UFRRJ INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAS EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE TESE RURALIDADES NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE: UM OLHAR À LUZ DE JANUS 2014 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE RURALIDADES NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE: UM OLHAR À LUZ DE JANUS DIONE MELO DA SILVA Sob a orientação do professor Roberto José Moreira Tese submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Rio de Janeiro, RJ Outubro de 2014 307.72098151 Silva, Dione Melo da. S586r Ruralidades na Região Metropolitana de Belo Horizonte um olhar à luz de Janus / Dione Melo da Silva, 2014. 202 f. T Orientador: Roberto José Moreira. Tese (doutorado) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Bibliografia: 177-187 1. Ruralidade - Teses. 2. Dinâmicas rurais – Teses. 3. Belo Horizonte, MG – Teses. I. Moreira, Roberto José. II. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. III. Título. UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE DIONE MELO DA SILVA Tese submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Ciências do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, na linha de pesquisa Estudos de Cultura e Mundo Rural. TESE APROVADA EM ___/____/_____ Membros da banca examinadora ______________________________________________ Prof. Ph.D. Roberto José Moreira – CPDA/UFRRJ (orientador) ______________________________________________ Profª. Dra. Eli Napoleão Lima – CPDA/UFRRJ _____________________________________________________ Profª. Dra. Regina Landin Bruno – CPDA/UFRRJ ____________________________________________________ Profª. Dra Márcia Maria Menendes Motta – UFRJ _____________________________________________________ Dr. Otavio Valentim Balsadi – Pesquisador da Embrapa- Brasília Dedico a vocês, Caca, Deni e Dori, o resultado desta jornada chamada Doutorado! A prematura partida de vocês foi avassaladora... arrastou muitos planos, sonhos e a melhor parte do meu coração. O pedaço restante – ainda que árido – teve que sobreviver, buscando e aprendendo uma nova forma de amá-los: à distância, sem nossas frequentes brigas, em uma ausência sofrida. Porém, e felizmente, meu coração foi (é) aquecido e renovado pelas lembranças dos nossos momentos de alegria, de riso farto e fácil. Caca, minha filha-sobrinha. Dene, meu filho-irmão. Dori, meu pai-irmão. Para vocês esta tese: ela é a celebração de um processo, marcado pela tristeza, mas também pela perseverança. Eis a “nossa” tese: um doce amargo, cozido na chama quente do amor e embrulhado com o papel cinzento da saudade. Um doce com sabor, textura e aroma inconfundíveis, pois para sempre evocará momentos, lugares, partidas, chegadas, sorrisos e lágrimas. E sonhos. Ela é o presente e o meu presente. Minha forma de demonstrar um carinho infinito pela nossa convivência, curta e intensa. Meu agradecimento por ter aprendido com vocês o significado do verbo AMAR. Eu vos digo: é necessário ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante. Frederico Nietzsche Assim Falava Zaratustra (2002, p. 21). AGRADECIMENTOS Antes de tudo, agradeço à Vida. Celebrá-la, sempre, em pequenos e grandes gestos. Mas, afinal de que ela é feita? Barro... Luta... Poesia? Enquanto procuro respostas, vou agradecendo às pessoas, pois com elas é que vou tecendo a grande teia da Vida. Roberto Moreira, meu agradecimento especial a você. Grande luz, pessoa e mestre. Desde o brilhar de olhos na primeira aula até aos brilhos mais recentes das aulas do dia a dia. Você já sabe, mas faço questão de repetir: cheguei aqui por sua causa. Aos professores: Regina Bruno, admiração infinita. Como não se encantar diante de seu “Demiurgos, sanguessugas e autômatos”? Eli Lima, que me instigou a buscar respostas aos seus questionamentos. Hoje, já consigo responder o que é e onde estão as novas ruralidades. Zezé, por sua franqueza sem limites e por me ensinar a pensar. Nelson Delgado, um sorriso inesquecível no anonimato da entrevista de seleção. Leonilde Sérvolo, por sua inquebrantável disciplina e por tudo que tem feito pelo conhecimento científico acerca dos movimentos sociais. Fátima Portilho em sua pós-modernidade retrô. Raimundo, genuína intelectualidade brasileira. Graças ao seu esforço e sua peculiar organização comecei a ler Caio Prado, Furtado e Gilberto Freyre. Renato Maluf, com olhos questionadores e grande coração. Cláudia Schmidt e sua braveza e bravura gaúchas. Aos meus pilares do dia a dia no CPDA, Têresa, Henrique, Sílvia, Marcos e Cinthia. Aos companheiros de ontem, que ficarão para sempre guardados no baú das memórias. Bons amigos, muitas memórias. Quem sabe não serão companheiros no amanhã? Luciano, Diógenes, Marta, Paulo, Walter, Rosana, Alessandro, Silvia, Alex, Wagner, Melqui, Marcelo, Clesson, Malu, Cida, Jaqueline, Débora, Vanessa e Marco. À Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária e ao povo brasileiro, por eles assumo responsabilidades, enfrento pressões. Com eles, procuro os motivos para seguir em frente, vivenciando alegrias e frustrações. À Moita, Dejoel, Werito e Rosane. Embrapianos que, nesta ordem e a seu modo, seguraram na minha mão, ajudando-me a chegar aqui. À professora Cristina Alencar e ao pesquisador Otávio Balsadi por participarem da banca de defesa e pelas sugestões para sua melhoria. À Márcia, mais do que Embrapiana, irmã. À Aelson, mais do irmão, família. À minha Mãe, meu Pai, aos irmãos D – aos presentes e aos que já estão em outro plano – ao meu cunhado, cunhadas e sobrinhos. Mais do que Família, Amores. Ao amor. À vida. Ao amor da minha vida, Amauri. Você enxuga as minhas lágrimas. Você me fez sorrir. RESUMO Esta tese objetiva identificar, descrever e analisar como as identificações rurais são apreciadas na instância do metropolitano tendo como recorte empírico a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Utilizo o mito janusiano como procedimento alegórico para marcar a necessária interconexão entre campo, cidade e metrópole. Demonstro a existência de um mito fundador que impulsiona e consolida psicanaliticamente uma identidade atribuída/designada a este território metropolitano, identidade esta hegemonicamente construída como minerária, industrial, urbana e moderna, forjada desde os primeiros momentos de sua constituição. Apresento a ruralidade como uma expressão identitária por meio da qual as sociedades pensam sua relação com a natureza, na medida em que ela – ruralidade – é culturalmente associada à terra, aos processos naturais e à natureza natural, isto é, à natureza que se pensa pura por oposição à existente nas cidades. É desta visão – marcadamente urbana – de que o rural representa uma natureza não artificializada ou quase não transformada que repousa a identificação social de seu ambiente como natureza e como campo. Por meio de entrevistas semi-estruturadas busquei captar como diferentes atores vivenciam as ruralidades metropolitanas, e, ao fazê-lo, desconstruo a tese de sua inexistência. Palavras-chaves: campo-cidade, metrópole, identidades rurais, ruralidades. ABSTRACT This thesis intends to identify, describe and analyze how the rural identifications are appreciated in the metropolitan level having as empirical cutting the Metropolitan Region of Belo Horizonte (MRBH). I will use the Janus myth as an allegorical procedure to mark the necessary interconnection between the rural areas, the city and metropolis. I will demonstrate the existence of a foundation myth that impulse and consolidate psychoanalytically one identity assigned to this metropolitan territory, identity that was built in a hegemonic way as a mining industry, industrial area, urban and modern, since the beginning of its formation. I will present rurality as an identitary expression by which the societies rethink their relation with nature, as – rurality- is culturally associated to the land, to the cultural processes and to the natural environment, i.e., to the nature that is considered as pure opposed to the existent in the cities. It is this vision – markedly urbanfrom which the rural represent a non-artificialized or almost a non-transformed nature that maintain a social identification of its environment as nature and field (land). By mean of semi structured interviews, I searched to capture as different actors experience the metropolitan rurality, and in doing so, I deconstruct the thesis of its inexistence. Key words- Land (field)- city, metropolis, rural identities, ruralities. LISTA DE TABELAS Tabela 1: Siderurgia: desembolsos efetuados pelo Sistema BNDES. 1952-1989. Tabela 2: Investimentos na mineração em Minas Gerais. 1990-1999. Tabela 3: Valor da Transformação Industrial por classe/gênero de indústria. Minas Gerais e Brasil. Tabela 4: Indicadores de pobreza e desigualdade de regiões metropolitanas. 2000. Tabela 5: Evolução da população da RMBH. Tabela 6: Evolução da população rural e urbana em Minas Gerais, 1950-2000. Tabela 7: Evolução dos preços de terrenos no aglomerado metropolitano de Belo Horizonte. 1950-1976. Tabela 8: Produtos ofertados pelos municípios da RMBH na CeasaMinas. Tabela 9: Classificação dos imóveis rurais na RMBH. 2005. LISTA DE QUADROS Quadro 1: Municípios que compõem a Grande Belo Horizonte (RMBH): movimentos originários e base econômica atual. Quadro 2: Extensão territorial, percentual de população rural e número de estabelecimentos rurais dos municípios da RMBH. . LISTA DE FIGURAS Figura 1: Edifício Oscar Niemeyer. Disponível em: www.arqbh.com.br Figura 2: “Janus”, Watercolour by Tony Grist, 1971. Figura 3: Montagem com nomes dos 34 municípios que compõem a RMBH. Figura 4: Mapa político-administrativo da Região Metropolitana de Belo Horizonte. No detalhe, a localização da RMBH no mapa do Estado. Fonte: IBGE, 2007. Figura 5: Propagandas de algumas indústrias instaladas em Belo Horizonte entre 1920, 1930 e 1940. Fonte: (PAULA; MONTE-MÓR, 2004). Figura 6: Pico do Cauê, em 1942 e em 2007, à direita, o que sobrou dele. Fotos: 1942, Companhia Vale do Rio Doce: 50 anos de História e 2007, Cristiane Magalhães. Figura 7: Mina de Águas Claras, tendo ao fundo a Serra do Curral e a cidade de Belo Horizonte. Desativada, suas bordas estão em estágio avançado de desmoronamento (detalhes), e sua cratera de 240 m de profundidade alcançou o lençol freático. Foto de Fernando Rabelo, 02/2014. Figura 8: Indicador de pobreza por município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, 2000. Fonte: Cedeplar/UFMG (2004, p. 104). Figura 9: Representação cultural do mineiro mais recorrente (DANTAS, 2010, p.77). Figura 10: População rural na RMBH. Dados estratificados. Fontes: IBGE, censo demográfico 2000; Cadastro do Incra para MG (2007). Adaptado de Mazzetto (2008). Figura 11: Serra do Rola Moça (foto de Roberto Murta); Mar de morros (foto Alex Tinoco). Figura 12: Cachoeira do Índio, em Rio Acima, e Cachoeira Grande, em Jaboticatubas. Fotos da autora. Figura 13: Ruas em Sabará (foto de Robson Nunes) e Santa Luzia (Rua Direita, foto Maya Santana). No centro, o Solar da Baronesa (foto da autora). Figura 14: Igrejas em estilo barroco colonial em Mateus Leme, Caeté e interior de igreja em Santa Luzia. Fotos da autora. Figura 15: Em Baldim, Cortejo de Nossa Senhora do Rosário e Folia de Reis (fotos Ione Torres). Figura 16: Sede de Casa de Congado, em Baldim, e apresentação de Congado em Rio Manso. Fotos: site da Prefeitura Municipal de Baldim e Rio Manso. Figura 17: Capa do livro: Belo Horizonte: do Arraial à metrópole - 300 anos de história. Autor: José Maria Rabêlo. Editora Legraphar, 2013. Figura 18: Mapa ilustrativo da criação de Vilas em Minas Gerais entre 1710-1820. Fonte: Cunha (2006, p.6). Destaque para a área em amarelo, a região das Minas, onde se localizavam de forma dispersa as vilas auríferas mais populosas. Figura 19: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.10). Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. Em destaque as povoações classificadas por Caetano Miranda como arraiais freguesias, na área de mineração mais intensa e próspera. Figura 20: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Adaptado de Santos et al. (2009, p.11). Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. No detalhe retangular vermelho, o Curral Del Rey, arraial onde seria instalada a futura capital do Estado, Belo Horizonte. Também em destaque as povoações classificadas por Caetano Miranda como arraiais. Figura 21: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.10). Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. Em destaque as povoações classificadas por Caetano Miranda como arraiais capelas. Figura 22: Carta Geographica da Capitania de Minas Geraes [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.6). Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. No mapa foram destacados os limites da Capitania, de suas comarcas, as vilas cabeças de comarca, os limites com as outras capitanias e os principais elementos de hidrografia e relevo. Figura 23: Mapa da capitania em 1720. Projeção sobre mapa atual. Destaque para as áreas limítrofes, divisão de comarcas e vilas principais. Fonte: Adaptado de Cunha (2002, p,145). No detalhe em vermelho, o arraial Curral Del Rey, em cujas terras seria erigida a futura capital. Em azul, Vila Rica (Ouro Preto), capital da capitania. Figura 24: Mapa da Capitania de Minas Gerais no século XVIII: categorias de percepção do espaço setecentista. Projeção sobre mapa atual. Fonte: Adaptado de CUNHA (2002, p.140). No detalhe em cinza, a região das Minas e suas principais nucleações. As barras laterais indicam os limites de colonização efetiva da capitania no século XVIII. Figura 25: Mapa da regionalização de Minas Gerais para o século XVIII. Diferenciação espacial e especialização das atividades e eixos comerciais. Projeção sobre mapa atual Fonte: Cunha (2006, p.3). Destaque para a área em amarelo, a região das Minas, onde se localizavam de forma dispersa as vilas auríferas mais populosas. Figura 26: Julius Kaukal (Viena, 1897 – Belo Horizonte, 1995), ilustração do Arraial de Curral Del Rei. In: SENNA, Nelson C. Cinqüentenário de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1948. Acervo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Figura 27: Julius Kaukal (Viena, 1897 – Belo Horizonte, 1995), ilustração de Belo Horizonte em 1947. In: SENNA, Nelson C. Cinqüentenário de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1948. Acervo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Figura 28: Vista aérea de área de extrativismo mineral na RMBH. Fonte: Estado de Minas, 20/04/2012. Figura 29: Cópia de encartes divulgando empreendimentos imobiliários tendo o rural como chamariz. Figura 30: Propaganda do empreendimento Recanto das Araras, em Jaboticatubas. Figura 31: Propriedades improdutivas na RMBH. Fonte: Mazzetto (2008). Figura 32: Entrada do Condomínio Retiro do Chalé e a vista do Lago Sul. Fotos da autora. Figura 33 Museu Inhotim e Fazenda dos Martins, pontos turísticos em Brumadinho. Fotos da autora. Figura 34: Manifestação em prol da Preservação da Serra da Moeda, promovida pelo Movimento pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca. Fonte: Jornal Estado de Minas, em 21/04/2012. Figura 35: Material de divulgação da Ong Movimento. Fonte: Movimento pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca. Figura 36: Transporte de tomate; embalagem pela Associação sob o rótulo Bruma Vida e retirada do leite. Fotos da autora. Figura 37: Áreas de produção do Assentamento das Pastorinhas e assentada. Fotos da autora. Figura 38: Comunidade Quilombola Sapé. Fotos da autora. Sumário PERAMBULANDO PELA METRÓPOLE MINEIRA... ................................................ 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13 CAPÍTULO I REVISITANDO O MITO DE JANUS: PROBLEMATIZANDO A RURALIDADE METROPOLITANA ...................................................................................................... 28 1. Aprofundando os marcos teóricos da pesquisa: o Deus Janus como procedimento alegórico......................................................................................................................... 29 2. Um pouco de história: (des)construindo e (re)construindo a relação campo e cidade. Qual campo? Que cidades? ............................................................................................ 36 3. Ruralidade Instrumental ............................................................................................ 47 4. Ruralidade Hedonista ................................................................................................. 48 5. Ruralidade Amordaçada............................................................................................. 49 CAPÍTULO II O TERRITÓRIO METROPOLITANO: O INDUSTRIAL COMO ENREDO COLETIVO ........................................................................................................................................ 50 1. As dinâmicas e heterogeneidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte. ...... 51 2. A vocação industrial da Região Metropolitana de Belo Horizonte. .......................... 64 3. A urbanização e a metropolização na RMBH............................................................ 77 4. O Rural na Região Metropolitana de Belo Horizonte. ........................................... 81 CAPÍTULO III MITOS FUNDADORES ................................................................................................ 97 1. A sócio-gênese mineira: o ouro, as vilas e a vocação semeadora de cidades. ........... 98 2. Para além da mineração: a produção agropecuária colonial. ................................... 126 3. Religiosidade e modos civilizados: notas sobre a cultura mineira. ......................... 130 4. A sócio-gênese mineira: um rápido resumo. ........................................................... 136 5. Eliminando Ruralidades: do Curral Del Rey a um Belo Horizonte. ....................... 139 CAPÍTULO IV RURALIDADES EM UM METROPOLITANO INSTITUCIONALIZADO ............ 149 1. Relações entre ruralidades complexas. ................................................................. 150 2. Ruralidade Instrumental: a horticultura intensiva em Ibirité. ............................... 151 3. Ruralidade Hedonista: o ambiental em Nova Lima.............................................. 153 4. Ruralidade Amordaçada: a questão agrária em Betim. ........................................ 157 5. Os atores e as ruralidades metropolitanas: dando voz às pessoas. ................................... 162 5.1. A moradora do Condomínio Retiro do Chalé. ............................................... 162 5.2. A dona da pousada em Casa Branca. ......................................................... 163 5.3. A história de C.C., ativista ambiental............................................................. 165 5.4. O empregado da mineradora. ..................................................................... 167 5.5. O dirigente municipal. ................................................................................ 168 5.6. O estudante. ................................................................................................ 169 5.7. O casal na roça. .......................................................................................... 169 5.8. O pecuarista. ............................................................................................... 170 5.8. O trabalhador do Assentamento Pastorinhas. ................................................. 171 5.9. A liderança quilombola. ............................................................................. 172 5.10. O gerente da mineradora ............................................................................ 173 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 174 Referências Bibliográficas ............................................................................................ 177 Figura 1: Edifício Oscar Niemeyer. Disponível em: www.arqbh.com.br Não é fácil nem simples amar Belo Horizonte. É natural amar Ouro Preto, Recife, Salvador, Rio... Nessas cidades há um estilo de amá-las, que se transmite. Mas em Belo Horizonte cada habitante tem de inventar o seu amor (eu chamo de amor uma complicação de sentimentos), como quem inventa uma lenda ou um poema. Nela não temos nem mesmo o rio e o mar, elementos através dos quais as crianças se põem em contato com o mundo imaginário, em que preferem viver. Menino de Belo Horizonte, de um lado, tem o programa traçado pelos adultos: estudo, educação, ordens; de outro lado uma cidade riscada a régua, sem idade e sem mitologia, sem muitos estímulos para a aventura lírica de todo dia. Os mitos fazem o espírito funcionar e o alimentam de amor. De repente uma pessoa se surpreende adulta e sente a compressão do tempo: esta pessoa amará o seu passado pelos incidentes que fizerem dele um acontecimento romanesco, uma fábula, uma promessa de mistério. (PAULO MENDES CAMPOS, 2000,p.69). PERAMBULANDO PELA METRÓPOLE MINEIRA... Um homem passeia, sem direção ou propósito, pelas largas e planejadas avenidas de Belo Horizonte. Quase não encontra calçadas que abriguem os seus passos. Protegido pelo anonimato, ele vai registrando sombras, sons, sensações. Faz leituras, esboça julgamentos. Metrópole1, murmura para si. Antigamente, a pequena Vila do Curral D’El Rey. Hoje, a metrópole mineira. Como defini-la? Para alguns, uma boca lançando palavras no ar, sua língua, seu sotaque. Para outros, um animal de patas e garras afiadas, arranhando desavisados, causando-lhes lacerações, conflitos e dor. Acredito que seja uma imperatriz fazendo seus súdito-habitantes caminhar sob o véu do cotidiano. Talvez uma nuvem engolindo o barulho ameaçador do dia-a-dia para transformá-lo em ritmo e melodia. Pretensiosamente acolhe todos que a procuram. Metrópole... Murmura novamente. O que seria? Espaço de fluxos? Aglomerado de pessoas? Rede de cidades? Muitas perguntas, muitas respostas. Talvez uma folha, jamais em branco, escrita por histórias de corpos e mentes. Certamente hierarquia e segregação são substantivos que a compõem, pondera o indivíduo solitário. Pensando alto, enuncia: metrópole, você é um espetáculo-tragédia para os sentidos. Em todos os sentidos. Mergulhado em suas reflexões, o andarilho desconhecido, ao fugir dos andaimes das construções em reforma, vez ou outra esbarra em transeuntes apressados, cujos passos largos são abafados pelos ruídos frenéticos dos motores. Metrópole... o lugar “abriga” mais de dois milhões de pessoas... Tropeçar em algumas delas é algo 1 Segundo Lencioni (2006, p.44), etimologicamente, o vocábulo metrópole deriva do grego “Mçtrópolis”, pela junção de pólis (cidade) com mçtra (útero, mãe). Seu significado seria então a de cidade-mãe em relação a outras cidades por ela criadas, denominadas de colônias, que, entretanto, guardavam-lhe independência. Na atualidade, esta palavra, como toda representação mental de dado momento histórico, guarda profundas diferenças em relação ao vocábulo originário. A este respeito, Arrais (2012, p.9) fez interessante compilação. Por exemplo, ela destaca que Bolle (2000), em seu estudo sobre o universo da metrópole a partir da representação histórica de Walter Benjamin, usa o termo para designar uma categoria do imperialismo oitocentista. Mumford (1998), no capítulo intitulado De Megalópolis a Necrópolis, do clássico livro A cidade na história, discorre sobre a metrópole no Império Romano, enquanto Coulanges (2002), em seu livro A cidade antiga, argumenta sobre a relação entre as guerras romanas, religião e metrópole. Segundo Lemos (1999, p.17), as metrópoles são centros nevrálgicos do capital monopolista, com o espaço criado para a integração territorial e o poder da elite, definindo e impondo ideologias e valores homogeneizantes. Mesmo não sendo consensual a definição contemporânea de metrópole, alguns pontos são comuns nas diferentes conceituações, quais sejam: é uma forma urbana de tamanho expressivo, seja em termos populacionais quanto territoriais; possui diversidade econômica, com concentração na economia de serviços; é um locus privilegiado de inovações; espaço de emissão e recepção de fluxos de informação e comunicação e, finalmente, é um nó significativo de redes diversas (transportes, informação, cultura, saúde, consumo, poder, cidades, etc.). 1 esperado, conclui ironicamente. Carros? Muito mais que um milhão e meio. Duzentos e dezoito novos por dia. Semáforos? Quase uma infinidade... Sorrindo, balança a cabeça admirando-se por recordar aqui e acolá uma ou outra estatística em meio à profusão de códigos e imagens. O homem levanta o olhar para mirar o horizonte. Belo horizonte? Enxerga uma paisagem pasteurizada – asfalto, carros, radares, fios, prédios, avisos, câmeras – embaçando a visão, e muitos, muitos anúncios de redes de fast food. A cidade parece eufórica, mas é agônica, féerie eletrônica. Com sarcasmo, o andarilho pondera sobre o lugar, que assusta e desenraiza2, mas ainda assim atrai migrantes, como mariposas buscando luz. Imã... Metrópole... Para ela voam muitas abelhas humanas atraídas pela possibilidade do mel, restando presas na fina teia das armadilhas do progresso. Com voracidade, ela vai engolindo as pessoas-abelhas, operárias na hierarquia, expulsando-as depois para colmeias-cortiços, espaços periféricos distantes do centro nevrálgico. As abelhas-rainhas, por sua vez, fogem para os condomínios fechados, enclaves fortificados3 de acesso restrito, com seus muros altos, entradas blindadas, câmeras de vigilância e seguranças armados. O cidadão solitário sacode com força a cabeça afastando esses devaneios. Uma mulher passa apressadamente. Ao levantar os olhos para contemplá-la, visualiza apenas um vulto distante. “Não mais hei de te ver senão na eternidade? Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!”, declama baixinho o poema de Baudelaire (1990, p. 345). Ao longe, alguém tenta, aos sobressaltos, mudar de calçada e, ato contínuo, uma buzina toca longamente. O desconhecido imagina muitas delas tocando em uníssono... Seria como se as trombetas do céu anunciassem o juízo final, avalia. Tentando sublimar os sons, volta seu olhar com interesse para o emaranhado de edifícios perfilados na paisagem urbana. Quase todos estão enfeitados com símbolos de instituições ligadas ao capital financeiro, compondo um mosaico que se destaca pelo fetichismo visual. Aliás, ainda mais presente nos outdoors com frases imperativas e cheias de efeito, espalhados na paisagem: compre um carro/Faça inglês/Vá à 2 Simmel (2004) fala da cidade e, por extensão, da metrópole que (des)enraiza, sob a ótica da perda de referências que marcam a experiência humana. Em termos psíquicos, esta cidade seria um ambiente socioespacial onde o sujeito parece não se reconhecer, na medida em que o sentimento de origem, de pertencimento desaparece, desorganizando-lhe de tal forma que “ninguém se sente tão só e abandonado como na multidão da grande cidade” (SIMMEL, 2004, p. 71). 3 Caldeira (2000, p. 11-12) usa o termo “enclaves fortificados” para designar um novo padrão de segregação urbana baseado no estabelecimento de espaços privatizados, fechados e monitorados, destinados à residência, lazer, trabalho ou consumo. Como exemplos, o shopping center, os conjuntos comerciais e empresariais e os loteamentos imobiliários residenciais. 2 Disney/Venha para tal banco/Assine tal TV (CARLOS, 2007, p.40-50). Igualmente autoritários, placas e sinais emitem ordens: Fume isso/Compre um Toyota/Use Nike/Ande (farol verde)/Pare (vermelho)/Proibido estacionar/Proibido virar à esquerda/Proibido, não permitido, proibido, não permitido! Por que obedecê-los? Depois de horas a perambular sem destino pelas ruas, observa com interesse o vaivém das pessoas à espera dos ônibus. Sente-se tentado a entrar em um deles e viver a experiência do acaso. Quem sabe terei uma aventura “alucinógena, à maneira daquela realizada por ianomâmis sorvendo cipós e raízes (...)” (ANDRADE, 2003, p. 11), interroga-se ansioso. Sem muito pensar, entrega-se ao impulso de viver uma experiência derivacionista4, perambulando sem rumo... Vou viver esta metrópole, balbucia o derivante. E pela primeira vez em horas é acometido por um espamo entusiasmado! Como se fizesse parte do livro The Naked City, ícone situacionista escrito por Debord, embarca no ônibus 4405, na altura da Rua dos Tupis depois de passar pela Goitacazes. Sorri ao pronunciar os nomes das ruas. Soam estranhos, como se saídos de uma gramática. Talvez, por isso, sejam ruas anônimas, intui. Nomes tão diferentes daqueles das ruas parisienses, Royale, Montmartre, Havre, Laferrière, Soufflot, relembrando reinados, impérios, artistas... Mas, não sabe o andarilho que são nomes indígenas. Homenagem póstuma a povos e costumes que, se não esquecidos, dizimados: Tabajaras, Tupis, Tupinambás, Tamoios, Timbiras... Guajajaras, Guaicurus, Guaranis... Caetés, Carijós... Olhando através dos vidros do ônibus, acompanha com interesse a paisagem urbana, lendo anúncios que não consegue entender. “Venha descansar no hotel-fazenda Moinho, a rusticidade do campo a 45 km de Belo Horizonte”. “Almoce no Restaurante Fazendinha Porteira Velha, sabor e tradição da fazenda perto de você”. “EcoVillas Vale Verde: não é bem no coração de Betim, é no seu pulmão. Um bom motivo para viver cercado de natureza. Lotes a partir de 1000 m². Poucas unidades disponíveis”. Entretido, vê um painel anunciando a “Central de Abastecimento de Minas Gerais, Unidade Contagem”. Movido pela curiosidade, resolve descer para saber do que 4 A deriva é uma técnica do pensamento situacionista que defende a passagem rápida por ambiências variadas como forma de observação ativa dos aglomerados populacionais. Este movimento emerge nas décadas de 1950/60 na Europa, caracterizando-se pela crítica aguçada às questões urbanas e aos discursos contemporâneos sobre a cidade. Segundo eles, enquanto a arquitetura e o urbanismo modernos dedicamse demasiadamente à promoção de mudanças estéticas, por exemplo, abrindo largas e planejadas avenidas, perdem um possível papel formativo em direção à sociedade e ao desmoronamento dos espetáculos modernos suas diversas ambiências (JACQUES, 2001). 3 se trata. Logo enxerga um amontoado de caminhões e, por entre os veículos, caminha em direção ao que parecer ser uma cidade. Direciona sua atenção para um gigantesco painel acrílico: “Seja bem vindo à CeasaMinas, solução em segurança alimentar. Por aqui passam diariamente cerca de 70.000 pessoas. Garantia de mercado e renda para os nossos 4,2 mil produtores rurais ativos”. Compreende, então, estar em um grande mercado. Andando aqui e acolá, sente um burburinho nervoso imprimir seu ritmo ao ambiente. Avizinha-se de um pavilhão chamado Mercado Livre do Produtor (MLP), que, em sua grandiosidade, vagamente o faz lembrar o Les Halles, o desativado mercado central da cidade-luz. Em ambos, cores, sons e cheiros que inebriam os sentidos. Ah! Les Halles... sente saudade dos imponentes pavilhões de ferro e vidro, materiais emblemáticos nos primórdios da sua construção. Nos tempos áureos, tantos turistas e parisienses interessados na aquisição de víveres por atacado. Les MLP... sussurra baixinho com sotaque francês pouco disfarçado. Desviando-se das reminiscências, olha o lugar com interesse renovado. Poucos turistas, conclui. Esquecendo a arquitetura do mercado francês, o caminhante resolve entrar no mercado local. Parece ser uma hora agitada, pensa ele. Lança o olhar para um homem que passa empurrando caixotes de madeira em um carrinho. Ágil, apressado, quase deselegante. O mesmo acontece com outros. E outros. E outros. Formigas em desvario, conclui para si. Correm, agitam o corpo e gritam os nomes uns dos outros. Cansado da confusão de vozes e gestos, volta os olhos para o folheto que acaba de receber. Ele traz o depoimento de alguém, identificado pelas iniciais A.H.S. Retratado como um morador de Contagem, município próximo à capital, o quase anônimo expressa coisas que não compreendo, pensa o andarilho. Diz ele: “aqui na "pedra" – descobre depois que esse é o apelido dado ao lugar – somos atualmente 9.322 produtores rurais. Venho há muito tempo para vender meus produtos... aqui é como se fosse minha casa, uma grande família”. Outras narrativas de outros tantos anônimos aumenta o sentimento de estranheza do andarilho. Permeável às impressões, sente-se desconfortável com o clima de intimidade que os depoimentos procuram evocar, afinal, em essência, sou um apaixonado pela multidão, porém à distância, reflete para si. Desconcertado, desfaz-se do folheto, caminhando a passos largos para voltar ao burburinho frenético e (in)seguro, porém anônimo da capital. Depois de horas a perambular sem destino, o observador-caminhante chega ao bairro Savassi, tradicional reduto boêmio da capital mineira. Atentamente avalia o 4 ambiente ao redor. Ao longe, a praça homônima, ícone do glamour da saudosa Capital das Minas. Recém-reformada, marca a resistência histórica de um tempo passado. O perfil bucólico de prédios antigos da vizinhança, com seus rococós e jardins, contrasta com os vistosos prédios espelhados das redondezas, ocupados por boutiques e lojas de telefonia móvel, ao largo das quais os transeuntes passam apressados. São as fantasmagorias reluzentes das metrópoles, pondera com escárnio. A noite chega e com ela a fadiga. Nesta estranha hora em que as cortinas do céu são fechadas, a cidades ilumina-se. Onde estão as pessoas, pergunta-se o solitário andarilho. Ninguém! Sente falta da multidão, sua paixão secreta. Apura o olhar e avista um aglomerado sem rostos, sem cores, sem intimidade. Na busca por sua amada multidão, enxerga um enxame humano de expressão apática – um grande deserto de homens – dirigindo-se em carros modernos a um shopping center, cidadelas medievais da pós-modernidade em compasso com a voracidade do homem-consumo. Ao longe, um imenso outdoor com letras em néon convida quem passa a tomar uma Coca-cola. Como faço para desposar a multidão, acompanhar seus movimentos e, ociosamente, desvendar seus mistérios, interroga-se o desconhecido. Onde estão as ruas e passagens? Sem conseguir achar respostas, traços de nostalgia tomam conta do andarilho. Não consegue impedir o sentimento da falta do seu tempo, do seu lugar... Onde estão os confortáveis cafés? Pensa nas praças, na metrópole de outrora... Melancolicamente chega à conclusão que “(...) as ruas estão vazias, ou antes, mesmo que estejam cheias de pessoas ou de tráfego, nada mais são que locais de passagem e não de encontros” (DE SIMONE, 2012, p. 98). Prolifera o não-lugar de Augé (2005). Ruas e parques, formalmente constituídos como espaços públicos, foram substituídos pelos espaços privados de acesso restrito ou pelos sites, blogs, flogs e pontos de encontro virtual alimentados pela internet. Estar, morar, encontrar, festejar... Verbos pretéritos, substituídos por zapear, “gugar”, enviar, anexar, “espaciar”. A iluminação à gás trocada pelas lâmpadas de vapor de mercúrio. Amargurado com tudo que viu, resolve revelar-se. Cá estou eu, o flâneur de Baudelaire5. Sinto-me angustiado ao perceber o que há de mais vivo no presente é o 5 Conforme Menezes (2009, p.8), Baudelaire foi o literato francês mais cultuado no final do século XIX, um ícone da poesia moderna. Contemporâneo das transformações econômicas, políticas, sociais e urbanas no contexto da segunda revolução industrial, sua poesia reflete as profundas mudanças que ele viu acontecer em Paris - e às quais se opunha -, reagindo criticamente às ideias de moderno e de progresso ensejadas à época (la vie parisiense). Esta atitude, ainda que dominante, não é inequívoca na sua obra. Em 5 meu passado. Flanar não parece ter sentido na metrópole agora contemporânea, conclui com tristeza. Não por outro motivo, pronuncia baixinho em meio a seu labirinto emocional: sou apenas mais um homem nu na multidão de iguais, que sente saudades, que vive a vida ao comemorar o seu lugar. Como se estivesse em penitência repete continuamente: não estou na cidade-luz, não estou na minha Paris. Lutando contra sentimentos confusos, pronuncia com um grito sufocado: sou o flâneur, aquele que perambula por entre ruas e passagens, o poeta da multidão. Tentando controlar-se, recorda-se que esta metrópole onde está foi projetada para ser a “petit” Paris dos trópicos. Belo Horizonte e Paris, ambas cortadas por bisturis cirúrgicos e urbanísticos. Aqui e lá Paris, tenta se consolar com a lembrança. Mas um vento provocador e invisível sopra em seu ouvido, murmurando sarcasticamente as diferenças. Aqui, um turbilhão em uma realidade hibridizada6 da periferia mundial, “(...) misturando instituições liberais e hábitos autoritários, movimentos sociais democráticos e regimes paternalistas (...)” (CANCLINI, 1997, p. 28). Lá um vendaval em uma realidade hegemônica europeia. Espelhos que refletem o capitalismo, em sua divisão globalizada do trabalho, trocas desiguais e assimetrias de poder. Extasiado sensorialmente, o flâneur busca abrigo para a escuridão da noite e para seu cansaço mental. Zanzando sem direção, entra no Vitrola Café, um dos doze mil bares de Belo Horizonte, deixando lá fora para trás a multidão de trabalhadores, semteto, estudantes, viciados, prostitutas, mendigos e boêmios. Lá fora ficam também as vitrines e as ruínas da modernidade. Um arrepio de atração e repulsa percorre-lhe o um primeiro momento, o poeta adula a burguesia, idolatrando-a em sua obstinação pelo progresso humano. É uma fase de ode à modernidade. Muito depois, sua visão da modernidade muda, transformando-se em um crítico mordaz. Nesta “segunda fase”, Baudelaire destaca a assimetria entre as forças materiais e espirituais, bem como a dissonância entre a vida e o homem modernos. Se a metrópole francesa explodiu sob a forma de símbolo da civilização, revelou simultaneamente um novo problema social, o fenômeno da multidão, com suas massas urbanas solitárias, sem rumo e miseráveis. O progresso emerge como passagem para a decadência (PAGOTO & SOUZA, 2009). Para representar esta angústia, mesmo sentindo-se deslocado da sociedade urbano-industrial, o poeta torna-se um observador andarilho, representado pela figura do flâneur, que vai às ruas buscar sua poesia. Como dito por Loth (2012, p.1), o flâneur é um projeto de narrador entre a tradição e a modernidade que, na sua andança cotidiana pela estrutura física urbana, esbarra nos personagens que protagonizam a modernidade. Sua missão é conseguir demonstrar o efêmero da cidade aos seus contemporâneos, os quais, embevecidos pelo avanço da modernidade e pelas promessas do progresso, não atentam para as contradições da metrópole em que habitam. 6 O autor mexicano Néstor Canclini (2000) questiona a pertinência das interpretações comparativas que igualam as sociedades periféricas, como as latino-americanas, às sociedades centrais ou avançadas, por exemplo, as europeias. Canclini postula que, diferentemente destas, as primeiras seriam sociedades híbridas resultantes do embate de poderes entre as culturas dominante e dominada - permanecendo ambas e suas manifestações, em um contexto de transformações incompletas. Tais lutas culturais, entretanto, não afetariam drasticamente o discurso das elites dos grandes centros de acumulação, continuando assim como expressões de poderes subalternos. 6 corpo. Seu olhar de poeta vagueia pelas marcas e imagens da miséria humana. Ao divisá-las, sente um misto de “estranhamento, choque, horror e, ao mesmo tempo, fascínio” (MENEZES, 2008, p. 118). Sentado, respirando agora mais pausadamente, o homem da multidão bebe uma água gaseificada francesa e dá uma olhadela ao redor. Uma placa amarela anuncia: sorria, você está sendo filmado. Celulares, palmtops, tablets e ipods monopolizam as mesas contíguas, permitindo aos usuários acessar todas as metrópoles do mundo com um leve deslizar de dedos. Flanêures contemporâneos? Esses minúsculos aparelhos parecem extensões dos corpos dos presentes tal o grau de simbiose com que se realcionam, avalia o andarilho. Silenciosamente, interroga-se se este casamento entre homem e máquina inibe o encontro, a intimidade, o relacionar-se com o outro. Conclui que sim ao prestar atenção nas pessoas às mesas, manipulando seus apetrechos tecnológicos sem atentar umas às outras. Não consegue contato visual com nenhum dos presentes, ainda que, na verdade, também não o queira. Isolando-se do ambiente, o poeta errante olha com interesse uma manchete no jornal O Estado de Minas, datado de 10-06-2012, e esquecido na mesa do bar. Em letras destacadas, lê: “Povoados a pouco mais de uma hora do centro de BH privilegiam a tranquilidade”. Na matéria, um jornalista de nome Jefferson Coutinho descreve com entusiasmo seu périplo pela região do entorno da capital mineira, “por trilhas de terras vermelhas, proseando com a boa gente que amanhece com os galos e dorme com a criação”. Um sorriso de descrédito toma forma no canto da boca do flâneur. Refazendo mentalmente seu percurso pela metrópole mineira, o andarilho volta a ler a matéria com interesse. Nela, Coutinho descreve suas andanças por povoados muito próximos de Belo Horizonte, em uma região denominada pelo repórter de metropolitana. Ele afirma, sem esconder certo saudosismo, que por onde andou “as crianças brincam de roda e não de videogames, as compras são pagas no dinheiro e o crédito é o da caderneta”. “Aqui ainda se honra o fio do bigode”, repete a expressão de um morador. Em seu entusiasmo, o jornalista relata a encarnação do tempo e da natureza nos lugares visitados, recitando o Boitempo de Drummond (2002, p.905): Entardece na roça de modo diferente. A sombra vem nos cascos, no mugido da vaca separada da cria. O gado é que anoitece e na luz que a vidraça da casa fazendeira derrama no curral surge multiplicada sua estátua de sal, 7 escultura da noite. Os chifres delimitam o sono privativo de cada rês e tecem de curva em curva a ilha do sono universal. No gado é que dormimos e nele que acordamos. Amanhece na roça de modo diferente. A luz chega no leite, morno esguicho das tetas, e o dia é um pasto azul que o gado reconquista. Conversando com os moradores, Coutinho escuta histórias de pessoas, como a lavradora E. N., de 49 anos, que obtém seu sustento trabalhando na roça. Ela se diz feliz com a rotina dos dias, que, para a maioria dos agricultores – faz questão de frisar – começa às quatro horas. Em sua casa, sacos de milho, 35 galinhas gordas e outros animais são alguns dos itens que materializam sua fartura, conquistada com muito esforço. Compara sua vida com a de pessoas que saíram dali e foram tentar a sorte na capital mineira. “Não julgo ninguém, mas sinto-me feliz aqui, é o meu lugar e não penso em sair”, afirma com segurança. A jovem A. P., 21 anos, concorda com ela e vai além ao opinar sobre as notícias que acompanha acerca da metrópole belorizontina, tanto na TV a cabo quanto na Internet. Ela afirma não querer para si as urgências do mundo de lá: “Os engarrafamentos, os acidentes, os crimes… quero distância de tudo isso”, comenta a jovem. “Minha irmã mora lá... em Belo Horizonte. Da família, foi só ela”, diz a garota. “Antigamente, muitos da minha idade pensavam em procurar emprego por lá, mas hoje temos oportunidade de ver que as coisas não são fáceis em lugar nenhum. Podemos trabalhar aqui mesmo, talvez ganhar menos, mas certamente viver melhor”, conclui. O vendedor D. P., 32 anos, trabalha na capital e volta frequentemente para sua casa na roça. Neste seu vai e vem consegue ajudar a família. Algumas vezes não pode retornar todo dia, mas deixa claro que estar ali é importante: “Minha infância, o rio, a casa onde meus pais vivem e me criei... não posso abandonar isso”. O empresário F. A., 56 anos, reconstruiu sua vida em Brumadinho. “Viemos para cá fugindo de Belo Horizonte, buscando melhorar a qualidade de vida, ter tranquilidade. O bucólico está aqui, mas moramos a apenas uma hora da capital”. A professora de geografia veio da capital e montou um cantinho, com “cama e café” para os visitantes que amam a natureza. Ela conta que abraçou também uma causa social para retribuir à comunidade o ar puro que agora respira. E. P., 47, discursa convicto que “tranquilidade é bem melhor que cultura e dinheiro”. A dona-de-casa R. M., 31 anos, entrevistada na 8 Praça Jesuíno Moreira, enaltece o campo: “Roça significa sossego; as galinhas no quintal; deitar e acordar cedo. São os valores da boa educação e da vida em comunidade”. D. G., de 49 anos, participa da conversa. “Também não gosto da cidade grande. É barulho demais. E prefiro gente à tecnologia”, pontua. Como disse Drummond no Boitempo, amanhecer e anoitecer na roça têm ritmos próprios. Nos 530 quilômetros percorridos, ouvi muitas histórias, diz enfático o jornalista. A roça parece ser como o boi de Drummond, um animal calmo, ruminando indefinidamente os alimentos, como se não terminasse nunca de digerir suas recordações. Acredito que as pessoas que entrevistei têm orgulho do seu mundo rural, como se ali fosse um pasto azul reconquistado. Encantado com o tudo o que viu e ouviu, Coutinho exalta “a paz, de onde brota a vida no campo”, descrevendo como heróis aqueles que pegaram o “caminho de volta pra roça”, fugindo do tumulto, da poluição, dos engarrafamentos, acidentes, crimes e de outras tantas mazelas que grassam a cidade grande. Admira-se ainda mais ao pensar que esse retorno os fará viver “na contramão do progresso e das tecnologias de última geração”. Finalizando a matéria, o jornalista exorta a vida no campo como uma volta ao futuro. Não posso esconder que algumas pessoas entrevistadas, poucas, trouxeram relatos de insatisfação. São suas opiniões. Tristes e alegres, opiniões. Eu, particularmente, concordo com R. M, por isso preferi ser o “arauto das alegres”, posiciona-se concluindo sua reportagem. Refletindo sobre o que acabou de ler, o flâneur interroga-se, envolto em incertezas. Povoados rurais? Roça? Rural? Isso não faz parte de um tempo que já desapareceu? Lembra-se que eram considerados arcaicos na modernidade de seus dias. Homem do seu tempo, ele também pensa assim. Vasculha suas memórias, vivas como pedras, e como tais, pesadas, sólidas, imutáveis. Elas lhe dizem que os lugares descritos por Coutinho estavam destinados a dissipar-se, consumidos pelas águas da civilização7. Sua surpresa mal disfarçada substitui a atitude blasé com o mundo à sua volta. Achando inverossímil tudo o que leu, cogita que o escrito seja fruto da imaginação de um jovem jornalista. Eles são mesmo bastante fantasiosos. Isto não muda em época alguma, analisa o flâneur. 7 Segundo Menezes (2009, p.8), era notória a rejeição do poeta Baudelaire ao campo, convencendo seguidores da que a metrópole, a cultura e as diversões urbanas, a vie factice e os paradis artificiel eram incomparavelmente mais atraentes e também muito mais espirituais e vívidos do que os “encantos” da natureza. Segundo Hauser (1998, p.911-2), o poeta Baudelaire sentia tanto entusiasmo por tudo que fosse artificial, que chegou a considerar a natureza como algo moralmente inferior. 