:
553-8.
13. Baker CS, Wragg A, Kumar S, De Palma R, Baker LR, Knight
CJ. A rapid protocol for the prevention of contrast induced
renal dysfunction: the RAPPID Study. J Am Coll Cardiol
2003;41:2114-8.
14. Kshirsagar AV, Poole C, Mottl A, Shoham D, Franceschini
N, Tudor G et al. N-acetylcysteine for the prevention of
radiocontrast induced nephropathy: a meta-analysis of prospective controlled trials. J Am Soc Nephrol 2004;15:761-9.
15. Spargias K, Alexopoulos E, Kyrzopoulos S, Iacovis P, Greenwood DC, Manginas A et al. Ascorbic acid prevents contrastmediated nephropathy in patients with renal dysfunction
undergoing coronary angiography or intervention. Circulation
2004;110:2837-42.
16. Marenzi G, Marana I, Lauri G, Assanelli E, Grazi M, Campodonico J et al. The prevention of radiocontrast-agent-induced nephropathy by hemofiltration. N Engl J Med 2003;349:
1333-40.
30
Cavalieri.p65
30
17/6/2005, 09:33
Download

Nefropatia por Radiocontraste: Tendências Atuais