9 Deixando a mente navegar livremente, o flâneur lembra-se assustado do folheto que leu naquela estranha cidade do Les Halles. Um princípio de dúvida começa a bailar, atormentando-o. Vi tantas coisas estranhas neste caminhar, pondera. Será que esse tempo e lugar ainda existem? Com semblante pensativo, compara o que acabou de ler e ver com os valores, hábitos e características do seu tempo, seu Zeitgeist. Não consegue compreender a felicidade de Coutinho e das pessoas por ele entrevistadas, vivendo longe da multidão e da metrópole, sem o desfrute urbano, as grandes avenidas e o trânsito caótico; sem a possibilidade da errância voluntária pelas ruas. Como disse meu criador, “é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaide, pelo mercúrio e todos os venenos usados na fabricação de obras-primas...” (BAUDELAIRE, 19311932, p.637). Definitivamente, não consigo entendê-los. Eles me trazem a sensação de inadequação e estranhamento, sussurra o andarilho. Confuso e cansado, conclui que está na hora de partir para reencontrar aquilo que se permitiu chamar de metrópole. Surpreendente e cruel, mas meu lar e refúgio. Preciso voltar ao meu tempo, para o cotidiano do mundo da fábrica, da produção e do trabalho; o mundo das glórias e das mazelas vividas no palco da maior construção humana, a cidade moderna. Não há lugar em mim para mais que isto. Despedindo-se, repete seu criador, Baudelaire: Perdido neste mundo vil, acotovelado pelas multidões, sou como o homem fatigado cujos olhos não veem no passado, na profundidade dos anos nada além do desengano e da amargura, e, à sua frente, senão a tempestade (...) (BAUDELAIRE, 1931/1932, p.641). Em um último suspiro, o personagem tem ainda um lampejo assombrado: talvez o mundo de E.N e A. P. seja virtual, como gostam de falar a todo o momento as pessoas que vivem neste século. Virtual. É... Certamente o jornalista esqueceu-se de dizer que o que ele descreve em sua matéria é o cenário de um novo filme de ficção em 3D, resgatando com nostalgia esse mundo dito rural – já apagado no tempo e espaço. Talvez até o jornalista seja um personagem, assim como eu. Um personagem ao gosto deste século, fazendo um agrado aos chamados pós-modernos em sua estética de valorização da tradição, do retrô, do arcaico. Imerso em dúvidas, pouco a pouco o corpo do flâneur vai desaparecendo, como a fumaça dos cigarros à sua volta. Antes do corpo, esvai-se sua imaginação ativa. 10 No ar, fica a pergunta que ele fez e não respondeu: isso não faz parte de um tempo que já desapareceu? A longa narrativa acima, aparentemente desconexa para o contexto de uma tese – em seu necessário formalismo científico e metodológico – teve a finalidade de trazer algumas construções culturais hegemônicas8 sobre o mundo rural, usando para tanto um expediente metafórico. Uma dessas construções, recuperada na fala do flâneur, personagem oitocentista do poeta e crítico francês Baudelaire, mostra o encantamento com a grande cidade, suas avenidas, espaços, ritmo de vida, valores e com a multidão. A fascinação pelo contexto urbano acompanhava sentimentos de desprezo e repulsa em relação ao mundo rural, considerado como realidade arcaica, medíocre e sem emoções, fadado ao desaparecimento ou ao resgate benfazejo oportunizado pela civilização urbana. Compreender esta poderosa imagem sobre o mundo rural e seus habitantes implica retroceder no tempo, até chegar a um período de grandes transformações ensejadas pelas revoluções científica, burguesa e industrial. Elas trazem ao palco da vida uma nova ordem social, emoldurando um cenário em que a cidade, a metrópole e o modo de vida urbano são alçados à condição de entes supremos. É neste contexto que o flâneur exerce seu destino, protestando, por meio de seu ocioso caminhar, contra um sistema capitalista que se consolida; mas, ao mesmo tempo, festejando alguns dos seus feitos e valores, como a multidão, a metrópole urbano-industrial, a impessoalidade e o anonimato. Uma segunda narrativa dogmática sobre o mundo rural pode ser acompanhada na matéria escrita pelo jornalista Jefferson Coutinho. Ele o retrata usando um arsenal arquetípico de imagens romantizadas e globalizadas, construindo-o como um Éden contemporâneo, habitado por gente feliz e ordeira. No seu texto, o rural passa a ser um paraíso perdido para o qual vão retornando os cidadãos cansados dos dissabores (poluição, stress, solidão, etc.) causados pela crise civilizatória do padrão urbanoindustrial. Ou então um balcão de mercadorias, no qual estão disponíveis virtudes, tradições e o próprio camponês, que, desvalorizados por uma sociedade urbanoindustrial emergente, são agora preciosidades a serem preservadas. 8 O conceito de hegemonia foi formulado por Antonio Gramsci para descrever o tipo de dominação ideológica de uma classe social sobre outra, particularmente da burguesia sobre o proletariado e outras classes de trabalhadores. 11 Nesta perspectiva, o mundo rural torna-se então símbolo de qualidade de vida, segurança, vida familiar, saúde, paz e tranquilidade, revertendo o sentimento de repulsividade que lhe fora consagrado ao ser fetichizado como um bem de consumo. Entre as representações do flâneur e do jornalista, enxergo outras possibilidades analíticas e empíricas do mundo rural. Para evidenciá-las, embarquei em uma perambulação pela Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Nesta aventura, resgato outros sentidos do rural. Melhor dizendo, resgato ruralidades, explicitando assim os vínculos plurais, múltiplos e heterogêneos com o rural no universo de municípios que compõem essa região. Baldim, Belo Horizonte, Betim, Brumadinho, Caeté, Capim Branco, Confins, Contagem, Esmeraldas, Florestal, Ibirité, Igarapé, Itaguara, Itatiaiuçu, Jaboticatubas, Juatuba, Lagoa Santa, Mário Campos, Mateus Leme, Matozinhos, Nova Lima, Nova União, Pedro Leopoldo, Raposos, Ribeirão das Neves, Rio Acima, Rio Manso, Sabará, Santa Luzia, São Joaquim de Bicas, São José da Lapa, Sarzedo, Taquaruçu de Minas e Vespasiano. Trinta e quatro municípios nos quais vislumbro ruralidades, encetadas por portadores e projetos diversos, ganhando destaque a visibilização da natureza e a consideração do ser humano como um dos seres que dela fazem parte. Estar em Minas é viver as minas. Desta forma, para investigar as ruralidades – seus atores, tensões, consonâncias e dissonâncias – fiz uso de uma grande bateia, separando o ouro, pouco a pouco descoberto, dos brutos pedregulhos das dificuldades. O meu garimpar científico tentou esgueirar-se entre as águas elisianas do involvement (interesse, envolvimento, engajamento) e do detachment (desinteresse, imparcialidade, separação, afastamento). Diria que uma travessia dessa natureza é uma aventura quase impossível, pois, como o próprio Elias admite não existem posições absolutamente envolvidas ou distanciadas quando se trata do processo de investigação científica (ELIAS, 1997; 1998). De qualquer forma, navegar é preciso. Ruralidades mineiras à vista. 12 INTRODUÇÃO Pensar a ruralidade em uma socioambiência metropolitana. Este é o norte para o qual se orienta esta tese. Enunciá-lo em meio a um mundo seduzido pelo gigantismo e onipresença das metrópoles pode soar como um paradoxo, quiçá um desatino, afinal, uma das diletas narrativas da civilização moderna é aquela que anuncia o fim da ruralidade9, pelas mãos de seus referentes mitológicos de urbanização e de progresso, ou ainda sua transformação na idílica Pasárgada, exortada pelo pessimismo frente a estes referentes. Para aqueles que dividem estas certezas, resta o estranhamento diante da reflexão proposta, reação espontânea de mentalidades convencidas da impossibilidade de um mundo vivido, abarcando a simultaneidade, aliás, mais que simultaneidade – a interligação dialética entre a ruralidade e o metropolitano. Parte expressiva das pesquisas em ciências sociais tem teorizado acerca da inevitabilidade da vida urbana, suscitada por um processo de urbanização homogeneizador e extensivo, eliminando sujeitos, etnias, classes, modos de vida, sociabilidades, valores e formas espaciais considerados anacrônicos a esse processo, dentre os quais destaco os relacionados aos rurais, primo “moribundo” do urbano na cosmologia moderna. Este proceder científico, raramente interdisciplinar, assenta-se no tripé racionalismo, individualismo e universalismo, tendo por pano de fundo as revoluções políticas burguesas, científica e industrial, que causaram transformações de grande monta em diversos âmbitos e em nível mundial. Sem desconsiderar a importância dos estudos acerca das dinâmicas urbanas, creio ser relevante destacar que sua consistência e concretude não criam uma realidade una. Na contramão deste pensamento hegemônico e convencida da coexistência, proponho-me a refletir sobre a ruralidade contemporânea, pensando-a por meio da relação entre campo e cidade metropolitanos. Desta escolha pululam argumentações, prenhes de questionamentos e ricas em sugestões, pautando-me escolhas, como as que me fazem localizar esta análise sob os holofotes das globalizações e dos processos de valorização e produção da vida humana, neles inclusas as discussões em torno da relação homem-natureza. 9 Neste trabalho uso indistintamente os vocábulos rural e ruralidade, como propõe Durán (1998, p.76). Porém, o faço em uma perspectiva de afastamento da concepção dualística e estereotipada do rural da modernidade. Nestes termos, vejo-os contemplando outros sentidos e possibilidades. Emprego também o termo “mundo rural” como o faz Moreira (2005), fazendo referência ao locus de relações sociais que, contrariando o discurso hegemônico, engloba, além das atividades agrícolas e agropecuárias, atividades urbanas e de serviços culturais e socioambientais. 13 Diante das muitas evidências da força do mundo rural, a propalada construção teórica sobre sua dissolução – pelas multidões, tempo abstrato e subjetividade solitária da cidade e da metrópole – sua “evolução” para um ethos urbano e civilizado ou ainda sua delimitação pelo uso de adjetivações pejorativas em relação ao urbano estão, paulatinamente, perdendo força, convivendo com outras elaborações conceituais que falam de permanências, resistências e também de simultaneidades, enfim, que discorrem sobre sujeitos, etnias, classes, modos de vida, sociabilidades, valores e formas espaciais que se (re)constroem concomitantemente à radicalização da dinâmica dominante. Seduzida pelas possibilidades do mundo rural e colocando-me como sujeito que o pensa, recupero subjetividades em meio à objetividade acadêmica. Se a competência no objetivar depende também da emoção, começo esta jornada relembrando como comecei a interessar-me e viver o rural de forma intensa, principalmente nos últimos quarenta anos da minha vida. Primeiramente, na infância em uma cidade do interior baiano, lendo os livros de Jorge Amado e enlevando-me diante das belas paisagens do mundo dos coronéis, cacau, sincretismos, gabrielas e outras morenices sedutoras. Demorei em enxergar os pretos, mulatos, pobres e trabalhadores espoliados que produziam as sementes do chocolate que nunca tiveram a oportunidade de saborear. Somente os divisei quando, na adolescência, meus olhos miraram fazendas bem cuidadas, suntuosas com suas louças e mobiliários europeus, em uma riqueza explícita e orgulhosa de uma elite que vivia parte do ano na roça e a maior parte dele entre as metrópoles da época, Paris, Rio de Janeiro e Salvador. Chocada com tanta imponência, fui aguçando meu olhar, e, finalmente, tive consciência do outro daquela prosperidade ao avistar a pobreza generalizada do litoral da região cacaueira, as lavadeiras batendo as roupas de linho das sinhazinhas nas pedras do rio, os meninos-crianças vendendo peixes-crianças e picolés em ruas mal ajambradas, a miséria mal disfarçada dos moradores dos casebres e das periferias, com seus rostos carcomidos, mãos calejadas e corpos recobertos com roupas puídas e encharcadas com o suor das doze, quinze, não sei quantas horas de trabalho a troco de farinha, jaca e alguns vinténs. Compreendi então as tocaias e os assassinatos contados por Jorge em meio às disputas por terra. Sua Bahia mestiça, festeira e sensual era um laboratório para entender as hierarquias, violências e outros tantos aspectos sociais e culturais da sociedade brasileira. Só depois entendi que o Cacau vinha do Suor; que a Gabriela, cravo e canela sofria das mesmas alegrias e tristezas da Teresa Batista 14 cansada de guerra. Tais personagens eram, em suas aparentes antinomias, faces congruentes de realidades em curso. Daí em diante o mundo rural entrou em mim. Aquelas imagens retidas na memória dos meus poucos anos acompanha-me até hoje. Não sei bem se determinou a escolha pela Agronomia, vivenciada em Minas Gerais, mas certamente direcionou as minhas escolhas profissionais. Formada, fui trabalhar como extensionista no Paraná, em um lugar certamente contabilizado como urbano, classificação que seria ironizada por Veiga (2002), caso vivenciasse as cinco ruas da “cidade”, cortadas por caminhões com “boias-frias” em meio a um mar de cafezais e nuvens de algodão. De profissional a serviço do Estado, transmutei-me ao ser aceita como parte de uma família de italianos que tirava seu sustento da lida na natureza. Fui “adotada”, colhi, plantei, cortei capim, cuidei da horta, alimentei as galinhas, esquentei o pé no fogão de lenha. Naquela convivência intensa, vi suas diminutas terras escorrem entre os dedos da necessidade. Acompanhei a migração dos dois filhos mais velhos para a cidade e a jornada de trabalho aumentada pela produção noturna de doces, conservas, pães e embutidos para comercialização na feira do domingo em uma cidade grande de vinte e poucas ruas. Não sabia francês, mas naquele lugar compreendi a pluriatividade. No dia a dia do meu trabalho, acompanhava a rotina de meeiros e parceiros, produzindo milho, feijão e arroz no interior das plantações de café, amarrados em contratos sem garantia de futuro por conta da exigência de desocupação imediata das terras após a colheita. Seguia a rotina de mineiros e nordestinos nos plantios e colheitas de algodão, perdidos em suas lembranças de partidas e chegadas, cada vez menos espaçadas nas trilhas da sobrevivência disputada com as lavouras mecanizadas de soja. Deles guardo algumas histórias. Histórias. Muitas em comum com as dos trabalhadores do cacau. Tempos depois, depois do mestrado em Extensão Rural, em Minas Gerais, já trabalhando na Embrapa, em Brasília, aquele rural foi se distanciando ao realizar estudos de impacto sobre tecnologias de produção. Mas, alçada à condição de pesquisadora, retomei minha sensibilidade com ele em meio às polarizações institucionais entre agricultura familiar e agronegócio. Este reencontro se deu ao participar de um projeto sobre as possibilidades da agricultura nas cidades, centrado na metodologia da pesquisa-ação, quando comecei a conviver intensamente com moradores de uma cidade goiana, cuja maior referência era ser a aglomeração que mais 15 crescera no mundo na década de 1990 em termos populacionais. Uma grande placa anunciava esse “desenvolvimento”. Com aqueles atores fui compreendendo a precariedade das demarcações geográficas entre campo e cidade e demais construções antagônicas. O gosto pelo plantar e colher mesmo sem a terra, o cultivo das verduras e ervas sem técnicas modernas, as pescarias, as vivências anteriores em pequenas cidades do interior, a migração para o Distrito Federal e dali para Goiás, os empregos temporários, a terra diminuta, os pequenos jardins, as memórias de infância e a espera pelo marido acampado na luta pela terra misturavam-se à falta de água, de esgoto, de energia e cidadania em meio à riqueza da natureza farta abastecendo com aventura, lazer, contemplação, água e ar limpos os moradores da capital federal. Vivenciando estas lógicas divisei a ruralidade. Demarco-a como realidade concreta matizada por tensionamentos, discursos e dinâmicas advindos de um capitalismo contemporâneo em uma lógica glocal10, onde local e global interagem na disputa entre poderes constituídos e aqueles que os contestam, entre relações das mais diversas com a natureza, alicerçadas sobre diferentes lógicas de apropriação do território. Ruralidade como a dos despossuídos do cacau, dos fazendeiros, dos migrantes do algodão e do café, dos produtores extensivos de soja, dos excluídos na periferia da metrópole e a dos meus pais adotivos, que ao perder as terras, desabaram na incerteza da capital paranaense vivendo com as memórias da vida no campo. Múltiplas, abertas, plurais. Nestes termos, ruralidades. Esta incursão por diferentes territorialidades motivou-me a enveredar pelo caminho estigmatizado da ruralidade vivenciada em conexão com o urbano metropolitano. Digo estigmatizado porque à luz da produção científica, a temática transita entre a insignificância e a obscuridade. Uma rápida busca em base de dados acadêmicos traz resultados pífios, que interpreto como sintomas da pouca disposição em investir em temas pouco reconhecidos no campo científico – o que resultaria, por extensão, em menor notoriedade – como assinalou Bourdieu (1983) a esse respeito. 10 Glocal é um conceito usado para denominar a mistura de culturas globais modernas e locais tradicionais, como preconizam Borja e Castells (1997). Santos (2002) dedica-se à descrição desse processo, mostrando que os processos de globalização – ou mundialização, como preferem outros – atuam de forma ambivalente, pois perspectivando um mundo uno, é intrinsecamente desigual já que se manifesta diferentemente consoante os tempos e os espaços. Ao se intensificar, pressionam e diluem localismos típicos da modernidade, como tradição, nacionalismo, linguagem, ideologia, mas, paradoxalmente, dão fôlego à emergência de novos localismos, em que se proliferam ou acentuam-se identidades culturais diferenciadas, específicas, fragmentadas, ou mesmo marcadamente particularistas. 16 Acolhida nos escritos de Thomas Kuhn (2006), lembro que todo caminho para a produção de novos conhecimentos envolve riscos e embates intelectuais. Enfrentá-los, porém, é uma escolha que exige uma disposição pautada na certeza da inexistência de uma verdade absoluta. Mas, não posso fechar os olhos à existência de uma matriz hegemônica do conhecimento científico que ainda postula um saber neutro indiferente às assimetrias de poder. Segundo Moreira (2006), o olhar disciplinar do cientista (observador) revela apenas registros de uma dada existência ou de suas experiências vividas e “nunca a própria existência. Diferentes observadores, sob circunstâncias também diferentes, concluirão verdades igualmente diferentes” (MOREIRA, 2006, p.20). A filosofia kantiana há muito nos alertara que a coisa-em-si é da ordem do inalcançável. Pautando-me por contribuir na construção de um conhecimento menos homogeneizador da realidade, invisto no estudo das imbricações entre campo e cidade em uma perspectiva complexa, demarcando conexões e simultaneidades nesta relação. Deste modo, assumo a intenção de identificar, descrever e analisar como as ruralidades se manifestam sob os feixes dinâmicos e tentaculares do fenômeno metropolitano tendo como recorte empírico a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Se o “polvo” metropolitano apavora pela rapidez com que se espraia, ora engolindo, difundindo ou criando novos padrões de relações sociais – inclusive as de produção – e estilos de vida, pergunto-me como se manifestam as ruralidades diante desse movimento. De imediato adianto que não carrego a pretensão ingênua e pouco profícua de catalogar a diversidade de ruralidades em curso sob a égide metropolitana. Passando ao largo desta intenção titânica, direciono-me para (re)pensar as ruralidades neste território11, conectando-as aos processos sociais contemporâneos de redimensionamento das relações entre o homem e a natureza. Com isso, desloco o foco da análise do âmbito da representação da ruralidade-agrícola para considerar aquele da ruralidade-natureza. 11 O conceito de território aqui tomado entrelaça a noção de território-zona, à materialidade do espaço geográfico onde se desenrolam os acontecimentos, à concepção de territórios existenciais, campo da subjetividade e das práticas de si, lugar dos afetos e dos afetamentos. Sigo a perspectiva de Magnani (2009, p, 17) que o referencia como “substrato material, mutável, solo-natureza, limite e chão dos acontecimentos, objeto-mercadoria do mundo capitalista, foco de concentração do poder e da dominação”, resultado de “(...) cristalizações de processos de luta e de articulações dos homens com o entorno, construções coletivas no espaço-tempo”. Mas, como enfatiza a autora, deve ser especialmente compreendido “como território ético-estético dos afetos, dos sentidos, das singularidades e das reinvenções criativas dos espaços existenciais; condensação de universos abstratos, ideológicos, artísticos, oníricos, na unidade mínima territorial: o corpo”. 17 Meu interesse está voltado para apreender os sentidos e discursos – hegemônicos e contra-hegemônicos – da ruralidade estabelecida entre campo e cidade metropolitanos diante da cosmologia de proximidade com a natureza vis-à-vis uma teleologia urbanoindustrial. Que atores, conflitos, tensões e embates deles emergem na RMBH? De antemão, destaco duas singularidades nessa reflexão. Primeiramente, as identificações rurais são apreciadas na instância do metropolitano, o que nos leva a uma relação campo-cidade pautada pela densificação de redes e fluxos; circulação, mobilidades e interconexões aceleradas. Nele presentificam-se as grandes questões do mundo do Capitalismo Globalizado, do processo de produção do espaço, do trabalho, das subjetividades, da vida na Grande Cidade. É nesta instância de alta urbanização e industrialização como processo civilizatório, assoberbada pela possibilidade de crescimento e ampliação de posses e de poder que se desenvolveu a pesquisa. Em segundo lugar, não se trata de um metropolitano qualquer, e sim de um metropolitano periférico – o mineiro – inserido na lógica periférica de um país-mercado emergente na ordem econômica globalizada. Por conseguinte, ele carrega consigo especificidades culturais, tais como uma socio-história colonial-extrativista-mineradora, urbanização precoce e segregadora, altíssima concentração fundiária, metrópole planejada, foco na produção de commodities e na produção industrial de bens intermediários e nos serviços. Foi neste metropolitano-periférico-mineiro que conduzi este estudo. Refletindo sobre as particularidades acima, busquei inspiração em alguns escritos da filósofa Marilena Chauí para a elaboração da hipótese norteadora. Ao abordar a questão da identidade nacional, Chauí (2004; 2000) chama a atenção para a presença difusa de uma narrativa de origem – um mito fundador12, determinante tanto para a imagem que possuímos do país quanto para a relação que mantemos com a 12 Segundo Marilena Chauí (2000b, p.32-35), mito fundador é aquele que “impõe um vínculo interno com o passado como origem”, buscando sempre “novos meios para se exprimir, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”. Como ensina a filósofa, à maneira de toda fundatio, ele vincula-se com “um passado que não cessa, que não permite o trabalho da diferença temporal e que se conserva como perenemente presente”. Assim é que, muito tempo depois da descoberta-conquista, continuamos a conceber o país a partir de alguns elementos ali forjados, quais sejam, a sagração da Natureza (Brasil-Natureza, a obra de Deus), a sagração da história providencialista (história como realização do plano de Deus ou da vontade divina, assim somos o país do futuro, pois abençoado pela vontade divina, conforme o discurso das classes dominantes e camadas dirigentes), a história profético-milenarista (a vida presente como miséria à espera dos sinais dos tempos que anunciarão a chegada do Anticristo e do combatente vitorioso. Esta é a figura assumida pelo bom governante perante as classes populares brasileiras) e finalmente a elaboração jurídico-teocrática do governante pela graça de Deus (“o poder político, isto é, o Estado, antecede a sociedade e tem sua origem fora dela, primeiro, nos decretos divinos e, depois, pelos decretos do governante”). 18 história e com a política. Segundo a autora, a fundação se refere a “um momento passado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente no curso do tempo” (CHAUÍ, 2000a, p.5). A marca peculiar da fundação é a maneira como ela põe a transcendência e a imanência do momento fundador, o qual aparece como emanando da sociedade e, simultaneamente, engendrando a sociedade da qual ela emana. É importante reter que novos elementos são continuamente agregados ao repertório inicial de representações da realidade, repetindo algo imaginário, bloqueando à passagem à realidade e impedindo que se lide com ela. O imaginário geralmente é acionado quando se quer “falar de algo inventado (...), ou de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações distintas de suas significações ‘normais’ ou canônicas” (CASTORIADIS, 1965, p.65). Em ambos os casos, fica claro que “o imaginário se separa do real, que ele pretende se colocar em seu lugar (uma mentira) ou que ele não o pretende (um romance)”. Neste sentido, o imaginário faz uso do simbólico, não somente para se exprimir, mas para existir e, inversamente, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária: ver em uma coisa o que ela não é. Em conformidade com o exposto, postulo a existência de um mito fundador em Minas Gerais que impulsiona e consolida psicanaliticamente uma identidade atribuída/designada ao território da RMBH, identidade esta hegemonicamente construída como minerária, industrial, urbana e moderna. Penso que a fundação da matriz mítica mineira tem como elementos constitutivos a Natureza, particularmente a montanha e o conjunto de crenças em torno dela (“uma geografia trágica e inquietante”); as minas auríferas dos séculos XVII e XVIII; o simbolismo e a dualidade expressos no nome Minas Gerais; e a “mineiridade” 13 , – valores, comportamentos e representações existentes no interior na cultura mineira, que encarnariam o “verdadeiro 13 A socióloga Maria Arminda Arruda (1990) defende um cruzamento entre a identidade nacional e aquilo que se tem chamado de “mineiridade”. De acordo com Reis (2007), a mineiridade é uma construção imaginária elaborada por uma elite política mineira, tendo por base fatos históricos regionais, com a finalidade de produzir a identificação entre diversos segmentos da elite, justificar sua hegemonia na sociedade e demarcar o campo de sua articulação com os interesses nacionais. Quando acionada, a mineiridade nos fala de atributos originados no passado – busca e defesa da liberdade e igualdade – e reconstruídos presentemente, os quais mitificam e diferenciam a elite e os políticos mineiros – seus herdeiros naturais e modernos guardiães – em relação a outros políticos brasileiros. Porém, como alerta Castro (1991, p.119), a mineiridade na elaboração das elites mineiras “tira sua força da construção simbólica que o antecede e, dessa forma, permite a identificação de todos, buscando os materiais para a sua edificação, nos elementos que ultrapassam os espaços de movimentação exclusiva das elites, mas submetendo tais elementos a um sentido que não lhes é próprio e conduzindo a construção na direção dos interesses - conflitantes, mas não-antagônlcos - que a presidem”. 19 espírito de Minas”, a “própria alma mineira”, mas que repercute ou ressoa no campo das elites políticas. Os elementos acima elencados foram se entrecruzando, construindo e elaborando uma imagem do real, uma rede de ilusão que transformou uma pluralidade (“Minas são muitas, ou pelo menos várias”) conflituosa, contraditória, desigual e profundamente clivada, em um compósito harmônico (“Minas Gerais”, a identidade e unidade cultural dos mineiros tutelada pelas Minas Gerais, geratriz do ouro, região central do estado). Com essa fundatio, sedimentou-se uma poderosa atitude emocional que associa a RMBH à sua pretensa “vocações urbana, industrial e minerária”, unificadora do estado (acionada ao longo de muitos anos), bem como uma unidade metropolitana (enfatizada mais recentemente), invisibilizando ou esvaziando de significado outras identidades ali vivenciadas em favor da identidade socialmente atribuída/designada à região. Desta forma, acredito que as imagens e representações para a RMBH assentaram-se em valores urbano-industriais, dentre os quais cito as riquezas minerais, as fábricas automotivas, as grandes empresas mineradoras na região, a metrópole planejada, a construção mitológica de um passado de altivez e luta pelas liberdades, a urbanização precoce, a industrialização induzida, o grande número de cidades e a ausência de um litoral. No plano da autoimagem, o mineiro que ali nasce ou reside considera-se o legítimo herdeiro das Minas históricas do período da colonização, sujeito culto, de modos urbanos, defensor de igualdades e de valores tidos como civilizados. Reconhecendo-se assim, vislumbra bem longe dali o “mineirim” do “uai, sô”, das atividades do campo e do anedotário popular; o mineiro (sobre)vivente do interior – Sertões – considerados rústicos, habitantes dos campos, caipiras, roceiros, matutos e arcaicos em seus jeitos de vestir, falar e comportar-se. Em suma, a vida urbana e a indústria são os referentes imaginários de civilização e de identidade da RMBH. Mas, como nos ensinou Chauí (2000a, p.5), um mito fundador renova-se sempre, usando para tanto “novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo”. Em meio aos (re)arranjos nos processos de acumulação do capital que atingem todas as dimensões da vida, recodificando a vida urbana por meio do estímulo a experiências de igualdade biocêntrica entre o homem e a natureza, está em curso um 20 movimento de (re)construção mítica no território da RMBH, oportunizando o aparecimento de um rural (campo) arquetípico para a vida urbana, produzido como espaço ecossistêmico da natureza, fonte de beleza, de harmonia e purificador das angústias e deteriorações ambientais. É neste contexto que vejo emergir ruralidades na RMBH, as quais são encetadas por portadores de diferentes interesses, concepções e projetos de apropriação, que, muitas vezes, são irreconciliáveis. Ruralidades de mineradoras, indústrias, agricultores, poder público, citadinos, ecologistas, imobiliárias. Ruralidades invisibilizadas desde o período colonial, ligadas à produção de alimentos para o abastecimento do mercado interno convivem com as ruralidades advindas das grandes ansiedades pós-modernas. Ruralidades que se expressam na concentração fundiária, dividindo espaço com as ruralidades de preservação da natureza em Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPN). Enfim, falo da coexistência de ruralidades de olhares urbanos, como do Estado e das indústrias mineradoras14, que se impõem hegemonicamente às ruralidades do olhar das populações rurais da RMBH e seus modos de vida. Construindo a trilha investigativa, impus algumas condições – teóricas e metodológicas – que acreditei necessárias para levar adiante o desafio. Começando, precisei achar uma estrela-guia para dialogar, pois o monólogo interior não me era suficiente. Felizmente a encontrei. Depois de muitas incertezas, em meio a idas e vindas, caímos amalgamados – a voz interior, a estrela sábia e eu, investigadora. Unidos para embarcar nas trilhas e veredas abertas por um vendaval de perguntas (e de dúvidas), que me fazem refletir sobre as identidades sociais e os processos de metropolitanização15 e os da natureza em um dado território. No campo teórico, foi fundamental buscar uma abordagem complexa, aspirando com ela, como propõe Wittgenstein (2008, p.179), "delimitar o pensável e, 14 Diante da perspectiva de esgotamento da mineração, as mineradoras vêm diversificando suas atividades e investindo no mercado imobiliário metropolitano, a partir de projetos de grande envergadura, associando áreas residenciais, comércio e serviços e unidades de conservação. A mineradora Anglo Gold, por exemplo, em associação com a construtora Norberto Odebrecht, é proprietária do empreendimento Vale dos Cristais, em Nova Lima (COSTA, 2007). 15 De forma geral, o processo de metropolização é definido a partir da polarização de uma região em torno de uma grande cidade, em dimensões físicas e, sobretudo, populacional, caracterizando-se pela alta densidade demográfica, alta taxa de urbanização, ao redor da qual se forma um núcleo metropolitano. O centro irradiador do processo é a metrópole, termo que remonta aos gregos no sentido de cidade-mãe que exerce forte influência às demais do seu entorno, as quais, sob sua direta influência, mantém forte relação de interdependência econômica e notório movimento pendular de sua população (FREITAS, 2009, p. 4446). 21 com isso, o impensável", e, ao mesmo tempo, significar “o indizível ao apresentar claramente o dizível". Nestes termos, como urdidura teórica relaciono duas categorias contemporâneas, quais sejam, a Ruralidade e Urbanidade, faces conectadas de Janus16 – alegoria mítica aqui tomada para destacar a indissociabilidade daquilo que se separou sob os ditames da modernidade. Para clarificar o olhar, apresento a ruralidade como uma expressão identitária por meio da qual as sociedades pensam sua relação com a natureza, na medida em que ela – ruralidade – é culturalmente associada à terra, aos processos naturais e à natureza natural, isto é, à natureza que se pensa pura por oposição à existente nas cidades. É desta visão – marcadamente urbana – de que o rural representa uma natureza não artificializada ou quase não transformada que repousa a identificação social de seu ambiente como natureza e como campo. Em consequência, o rural (campo) é pensado como passagem necessária para o natural, e, deste modo valorizado, já que representa o ponto mediano entre uma natureza selvagem e intocada e os ambientes construídos e artificiais das cidades e metrópoles. É neste sentido que novas identificações lhe são postas, combinando as dinâmicas e necessidades de uma sociedade global às suas próprias dinâmicas. De mundo de negação da modernidade – seja pelo apego à tradição, modo de vida ou relações sociais diferenciadas – o rural passa ser valorizado justamente por tais características, dando espaço a aportes teóricos que o apresentam como “territórios do futuro”, “patrimônio das gerações”, “espaço de renascimento”, “palco de solução para questões sociais”, “novo padrão civilizatório”, “lugar de reserva moral e cultural”, “espaço singular e ator coletivo” ou perpassado por “novas identidades em construção”, como veremos mais detalhadamente no primeiro capítulo. À primeira definição conceitual, anteriormente explicitada, incorporo seu caráter relacional para acionar o seu Outro – a urbanidade, identidades encetadas por uma natureza não-natural e artificializada, mediadas por um ambiente construído e transformado por práticas de planejamento urbano em modos específicos de organização. Identifico urbanidades nos transportes, nas cidades conurbadas, dormitórios ou rurais, no paisagismo fetichizado das cidades, nos apelos ao consumo massivo de cosméticos à base de produtos extraídos da natureza, na lógica do agronegócio, na proliferação de shoppings centers etc. 16 Janus é considerado o Deus das ambivalências e das escolhas excludentes, sendo um verdadeiro ícone na representação das dualidades modernas. Entretanto, pensando sua simbologia em uma perspectiva menos literal – as duas faces olhando para direções opostas, considero-a como princípio orientador da reconciliação, da complexidade e da articulação entre opostos. 22 Do exposto, afirmo a necessidade de reter que urbanidades e ruralidades são categorias que, em conjunto, revelam uma melànge de tensões, enfrentamentos, valores e vivências hibridizadas, em uma dialética inacabada. Além disso, como formas de pensar e viver o mundo social, o ato de considerá-las analiticamente permite a apreensão de dinâmicas sociais em curso na lógica cultural contemporânea. Adiantando-me às críticas feitas ao uso de abordagens culturalistas para explicitar a temática, enfatizo que, ao fazê-lo, não desconsidero as práticas sociais cotidianas, os processos históricos, as relações e os diferentes gradientes de poder que têm seu lugar nas sociedades capitalistas. Acompanho e reforço o argumento de que as ruralidades não ocorrem em um vazio, mas sim em uma arena de interesses, permeada por disputas e tensões. Contudo, defendo também que rejeitar peremptoriamente tais abordagens termina por reforçando os enfoques funcional e economicista da ruralidade, perdendo de vista um rico viés investigativo. Durante a pesquisa, precisei mergulhar em um universo de saberes. A princípio, nos hegemônicos, presentes na Sociologia, História, Antropologia, Geografia, Agronomia e Arquitetura. Creio que isto ficará evidente na diversidade de autores aqui acionados. Depois, talvez mesmo antes, senti a necessidade de flertar com outros saberes tidos como não-hegemônicos, caso das mitologias, não menos verdadeiros, ricos ou esclarecedores que aqueles. Aceitando-os igualmente, busquei a rota da interdisciplinaridade para a construção epistemológica. Por inúmeras vezes, senti a necessidade de voltar à superfície para respirar, diante das novas interrogações que surgiam. Neste movimento dialético, foram necessários tempo, dedicação e oxigênio para ventilar as encruzilhadas das incertezas. Entre inspirações e aspirações, vaguei por uma miríade analítica, resgatando algumas noções essenciais que serão explicitadas durante o movimento investigativo. Adianto que, juntando-as, formei uma constelação interpretativa que me aproximou dos mistérios unificadores entre dizível-indizível, visível-invisível, rural-metropolitano, campo-cidade. Demorei a estabelecer a complexa teia de co-determinações destes processos, mas, ao compreendê-la, desfiz a disjunção mental entre metrópole, cidades e campos metropolitanos. Para tanto, no plano metodológico, embarquei em uma viagem situacionista, nos moldes de Debord e descrita por Jacques (2003, p. 21), como forma de vivenciar a RMBH. Percorri muitos quilômetros, visualizei paisagens, em uma experiência desafiadora empreendida nos meses de fevereiro e outubro de 2012, prolongando-se por meses em função da análise daquilo que vi, escutei, senti e li. 23 Em entrevistas semi-estruturadas, conversei e, principalmente, ouvi atentamente trinta e duas pessoas, quase todas construindo suas estórias nas tramas daquela teia, produzindo em si e para si uma realidade hibridizada, dinâmica, forjada nas múltiplas possibilidades e influências do vai e vem, do conviver e do transitar. A partir de suas falas, tentei captar os signos e significados das ruralidades por eles experienciadas. Agricultores, funcionários públicos, comerciantes, bancários, agrônomo, produtor cultural, donos de pousada, autoridades institucionais, aposentados, professores, estudantes, os quais, amparados pela promessa do anonimato, falaram de sonhos e de aspirações, alguns deles contados como segredos ao pé do ouvido. Em casas, sítios, roças, na CeasaMinas, Escritórios da Emater, Sede de poderes públicos, empresas, nos locais de trabalho, enfim, nos locais dos mais diversos ouvi e rememorei lembranças e histórias. Momentos enriquecedores, planejados a partir de uma participação anônima nas oficinas para elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) da região, organizadas pela UFMG e parceiros no já distante ano de 2010. Dessa participação fui construindo uma rede para chegar até os entrevistados: indicações, no andar por pontos de sociabilidade, igreja, CeasaMinas, nas ruas, prefeituras, enfim, nos espaços e tempos das cidades e do campo metropolitano. Adicionalmente a este conjunto de fontes, somam-se as fontes bibliográficas (dissertações, teses, artigos e livros), fontes documentais escritas (jornais, documentos oficiais, revistas, panfletos e outros) e as fontes iconográficas (fotos e imagens). Devo ainda esclarecer que centrei a pesquisa de campo em quatro municípios dentre os 34 possíveis, além, logicamente da metrópole mineira. Levando em consideração estudo feito pelo Observatório das Metrópoles (2006) no qual são criados critérios indicadores que determinam o grau de integração dos municípios da RMBH com a cidade-polo, selecionei, além da capital, três municípios com diferentes integrações à mesma. Ao selecioná-los considerei, além da inserção na dinâmica metropolitana, o conhecimento científico sobre eles acumulados e questões de ordem prática e operacional. Desta forma, a pesquisa desenvolveu-se em Brumadinho, Nova Lima e Ibirité. Previamente ao trabalho de campo referido acima, resolvi obter algumas informações sobre a região, utilizando um recurso pouco ortodoxo do ponto de vista acadêmico. Usando um mecanismo de busca da rede mundial de computadores, inseri, como indexadores, as palavras rural/ruralidade/Belo Horizonte, obtendo como resultados principais: a) dois artigos acadêmicos (uma monografia sobre planejamento 24 estatal e uma dissertação sofre representações sociais); b) imagens antigas do “Rural”, carro da montadora Ford, sucesso de vendas em décadas passadas; c) propagandas de agências bancárias do “Banco Rural S/A”; d) nomes de restaurantes, como o “Villa Rural”; e) endereços de um conjunto de lojas que comercializam produtos agropecuários em um espaço centralizado, anunciado como shopping rural; f) listas com nomes de advogados especializados em “causas trabalhistas rurais”, e, finalmente, g) a curiosa pergunta de um internauta: qual a população rural de Belo Horizonte? Escolhida por votação, a resposta considerada “correta” pela maioria aponta que “a população de BH é 100% urbana, ou seja, "0% rural". Uma afirmativa, no mínimo, desafiadora, que me instigou a continuar nessa aventura virtual. Na sequência, utilizei aquelas mesmas palavras-chaves, estabelecendo, porém, um recorte espacial mais amplo, qual seja, toda a região metropolitana e não somente a capital. Como resultado, obtive: a) pequenos textos destacando a perda de importância do rural na região bem como seu progressivo declínio demográfico; b) anúncios de vendas de imóveis rurais; c) dicas para hospedagens, com imagens e informes publicitários de hotéis-fazenda, d) oportunidades de moradia em condomínios em meio à natureza nos municípios de Nova Lima, Brumadinho e Pedro Leopoldo e, finalmente, e) dicas de turismo rural na região, especialmente no município de Jaboticatubas. Este exercício, aparentemente pueril e pouco ortodoxo do ponto de vista acadêmico, propiciou-me uma primeira medida da realidade construída acerca das ruralidades metropolitanas, presentificada como realidade concreta na questão ambiental, na valorização da natureza, nas atividades produtivas, nas tradições alimentares e culturais, nos reassentamentos humanos, na questão agrária, nas migrações e políticas de segurança alimentar, nutricional e habitação. Elas encontram eco em um emaranhado de mais de quatro milhões de pessoas espalhadas por 8.900 km2, segundo dados do IBGE para o ano 2000. Entretanto, de todo o material obtido no ciberespaço, duas matérias publicadas no jornal O Estado de Minas chamaram-me bastante atenção. Uma delas tem data de 26-09-2002 e a outra de 16-09-2012. A segunda, mais explícita, descreve a casa de campo como sonho de consumo, desejo este que teve um aumento de 20% na demanda em comparação ao ano de 2011, no município de Betim, na RMBH. As razões para tal aumento, segundo entrevistado, é o desejo de morar junto à natureza e tranquilidade bem como fugir da agitação do dia a dia e do trânsito caótico. A outra razão, bem menos idílica, “(...) é que os sítios e chácaras tornam-se um bom negócio a longo e médio 25 prazos, em função da valorização do mercado imobiliário”. Afora Betim, esse movimento vem acontecendo também em Nova Lima, Brumadinho, Betim e Contagem, já que “essas cidades, além de muito próximas de Belo Horizonte, se tornaram excelentes opções de moradia e casa de campo, pois oferecem hoje todos os serviços e comodidades que as pessoas precisam”, complementa. Segundo outro entrevistado, J. A., “quem compra terra não erra”. Adaptando o ditado para os dias de hoje, emenda “quem compra um imóvel em condomínio fechado não erra”. Ele afirma que “nos últimos sete anos, por exemplo, alguns condomínios fechados com padrão similar ao EcoVillas, localizado em Nova Lima, apresentaram valorização de até 600%. É um investimento com alto índice de rentabilidade, faz questão de frisar. A outra reportagem, na mesma direção, indica o movimento do capital imobiliário para atender o desejo de uma vida mais tranquila, por meio da oferta de opções de moradia que “proporcionem aos moradores os principais benefícios de morar no interior sem abrir mão das vantagens oferecidas pela cidade grande”. Acena assim com a possibilidade de maior contato com a natureza, sem deixar de “desfrutar do progresso da civilização”. Pensando não haver sentido para um conhecimento definitivo, alço este voo reiterando a incompletude do conhecimento. Acredito na complexidade das relações e fluxos que envolvem os mistérios da realidade, tendo consciência dos limites fundamentais de um horizonte teórico à apreensão daquilo que chamamos de mundo real. Ao bater minhas asas, ensejo contribuir para o maravilhamento outorgado pela aventura da imaginação baseada nos fatos, afastando-me da afirmativa de que a coisa-é. Nesta aventura, acompanhada da voz e da estrela, eu – investigadora – trago os ensinamentos de Kant e Kuhn. Peço a você caro leitor, caso deseje nos acompanhar – a mim, a voz interior e a estrela orientadora – que empreste de Ícaro as suas mitológicas asas artificiais. Precisaremos delas para voar sobre a geografia das terras da Região Metropolitana de Belo Horizonte, observando do alto as Serras do Curral, do Cipó, Rola-Moça e Moeda, as planejadas avenidas e construções modernas da capital mineira e também as muitas estradas de chão batido, onde transitam cavalos, motos e carros. Alerto-lhes que seguir a trajetória proposta exigirá paciência e desejo de levitar. Na rapidez dos tempos, isto pode ser um problema. Mas caso queira arriscar-se, asseguro-lhe que valerá a pena sair do positivismo científico, inclusive visitando divindades, desvelando mitos. Não se trata 26 de negar os ditames da Ciência Normal (KUHN, 2006), mas de conciliá-los com conhecimentos que foram extirpados pela tesoura afiada da racionalidade. Aceitando o convite, saiba que compartilharei os ensinamentos teóricos e vivenciais construídos ao longo de minha estória junto ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura – Programa CPDA. Ele tirou-me do limbo disciplinar, provocando-me para além das ciências agrárias. Para isso, contei com a ajuda de mãos preciosas a me empurrar na direção do fim do túnel. Com o auxílio de ouvidos atentos. E com o incentivo de belas vozes que me disseram: caminhar é preciso! Questionar é imprescindível. Alimentada por estas fagulhas, parto para a viagem. Começo-a voltando à Antiguidade Clássica, como será visto no primeiro capítulo. Nele, aciono o Deus Janus, inspirador do título dado à tese, como procedimento alegórico para aprofundar a problematização e as considerações teóricas pertinentes. Reflito sobre a questão campo e cidade, as ideias atuais sobre natureza, ruralidades e urbanidades. No segundo capítulo, esmiúço a região metropolitana, apresentando a metrópole mineira e os outros trinta e três municípios nela institucionalizados. Ilumino a metrópole, as cidades e os campos. Desnudo-a como fios entrelaçados em uma grande teia de co-determinações. Para tanto, uso os procedimentos metodológicos citados, combinados ao meu olhar durante a pesquisa de campo. No capítulo seguinte, trazendo à baila a trama socio-histórica deste território e suas territorializações, expondo de forma detalhada o que chamo de mito fundador mineiro e sua influência no território da RMBH, discutindo a sociogênese urbana, a precoce invisibilização do rural, a importância das montanhas e riquezas minerais no imaginário mineiro, bem como o processo de formação da metrópole periférica. No quarto capítulo, aponto atores, dinâmicas e processos em curso no movimento de construção-desconstrução da ruralidade em um ambiente institucionalizado como metropolitano. Trago histórias que falam de embates, de lutas, esperanças, valores e de diferentes projetos e modos de vida. Nas considerações finais, sistematizo as principais indagações levantadas, bem como suas respostas, apresentando também os sentimentos com relação ao trabalho. Por fim, destaco possíveis linhas investigativas no tempo futuro. 27 CAPÍTULO I REVISITANDO O MITO DE JANUS: PROBLEMATIZANDO A RURALIDADE METROPOLITANA Figura 2: “Janus”, Watercolour by Tony Grist, 1971. 28 1. Aprofundando os marcos teóricos da pesquisa: o Deus Janus como procedimento alegórico. Antiguidade Clássica. Como ilustrado nas Ilíadas de Homero, as guerras, batalhas, duelos e invasões faziam parte do dia-a-dia das principais civilizações da época, sendo caminho estratégico para a consolidação das cidades-estados romanas ou da pólis grega. Para defendê-las, muralhas e fortalezas eram erguidas em pontos estratégicos, dificultando ou impedindo a conquista da urbe pelo inimigo. Aliadas a estas barreiras físicas, também as divindades desempenhavam um papel protetor, não raro até maior que tais obstáculos. Para demonstrar gratidão e respeito, os feitos de deuses e heróis eram propagados de geração em geração por meio de narrativas especiais – os mitos17. Eles povoavam o inconsciente coletivo, blindando os nobres, escravos ou plebeus com a força e poder necessários para empreender combates e suportar as disputas por prestígio, glória ou mesmo pela Vida. Se a crença nos mythos18 cimentava a existência dos povos, em uma instituição imaginária da sociedade (CASTORIADIS, 1982), realizar tal existência era viver a Natureza (physis), em suas manifestações como “natureza naturante” (energia criadora invisível e inaudível) ou como “natureza naturada” (realidade criada, visível e audível). Juntos, physis e lógus, realizavam o fechamento do mundo e o encontro com o (des)conhecido e com o mistério. Em tempos de primado da racionalidade disjuntiva, de um agir e pensar considerados metódicos ao separar as partes para recriar o todo, navegar no universo mitológico pode soar um tanto quanto anacrônico, pois é comum tal conhecimento ser considerado como devaneio de povos ditos primitivos. De tanto se apregoar que os mitos, crenças, deuses e experiências – religiosas ou não – nada mais são que “(...) um 17 Segundo Campbell (1991, p.16), os mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, ao longo dos tempos, tendo, basicamente, quatro funções. A primeira seria mística, abrindo o mundo para a dimensão e consciência do mistério que subjaz a todas as formas. A segunda, a dimensão cosmológica, é ocupada pela ciência em seu intento de mostrar a forma do universo (novamente o mistério se manifesta). A terceira função seria a sociológica – suporte e validação de determinada ordem social, a qual terminou por assumir a direção do nosso mundo. A quarta função do mito seria pedagógica, dando o norte de como viver uma vida humana sob qualquer circunstância, fornecendo modelo para o comportamento humano bem como significado e valor à existência. Acrescento a essas a função antropológica, explicitada por Chauí (2000), quando o mito é usado como forma imaginária de resolução de conflitos reais. 18 O termo mythos trazia, em sua carga semântica originária, a tensão vital entre a physis e o lógos. Porém, a partir de um dado momento, começa-se a privilegiar o lógos como elemento engendrador e definidor da realidade (CARVALHO, 2006). 29 monstruoso acúmulo de insanidades, crueldades e superstições” (ELIADE, 2002, p. 24), tornou-se corriqueira a depreciação do saber que eles congregam. Enquanto na Antiguidade e na Idade Média, os mitos reinaram soberanamente na apreensão da Natureza e do mistério, na Modernidade – apresentada por Kumar (1997) como um conjunto de modernismos (dinâmica das instâncias culturais) e modernizações (dinâmica das instâncias técnico-econômicas) – eles foram insistentemente rechaçados, especialmente em suas dimensões mística e cosmológica. A Natureza, por sua vez, foi separada do Divino e instada ao reino das apropriações tecnológicas. Para além disso, foi abandonada como outro mito qualquer. Na contramão da vertente dominante, considero que os mitos continuam vivos e presentes, tanto em sua perspectiva etimológica, de narração pública de feitos heroicos; e mais ainda no sentido antropológico, quer dizer, como solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade (CHAUÍ, 2000). Nesta acepção, os mitos propõem um real, revelando pensamentos e a concepção da existência e das relações que os homens devem manter entre si e com o mundo. Vivê-los significa contar uma estória que, obliterando seu significado, é autopromovida como verdade. Portanto, para além de fantasmas gratuitos, os mitos são uma “res real, manipulável para o melhor como para o pior” (DURAND, 2004, p. 20). Todas as sociedades encarnam seus próprios mitos, os quais, frequentemente, extrapolam fronteiras, territórios, gerações, épocas e culturas. Os mitos escatológicos são um bom exemplo desta universalidade, pois a ideia da destruição da humanidade, seja por conta dos seus pecados ou por sua decadência moral, é quase uma unanimidade, aparecendo de várias maneiras em diferentes culturas. Mesmo as sociedades modernas19, ocidentais – tidas como amíticas e atuando comumente de forma mitofágica – não enterraram os mitos. É “uma ilusão superficial acreditar que existam mitos novos”, disse Durand (2004, p.20, grifo do autor), melhor 19 Conforme Dupas (2006, p.112-113), a terminologia sociedade moderna foi usada pela primeira vez em 1950, estreitamente associada “à nova lógica de desenvolvimento econômico capitalista com democracia, mobilização social e abertura cultural universalista”. Entendo por sociedades modernas aquelas que estão imersas no constructo histórico-social da Modernidade, não sendo, entretanto, moldadas de maneira única e uniforme por ela. São sociedades organizadas pelo capital, cujas relações privilegiam processos gerais destinados ao desenvolvimento das forças produtivas e da produção do lucro. Macêdo (2012, p.98), complementarmente, lembra-nos que tais sociedades “têm na liberdade, na autonomia individual e na valorização narcísica do indivíduo seus grandes ideais, orientados para o gozo e para o consumo”. 30 seria falar em releituras. De fato, as sociedades modernas aperfeiçoaram os mitos, aproveitando todas as oportunidades para criá-los, afirmá-los, alterá-los ou mesmo desfazê-los, adequando-os à sua realidade (BARTHES, 2006; ROCHA, 1996; CAMPBELL, 1991; JABOUILLE, 1986). Em uma distância sem espaço e em uma cronologia sem tempo, como não intuir a proximidade mítica entre as narrativas do invencível Hércules e da onipotente Ciência Moderna? Que tal imaginar o HomemAranha como um sucedâneo do lendário Teseu? E quanto a Moisés e Amadis de Gaula? Possíveis encarnações pretéritas do self-made man do liberalismo moderno? Na esteira das muitas interpretações para um mesmo mito, trago à baila duas narrativas em torno de Janus, o deus romano bifronte que inspirou o título desta tese. Um delas fala-nos do sentido para a iconografia janusiana na Antiguidade e a outra do seu sentido sob os preceitos da Modernidade. De acordo com a mitologia romana e também etrusca, Janus é o Deus protetor dos portais e mentalidades. Sua cabeça de duas faces mirando em direções opostas era erigida nos pórticos das cidades da Antiguidade, com a finalidade de proteger o interior e o exterior aos pórticos. Se nos pórticos Janus cuida não somente do interior da cidade, mas também daquilo que lhe é exterior, em janeiro, mês que lhe homenageia, ele olha tanto para o ano que se encerra como para o ano que se insinua. Mas, afinal, porque Janus tinha tal poder? Reza a lenda que Janus chegou com a sua frota através do mar Tirreno em terras itálicas, estabelecendo-se na região do Lácio, na Itália Central, onde se tornou um respeitado rei. Certo dia o Deus Saturno apareceu nos domínios de Janus, depois de ser expulso do Olimpo por Júpiter. Janus então o recebeu, dando-lhe abrigo e proteção. Em agradecimento, Saturno ensinou a Janus a arte agrícola, que ele repassou aos habitantes do lugar. Denominada de “arte da localidade”, a agricultura trouxe fartura e riqueza para o povo do Lácio, libertando-o das incertezas alimentares. Porém, mais que ensinar a Janus o cultivo das terras, o maior presente que Saturno lhe deu foi torná-lo um Deus, com o dom de ver claramente para frente e para trás, olhando simultaneamente o que foi e o que será. Os dêiticos espaciais do mitema, ou seja, o “para frente” e “para trás”, seriam, por metáfora lexicalizada, dêiticos de tempo, apontando, respectivamente, para o futuro e para o passado (ALVES, 1996). Nas sociedades antigas, a imagem bifronte de Janus foi utilizada para reproduzir a marcação de contrários, em uma perspectiva de conexão. Neste hibridismo simbólico, Janus seria um “Deus Ponte”, um mestre com o qual se poderia aprender a 31 arte da reconciliação, da complexidade e da articulação que existe entre os opostos. Nesta visão abrangente, noite-dia, sol-lua, apolíneo-dionisíaco, razão-emoção, ciênciaimaginação, masculino-feminino, trevas-luz, dentre outros pares possíveis, seriam construções atreladas ao mesmo processo e desencadeadas em conjunto, facetas igualmente necessárias da “moeda poética e dialética da existência” (CARVALHO, 2006, p.31). A imagem de Janus também é usada por Freud nas suas interpretações sobre o sujeito do inconsciente. Ele, como Janus, seria “(...) uma unidade continuamente clivada pela dualidade, no qual os contrários coexistem e onde não há nem negação nem partículas exclusivas, somente aditivas” (JORGE, 1952, p.201). Na modernidade dos nossos dias, o mito de Janus foi subvertido em narrativas que o transformaram em “Deus da Dualidade”, “Deus da dupla face” ou “Deus das entradas e saídas”. Nesta imagem arquetípica, uma das faces de Janus representaria o moderno, o novo; o semblante maquiado com o pó mágico das qualidades. A outra encarnaria o arcaico e o tradicional, marcada pelas limitações e negatividades. Janus torna-se o arquétipo de um mundo sedimentado e produzido ambiguamente em dois universos, um compreensível e importante e outro irracional e irrelevante20. Solidificase uma tradição de impasses: as faces de Janus expressariam as antinomias do mundo moderno e suas escolhas totalizantes, onde são confrontadas “(...) duas proposições que são radicalmente – na verdade absolutamente – incompatíveis, ou se tem uma ou a outra” (JAMESON, 1977, p.71). A realidade social construída nessa base seria, como no poema de Meireles, uma ode ao Ou Isto ou Aquilo: “(...) Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva (...)” (MEIRELES, 2001, p.1483), perdendo-se, assim, a beleza do arco-íris. Mergulhando na afirmativa que nada no Universo existe em separado, vejo a iconografia janusiana como o encontro de duas instâncias que se tocam em um instante sem dimensão, formando um todo conectado e complexo que contraria a ideia primeva de oposição e rivalidade, cristalizada pelas faces bifrontes. Nesta perspectiva, a exclusão no poema de Cecília Meireles cede lugar à adição, ao isto e aquilo. Janus seria a simbologia da interação, como um arco-íris que surge da simultaneidade do sol e da 20 Há que se destacar que é a eficácia do mito e não sua suposta verdade o critério para avaliação do seu sucesso. 32 chuva. Vejo o deus romano como a transcendência dos processos díspares, representando o valor essencial da dualidade e também a superação desse equívoco: as faces que são de Janus não constituem a face do que ele verdadeiramente é (FRÓIS, 2004). Diante da diversidade de caminhos do pensar, utilizo o mito janusiano como alegoria 21 para interpretar as ruralidades em uma socioambiência metropolitana. Expresso com esta postura o desafio de construir um trabalho acadêmico minimizando as polarizações fragmentadoras, complexificando a análise e recorrendo ao mitológico para enriquecer o que está posto cientificamente. Pretendo, com isso, aproximar de forma fecunda e não excludente racionalidade e fantasia: Quando o mito é aceito alegoricamente, converte-se num relato que tem dois aspectos, ambos igualmente necessários: o fictício e o real. O fictício consiste em que, de fato, não ocorreu o que o relato mítico descreve. O real consiste em que, de algum modo, o que diz o relato mítico corresponde à realidade. O mito é como um relato do que poderia ter ocorrido se a realidade coincidisse com o paradigma da realidade (MORA, 2001, p. 478). Incorporando as reflexões acima, penso na relação entre duas categorias que, historicamente, foram concebidas antinomicamente. Falo do campo e da cidade, e, por extensão, do rural e do urbano, ainda que estes não sejam sinônimos daqueles. Entendo campo e cidade como morfologias materiais e bases prático-sensíveis de realidades sociais – o urbano e o rural – compostas de relações presentes e futuras, concebidas, construídas ou reconstruídas pelo pensamento (SOBARZO, 2010). Em outras palavras, cidade e campo expressam materialidades enquanto rural e urbano são racionalidades ou lógicas que se manifestam por meio de práticas sociais. Como na metáfora janusiana, essas categorias são faces de uma totalidade complexa e in(di)visível, que nos convida a superar as dicotomias em favor de uma perspectiva tensionada, em que o campo dialoga com a cidade e o rural com o urbano e vice-versa, em um moto contínuo de relação dialética. Certamente que uma inflexão teórica de tal magnitude pressupõe um longo tempo de amadurecimento porque o que está em jogo é a desmistificação de conceitos e valores fortemente arraigados. Mais do 21 Conforme Pereira (2002, p.27), o alegorismo é um procedimento retórico por meio do qual se exprime um sentido não imediatamente compreensível. Consiste no uso de uma espécie de máscara - a alegoria aplicada à ideia que se propõe a explicar. Assim, a alegoria traz significações ocultas ou subentendidas, em que o objeto extraído de seu contexto e esvaziado de sua significação habitual. Bruno Latour (2005) utilizou a alegoria janusiana para discorrer sobre a ciência em obra recente. Segundo ele, a face austera e formalista do deus representaria a ciência pronta (ou “prêt-à-porter”); a outra, vivaz e informal, a ciência em construção (ou “en train de se faire”). Faces que, inevitavelmente, devem ser lidas conjuntamente. 33 que dizer que, hoje, há uma imbricação entre o rural e o urbano, há que se pensar que essa indissociabilidade sempre existiu, ainda que a relação dos homens e mulheres entre si através dos assentamentos humanos tenha sido extremamente variada no tempo e no espaço, não permitindo contar uma única história da relação cidade-campo, uma única história da relação do rural e do urbano. O que tem nos impedido de ver esse caráter indissociável entre a cidade e o campo, entre o rural e o urbano são as teorias utilizadas para referenciá-los, as quais têm servido menos para compreendê-los, e muito mais para justificar a dominação de um pelo outro (PORTO-GONÇALVES, 2006). Pelo exposto, não surpreende as referências ao rural como forma natural de vida, berço da natureza, espaço harmonioso e bucólico vis-à-vis às menções ao urbano como locus da fragmentação e do aviltamento do indivíduo; lugar por excelência do barulho, dos vícios, da burocracia e de outras muitas mazelas. De outra parte, nos deparamos com retratações do urbano como centro de realizações, da racionalidade, do planejamento e da civilização em oposição a um rural posto como lugar do atraso, da ignorância, da limitação e da rotina. Nesses termos, rural e urbano constituem-se como referências quase mitológicas de mundos sociais; rejeitadas ou imitadas, mas, essencialmente, expressando “(...) visões de mundo e valores distintos de acordo com o universo simbólico ao qual estão referidas, estando, portanto, sujeitas a reelaborações e a apropriações diversas” (CARNEIRO, 1998, p.63). Mesmo que teorias estereotipantes e polarizadoras do mundo continuem em voga, é interessante destacar que o rural tem despertado interesse sob outras bases que não a das desqualificações ou das oposições irreconciliáveis frente ao urbano, ensejando um vigoroso movimento de revitalização conceitual neste século XXI. Desse reencontro com o rural brotam olhares diferenciados, que preconizam a emergência de novas ruralidades (CARNEIRO, 1998); defendem o renascimento rural (KAYSER, 1990); a reestruturação da ruralidade (MARSDEN, 1989); abordam-no sob a perspectiva territorial (SARRACENO, 1994; ABRAMOVAY, 2000; SCHNEIDER, 2004); discutem suas potencialidades como territórios do futuro (JEAN, 1997); novo rural (GRAZIANO DA SILVA, 1999); espaço singular e ator coletivo (WANDERLEY, 2000) e sob a ótica das identidades sociais contemporâneas (MOREIRA, 2005). Para desconstruir a trama que coloca rural e urbano, campo e cidade, ruralidade e urbanidade como faces dissociadas do mundo da vida, evidencio nas páginas seguintes quando, como e porque esta separação foi se consumando epistemicamente e também politicamente. Para os fins que tenho em mente, cumpro esta trajetória fazendo três 34 recortes. Inicialmente, volto à antiguidade, mostrando que neste momento não se fazia distinção entre campo e cidade e tampouco rural-urbano. Em seguida, pondero sobre o crescente acúmulo de poder pelas cidades, enfatizando o nascimento do fenômeno urbano e industrial. Mostro como a oposição espacial cidade-campo se desloca para sedimentar a contradição urbano-rural. Finalmente, no último recorte, avalio a relação entre os campos e as cidades nos dias de hoje, destacando a (re)aproximação entre natureza e sociedade e a constituição teórica de uma ruralidade dita contemporânea. Para começar esta longa viagem, pedi ajuda à princesa Ariadne, antecipandome aos possíveis labirintos e encruzilhadas desta trajetória. Como esperado, ela veio em meu auxílio com seu novelo mitológico. Falei do meu objetivo em chegar às terras mineiras para investigar a imbricação entre os campos e as cidades na região metropolitana. Para isso, precisarei aventurar-me no tempo e no espaço para desfazer os nós que os separaram teoricamente, expliquei a ela. Sentindo seu interesse, fiz o convite para que me acompanhasse nesta aventura. Para convencê-la, discorri sobre a resplandecente Serra de Sabarabuçu, vomitando sem parar os minérios que fazem a riquezas de Minas Gerais. Contei das montanhas serpenteando majestosamente para além do horizonte, do alto das quais podemos vislumbrar o céu, as brumas e o mar de morros de Ab’saber (2003). Descrevi com entusiasmo a região em que a serra é do Curral e também do Cipó; o córrego é do Feijão, da Mata e do Pastinho; o ribeirão é das Onças; a festa é do Milho, da Goiaba ou da Jabuticaba; o parque é das Mangabeiras; as cidades têm nomes sugestivos: Igarapé, Capim Branco, Florestal, Jaboticatubas, Raposos, Rio Acima, Belo Horizonte... Certa de tê-la sensibilizado, comecei a entoar a canção Cio da Terra. Aos poucos o som da minha voz misturou-se aos ventos fortes vindos dos Gerais. Desculpando-se, a princesa declarou sua impossibilidade em seguir-me, mas garantiu ajuda. Todos os labirintos têm uma saída, disse-me com firmeza. Basta que encontremos o seu segredo, reconheçamos as suas encruzilhadas e tenhamos o fio que nos conduza por seus trajetos. Como você mesmo disse, o lugar aonde queres ir “vive sangrando minério, exportado seu ser para o mundo, em silenciosos trens que não param de ir sem nunca mais voltar”. Isso já me contara Herbert de Souza, o meu amigo Betinho. Se bem entendo o que desejas, precisarás ver o sangue da morraria e não somente admirar as belas paisagens de Minas Gerais. Além de vagar pelas montanhas, contemplar os rios e as cidades de nomes sugestivos, terás que andar pela via do Minério e pelo Quadrilátero Ferrífero, percorrer a cidade industrial, conhecer as 35 cidades-dormitórios e a capital planejada. Neste proceder, vai descobrir Contagem, Esmeraldas, Confins, Lagoa Santa; vai aprender sobre a religiosidade mineira, transbordada nos nomes das cidades: Santa Luzia, São Joaquim de Bicas, São José da Lapa. Surpreendida por seu conhecimento, agradeci e fui saindo devagar. Ela então me estendeu a mão e disse: leve contigo meu novelo mágico, ele vai acompanhá-la pelo labirinto das Minas Gerais, ajudando-a a ir ao encontro de Ártemis, a Deusa da Natureza com Atena, patronesse daquilo que é feito pelas mentes e mãos dos seres humanos. Agradeci novamente e comecei a caminhar. Sorrindo, Ariadne afastou-se, mas ainda tive tempo de ouvi-la citando Heráclito de Éfeso: É mudando que repousa... A vida e a morte, a vigília e o sono, a mocidade e a velhice são, no fundo, uma e a mesma coisa. Uma transforma-se na outra e esta volta a ser o que era primeiro. Se alguém me escutou, não a mim, mas ao meu logos, então sentirá que é sábio afirmar que todas as coisas são uma. Campo e cidade, rural e urbano. Tensão recíproca, arco e lira, filosofei pegando o novelo e desenrolando o fio encantado. Em Minas Gerais, começarei procurando por um belo horizonte, combinei comigo. Partindo dali, darei novas laçadas, arrematarei outros nós. Mas, antes disso, preciso percorrer certo labirinto e desfazer antigas amarrações. 2. Um pouco de história: (des)construindo e (re)construindo a relação campo e cidade. Qual campo? Que cidades? Cada um de nós carrega consigo uma noção, mesmo que vaga, do que seja campo e cidade. Imagens, narrativas, paisagens, objetos e pessoas são alguns dos “referenciais” usados para dar materialidade à realidade construída pelo nosso olhar e pelas nossas vivências. Por certo, ao fazer menção a um deles – campo ou cidade – nosso imaginário22 é deslocado, deslizando em direção a alguma experiência, vivida ou imaginada, sobre um ou sobre ambos. Seja no plano mental e por certo conceitual, são muitos os caminhos que podem nos levar de alguma forma ao campo ou à cidade e à articulação entre ambos. 22 Conforme Franco Júnior (2005, p.184) imaginário refere-se ao conjunto de imagens, verbais e visuais, que uma sociedade ou um segmento social constrói com o material cultural disponível para expressar sua psicologia coletiva. Logo, todo imaginário é histórico, coletivo, plural, simbólico e catártico. 36 Discutir tal ligação não é propriamente algo novo, mas, certamente, nem sempre o novo deve ser tomado como essencial. Por isso, arrisco-me a fazê-lo, mostrando que esta velha relação tem uma longa trajetória de antagonismos, simbiose e justaposições. E, ainda mais importante, não há uma forma única de apresentá-la. Campo e cidade. Duas materialidades em coexistência dinâmica. Duas palavras em inter-relação. Como disse Raymond Williams (1989, p.11) “Campo e Cidade são palavras muito poderosas, e isso não é de estranhar, se aquilatarmos o quanto elas representam na vivência das comunidades humanas”. Duas representações sociais historicamente construídas, às vezes idealizando o campo e tudo a ele ligado (rural), às vezes enaltecendo a cidade e o que a ela se relaciona (urbano). Penso na relação entre campo e cidade como uma colcha de retalhos. Pesada, a colcha-relação carrega consigo densas camadas de (pré)conceitos. Ao manuseá-la, os modernos diriam que a linha e o tecido que a compõem são da natureza do campo, mas os equipamentos e as técnicas para sua confecção provêm da artificialidade da cidade. Outros, pós-modernos, dão destaque ao bordado artesanal, tradição daquela família camponesa. Os mais afetos à perspectiva econômica enaltecem a máquina de costura, o espaço da produção, a quantidade produzida. Opiniões que, grosso modo, repercutem uma divisão de trabalho – o campo respondendo pela produção agrícola, e a cidade, produzindo bens industriais – que chegou praticamente intocada até os nossos dias, apesar das substanciais evidências empíricas a contradizê-la (HESPANHA, 2007). Sacudindo a colcha para debelar a poeira acumulada, somos surpreendidos por cores, tons, nuances e desenhos que passaram despercebidos a quem se ateve a pensar estritamente na procedência do material ou no processo de confecção, deixando de contemplar a harmonia do conjunto, a sutileza das tramas, a beleza do bordado e a conexão das costuras. Juntos, o fio do algodão, o aço da agulha e o trabalhador. Todos filhos da mesma natureza. Campo e cidade. Que estratégia utilizar para tentar compreender esta dialética relação? Lewis Mumford (1998, p.11), em seu livro A cidade na História, chama atenção para a necessidade de “seguir a trilha para trás” para entender a cidade. Mas, voltar no tempo? Como? Não é fato que algo que foi uma vez não é e nunca será o mesmo a reaparecer? Moreira (2005, p.76) responde dizendo que “o que poderemos verificar, medir e representar serão apenas índices, indicadores, traços, elementos e registros... Busquemos por eles então. 37 Seguindo o conselho de Munford (1998), retrocedi no tempo. Cheguei a Atenas, Biblos, Babilônia, Constantinopla, Cuzco, Machu Picchu, Pequim, Roma, Tical, Tenochtitlán, Teotihuacán... Cidades políticas, cidades comerciais, cidades-impérios. Algumas protegidas por muralhas e fossos, outras abertas... Diferentes conformações espaciais, originadas de um elemento comum – quase todas fruto da terra – obra de um excedente agrícola sem o qual seria inconcebível na sua formação mais remota (MUMFORD, 1938). Assim aconteceu com as cidades da Mesopotâmia, Egito, Índia, China e América précolombiana, onde a produção regular de alimentos e o desenvolvimento da agricultura suscitaram a sedentarização dos homens em assentamentos23. Pouquíssimas foram as regiões onde os campos prosperaram sem se fazer acompanhar por uma correspondente cidade. Para demonstrar a magnitude de tal inter-relação, faremos, como sugeriu Mumford, uma retrospectiva. O ponto de partida poderia ser Dzibulchaltun, Tebas, Cartago ou qualquer das cidades anteriormente citadas, mas usaremos Roma como fio condutor, já que ela (e a civilização em torno da mesma) é colocada como referência do poderio da cidade na Antiguidade (SPÓSITO, 2000). Historiadores e arqueólogos afirmam que Roma começou a se formar a partir de algumas aldeias de agricultores e pastores. Naquela época e lugar a atividade agrícola era a base da economia, a qual os romanos atribuíam “grande superioridade moral” (GALBRAITH, 1989, p.12), rivalizando, inclusive, com outra atividade considerada essencial, a participação em guerras. Assim, a agricultura era algo considerada como desígnio dos deuses. Mesmo os mais abastados não desdenhavam enfrentar a rabiça do arado. Além disso, as demarcações delimitadoras dos campos (terrnes) eram respeitadas como se fossem coisas sagradas e a criação de gado vinculava-se com a natureza sagrada da terra (PAULA, 1979). Muitas famílias dedicavam-se ao plantio de cereais, cultivo de oliveiras e à produção de vinho. O preparo da terra para o plantio era feito com a ajuda do urbanum (arado em latim). O sulco que ele fazia no chão ao ser puxado pelos bois sagrados era o que delimitava a forma física da ocupação do espaço de vida, marcando o “território da produção e de vida dos romanos” (MONTE-MÓR, 2006, p. 11). Portanto, na origem, o vocábulo urbano dava a justa medida da relação da 23 Alguns autores têm uma posição contrária a este respeito. Jane Jacobs (1969) foi a primeira a formular a hipótese da precedência da cidade sobre o campo, baseando-se nas descobertas arqueológicas da pequena cidade de Çatal Huyuk, na atual Turquia. Mas, como acertadamente salienta Porto-Gonçalves (s.d.), a discussão da precedência ou não da cidade em relação ao campo só tem sentido nos marcos de uma visão evolucionista, linearizadora do rural e do urbano. 38 sociedade com a natureza por meio da organização do espaço, quando o sulco do urbanum ao grafar a terra demarcava a povoação. Nesta lógica, inferimos a inter-relação campo-cidade, recuperando “o sentido de cultura como originário de culto, cultivo, e não como algo que se dá fora da relação com a natureza” (PORTO-GONÇALVES, s.d., p.5). Tempos depois, quando Roma expandiu seu território, os cultivos passaram a ser feitos pelos povos escravizados. Várias guerras foram exclusivamente organizadas para a obtenção de prisioneiros para trabalho nos grandes latifúndios. Paula (1979) conta-nos que “os romanos consagraram o hábito de tirar dos inimigos, em proveito próprio, parte - 1/3 ou menos de 2/3 de seu solo arável e das pastagens”. Neste movimento imperialista e expansionista, o número de escravos é enormemente ampliado, ao mesmo tempo em que pequenos e médios proprietários rurais são eliminados por conta de um processo de concentração fundiária. Em consequência, há um abandono em massa dos campos em direção a Roma. Neste cenário de tantas mudanças, há uma inflexão no significado do vocábulo urbanum. Ele e suas reduções semânticas, urbs e urbe, passam a ser usados exclusivamente para designar Roma, “mercado de toda a Terra”, para onde tudo e todos se dirigem. Assim, de espaço de produção, o urbano passa a ser sinônimo de espaço de dominação, ligado à primazia social do aparelho político-administrativo. O lugar de onde se enunciaria o urbano passou a ser a cidade imperial dominadora e não mais o lugar da marca do arado. Daí pra frente “todo o léxico implicado na família de conceitos (urbano, cidade, city, cité e civitas) foi forjado desde um lugar hegemônico, hierarquizador (...)” (PORTO-GONÇALVES, s.d., p.5). Com a queda do grande império romano, ao final da Idade Antiga, o vocábulo urbanum tem seu uso descontinuado, melhor dizendo, esquecido. A Roma de mais de um milhão de habitantes vê sua população despencar para menos de cem mil pessoas em consequência da fome, da violência e dos ataques dos muitos inimigos. Com esta radical mudança, o vocábulo e seus afins perdem sua razão de ser, só voltando a ser empregados muito tempo depois em referência às futuras urbs de dominação, quais sejam, as cidades da era moderna. Entretanto, antes de nelas chegar, falemos da relação campo e cidade no período medieval. Com o ocaso da civilização romana, a produção agrícola entra em declínio por diversos fatores, dentre os quais a falta de mão de obra escrava, a indisponibilidade de 39 novas áreas para plantio, anteriormente conseguidas pela expansão bélica, e o fim das atividades mercantis por conta do bloqueio do Mediterrâneo. Em um cenário de instabilidade política, violência e escassez de gêneros alimentícios, grande parte dos abastados senhores romanos abandona as cidades buscando refúgio em propriedades no campo – as vilas romanas – precursoras dos feudos. Outros, menos ricos, conseguem proteção e trabalho nas terras dos senhores sob a condição de arcar com obrigações de várias espécies, dentre as quais o pagamento de impostos e taxas (SPÓSITO, 2000). A terra torna-se assim a única fonte de subsistência e de condição de riqueza em meio à substituição do sistema escravista de produção pelo sistema servil24. Gestavam-se assim as condições para a consolidação das formações sociais de natureza feudal no ocidente. No contexto do modo de produção feudal, a cidade, mais do que estar no campo, passa a ser uma extensão deste, sendo, portanto, do campo (MUMFORD, 1938, p.306). Esta situação fez o historiador Georges Duby (1973, p. 11) chamar de “parasitas tutelares” as cidades de então, diante de sua inexpressividade, seja econômica, administrativa ou política. Nos séculos subsequentes, a busca por alimentos cresceu com rapidez e intensidade, pressionando a produção agrícola. Para atendê-la, novas áreas cultiváveis foram abertas, ao mesmo tempo em que se tentava aperfeiçoar as técnicas disponíveis. Surgem os moinhos impulsionados pelo vento ou movidos à água, a charrua em substituição ao arado e uma forma diferenciada de atrelar os animais, aumentando o rendimento do trabalho. Este conjunto de mudanças permitiu a geração de excedentes agrícolas para atender às demandas crescentes. Diante da impossibilidade de armazenar os excedentes, a produção agrícola começou a ser levada para comercialização na “praça de mercado”, local no interior das cidades controladas por mosteiros e castelos (MONTE-MÓR, 2006, p.8), sob a aprovação explícita da aristocracia clerical, maiores beneficiários deste crescimento econômico. Driblando as normas da Igreja, que condenava as atividades comerciais, rapidamente a praça tornou-se o elemento dinamizador e nucleador destes locais. Deste 24 Segundo Franco Júnior (2005, p. 186), ser “servo implicava não gozar de muitas liberdades, ter incapacidades jurídicas (...). Contudo, ao contrário do escravo clássico, tinha reconhecida sua condição humana, podia ficar com parte do que produzia e recebia proteção do seu senhor”. Em função da região considerada, dava-se mais ênfase à servidão real, que pesava sobre a terra, ou à servidão pessoal, incidindo sobre o indivíduo. Entretanto, após o século XI, estes dois “tipos” quase sempre se confundem. 40 movimento emerge uma primeira mudança na relação campo e cidade, quando então a produção agrícola passa a se realizar somente no mercado, transferindo o mais-produto do campo à cidade. São os primórdios de um desenvolvimento comercial que desagregará as organizações da produção voltadas ao valor de uso. Paulatinamente, o capital comercial vai unificando mercados e impondo preços, os quais, dada a continuidade das trocas, perdem o seu caráter fortuito. Estamos relatando os movimentos que resultaram na constituição, ainda que lenta, de uma economia de mercado25 e das cidades mercantis. A ampliação expressiva do comércio, o desenvolvimento de uma economia monetária que transformou o caráter da vinculação das mercadorias e o próprio crescimento das cidades – com tudo que este crescimento significava, sobretudo o fortalecimento de um espaço fora do domínio feudal – foram "acontecimentos" históricos que proporcionaram as condições necessárias à corrosão da instituição servil, pois permitiam aos camponeses o rompimento das amarras que os prendiam à economia feudal. É justamente neste ponto da história que se origina a oposição valorativa entre campo e cidade – e, por extensão, entre os modos de vida a eles associados, respectivamente, rural e urbano. A antagonização assentou-se no bojo do embate entre dois modos de produção, o feudal e o capitalista – em ascensão – e entre as respectivas classes sociais que lhes davam sustentação. Neste contexto, como descreve Silva (1999, p.3), a cidade e o modo de ali viver são associados ao “novo” (vinculados à ordem social emergente), ao “progresso” das fábricas, à liberdade, enquanto o rural e o campo são tomados como “velhos” (ligados à ordem feudal em declínio), “atrasados”, “tradicionais” e mesmo servis. Fadados estes últimos ao desaparecimento ou à incorporação aos processos de industrialização e urbanização que tiveram seu lugar na expansão e domínio do modo capitalista (CASTELLS, 2005; FRANCO JÚNIOR, 2001; GIDDENS, 1987; LOJKINE, 1977). Neste espaço e lugar, as cidades assumem um protagonismo inédito na história da humanidade, de “parasitas tutelares” como as denominou o historiador Georges Duby (1973, p. 11), são reverenciadas como “donas de tudo e o campo verdadeiro servo e subordinado”. Além das mudanças já citadas, outras transformações causarão grande impacto na relação entre campo e cidade no período medieval. Dentre elas, a parcelização do 25 A esse respeito ver o livro “A Cidade na História”, de Lewis Mumford (1965). 41 domínio político feudal, o esfacelamento do poder em sucessivas vassalagens na escala hierárquica da nobreza, o rompimento dos laços compulsórios da instituição servil e o fortalecimento das “cidades livres”, os burgos, aos quais certos setores nobres concediam franquias, isenção de impostos e liberdade. É justamente nos burgos que se consolida uma classe social – a burguesia (comerciantes e usurários que foram lentamente acumulando capital e poder) – que dissemina seus hábitos, cultura e tradição até que, no limite, apropria-se das cidades mercantis em todos os sentidos, tendo por razão de ser a obtenção do lucro e, por conseguinte, a acumulação através do comércio. As cidades livres atraíam mais e mais pessoas, mesmo não conseguindo corresponder às expectativas suscitadas. Segundo Franco Júnior (2001, p.130-136), a desvalorização dos preços dos produtos agrícolas exacerba esta migração. O êxodo rural intensifica-se, e, em consequência, forma-se uma legião de pessoas sem ocupação, um proletariado vagando a esmo e em frequente conflito com a burguesia. Paralelamente à evasão rural, deu-se a organização do “sistema de trabalho a domicílio”, mecanismo pelo qual os comerciantes forneciam matéria-prima e ferramentas aos camponeses “libertos” da servidão, lançando assim as bases da manufatura (SPÓSITO, 2000). A existência de força de trabalho “livre”, a disponibilidade de capital e a consolidação de um mercado criam as condições para a revolução industrial, resultando em total mudança na divisão social do trabalho e no caráter da relação entre o campo e a cidade. Se no plano econômico e social fervilham transformações, também no plano das ideias elas se fazem presentes, organizando o ideário que marcará a Idade Moderna. Todo este processo é brilhantemente descrito por Lefebvre (1972, p.44): (...) na Europa da Idade Média (tendo o cuidado de excluir o caso do ‘modo asiático de produção’) a relação cidade-campo torna-se conflituosa. (...) a cidade e a burguesia medieval tiveram de lutar para conseguir a supremacia política e a capacidade de explorar economicamente os campos, tomando o lugar dos senhores fundiários na recolha do sobretrabalho (...). No decurso desse processo a cidade gera algo diferente, algo que a ultrapassa: no plano econômico, gera a indústria; no plano social, gera a propriedade de bens móveis (...); no plano político, finalmente, gera o Estado. Esse o resultado da primeira grande luta de classes e das formas sociais na Europa: cidade contra campos, burguesia contra feudalismo, propriedade de bens móveis e propriedade privada contra propriedade fundiária e comunitária. A partir deste momento, começa um processo crescente de transformações radicais no conjunto geral das relações de produção. Se até então a agricultura era a principal atividade econômica e o campo representava o lugar em que se concentrava a grande maioria da população de produtores diretos, o surgimento de uma indústria 42 capitalista engendrou uma mudança demográfica nos países onde se originou, invertendo a proporção entre a quantidade de população nas cidades e nos campos, agora esvaziado pelas levas migratórias que partem em direção às cidades. À medida que as cidades ascendem em importância econômica e as mudanças desencadeadas pela industrialização tornam-se mais impactantes, reações distintas são manifestadas. A fuligem, a fumaça e o barulho, que tanto incomodam os citadinos e trabalhadores assalariados, tornam-se o jardim de delícias da burguesia – formas visíveis do pleno funcionamento dos seus empreendimentos. Para ela, as cidades são espaços de oportunidade e abundância, como atesta um texto de Alexis de Tocqueville, descrevendo Manchester, cidade inglesa berço da revolução industrial: Deste fétido escoadouro flui a maior corrente da indústria humana para fertilizar o mundo inteiro. Deste imundo esgoto flui ouro puro. Aqui a humanidade alcança o seu mais completo e o seu mais selvagem desenvolvimento, aqui a civilização realiza seus milagres (...). (TOCQUEVILLE, citado em NISBET, 1966, p. 29 apud NICOLACI-DACOSTA, 2002, p. 196). Essas narrativas, mesmo majoritárias, convivem com outras, mais ou menos catastróficas, em que as cidades são dissecadas de forma crua e brutal. Sobre a mesma Manchester, Engels escreveu em 1845: Em toda parte veem-se montes de detritos de lixo, sujeira, poças d´águas estagnadas nos lugares de bueiro, e o mau cheiro é tão forte que pessoa alguma, mesmo semicivilizada poderia achar suportável morar num lugar assim. Pode-se encontrar, debaixo de uma ponte de ferrovia, uma viela, ainda mais revoltante que os outros, um buraco que não chega a ter dois metros de comprimento por 1,5m; aí eu me deparei com duas camas (...). No fim das contas, o que realmente importa para os ingleses são seus interesses, e o seu desejo de ganhar dinheiro (ENGELS, F. 1972 apud CARLOS, 2008, p.5354). Neste cenário surge e se fortalece duas idealizações do campo. Em uma elas, ele é lugar da produção primária, da terra, da natureza e dos processos naturais. Portanto, o lugar da agri-cultura e menos (ou nada) de agro-cultura. Neste contexto, o rural é concebido por meio de adjetivações (des)qualificativas: Rústico, Ultrapassado, Rudimentar, Arcaico, Lento. Rural. Ao mesmo tempo, seu Outro, a face janusiana moderna e pintada com o pó da civilização, é legitimada como Universal, Racional, Bem-sucedido, Artificial, Neofílico, Objetivo. Urbano. Polos magnéticos em repulsão. Estas adjetivações são estendidas aos protagonistas dos processos sociais. Se o campo é o passado, lugar da barbárie, da tradição, seus habitantes são, por extensão, 43 selvagens incivilizados. O agricultor então é o parente pobre, ignorante e desgostoso dos abastados, civilizados e progressistas habitantes das cidades. A segunda forma de concepção do campo o mostra como lugar do bucólico, do refúgio e da calmaria, da produção da riqueza, da fartura, dos laços mais sólidos de relacionamento, da solidariedade mecânica durkheimiana, da Gemeinschaft de Tönnies, enfim, o baluarte da pureza contra os males da industrialização. As visões acima passaram a permear grande parte das análises acerca do campo e da cidade. Aos poucos campo e cidade passam a ser considerados como polos magnéticos em repulsão, sendo a cidade o Janus positivo, e o campo o negativo. Ou vice-versa. Idealizações e construções simbólicas que foram levadas à frente por algumas áreas do conhecimento. No primeiro caso, que defende o protagonismo da cidade, penso no papel desempenhado pelas Sociologias Rural e Urbana para consolidar esta visão, como bem destaca Martins (2001). À medida que o mundo da vida era perpassado pela emergência do fenômeno urbano e pela consolidação das metrópoles industriais, elas usaram suas cientificidades teórico-analíticas para explicar o fenômeno vivido. Inclusive, a Escola de Chicago e sua proposta do “urbanismo como modo de vida” são referenciadas até hoje. No segundo caso, proclamando o protagonismo do campo, penso no trabalho dos literatos na disseminação do modo de vida rural em sua vivência “abundante e harmônica”. Raymond Williams (1992), no clássico O campo e a cidade na História e na Literatura, reconstitui a relação campo e cidade por meio de obras da literatura inglesa. Williams revela sinais de uma hierarquização entre campo e cidade que estão presentes tanto nas atividades produtivas quanto na vida cotidiana, em diferentes momentos da história social da Inglaterra. Sua análise permite-nos constatar que o nosso entendimento do que seja campo e cidade provém de profundas e remotas raízes, muitas vezes homogeneizantes e simplificantes, apesar da diversidade da realidade histórica. Abro aqui um parêntesis para dizer que poucos são os estudos acadêmicos que se propõem a quebrar esta hegemonia acadêmica que desqualifica a ruralidade, espacialmente a metropolitana. Na década de 1980, a professora Baudel Wanderley (2007), pioneira na formação de importantes quadros na investigação do mundo rural, deu um depoimento emocionado ao relatar sua “amistosa” convivência com professores e pesquisadores que creditavam o status de questão menor ao rural, para eles uma temática ultrapassada tanto na sociedade brasileira quanto na academia. Segundo ela, sensibilizar cientistas sociais para incluir o rural como objeto de estudo foi uma tarefa 44 árdua, exigindo muito tempo e humildade. Lentamente, este argumento está sendo dissolvido. Relativamente ao rural metropolitano, em uma perspectiva integradora, destaco os trabalhos de Karen Karam, Alencar, Santos et al., Rúbio Ferreira e Evandro Fernandes. Karam (2001), em sua tese de doutoramento, defende que a agricultura orgânica é uma estratégia para uma nova ruralidade na Região Metropolitana de Curitiba. Alencar (2003) trata do desenvolvimento humano na perspectiva da sustentabilidade complexa, estabelecendo relações entre o conhecimento científico e experiências de ruralidade como nexo de análise na Região Metropolitana de Salvador. Santos et al. (2004) questionam a possibilidade da existência do rural na Região Metropolitana de Curitiba e, respondendo afirmativamente, prosseguem descrevendo suas características à época da análise. Ferreira (2009) estuda a agricultura urbana como estratégia de reprodução espacial integradora do rural e do urbano na Região Metropolitana do Recife. Por fim, Fernandes (2008) analisa a reprodução de agricultores familiares no espaço metropolizado paulistano, por meio de práticas produtivas diversas. No mundo contemporâneo, em sua dinâmica do não-lugar, das (des)territorializações, globalizações, localizações e cosmopolitismo, da celeridade das pessoas e objetos, constatamos que a relação campo e cidade insere-se na ordem dos múltiplos sentidos e, como esperado, das múltiplas leituras. Uma bricolagem organizada pela multiplicidade interativa, muito além da polaridade concorrencial e opositora. Não mais faces de Janus, mas Janus e suas faces; suas forças centrípetas e centrífugas a marcar a relação entre o campo e a cidade. Assim constituída, esta relação permite-nos interpretar o rural de forma ressignificada. Nestes termos, o chamo de ruralidade, esmaecendo assim uma imagem magmática de inferioridade – basilar na noção moderna – para ascender à condição contemporânea de manifestação identitária em que subjaz uma relação de proximidade e reencontro entre homem e natureza, esta investida da condição de sujeito. Implícita nesta noção está uma nova ontologia do ser em geral, em que a natureza humana é interpretada na totalidade da natureza, em uma postura de pertença e não de dominação, contrariamente à ideia de natureza em suas clivagens sujeito-objeto, cultura e natureza, homem e natureza, sociedade e natureza. Ao falar de Natureza, não podemos deixar de mencionar que o termo coleciona múltiplos sentidos. Felizmente Lenoble (1990) lembra-nos daquilo que é essencial: não existe uma “natureza em si”. Seu sentido sedimenta-se por ser “natureza pensada”, 45 portanto, é na história que ela é edificada, assumindo significações distintas em consonância com as épocas e os homens que as vivem. Nestes termos, seja como morada dos deuses, aquilo que faz nascer, alma do mundo, ser inteligente, mundo físico, mãe, princípio criativo e regulador, sustentáculo da vida ou ainda como natureza-natura, fato é que a natureza “exprime menos uma realidade passiva apercebida que uma atitude do homem perante as coisas” (LENOBLE, 1990, p.317). E a atitude é de resgate e inclusão. Nas palavras de Mormont (1993, p.11), a ruralidade apresenta-se agora como uma maneira por meio da qual as nossas sociedades “(…) pensam a transformação da sua relação à natureza”. Similarmente à atração exercida pelas cidades e vida urbana nas sociedades desenvolvidas e industrializadas, experimenta-se hoje uma desilusão com as mesmas, traduzida como a crise da civilização urbano-industrial. Em contrapartida, a repulsividade ao espaço e vida rurais dissipa-se, dando lugar a uma inusitada atração traduzida pela “(…) busca de formas de vida alternativas às características do espaço urbano-industrial” (BARROS, 1990, p. 47). Assim sendo, o rural desposa o estatuto de natural, porque é retratado como um espaço em que a natureza natural ainda subsiste comparativamente à natureza artificial da cidade. O reencontro do rural com o ambiente não é um fenômeno meramente casual, mas um mito de retorno (à volta à natureza natural e pura), construído em torno da escassez/esgotamento da natureza e da ausência de segurança nas sociedades modernas. Os meios de comunicação em massa e o capital imobiliário têm contribuído para sua consolidação usando para tanto manifestações discursivas e a veiculação de imagens que evocam o campo como um lugar de vida simples e pura. A casa de campo, a hospedagem em hotéis-fazenda, o consumo de mobiliários e de bens alimentares são formas concretas de trazer o rural para casa, de modo simbólico e funcional. Segundo Luginbuhl (1991, p 30), esta forma ainda não consolidada de definir o rural pode ser considerada “(...) uma vitória da sociedade urbana, impulsionada pelas classes burguesas, sobre a sociedade agrícola e rural”. Na mesma linha, Picon (1992, p. 44) adverte: (...) o crescimento econômico, o aumento do nível de vida, o surgimento da sociedade de consumo, levam os membros das sociedades industrializadas a conceber os espaços rurais como espaços naturais, especialmente aqueles que escaparam à agricultura mecanizada e à urbanização, como objetos de consumo, como fuga ao seu quadro de vida quotidiano. Esta procura diz respeito a uma elite social e política primeiro e depois se estende às classes médias urbanas. 46 Assim colocado, como ficariam as comunidades rurais e os compromissos para melhorar as suas condições de vida? Qual o futuro do rural se ele ficar encapsulado em fortes termos simbólicos, como localização florestal, como ecossistema preservado, como fonte de água e ar puros para os urbanos consumirem, pergunta o autor. Tentando encaminhar respostas à pergunta, penso que a perspectiva é de lutas em torno do poder, da dôxa e da hegemonia. Considerando a diversidade de atores competindo pela apropriação e definição do rural, há que se pensar este processo em um cenário multifacetado onde a competição impera. Por exemplo, a ruralidade vivida pelos habitantes do rural é diferente daquela experimentada pelos novos residentes de origem urbana, resultando em um vasto campo de dissonâncias e de concordâncias. Da disputa entre ruralidades, cristaliza-se um cenário competitivo entre os diferentes usos da natureza, cada um deles orientando-se a partir de percepções e preferências culturalmente orientadas. Falar em ruralidades implica resgatar consonâncias e dissonâncias de múltiplas dinâmicas sociais operando, no caso em estudo, em um espaço metropolizado. Implica, por certo, acionar distintos atores com distintos modos de vivenciá-las. Neste contexto, como orienta-nos Sastoque (2010, p.26) “mais do que meras abstrações simbólicas, as ruralidades representam guias empíricas de ação”, protagonizadas pelos próprios atores, os quais as criam e sustentam, tanto para pensar e projetar o campo como para tomar decisões relativas ao desenvolvimento de âmbitos rurais específicos. Assim, tornar operativas as ruralidades em disputa, isto é, convertê-las em categorias instrumentais úteis para compreender as dinâmicas rurais na Região Metropolitana de Belo Horizonte, direciona-nos a caracterizar algumas formas de conceber e atuar sobre o rural neste território. Assim sendo, apresento abaixo três categorias operativas que julgo relevantes. Enfatizo que elas não pretendem esgotar as formas de pensar e vivenciar o rural na região, como dito anteriormente, mas, como desejado, são uma justa medida de dinâmicas sociais ali em curso. 3. Ruralidade Instrumental Concebo esta categoria como aquela incorporada por municípios, pequenas mineradoras, grandes corporações minerárias, produtores rurais, instituições governamentais de intervenção e planejamento, imobiliárias e empresas prestadoras de 47 serviços recreativos e turísticos, dentre outros. Nesta ruralidade, a natureza é entendida como parte de todas as coisas economicamente utilizáveis, fundamento próprio da modernização capitalista, submetida por olhares econômicos, estratégicos e intervencionistas. Pessoas são recursos humanos. Montanhas e florestas são recursos naturais. Vive-se a maldição dos recursos naturais. Quanto mais se tem, mais eles são explorados. Nesta acepção, a natureza – mãe, berço e geradora de riqueza – embebida de subjetividade sensível, passa à condição de natureza morta da objetividade insensível, reduzida então a mero recurso produtivo, um capital a ser plenamente empregado para proporcionar aumento da produção, da produtividade e da rentabilidade. Esta categoria incorpora, quando necessário, equipamentos, tecnologias, conhecimento científico, novos conceitos e valores para se viabilizar. Ou se reorganiza nos territórios para garantir eficácia aos processos produtivos. Critérios econômicos quantitativos (geração de empregos, renda, PIB etc.) e a racionalidade competitiva são os argumentos comumente utilizados para legitimar sua estratégia de atuação, tendo por possível slogan: “A vontade de poder lança o sujeito homem como dominador sobre o mundo e sobre o próprio homem, sobre os fracos que não sabem se impor” (BRÜSEKE, 2004, p.9). 4. Ruralidade Hedonista Esta ruralidade é acionada por entidades ambientalistas, aposentados e outros novos habitantes do campo, visitantes ocasionais, turistas e prestadores de serviços recreativos e turísticos, citando alguns. Estes atores vivenciam a ruralidade como contraimagem do urbano, uma percepção do rural como um modo de vida alternativo e ambientalmente “sustentável”, em que se busca o amparo e a proteção na natureza para eliminar as agruras da vida na cidade ou metrópole. A busca por este refúgio pode ser de forma permanente, migrando e estabelecendo moradia/exercendo atividades nãoagrícolas, ou de maneira mais fortuita, usufruindo as belezas, o ritmo e modo de vida local, em oportunidades como finais de semana ou férias. A ideia de viver no campo é envolta com uma aura de reconstituição daquilo que foi perdido pela vida na cidade. Valorizam-se tradições culturais e os costumes da vida local. Seus atores são guiados por valores comunitários e coletivos, tidos como mais presentes no campo. De igual forma, em oposição ao agito da vida na cidade, 48 apostam na liberdade, tranquilidade, naturalidade e simplicidade, postas como sensações típicas da experiência rural. O maior contato com a natureza, a possibilidade de produzir parte de seus próprios alimentos, a oportunidade de viver em comunidade e em ambiente considerado mais saudável, simples, calmo e agradável, fariam parte desse novo e desejado lifestyle (como publicado nos panfletos das imobiliárias). Neste contexto, a mentalidade orientadora dessa ruralidade a defende como espaço propício para materializar ideias de bem-estar e mudanças positivas no modo de vida individual e familiar, em contraste com o estilo de vida desagregador do meio urbano. 5. Ruralidade Amordaçada Corresponde àquela ruralidade inerente às famílias habitantes do campo e das periferias metropolitanas, caracterizadas por sua condição de vulnerabilidade socioeconômica. Alguns grupos estão vinculados ao rural, tanto por ele ser seu espaço cotidiano de vida quanto por ser seu meio básico de reprodução socioeconômica (SASTOQUE, 2010). Outros aumentam as estatísticas dos grupos fragilizados nas periferias da metrópole, habitando das chamadas cidades-dormitório. Essa ruralidade é protagonizada, no campo, principalmente por famílias com capacidade econômica reduzida, sem capacidade para ampliar ou mesmo manter suas áreas. Também dela fazem parte os trabalhadores sem terra, lutando por continuar no campo com todas as dificuldades ali enfrentadas, quais sejam, especulação imobiliária, rentismo, insegurança alimentar e nutricional, precarização das condições de trabalho, poluição do solo e água, educação e condições sanitárias inadequadas etc. Nesta forma de ruralidade, essencialmente centrada no cotidiano dos “mais vulneráveis do campo”, a vivência rural presentifica-se por uma permanente batalha pela sobrevivência física e social, em meio a tantas condições adversas (SASTOQUE, 2010). Estas categorias serão acionadas para desvelar algumas ruralidades na RMBH. Porém, antes disso, nos dedicaremos a conhecer este território chamado Região Metropolitana de Belo Horizonte. Sobre ele são as reflexões do próximo capítulo. 49 CAPÍTULO II O TERRITÓRIO METROPOLITANO: O INDUSTRIAL COMO ENREDO COLETIVO NOVA LIMA CONTAGEM RIO ACIMA ESMER AL DAS BICA S RAPO SO FLORES TAL BALDIM BRUMA DINHO CA ET É CA PI M BR AN CO BETIM MA RI O MA TEU S RIO MANSO IBIRITÉ SARZEDO CA LE TAQUARUÇU DE MINAS IGARAPÉ ITATIAIUÇU JUATUBA MATOZINHOS ME M NOVA UNIÃO PO L S Figura 3: Montagem com nomes dos 34 municípios que compõem a RMBH. 50 1. As dinâmicas e heterogeneidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Do ponto de vista teórico, discutir região é percorrer um terreno cheio de armadilhas e labirintos metodológicos (PAVIANI, 1992). Como destaca Lencioni (2003) há tantas regiões possíveis quantos critérios usados para defini-las. Certamente esta não é nossa janela analítica, brilhantemente escancarada nos estudos de tradição geográfica. Mas, linhas gerais, refletir sobre uma região é sedimentar a ideia de espaços sociais complexos em permanente interação e transformação. É pensá-la como uma grande rede de circulação de elementos materiais e imateriais, que expressa espacialmente uma singularidade dentro de uma totalidade com a qual se articula (AMADO, 1990). Interpretar esta singularidade implica em buscar conhecimentos que falam de história, geografia, política, economia, enfim, diversos tipos de saberes que, em interação, ajudam-nos a compreendê-la – um grande e complexo portrait. E, como dito, em articulação com uma totalidade, que, neste caso, remete-nos a uma epopeia colonizadora e espoliante, fundamentada na desterritorialização de autóctones – expulsos ou tornados cativos – e na conformação de um território sob o cariz lusitano. À materialidade de um mundo físico, adornado por mares de morros ondulados, vastíssimos e muitos sertões, grandes veredas, rochas geradoras de riquezas minerais e paisagens diversificadas, encontramos novas e velhas gentes, economias, estruturas administrativas, relações de poder, crenças, formas de pensar e de representar, constituindo um território de identidades, uma totalidade representada como Minas Gerais (FAGUNDES; PIUZANA, 2010). O mineralogista Francês Claude Henrique Gorceix, fundador da Escola de Minas de Ouro Preto, definiu o estado de Minas Gerais como aquele com o peito de aço e o coração de ouro. Entre o peito e o coração, entre o aço e o ouro, na centralidade dos 586.522,122 km² que formam o Estado de Minas Gerais, deparamo-nos com um espaço singular – nosso portrait – identificado como “Região Central de Minas Gerais”, “Pedaço do Quadrilátero Ferrífero26”, “Terra do Minério de Ferro” e, institucionalmente, “Região Metropolitana de Belo Horizonte”. Esta identidade, a ela foi atribuída pela Lei nº 14 de 8/6/1973, remete-nos ao significado etimológico do termo 26 O Quadrilátero Ferrífero, uma estrutura geológica cuja forma se assemelha a um quadrado, estende-se entre a antiga capital de Minas Gerais, Ouro Preto a sudeste, e Belo Horizonte, a nova capital a noroeste. Dos trinta municípios que dela fazem parte, 17 fazem parte da RMBH. 51 região – domínio e poder – pois lhe foi dada no governo militar, no contexto da política nacional de desenvolvimento urbano, em sua estratégia de fomento à produção industrial e à consolidação das metrópoles como lócus desse processo (MOURA; DELGADO; DESCHAMPS; CARDOSO, 2003) 27. Porém, antes mesmo da existência de um aparato institucional e jurídico para a intervenção metropolitana – que veio a se sedimentar com o Plambel (Plano Metropolitano de Belo Horizonte) – o governo estadual já intervinha na região dita então Grande Belo Horizonte. Voltando ainda mais no tempo, antes de ser Grande Belo Horizonte ou Região Metropolitana de Belo Horizonte, este espaço foi o lar de Luzia, nome dado ao fóssil humano mais antigo encontrado aqui na América. Séculos depois de Luzia, a região tornou-se a casa dos Xacriabás, Puris, Pataxós, Panhames, Mocurins, Maxacalis, Kamakãs, Coroados, Crenaques, Botocudos, Aaranãs e Au-auá-araxás, os quais, dominados por processos civilizatórios, reconfiguraram seus valores e costumes indígenas, enfim, suas vidas. Com a descoberta das minas aluvionais, a região passou à história como a Terra do Ouro, a concretização do mito de Sabarabuçu, a serra resplandecente dos cronistas portugueses. Tornou-se também o lugar de outras etnias indígenas e, especialmente, de portugueses, paulistas, baianos, e muitos outros imigrantes, enlaçados em uma miscigenação ampla e entorpecidos pela possibilidade de possuir o metal que jorrava das lendárias minas de Cataguás, Sabarabuçu, Caeté, Rio das Mortes, Itambé, Itabira, Ouro Preto e de Ouro Branco, dentre as muitas minas reais e imaginadas. Uma região forjada no contraste entre a pobreza dos despossuídos e o fausto do ouro, das pedras preciosas e dos minérios; decantada pela vitalidade de sua natureza – água abundante, minérios, sertões, montanhas e pelas dificuldades que ela pretensamente lhe impôs – isolamento geográfico, dificuldade de comunicação; enaltecida por suas iguarias, couve, tutu, queijos e cachaças. 27 Sob a égide do governo militar, na base desenvolvimentista de então, surgiram as nove primeiras regiões metropolitanas brasileiras (São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém, em 1973, e Rio de Janeiro, em 1974). Até o início dos anos de 1990, ainda se mantinham essas nove regiões metropolitanas iniciais, mas, a partir daí – por força da Constituição de 1988, delegando aos governos das unidades da federação a incumbência da criação de novas regiões metropolitanas – houve um verdadeiro “boom” quantitativo das mesmas, em especial, depois de 1994 (BARRETO, 2012). 52 Ouro, natureza, comida, pessoas: referências de um espaço metropolitano a alimentar mentes e corpos de todos os mineiros e, claro, o estômago, o cofre e o luxo português em séculos passados. Por certo, culturalmente, a RMBH (e suas cidades) oscila entre três formas de reconhecimento, sendo referenciada como a “terra do ouro e dos minérios”, pela proximidade com a “capital planejada e industrial” ou ainda pela geografia das “montanhas”, formas essas que podem aparecer de forma combinada: “Nossa cidade é linda em natureza. Nossa indústria é o verde. E estamos tão pertinho da capital” (V. A., professora em Brumadinho); “Estamos colados com Belo Horizonte” (M.A., bancário em Nova Lima); “Lá em Sabará têm muitas lembranças do ciclo do ouro. Muita coisa daquela época mantemos: casas, igrejas, ruas, calçamentos, chafariz. Quando tinha o ouro ali era o centro do mundo” (J.R.,comerciante, Sabará). “Você já foi em Caeté? Se quiser entender a região tem que ir até lá. Muita coisa bonita do tempo do ouro, dos escravos. Um tempo que tá na memória da região. Muita gente vem de longe pra ver” (J.G.,funcionário público, Caeté). “Raramente saímos daqui. Quando precisamos de alguma coisa diferente é só ir pra BH. Nova União não é longe da capital, não” (M.B., produtor rural, Nova União). “Rio Acima é a princesinha dos minerais. Caminhar pelas suas ruas e estradas é sentir a história. É reviver o tempo que a região respirava ouro” (N. V., dona de pousada, Rio Acima). “Nova Lima é a cidade das montanhas de Minas. Nossas raízes estão cravadas nas montanhas e na extração mineral” (J.P., estudante, morador de Nova Lima). “Viver aqui não é qualquer coisa não. Acima de nós, o céu. Abaixo dele, essas montanhas” (A.M., moradora de condomínio Brumadinho). “Ser mineiro é estar aqui nessa região, sentir-se em casa, é prosear em frases curtas, tão curtas que algumas letras some na pronunce, ser mineiro é ficar quetin escutano um joguim e ter BH como capitá” (J.S., bancário, Belo Horizonte). Retornando ao metropolitano institucionalizado, em 1973, apenas catorze municípios dele faziam parte. Depois, em 1989, mais seis foram incorporados. Daí em diante, em cinco momentos distintos, chegamos aos atuais trinta e quatro, distribuídos em quase 8.900 km2 de área, visualizáveis no mapa abaixo, Figura 4. 53 Figura 4: Mapa político-administrativo da Região Metropolitana de Belo Horizonte. No detalhe, a localização da RMBH no mapa do Estado. Fonte: IBGE, 2007. 54 Esta integração negociada é objeto de muitas críticas, tendo por alvo a incorporação do não-metropolitano naquilo que é tido como metropolitano: A especificidade do metropolitano decorre do fato de os elementos do espaço (meio ecológico, infraestruturas, sujeitos sociais) guardarem uma interdependência estreita, sistemática e cotidiana, manifesta de forma concentrada em uma determinada fração do território que se encontra fragmentado pela divisão político-administrativa vigente (LOPES, 2006, p.139). Usando tais referências, são comuns as declarações restringindo o fenômeno metropolitano aos municípios de Belo Horizonte, Betim, Contagem; assim apenas estes seriam extensões da metrópole. Este laço visceral é exposto nas informações econômicas – os três primeiros respondem juntos por 35,21% de todo o produto interno bruto de Minas Gerais (86,43% da RMBH). Mas esta “pujança econômica” tem facetas, para além do indicador macroeconômico, que se irradiam para muitos municípios. Ribeirão das Neves, por exemplo, está, estatisticamente, muito aquém do “círculo metropolitano de riqueza” metropolitano, mas funciona como cidade-dormitório para que ele possa acontecer. Ele e mais sete municípios são responsáveis por 94% do total do movimento pendular diário dos atuais 33 municípios metropolitanos com destino a Belo Horizonte. Jaboticatubas, mais distante ainda deste índice econômico, passa por processo de intensa especulação imobiliária em face das dinâmicas metropolitanas, com a população de alta renda buscando refúgio para as agruras causadas pelas hegemonias econômicas, concentradoras e desiguais. Usando os exemplos citados, penso que existem ligações intensas – em maior ou menor grau – entre os municípios que compõem a RMBH. Elas nos remetem a histórias, biodiversidade, expansão do capitalismo industrial, imobiliário e de serviços, ao estreitamento das relações cotidianas entre os diversos lugares, às trocas econômicas, geralmente desiguais, e principalmente, a um mito de origem comum. Neste sentido, penso que a complexidade é que peculiariza o metropolitano, abarcando muito mais do que os três ou cinco municípios citados pelos estudos urbanísticos. Nesse sentido, como enfatiza Lencioni (2004, p.85): (...) pensar a metrópole, a região metropolitana ou o entorno metropolitano é pensar uma região. Mesmo examinando apenas a metrópole, o espectro da região aparece, porque ela em si não é mais uma cidade isolada, mas uma cidade-região. Uma cidade-região que não se definiu por um planejamento, mas uma cidade que assim se definiu por um processo, por uma lógica 55 histórica que desafia a compreensão de sua dinâmica e, até mesmo, o planejamento urbano. Para compreender a RMBH, sua “mineiridade” – suposta identidade cultural mineira (ARRUDA, 1999; DULCI, 1999; ROCHA, 2003) e suas “mineirices” – expressões da identidade regional (ARRUDA, 1999), é necessário conhecer as encruzilhadas e os (des)caminhos de Minas Gerais, o que nos leva, invariavelmente, aos fins do século XVII e início do século XVIII. Isto porque quase todos os municípios da região tiveram suas povoações originárias vinculadas a este período e à atividade mineradora, seja pela prática dessa atividade em seu próprio território – caso de Nova Lima e Sabará, seja pela produção de gêneros alimentícios para abastecimento das áreas de mineração – como em Raposos e Ibirité. Mas, precisamos também analisar a virada do século XIX para o século XX, período de constituição da nova capital mineira, polo centralizador da região. Fazendo o primeiro movimento, verificamos que quanto mais complicados e custosos os processos de extração do metal, mais se sedentarizavam os mineradores. Nesta labuta, era fundamental o estabelecimento de arraiais de caráter permanente, que alternavam (ou combinavam) a exploração minerária e a produção agrícola para abastecimento alimentar. Desde cedo o povo aprendeu “que ouro não se come, por isso é preciso fazer o que comer”. Os arredores dos povoados e vilas eram “invadidos” por “fazendas, geralmente estabelecidas nas áreas de colinas arredondadas que separam os maciços azuis das montanhas uns dos outros” (TORRES, 2011, p.173). A presença das fazendas ao redor das povoações “veio trazer uma nova contribuição para a cultura nascida entre o homem e a montanha: a presença muito próxima do campo”, de forma que, do ponto de vista social, os limites entre um e outro, entre as vilas e fazendas, eram absolutamente incertos e sem sentido. Desde cedo o povo mineiro também vivenciou a coexistência entre campo e cidade, entre fazenda e arraial, como podemos acompanhar nas descrições do Quadro 1. Dos 34 municípios hoje pertencentes à região, vinte tiveram origens relacionadas à produção ou comercialização de produtos agropecuários. Dos catorze restantes, sete eram povoados exclusivamente mineradores e os demais tinham dupla atividade, produzindo alimentos, mas também extraindo ouro. Com o fim do ouro, muitos migraram a produção agrícola ou passaram a explorar outros minerais. 56 Quadro 1: Municípios que compõem a Grande Belo Horizonte (RMBH): movimentos originários e base econômica atual. (Continua). Município Belo Horizonte Baldim Betim Brumadinho Caeté Capim Branco Origem Inaugurado em 1897, oito anos após a Proclamação da República, quando, em oposição ao modelo monarquista, se consolidavam novos interesses políticos e econômicos no País. A cidade foi erigida nas terras do antigo Arraial do Curral D' El Rey, com muitas fazendas produzindo viveres para atender as áreas de mineração. O projeto que a motivou acalantava o desejo de produzir uma cidade capaz de polarizar a economia mineira, por meio da industrialização, que fosse a síntese de um novo tempo, regido pelas premissas de modernidade e racionalidade. As décadas de 20, 30 e 40 representaram um dos períodos áureos da industrialização da RMBH, especialmente pela expansão do setor siderúrgico e de mercados e serviços. Hoje a cidade tem o quinto maior PIB entre os municípios brasileiros, gerado pelo comércio, a prestação de serviços e setores de tecnologia de ponta. O município tem o nome em homenagem à Serra do Baldim. Desde seus primórdios, seus habitantes dedicavam-se à agricultura e à criação de gado, em meio à exploração aurífera. Ainda hoje, encontram-se resquícios da busca de ouro nas terras das fazendas Chácara, Patrimônio e Gameleira da Palma. Baldim tem se destacado na produção industrial de doces e aves. Destaca-se na produção de cana de açúcar, milho, manga, tomate, limão, pepino, quiabo e feijão. A história de Betim remonta ao século XVIII, quando o Brasil, ainda colônia de Portugal, vivia o auge do seu ciclo do ouro. A região fazia parte de uma importante rota de bandeirantes provenientes de São Paulo indo para Pitangui e, nesta rota, surge o povoado como resultado das passagens e paradas de tropeiros. Ali principiou uma agricultura vigorosa, que se irradiou pelas áreas circunvizinhas. Um marco para o já município foi a instalação das primeiras indústrias de Betim, na década de 1940. Na década de 1950, o planejamento estadual forjou para Betim duas outras funções econômicas: a industrialização de base, representada pelas siderúrgicas, e a produção de alimentos para o abastecimento local. As brumas frequentes contornando as montanhas do Vale do Rio Paraopeba inspiraram os bandeirantes a nominar o povoado especializado na comercialização e produção agrícola para abastecimento dos núcleos minerários. Muito depois, com a construção da Ferrovia Central do Brasil para transportar o minério de ferro da região, o povoado foi crescendo, sendo hoje um dos principais núcleos industriais da região. No município foi instalado o Centro de Arte Contemporânea Inhotim, um complexo museológico e botânico, com uma das maiores coleções de arte a céu aberto. A cidade de Caeté tem sua origem no início do ciclo do ouro. Em meados do século XVII, surgiram em Minas Gerais os primeiros grupos de aventureiros que vinham do litoral em busca de ouro, prata e pedras preciosas. Caeté, que em tupiguarani significa mato virgem ou mato denso, foi palco da Guerra dos Emboabas, conflito pelo controle da exploração das áreas auríferas recém-descobertas, travado entre paulistas e emboabas (denominação dada aos portugueses, nordestinos e outros migrantes). Caeté tem hoje sua economia baseada na economia de serviços, no setor agropecuário e no turismo. O nome do povoado foi dado pelos tropeiros que vinham e iam para Diamantina e aqui paravam para descansar às margens do Ribeirão da Mata, onde existia uma grande quantidade de capim da cor branca. A fertilidade das terras atraiu novos moradores, desenvolvendo-se o povoado que tem, hoje, como base econômica a agricultura, pecuária e indústria manufatureira e fabril. 57 Quadro 1. Continuação. Município Confins Contagem Esmeraldas Florestal Ibirité Igarapé Itaguara Origem A história de Confins se confunde com a do município vizinho Lagoa Santa. Ambos abrigam lagoas e grutas que foram, a partir de 1835, objetos de pesquisa do renomado paleontólogo Peter Lund, famoso pela teoria sobre as origens da raça humana na América do Sul. A cidade recebeu o nome de Confins devido à sua localização extrema. Ela se encontrava, no período áureo da mineração, nos limites das fazendas instaladas em toda a região. Sua economia tem um elevado peso dos serviços na formação do PIB. A história de Contagem se divide em três grandes momentos. O marco inicial foi a instalação de um posto de fiscalização para fazer a contagem do gado que vinha da região do Rio São Francisco em direção à região das minas (Ouro Preto e Mariana). Quando a capital foi transferida para Belo Horizonte, impulsionou seu crescimento. Em 1941 a instalação da Cidade Industrial moldou as feições que o município assumiu nos anos seguintes. Sua história começa no século XVII, quando o bandeirante Fernão Dias Paes Leme acalentava seu grande sonho: descobrir pedras preciosas. Esmeraldas surgiu às margens do caminho que ligava Pitangui a Sabará, mediante doação de terreno para construção de uma capela. Como no período minerador, sua principal atividade econômica é a pecuária leiteira, hoje acrescida da produção de hortigranjeiros. O capitão-do-mato Salles, caçador de escravos, foi o fundador do povoado, ao aparecer na região por volta de 1845, à procura de escravos fugitivos de fazendas do estado. No século XVII, era intensa na região de Florestal a movimentação das bandeiras paulistas em direção às minas de Pitangui. À procura de metais, os bandeirantes abriam caminhos e fundavam povoados, como Florestal, nome que lhe foi dado por causa das florestas virgens que existiam ao seu redor. Sua atividade econômica predominante era a produção de gêneros alimentícios para abastecimento das minas. O povoamento da área correspondente ao município de Ibirité remonta aos séculos XVII e XVIII, com as primeiras entradas e bandeiras nas áreas centrais da capitania das Minas Gerais. O povoado especializou-se na produção de víveres, surgindo fazendas especializadas no cultivo de gêneros alimentícios e criação de gado. A inauguração da Estrada de Ferro Central do Brasil e da estrada ligando Belo Horizonte ao sul de Minas e a São Paulo promoveu o escoamento de sua produção e o crescimento do município. Sua bacia hidrográfica abaste com água potável parte da região metropolitana. Igarapé surgiu com a Bandeira de Fernão Dias e Borba Gato em 1710. A cidade teve sua ocupação iniciada com o garimpo de ouro no distrito de São Joaquim de Bicas. Por ser um lugar de solo muito fértil e água em abundância, sua economia desde sempre teve um caráter agrícola, destacando-se a criação de gado de corte e leite, peixes, aves, abelhas, flores e hortaliças. Também é polo de atividades industriais. Antes da chegada do bandeirante Lourenço Castanho Tanques, em 1675, ali viviam os índios Cataguás, dizimados com a descoberta do ouro. Com o declínio ouro, Itaguara passou à atividade pecuária. 58 Quadro 1. Continuação. Município Itatiaiuçu Jaboticatubas Juatuba Lagoa Santa Mário Campos Mateus Leme Matozinhos Origem Segundo consta, quem primeiro povoou as imediações de Itatiaiuçu foi Manoel de Borba Gato, antes de 1710, tendo por referência a Serra de mesmo nome. Ali foram descobertos ricos veios de ouro. Em 1750, a mineração atingiu o auge e o movimento dos escravos e faiscadores lançados às águas do Ribeirão Veloso era uma cena impressionante. Atualmente, a base econômica do município são as atividades industriais e a fruticultura. A história de Jaboticatubas tem origem nas sesmarias de terras de um antigo convento. Com o passar do tempo foram surgindo numerosos núcleos de população em torno dele, ali cultivando vários produtos. Hoje o setor agrícola continua dominando o cenário produtivo. Os principais produtos são cana-deaçúcar, milho, banana, laranja, abacaxi, tomate e mandioca e a pecuária. Vem se tornando um município de forte atração turística e de residências de fins de semana. O povoamento de Juatuba iniciou-se em torno da estação ferroviária da antiga Rede Mineira de Viação. Este primeiro registro de habitação da região vincula-se ao ciclo do ouro. No percurso destas bandeiras, em busca de um ponto de referência, os bandeirantes passavam por Juatuba que oferecia todas as condições para hospedagem. O nome é de origem indígena – Ayú á – vem do Juá (fruta colhida dos espinhos) e Tuba, o Sítio dos Juás. Suas principais fontes de renda são a agropecuária, incluindo o cultivo de eucalipto, café e criação de gado; e a produção industrial. Lagoa Santa foi fundada por Felipe Rodrigues em 1713. Estabelecendo-se na região chamada Sabarabussu, ergueu o primeiro engenho para beneficiamento de cana-de-açúcar. Reza a lenda que o desbravador foi acometido por uma doença, causadora de feridas generalizadas. Banhando-se diariamente nas águas de uma lagoa, elas cicatrizaram milagrosamente. Ainda hoje as pessoas vêm em busca de cura de seus males nas águas da lagoa. O município depende da produção agrícola e de algumas atividades industriais. Por volta de 1911 a 1918, iniciou-se a construção da Estrada de Ferro Central do Brasil. Nesta época, aconteceram as primeiras desapropriações para dar passagem ao “progresso”, com a inauguração da estação ferroviária do Jacaré. Em torno dela surge o povoado do Jacaré, depois, Mário Campos. O município especializou-se na produção de hortaliças folhosas para abastecer a capital. Também é considerada cidade-dormitório. O nome do município homenageia o bandeirante paulista que fundou o povoado. Desde o princípio se especializou na produção agropecuária, cultivando principalmente café, arroz, feijão, milho, flores, além da pecuária leiteira. Hoje é o maior fornecedor de hortifrutigranjeiros para a capital mineira. Tem na produção industrial sua principal fonte de renda. O povoado foi fundado pelo bandeirante Dom Rodrigo de Castelo Branco. Após sua morte, seus companheiros ali fixaram residência, apossando-se das terras ao redor de onde se encontravam. Há vestígios comprovantes de que toda a região fora anteriormente habitada por indígenas. A inauguração da Estrada de Ferro Central do Brasil, em 1895, trouxe consigo a primeira fábrica de tecidos de lã em Minas gerais, em 1908, na localidade denominada Periperi. Hoje a atividade econômica divide-se entre indústria mecânica, mineração e alguns poucos estabelecimentos agropecuários tecnificados. 59 Quadro 1. Continuação. Município Nova Lima Nova União Pedro Leopoldo Raposos Ribeirão das Neves Rio Acima Rio Manso Sabará São Joaquim de Bicas Origem Sua história está vinculada à descoberta e extração do ouro. Diversas minas, ainda ativas, ficam no município, incluindo as minas de Morro Velho, Mostardas, e Rio de Peixe. É a cidade com o maior PIB de ouro no Brasil, seno da Global Value Soluções, empresa do grupo IBM, e da Fiat do Brasil. O povoado surgiu como ponto de comércio dos viajantes. A população cresceu e em 24 de janeiro de 1714, foi criada a Vila Nova da Rainha de Caeté, que compreendia em seus limites, entre outros, o distrito da atual Nova União. O município foi emancipado em 1962, desmembrando-se de Caeté. Tem na fruticultura sua base econômica. A história da região de Pedro Leopoldo iniciou muito antes da chegada dos bandeirantes paulistas à região, pois ali se já se criava gado e se produzia feijão, milho e cana. Em 1895, ao ser inaugurada a Estação Ferroviária da Central do Brasil, os produtos do município passaram a ser escoados com maior facilidade. Até meados de 1950, a economia do município baseava-se exclusivamente na agricultura e na pecuária, e uma industrialização têxtil incipiente, substituída posteriormente pela exploração das rochas calcárias. O município de Raposos, um dos primeiros povoados de Minas Gerais, foi fundado em 1690 pelo bandeirante Pedro de Morais Raposo. O povoado foi crescendo com a instalação de engenhos, monjolos para a fabricação da farinha de mandioca e com as plantações de feijão, arroz, milho e cana-de-açúcar, além do ouro. Com o passar dos tempos, o ouro foi ficando mais difícil de ser garimpado. Entra em cena a Mineradora Morro Velho, ali atuando há mais de 150 anos. Teve o seu povoamento iniciado em meados do século XVIII, mas seu crescimento somente tomou impulso após a implantação, em suas terras, da Penitenciária Agrícola de Neves, em 1938. Recentemente, seu crescimento atrelou-se à expansão da capital mineira. É conhecida como cidade-dormitório. Por volta de 1736 surgiu o povoado de Santo Antônio de Rio Acima, às margens do Rio das Velhas. A localidade foi descoberta por bandeirantes que desbravavam o interior das Minas Gerais a procura de ouro. Suas 84 cachoeiras fazem com que a cidade seja a grande caixa d’água da região metropolitana. É a única cidade mineira com 100% do território localizado dentro da Área de Proteção Ambiental Sul. O turismo é importante fonte de renda. Sua origem está relacionada à ocupação inicial de Minas Gerais, com a vinda dos bandeirantes, entre os séculos XVII e XVIII. O nome do município homenageia o rio que o corta no sentido sul/norte. A base econômica do município é agrícola. Denominado inicialmente Arraial de Santo Antônio do Bom Retiro da Roça Grande, foi fundado por Borba Gato. Alguns historiadores destacam que, antes da chegada de Borba Gato, os baianos já ocupavam os sertões de Sabará, com roças e gado. O nome “Sabará” deriva do tupi itá'berab'uçú (pedra grande brilhante), que designava a mítica “serra das esmeraldas” procurada pelos bandeirantes. Atualmente a economia de Sabará baseia-se na indústria siderúrgica e no extrativismo mineral – minério de ferro e ouro, feito pela Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. O turismo é outra importante fonte de renda. Foi seguindo o curso do Rio Paraopeba que chegaram a São Joaquim os bandeirantes Manuel Borba Gato e Francisco Duarte Meireles. As terras próximas ao Rio Paraopeba eram férteis e próprias para a prática agrícola e a criação de gado, atividades que dominam o cenário econômico até hoje. 60 Quadro 1. Continuação Município São José da Lapa Origem A origem do município de São José da Lapa está ligada à história de Vespasiano que o tinha como distrito até a década de noventa. No final dos anos 40, instalaram-se ali a Indústria de Calcinação (ICAL) e a Cia. de Cimento Itaú. O setor produtivo do município baseia-se na extração mineral para a produção de cal e cimento. Santa Luzia Sua história começa em 1692, com o ciclo do ouro. Com o fim de sua exploração, o povoado tornou-se um importante centro comercial e agropecuário, ponto de parada dos tropeiros que vinham negociar e comprar mercadorias. Durante o período de industrialização mineira, foi escolhida para sediar um distrito industrial, base de sua receita econômica. Sarzedo Fundado no século XIX, com a implantação da Estrada de Ferro Central do Brasil. As terras do atual município ficaram à margem do processo de ocupação e urbanização que caracterizou as regiões auríferas de Minas Gerais. Sua economia é agrícola, destacando-se na produção de hortigranjeiros que abastecem parcialmente a cidade e também outras regiões. Taquaraçu de Minas Espraiado no sopé da Serra da Piedade, o município guarda ainda o aspecto colonial das cidades do ciclo do ouro. Muitas foram as fazendas ali instaladas por coronéis, aproveitando a topografia e fertilidade do vale onde está assentado. Desde sua origem, é um município de base agropecuária, produzindo milho, canade-açúcar, arroz e feijão e banana, além da pecuária leiteria e produção de queijo. Vespasiano O primeiro núcleo habitacional do município surgiu por volta de 1745 com a chegada dos primeiros mineradores em busca de riquezas. Ao redor do Arraial, estabeleceram-se várias fazendas agropecuárias: Fazenda Maçaricos, Angicos, Barreiro, Varginha. Nelas se cultivava cana-de-açúcar, milho, feijão e se criava gado. Mais tarde, desenvolveu-se a indústria de cal. A partir de 1970, seu crescimento atrelou-se ao da capital. Fontes: Associação dos municípios da RMBH (GRANBEL, 2014) e Sites das Prefeituras Municipais, 2013-2014. Godoy (2009) defende que a produção e a circulação dos principais recursos minerais à época favoreceram a prática de atividades voltadas para o abastecimento das minas, como a pecuária e a agricultura de subsistência, sendo esta articulação a primeira experiência de integração produtiva na América portuguesa. Ao mesmo tempo em que o produto colonial ouro saía do núcleo minerador para o mercado externo, outros produtos para ali eram direcionados, advindos da produção local ou da articulação com outros pontos da Colônia – caso das tropas de muares do extremo Sul, do gado bovino do Sul e do Nordeste – fazendo de Minas Gerais o principal polo do mercado interno. Neste sentido, a economia do ouro e pedras preciosas possibilitou tanto o povoamento e a colonização quanto o crescimento de uma ocupação produtiva diversificada na RMBH. Apesar da inegável articulação entre produção agrária e produção/ mercantilização do ouro, a percepção hegemônica construiu um território mineiro 61 exclusivamente minerador. Tal fato, ainda que real nas Vilas de Ouro Preto, Sabará, Caeté e Mariana, assim como na Demarcação Diamantina, não o era em outras vilas e freguesias, nas quais os sítios e as fazendas determinavam as pulsações da vida, concentrando a maior parte da população (CARRARA, 2004; 1999). Libby e Paiva (2002, p.3) esclarecem que, no território mineiro, as amarras do sistema colonial não foram capazes de impedir o desenvolvimento de setores produtivos voltados ao mercado interno, de forma que “(...) trabalhando em silêncio e ainda dependente do braço escravo, Minas tornou-se o grande celeiro do mercado sudeste brasileiro”. Mas ser celeiro não parecia suficiente para o olhar historiográfico tradicional (ANTONIL, 1997; VASCONCELLOS, 1968). Segundo Furtado (2009) o par “frustração com a agricultura/encantamento com a mineração” aparece no pensamento econômico brasileiro, principalmente entre aqueles que acreditam na “vocação exportadora” da economia brasileira. Nessa ótica, o extrativismo minerador é visto positivamente, por ter possibilitado o “fausto” da sociedade mineira, uma relativa democratização do acesso à riqueza (aparente) e a expansão da vida urbana. Nestes termos, a perda de dinamismo da exploração aurífera significou, para muitos, a entrada de Minas Gerais na “idade de trevas” (FURTADO, 2009, p.117). Em suas palavras: Não se havendo criado nas regiões mineiras formas permanentes de atividades econômicas – à exceção de alguma agricultura de subsistência –, era natural que, com o declínio da produção de ouro, viesse a rápida e geral decadência. (...) Todo sistema se ia assim atrofiando, perdendo vitalidade, para finalmente desagregar-se numa economia de subsistência (FURTADO, 2009, p. 132). Este desprezo, a meu ver, reflete a lógica mercantil dominante, onde as práticas produtivas não condizentes com a construção de impérios alimentares (PLOEG, 2008) são desconstruídas. A desagregação da economia do ouro promoveu uma reestruturação produtiva nos municípios da atual região metropolitana, consolidando a economia mercantil voltada ao mercado interno28, o que desmistifica a ideia tradicional de absoluta pauperização da zona áureo-diamantífera. Como explicita Martins (2001, p. 58), ao invés de falar em “involução” ou “estagnação” econômica, de se aceitar apressadamente “o modelo proverbial do boom and bust”, é mais coerente pensar em termos de um processo gradual de rearticulação interna e de contínua diversificação 28 Certamente que determinadas localidades mineiras se inseriram na lógica monocultora exportadora, primeiro, o sul mineiro com a cafeicultura, depois as regiões do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba, tradicionalmente vinculadas ao mercado paulista, para o qual exportam, principalmente, carne bovina e grãos. 62 produtiva, em que as lavouras de mantimentos e a pequena criação garantiram níveis de rendimentos que permitiram um avanço da fronteira agrícola (CARRARA, 2000). Minas Gerais vive então um movimento de descentralização econômica e de desconcentração espacial e demográfica, tornando-se um verdadeiro mosaico econômico-político. A pulverização das atividades econômicas propicia o aparecimento de áreas de produção bem demarcadas, assim como a formação de vários grupos oligárquicos, disputando o controle político da capitania, da província e, depois, do Estado. Nesta perspectiva, não se constitui um centro integrador do território mineiro, papel exercido pela região mineradora, pois cada uma das distintas áreas tem seu próprio polo de ligação, as “forças centrífugas” que reforçariam o “dilaceramento da província” (SINGER apud PAULA, M., 1976, p. 77). Fora das Minas, caso da Zona da Mata (vinculada à área cafeicultora e ao porto do Rio de Janeiro); em São Paulo, situação do Sul de Minas e Triângulo Mineiro, extensões da cafeicultura paulista, escoando a produção pelo Porto de Santos. Algumas regiões se mantinham isoladas. Por sua vez, o Centro-Sul do território, mais densamente povoado, se especializa na produção de alimentos e outros itens da “agricultura mercantil de subsistência” (LIBBY, 1988, p. 49). A consolidação do mosaico mineiro (WIRTH, 1985) vem nos dizer que o processo civilizatório mineiro não se restringe ao ouro e à RMBH, como aponta Godoy (2009, p. 92). Seria um “anacronismo histórico considerar Minas Gerais como uma entidade homogênea sob qualquer aspecto que se considere”. Portanto, o palco da vida mineira sustenta muitos cenários, e não apenas “os vales sombrios rodeados por altas montanhas” (TORRES, 1944, p. 26). Sobre isso já escrevera Guimarães Rosa no seu Grande Sertão: Veredas, revelando-nos o sertanejo, seu ambiente natural, falas e costumes. Os chapadões, os vales, os rios que atravessam os Gerais – especialmente o Velho Chico – o território dos jagunços e dos coronéis, o gado, a amplidão dos campos, a aridez do cerrado, enfim, tudo aquilo que se relaciona ao sertão-mundo mineiro – cidades, relevo, fauna, flora e gentes – compõe as Gerais. Isso considerado, concluímos pela coexistência de muitas Minas e de muitos Gerais. As muitas minas e gerais expõem a ausência de um centro integrador que promova o investimento do capital proveniente da produção mineira no próprio estado. É neste contexto que toma impulso um projeto modernizante, promovido pelas elites políticas nacionais, com apoio firme das elites mineiras, dando forma e conteúdo a um processo de industrialização sustentado na exploração intensiva da Natureza – pessoas, 63 minérios, florestas, solos e rios. Neste momento, a RMBH prepara-se para voltar ao centro do palco revivendo, em outra dinâmica, a mística do ouro. O discurso a embalar o projeto tem como pressuposto dar outro rumo à região, industrializando-a para que renasça “(...) dos escombros da economia do ouro” (DINIZ, 1981 apud MONTE-MÓR, 1994, p. 15). 2. A vocação industrial da Região Metropolitana de Belo Horizonte. No início do século XIX, a província mineira e sua região central, há pouco tidas como pujante e dinâmica, passaram a ser vistas pela elite política, agrária, industrial e intelectual do estado como terra da tradição e do atraso. Segundo Dulci (1999), aliada às lembranças dos tempos áureos da mineração, é diante da disparidade da economia mineira em relação à paulista que se diagnostica essa posição de inferioridade, trazendo para agenda política estadual a discussão em torno da “recuperação econômica” (PAULA, 2006). Os motivos elencados para tal diferenciação entre Minas Gerais e São Paulo incluem as relações de produção não assalariadas (em Minas, o que travava a formação de um mercado consumidor), baixa entrada de imigrantes e o tipo de economia ensejada (grosso modo, exportadora, no caso paulista e voltada ao mercado interno, em Minas), impedindo o fortalecimento do capital. Em Minas Gerais não havia grandes usinas, mas, humilhação maior na comparação com São Paulo, não havia indústrias nem tampouco grandes centros urbano-industriais. Neste contexto, a expressão indústria era usada pelos mineiros de forma estrita, qual seja, no sentido da existência de formas de produção fabril e fordista, desconsiderando, pois, a produção artesanal doméstica, corporativa e manufatureira como atividades industriais. Mesmo com a multiplicidade de interesses econômicos e políticos envolvidos, pactuou-se que o Estado deveria assumir o protagonismo para promover a modernização de Minas Gerais, o que não chega a surpreender, considerando a presença de longo prazo de um aparato estatal forte, moldado no controle e fiscalização do espaço minerador. Usando como argumentos a “prudência”, “conciliação”, “equilíbrio” e “unidade de Minas” (BOMENY, 1994, p.16) – qualidades postas ao mito da mineiridade, já se esboçava como o setor público deveria agir no processo. Em um cenário de disputas político-econômicas entre as elites mineiras, onde reverberam tendências separatistas, ganha força a ideia da constituição de uma nova 64 capital, afinada com os novos tempos republicanos, e, principalmente, calcada em uma perspectiva industrializante (PARREIRAS, 2006). Planeja-se então erigir uma nova capital para que assuma a centralidade da economia e da política, unindo Minas Gerais para, enfim, recolocar o estado na “trilha do progresso”. Porém, o sentimento que vai aflorando entre os mineiros não era apenas ter uma nova capital, mas sim romper a “dependência neocolonial” mineira (OLIVEIRA, 1995; WIRTH, 1982), a qual lhe reservava o papel de provedor de matérias-primas e de produtos agropecuários para as regiões de industrialização mais dinâmica, reproduzindo localmente as relações centro-periferia de escala mundial. É com este sentimento que se planeja e constrói Belo Horizonte, como veremos no capítulo III. Em termos concretos, este foi o primeiro esforço expressivo para integrar as diversas regiões mineiras. As primeiras indústrias que ali se estabelecem são diversas pequenas empresas, que iam da produção de cerâmica às bebidas e cartões postais, do processamento de fumos à fabricação de balas e bombons. Em linhas gerais, tinham três características: produção voltada para o mercado local; matérias primas provenientes do setor primário, e baixo grau de mecanização, estando, portanto mais próximas da manufatura do que propriamente da indústria desejada pelas elites mineiras. Algumas propagandas publicadas na Revista Agrícola, Industrial e Comercial Mineira, em 1924, Revista Comercial de Minas Gerais, em 1939, e no Anuário Comercial e Industrial de Minas Gerais, em 1946, ilustram o perfil daquelas empresas (Figura 5). O desejo de erigir um centro industrial agregador e promotor do desenvolvimento demoraria a se concretizar. Isto porque faltava infraestrutura viária na região; faltava energia elétrica; faltavam moradias para os que construíram a nova cidade; faltava espaço; faltava mão de obra qualificada, faltava a modernidade ensejada pela presença das indústrias, enfim, muita coisa ainda faltava, apesar de todo o esforço estatal para organizar um mundo do trabalho no sentido industrial. E, especialmente, “(...) faltavam operários e máquina em condições suficientes para produzirem aos moradores destas terras a condição para, enfim, reconhecerem-se modernos” (PAULA, 1994, p. 34). 65 Figura 5: Propagandas de algumas indústrias instaladas em Belo Horizonte entre 1920, 1930 e 1940. Fonte: (PAULA; MONTE-MÓR, 2004). Somente em 1920, com a instalação da Companhia Siderúrgica Belgo Mineira, o sonho mineiro de ser uma capital industrial iria avançar. Porém, por muito pouco tempo. Já na década de 1940 ocorre o movimento de transferência de indústrias da área urbana de Belo Horizonte para os municípios vizinhos, em busca de espaços adequados para a expansão de suas instalações. A criação dos polos industriais no entorno de Belo Horizonte torna-se imprescindível para superar os limites da pequena área periférica da cidade destinada à industrialização, contradição no mínimo desconcertante para uma cidade criada com o objetivo de ser um portentoso centro industrial (PARREIRAS, 2006). Mas, é pertinente dizer que a concretização de tais polos deu fôlego ao projeto industrializante mineiro, fazendo finalmente a RMBH inserir-se na produção industrial ao estilo fordista, com um parque industrial justaposto à capital administrativa. Esta onda de industrialização concentra-se no setor de bens intermediários (principalmente aços e cimento), que se tornam os mais importantes da produção industrial do estado, em substituição aos tradicionais têxteis e agroindustriais. Para facilitar o acesso àqueles polos industriais, são construídos grandes eixos viários ligando a capital aos municípios vizinhos. Os investimentos na indústria 66 estimularam o mercado imobiliário e provocaram um processo especulativo de parcelamento de terras nas áreas a oeste, afetando os municípios de Betim e Contagem, consolidando-os, juntamente com Belo Horizonte, como o eixo de industrialização por excelência. Todos estes elementos foram o fermento para um avassalador processo de metropolização, acompanhado pela “profusão de novos loteamentos, alguns conjuntos habitacionais e desapropriações para implantação de novos equipamentos (por exemplo, Cidade Universitária, Escola Técnica Federal)” (MONTE-MÓR, 1994, p. 17). Sintomaticamente, entre 1950 e 1960, a população da RMBH cresce ao ritmo de 6% ao ano (MENDONÇA; ANDRADE, 2009). Sucessivas intervenções da máquina estatal, em âmbito estadual e federal, dão materialidade a outros “sonhos” alinhados à mesma lógica, qual seja, a industrialização como caminho para reafirmar a centralidade e a pujança de Minas Gerais (e do Brasil). O surgimento e a difusão das ideias industrialistas evoluem paralelamente à propagação de princípios nacionalistas, dando margem às frases que exortam a industrialização como caminho para o “engrandecimento do país” e “fortalecimento da nação”. É neste contexto ufanista que saem das pranchetas os esboços de uma cidade industrial, na localidade de Ferrugem, município de Betim, e do Parque Siderúrgico Nacional, em Contagem; inaugurado em 1946. Em 1950, um segundo polo industrial é instalado em Santa Luzia. Na sequência, grandes empresas instalam-se em Betim, Contagem e Belo Horizonte, aproveitando-se dos incentivos estatais e da proximidade dos centros de mineração vis-à-vis a ascensão do ferro e aço como importante matéria-prima no cenário econômico mundial. A produção mineira de bens intermediários ligados ao complexo mínero-siderúrgico caminha a passos largos. Sua consolidação vai naturalizar, no plano ideológico, a metafísica da “vocação mínero-siderúgica”, ou, de forma mais abrangente, a “vocação industrial” dessa região (CARNEIRO, 2003). Como estratégia de ação deste movimento, são dados vultosos incentivos, proteções tarifárias e subsídios a indústrias específicas – especialmente àquelas ligadas à metalurgia e extração mineral. É importante esclarecer que estas iniciativas fazem parte da política federal de incentivo à industrialização, centrada na substituição de indústrias básicas por grandes siderúrgicas. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foi a principal instituição financeira a financiar os investimentos industriais. Na Tabela 1 podemos acompanhar o volume investimentos despendidos pelo banco entre 1952-1974 para a siderurgia. 67 Tabela 1: Siderurgia: desembolsos efetuados pelo Sistema BNDES. 1952-1989. Anos 1952-57 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1952-1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1974-1989 Total BNDES (U$$ milhões) 128 39 51 51 32 113 87 59 114 150 164 136 252 313 429 530 874 3.622 1.638 2.734 3.020 3.456 4.052 4.163 3.329 3.102 4.004 3.653 3.277 3.006 3.500 4.267 4.129 3.156 54.486 BNDES Siderurgia (U$$ milhões) 6 14 4 38 7 69 74 44 83 63 73 20 38 33 74 74 165 878 375 250 222 278 403 370 780 628 1.022 797 323 216 246 164 218 58 6.350 Investimentos no Setor (U$$ milhões) 15 31 8 76 13 107 101 57 97 91 84 28 59 60 165 250 412 1.652 929 1.252 1.243 1.607 2.269 3.090 2.713 2.882 2.224 1.521 509 474 548 365 524 601 22.751 % BNDES Setor 40,0 45,2 50,0 50,0 54,0 64,5 73,3 77,2 85,6 80,2 75,0 71,4 64,4 55,0 45,0 29,6 40,0 53,1 26,9 30,0 17,9 17,3 17,8 12,0 28,7 21,8 45,9 52,4 63,5 45,6 45,0 44,9 41,6 9,7 27,9 Fonte: Andrade & Cunha (s.d., n.p.). Entre 1958 e 1967, quase 60% dos recursos da instituição foram destinados ao setor, inclusive para ampliação do parque industrial da Belgo-Mineira, já que à época não havia restrição legal para o financiamento a empresas estrangeiras (como também hoje não há). Neste proceder, “o Estado agiu como verdadeira alavanca de acumulação capitalista, transferindo recursos públicos para empresas privadas” (DINIZ, 1981, p. 79), porque ainda que tenha entrado capital estrangeiro para induzir a industrialização em Minas Gerais, de fato foi o Estado que, efetivamente, capitaneou o processo, não só 68 produzindo infraestrutura, mas também viabilizando todo tipo de recurso ao seu alcance (GOMES, 2012). Além dos recursos federais, as facilidades oferecidas às indústrias siderúrgicas contemplaram ainda redução ou isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) ou ainda a conversão do imposto a ser recolhido em crédito e financiamento a taxas preferenciais da parte do governo estadual. Outro tipo de suporte, e não menos importante, foi a ampliação, melhoria e construção de infraestrutura necessária ao bom funcionamento das plantas industriais. A gestão do prefeito e depois governador Juscelino Kubitscheck foi emblemática neste sentido, tentando sanar as deficiências energéticas (construção de quatro usinas) e os gargalos com os transportes (3.725 km de estradas construídas entre 1951-1955). Em um dos seus discursos ele aponta: A industrialização é a diretriz para o desenvolvimento econômico de um Estado populoso, com um grande mercado interno potencial e dotado de adequados recursos naturais. Além de representar, em si, um estágio evoluído de produtividade econômica (DULCI, 1999, p. 103). Na década de 1970 o impulso industrializante intensifica-se, materializando-se outro ciclo, agora denominado de “nova industrialização mineira”. Novamente o aparato estatal concede incentivos tributários para as plataformas industriais que se instalassem na RMBH, reduzindo em até 32% do ICMS. Um grande número de empresas de capital estrangeiro desembarca na porção central do estado, como navios piratas farejando as riquezas do paraíso, só que na condição de convidados. Grandes corporações dos ramos siderúrgico e metalúrgico atendem aos apelos, instalando-se na RMBH, atraídas pelos lobbies das elites mineiras, destacando os “baixíssimos preços” das terras e a inexistência de restrições e controles públicos sobre os impactos ecológicos das atividades desenvolvidas. Acompanhando o ciclo de expansão do complexo industrial “fordista” mundial e nacional, elas impulsionarão a extração de, literalmente, montanhas de minério de ferro (CARNEIRO, 2003). Na atualidade, alavancada por estes surtos sucessivos de modernização, em consonância com uma dinâmica global que refunda a divisão internacional do trabalho no interior do sistema mundial de produção de mercadorias, a metafísica da “vocação” de Minas vai se consolidando e, por extensão, da RMBH. Devorando milhão por milhão, como apontado na Tabela 2, para o período 1990-1999. 69 Os valores abaixo são bastante modestos diante dos 109,7 bilhões a serem empregados entre 2008 e 2014, segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Sede). . Tabela 2: Investimentos na mineração em Minas Gerais. 1990-1999. Ano 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 1990-1999 Investimentos (milhões de reais) 170 109 416 495 362 312 183 419 488 352 3.306 Fonte: BDMG (2002, p. 44). Estes investimentos têm aumentado exponencialmente em um cenário de demanda crescente por minério de ferro, impulsionado pelo forte crescimento chinês. Em função disso, inclusive, as siderúrgicas instaladas na região metropolitana passaram a investir fortemente, deixando de apenas produzir apenas aço para fornecer também minério de ferro, matéria-prima de seu principal produto. Siderúrgica, industrial e minerária. Parece que a vocação está consolidada, como se vê nos depoimentos e materiais diversos a este respeito: Ao realizar investimentos de R$ 5,8 bilhões em um momento tão desafiador para a indústria do aço, reforçamos nossa convicção no desenvolvimento do Brasil e de Minas Gerais. A opção por realizar o investimento em Minas reitera a vocação do estado para a mineração e produção de aço (depoimento de um executivo da Gerdau, anunciando a parceria com governo mineiro, em 28/11/2013); A Região Metropolitana de Belo Horizonte achou o caminho para o desenvolvimento, descobriu sua vocação, quando o Estado trouxe para cá as grandes siderúrgicas. Ele [o Estado] aproveitou os minérios daqui para produzir um progresso real (entrevista com dirigente de Contagem, oficina para elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da RMBH, 2010); Somos um grande Estado. Um estado com a força do ferro e do aço (Slogan da Edição 58 da Revista Siderurgia Brasil, produzida com dados da Assessoria de Comunicação da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico do Governo de Minas Gerais); Minas Gerais sempre foi um estado conhecido pelos setores de mineração, siderurgia e automotivo, que criaram uma vocação industrial para a região, (entrevista com gerente de empresa de recrutamento de pessoal, escritório de 70 Belo Horizonte, oficina para elaboração Desenvolvimento Integrado da RMBH, 2010); do Plano Diretor de Renova Betim a sua força/com seu distrito industrial/revela grandeza/motivo de orgulho nacional (trecho do hino a Betim); sua Com muito prazer participamos aqui dessa oportunidade que Contagem está se tornando cidade-irmã de Jiaxing, duas cidades importantes para o segmento industrial. O acordo vai trazer desenvolvimento maior no Brasil, com a participação dos chineses naquilo que é importante para nós: a criação de novos empregos e de novas empresas (discurso do prefeito de Contagem em visita à China, em 25/10/2013, reproduzido pela CRI - China Radio International); A nossa região nasceu para ser o coração industrial do país. Temos água, temos montanhas, minérios. JK já tinha previsto que o futuro do Brasil estaria aqui em Minas (entrevista com Secretário de Desenvolvimento Econômico Santa Luzia, Oficina do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da RMBH, 2010). Vespasiano desponta hoje como um dos municípios mais promissores da RMBH, possuindo e oferecendo as condições mais objetivas para o desenvolvimento da região como um todo, e, a nível municipal, reforça e amplia sua vocação industrial (site da Prefeitura Municipal de Vespasiano, 2013). A cidade mantém, ao mesmo tempo, o clima pacato e interiorano e a vocação industrial de uma grande metrópole (entrevista com municipal de Betim, oficina para elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da RMBH, 2010). O que dizer então da ideia-vetor que qualifica a RMBH como opulenta e inesgotável em recursos minerais? Ao olhar montanhas e montanhas deles quase somos levados a concordar. Sim, são visíveis. Estão em toda parte. Mas será que são intermináveis? O desaparecimento do Pico do Cauê (Figura 6) e a degradação da Serra do Curral (Figura 7) parecem provar que não. Figura 6: Pico do Cauê, em 1942 e em 2007, à direita, o que sobrou dele. Fotos: 1942, Companhia Vale do Rio Doce: 50 anos de História e 2007, Cristiane Magalhães. 71 Figura 7: Mina de Águas Claras, tendo ao fundo a Serra do Curral e a cidade de Belo Horizonte. Desativada, suas bordas estão em estágio avançado de desmoronamento (detalhes), e sua cratera de 240 m de profundidade alcançou o lençol freático. Foto de Fernando Rabelo, 02/2014. De maneira resumida, o perfil industrial da RMBH tem como base o complexo mínero-metal-mecânico exportador, além de uma gama de setores principalmente voltados para a demanda metropolitana, como o setor de alimentos e bebidas (Tabela 3). A indústria extrativa mineral concentra-se na Região Central. Mesmo que, aparentemente, ela pareça ser pouco importante na geração de riquezas, os recursos minerais dão suporte à expressiva parcela da indústria de transformação, ainda centrada na produção de bens intermediários. A participação da RMBH é de 21,40%, aí se destacando o município de Nova Lima, cuja participação é de quase 15%. Na metalurgia, a participação da RMBH é de 23,2%, concentrada em Contagem (8,5%) e Betim (6,2%). Ainda é da RMBH a mais expressiva concentração da mineração nãometálica (47,5%), com destaque para Contagem (15,5%), Vespasiano (12,1%) e Betim (4,6%) e São José da Lapa (4,3%). Também a indústria química (56,3%) concentra-se na região e a de Transportes (80%). As atividades ligadas à mineração e à metalurgia exportam não somente para fora da metrópole, mas também para mercados internacionais. Existe também um setor mecânico, que atende principalmente ao mercado consumidor brasileiro (de automóveis, principalmente), mas vem apresentando por parte de algumas indústrias uma tendência à exportação de peças, componentes e bens de capital do setor automotivo para outros países. 72 Tabela 3: Valor da Transformação Industrial por classe/gênero de indústria. Minas Gerais e Brasil. Classes/Gêneros Minas Gerais Brasil Minas/Brasil Indústria geral Extrativa mineral Indústria de transformação Metalurgia Produtos alimentares Material de transporte Química Minerais não-metálicos Têxtil Material elétrico/comunicações Mecânica Papel e papelão Vestuário/calçados/artefatos de tecidos Mobiliário Perfumaria/sabão/velas Bebidas Produtos de matéria plástica Editorial/gráfica Fumo Farmacêutica Couros e peles Borracha Madeira Diversas Total 100 12,78 87,22 25,73 14,07 10,98 0,12 6,53 5,22 4,25 3,07 3,53 2,25 1,84 1,75 1,78 1,19 1,79 1,49 1,09 0,28 0,52 0,45 12,06 100 100 5,63 94,37 10,21 14,28 7,95 0,16 3,81 3,42 8,02 5,04 4,27 3,66 2,13 1,85 3,14 2,84 4,43 1,08 4,68 0,42 1,35 1,49 15,77 100 9,62 21,62 8,89 22.42 8.76 12,28 6,76 15,24 13,57 4,72 5,41 7,34 5,47 7,68 8,42 5,04 3,74 3,59 12,31 2,07 6,04 3,39 2,70 8,90 Fonte: IBGE. Pesquisa Industrial anual, 1999. Mas todas as transformações ensejadas pelas atividades industriais na RMBH e todos os recursos para ela carreados não criaram um espaço mais igualitário. Embora exista uma mitologia a respeito da identidade e unidade cultural dos mineiros, a verdade é que a disparidade cultural, econômica e social entre as regiões e dentro das regiões que compõem o estado sempre foi muito acentuada. Conforme Beato (1998), tomando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) adotado pela ONU, chega-se à conclusão que existem regiões em Minas com fronteiras muito nítidas. À prosperidade e desenvolvimento humano de regiões como a Central e o Triângulo Mineiro contrapõemse alguns índices quase africanos no Vale do Jequitinhonha, Mucuri ou na Região Norte. Os índices de desigualdade são tão maiores quanto mais pobres as regiões. A maioria da população do Norte de Minas, Jequitinhonha, Mucuri, Rio Doce, Vertente do Caparaó e Vale do Rio Piranga, quase a metade do território do Estado de Minas, ainda está abaixo da linha de pobreza. Usando os mesmos critérios n território da RMBH chegaremos à conclusão similar. Belo Horizonte concentra 64,70% da riqueza da região. 73 À exceção de Betim e Contagem, que contribuem com 11,30% e 10,40%, respectivamente, os demais municípios participam, juntos, com irrisórios 13,60%. Parece que ouro, os minérios e as pedras preciosas só brilham para uma parcela dos municípios e da população da RMBH. Pesquisa do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (CEDEPLAR/UFMG, 2004) explicita que a RMBH, mesmo não sendo tão pobre quanto outras regiões metropolitanas, é uma das mais desiguais do Brasil, refletindo anos e anos de políticas econômicas de resultados limitados e de perfil concentrador e elitista. Com base em dados do Censo demográfico de 2000, a instituição produziu a Tabela 4, comparando indicadores de pobreza29 e desigualdade30 entre regiões metropolitanas brasileiras. Tabela 4: Indicadores de pobreza e desigualdade de regiões metropolitanas. 2000. Região Metropolitana Belo Horizonte IPC GINI RD 90/10 RD GINI RT 90/10 RT 0,1494 0,6307 16,54 0,5934 9,93 Curitiba 0,1321 0,6080 14,86 0,5796 11,11 Porto Alegre 0,1479 0,5992 15,00 0,5692 11,25 Rio de Janeiro 0,1646 0,6295 17,29 0,5781 11,92 Salvador 0,1868 0,6628 18,57 0,6250 11,67 São Paulo 0,1309 0,6163 15,51 0,5694 10,15 . Fonte: Cedeplar/UFMG (2004, p.104). Analisando a tabela, percebemos que o indicador de pobreza não é perfeitamente correlacionado com os indicadores de desigualdade. A Metropolitana de Porto Alegre ocupa a posição de quarta região mais pobre, mas, de acordo com o índice de Gini31, é a região metropolitana com menor desigualdade, tanto para rendimento 29 O indicador de pobreza calculado (IPC) é construído sobre variáveis que revelam atributos pessoais, de rendimento e infraestrutura dos domicílios. Ele pode variar de zero a um, aumentando com o grau de pobreza relativa da população. Ou seja, quanto maior a pobreza relativa da população, mais próximo de um é o indicador e vice-versa. 30 O trabalho usa duas medidas de desigualdade de renda: o Índice de Gini e a Razão 90/10. Neste trabalho, o autor calcula o Índice de Gini e a Razão 90/10 para dois tipos de renda: renda domiciliar per capita (RD) e rendimento de todos os trabalhos (RT). A variável “renda domiciliar per capita” é definida como a divisão da renda total do domicílio pelo número de moradores do domicílio. Ver CEDEPLAR/UFMG, 2004, pp.96-126. 31 Segundo o IPEA (2004), o Índice de Gini, criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero a um (alguns 74 domiciliar per capita quanto para o rendimento do trabalho (terceira e quinta coluna da tabela). O cálculo do índice de Gini mostra que a metropolitana de Belo Horizonte é relativamente mais desigual do que pobre. No ordenamento das regiões mais desiguais para as menos desiguais, a região metropolitana de Belo Horizonte ocupa a segunda posição. Ou seja, de acordo com o índice de Gini, a região metropolitana de Belo Horizonte só é menos desigual que a de Salvador. O valor encontrado do referido índice para o rendimento domiciliar e para o rendimento do trabalho são 0,6307 e 0,5934, respectivamente. Com relação à razão 90/10 do rendimento domiciliar per capita e do rendimento do trabalho, percebe-se que a região metropolitana de Belo Horizonte possui uma posição a menos no ordenamento, sendo ultrapassada pelo Rio de Janeiro. Sua renda domiciliar do nono decil é 16,54 vezes a renda domiciliar do primeiro decil, enquanto a do Rio de Janeiro é 17,29 vezes. Com base nos dados apresentados, podemos concluir que a metropolitana de Belo Horizonte apresenta posição relativamente ruim em comparação às outras regiões metropolitanas analisadas. Apesar de a renda per capita na região ser uma das mais elevadas, além de estar entre as mais pobres, ela está entre as mais desiguais, com fortíssimos contrastes, opondo áreas e pontos de intenso “desenvolvimento” industrial com outras, verdadeiros enclaves da miséria. Ao comparar os índices de pobreza nos municípios da RMBH, o Cedeplar (2004) representou espacialmente os resultados por meio da Figura 8, abaixo. Na figura percebe-se que a grande maioria dos municípios – catorze – está na faixa de 0,13 a 0,16, posição intermédia de pobreza, quais sejam, Contagem, São José da Lapa, Brumadinho, Capim Branco, Raposos, Betim, Matozinhos, Nova Lima, Ibirité, Nova União, Pedro Leopoldo, Sarzedo, Caeté e Confins. As áreas mais escuras correspondem aos municípios mais pobres, Esmeraldas e Mateus Leme, na faixa de 0,25 a 0,29. Os menos pobres da região, faixa de 0,1 a 0,13, são Florestal, Itaguara, Belo Horizonte e Rio Acima. Porém, Belo Horizonte, que aparece entre os menos pobres, está entre os mais desiguais da região metropolitana. Nas demais faixas estão: Mário Campos, Santa Luzia, Lagoa Santa, Sabará, Vespasiano e Baldim (entre 0,16 e 0,19); Jaboticatubas, Rio Manso, Taquaraçu de Minas, Ribeirão das Neves, São Joaquim de Bicas e Igarapé apresentam de zero a cem). O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda. O valor um (ou cem) está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa detém toda a riqueza. Na prática, o Índice de Gini costuma comparar os 20% mais pobres com os 20% mais ricos. 75 (entre 0,19 e 0,22); e Juatuba (entre 0,22 e 0,25). Podemos observar que nove dos 33 municípios ocupam as três faixas mais pobres da distribuição de pobreza. Figura 8: Indicador de pobreza por município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, 2000. Fonte: Cedeplar/UFMG (2004, p. 104). Finalizando, ainda com relação à metrópole mineira, o estudo do Cedeplar/UFMG (2004) mostra ainda que, no ano 2000, existiam 107.327 domicílios em favelas na RMBH, 62,03% em Belo Horizonte. Estes valores, somados aos domicílios com a mesma conformação em Betim, Contagem, atingem mais de 88% do total da região, fazendo-nos exclamar: pobre região rica. De muitas formas, vários estudos apontam que as desigualdades na RMBH recrudesceram à medida que os fenômenos de urbanização e metropolização nela avançaram. Vejamos como e porque isso aconteceu. 76 3. A urbanização e a metropolização na RMBH. O início da industrialização como atividade econômica e como forma por meio da qual a sociedade se apropriava da natureza influenciou decisivamente a produção social dos espaços na Grande Belo Horizonte. Certamente que a urbanização como processo não está exclusivamente associada ao ciclo industrial, mas, não obstante isso, ele foi decisivo na mudança drástica e rápida do perfil da urbanização ocorrida na RMBH. Por isso, o crescimento urbano que se deu via desenvolvimento do capitalismo industrial não deve ser tomada apenas pelo crescimento do número de pessoas vivendo nas cidades da região, mas também pelos processos qualitativos que culminaram com a mudança do papel desempenhado pelas cidades. Lembremos que, como já dito, no período colonial havia uma estreita relação entre vilas/povoados/arraiais e fazendas/roças/campos em toda a região metropolitana. Contudo, as iniciativas voltadas a promover a industrialização da economia mineira e brasileira, os investimentos em infraestrutura rodoviária e a expansão dos meios de comunicação de massas fizeram com que ali acontecesse um surto urbanizador de grande proporção (Tabela 5). Milhares de pessoas migraram para a RMBH, especialmente para a capital Belo Horizonte e para as urbes industrializadas sob sua órbita, principalmente, Contagem, Betim e Santa Luzia. Tabela 5: Evolução da população da RMBH. Anos BH RRMBH (1) RMBH 1940 211.377 157.407 368.784 1950 352.724 170.195 522.919 1960 693.328 237.955 931.283 1970 1.235.030 484.460 1.719.490 1980 1.780.855 895.537 2.676.392 1990 2.020.161 1.494.840 3.515.001 2000 2.238.526 2.108.158 4.346.684 2010 2.392.541 2.969.948 5.362.489 Fonte: Censos demográficos 1940 a 2000 e Cedeplar (2003). (1) Municípios metropolitanos, menos Belo Horizonte. Entre os anos 1940 e 1970, a região vivenciou uma nova corrida do ouro, com intenso fluxo populacional entre municípios. Em 1940, a população residente em Belo Horizonte era de 212 mil habitantes, aumentando, em 2000, para mais de dois milhões. Entre as décadas de 1950 a 1970, houve uma intensificação dos fluxos migratórios 77 campo-cidade e a conurbação em torno da capital. Com uma dinâmica concentradora em determinadas áreas, a urbanização contribuiu, de um lado, para a emergência de Belo Horizonte como metrópole e de outro para o espraiamento do fenômeno para os municípios vizinhos, metropolizando a segregação social dos mais pobres (BRITO; SOUZA, 2005). Como aponta Lencioni (2006, p.47), o sentido incorporado pelo termo metropolização é o de processo, de ação continuada, “um processo relativo ao espaço”. Neste sentido, a metropolização na RMBH vai engolfando cidades e pessoas, disseminando-se de Belo Horizonte para Contagem, Betim, Ibirité, Vespasiano e Ribeirão das Neves. Vários estudos apontam que a maior parte dos novos “mineradores” que aportou na RMBH foi o próprio povo mineiro (BRITO; SOUZA, 2005; CAETANO; RIGOTTI, 2008), 81% deles vindos das cidades do interior e das áreas rurais. Desses, 79% desembarcaram na capital e 89% nas demais cidades da RMBH. Lançavam-se assim no jogo da sobrevivência. A origem da maioria dos migrantes parece despertar um sentimento de inferioridade expresso na reclamação da falta de “cosmopolitismo” da região, principalmente da capital, uma metrópole cujo dinamismo provém, primordialmente, de sua influência no Estado de Minas Gerais. Um artigo publicado em jornal da cidade escancara essa emoção: Belo Horizonte é, até os dias de hoje, uma metrópole essencialmente mineira. Dados de 2002 indicam que apenas 5,7% dos que migram para a cidade são provenientes de localidades de fora do Estado de Minas Gerais. Para alguns, esta é a razão da capital mineira conservar ares ainda provincianos e encontrar dificuldades para potencializar seu desejado cosmopolitismo (NA ENCRUZILHADA. Estado de Minas. Belo Horizonte, 28 fev. 2002. Caderno Gerais, p. 25). Parece ser este mesmo sentimento que Dantas (2010) diz ter constatado em sua pesquisa de doutorado, falando da rejeição dos mineiros da região das Minas históricas à costumeira representação do mineiro como um sujeito de aparência simples, com hábitos rústicos, vinculado ao campo e que não fala português formal, como retratado na charge abaixo (Figura 9). Para a autora, sentindo-se ligado ao mundo urbano e aos valores da civilização, o mineiro que nasce e reside na capital enxerga nos mineiros das Gerais – os rurais – o único e legítimo representante dessa cultura mineira, “arcaicos no vestir, falar e mesmo no jeito de se comportar”. Mas, complementa Dantas, nem o mineiro das Gerais e tampouco os moradores das áreas rurais que entrevistou aceitam 78 esta representação. Apesar dessas observações, não se pode negar o caráter preconceituoso destas representações, retomando a ideia do morador do rural como caipira, matuto, o Jeca Tatu de Lobato. Quem entender esta mensagem é um verdadeiro mineiro! Causo mineiro Sapassado, era sessetembro Taveu na cuzinha tomandu uma pincumel E cuzinhandu unkidicarne cumastumati pra fazer Uma macarronada cum galinhassada. Quascai di susto Quanduvi um barui vindi dentuforno parecenum tidiguerra, A receita mandôpô midipipoca Denda galinha prassá. O forno isquentô, o miistorô e o fiofó da galinhispludiu! Nossinhora! Fiquei branco quinein um lidileite.Foi um treim Doidimais. Quascai dendapia. Fiquei sensabê doncovim, noncotô, proncovô. Ópcevê quilocura. Grazadeus ninguem semaxucô. Figura 9: Representação cultural do mineiro mais recorrente (DANTAS, 2010, p.77). O auge do processo de industrialização na RMBH é também o ápice da modernização da agropecuária mineira, fenômeno que suscitou o abandono massivo do campo. Similarmente ao acontecido em outras localidades do país, também em Minas Gerais o campo anoiteceu e acordou na cidade, expressão usada por Furtado (2009) para falar da rapidez e intensidade com que se deu o processo de urbanização, estreitamente vinculado à modernização das áreas rurais. Induzida pelo Estado (oferta de crédito agrícola, estímulo à adoção de novas tecnologias, subsídios à compra de insumos, máquinas e implementos agrícolas etc.), a modernização agrícola32 transformou a base técnica da agropecuária mineira, respondendo pela introdução de relações capitalistas de produção no campo. Com a modernização, Minas Gerais incorporou novas áreas de cultivo (Triângulo Mineiro, Alto Parnaíba e depois o Noroeste de Minas); determinadas categorias de produtos foram 32 impulsionadas, inserindo-se em modernas redes internacionais de Para aprofundamento ver Martine (1990), Graziano da Silva (1987) e Delgado (1985). 79 comercialização; e, a mais impactante consequência, um sem-número de trabalhadores e pequenos proprietários do campo foram expulsos ou perderam suas terras. Esse êxodo pode ser visualizado nos números expostos na Tabela 6, abaixo. Tabela 6: Evolução da população rural e urbana em Minas Gerais, 1950-2000. Censos 1950 1960 1970 1980 1991 2000 População rural 5.459.273 5.995.460 5.427.115 4.398.419 3.956.259 3.219.666 % 70,15 60,20 47,20 32,90 25,10 18,00 População urbana 2.322.915 3.964.580 6.060.300 8.982.134 11.786.893 14.671.828 % 29,85 39,80 52,80 67,10 74,90 82,00 População Total 7.782.188 9.960.040 11.487.415 13.380.553 15.743.152 17.891.494 Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 1950, 1960 e FJP/IBGE 1970 a 2000. Até 1960, Minas Gerais apresentava uma população rural maior que a urbana, com uma concentração em torno de 60% (cerca de 1/7 da população rural brasileira). Já na década de 70, a população urbana passa a ser maior que a população rural, em quase 6%. Esta situação vai se agravando de tal forma que, em 2000, Minas Gerais passa a ter 14.671.828 habitantes no urbano e 3.219.666 no rural, em um cenário de grande discrepância. De acordo com Portes e Santos (2012), as limitadas condições de sobrevivência no campo, especialmente em termos de trabalho e da produção, foram determinantes para a desvalorização e o empobrecimento da sua população, expropriação de seus direitos e, consequentemente, para sua saída dos espaços rurais, gerando um contingente enorme de expropriados do campo. Segundo Mazzetto (2008), as consequências mais deletérias deste processo são a periferização/favelização de uma parcela expressiva da população, a criação de novas identidades (já não mais rurais, nem tipicamente urbanas), a emergência de movimentos sociais e a massificação da precarização de uma vida urbana incompleta. Na Grande Belo Horizonte, a intensidade destas consequências vai sedimentando a ideia da inexistência ou desaparecimento do rural e de suas populações neste contexto de intensa metropolização. Vejamos abaixo como esta visão janusiana hegemônica está sendo contestada. 80 4. O Rural na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Conforme adverte Bicalho (1988), o estudo do rural metropolitano brasileiro é bastante difícil e até desacreditado, principalmente porque os dados sobre o incremento das atividades rurais, agrícolas e não agrícolas, nas cidades brasileiras serem pouco conhecidos (MAIA, 2001) ou mais propriamente por serem analisadas como atividades residuais fadadas ao desaparecimento. Acrescento a isso o fato de se pensar o rural sob uma perspectiva exclusivamente produtiva. Maia (2001) destaca que as atividades tidas como tipicamente rurais, ainda que continuem persistindo, sendo praticadas nas margens, bordas ou anéis das cidades e metrópoles, parecem ser invisíveis aos olhos dos estudiosos dos fenômenos urbanos. Esta constatação parece estar diretamente vinculada à ideia de que na luta pela ocupação do espaço urbano, as atividades rurais, em sua conotação como atividade econômica, são as mais frágeis e consideradas muitas vezes como não essenciais ao contexto urbano, tornando-se “natural” que elas também sejam as que mais facilmente sejam deslocadas, abrindo espaço à lógica expressa no uso e na valorização do solo urbano: a da acumulação do capital. Abro aqui um parêntesis para dizer que poucos são os estudos acadêmicos que se propõem a quebrar esta hegemonia acadêmica que desqualifica a ruralidade, espacialmente a metropolitana. Na década de 1980, a professora Baudel Wanderley (2007), pioneira na formação de importantes quadros na investigação do mundo rural, deu um depoimento emocionado ao relatar sua “amistosa” convivência com professores e pesquisadores que creditavam o status de questão menor ao rural, para eles uma temática ultrapassada tanto na sociedade brasileira quanto na academia. Segundo ela, sensibilizar cientistas sociais para incluir o rural como objeto de estudo foi uma tarefa árdua, exigindo muito tempo e humildade. Lentamente, este argumento está sendo dissolvido. Relativamente ao rural metropolitano, em uma perspectiva integradora, destaco os trabalhos de Karen Karam, Alencar, Santos et al., Rúbio Ferreira e Evandro Fernandes. Karam (2001), em sua tese de doutoramento, defende que a agricultura orgânica é uma estratégia para uma nova ruralidade na Região Metropolitana de Curitiba. Alencar (2003) trata do desenvolvimento humano na perspectiva da sustentabilidade complexa, estabelecendo relações entre o conhecimento científico e experiências de ruralidade como nexo de análise na Região Metropolitana de Salvador. Santos et al. (2004) questionam a possibilidade da existência do rural na Região 81 Metropolitana de Curitiba e, respondendo afirmativamente, prosseguem descrevendo suas características à época da análise. Ferreira (2009) estuda a agricultura urbana como estratégia de reprodução espacial integradora do rural e do urbano na Região Metropolitana do Recife. Por fim, Fernandes (2008) analisa a reprodução de agricultores familiares no espaço metropolizado paulistano, por meio de práticas produtivas diversas. Grande parte dos 34 municípios que fazem parte da RMBH são essencialmente rurais, não entraram na dinâmica urbana e, muito menos, na metropolitana. Com esta assertiva, Faria (2010) conduz um dos estudos mais interessantes no sentido de resgatar a importância da ruralidade na região. Ainda que sujeito à crítica postulada por Wanderley (2001) e Veiga (2002), com relação à atual delimitação dos municípios e da área rural, Faria (2010) defende que, para ele, parece óbvio esperar que os municípios que compõem uma região metropolitana tenham um alto grau de urbanização. Entretanto, continua o autor, um olhar mais detido sobre a RMBH proporciona interessantes constatações. Seguem-se algumas. Se 16 dos 34 municípios componentes da RMBH tinham, em 2000, taxas de urbanização de mais de 90%; seis deles tinham taxas abaixo de 60%, sendo que em Nova União e em Taquaraçu de Minas a população rural era maior que a urbana (taxas de urbanização de 26,3% e 39,5%, respectivamente). Levando-se em consideração que o grau de urbanização do Brasil era de 81,2% de sua população, constata-se que 15 dos 34 municípios da RMBH tinham uma taxa de urbanização abaixo da média nacional em 2000 (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2006, p.19). Enquanto o município polo tinha em 2000, segundo os dados do IBGE, uma população de 2.238.526 habitantes, o menor município da RMBH, Taquaraçu de Minas, tinha 3.491. Dezessete dos 34 municípios da RMBH, 50%, tinham menos de 20 mil habitantes em 2000. No que diz respeito à distância da capital, 21 dos municípios membros estão localizados a mais de trinta km, sendo que o mais distante, Itaguara, está situado a 85 km de Belo Horizonte. Por fim, Ibirité é o mais densamente povoado (1.812,3 habitantes por km2), ao passo que 14 dos 34 municípios-membro têm menos de 100 habitantes por km2, sendo Taquaraçu de Minas aquele de menor densidade demográfica (10,6). Uma interessante comparação para ilustrar as desigualdades populacionais entre os municípios que compõem a RMBH é acionada por Faria (2010). Segundo o autor, o edifício JK, marco do modernismo mineiro, com seus 1.086 apartamentos, 82 distribuídos em dois blocos, possui um número de moradores, aproximadamente 6.800, muito maior do que cinco dos 34 municípios da RMBH, pelos dados do censo de 2000. Defendendo a presença de assimetrias e grande heterogeneidade na região, quer pelo anteriormente exposto, quer por conta das “discrepâncias relativas aos indicadores socioeconômicos e à capacidade administrativa dos municípios membros”, Faria (2010, p.4) diz que motivos de várias ordens impeliram os municípios a fazerem parte da RMBH, dentre os quais destaca os fatores legal, político-eleitoral, institucional e ideacional. Além do investimento financeiro e da alocação de recursos feitos pelo governo federal nas regiões metropolitanas à época de sua criação, o ganho simbólico de fazer parte de um espaço metropolitano é algo a povoar o imaginário de muitos municípios. Neste sentido, ele ilustra seu argumento usando o slogan exposto em placa colocada na entrada de uma das cidades da região: “Você já está na Região Metropolitana de Belo Horizonte” (FARIA, 2010, p.13). Distante cerca de 80 km de Belo Horizonte, a pequena cidade tenta vincular-se à imagem de Belo Horizonte e sua conurbação, procurando elevar o seu status, em um movimento ideológico que celebra a metrópole como lugar do progresso. Várias dimensões analíticas mostram que, na RMBH, as ruralidades presentificam-se na questão ambiental, na valorização da natureza, nas atividades produtivas, nas tradições alimentares e culturais, nos reassentamentos humanos, na questão agrária, nas migrações e políticas de segurança alimentar, nutricional e habitação, como defende a Rede de Intercambio de Tecnologias Alternativas em Minas Gerais em sua página na web (www.redemg.org.br). Segundo eles: Apesar de não representar um papel de destaque na região, como a mineração e a indústria, a agricultura é significativa em alguns municípios, principalmente o cultivo de produtos da horticultura que abastecem grande parte da RMBH. Há também municípios onde predomina a característica rural, com presença da agricultura familiar em pequenas e médias propriedades, além de festas típicas e outras expressões culturais relacionadas à vida no campo. Mesmo nos municípios mais urbanizados é recorrente a prática agrícola e pecuária em diferentes tipos de espaços e por distintas motivações. Porém, de forma geral, o pensamento hegemônico tem por viés conectar a ruralidade a uma natureza técnica e mecanicista e ao esvaziamento populacional, destacando sua inviabilidade econômica em um contexto onde o PIB é o elemento definidor da racionalidade produtiva. 83 Mazzetto (2008), organizando dados do censo de 2000, apresenta a Figura 10, tipificando os municípios da RMBH em mais ou menos rurais, por meio do cruzamento entre dados demográficos do censo e dados obtidos por ele nos cadastros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, em Minas Gerais. Figura 10: População rural na RMBH. Dados estratificados. Fontes: IBGE, censo demográfico 2000; Cadastro do Incra para MG (2007). Adaptado de Mazzetto (2008). 84 De imediato, faço um adendo ao fato do autor evocar, grosso modo, em sua tipologia a ideia de continuum33, ao estratificar os municípios em mais ou menos rurais por critério exclusivamente demográfico. É importantes salientar que tal critério não é suficiente para iluminar as muitas nuances da ruralidade na região, sendo, pois, necessário ir além do viés estatístico. A ilustração acima sugere que o percentual de população considerada rural cresce à medida que se afasta do núcleo metropolitano. Este núcleo, formado, segundo o autor, por onze municípios, não teria população rural (0 a 3%). Assim, pelo critério populacional, o autor conclui pela inexistência do rural em Belo Horizonte, Betim, Contagem, Nova Lima, Raposos, Sabará, Ibirité, Ribeirão das Neves, Santa Luzia, Vespasiano e Juatuba. Discordando do autor, vejo a presença do rural em práticas culturais, produtivas, na paisagem, no discurso da valorização da natureza, entre outras de suas muitas expressões e, especialmente, nas falas das pessoas. Falas que, dissonantes e consonantes, delineiam um cenário de tensão e de espaços em disputas, formando um complexo caleidoscópio com espaços de minerar, industrializar, plantar, abastecer, entreter, viver, lutar e sobreviver: “Moro aqui há muito tempo. Nasci e fui criado por aqui. Tenho amor a este lugar. É uma preocupação ver a terra aumentando tanto de preço. Isso atrai gente de dinheiro que tem condição de comprar os terrenos daqui. Não sei quanto tempo mais consigo ficar. O cerco tá aumentando” (J. A., agricultor em Brumadinho). “Só temos uns poucos agricultores, dá para contar nos dedos. Creio que no futuro vendam suas terras, livrando-se deste fardo que é a roça” (M.S, 48 anos, comerciante Betim). “Aqui é chão de muita pedra, não dá pra cultivar coisa de valor como no Triângulo. Mas vivo bem com o que tenho. Não quero sair daqui” (A.C, 57 anos, agricultor Nova União). “No meio dessa roça eu nasci e vou morrer. Minha vida é amaciar essa terra” (P.A, 64 anos, agricultor Ibirité). 33 Segundo Wanderley (2001, p. 32-3), a ideia do continuum rural-urbano expressa as relações entre dois polos que se inter-relacionam. Para a autora este conceito, assim como o de urbanização do campo, tem sido utilizado em duas vertentes principais. Uma delas corresponde a uma visão “urbano-centrada”, privilegiando o polo urbano do continuum, visto ser este a fonte do progresso e dos valores dominantes que se impõem ao conjunto da sociedade. O extremo rural do continuum seria o polo atrasado, o qual tenderia a reduzir-se ou desaparecer sob a influência incontestável do polo desenvolvido. A segunda vertente considera o continuum rural-urbano em uma perspectiva relacional na qual há uma aproximação e integração de dois polos extremos. Nesta segunda perspectiva, ainda que tenha lugar uma continuidade entre o rural e o urbano, “as relações entre o campo e a cidade não destroem as particularidades dos dois polos e, por conseguinte, não representam o fim do rural”. 85 “Em Nova Lima temos um verde que não troco por nada deste mundo” (A.V., 43 anos, dona de casa). “As indústrias são a solução para os problemas de desemprego na nossa cidade. Não dá mais pra viver de agricultura” (P. A., professora em Nova União). “É difícil viver em um lugar com tantas mineradoras. Elas são predatórias, elas destroem a fauna, a flora e as comunidades locais, expulsando as pessoas para a periferia da capital. Mas os prefeitos brigam para trazer esses monstros para cá, de olho na arrecadação de impostos, Quando as pessoas abrirem os olhos cadê montanha, cadê rio, cadê saúde, cadê roça?” (J.P., agrônomo Esmeraldas). A inexistência ou invisibilidade do rural metropolitano mineiro é ampliada pelos olhares institucionais, sendo comumente explicitada em documentos produzidos por entidades governamentais. Esta frase pinçada de documento produzido pela Fundação João Pinheiro (1974, p.88) é emblemática: “O Setor Agropecuário na Região Metropolitana praticamente inexiste (...), estando “estagnado através do tempo” (...) em função da “ausência de terras adequadas à atividade” (grifo nosso)”. Mesmo publicações mais recentes fazem uso deste argumento: (...) nos primórdios da ocupação agrícola de Minas Gerais, as terras de boa qualidade eram mais abundantes pelo fato mesmo de pouco ou nada exploradas, imunes ainda à ação deletéria de uma ocupação predatória. Todavia, a diferença entre os solos dos setecentos e os da atualidade, é, segundo João Antônio de Paula, escudado nos trabalhos de Octávio Barbosa e Djalma Guimarães, sobretudo, pela sistemática depreciação pela prática já de uma tricentenária agricultura frequentemente predatória, baseada na queimada e na ausência de cuidados com a terra no passado, além da utilização indiscriminada de tecnologias inadequadas nos dias atuais (PAULA, 2006, p.74). O gigantismo das atividades e serviços vinculados ao complexo industrialsiderúrgico parece criar um manto de aço, ferro e concreto que engole as ruralidades, inclusive a agrícola. Os argumentos usados para “explicar” a estagnação e/ou suposta ausência de atividades agrícolas na região são recheados por verbetes técnicos e fundamentações agronômicas, tais como, as condições e tipos de solo são desfavoráveis, a topografia da região é desfavorável, os recursos naturais desfavoráveis, dentre outras adversidades apresentadas; nada é mencionado sobre a estrutura fundiária e temas relacionados34. Estas argumentações são utilizadas para dar 34 Nas duas últimas décadas, a estrutura socioespacial da Região Metropolitana de Belo Horizonte tem se caracterizado por: a) contínua elitização dos espaços centrais e pericentrais, com diminuição relativa, e absoluta em algumas áreas, das regiões mais centrais da capital, com mobilidade residencial dos grupos de maior renda em direção a estas áreas; b) adensamento das áreas periféricas ao norte; c) espraiamento 86 substância à perspectiva da inviabilidade do rural – especialmente o agrícola – na RMBH, em um território onde a terra é objeto de disputa e especulação fundiária e imobiliária. De fato, entre os fatores que compõem um cenário bastante desfavorável à manutenção da ruralidade metropolitana estão o alto valor da terra e dos impostos territoriais, bem como a crescente transformação das áreas rurais em áreas urbanas através dos planos diretores municipais. Para exemplificar tal processo, na Tabela 7, apresento a evolução dos preços da terra no aglomerado metropolitano entre 1950-1976. Tabela 7: Evolução dos preços de terrenos no aglomerado metropolitano de Belo Horizonte. 1950-1976. Anos Preços (m2) 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 Aglomerado 62,00 78,00 97,00 119,00 130,00 107,00 116,00 153,00 142,00 129,00 126,00 115,00 127,00 96,00 Índice 1950=100% 25,81 30,65 35,48 17,74 - 37,10 14,52 59,68 - 17.74 -20,97 -4,84 -17,74 19,35 -50,00 Anos Preços (m2) 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 114,00 122,00 179,00 182,00 206,00 288,00 246,00 213,00 256,00 271,00 347,00 466,00 531,00 Índice 1950=100% 29,03 12,90 77,42 19,35 38,71 132,26 -67,74 -53,23 69,35 24,19 122,58 191,94 103,84 Média= 185,52 Fonte: Marques (2001, p.118). Os preços dos terrenos na RMBH tenderam ao crescimento em quase todo o período mostrado, destacando-se dois grandes momentos, um de baixa, entre 1960-1964 e 1970-1971; e outro de alta, entre 1950-1957 e 1964-1969. Em uma perspectiva macro, podemos inferir que a variação dos preços dos terrenos reflete o ciclo das economias mineira e brasileira, suas políticas econômicas e seu desempenho global. As fases de alta correspondem a períodos de expansão, como em parte da década de 1950, durante o período do chamado milagre econômico (1967-1973) e na fase da marcha forçada da economia brasileira, durante os anos 1970. Por outro lado, a retomada da das classes médias pelas áreas centrais e em direção à região industrial, a oeste (Mendonça, 2008; Mendonça; Andrade, 2006), o que tem motivado intensa especulação imobiliária. 87 industrialização na RMBH nos anos 1960 também contribuiu para a alta dos preços. Entre 1960-1964, período de recessão e inflação generalizada no país, coincide com uma diminuição dos preços dos terrenos (MARQUES, 2001). Por fim, o período de baixa entre 1969-1972 é atribuído, segundo a Plambel (1987), pela ampliação do mercado acionário no país, drenando a poupança das famílias e aplicações financeiras dos agentes econômicos para a Bolsa de Valores, diminuindo assim o volume de recursos para a realização de parcelamentos. Mesmo com tudo isto, o rural metropolitano permanece. Mazetto (2008) apresenta dados, organizados por mim no Quadro 2, abaixo, para ilustrar o peso do rural na realidade dos municípios da RMBH. Quadro 2: Extensão territorial, percentual de população rural e número de estabelecimentos rurais dos municípios da RMBH. (Continua). Município Extensão (km2) Baldim Belo Horizonte Betim Brumadinho Caeté Capim Branco Confins Contagem Esmeraldas Florestal Ibirité Igarapé Itaguara Itatiaiuçu Jaboticatubas 554,029 330,954 345,913 640,15 541,094 94,147 42,008 194,586 909,592 194,356 73,027 109,93 410,719 295,062 1.113,77 Total de imóveis rurais (2007)* 649 176 1.247 1.431 1.047 316 154 496 2.186 598 291 434 1.677 1.231 1.630 Juatuba Lagoa Santa Mário Campos Mateus Leme Matozinhos Nova Lima Nova União Pedro Leopoldo Raposos Ribeirão Neves Rio Acima 96,789 231,994 35,115 302,589 252,908 428,449 171,482 291,038 71,85 154,18 230,143 218 625 116 1.017 347 332 642 453 38 329 308 % população rural (2000)** 40,92 0,00 2,74 27,21 12,79 9,54 35,94 0,87 18,92 32,00 0,53 7,49 30,94 40,84 47,41 2,81 6,54 24,52 15,53 8,29 2,10 73,67 19,42 5,84 0,58 14,13 88 Quadro 2. Continuação. Rio Manso Sabará Santa Luzia S. Joaquim Bicas São José da Lapa Sarzedo Taquaraçu Minas Vespasiano RMBH 232,102 303,564 233,759 72,455 48,636 61,892 329,363 70,108 8898,50 820 794 744 178 111 110 479 168 38,40 2,30 0,38 24,44 40,64 14,68 60,53 1,58 1,89 Fonte: Mazzetto (2008). *Cadastro do Incra-MG (2007); ** Censo 2000. Cotejando os dados tabulados por Mazzetto (2008), referentes ao cadastro do Incra, aos do Censo Agropecuário do IBGE de 1995/96, verificamos que não houve significativa oscilação, nem esvaziamento/perda de população rural, já que o censo apresentou índices/valores próximos aos obtidos pelo autor, quando não menores. Por exemplo, foram contabilizados pelo censo 7.746 estabelecimentos rurais na região enquanto o autor chegou a 21.400 imóveis rurais usando os dados do Incra. Esta diferença, se comprovada pelo censo agropecuário subsequente, parece indicar um intenso fracionamento da terra na região. Mazzetto (2008, p.22) é enfático neste sentido, defendendo que há “(...) uma questão agrário-fundiária que não se resolve nas regiões rurais de origem e que é transferida para as regiões metropolitanas, tomando nova forma”. Um estudo sobre os aspectos fundiários das áreas rurais da RMBH, realizado por Mazzetto (2008) aponta que 85% dos imóveis rurais eram constituídos por minifúndios ou pequenas propriedades e as grandes propriedades somavam 3% do total de imóveis. Outra pesquisa efetuada no âmbito do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da RMBH indica que, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006, aproximadamente 73% dos imóveis rurais na RMBH eram de agricultores familiares, ocupando uma área de 103.523 ha, o que corresponde a 19,34% da área rural total da RMBH. Analisando os dados do censo (2000), 1,90% do total de habitantes da região foi considerada rural; treze municípios tiveram mais de 20% de sua população classificada como rural. Nova União e Taquaraçu de Minas destacam-se em termos de percentual de população rural, 73,67% e 60,53%, respectivamente. Jaboticatubas, 89 Baldim, Esmeraldas, Brumadinho e Caeté, todos com mais de 500 km2, apresentam, respectivamente, 40%, 27%, 19% e 13% de sua população total considerada rural. Estudo feito por Cunha et alii (2005), do Departamento Técnico da CeasaMinas, mostra um número significativo de agricultores familiares da RMBH cadastrados para a entrega de seus produtos no Mercado Local do Produtor. Cerca de 50% daqueles que entregam seus produtos na CeasaMinas são proprietários das áreas cultivadas e 32% são arrendatários, com idade média de 42 anos, pouco acesso à internet e baixa escolaridade. Ao todo são 124 produtores de Mateus Leme, 92 de Nova União, 88 de Rio Manso, 65 de Igarapé, 49 de Jaboticatubas, 47 de Brumadinho, 36 de São Joaquim de Bicas e 34 de Esmeraldas. Há uma expressiva diversificação produtiva. Igarapé entrega 69 produtos distintos, Brumadinho 68, Mateus Leme 66, Jaboticatubas 66, Ibirité 61, Baldim 61, São Joaquim de Bicas 57, Mário Campos 48, Itatiaiuçu 48, Esmeraldas 47 e Pedro Leopoldo 47. Apenas Nova União e São Joaquim de Bicas apresentam especialização produtiva, a banana nanica e chuchu, respectivamente. Pelo exposto, constatamos que os municípios da RMBH se mantêm firmes na produção de hortifrutigranjeiros. Há diversificação e abundância de produtos, conforme apontado na Tabela 8. Da tabela, podemos inferir a especialização de alguns municípios (Mateus Leme, Nova União e Igarapé) vis-à-vis a diversificação produtiva de outros. Além dessa lista de produtos ofertados à CeasaMinas, outras produções em menor escala são feitas por agricultores de pequeno porte no próprio comércio do município em função dos altos custos de transporte. Para além do rural agrícola, Ortega (2003) nos alerta que o caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte é emblemático no que diz respeito à ampliação das atividades rurais não-agrícolas em Minas Gerais. Os números revelam que as atividades exclusivamente agrícolas apresentaram uma redução da população ocupada de 9,8% ao ano, enquanto que as atividades rurais não-agrícolas apresentaram coincidentemente a mesma taxa, entretanto, com sinal trocado, no período compreendido entre 1992/99. O estudo de Ortega defende que o fenômeno da expansão do emprego rural com base naquelas atividades ocorre numa velocidade mais intensa que a média de Minas Gerais, para o rural metropolitano. 90 Tabela 8: Produtos ofertados pelos municípios da RMBH na CeasaMinas. Município Baldim Betim Brumadinho Capim Branco Caeté Esmeraldas Florestal Ibirité Igarapé Itatiauçu Jaboticatubas Juatuba Lagoa Santa Mário Campos Mateus Leme Matozinhos Nova União Pedro Leopoldo Ribeirão das Neves Sabará Santa Luzia Sarzedo São Joaquim de Bicas São José da Lapa Taquaruçu de Minas tomate alface tangerina alho banana nanica tomate milho verde chuchu chuchu couve-flor mandioca milho verde tangerina chuchu milho verde Milho verde banana nanica ovos manga Participação (%) na oferta total do município à Ceasa 31 16 52 78 53 14 29 77 23 30 22 35 33 75 18 88 86 60 26 Produto Participação (%) na oferta Participação (%) total na Ceasa pepino Jiló tomate jiló mandioca beterraba milho verde milho laranja banana nanica caju alface pepino banana prata abacate - 27 10 17 13 17 6 13 14 13 33 22 6 17 13 5 - 6 1 6 1 1 1 1 7 11 4 4 1 0 2 15 0 13 2 0 banana prata banana prata chuchu chuchu 34 44 90 59 banana nanica banana nanica tomate 22 19 11 0 0 3 9 jiló 36 - - 0 banana prata 53 banana nanica 44 1 Produto Fonte: CeasaMinas, 2007-2009. Exemplos da interface entre o agrícola e o não-agrícola estão em curso em vários municípios da RMBH. Por exemplo, Brumadinho, Pedro Leopoldo e Nova União têm produção e comercialização de cachaça; Itaguara destaca-se pelo artesanato usando fibras de bananeira; em Juatuba há uma profusão de os pesque-pague; e, em toda a região, atividades de beneficiamento, produzindo queijo, requeijão, farinha de mandioca, fubá de milho, rapadura, polvilho etc. (ORTEGA, 2001). Vários estudos de caso têm indicado outras manifestações de ruralidades na RMBH. Em Nova Lima os sítios de recreio, os restaurantes com temática “caipira” e a prática de atividades rurais não-agrícolas dão a tônica do que está sendo caracterizado como novo rural (GRAZIANO DA SILVA, 1997). Aliado a ele, nos deparamos também com os condomínios luxuosos para a população de alta renda, que, em busca de maior qualidade de vida e maior contato com a “natureza” (BRITO; SOUZA; SOARES, s.d, 91 p.5), tem edificado suas residências entre matas, montanhas, cursos d’água, clima ameno e belas paisagens do município, inflacionado assim o mercado de terras já pressionado pelo domínio fundiário das mineradoras. Em Betim, a Cooperativa Agropecuária, a Divisão de Análise e Incentivo à Agropecuária e as tradicionais Exposição Agropecuária e a Betim Rural são manifestações institucionais e culturais da presença do rural, como também o é a luta pela terra protagonizada pelos produtores rurais do Assentamento Serra Negra (BRAGANÇA; PORCINO, 2004) e do acampamento Dois de Julho (RIQUELME HERNANDÉZ, 2008). Em Ibirité, Tubaldini e Rodrigues (2000) descrevem a disputa entre os loteamentos de baixa renda, os condomínios de lazer e os “nichos agrícolas” (de 0,2 a 3,1 hectares), onde se pratica uma horticultura intensiva. Filgueiras (2006) escreve sobre as manifestações da ruralidade contemporânea do Mercado Central de Belo Horizonte, para a autora o local mais representativo da cultura mineira, onde se evocam as tradições e a lembrança do mundo rural, e vendem-se produtos de qualidade e exclusivos. Desviando o olhar em direção à identificação mais estreita entre o campo (o rural) e a natureza, vejo belíssimas paisagens naturais. As serras serpenteiam por todas as direções, substituindo a costumeira visão do litoral. Se Minas não tem mar, nos 9.467,797 km2 da RMBH, ele é substituído por um mar singular, um mar de morros (des)florestados (Figura 11) em um eterno ondular. Figura 11: Serra do Rola Moça (foto de Roberto Murta); Mar de morros (foto Alex Tinoco). 92 Inúmeros mananciais e nascentes contribuem decisivamente para o abastecimento de água, recarga de mananciais superficiais e subterrâneos e formação de diversas cachoeiras (Figura 12). Figura 12: Cachoeira do Índio, em Rio Acima, e Cachoeira Grande, em Jaboticatubas. Fotos da autora. Estas ruralidades têm favorecido a proliferação de balneários, campings, hotéis-fazenda, hotéis em fazendas coloniais, consolidando a expansão do capitalismo de serviços e a apropriação da natureza. Como destacam Mathieu e Jollivet (1989), os residentes urbanos associam o ambiente à natureza e a natureza ao campo. Neste contexto, assistimos a uma valorização do rural como espaço mantenedor do natural, de heranças, tradições e memórias sociais, culturais e ambientais, deixando de ser apenas lugares onde as pessoas vivem e trabalham – rural produtor de alimentos e matériasprimasr – para assumir funções de importância como reserva cultural, social e ambiental. Deste modo, começa a entender-se a ruralidade como “reserva moral e cultural”, nos termos de Chamboredon, 1980, ou seja, a ruralidade é considerada para além da condição concreta de oposição ou marginalização relativamente ao processo de modernização que atravessou toda a sociedade, mas antes como sinônimo de uma noção que remete para a modernidade (ou a pós-modernidade), vivida pela descoberta e valorização das diferenças, do autêntico e do genuíno. Assim tem se apresentado o turismo nas cidades históricas da RMBH, consideradas guardiãs das construções coloniais do auge da mineração, com suas fazendas, casarios coloniais (Figura 13) e igrejas barrocas (Figura 14); e com as tradicionais festas em louvor aos santos (Figuras 15 e 16). 93 Figura 13: Ruas em Sabará (foto de Robson Nunes) e Santa Luzia (Rua Direita, foto Maya Santana). No centro, o Solar da Baronesa (foto da autora). Figura 14: Igrejas em estilo barroco colonial em Mateus Leme, Caeté e interior de igreja em Santa Luzia. Fotos da autora. Figura 15: Em Baldim, Cortejo de Nossa Senhora do Rosário e Folia de Reis (fotos Ione Torres). 94 Figura 16: Sede de Casa de Congado, em Baldim, e apresentação de Congado em Rio Manso. Fotos: site da Prefeitura Municipal de Baldim e Rio Manso. No aspecto linguístico, a ruralidade está muito presente nos topônimos regionais. Araçaí (Rio dos Araçás), Juatuba (Sítio do Juá), Ingaí (Rio do Ingá), Pequi, Pitangui (Rio das Pitangas), Jaboticatubas (Sítio das Jabuticabas), Jatobá, Jenipapo de Minas, Bananal, Arrozal, Santo Antônio do Arrozal, Santo Antônio do Bacalhau, Santo Antônio da Figueira, Santo Antônio do Leite, Santo Antônio do Limoeiro, Assa-Peixe, Pescador, Peixe Cru, Goiabeiras, São José do Goiabal, São José do Mantimento, São José do Buriti, Sant’Ana do Buriti, Buritis, Buritizeiro, Milho Verde, Chácara, São Sebastião da Chácara, São Sebastião do Feijão Cru, Frutal, Manga, Figueira, Barra da Figueira, Barra do Bacalhau, Dores do Marmelada, Ribeirão das Pitangas, Palmital, Limoeiro, Laranjal, Laranjeiras, Divino das Laranjeiras, Pimentas, Pimenteira, Rapadura, Taiobas, Taiobeiras, Mangabeiras, Cafezal, Curral de Dentro, Curralinho, Serra do Curral, Porteirinha, Novilhona, Fazenda Velha, Cerca Grande, Capim Branco e Rancharia são palavras corriqueiras que indicam a presença do rural na RMBH (COSTA, 1997). De tudo o que foi exposto, inferimos que a RMBH são os índios, negros e portugueses de sua gente. Ouro, serras, cachoeiras. Também dela fazem parte o concreto e o asfalto selvagem. Montanhas e estradas de ferro; prédios de vidro e o trem de superfície que é quase um metrô. Água, sangue e areia. A Festa do Divino, de Nossa Senhora Rosário, o congado, os quilombos. Os festivais de cinema, o teatro, vídeo, som e luz. Nos botecos, a canequinha e o bule de café esmaltados e os copos de acrílico. As bandas de praça, o Clube da Esquina e as bandas de rock. A pedra sabão e o plástico. A cachaça artesanal e a coca-cola. Os móveis antigos, as fazendas, o gado; o aço e o cimento. As minas e as fábricas. A riqueza e a devastação. O carro de boi e a Fiat. O 95 feijão tropeiro e o petit gatêau. Grutas, rios; pontes e arranha-céus. O campo e a cidade. O campo e a cidade. Faces de Janus interconectadas. Ruralidades e urbanidades que se misturam em um metropolizado complexo. Ainda que tenhamos tantas evidências ecoando a ruralidade metropolitana, suas vozes são engolidas pelo eco do invisível. Esta invisibilização, como veremos, já era anunciada no período de formação da região metropolitana. Por isso penso que o passado da região precisa ser explicitado mais detalhadamente, pois nele já se aninhava os ecos do presente. No próximo capítulo analiso algumas especificidades constitutivas da sociedade mineira, tendo como elemento balizador a descoberta de riquezas minerais em seu território. Para tanto, apresento um recorte histórico, que remonta ao século XVIII, descrevendo as mudanças encetadas em um espaço até então considerado como um grande e desconhecido “sertão”. Neste processo, destaco alguns elementos que influenciaram o território da RMBH, que seriam, segundo alguns autores, sinais da modernidade mineira e da busca incansável do progresso. 96 CAPÍTULO III MITOS FUNDADORES Figura 17: Capa do livro: Belo Horizonte: do Arraial à metrópole - 300 anos de história. Autor: José Maria Rabêlo. Editora Legraphar, 2013. 97 1. A sócio-gênese mineira: o ouro, as vilas e a vocação semeadora de cidades. Desde as primeiras expedições portuguesas à terra brasilis, ainda que fossem atribuídas a esta colônia características depreciativas, objetivando reforçar a pretensa superioridade do velho continente, persistia uma visão edênica da colônia recémconquistada, um lugar de mitos e sonhos, e de natureza exuberante (MELLO E SOUZA, 1997). Por muito tempo a metrópole portuguesa viveu a expectativa de encontrar metais preciosos em seus domínios coloniais. Ainda que Pero Vaz de Caminha tivesse escrito ao rei dizendo não ser possível saber se havia “ouro nem prata nenhuma cousa de metal nem de ferro” na terra “recém-descoberta”, a esperança de achá-los nunca arrefeceu. Tal desejo não era uma prerrogativa portuguesa. Desde que “o Novo Mundo se tornou conhecido, criou-se uma possibilidade de representação do paraíso na Terra, sonho perseguido pelos cristãos, [...] encontrar a Cocanha” 35 (MAGALHÃES, 2009, p.2). Alguns povos já tinham conseguido realizar tal façanha, como a Espanha junto aos Incas. Restava aos demais uma tênue chama de esperança, fundamental para a iluminação dos combalidos e sombrios cofres das monarquias europeias. No final do século XVII e começo do XVIII, o mundo português comemora “[...] a boa-nova há tanto tempo esperada: existia ouro em profusão nos socavões e encostas” (ÁVILA, 1990, p.76) de um “sertão desconhecido” denominado oportunamente de “Minas Gerais”. A esperança não foi em vão para os portugueses. Foram aquinhoados com “[...] um distrito onde sempre foi, e é geral o ouro em toda a terra [...]” (MACHADO, 1967 [1734], p.179 apud PAULA, 2000, p.94). Enfim, aquela combalida chama agora podia se revigorar com o brilho flamejante do ouro encontrado. Com a descoberta das riquezas em solo mineiro, finalmente a denominada “Terra de Santa Cruz” dos primórdios colonialistas proporcionaria aos portugueses o seu esperado paraíso terreal, um éden de fartura e abundância, sua tão sonhada Cocanha. O desejo de obter as verdes esmeraldas, acalentado e perseguido incansavelmente por Fernão Dias e outros bandeirantes, cedeu lugar a uma realidade colorida pelo amarelo do ouro aluvional que brotava em abundância nas montanhas, vales e riachos do “sertão”. 35 O país da Cocanha seria uma terra fantástica, abundante em metais preciosos e outras riquezas, com comida, bebida e orgia fartas e abundantes, sem que houvesse necessidade do trabalho para obtê-los (MAGALHÃES, 2009, p.2). Adaptado para o ambiente medieval, esse mito grego é representado pela cornucópia, um corno de chifre de cabra com poderes dados por Zeus capaz de gerar fertilidade e abundância ilimitadas. 98 O relato anterior exemplifica a dimensão e a expectativa criadas com a descoberta de metais preciosos no Brasil. Se elas causaram tal “comoção” no país ibérico, o que dizer das mudanças descortinadas na região das minas, espaço que, em um curto tempo, passa da condição de imenso sertão para promissor Eldorado, interferindo decisivamente nos rumos da colônia e da metrópole portuguesa. Como aponta Monte-Mór: [...], a riqueza mineral concentrada principalmente em Minas Gerais integrou a colônia diretamente, por algumas décadas, ao centro motor da economia mercantilista mundial, permitindo interações políticas e culturais inimagináveis em colônia até então tão abandonada. [...] (MONTE-MÓR, 2001b, p.5). Tal a centralidade do ouro na história de Minas Gerais que qualquer reflexão que se proponha sobre a sociedade mineira não pode prescindir da análise dos seus impactos no cotidiano e nas trajetórias dos seus habitantes. Ainda que outros elementos tenham sido determinantes na gênese do tecido social mineiro, tais como, a religiosidade, a geografia da região, a expressiva presença de escravos e a falta de mulheres portuguesas durante o estabelecimento da capitania, entre outros aspectos destacados por Schwartz & Lockhart (2002), pensar Minas Gerais em sua complexidade, explicitar as relações rural-urbanas em sua região metropolitana como se pretende, requer que se proceda a algumas considerações retrospectivas da influência da dimensão produtiva – mais particularmente a mineração do ouro – em processos outros que terminaram por marcar, direta ou indiretamente, determinadas características do espaço, da economia, da cultura e da sociedade mineiras na atualidade. Esta “especificidade material, econômica mesmo”, [...] [esta] “centralidade do ouro” [foi o fator que suscitou] “a ocupação e fixação dos núcleos iniciais do território” (CUNHA, 2007, p. 27). Não por outra razão, autores como Iglésias (1985, p. 11) indagam “como teria sido o desenvolvimento de minas sem o ouro”. Expectativas sobre um futuro ou passado diferentes em função do ouro à parte, fato é que ele foi o elemento condutor que, em pouco mais de um século, auxiliou na transformação de um espaço relativamente desconhecido em um conjunto de regiões integradas com preponderante importância na articulação econômica da colônia (PAULA, 2000), possibilitando também a saída de Portugal do relativo ostracismo econômico em que se encontrava. Ainda que alguma mineração de ouro de lavagem já tivesse lugar na Capitania de São Vicente, somente por volta de 1640, e em diversas regiões de Minas Gerais, é 99 que, finalmente, ocorrem descobertas significativas de mineração aluvional (MELLO E SOUZA, 1997), principalmente pela iniciativa de diferentes grupos paulistas (BOXER, 1969). Duas consequências advêm desse fato. Em primeiro lugar, o ouro mineiro propiciou ao país ibérico a possibilidade de recuperar uma hegemonia nostálgica, que remonta ao século XV, quando a escassez de numerário não era tão comum quanto foi nos séculos subsequentes. Como enfatizado por Silva (2008, p.61), a entrada crescente dos metais preciosos permitiu a Portugal equilibrar rapidamente sua combalida balança comercial, no mesmo momento em que sua desastrosa política mercantil fez com que o pequeno país se tornasse cada vez mais refém da economia inglesa. “É o tempo do longo reinado de D. João V, em que o ouro brasileiro adornou a monarquia, construiu palácios e conventos, mas, sobretudo, enriqueceu a Inglaterra” (PAULA, 2000, p. 67). Em segundo lugar, à medida que as expectativas de lucros com a exploração das jazidas eram cada vez mais animadoras, o império português aguçou seu olhar metropolitano em torno da colônia, na forma de pesadas taxas e impostos bem como no aumento do controle e fiscalização sobre a riqueza que se extraía do solo. Desta forma, Portugal, que havia prestado pouca atenção ao Brasil durante seu período de supremacia naval no oriente (MONTE-MÓR, 2001a), muda sua política, dando uma guinada na forma de administrar e fiscalizar sua agora promissora fonte de riquezas minerais. O Brasil colônia torna-se “a joia da coroa portuguesa” (MONTE-MÓR, 2001a, p.3), ou, nas palavras de Dom João IV, sua “vaca de leite” (BOXER, 1972, p. 70), com as Minas Gerais em primeiro plano. A notícia da descoberta de metais preciosos no Brasil se espalhou tal qual rastilho de pólvora, dando origem a uma verdadeira loucura coletiva em busca de ouro. Em 1698, com a descoberta das Minas de Ouro Preto, esse movimento assume tal magnitude que se transforma em uma epidemia febril: de todos os lados chegam mineradores, camponeses, comerciantes, enfim, aventureiros esperançosos em enriquecer rapidamente no eldorado mineiro: Este primeiro momento das Minas de Ouro foi marcado por um sem-número de tumultos, de crimes, de convulsões de toda a sorte [...]. Não só da capitania vizinha de São Paulo vieram os aventureiros em busca da riqueza fácil: nos portos de Santos e do Rio de Janeiro muitos navios foram abandonados pela tripulação, a quem os trabalhos nos regatos auríferos pareciam muito mais promissores [...]. O mesmo acontecia com os guardas das guarnições que [...] iam tentar a sorte nas Minas. Da Bahia também acorreram muitos indivíduos [...]. Da metrópole vieram aventureiros, e as estatísticas mostram que cerca de 10 mil indivíduos deixaram anualmente 100 Portugal com destino à Colônia durante os primeiros sessenta anos do século XVIII. (MELLO E SOUZA, 1997, p 16-18). A formação da Região das Minas [...] atrai nos primeiros anos a estas terras toda espécie de gentes, antes o “marginal das cidades, o camponês, imbuído de muito menos preconceito, acostumado à convivência comunitária” que o “fidalgo”. (VASCONCELLOS,1968, p. 142). A atração populacional exercida pela região das Minas foi de tal sorte que outras localidades rapidamente foram perdendo população. Moraes (2005, p.10) salienta que o “rush de proporções gigantescas”, expressão cunhada por Prado Júnior (1985, p. 64, grifo nosso) para destacar a intensa migração em direção às minas, trouxe consequências inesperadas tanto na colônia quanto no reino, como atestam vários documentos da época. Por exemplo, D. Álvaro da Silveira Albuquerque, governador do Rio de Janeiro à época, desabafa ao então governador da Bahia, em correspondência datada de cinco de maio de 1704, sua preocupação com a intensa migração para a região das minas: [...] Em cada dia me acho mais só, assim de soldados como de moradores, porque o excesso com que fogem para as minas nos dá a entender que brevemente ficaremos sem ninguém. Também suponho que V. S. a assim o experimenta porque das minas me escreve o Cônego Gaspar Ribeiro que é tanto o excesso de gente que entra pelo sertão da Bahia que brevemente entende se despovoará essa terra [...]. Museu do Arquivo Nacional, Coleção Governadores do Rio de Janeiro, Livro XIII A, f. 273 v. (SANTOS, s.d, p.6). Neste sentido, o abandono das áreas rurais de produção, a perda de contingentes militares responsáveis pela defesa do território, a falta de tripulantes para as embarcações, a escassez de artesãos e oficiais para as manufaturas e de braços para a construção, além do diminuto número de clérigos para os ofícios religiosos foram os efeitos mais visíveis e sintomáticos do processo migratório em curso (MORAES, 2005, p.10). Todos queriam ir às minas. Todos queriam possuir um pedaço do novo eldorado. A esperança de ficar rico minerando era como um bálsamo suavizante no contexto colonial até então cristalizado pela relação senhor e escravo, pois trazia consigo a expectativa de apropriação de renda e riqueza e, de forma subjacente, uma perspectiva generalizada de ascensão que emergiu entre pobres, pretos, cativos, brancos, libertos ou já ricos. Porém, ainda que alguma ascensão social tenha acontecido, como a consolidação de classes sociais intermediárias, como a dos negros forros, a reprodução da pobreza continuou a ser um traço característico desta sociedade, ainda que, como dito por Mello e Souza (1982), por muito tempo tenha passado à história com a simples 101 máscara do fausto. Superficialmente adornada com a pompa e o esplendor do ouro de suas edificações, esta sociedade permanecia envolta pela imensa colcha de retalhos tecida com os pedaços da pele sofrida dos homens livres e incontáveis pobres. A referida autora aponta que a sociedade mineradora longe de ser a sociedade da riqueza, nivelou a população por baixo, democratizando a pobreza e gerando uma massa expressiva de “desclassificados sociais”. A Coroa portuguesa, preocupada com o fluxo intenso de forasteiros para seus domínios, tentou ordená-lo e estancá-lo de diversas formas, principalmente dificultando o acesso a esse “mundo sem lei nem rei” (ÁVILA, 1990, p.77). Chegou, inclusive, a proibir a edição e circulação do livro de Antonil intitulado “Cultura e Opulência do Brasil”, que em sua terceira parte “oferecia informes bem detalhados sobre as Minas, inclusive uma descrição dos caminhos de acesso ao seu território”. Porém, definitivamente, isso não surtiu efeito. Os “mineradores” chegavam de todos os lugares, e, para garantir terras e lavras, fixavam-se onde fosse possível, provisoriamente em um primeiro momento, ao apostar no enriquecimento fácil e rápido, e depois em caráter permanente, montando acampamentos que se transformariam em arraiais, vilas ou cidades. Faço aqui um breve parêntesis para destacar que, em Portugal, o sentido costumeiro dado ao termo “arraial” era de um acampamento militar. Ou os locais de reunião festiva da população. Por conseguinte, ambos os espaços tinham caráter precário e provisório. Transposto para Minas Gerais, o termo passou a designar genericamente acampamentos de tamanhos variados, pontos de pouso, ranchos ou vendas, fundados junto às lavras e/ou ao longo dos caminhos, que vieram a se constituir rapidamente em núcleos urbanos de natureza permanente, portanto sem o sentido da transitoriedade do original português (MORAES, 2005; MONTE-MÓR, 2000; LATIF,1960 apud CUNHA; MONTE-MÓR, 2000). Esta mudança de sentido foi captada por Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês viajando pelo Brasil, que relatou: Nota-se que na província de Santa Catarina não se usa, como em Minas, o termo arraial para designar os povoados, mas freguesia. Arraial, propriamente dito, significa acampamento, e acampar era o que realmente faziam os primeiros mineiros. A grande quantidade de ouro, porém, que eles encontravam em certos lugares decidia-os a aí se fixarem, e a palavra arraial foi pouco a pouco perdendo a sua significação. [...] (SAINT-HILAIRE, 1936, p.30). 102 Interessa ainda salientar que para serem elevados à categoria de vila ou cidades, os lugares necessitavam da permissão direta da Coroa Portuguesa, conforme estabelecido pelas Ordenações Afonsinas. Constituíam-se assim categorias geográficas de caráter administrativo e jurídico. A estas categorias sobrepunham-se outras de cunho eclesiástico, por exemplo. O primeiro elemento a fundamentar uma identidade regional era, portanto, o lugar, a paragem, que adotava o nome do vale de algum córrego ou ribeirão ali presente. O conjunto dos lugares podia constituir um distrito, quer dizer, as porções do termo (uma espécie de município nos dias atuais) comandadas por um capitão de uma companhia de ordenança. Apesar de não ter uma demarcação precisa, os distritos eram úteis do ponto de vista fiscal-administrativo. Mais segura, precisa e referencial era a categoria freguesia, basilar para a Igreja e para o governo da capitania, por meio da qual eram cobrados os dízimos. As freguesias compunham os termos, cujas sedes eram as vilas. Estas sim eram as referências práticas e cotidianas para a população, pois lá era que se administrava a justiça, se recorria sobre questões eclesiásticas, fiscais e administrativas. A cidade podia se originar de uma vila e essa posição ou título representava fundamentalmente mais que um privilégio, uma honraria concedida pela coroa (CARRARA, 2007, p. 50-1). Magnani (2009) destaca que a forma de colonização e a exploração das riquezas minerais moldaram grande parte das vilas/cidades mineiras e seus respectivos estilos de vida. Os primeiros campos de exploração de ouro transformaram-se em centros urbanos e as vilas foram surgindo ao longo dos principais locais de mineração, o que redundou em forte adensamento populacional tanto nas vilas quanto no seu entorno (SCHWARTZ, LOCKHART; 2002), e nas vendas e ranchos tropeiros estabelecidos na beira de caminhos e perto das lavras. Essas iniciativas permitiam uma fixação provisória e próxima aos locais de mineração. Na medida em que determinados veios auríferos esgotavam-se, os “mineradores” buscavam novas áreas de exploração, desbravando assim outros territórios, como aconteceu com Goiás e Mato Grosso. Ilustrando a precoce urbanização36 mineira37, na metade do século XVIII, quase todos os quadrantes da capitania já tinham um número considerável de núcleos 36 O sentido moderno do termo “urbanização”, embora expresse um fenômeno antigo, está estreitamente associado à industrialização em razão dos impactos decorrentes das revoluções industriais, o que tem condicionado seu emprego às questões contemporâneas. Neste contexto, usualmente associa-se urbanização à transferência de pessoas do meio rural para o meio urbano, o que implica na ideia de concentração de muitas pessoas em um espaço restrito, a cidade, cujo percentual de aumento populacional seria superior em relação à população rural. Desta forma, há que se considerar que o número de vilas ou mesmo de cidades no contexto da colonização da América portuguesa não é, per se, parâmetro irrefutável 103 urbanos, em uma sucessão de vilas que refletiam tanto a dinâmica itinerante da atividade mineradora quanto as exigências de diversificação produtiva que ela significou, quer pelas crescentes necessidades de abastecimento, quer pelo próprio esgotamento das riquezas minerais. A ideia aqui implícita é que a economia mineratória foi a mola propulsora de uma precoce urbanização, ampliada posteriormente pelo desenvolvimento da agricultura e da manufatura, em um panorama diverso e complexo de fatores. Neste processo, foram se espalhando pelo território mineiro tanto a população quanto a “vocação semeadora de cidades” (PAULA, 2000, p.14). Ainda que diversos núcleos urbanos em terras mineiras apresentassem condições de serem elevados às categorias de vila ou cidade segundo os critérios da época (IGLÉSIAS, 1960, p.372), eram comuns as negativas às solicitações de emancipação. Enquanto as Capitanias da Bahia e São Paulo contavam, respectivamente, com 40 e 31 vilas oficializadas, em Minas foram elevadas a tal condição apenas quinze vilas e uma única cidade, Mariana 38 (MORAES, 2005, p.6). Na Figura 18, abaixo, podemos visualizar a distribuição desses núcleos populacionais na capitania. Do ponto de vista formal e administrativo, a capitania mineira, comparativamente às outras existentes na colônia, não era algo urbanizada. Para Costa (2007), os objetivos fundamentais desta restrita “política de urbanização” eram, basicamente, estabelecer a ordem e, especialmente, permitir um rígido controle sobre a população flutuante dos mineradores, facilitando a fiscalização e controle das riquezas extraídas. Zenha (1948, p.102 apud Paula, 2000, p.37) diz que ao impedir a elevação das vilas à categoria de cidade, a Coroa demonstrava seu poder, assegurava meios para para qualificar seu grau de urbanização (MORAES, 2005, p.3). Entretanto, o que aqui se expõe é que a descoberta do ouro e diamantes em Minas Gerais colaborou para a intensa migração de pessoas, vindas das mais diversas paragens da colônia e da metrópole, as quais terminaram por se concentrar nos espaços de produção, ou seja, nas “cidades mineradoras”, conforme os termos de Monte-Mór (2001b). Nesse sentido, constituíram-se de fato como cidades: “espaços de concentração de um excedente econômico expresso na qualidade do espaço urbano e na monumentalidade das edificações; espaços de intensa organização social e política, geradoras de novas práticas sociais; e espaços de forte expressividade simbólica, cultural e religiosa na sua organização arquitetônica e urbanística” (MONTE-MÓR, 2001a, p.6). 37 O termo mineiro (a) é usado neste texto como definição toponímica, sem relação com as pessoas que se dedicavam à atividade mineradora, aqui denominadas mineradores. 38 Como Mariana foi escolhida para ser sede de bispado, foi então elevada à condição de cidade já que “[...] os bispos eram [...] nobres de primeira grandeza, príncipes titulares, não podiam residir, nem o Papa o consentia, em vilas, que, pois, estas não se fundavam em termos próprios” (VASCONCELLOS, 1974, p.39). Esse exemplo serve como constatação de que, na maioria das vezes, o “status de cidade estava diretamente relacionado à concessão de certas prerrogativas de caráter honorífico às aglomerações de maior importância religiosa, política ou militar”. Hierarquicamente, as cidades “[...] eram aglomerações superiores às vilas por se assentarem em terras próprias de modo a perpetuar em si o sentido de município romano, independente e livre”. (MORAES, 2005, p.4, grifo da autora). 104 possíveis barganhas com grupos locais, além de exercer rigidez no controle da região no intuito de garantir “a paz” e evitar conflitos, já que, entre outras restrições, aos habitantes de vilas era proibido o manuseio de pistola, faca de ponta e punhal, artefatos cuja posse e uso eram privilégios concedidos exclusivamente aos moradores de cidades. Figura 18: Mapa ilustrativo da criação de Vilas em Minas Gerais entre 1710-1820. Fonte: Cunha (2006, p.6). Destaque para a área em amarelo, a região das Minas, onde se localizavam de forma dispersa as vilas auríferas mais populosas. As negativas ou permissões para emancipação faziam parte de um jogo de concentração/descentralização de poder da metrópole para com a colônia. Quando havia necessidade de intensificar o esforço de povoamento ou o controle, arrecadação e fiscalização metropolitanas, o soerguimento de vilas e cidades figurava como uma importante estratégia para a Coroa portuguesa, pois implicava na implantação em âmbito local de uma estrutura de organização administrativa, jurídica, fiscal, militar e territorial (MORAES, 2005, p. 5-6). Por outro lado, isso também representava a cessão de maior autonomia a algumas localidades e suas respectivas elites, o que sempre representava certo perigo para a Coroa, como, por exemplo, nos momentos de crises, 105 rebeliões ou insubordinações da população, ou mesmo nas disputas e rivalidades de caráter estritamente local39, como largamente aconteceu em Minas Gerais. Diante da necessidade premente de total controle sobre a capitania mineira e seus recursos naturais, a possibilidade de dar ou não relativa autonomia a algumas nucleações populacionais funcionava como valiosa moeda de troca, em um jogo de interesses no qual figuravam tanto aspectos de estratégia político-administrativa, quanto as disputas e concorrências de caráter estritamente local. Isso explica, por exemplo, os porquês de vários núcleos urbanos mineiros não conseguirem ter suas solicitações de emancipação atendidas, mesmo apresentando prosperidade e atributos semelhantes aos das cidades e vilas existentes (MORAES, 2005). De qualquer forma, vale dizer que, em face das dimensões territoriais brasileiras, o Estado português, ainda que centralizador, “[...] não agia de forma uniforme para alcançar seus objetivos, utilizando-se de estratégias várias, que levavam em conta as particularidades de um território extenso e desigual” (MORAES, 2005, p. 6). Monte-Mór (2001b, p.3) adverte que as vilas e cidades coloniais brasileiras possuíam características bastante distintas das europeias, berços do capitalismo mercantil. Para o autor as cidades europeias seriam um espaço privilegiado, onde “a cidadania foi (re)constituída tornando-se o locus da revolução burguesa” enquanto as cidades brasileiras, aglomerados coloniais e dependentes em sua essência, seriam meros arremedos de um “poder altamente centralizado, representado e exercido pelo Estado monárquico absolutista”. Guardadas as devidas proporções em uma comparação dessa natureza, Monte-Mór (2001b) argumenta que na justa proporção em que a “cidade capitalista embrionária” conseguiu encapsular as contradições básicas ao sistema feudal e absolutista no continente europeu, minando-o por dentro e lançando as bases para a ascensão de um novo modo de produção e respectiva classe dominante, também no Brasil, a cidade “colonial se tornou o espaço no qual [...] as contradições do sistema colonial apareceram mais claramente”, especialmente naquelas cujo produto alcançava maior valor de mercado, como no caso do ouro mineiro. 39 A respeito das inúmeras insubordinações que tiveram lugar em Minas Gerais, e mais particularmente sobre a Inconfidência Mineira, Moraes (2005) destaca que vários trabalhos coevos têm retomado a discussão sobre as motivações e jogos de poder em curso, corroborando uma afirmação mais geral que “[...] entre os inconfidentes, grandes negociantes e proprietários de terras na Comarca do Rio das Mortes, a [...] participação no movimento foi movida pelo descontentamento com a posição política marginal da comarca frente aos olhos da Coroa, eventualmente mais preocupada com as áreas mineradoras”. (MORAES, 2005, p. 20). 106 Nesta lógica, ao peso do ouro na economia portuguesa e mundial, o autor atribui as constantes revoltas, motins e insurreições ocorridas na capitania mineira40, precipitando os sentidos de uma futura ruptura. Entretanto, é importante destacar que as mudanças apregoadas pelos indivíduos que participavam de tais movimentos estavam, majoritariamente, imbuídas em uma perspectiva meramente reformista, questionando “[...] tão somente os excessos da política colonial, [...] buscando evitar soluções mais radicais” (CUNHA, 2002, p.44), que questionassem também seu poder, posição e prestígio dentro da colônia. Em contrapartida ao restrito número de cidades e vilas institucionalizadas nas Minas coloniais, mais de “70 freguesias e muitos arraiais” não “autorizados” foram se proliferando ao ritmo das descobertas de novos veios nos regatos e grupiaras, áreas nas encostas e topos de morros (MORAES, 2005, p. 20). Visualizando as reproduções abaixo, Figuras 19 e 20, organizadas por Santos et al. (2009) a partir das ilustrações feitas por Caetano Luís de Miranda em bico de pena e aquarela, podemos perceber o grande número de nucleações populacionais encontradas na então capitania de Minas Gerais, principalmente nas comarcas de Vila Rica e Serro Frio, locais de maior concentração de ouro e diamantes. Ainda que o manuscrito produzido por Miranda seja datado de 1804, a configuração territorial ali delineada corresponde aos contornos da capitania em 1720, com o acréscimo do termo da Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí – Minas Novas – (SANTOS et al., 2009). Naquela ocasião Miranda classificou as povoações em diferentes ordens de importância: arraiais freguesias, os mais importantes e consolidados; as capelas, menos significativos do ponto de vista econômico e populacional e as povoações intermediárias denominadas simplesmente arraiais. 40 Na perspectiva de Monte-Mór (2001), a sanha e voracidade portuguesa em conseguir o maior lucro possível da capitania de Minas Gerais, por meio de pesadas taxas, tributos e rigorosa fiscalização, foram os estopins para uma série de revoltas e conflitos visando ao controle dos espaços de poder nas cidades coloniais. Tais eventos envolveram “[...] o Estado colonial, a Igreja, o capital comercial, e outros interesses locais e regionais da colônia que incluíam demandas e pressões colocadas pelos grupos sociais mais explorados, tais como os trabalhadores urbanos, índios, mestiços e escravos negros. Em lugar algum da colônia tais conflitos entre as formas urbanas nascentes e o sistema colonial foram tão expressivos como nas cidades mineradoras, mais particularmente, as cidades mineiras do século XVIII (MONTEMÓR, 2001a, p.x). 107 Figura 19: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.10). Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. Em destaque as povoações classificadas por Caetano Miranda como arraiais freguesias, na área de mineração mais intensa e próspera. 108 Figura 20: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Adaptado de Santos et al. (2009, p.11). Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. No detalhe retangular vermelho, o Curral Del Rey, arraial onde seria instalada a futura capital do Estado, Belo Horizonte. Também em destaque as povoações classificadas por Caetano Miranda como arraiais. À medida que a exploração metalífera com bateia – espécie de bacia de madeira, redonda e achatada – às margens dos ribeirões já não resultava em grandes achados, os exploradores subiam serras, em busca de ouro nas encostas dos morros, em altitudes cada vez maiores (SOUZA, 2009). Esse movimento favoreceu ainda mais a formação de novos arraiais, com as nucleações se organizando ao redor de capelas (Figura 21), espalhando-se por áreas contíguas e compondo uma coesa e “complexa rede urbana” que se espraiava no ritmo das descobertas de novos veios (MORAES, 109 2005, p.20). Nas palavras de Cunha & Godoy (2003), a partir do impulso econômico do ouro, no intervalo de um século, o espaço das minas se transformaria muito rapidamente, produzindo não só uma reformulação interna na sua economia e estrutura demográfica, como promovendo intensamente a primeira articulação macrorregional do território brasileiro. Figura 21: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.10). Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. Em destaque as povoações classificadas por Caetano Miranda como arraiais capelas. Uma diferenciação importante no processo de colonização da capitania mineira relativamente às demais diz respeito à política de distribuição de terras. Segundo Monte-Mór (2001a, p.3), inicialmente não havia a quem se dirigir para regularizar a 110 posse da terra, existindo apenas escrivães comissionados autorizados a conceder posse apenas para as catas41 e datas42 de mineração. Existiam dificuldades até mesmo para conseguir terras para habitação, uma vez que sendo as áreas de mineração reguladas pela legislação real, eram todas as terras caracterizadas também como datas. A estratégia frequentemente utilizada era a de se fazer uma petição de terras à Coroa com o intuito de se erigir uma capela, ao mesmo tempo em que se tentava uma autorização para se habitar em seu entorno (MARX, 1990-1992, p. 390-391). Desta forma, as descobertas ou primeiros achados expressivos de ouro definiam o assentamento e implicavam também a construção imediata de capelas, ainda que inicialmente toscas. Os arraiais se proliferavam, organizando-se em torno das capelas e se estendiam pelos caminhos de acesso às áreas de mineração, seja nas montanhas ou vales, em uma tentativa de domínio dessas áreas, seguindo o próprio espaço da produção (CUNHA; MONTE-MÓR, 2000, p. 308). Esse desalinho constitutivo das cidades mineradoras mineiras foi objeto de ironia por parte de Sérgio Buarque de Holanda, ao afirmar que, enquanto os espanhóis construíam cidades geométricas, a fantasia era a marca das vilas portuguesas, pois suas casas, em desalinho, pareciam que eram colocadas de acordo com a vontade dos moradores (HOLANDA, 1993). Murillo Marx, a partir da leitura de obra de Sylvio de Vasconcellos, chama a atenção para o pequeno tamanho das glebas de terras regulamentadas nas minas, opostas às generosas concessões de terras na colônia como um todo, marcada pelo sistema sesmarial. Nas aglomerações urbanas das minas, os amplos espaços rurais sesmariais vêm como que “a reboque das datas de mineração e dos primeiros acampamentos” (MARX, 1990-92, p.390). Vale lembrar que na medida em que novas jazidas eram descobertas em áreas de sesmarias, as terras passavam a ser regidas pelas normas referentes às datas minerais. Diante do precoce e intenso mercado de terras em curso, potencializado pela circulação monetária advinda da mineração, do esgotamento precoce das jazidas e do controle rígido exercido por Portugal quanto às posses de terras, duas ordens de concessão na região das minas eram possíveis, as sesmarias e as datas minerais 41 Murilo Marx interpretando Vasconcellos (1990, p.389), explica que nas minas, os mineradores acompanharam os cursos d’água “para fazerem suas descobertas e estabelecer as catas, obtendo a garantia de uma área e a licença governamental para sua exploração.” 42 Segundo Teixeira (2009, p.9) o solo mineiro, inicialmente, foi dividido em datas, parcelas bem menores do que as sesmarias, que eram usadas nas áreas rurais da Colônia e cuja unidade de parcelamento considerava a légua quadrada. As datas minerais, por sua vez, tinham como unidade de parcela a ‘braça de quadra’, que equivalia a apenas 66 metros quadrados, cabendo a cada minerador o número de datas, a serem exploradas, de acordo com o número de escravos que possuía. 111 (CUNHA; MONTE-MÓR, 2000, p. 307; CARRARA, 2007, p.149), predominando as segundas. Segundo Carrara (2007, p. 156), ainda que distintas do ponto de vista formal, ou seja, com relação às formas de registro, controle e tributação dos dízimos e da capitação, na prática eram praticamente indiferenciadas, com as concessões em sesmarias restringindo-se a meia légua em quadra onde houvesse terra com minas (CUNHA, 2002, p.141; CARRARA, 2007, p.154) e a três léguas nos demais espaços do território mineiro. Para se ter uma ideia de grandeza, nas demais capitanias as sesmarias concedidas tinham tamanho variável. As concessões nas capitanias do norte abrangiam, em geral, extensões maiores que nas do sul onde, em linhas gerais, as sesmarias não excediam três léguas de extensão, enquanto naquelas podiam ser encontradas concessões de 20, 50 e mais léguas (NOZOE, 2006). Isso só veio mudar em 1695 quando foi fixado um limite para as sesmarias de quatro léguas de comprimento e uma de largo, bem como a determinação de foros de sesmarias, a serem cobrados proporcionalmente à extensão e qualidade das novas concessões (NOZOE, 2006, p.593). Silva (2008, p.145) enfatiza que “a legislação sobre sesmarias na capitania de Minas Gerais não seguiu uma norma definida, variando de acordo com as circunstâncias”. Essa assertiva é compartilhada por Mello e Souza (1997), a qual enfatiza que as concessões também podiam variar em função do número de escravos tidos pelos mineradores: aqueles que possuíam 12 ou mais escravos recebiam uma área equivalente a 66 m² por escravo enquanto os que tinham menos de 12 recebiam 5,5 m² por escravo. Naturalmente que os possuidores de maior número de escravos e capital conseguiam obter lucros superiores e melhores resultados nas atividades mineradoras e afins. De acordo com Souza (2009, p.8), “a corrida do ouro não se deu apenas pelo sonho do enriquecimento rápido, mas, também, pela necessidade, agravada, no caso da população brasileira, pelas próprias consequências das descobertas”, pois, o processo de povoamento rápido e desordenado também implicou em impactos indesejáveis tanto nas áreas mineradoras quanto no restante da colônia. Mello e Souza (1997, p.18-19) descreve que o fluxo intenso de pessoas à região mineradora não foi acompanhado pela organização de uma infraestrutura mínima para o seu abastecimento, suprimento e subsistência alimentar, suscitando nesse cenário a ocorrência de surtos generalizados de fome, já que o custo de importação de alimentos era muito alto. 112 Schwartz & Lockhart (2002) enfatizam que os mineiros pagavam caro pelas coisas que precisavam. Tudo que chegava às minas seguia um longo percurso, transportado no lombo de animais, em tropas de cargas, por estradas precárias e caminhos sinuosos. Três eram os principais centros de abastecimento das minas durante o século XVIII: São Paulo, fornecendo milho, trigo, marmelada, frutas em geral, e entreposto de gado; Rio de Janeiro, que era o fornecedor de escravos africanos e artigos de luxo importados da Europa que desembarcavam em seu porto; e de Salvador vinham os escravos africanos recém-chegados ou egressos das lavouras açucareiras nordestinas em crise. A Bahia fornecia ainda o gado criado nos currais do Rio São Francisco e também mercadorias europeias, tais como tecidos, ferramentas, ferro, sal, entre outros produtos (MELLO E SOUZA, 1997, p. 19-20). Sendo a capitania incapaz de produzir em quantidade os meios de subsistência necessários à sua população sempre crescente, ela transformou-se em grande importadora de bens de consumo, pressionando o custo de vida em outras regiões do país. Em um movimento reativo, um número considerável de trabalhadores dessas regiões migrou para a capitania de Minas como única saída para sua sobrevivência, agravando ainda mais o problema (SOUZA, 2009). Como consequência da situação anteriormente apontada, crises intensas de gêneros de primeira necessidade assolaram as Minas do Ouro, atingindo, em alguns anos, proporções catastróficas43. Taunay citado por Souza (2009, p.9) ilustra a sua dimensão: E houve tal que matou ao seu companheiro por lhe tomar com a sua tenaz de pau uma pipoca de milho que do seu borralho saltou para o do outro dos poucos grãos que cada um tinha para alimentar a vida naqueles dias, aprovando-se por este caso como realidade o provérbio comum de que a fome não tem lei (Taunay, 1981, p.31 apud Souza, 2009, p.9). O resultado de tal situação: insubordinação, revoltas, mortes por inanição, fuga e abandono de arraiais... Ao mesmo tempo em que as Minas do Ouro eram propagadas de forma mitológica como um Eldorado tentador para potenciais desbravadores, frequentemente a realidade vivida por quem ali acorria diferia bastante das lendas fantasiosas proporcionadas pela febre do metal tão cobiçado. A ideia de enriquecimento 43 A capitania de Minas Gerais foi assolada por crises de fome que ficaram na história entre os anos de 1668-1669, 1697/98 e 1700/01 (SOUZA, 2009), conjugadas muitas vezes aos surtos de varíola, também chamada de bexiga. Como fatores agravantes destas crises, o autor destaca, entre outros: a longa distância da capitania das regiões produtoras/exportadoras de secos e molhados aliada; a precariedade dos caminhos e dos meios de transporte; concentração de braços nas atividades de mineração; falta de moeda circulante; os altos tributos que incidiam sobre as mercadorias importadas, contribuindo com isso para a elevação de preços no mercado bem como para a escassez desses produtos, sobretudo alimentos. 113 fácil esbarrou muitas vezes em muitos obstáculos como fome, fadiga, frio, escassez de gêneros alimentícios, gerando por fim, frustração, fracasso... Porém, de forma paradoxal, novos aglomerados humanos eram formados durante essas movimentações. Preocupada com os efeitos das turbulências sobre a atividade mineradora e diante da gravidade da situação, a Coroa tomou providências imediatas para manter o controle social e minimizar a falta de mantimentos e víveres sobre as minas: investiu na abertura de novas vias de comunicação, facilitando a passagem dos rios; ordenou o plantio de roças e o estabelecimento de estalagens nos caminhos que conduziam às minas. Para além dos efeitos de cunho mais social e de teor humanitário advindos destas medidas, o que estava em jogo era apoiar as atividades de mineração, garantindo e ampliando a arrecadação. Magalhães (2009, p.7) destaca que as crises alimentícias e a carestia dos gêneros alimentares constituíram-se traços marcantes nas Minas no início de sua colonização. Segundo a autora, a escassez e falta de alimentos foram o cenário para que se cunhasse o “mito da mineiridade”, um comportamento associado à “fartura e abundância alimentar”, supostamente existente entre os mineiros nos dias de hoje, como forma de compensação das penúrias passadas durante o primeiro momento da colonização. Nos momentos iniciais de intenso povoamento, os moradores das Minas Gerais padeceram por conta de sua insularidade geográfica. Distantes do litoral, as mesas dos mineiros eram abastecidas comumente com alimentos oriundos e produzidos localmente, mas com pouca diversificação, o que implica na necessidade de complementação, feita geralmente com produtos reinóis (FURTADO, 2009, 136). Entretanto, com a decadência da mineração e a progressiva predominância da agricultura como atividade econômica principal, passou-se a ter uma “fartura de alimentos [que] possibilitava a hospitalidade e por vezes até o esbanjamento, dando a ideia de recursos ilimitados” (MAGALHÃES, 2009, p.9). Outrossim, os tempos de precariedade criaram também uma nova relação dos mineiros com os gêneros alimentícios, tornando-os mais previdentes e fazendo-os desenvolver técnicas de armazenamento e estocagem da comida para uso em períodos de menor disponibilidade, tais como produção de conservas caseiras, doces, queijos artesanais, embutidos e alimentos defumados. A transição da economia mineradora, com uma sociedade predominantemente urbana, para uma economia agrária, institucionalizando uma sociedade rural, foi, para 114 muitos autores, o fio condutor do “mito da mineiridade” como sinônimo da abastança. Os primeiros que os propagaram foram os viajantes estrangeiros e tropeiros, nababescamente tratados nas fazendas em que se hospedavam. Uma leitura complementar a esta versão menciona que a fartura de mantimentos, muitas vezes apenas aparente, era um mecanismo utilizado pelos mineiros durante as refeições, principalmente quando na presença de visitantes, para ostentar riqueza ou mesmo para a obtenção de prestígio. Tal riqueza, quando verdadeira, se mostrava no fausto da avocada “mesa mineira”, reavivando o mito da cornucópia da abundância. Quando falsa, era disfarçada de todos os modos e sabores possíveis. Apesar das medidas adotadas pela Coroa para debelar as insubordinações e motins advindos das crises de abastecimento, segundo Anastasia (2005, p.33-4), nos primeiros anos de ocupação da região das minas, o Estado não se fez presente de modo marcante. Com a efetiva descoberta do ouro, as primeiras medidas visaram apenas normatizar a arrecadação tributária. Entretanto, com a eclosão do conflito denominado Guerra dos Emboabas (1709-1710), a disputa de hegemonia pelas minas que opôs os paulistas aos portugueses, baianos e pernambucanos, entre outros, a Coroa interveio com punhos de ferro sobre a região mineradora sob o pretexto de aplacar as contendas. O que estava em jogo, porém, era a necessidade sentida pela metrópole de aumentar ainda mais o cerco ao contrabando de ouro. Primeiramente a região das Minas do Ouro foi separada, juntamente com a capitania de São Paulo, da capitania do Rio de Janeiro. Depois, em 1720, adquiriu o status de capitania autônoma, separada de São Paulo, o que provocou uma migração externa e interna jamais vista até então, conferindo-lhe neste processo a posição de capitania mais populosa do país (MONTE-MÓR, 2001a, p.1). Neste período, povoados foram alçados à categoria de vilas, de forma “que as pessoas que assistem nas minas vivam reguladas, e na subordinação da justiça” (MORAES, 2005, p.17). Outras medidas tomadas foram: a institucionalização de mais um recorte territorial, as comarcas, sedes de todo um aparato judicial; a instalação das câmaras nas vilas, para exercer um papel político-institucional, e a demarcação dos termos44, submetidos a aparatos regulatórios da vida cotidiana urbana e rural (MORAES, 2005, p.20). 44 Correspondendo ao município de hoje, “termo designa toda extensão de território sob a jurisdição de uma vila, incluindo as freguesias e os arraiais” (MORAES, 2005, p.20). 115 A máquina judiciária instalada na capitania também reflete o controle da Metrópole para evitar sonegação: Enquanto em outras capitanias o aparato judiciário está concentrado numa única comarca, em Minas Gerais, no período colonial, serão instaladas quatro comarcas (Vila Rica, Rio das Mortes, Sabará e Serro), distribuídas pelo território de forma a garantir a proximidade da imposição da lei (LIMA JR., 1965, p. 25 apud PAULA, 2000, p.99). Ainda com relação às ações fiscalizatórias do governo lusitano destaca-se a adoção de medidas visando ao reconhecimento e mapeamento do espaço da capitania, acarretando a produção de um “conjunto notável de mapas e descrições geográficas” (FURTADO, 2009, p. 135). Só nas instituições nacionais encontramos sete mapas distintos, a maioria elaborada entre 1778 e 1815 (SANTOS et al. 2003). Mesmo com as contraditórias demarcações neles presentes quando comparados, eles oportunizaram um reconhecimento mais acurado da capitania. Abaixo apresentamos a Figura 35, outra representação geográfica feita por Santos et al. (2009, p.6), utilizando novamente o material produzido por Caetano Luís de Miranda. Para efeito comparativo, apresentamos também a Figura 36, elaborada por Cunha (2002, p.145), com o mesmo objetivo de representação, porém, apresentando a capitania projetada sobre o mapa atual do estado. Como pode ser visualizado nas Figuras 22 e 23, a então capitania de Minas tinha os seguintes marcos referenciais: ao sul, as capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro; ao norte, as de Pernambuco e Bahia; a oeste, a de Goiás; a leste, novamente a capitania da Bahia e a do Espírito Santo. Segundo Mello e Souza (1997), na região das Minas, três locais se destacavam como espaços com maior concentração populacional e de núcleos mineradores: Ouro Preto/Ribeirão do Carmo, Rio das Velhas e Rio das Mortes. Elevados posteriormente à condição de comarcas, suas sedes foram erigidas em Vila Rica, Sabará e São João Del Rei, respectivamente. Outras comarcas foram institucionalizadas anos depois, como Serro Frio, com sede na Vila do Príncipe. 116 Figura 22: Carta Geographica da Capitania de Minas Geraes [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.6). Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. No mapa foram destacados os limites da Capitania, de suas comarcas, as vilas cabeças de comarca, os limites com as outras capitanias e os principais elementos de hidrografia e relevo. 117 Figura 23: Mapa da capitania em 1720. Projeção sobre mapa atual. Destaque para as áreas limítrofes, divisão de comarcas e vilas principais. Fonte: Adaptado de Cunha (2002, p,145). No detalhe em vermelho, o arraial Curral Del Rey, em cujas terras seria erigida a futura capital. Em azul, Vila Rica (Ouro Preto), capital da capitania. Apesar da existência de um núcleo populacional com status de cidade – Mariana – foi Vila Rica que teve a primazia de ser elevada à categoria de capital da capitania em 1720, e, posteriormente, em 1823, quando da separação da colônia da metrópole portuguesa, à capital da província de Minas Gerais, com o nome de Imperial Cidade de Ouro Preto. Por trás da alegação de que a localização e a prosperidade foram os elementos definidores da escolha, pois “situada no centro de todas as Minas, aonde (sic) ficam as distâncias sem queixas iguais a todos, para os requerimentos da justiça, e expedição dos interesses” (MACHADO, 1967 [1734]: 179-81 apud CUNHA, 2007, p. 29), o elemento motor desta opção por Vila Rica foi o desejo da Coroa de minimizar o poder eclesiástico então instalado em Mariana. Em Vila Rica passaram a residir toda a nobreza e força da milícia, os homens mais letrados, os mais portentosos, 118 cujo tráfego e importância excediam o maior dos maiores homens de Portugal”. Para lá se “encaminham, e recolhem as grandiosas somas de ouro de todas as Minas na Real casa da Moeda”, [...] “é por situação da natureza cabeça de toda a América, pela opulência das riquezas a pérola preciosa do Brasil (MACHADO, 1967 [1734]: 179-81 apud CUNHA, 2007, p. 29). Em 1715, Vila Rica já era considerada um grande centro comercial, dispondo de 73 vendas, 63 lojas e duas farmácias, além de uma quantidade considerável de ofícios diversos, conforme foi levantado para fins de cobrança do quinto (SOUZA, 2009, p.8). Em 1740, contava com mais de 15.000 habitantes, recebendo o maior contingente populacional entre os principais centros mineradores (SCHWARTZ; LOCKHART, 2002). Para se ter ideia dessa magnitude, em termos comparativos, no ano de 1700, a população de cidades norte-americanas não alcançava a dimensão populacional da capital da capitania. Boston, por exemplo, tinha uma população estimada de sete mil habitantes; Filadélfia quatro mil; New Port 2.600; Charleston 1.100 e New York 3.900 (BRAUDEL, 1970, p. 407 apud PAULA, 2000, p.34). Em 1776, enquanto Vila Rica contava com quase 80.000 habitantes, New York, a mais populosa das cidades citadas, tinha apenas 25.000 habitantes (PAULA, 2000, p. 35). Foi construído em Vila Rica um palácio para o governador e instaladas as repartições administrativas, a junta da Real Fazenda e o comando das tropas militares. Além destes órgãos, ouvidorias, varas da justiça, intendências fiscais, casas de fundição e guarnições de milícias foram estabelecidas na capital e nas outras sedes das comarcas, completando assim uma estrutura político-administrativa interligada (ÁVILA, 1990, p. 78). Este modelo de organização local foi basilar em todas as colônias da América Portuguesa desde o século XVI, não sofrendo aqui alterações significativas (MORAES, 2005, p.5). Impunha-se, no Brasil, a figura do Estado e seus respectivos tentáculos burocrático-administrativos. Fato relevante é apontado por Silva (2008, p.99) em relação à organização burocrático-administrativa implantada na capitania. Embora a forte presença do Estado na capitania seja algo inegável, com as autoridades estabelecidas se empenhando em cumprir à risca as ordens emanadas da metrópole portuguesa e as leis promulgadas na colônia, “o recurso à repressão direta dos elementos desviantes da sociedade” [não garantiu] “a previsibilidade da ordem social e a imposição do Estado sobre aquela região”. Tensões, ambiguidades, atritos e conflitos davam o tom das relações entre a metrópole, seu braço administrativo na colônia e os habitantes da capitania. 119 Melo e Souza (1982, p. 91-140) ao analisar a forma como o poder metropolitano se fez presente na colônia, adjetivou-a com a expressão o “o agre e o doce”. Se as autoridades localmente constituídas pareciam se agigantar, pois uma vez longe do centro do poder – o rei –, tomavam para si a voz do soberano, por outro lado, a imensidão da capitania dava margem ao alargamento do poder privado, além de acentuar a sensação de desgoverno. Assim, amalgamando a reflexão de Caio Prado Jr, que via no desgoverno a marca da presença portuguesa, à de Raymundo Faoro, que acentuava o centralismo e o controle efetivo da região por parte das autoridades, Mello e Souza (1982) envereda por um caminho diferenciado em sua análise, analisando a presença estatal na capitania mineira como uma combinação de centralidade e ineficiência administrativa. Na mesma linha reflexiva de Mello e Souza, Paula (2000, p.94) argumenta que duas questões são centrais com relação à presença e natureza do Estado em Minas Gerais. A primeira reside no fato de Minas ter tido a “primazia” de ser a capitania onde efetivamente o Estado se impôs contrariamente à frouxa presença estatal que persistiu na colônia entre os séculos XVI e XVII. A outra questão diz respeito à natureza intrínseca deste Estado, com uma forma de atuação “[...] discricionária, coercitiva, tributária vis-à-vis ausência de dimensão efetivamente democrática ou de atendimento do interesse público” (PAULA, 2000, p.97). Estes dois elementos combinados, quer dizer, a presença forte de um Estado coercitivo, foram concebidos para colocar ordem, sufocar rebeliões, enforcar escravos, apagar arestas e atrevimentos de potentados locais, fiscalizar os quintos e o extravio dos metais preciosos. Desta forma o aparato estatal via burocracia colonial demonstrava e reforçava o domínio da coroa sobre a colônia, subordinando-a mais diretamente ao centro de decisão, em uma faceta mais agre que doce, usando os termos de Mello e Souza (1982). Porém, isso nunca foi tão simples, pois nas Minas do Ouro, segundo o nobre português Conde de Assumar, “a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdades os ares; vomitam insolências as nuvens, influem desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião” (MELLO E SOUZA, 1997, p. 38). A opinião de Assumar vai em direção contrária àquelas explicitadas por muitos escritores e analisadas sobre a vida de Minas Gerais. Simone Rocha (2007) assinala em sua tese de doutorado o apego dos mineiros à tradição, ordem, prudência e à moderação. Alceu Amoroso Lima, por exemplo, ressaltava o conservadorismo mineiro que tem, 120 entre seus valores fundamentais, a segurança, a permanência, a intensidade e a tradição. Heloisa Starling, que é mineira e autora do livro Os senhores das Gerais – os Novos Inconfidentes e o golpe de 1964 (publicado em 1986), analisou com mais detalhe a tese da cordialidade mineira, entendo ser esta tese ambígua, pois as revoltas mineiras, que culminaram na Inconfidência de 1789, seriam indicativos da intratabilidade dos mineiros. Para a autora, já há pelo menos dois séculos se atribui aos mineiros a vocação para a política e, simultaneamente, uma propensão para conspirações e rebeldias. Mesmo tendo o aparelho burocrático instalado na capitania estendido seus olhos e portentosos braços fiscais sobre os diferentes polos da atividade mineradora, estabelecendo-se sobre uma opressiva e voraz trama tributária, para Ávila (1999) o complexo arrecadador e fiscalizador auxiliou na geração de empregos e na circulação de renda, na medida em que atraiu interesses, impulsionou ainda mais o crescimento demográfico e favoreceu a dinamização da indústria da construção, do comércio e dos serviços. Deixava assim algo de doce no processo de formação da capitania mineira. No embate entre a Coroa e a capitania mineira, há que se ressaltar que esta última desempenhou importante papel no contexto do processo de acumulação primitiva. A produção de ouro e diamantes e a ampla pauta de importações a que a capitania se acostumou, ainda que sob uma imposição opressiva em termos tributários, significaram a geração de lucros coloniais consideráveis, essenciais na consolidação do modo de produção capitalista (PAULA, 2000, p. 73). Isto porque o ouro, principal produto de Minas, era “meio de circulação, dinheiro, que, legal ou ilegalmente circulou amplamente na capitania” (PAULA, 2000, p.14), desenvolvendo as trocas e estabelecendo mercados. Por outro lado, este mesmo meio de circulação garantia fundos para a Metrópole Portuguesa e para a Inglaterra, sua “aliada”. Estudando o grau de mercantilização alcançado pela capitania mineira no século XVIII, um interessante artigo organizado por Cunha et al. (2006, 2007) apresenta um esboço de regionalização para a capitania, delimitando “cadeias e regiões econômicas” em voga nas Minas Gerais no referido século. A ideia subjacente na regionalização proposta é que a conformação do território mineiro foi orientada pela expansão e diversificação econômica, propiciadas pela economia mineradora, e irradiadas dos centros mineradores em direção às fronteiras da capitania. Teríamos assim “um processo de organização espacial orientado pelas especificidades produtivas locais [em consonância] com os arranjos das rotas de comércio que articula” (CUNHA, 2002, p.133). 121 Ainda que apontar uma configuração de realidades regionais na capitania mineira nos anos setecentos nos pareça algo bastante incisivo, tentar fazê-lo tendo como elemento central o processo de diversificação suscitado pela economia mineradora é um exercício teórico arrojado e ao mesmo tempo inovador, “pois a preocupação com a efetiva tradução espacial, em bases cartográficas, desta diversificação de áreas, não tem tido lugar nas pesquisas sobre o Dezoito” (CUNHA; GODOY, 2003, p.3-4). Aliás, não só a projeção cartográfica da diversificação de áreas é inovadora, também o é a própria ideia de diversificação, pois, por muito tempo esteve cristalizada na historiografia a noção de que a capitania mineira restringia-se, em termos econômicos, à atividade mineradora. Retomando a ideia proposta por Cunha & Godoy (2003, p.4-6), destacamos que os referidos autores começaram sua análise delimitando “categorias de percepção geográfica” à época, quer dizer, como as pessoas (forasteiros e nativos) reconheciam e nomeavam as especificidades naturais com as quais se deparavam. Simultaneamente, determinaram quais as mudanças nelas processadas a partir do dinamismo da economia mineradora. Como resultado, desenharam uma representação cartográfica da capitania de Minas Gerais para o século XVIII (Figura 24). Delineia-se do referido estudo que, na geografia colonial, antes das primeiras descobertas auríferas, Minas Gerais era considerado um grande e desconhecido “Sertão” 45 , mesmo já tendo recebido algumas expedições em busca de riquezas minerais que resultaram infrutíferas. Essa era, em linhas gerais, a percepção que se tinha do espaço mineiro (CUNHA; GODOY, 2003). Contudo, à medida que as descobertas metalíferas se concretizaram, avançando ao largo da capitania, o “desconhecido” sertão vai paulatinamente se transformando em espaço “conhecido” (CUNHA, 2002). Neste processo, em que a atividade mineradora 45 Segundo Carrara (2007, 42-2), as primeiras referências ao vocábulo, ou seja, a acepção original da palavra sertão remonta aos navegadores portugueses que chamavam de “sartaam” as terras localizadas além das costas ao longo das quais navegavam e conheciam. A partir daí o termo foi sendo transmutado até chegar à fase de identificação das áreas no interior do continente como sertões. Neste sentido, à orientação geográfica do seu significado original seguiram-se outros, mas, sempre indicando comparações: as conhecidas costas, engenhos, vilas, minas se opunham aos sertões, estes sempre considerados como lugares ermos, desconhecidos ou pouco habitados. Na capitania mineira, por muito tempo após a descoberta do ouro, os sertões eram considerados áreas de ocupação proibida ou restrita, fechadas à ocupação. Tal medida tomada pela Coroa portuguesa objetivava evitar o extravio de ouro ou a abertura de novos caminhos, sobre os quais não se tinha controle e fiscalização. Anastasia (2005, p.35-6), em estudo sobre a geografia do crime nas minas setecentistas, identifica os sertões como área de non droit, onde proliferavam desbravadores tidos como não oficiais e considerados vadios, salteadores ou contrabandistas. 122 era o ponto focal, o espaço foi sendo modelado a partir da oposição do agora conhecido espaço das minas, as Minas, em oposição ao espaço que continuava desconhecido, o espaço do sertão. Em outras palavras, Minas seria a região governada pelos primeiros descobrimentos auríferos e seu perímetro de influência imediata. O sertão, grosso modo, após o estabelecimento dos núcleos mineradores, era tudo aquilo que estivesse além deles, fazendo-se assim “uma clara dissociação entre os espaços do nascimento das vilas do ouro e suas áreas contíguas, em oposição às paragens mais distantes, difíceis ou incertas [...]” (CUNHA, 2002, p. 137). Figura 24: Mapa da Capitania de Minas Gerais no século XVIII: categorias de percepção do espaço setecentista. Projeção sobre mapa atual. Fonte: Adaptado de CUNHA (2002, p.140). No detalhe em cinza, a região das Minas e suas principais nucleações. As barras laterais indicam os limites de colonização efetiva da capitania no século XVIII. Com a expansão do surto colonizador, dá-se um crescente avanço sobre as áreas desconhecidas simultaneamente à sua apropriação econômica, resultando em uma mudança na percepção do espaço. Por exemplo, à medida que a pecuária extensiva foi ocupando áreas no desconhecido sertão, estas passam a ser reconhecidas como Currais. Algo semelhante processou-se ao sul da capitania. Nesta área de grande fertilidade, borda do sertão adentrada pelos paulistas, floresceu uma produção agrícola destinada ao 123 abastecimento das minas, conformando o sertão desconhecido em Campos Sul (CUNHA, 2002). Avançando no território mineiro, na extensão da Serra da Mantiqueira até o pé da Serra do Mar na capitania do Rio de Janeiro, os desbravadores “descobriram” uma área de vegetação exuberante e mais densa que foi denominada de Matos. “Marca-se aí na paisagem natural uma divisão clara entre os ‘campos’ férteis e abertos ao sul do Rio Grande e as áreas fechadas, dos ‘matos’ a leste” (CUNHA, 2002, p.141). Em viagem pelas minas, escreveu o ouvidor Caetano da Costa Matoso ao se deparar com os Matos: [...] daí entrei a subir e vim até um ribeiro em pouca distância e dele entrei a subir por uma serra acima, chamada Mantiqueira. [...] Do alto dela, olhando para trás, vi a distância do que tinha andado até a serra do Mar e a infinidade de montes de que se compõem estas serras, na verdade, demasiadamente fragosas. [...] E daí vim descobrindo alguns morros descobertos sem mato, e só as baixas é que tinham algum, até que cheguei mais me foram aparecendo descobertos os morros [...] deixando aquele afogado e melancólico caminho em que em dez dias não via outra coisa senão o mato e árvores imediatas a mim. Assim nesse maior desafogo, cheguei pelo meio dia a uma baixa em que há um sítio chamado a Borda do Campo, por nele acabar o caminho do mato [...] (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1999, p. 895). Pela descrição feita por Matoso, inferimos quão difícil era para a Coroa evitar o extravio de ouro por meio de caminhos e picadas nos matos. Diante da impossibilidade de manter uma fiscalização e controle efetivos dos “Sertões da Mantiqueira”, a Coroa proibiu em 1736 a ocupação, a abertura de qualquer via, a instalação de sítios e mesmo a circulação de homens naquela área. Conforme Anastasia (2000, p. 121-2), essa medida restritiva estava direcionada não só aos matos, mas também às outras extremidades não povoadas da capitania, sobre as quais as posses só seriam permitidas mediante a autorização expressa do governador. Sintetizando o exposto, podemos dizer que o sertão, “designação irrestrita dos espaços desconhecidos” (CUNHA, 2002, p.142-3), vai sendo paulatinamente “empurrado para as bordas do não ocupado, não transformado e no limite não conhecido”. Neste processo, rapidamente se transmuta em minas, currais, campos e matos, em um movimento de expansão dos contornos iniciais da capitania e depois província até chegar à atual conformação do estado. Portanto podemos inferir que as fronteiras mineiras foram sendo modeladas por longo tempo como um “objeto em construção”, tendo como eixo propulsor a força do impulso minerador que vai urdindo progressivamente o território: 124 [...] ‘o conjunto do território mineiro vai sendo produzido a partir da força integradora da economia da mineração’, [em uma velocidade impressionante e com], [...] uma progressiva incorporação de espaços de formação distinta, diferenciados a partir de suas especificidades físico-geográficas e do curso de suas formações econômico-sociais. (CUNHA; GODOY, 2007, p. 5-6). As paisagens mineiras, com seus distintos relevo, hidrografia, vegetação, solo, clima e demais especificidades naturais pouco a pouco passam a ter outras significações. Importante destacar que estas diferenças naturais só constituem categorias distintas de percepção com o movimento de ocupação efetiva das áreas, sendo então traduzidas em diferentes “identidades econômicas”, [com] “uma certa unidade de atributos geográficos, aos quais, em última instância, as atividades produtivas estão associadas” (CUNHA; GODOY, 2003, p.33). Em outras palavras, às categorias de percepção ditas como mato e sertão, como não ocupadas e/ou exploradas economicamente, permaneciam identificadas como Sertões. As demais categorias, currais, campos sul e minas, corresponderiam, respectivamente, às regiões Curraleira, Campos Sul e Região das Minas, conforme visualizadas na Figura 25, abaixo. . Figura 25: Mapa da regionalização de Minas Gerais para o século XVIII. Diferenciação espacial e especialização das atividades e eixos comerciais. Projeção sobre mapa atual Fonte: Cunha (2006, p.3). Destaque para a área em amarelo, a região das Minas, onde se localizavam de forma dispersa as vilas auríferas mais populosas. 125 Os espaços demarcados no mapa como Sertões não conformariam regiões do ponto de vista econômico nos fins do século XVIII, sendo não mais que a soma de áreas fracamente povoadas ou integradas (CUNHA; GODOY, 2003). Um segundo espaço, ultrapassando um pouco os limites setecentistas da comarca do Rio das Mortes, foi denominado Região Campos Sul, parte da capitania especialmente dedicada à produção agropecuária. Em destaque em amarelo no mapa, qualificaram a existência superposta do “hinterland da Região Mineradora, ou [...] Região das Minas, com seu entorno estendido onde se qualifica para além da mineração, [...], concentrada na nucleação urbana, tanto produção agropecuária como manufatureira” (CUNHA, 2006, p.8, grifo do autor). Além das regiões citadas, os autores ainda divisaram espaços por eles denominados de regiões de enclave, como Paracatu e Minas Novas, as quais mesmo possuindo algumas nucleações urbanas de hierarquia superior, não apresentavam complementaridade econômica com as áreas a elas contíguas. 2. Para além da mineração: a produção agropecuária colonial. Ainda que a historiografia mais tradicional mencione a total dependência da capitania de Minas Gerais de produtos importados de outras localidades para seu abastecimento, não realizando nenhuma outra atividade econômica além da mineradora, mais recentemente tal assertiva vem sendo redimensionada, como vimos anteriormente no trabalho desenvolvido por Cunha et al. (2003). A perspectiva que ainda defende a exclusividade produtiva de ouro, segundo diversos autores, reflete a visão hegemônica e mercantilista da metrópole portuguesa sobre a colônia (SILVA, 2008), sendo extremamente influenciada pela farta documentação produzida neste sentido pelo Estado português (CARRARA, 2007). Por conseguinte, as análises baseadas nos ciclos econômicos exportadores se tornaram referências obrigatórias quando se tratava de analisar a mineração aurífera ou diamantífera colonial (FURTADO, 1980). Nesta dimensão, o período minerador foi compreendido como a fase áurea da história mineira, ao realizar plenamente a vocação exportadora da economia brasileira (PAULA, 1988). Para além da perspectiva hegemônica e metropolitana, segundo Silva (2008, p.76), a economia mineira no século XVIII apresentava uma relativa complexidade, 126 com uma rede interna de abastecimento, que incluía a produção agropecuária e a “fabricação” de tecidos grosseiros, pois: A necessidade de alimentos e de outros produtos, logo a partir dos descobrimentos auríferos, fez com que rapidamente se diversificasse a economia mineira. Pequenas granjas, fazendas e roças logo foram se instalando ao longo dos caminhos que conduziam às primeiras minas de ouro e, mais tarde, núcleos de produção foram se estabelecendo em torno das vilas e dos arraiais (SILVA, 2008, p.76). Neste sentido, apresentam-se, além da tradicional tese da exclusividade produtiva aurífera, duas outras narrativas teóricas acerca das atividades econômicas encetadas em Minas Gerais no século XVIII. De forma resumida, uma propõe a coexistência da produção aurífera com alguma agricultura de subsistência (FURTADO, 1974; PRADO JR,1981), sendo esta, porém, encarada como atividade marginal. A segunda narrativa defende a importância e a existência de outras atividades econômicas, especialmente a agricultura e as atividades artesanais e sua articulação com a mineração, porém, não em uma perspectiva secundária. Com relação à historiografia clássica, vários são os argumentos utilizados para defender a tese da incipiente ou mesmo inexistente produção agrícola na capitania. Alguns estudiosos utilizam como argumento a “escassez” da mão de obra escrava. Por conseguinte, em um contexto onde a atividade mineradora era central, não seria interessante o desvio da força produtiva disponível para outra atividade de menor significado e lucratividade econômica (ZEMELLA, 1995, p. 234). As crises de abastecimento e os surtos de fome ocorridos na capitania também são argumentos usados para rechaçar uma possível produção agrícola local vigorosa. Esquecem os autores que a utilizam que a dimensão e a rapidez do crescimento populacional na região das minas foram de tal ordem que a demanda por víveres cresceu vertiginosamente, sendo muito difícil supri-la, mesmo em um cenário de considerável produção interna. Muitos que defendem a coexistência da agricultura com a mineração apontam a atividade agrícola como auxiliar, secundária, precária, destinada à auto-subsistência ou sua valorização e crescimento somente a partir da crise da atividade mineradora. Cunha (2009, p.65), por exemplo, acredita que, os espaços inicialmente ocupados, voltados à mineração, demandaram fluxos de abastecimento, e, neste sentido, o espaço urbano terminou por criar um espaço rural. Com as crises de escassez nos primeiros anos do século XVIII, momentos em que a população pioneira ainda não dispunha de vias estabelecidas de abastecimento para os núcleos urbanos, houve a necessidade de 127 produzir “espaços complementares de produção agrícola e pastoril e, com isso, a produção em si do espaço rural”. Assim, para Cunha (2009, p.58), além de simplesmente anteceder o rural, o espaço urbano das cidades mineradoras é que o cria e condiciona, “e não o contrário, como via de regra se pensa o caminho da formação das cidades e dos espaços urbanos na história”. Para os autores revisionistas que defendem o papel central da agricultura, já existia uma produção interna significativa desde os primórdios das atividades mineradoras, inclusive porque os altos preços alcançados pelos gêneros alimentícios nas minas constituíam um estímulo à produção. Vários estudos têm abordado que ao redor das áreas de mineração, cresceram fazendas e roças nas quais se empregavam muita mão de obra, exclusivamente voltadas para a produção e venda de gêneros alimentícios, ainda na época de auge da extração aurífera (GUIMARÃES; REIS, 1987; GUIMARÃES; REIS, 1986; ANDRADE, 1985). Segundo Charles Boxer (1969, p. 71): “Muita gente, de fato, depressa considerou mais lucrativo plantar a fim de fornecer alimento aos mineiros do que se entregar ela própria à mineração”. Em assim sendo, muitos sitiantes e fazendeiros, com a utilização do trabalho familiar e/ou escravo, tornaram produtivas terras localizadas no raio de algumas léguas dos núcleos urbanos e terrenos minerais, incluindo aquelas disponíveis nos subúrbios das vilas e arraiais, nestas obtendo uma gama variada de hortaliças, frutas, farinhas, quitandas, laticínios, doces e bebidas. A esse respeito, Martins (s.d) fez estudo de caso sobre a produção em Diamantina, mostrando a diversidade produtiva para o abastecimento local em um espaço farto em riquezas minerais como era a referida cidade. Na linha argumentativa que defende a centralidade da agricultura vis à vis atividade mineradora, o artigo de Guimarães e Reis (1987) é um clássico, recuperando informações das cartas de concessão de sesmarias e terras para contextualizar a essencialidade da agricultura, a qual, para esses e outros autores, absorvia expressivo contingente populacional, tendo sido primordial para a implantação e crescimento da empresa e da sociedade mineradoras, assim como o foi com a crise desencadeada pela decadência da mineração. Segundo os autores citados: O argumento da absorção de todas as atenções pela atividade mineradora deve ser refutado em dois níveis: o primeiro referente à possibilidade de se chegar ao ouro e diamantes por meio de outras atividades, e o segundo, que nos remete à utilização comprovada da mão de obra escrava, em quantidade expressiva, em outras atividades diferentes da mineração, mesmo no 128 momento em que a atividade extrativa se encontra em seu apogeu. (GUIMARÃES; REIS, 1987, p.20). Guimarães & Reis (1987, p.20-1) apoiam a visão de Sérgio Buarque de Holanda, citando-o ao enfatizar que na metade do século XVIII era provável que a população que se dedicava à mineração não chegasse nem à terça parte do total, o restante estando voltado a atividades diversas. Carrara (2007, p. 38), também vai nessa linha argumentativa, utilizando alguns dados disponíveis sobre a estrutura ocupacional da população à época para iluminar o lugar ocupado pela agricultura em Minas Gerais e, em especial, nos distritos mineradores, nos quais grande parte da população estava voltada às atividades agropecuárias. Porém, o autor enfatiza que os documentos relativos ao período setecentista são precários para se corroborar de forma mais abrangente sua assertiva. Ainda a esse respeito, Paula (2000, p. 40-1) advoga em seu livro que os espaços de mineração, centrados na exploração aluvional, tiveram ritmos diferentes, o que explicaria assim a especialização em atividades agropecuárias em algumas regiões. Assim, conforme o autor, somente a região central – apontada no mapa 3 no detalhe em amarelo –, ficou mais tempo restrita a essa atividade em função de ter tido um surto minerador mais longo. Nas demais localidades, a atividade mineradora foi substituída mais rapidamente ou foi explorada concomitantemente com as atividades agropecuárias. A hipótese da co-existência de diferentes ritmos e espaços produtivos é também aventada por Carrara (2007, p.285), que aponta a heterogeneidade local e diz que à capitania mineira não cabem adjetivos generalizantes, pois lá existiam muitas Minas. As especificidades de cada atividade produtiva em relação às demais dão uma perspectiva da dinâmica da economia global (GUIMARÃES; REIS, 1987) e dos fatores que terminaram por influenciar a gênese da sociedade mineira. Há que se perceber uma polarização que contrapõe os interesses metropolitanos, representados pelos lucros auferidos com a mineração, com os interesses dos coloniais que se dedicavam a outras atividades que não as de extração de metais preciosos. Os argumentos apresentados são importantes para termos uma dimensão da complexidade da sociedade mineira à época. Como dito por Paula: Trata-se, assim, de reconhecer, desde o século XVIII, a existência, em Minas Gerais, de uma sociedade diversificada do ponto de vista social e produtivo, dotada de estruturas burocráticas complexas, de mobilidade social, de vida cultural e artística com uma insuspeitada força, tudo isto nos limites dos constrangimentos coloniais. Numa palavra, trata-se de surpreender, nas Minas Gerais setecentistas, uma sociedade urbana, uma rede articulada de núcleos urbanos que se estrutura rapidamente [...] uma “civilização urbana”, 129 o que não significa negar a presença ampla e marcante da dimensão rural na constituição das Minas Gerais, senão que afirmar a diversidade da Capitania, da província, do Estado [...]. (PAULA, 2000, p. 14-15). As ideias apresentadas por Paula (2000) fazem coro com as defendidas por Schwartz & Lockhart (2002). Segundo eles, por volta de 1760 o ouro começou a escassear, porém, o tecido social mineiro já estava consolidado. Estimuladas pelo forte mercado local do período de expansão, fazendas mistas de mineração, agricultura e pecuária já estavam desenvolvidas e bem consolidadas. O comércio nas vilas era diversificado, contando com produtos alimentícios e artesanais de origem local. Tal diversificação econômica conseguiu absorver o impacto da decadência da atividade mineradora. 3. Religiosidade e modos civilizados: notas sobre a cultura mineira. As especificidades da constituição de Minas Gerais não se restringiram ao campo econômico. Um aspecto particularmente expressivo na sua formação diz respeito às relações Estado-Igreja. Diferente das demais capitanias, onde a influência e poderio jesuíta se mostravam no dia-a-dia no período colonial, na capitania mineira será praticamente nula a presença dessa ordem religiosa. Alguns atribuem essa situação ao tratamento essencialmente político dado pela Coroa à presença da Igreja, inclusive, proibindo o “estacionamento das ordens religiosas ou expulsando os religiosos sem função em atividades espirituais” (CUNHA, 2002, p. 190), estando o reino português mais preocupado com uma possível apropriação dos tesouros mineiros por terceiros do que com a evangelização dos gentios. Outros usam também esse argumento para explicar o desinteresse e/ou fragilidade demonstrada pelas ordens religiosas na missão evangelizadora, qual seja, pouco interesse em atividades espirituais vis à vis às suas crescentes ambições materiais. A esse respeito, escreveu Teixeira Coelho: Os Frades de diversas religiões, levados pelo espírito do interesse, e não do bem das Almas, acrescentaram em grande parte o número do povo: eles, como se fossem seculares, se fizeram mineiros, e se ocuparam em negociações e em adquirir cabedais por meios ilícitos, sórdidos e impróprios de seu Estado (COELHO, 1903, p. 448). Os clérigos são revoltosos; que faltam com pasto espiritual às ovelhas, que são ambiciosos, simoníacos, e que são rebeldes em pagar os quintos, pertencendo não mais a isto obrigados, ocultando os Escravos na repartição das Bateias (COELHO, 1903, p. 448). 130 A ausência e/ou a precariedade das ordens religiosas tradicionais na capitania mineira cederam espaço à constituição e proliferação das Ordens Terceiras, Pias Uniões, Confrarias, Arquiconfrarias e “irmandades”, muitas destas sendo organizações laicas com práticas religiosas inspiradas em suas homônimas metropolitanas, porém singulares em suas manifestações, “dedicadas às devoções prediletas da população local”, adequando-se assim às especificidades das minas (CUNHA, 2002, p.188). Isso resultou em uma vida religiosa local menos marcada pelo influxo contrarreformista, característico da ação jesuítica, e a manutenção de uma prática religiosa em grande medida pré-reformada, ou seja, “com fortes vínculos com a religiosidade medieval em que há decisiva participação dos leigos, vis-à-vis, uma menor influência dos clérigos” (PAULA, 2000, p. 99). Além disso, muitas destas instituições garantiam diversas manifestações da vida social, tais como assistência social, festas, bem como a defesa de interesses individuais e coletivos. Se grassava na capitania o desejo mundano de enriquecer, as disputas ferrenhas pelo ouro, a competição pelo subsolo, a ambição pelo poder e riqueza, existia também um sentimento religioso que se manifestava concretamente na edificação de capelas e igrejas em qualquer arraial e freguesia que ensaiasse existir, feitas em taipa ou em outro material disponível, que, muitas vezes, chegavam ao nível de freguesias e paróquias organizadas (MONTE-MÓR, 2001a). Sob essa ótica, esses espaços de fé delineados com as cores da singular religiosidade local eram o único elemento de certa forma estável diante da “paisagem inquieta dos ajuntamentos marcados pelo sabor das descobertas auríferas” (CUNHA, 2002, p.188). Em face da fragilidade do poder central nas minas e de sua impossibilidade de dar respostas consistentes às necessidades de uma dinâmica econômica e demográfica jamais vistas na colônia, a proliferação das irmandades foi incentivada pela Coroa como alternativa organizacional à centralização da Igreja, tornando-se “importantes instituições da sociedade civil de então, isto é, os únicos espaços capazes de garantir algum grau de organização autônoma, de busca de defesa de interesses coletivos” (CUNHA, 2002, p. 49), com destacada abrangência na capitania e exercendo atração sobre todas as camadas da população. Neste sentido, Cunha (2002) destaca que as irmandades penetravam profundamente na vida das pessoas, sendo imprescindível filiar-se a uma dessas, uma “condição de vida e morte para o habitante das Minas”, já que até mesmo o sepultamento não se fazia sem o hábito de “Irmão” (BOSCHI, 1986, p. 150-151 e p. 131 177), pois as áreas destinadas a tal fim, a céu aberto ou dentro dos templos, pertenciam às irmandades. Em contrapartida às dificuldades e crueza da atividade mineradora e ao embrutecimento cunhado pela labuta nas minas, as irmandades religiosas acenavam com auxílio espiritual e material, com o apoio mútuo e a solidariedade em meio ao ambiente hostil, onde a “[...] insegurança e instabilidade” eram os elementos mais palpáveis naquelas longínquas paragens (MONTE-MÓR, 2001a, p.5). Há que se destacar, porém, que as irmandades se organizavam em grupos de acordo com a condição social dos irmãos, por exemplo, os comerciantes ricos, donos de lavras e burocratas pertenciam normalmente aos quadros das ordens terceiras do Carmo e de São Francisco; as classes dirigentes originais das povoações e dos reinóis associavam-se às confrarias do Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora da Conceição, São Miguel e Almas, Bom Jesus dos Passos e Almas Santas; os escravos africanos às irmandades do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia; os escravos crioulos, forros, mulatos à irmandade Mercês, e os pardos à de São Gonçalo (SALES, 1963, p. 47; BORGES, 1998, p. 66). O naturalista francês Saint-Hilaire (1975, p.85) descreveu a religiosidade laica mineira com desconfiança, traduzindo-a como ausência da fé, já no século XIX. Para ele era comum o mineiro ir “[...] à missa bater no peito e, ao mesmo tempo, conversar com os vizinhos. Quase todos os mineiros usam um rosário no pescoço, mas muito poucos existem a quem tenha visto rezar”. Contrapondo-se a essa perspectiva, Boschi (1986) argumenta que a religiosidade mineira revestiu-se de um viés essencialmente pragmático. Assim, as devoções pessoais, o culto aos santos, as pompas das festas e das procissões, características da religiosidade mineira, longe de representarem ausência de fé ou ostentação eram manifestações imbuídas de um: [...] caráter essencialmente prático e imediatista, em que se busca suprir a insegurança emocional, levar consolo e prestar auxílio nas doenças (...). Por isso, o culto aos santos, longe de ser uma atipicidade, tornou-se exatamente o seu traço peculiar. Em síntese, não houve naquela realidade social sinais de irreligiosidade; antes, ali aflorou uma forma própria de vivência do catolicismo, em que a fé se associava à cultura local. (BOSCHI, 1986, p. 1789). Com as vantagens proporcionadas pelas ordens laicas para a Coroa, dentre elas a possibilidade de redução de custos pela transferência às comunidades de diversas tarefas e obrigações funcionais e financeiras do estado português, as irmandades foram 132 ao longo dos anos não só incentivadas quanto por ele cooptadas. Por sua vez, esta relativa descentralização de poder resultou no fortalecimento em Minas Gerais de uma urbanidade e cidadania peculiares no contexto das cidades coloniais brasileiras. Como resultado desse processo dá-se a formação de uma população livre nas vilas da mineração, superior numericamente, em alguns momentos e locais, à população escrava. Outra peculiaridade que teve lugar na capitania mineira foi a emergência de uma classe média poderosa e diversificada, desenvolvida com o comércio e artesanato, monetariamente capaz de realizar investimentos urbanos e empenhar-se em disputas de poder ao nível local. Algumas dessas redundaram, por exemplo, em tentativas de estabelecer uma autonomia republicana, tal qual na Inconfidência Mineira. Retomando a ideia da singularidade constitutiva da sociedade mineira, outro ponto que merece ser destacado é que a ebulição econômica, social e política bem como sua religiosidade “típica” também trouxeram consequências no âmbito cultural, projetando em Minas Gerais um espaço diferenciado, seja na música, na literatura, artesanato e, como não poderíamos deixar de citar, na arquitetura. Utilizando materiais locais, a saber, pedra sabão, madeira e alvenaria, as construções civis bem como as edificações religiosas são reconhecidamente marcadas pela engenhosidade e pela qualidade técnico-artística. Não por outro motivo, a quantidade de mestres e artesãos que residiam na capitania mineira era muito expressiva além de, como aponta Paula (2000, p.45-6), uma grande diversidade de pessoas ligadas às “manifestações artísticas e profissionais típicas da civilização urbana”, tais como música, teatro, escultura, pintura, ofícios jurídicos e práticas médicas, inclusive tendo um corpo médico dos mais atualizados da colônia. Este caldeirão cultural transbordava de refinamento intelectual, rebeldia, e impressionante criatividade artística e, aliado à presença de notáveis equipamentos urbanos, “(...) fizeram de Minas um lugar singular na América portuguesa”, enfim, “(...) um resíduo de vilas, igrejas, artesãos, música, arte, e outras formas de vida cultural (SCHWARTZ; LOCKHART, 2002, p. 436), que possibilitaram uma profusão de cultura em estado puro”. Paula (2000, p.117) destaca a capacidade intrínseca dos mineiros de se apropriarem, ao longo do tempo, de elementos culturais externos, recobrindo-os com um verniz próprio, ou seja, plasmando-os “a partir de uma genuína cor local”. Segundo ele existem muitos exemplos de como os repertórios culturais europeus foram agilmente assimilados, transformados e difundidos nas Minas, mesmo com as precárias condições 133 de transporte e comunicação vigentes à época. Por outro lado, esses códigos da cultura europeia não eram tão somente copiados, mas resultavam em efetivas apropriações que, não raro, impressionam por transcender a motivação da matriz europeia, como por exemplo, o movimento Barroco. Avaliando que, ao se falar de um sistema cultural, não podemos considerar apenas o referente às artes, ao discurso letrado, mas também àquilo que diz respeito ao “cotidiano e suas várias tramas”, é importante perceber que determinados aspectos da cultura mineira “são tão constituintes de sua identidade quanto o decorrente de suas manifestações estético-religiosas”. Sob esta ótica fazem parte do sistema cultural mineiro também sua comida e as condições em que eles a “inventaram” no período colonial, ainda que seja a “alimentação um fato histórico, que se transforma ao longo do tempo, que não admite juízos fixos” (PAULA, 2000, p.115). Cabe ainda mencionar outro elemento constituinte da identidade mineira que é a forma como a língua portuguesa foi ali adaptada. A ausência da educação jesuítica, a interdição da imigração de estrangeiros, a forte presença africana – em uma sociedade com expressivo contingente populacional e relativo grau de mobilidade –, suscitaram em Minas uma trama social complexa e heterogênea. Tais elementos, sob intensa interação e sobrepostos a uma estrutura produtiva diversificada, considerável nível de urbanização e presença do Estado, resultaram na formação de um efetivo “sistema cultural” a partir do século XVIII, ou seja, um conjunto articulado, interativo e complexo dos citados elementos, produzindo tanto “(...) instituições quanto símbolos, mentalidades e representações” (PAULA, 2000, p.117). Pelo exposto anteriormente, poderíamos inferir que estaria em curso na capitania mineira, a partir do século XVIII, um processo civilizador nos moldes de Norbert Elias (1993)? Esta é realmente uma questão complexa que merece investigação particular. Alguns autores dão algumas contribuições neste sentido. Eduardo Frieiro (1966), por exemplo, fala da rudeza e precariedade dos mineiros, especialmente à mesa, onde comiam sem o uso de talheres, entre outros costumes “incivilizados” dos menos abastados. Júnia Furtado assim os descreve: As mãos desses homens e mulheres davam forma à pedra, à madeira e a outros objetos que, juntamente com as mercadorias que o comércio trazia de longe, compunham o universo material que moldava o cotidiano da sociedade mineradora. Dentro das casas reinava a simplicidade, os móveis eram poucos e rústicos, as roupas, em geral escassas. A maioria das pessoas dormia em redes ou em estrados de madeira, cobertos de palha. As camas de madeira, 134 principalmente as com dossel, eram raras e constituíam um luxo. À mesa, os hábitos eram simples. Sentava-se geralmente em tamboretes e comia-se em pratos de folha ou estanho, quase sem a utilização de talheres. Os talheres de prata serviam mais como pecúlio, penhorado em troca de moedas em uma hora de aperto (FURTADO, 2009, p. 137). Porém, a autora faz um contraponto, dizendo que tal padrão de comportamento não era generalizado, pois “[...] havia ambientes onde o luxo imperava, muitas vezes até mesmo onde se esperaria a simplicidade” (FURTADO, 2009, p.137). Parece ser esse o caso, por exemplo, dos modos de vida de negras mineiras alforriadas, conforme descrição seguinte: Não foram poucas as mulheres forras que reuniram entre as paredes de sua casa objetos que rememoravam seu passado africano, junto a outros que permitiam a inserção delas na cultura branca portuguesa, assumindo em parte seus hábitos, a partir do domínio sobre a cultura material, o que lhes distanciava cada vez mais do mundo da senzala onde nasceram (FURTADO, 2009, p.137). O exemplo nos remonta à análise de Moreira (2006, p. 7) quando este diz que na “dimensão da vida das pessoas, alguns valores e éticas de comportamentos são construídos legitimados como verdadeiros e superiores enquanto outros valores e éticas são localizados como falsos e inferiores”. Nesta perspectiva, não era fato raro nas minas coloniais, os libertos possuírem escravos, propriedades urbanas e transmitirem bens a seus descendentes, invertendo papéis e hierarquias sociais cristalizadas. Baseado nos depoimentos de viajantes estrangeiros em passagem pela capitania mineira, Frieiro (1966) escreveu acerca dos rotineiros e luxuosos modos dos mineiros ricos, tais como o jeito refinado de se trajar, o uso de louças finas da Índia e de Macau e outras de procedência inglesa e portuguesa, bem como o emprego de talheres de prata nas refeições diárias. Segundo ele: Mais de um viajante estrangeiro, ao penetrar no território de Minas, depois de ter conhecido São Paulo, Rio de Janeiro, pôde observar que havia mais luxo no vestir da gente mineira do que na de outras partes do país. Quase todos notaram também, registrando-o em relatos de viagem, o que havia de acolhedor e afável no seu trato. [...], John Luccokc, inglês atilado e veraz, que não poupava críticas, às vezes malignas, aos defeitos de nossos costumes e às falhas da nossa organização social e econômica, louvou a “civilidade calorosa” com que o trataram nos lugares de Minas por ele percorridos em 1817. [o citado inglês fala sobre um jantar em São João Del Rey] Além de muita prata e louça inglesa, havia rosca da cidade, cerveja inglesa engarrafada e bom vinho do Porto servido em cangirões de cristal lapidado (FRIERO, 1966, p. 103-5). Ainda sobre os comportamentos e gostos diferenciados dos mineiros bem aquinhoados financeiramente, a narração feita pelos alemães Von Spix e Von Martius 135 durante sua passagem por Diamantina, uma das mais prósperas vilas do período colonial, é esclarecedora a esse respeito e, ainda que longa, merece ser aqui transcrita: É fato observado por todos os viajantes, que os mineiros, embora isso surpreenda, diferem inteiramente pelo caráter e pelo físico dos habitantes de outras capitanias, [...]. O mineiro tem [...] por natureza um certo garbo nobre, e o seu modo de tratar é muito delicado, obsequioso e sensato; no gênero de vida é sóbrio e parece sobretudo gostar de uma vida cavalheiresca. Em todos esses traços tem ele muito mais semelhança com o vívido pernambucano do que com o paulista pesadão. Tal como o primeiro ele parece ter uma certa predileção pelos produtos e vestuários da Europa. Como os ingleses, o mineiro faz muita questão de grande asseio no trajar e do terno branco, sobretudo nos dias de festa. [...]. Em geral ele traja jaqueta de chita ou de veludo cotelão preto, colete branco com botões de ouro, calças de veludo ou de pano de Manchester e botas compridas de couro, não tingidos, que são atadas acima do joelho com fivelas; o chapéu de feltro com abas largas serve de guarda-sol; a espada e não raro a espingarda, além do guarda-chuva, são seus companheiros inseparáveis, desde que sai de casa. As viagens, mesmo as mais curtas não se fazem senão montados em mulas. Estribos e freios são aqui de prata, e do mesmo metal é o cabo do facão que eles escondem na bota. As mulheres viajam de liteiras carregadas por bestas ou negros, ou se sentam em uma cadeirinha segura às costas de mulas, vestidas com larga amazona azul e chapéu redondo. No mais, excetuando a cabeça, que é protegida apenas por guarda-sol, elas vestem-se à moda francesa, tendo a bainha de baixo da saia branca não raro guarnecida com flores, bordados ou estampados, ou mesmo com galantes versos (VON SPIX; VON MARTIUS, 1981, p.175). Mello e Souza (1982), rechaçando a noção de riqueza da sociedade mineira à época do ouro, mostra em seu clássico estudo que nela, ao contrário do que se apregoa, a pobreza era generalizada, predominando o universo da pobreza e marginalidade, com sua imensa massa de “desclassificados sociais”. Na obra assim intitulada, a autora se debruça sobre a posição e o tipo de vida desfrutada por homens e mulheres na capitania, demonstrando que a mesma era decorrente de suas posses. A presença de clivagens e desigualdades econômicas se refletia no quadro cultural. 4. A sócio-gênese mineira: um rápido resumo. Retomando as reflexões sobre a sócio-gênese mineira, vimos que a preponderância inicial de um sistema urbano, a implantação pioneira de um sistema estatal nas terras mineiras, a presença de um sistema monetário-mercantil e um sistema cultural e religioso próprios tornaram Minas Gerais um espaço diferenciado, sendo reverenciado por muitos por um suposto ethos urbano, inusitado e moderno, comparativamente às outras capitanias. Alguns autores defendem que os citados 136 elementos diferenciadores, presentes no território mineiro, terminaram por moldar uma “tessitura de modernidade” em Minas Gerais em pleno século XVIII (PAULA, 2000, p.15) Este autor define a modernidade mineira contrapondo-a a uma série de características típicas da época medieval, quais sejam, ruralização, fragmentação do poder político, localismo, hegemonia absoluta da religiosidade, estratificação rígida da estrutura social e ampla presença das relações de dependência pessoal. De acordo com Alexander (1995), o termo modernidade é altamente relativista. Emergindo no século XV como uma invenção do cristianismo, o termo foi utilizado à época pelos romanos cristianizados para distinguir sua religiosidade da “barbárie” dos pagãos da antiguidade e dos judeus não regenerados. Nos tempos medievais, a modernidade foi reinventada como um termo designativo de cultivo e aprendizado, o que permitiu aos intelectuais se identificarem com os aprendizados clássicos dos pagãos gregos e romanos. Durante o Iluminismo, ainda de acordo com Alexander (1995), o termo modernidade passou a ser usado como sinônimo de racionalidade, ciência, progresso e futuro. Brusëke (2002, p.138) propõe analisar a modernidade como uma mudança essencialmente técnica. Ele explica esta escolha enfatizando ironicamente que desta forma evitar-se-ia “uma discussão sem parâmetros sobre os ideais iluministas, em que uma boa ideia se opõe a outra”. Para ele, contestar a modernidade em seus ideais, um verdadeiro e belo catálogo de promessas que inclui o clamor pela igualdade, liberdade e justiça; o humanismo e sua moralidade universal; a valorização do direito, da ordem e do progresso da humanidade; a razão centrada no sujeito; a racionalidade e cientificidade, é tarefa ambiciosa, visto que tais ideais, em seu conjunto, são orientados por um “amálgama de resquícios da consciência moral cristã, de um individualismo nascente (...) e novas formas racionalizantes de se pensar o mundo, bem como o homem no mundo. Conforme o autor, já que a modernidade como época histórica, nasce com a ciência e a técnica moderna, sendo tão influenciada por elas, deveria ser denominada e caracterizada como “modernidade técnica”. Acompanhando a visão de Teixeira (2006), penso que para entender a modernidade, deve-se considerá-la não somente como um fato científico, técnico ou filosófico, mas como um evento cultural e global, porquanto as ideias modernas não consistem somente no surgimento de ideias novas, mas de uma práxis. Giddens (1991, p.11), por exemplo, em suas primeiras elaborações teóricas, enfatiza uma definição de modernidade calcada em cultura e epistemologia. Para o autor, o termo definiria “um 137 estilo, costume de vida ou organização social” que, surgindo primeiramente na Europa, em meados do século XVII, posteriormente se expandiu por todo o mundo. Para ele, isto associa “a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial”, mas essa construção como definidora da modernidade em si, não é suficiente, permanecendo “suas características principais guardadas em segurança numa caixa preta”. Abrindo-a em trabalho mais recente, Giddens (1991, p.11) parte de uma definição de modernidade que abarca como principais dimensões a industrialização, o modo de produção capitalista, as instituições de vigilância, o controle dos meios de violência, a ascensão das organizações, além do Estado-nação. O termo modernidade é por ele empregado em um sentido mais geral, referindo-se “às instituições e modos de comportamento”, que se tornaram mundiais em seu impacto e influência no século XX, em uma disseminação começada a partir da Europa. Valendo-nos de Kumar (1997) para acrescentar mais alguns senões à proposição de Paula (2000), não podemos esquecer que a modernidade é composta não só de modernismo, no sentido de instâncias culturais, mas também de modernização, relacionada às instâncias técnico-econômica, ou ainda uma condição, associada às sociedades industriais, marcada pelo compromisso com a mudança e a inovação em caráter permanente. Sob essa ótica, parece-nos arriscado afirmar a existência de um processo de tal magnitude em Minas Gerais ao pensamos modernidade como emergência de instituições, de valores, de concepções, de atitudes, de modos específicos de vivência do tempo, de apropriações do espaço, de produção e reprodução material, de organização da vida política, de vivências subjetivas, enfim, em uma época e espaço moldados por assimetrias de poderes. Por conseguinte, mesmo estando lá presentes o Estado, um mercado dinâmico e um sistema cultural próprios não podemos desconsiderar que essas instituições estavam sujeitos aos constrangimentos da situação colonial da capitania. Como defende Moreira (2005, p.28-33), sob os auspícios de uma modernização capitalista periférica incompleta, o Brasil, e obviamente Minas Gerais, carrega os traços do domínio colonial-escravista português, tendo assim especificidades da vivência de processos de modernismos culturais sem modernizações econômicas abrangentes. Desta forma, seria um erro interpretativo supor que o processo vivenciado em Minas se assemelhe aos processos da modernidade europeia, nos quais há uma íntima associação entre modernismo cultural e modernização econômica. 138 Desta forma, se o processo de colonização em Minas Gerais constituiu-se de forma diferenciada com relação aos outros estados, ainda assim há que se destacar que sua pretensa modernidade foi limitada, sendo, em última instância, reprodutora de uma estrutura social excludente. Retomando a ideia lançada por Paula (2000), é interessante pensar o acontecido em Minas Gerais no século XVIII, ainda que não caracteristicamente como um processo modernizador, mas como algo diferente do que se passou no resto das conquistas na América Portuguesa. Porém, para muitos, este diferente era um sinal claro da modernidade mineira. E, para fazer jus a essa especificidade não bastava mais ter uma capital como Vila Rica. Era preciso uma capital moderna. Neste sentido, começa a fazer eco, alinhada à ideia da modernidade mineira a necessidade da mudança da capital. Aparentemente, com a perda da hegemonia econômica e política da região das Minas, não fazia mais sentido ser a capital da capitania e depois da província, a cidade de Vila Rica. Veremos a seguir mais um pedaço da história mineira e suas inter-relações com os acontecimentos nacionais. De uma Vila Rica parte-se então para um Belo Horizonte. 5. Eliminando Ruralidades: do Curral Del Rey a um Belo Horizonte. Conforme vimos, a mineração foi a atividade motora por trás da configuração espacial mineira desde o século XVII. Em Minas Gerais, a cidade – e não o campo – foi a forma inicial de organização do espaço no qual o homem encontrou meios adequados para sua sobrevivência e desenvolvimento de suas potencialidades. Ancorada na pujante base material do ouro e pedras preciosas com os quais havia sonhado o colonizador português por quase dois séculos, a ocupação mineira nasceu urbana. Única região das colônias ibéricas cuja base cultural foi enraizadamente urbana, no início do século XIX, já havia em Minas Gerais, cerca de 400 núcleos urbanos. Esse fenômeno de urbanização precoce de toda uma extensa área acidentada e central do país, até o final do século anterior inóspita e penetrada apenas pelos exploradores pioneiros, deveu-se sem dúvida a alguns fatores peculiares, entre eles o predomínio econômico da indústria extrativa mineral, consolidada e submetida ao controle de uma burocracia organizada que estendia seus braços fiscais aos diferentes polos da atividade mineradora. Enquanto Vila Rica, elevada à condição de capital em 139 1720 com a criação da capitania autônoma de Minas Gerais, abrigava o palácio do governador, as repartições administrativas imediatamente subordinadas, a poderosa junta da Real Fazenda e o comando das tropas militares, as demais vilas, especialmente as cabeças de comarca, incluída aí a própria Vila Rica, reuniam órgãos de jurisdição regional como as ouvidorias e varas de justiça, as intendências, casas de fundição e guarnições de milícia. A presença desse complexo aparelho burocrático, ao gerar empregos, atrair interesses e fazer circular a renda, impulsionava não só o crescimento demográfico e urbano dos núcleos, como também a indústria da construção, o comércio e os serviços. Em pouco mais de meio século haveria de consolidar-se na região das Minas um elevado número de centros urbanos dispersos pelo território montanhoso da província das Minas: O processo de ocupação do território que veio a se tornar Minas Gerais se acentuou entre o final do século XVII e início do XVIII, com a descoberta de ouro. As criações das três primeiras vilas – em 1711, Vila Real de N. Sra. Do Carmo (Mariana), Vila Rica (Ouro Preto) e Vila Real da Conceição de Sabará – sinalizam os primeiros focos de extração aurífera e o principal destino dos imigrantes. No segundo momento, de 1713 a 1750, as ereções das vilas de São João e São José del Rei [atual Tiradentes], Caeté, Pitangui, Minas Novas e Serro marcaram a consolidação do “núcleo minerador principal de Minas Gerais” (Paula, 1988 apud Rodarte, 2008). Segundo Rodarte (2008), essa ocupação, como testemunha o relativamente rápido ciclo de auge da produção aurífera, ocorre em grande velocidade. Ao longo de pouco mais de meio século, acorreram à região um elevado número de reinóis, gente branca da colônia e, numerosos escravos, cujos braços fortes e o conhecimento prático trazido de seu continente natal foi muitas vezes fundamental para o êxito da atividade mineradora, já que muitos: “homens e mulheres africanos, embarcados na Costa da Mina (...) eram tradicionais conhecedores de técnicas de mineração do ouro e do ferro, [e] técnicas de fundição desses metais. (...) conheciam muito mais sobre a matéria que os portugueses...” (PAIVA, 2002, p.17). Esse influxo de população, pela sua dimensão e rapidez, ocasionou “desequilíbrios econômicos”, em função do descompasso entre a expansão da demanda por víveres e sua incipiente, ou mesmo inexistente, produção na região, aliada à irregularidade na importação de gêneros alimentícios de outras áreas da colônia (RODARTE, 2008). Diante das muitas crises de abastecimento alimentar e das revoltas resultantes das mesmas, em breve, já na segunda década do XVIII viriam as primeiras 140 cartas da coroa portuguesa aceitando a delimitação de propriedades rurais destinadas à criação, ao cultivo de milho e cana-de-açúcar para produção de açúcar, rapadura e aguardente (RODARTE, 2008). Importava à coroa a manutenção da ordem e da paz para a perfeita condução da atividade mineradora. A cidade mineradora mineira, e o espaço econômico que ela ordenou, percorre um caminho tortuoso ao longo do séc. XIX, após a decadência da produção de metais e pedras preciosas nos moldes sob os quais ela se assentava – principalmente em termos técnicos – no período de auge do século anterior. Seu espaço econômico se metamorfoseia de modo a se adaptar ao novo contexto nacional que emerge, na qual o centro econômico se constitui no Rio de Janeiro e em seguida em São Paulo (RODARTE, 2008). Naquele cenário, um manto de ruralidade se estenderia sobre a consolidada rede urbana mineira em função da ausência, ou desconhecimento, de novas técnicas que tornassem a mineração do ouro novamente possível na base técnica até então utilizada. Esse processo implicou na transmutação da província de importadora em exportadora de viveres e gêneros alimentícios, ao mesmo tempo em que a economia da mineração se restabeleceria em bases muito mais amplas e francamente industriais, eliminado assim a mineração de base artesanal. O “coração de ouro” dos recursos minerais do estado estaria disponível somente com o emprego das técnicas industriais avançadas de exploração que seriam implantadas pelo capital estrangeiro, especialmente inglês que, posteriormente, assume a mineração do ferro e sua cadeia produtiva no estado ao longo do século XX. Simultaneamente ao ocaso da atividade mineradora, vários movimentos capitaneados pela emergente classe agrário-exportadora são deflagrados no sentido de promover a mudança da capital. Para eles, a “velha Ouro Preto”, capital da província e centro irradiador da atividade mineradora, não conseguia mais dar suporte às novas atividades econômicas e respectivas demandas. É importante ressaltar que a construção da nova capital era considerada urgente pelos grupos políticos dominantes, dadas às pressões internas e a necessidade de garantir coesão, articulação e integração territorial e política ao Estado. Estavam lançadas as sementes para a constituição da futura capital, inaugurada como símbolo da modernidade, contrapondo-se assim a um país de características urbanas ainda marcadamente coloniais. Para fazer jus ao título de estado urbano, portanto “moderno”, Minas Gerais não podia continuar a ter uma capital cuja localização era inóspita ao crescimento – 141 como era dito de Ouro Preto – para muitos a representação imagética de um passado a ser esquecido diante dos alvores da República. Ouro Preto, a capital, era a materialização do arcaico, do imperial, da desordem urbana, com suas “ruas estreitas e casas amontoadas, ‘sem espaço, sem horizonte, sem luz’” (SALGUEIRO, 2001, p.144), um ajuntamento de “ruas tortuosas (...), casas baixas e deselegantes” (BARRETO, 1995, p.245). Deveria então ceder lugar ao novo, a um espaço projetado que permitisse visualizar a grandeza mineira, amplificada pelo seu belo horizonte: Como se vê, a nova capital de Minas será brevemente uma cidade digna desse Estado próspero, e que abriga, sobretudo em minerais, riquezas por assim dizer inesgotáveis. Sua exploração não poderá deixar de favorecer esta obra, empreendida com ousadia e executada com perseverança. (RIMG, 1897apud ANGIOTTI-SALGUEIRO, 2007, p. 54). O traçado regular de Belo Horizonte e a uniformidade de sua malha urbana vieram a se contrapor à desorganização da ocupação espontânea que ocorreu no Curral Del Rey (BARROS, 2001), arraial46 cujas terras e população sucumbiram diante da voracidade modernizadora de implantação da futura capital. Nesta metamorfose, o novo necessariamente deveria substituir o antigo (Figuras 26 e 27). Figura 26: Julius Kaukal (Viena, 1897 – Belo Horizonte, 1995), ilustração do Arraial de Curral Del Rei. In: SENNA, Nelson C. Cinqüentenário de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1948. Acervo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. 46 O arraial recebeu este nome porque, segundo Dias (1897, p.18), ali era um lugar de ajuntamento e de partilha do gado pertencente à Coroa e que descia da Bahia em direção ao Rio de Janeiro. O arraial abastecia as grandes minerações da zona do Rio das Velhas e via aumentar sua população com a chegada dos forasteiros. Seu primeiro habitante iniciou a atividade agrícola e pastoril, promovendo o desenvolvimento da área e tornando-a centro de abastecimento e produção num setor pouco explorado já que o espírito da época estava voltado para exploração do ouro. Quando da passagem da Monarquia à República, o nome do arraial foi mudado para Belo Horizonte, pois o desejo à época era “apagar para sempre tudo o que ‘cheirasse’ a trono ou se referisse ao rei”. 142 Figura 27: Julius Kaukal (Viena, 1897 – Belo Horizonte, 1995), ilustração de Belo Horizonte em 1947. In: SENNA, Nelson C. Cinqüentenário de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1948. Acervo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Segundo Gomes (2005), a criação de um novo centro urbano e administrativo não foi episódio superficial na vida mineira, sofrendo a influência de fatores mais concretos, de ordem econômica; e facilitada por outros, de ordem financeira. Como causas econômicas, o autor salienta a inadequação da localização e da estrutura urbana das cidades da mineração, bem como a decadência da atividade mineradora vis à vis ao crescimento econômico das zonas sul, oeste, sudoeste e da mata, impulsionadas pela pecuária e agricultura. O fator financeiro foi a ocorrência de superávit no caixa do governo estadual devido ao bom desempenho da cultura cafeeira no período imediatamente anterior à mudança. O contexto que envolveu a transferência e a construção da nova capital foi marcado pela Abolição da Escravatura e pela Proclamação da República, esta fundada – no plano discursivo –, sobre os valores da liberdade, da ordem, da ciência e do progresso. Como aponta Barros (2004, p.8), o planejamento e a construção da capital mineira resultaram de uma “estratégia espaço-temporal e simbólica de construção de uma nova legitimidade”. Para Julião (1996, p.50), distinguir-se da antiga ordem criou a necessidade de um “deslocamento, uma mudança de lugar e o advento da República era o elemento-chave na concepção desta temporalidade, sendo a cidade, o espaço de sua representação”. 143 Desta forma, a nova capital emerge sob a égide da ordem política republicana, ao mesmo tempo em que é associada simbolicamente a um novo tempo, o da modernidade: (...) Um novo tempo nasceria junto com uma nova cidade, combinando a solidez natural das montanhas e a rigidez humana dos edifícios; a fluidez das paisagens mineiras e a leveza de parques e alamedas projetadas (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1997, p.24). Segundo Passos (2009, p.39), “Belo Horizonte surgiria tendo como ideal ser uma metrópole, não somente de Minas Gerais, mas da República”. O projeto da cidade teria sido pensado de forma a escrevê-la no mundo moderno, apresentando-se assim, como espaço para constituição de uma nova sociabilidade. Nos dizeres da época: “a nova capital de Minas Gerais atrairá irresistivelmente a atenção do mundo europeu (...)” (DIAS, 1892, p. 46 apud ANGIOTTI-SALGUEIRO, 2007, p. 46). A intervenção do Estado foi primordial para a construção de Belo Horizonte, cujo traçado inspirou-se nas experiências urbanísticas das cidades europeias e norteamericanas para produzir “a cidade planejada”. Passos (2009) citando o livro Carne e pedra, de Richard Sennett, lembra que os arquitetos e engenheiros das cidades planejadas à época tinham como elementos inspiradores dos seus traçados a compreensão do corpo humano e de sua circulação sanguínea, como descritos por William Harvey em De motu cordis, obra de 1628, tida como revolucionária dentro dos preceitos da razão científica moderna. Nesta obra, Harvey descreve o coração bombeando o sangue por meio das artérias e veias, ao mesmo tempo em que o recebe das veias para ser bombeado. O fato foi que muitos engenheiros e urbanistas usaram esta descrição fisiológica como analogia para o planejamento e construção de suas cidades: “a livre circulação (como a sanguínea) ao longo das ruas principais, estas se tornando um importante espaço urbano, cruzando áreas residenciais ou atravessando o centro da cidade” (PASSOS, 2009, p.43). Não foi diferente em Belo Horizonte, pois como cidade que se deseja moderna, não fugiu ao paradigma de ser um local de segmentação (PASSOS, 2009, p.44). Como apregoado nos ditames urbanísticos e arquitetônicos progressistas, iniciados na segunda metade do século XIX, a nova Capital de Minas Gerais também foi planejada para ter espaços classificados e ordenados de acordo com as funções e necessidades sociais. Assim, no plano da nova capital, foram delimitadas três zonas: urbana, suburbana e rural, assim estabelecidas como um “instrumento para o controle da cidade” (JULIÃO, 144 1996, p.57). O objetivo deste “enquadramento social” seria, portanto, o de estabelecer uma ordem dentro da cidade. Passos (2009, p. 45) discorrendo acerca das cidades planejadas recorre à Foucault e a noção de vigília exposta no seu livro “Vigiar e Punir: o nascimento da prisão” para ilustrar a forma como os indivíduos são disciplinados em tais cidades. De acordo com a autora, a arquitetura destas cidades faz com que o poder seja exercido a cada olhar, nas ruas largas, vastas e limpas, possibilitando uma vigilância e tensão constantes sobre o indivíduo. Como nas palavras de Foucault: (...) uma arquitetura que não é feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios) ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado, detalhado; para se tornar visíveis os que nela se encontram. Uma arquitetura que seria um operador para transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los. O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento (...) começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos vazios, das passagens e das transparências (FOUCAULT, 1984 apud PASSOS, 2009, p.45). A zona urbana constituía o espaço moderno e ordenado, com suas avenidas largas, retas, geométricas, infraestrutura sanitária e técnica, enfim, um espelho das cidades mais modernas do mundo, com a tarefa de projetar e inscrever no seu espaço, os valores do progresso e da racionalidade. Caracterizava-se por uma privilegiada topografia com baixa declividade, sendo utilizada pela elite como local de residência. Deu origem ao bairro dos Funcionários e sítios de recreios nos contornos da capital (SILVA, s.d.). A zona urbana tinha como limite um boulevard circundante, que recebeu o sugestivo nome de Avenida do Contorno. Na zona suburbana, fora dos limites da Avenida do Contorno – esta quase uma muralha intransponível a separar a vida urbana da suburbana –, as moradias eram sofríveis e os serviços precários. Aqui seria a área de expansão da cidade, com crescimento a ser controlado e balizado pelos mesmos valores e regras construtores de sua área central. Foi projetada para os terrenos mais acidentados, com traçados adaptados à topografia irregular, com lotes irregulares, de maiores dimensões e com ruas estreitas (SILVA, s.d.). Finalmente, a zona rural, um cinturão verde projetado para garantir o abastecimento da cidade e controlar sua expansão, com núcleos coloniais que 145 produziriam hortaliças, frutas, e outras matérias-primas necessárias às demais zonas (SILVA, s.d). Com a divisão nas três zonas apresentadas, fixavam-se os limites, classificavam-se e hierarquizavam-se os territórios, os quais deixavam de ter uma “dimensão indefinida” para se transformarem em áreas delimitadas e identificáveis (JULIÃO, 1996, p.51). Concluindo, ela enfatiza que esta “revolução” urbana empurrou os “humildes cidadãos”, concentrando-os em lugares distantes do perímetro urbano da nova capital. Passos (2009, p.48) aponta que tal qual acontecera na Paris de Haussmann, as reformas dos espaços e o tão decantado planejamento das zonas rural e suburbana foram mera maquilagem, pois atrás dos prédios de fachadas determinadas pelas normas da construção civil, estavam as casas/cortiços com chiqueiros e nenhum tipo de ventilação. Dizia-se que Belo Horizonte cheirava, de um lado, a lenços d´alcobaça e a mofo das secretarias e do outro lado a água de colônia, toucinho e álcool, especiarias à época. Paula a esse respeito escreve: Cidade sintonizada com os novos termos da urbanização modernista – amplas avenidas, amplos espaços públicos, parques e jardins, espaços distribuídos funcionalmente. E, no entanto, por detrás desta fachada moderna, como um cenário de Potenkin, a mesma continuidade da exclusão, os pobres interditados, a terra urbana privatizada e concentrada, a velha sonegação de direitos sociais que acompanha, como uma sombra, a luz, por vezes intensa, da modernidade mineira. Retrato fiel e expressivo dos dilemas históricos do país (PAULA, 2000, p.57). Voltando à zona rural, foi ali que inicialmente se “refugiaram” os pequenos sitiantes, antigos moradores do arraial alijados de suas terras, bem como os pequenos produtores migrantes de outras regiões de Minas Gerais. Para lá foram expulsos os “inadequados pobres”, em uma tentativa de invisibilização capitaneada por Aarão Reis, engenheiro-chefe da comissão responsável pela construção da capital, ecoando a voz dos modernistas: (...) não queria nenhum dos antigos proprietários (...) dentro da área traçada para a nova cidade, e que tratasse o povo de ir se retirando (BARRETO, 1995, vol.2, p.77). Restava à “plebe”, a alternativa de se retirar para outras paragens, como aves de arribação. Assim o fizeram, “com os olhos banhados em lágrimas” (BARRETO, 1995, vol.2, p.72). Lentamente a prática de produção de alimentos para abastecimento da cidade na zona rural foi sendo sufocada pela emergência de novos agrupamentos 146 populacionais, em um rápido processo de assimilação dessas colônias rurais (PLAMBEL, 1985, p.35). De acordo com Pereira (2001) é preciso lembrar que o ideal de modernidade trazido pela República, e que teve como espaço de realização a cidade de Belo Horizonte, compreendeu traços de conservadorismo e de autoritarismo. Tidos como detentores de costumes “rurais e arcaicos”, os 4.000 habitantes das 32 fazendas que compunham o Curral Del Rey (PEREIRA, 2001) foram tratados como obstáculos a serem removidos para a realização da cidade moderna e planejada. Por isso, ainda em 1890, intuitivamente, como que prevendo seu destino, os moradores do Arraial trataram de se adaptar aos novos ares republicanos, mudando seu nome para “Arraial do Bello Horizonte”. Foi o suspiro final do pequeno arraial de quase duzentos anos (PASSOS, 2009). Não obstante o uso potencial dos imóveis da população do Arraial, nas desapropriações efetuadas considerou-se que eles possuíam “valor insignificantíssimo” (BARRETO, 1995, p.277). Por conseguinte, sendo as propriedades de “pequena valia” e a maioria dos proprietários possuidor de apenas um imóvel, os donos de bens de raiz no antigo arraial foram convertidos em não-proprietários na capital planejada, porquanto nas palavras do próprio engenheiro-chefe, todos os “proprietários teriam de receber dos cofres públicos importâncias que, de modo algum, chegariam para a aquisição de um lote na futura cidade” (BARRETO, 1995, p.277). Para Lemos (1988, p.93), essa conversão “mostra nitidamente a transição de uma população organizada em antigas estruturas rurais para a organização capitalista urbana”. Conforme Penna (1997) ao converter-se o Arraial do Curral Del Rey em Belo Horizonte, converte-se a terra em mercadoria. Cercada pela Serra do Curral, Belo Horizonte conta hoje com uma estrutura de 27 parques e diversas áreas verdes (OLIVEIRA NETO, 2006). O Parque Municipal Américo Renné Giannetti, um pulmão urbano, seguindo as ideias de Harvey, foi inaugurado em pleno centro da cidade, demonstrando que, desde o início, seus idealizadores se preocuparam em proporcionar espaços que pudessem colocar as pessoas em contato direto com a natureza vis à vis a expulsão dos agricultores dos seus lotes de produção. A ruralidade natureza se sobrepõe a ruralidade agrícola. A preocupação com o “verde” para a população metropolitana – ou pelo menos para parte dela – se fortalece com a inauguração, em 1982, do Parque das Mangabeiras, projetado pelo paisagista Burle Marx, considerado um dos maiores parques urbanos do 147 país, com seus três milhões de metros quadrados. As praças (cerca de 500) e ruas concentram aproximadamente 560 mil árvores, número que sobe para dois milhões quando considerados os parques e áreas de preservação (OLIVEIRA NETO, 2006). Não foram somente os aperfeiçoamentos paisagísticos ligados à valorização do verde que tomaram conta da capital mineira. Desde a sua edificação até os dias de hoje, Belo Horizonte passou por inúmeras transformações. Do plano inicial que orientou a construção da cidade, apenas o traçado retilíneo de suas ruas, cruzadas em ângulos retos e formando grandes tabuleiros de xadrez, permaneceu inalterável. Em 1940, por exemplo, passou por um surto de crescimento, “(...), passando a viver uma nova fase: a da modernização acelerada” (FREIRE, 1999, p.211). A partir deste período, Belo Horizonte começa a ser talhada para se firmar como um centro urbano-industrial, como esperado para uma cidade “orientada para o progresso”. Nos dias atuais, de forma algo diferente do que já explicitado, o crescimento industrial, os investimentos estatais e o mercado de terras têm sido os fatores determinantes da estruturação do território da RMBH. Sob estas condições, neste território planejado eclodem ruralidades que refletem as lutas, esperanças, valores e diferentes projetos de atores que o vivenciam. É o que veremos no capítulo seguinte. 148 CAPÍTULO IV RURALIDADES EM UM METROPOLITANO INSTITUCIONALIZADO Figura 28: Vista aérea de área de extrativismo mineral na RMBH. Fonte: Estado de Minas, 20/04/2012 149 1. Relações entre ruralidades complexas. Para explicitar como as diferentes ruralidades se manifestam no território metropolizado da RMBH, articularemos as três categorias operativas apresentadas no primeiro capítulo, quais sejam, Ruralidades Instrumental, Hedonista e Amordaçada. Elas expressam tensionamentos, discursos e dinâmicas advindos de um capitalismo contemporâneo, onde sobressaem relações das mais diversas com a natureza, concretizadas em diferentes formas de apropriação do território. A ideia fundante da ruralidade como processo dinâmico e interativo entre diferentes atores sociais impõe o diálogo entre campo e cidade em outro patamar. Sublima-se a lógica opositiva pela conexão complexa e janusiana, ancorada na identificação do homem como ser da Natureza; reencontro inelutável devido à sua exclusão anterior e de uma nova visão de natureza, Aceita-se assim o ser humano como um finíssimo fio dessa rede universal que é a Teia da Vida (CAPRA, 1996). A contínua e crescente identificação da ruralidade com o ambiente natural têm seus primórdios nas sociedades que viveram mais intensamente a expansão dos símbolos máximos da modernidade – a urbanização e a industrialização – e, por extensão, as incertezas e as vicissitudes do risco, como coloca Beck (1998). Ironicamente, nessas mesmas sociedades está em curso uma “negação” da modernidade, e, por extensão, de seus valores e ícones, inaugurando um ciclo centrado na valorização das tradições, sociedades e modos de vida considerados rurais, entendidos como herança a preservar. Picon (1992, p. 44) pondera que os membros das sociedades industrializadas têm concebido os espaços rurais como espaços naturais e, nesta medida, objetos de consumo, especialmente aqueles que escaparam à agricultura mecanizada e à urbanização. A demanda primeira pela ruralidade natureza advém de uma elite social e política, estendendo-se posteriormente às classes médias urbanas. Neste contexto, a ruralidade não é óbice ao processo de modernização, mas sim uma noção que remete para a modernidade (ou a pós-modernidade), vivida por meio da descoberta e valorização das diferenças, do autêntico e do genuíno, como vimos no depoimento da líder quilombola no capítulo dois. Trazendo o campo de análise para o território da RMBH, constatamos um hibridismo nas formas de conceber e viver as ruralidades, alvo que são de percepções 150 distintas. Em uma visão complexa, as visualizamos nos relacionamentos e nos processos. Vejamos então como elas se entrecruzam. 2. Ruralidade Instrumental: a horticultura intensiva em Ibirité. A lógica intrínseca a esta ruralidade é a de natureza como espaço socioprodutivo, em relações marcadas pela intensa violência sobre as suas raridades: água, ar, solo, espécies animais, vegetais e minerais, dentre outras, aí inclusa a pressão sobre a espécie humana. Esta intensidade elege a natureza no lugar da produtividade como sendo a meta. Para alcançá-la toda sorte de pacotes tecnológicos devem ser empregados, em uma vã tentativa de estabilizar o ritmo do mundo e dominar os fenômenos da natureza para auferir os maiores ganhos possíveis em um cenário extremamente competitivo de disputas entre capitais. Sabendo dos muitos atores inseridos nesta categoria, cito os horticultores de Ibirité47 como representantes desta dinâmica específica, sendo acompanhados neste processo por instituições (Emater, Instituto Mineiro de Agricultura, prefeitura, agências financiadoras), e pelos onipresentes agentes de assistência técnica e extensão rural, empenhados em melhorar a potencialidade produtiva dos agricultores. Assim é que o sucesso da atividade produtiva é medido pelas quantidades produzidas e pela obtenção de níveis de renda compatíveis com os valores investidos, ou seja, o reconhecimento destes atores se dá por sua participação direta no processo produtivo, logrando maximização do lucro. Nesta linha, esse rural seria uma empresa gerenciada por horticultores-empresários, competitivos e com “visão empreendedora e de futuro”. A maior parte destes agricultores tem um canal de comercialização definido, visto a elevada perecibilidade dos produtos que comercializam, destinando-os ao mercado consumidor de Belo Horizonte, Nova Lima e Contagem, municípios do eixo industrial da RMBH. As áreas cultivadas localizam-se tanto nos perímetros urbanos quanto rurais e a sua exiguidade – 0,2 a 3,0 hectares – é compensada pela intensificação das atividades e produção (BICALHO, 1992). Este tipo de produção de hortaliças – chamada matriz produtiva convencional – é uma atividade que exige constante injeção de capital, tecnologias intensivas em agroquímicos, bem nível alto de capitalização para iniciar a atividade. Aliado ao fato 47 Poderia abordar também os horticultores de Mário Campos, Itaguara, Sarzedo, Taquaraçu de Minas, Nova União, enfim, de vários outros municípios metropolitanos com essa mesma dinâmica rural. 151 dos terrenos rurais em Ibirité estarem passando por intensa especulação devido à proximidade da metrópole e à procura por chácaras e condomínios de lazer, esta é uma ruralidade circunscrita a um número restrito de produtores. Amparados no discurso da intensidade produtiva, os horticultores-empresários têm empregado mão de obra terceirizada, especialmente mulheres, fugindo assim das obrigações trabalhistas. Neste sentido, é importante enfatizar que, além do terceirizados, eles também fazem uso de parcerias através do regime de meação, submetendo outros agricultores que não conseguem conduzir de forma independente a atividade, principalmente pelo não acesso a terra. Quanto aos aspectos agronômicos, o uso indiscriminado de agrotóxicos e fertilizantes químicos e a qualidade da água usada na irrigação da lavoura são bastante preocupantes. Pesquisa feita com Fernandes et al. (2012) apontou que 84,5% de 22 agricultores entrevistados afirmaram comprar agrotóxicos sem receita, dos quais 54,5% afirmaram ser esta a prática comum e 45,5% eventual. Eles afirmam não ser necessário acompanhamento técnico pois trabalham com horticultura há muito tempo. Na sequência, dizem que os prestadores deste tipo de serviço nunca estão disponíveis. Ouvindo extensionista da Emater sobre esta situação, eles assim se defendem: Sou extensionista há mais de quinze anos. Vi um pouco da mudança desta região. Era um monte de município com jeito de cidade do interior. Mas as coisas começaram a mudar muito, principalmente nos anos 90. Foi um período difícil pra instituição que alguns dizem que foi de modernização. Viramos vendedores. As prefeituras tinham que pagar convênio senão a Emater não ficava no município. Aqui na região, como a prioridade não era a agricultura, o meio rural, aliás não é, foi muito difícil sobreviver. Todo mundo pensa que aqui só tem indústria e mineradora e tal e nada de agricultura. Fica difícil justificar nossa existência. Hoje tá mais fácil porque tem um monte de política pública que depende do nosso trabalho. Pronaf, merenda escolar, horta comunitária, território sustentável e assim vai. Como o município recebe recursos pra isso então precisa da presença da Emater. Mas não temos condições de atender todos que nos procuram. De parto a como fazer doce é a Emater que tem que ensinar a fazer. Segundo os horticultores de Ibirité, a urbanização desordenada tem comprometido as condições da água usada para irrigação das lavouras, pois os córregos de abastecimento têm recebido esgotos e lixos da cidade. Muitos agricultores, na impossibilidade de continuar na atividade, já pensam em se desfazer das propriedades, deslocando-se para áreas mais distantes, já que as disputas por espaços entre condomínios, áreas de lazer bem como com os loteamentos para populações de menor renda aumentam a cada dia. 152 Em linhas gerais, a ruralidade instrumental se alinha em torno de três eixos principais: a) o rural como espaço socioprodutivo ajustado às dinâmicas capitalistas de mercado; b) uso intensivo de capital e tecnologias modernas; e c) modelo agroempresarial como caminho para o desenvolvimento. Portanto, para enquadrar-se a nestas direções, o agricultor metropolitano deveria assumir o clássico papel de produtor moderno: eficiente, produtivo, competitivo, tecnificado e capitalizado. Esta lógica também está presente na exploração dos recursos naturais feita pelas mineradoras, em uma direção na qual a natureza passa a ser vista por olhares econômicos, estratégicos e intervencionistas. 3. Ruralidade Hedonista: o ambiental em Nova Lima. É a ruralidade concebida e acionada pelos grupos sociais urbanos ou urbanizados, portadores desta redefinição social da ruralidade, a qual além de incluir a dimensão ambiental, abarca também as dimensões de defesa do patrimônio e da cultura rurais. Os novos moradores do campo, seus visitantes esporádicos, o mercado imobiliário bem como os prestadores de serviços recreativos e turísticos são alguns de seus porta-vozes. Seu eixo orientador é a busca da natureza como fonte de prazer, espaço de fruição, produto, bem de consumo e mesmo para o desenvolvimento de projetos de vida considerados alternativos, como a moradia ou o trabalho no campo. Mas, de fato, mais que uma alternativa, esta ruralidade apresenta-se como uma alteridade para a cidade, um contraponto que permite questioná-la, um escape para as ansiedades que a rodeia e uma ideia de qualidade de vida que remete para outra possibilidade de vida e de território. De forma ampla, a ruralidade hedonista orienta-se por uma lógica que concilia o contato com a natureza e o os benefícios proporcionados pela civilização. Ela se expressa com mais vitalidade em locais de alta densificação urbana, onde a natureza é escassa e muito socializada. Nestes locais, a representação de uma natureza primeira, extinta pela e na urbanidade, torna-se excessiva e romanticamente contemplativa já que distante da vida cotidiana, transfigura-se em diferenciais competitivos de mercado, quais sejam, a raridade e o distanciamento dos signos do trabalho moderno que hegemonicamente dominam as metrópoles. Por isso, essa representação precisa estar isolada das metrópoles, ainda que inteiramente dependente das mesmas. Além de paisagens verdes, silêncio e águas cristalinas, costuma-se negociar a expectativa irreal 153 de um lugar em que o tempo decorrido e as conquistas tecnológicas estejam presentes (e tudo o que isso significa: água, luz, eletrodomésticos, telefone, acesso por automóvel e aviões), sem alterar a natureza sonhada, de forma que a vertigem do futuro se acalme, ainda que somente nos finais de semana. O caso dos condomínios fechados de Nova Lima é emblemático no que tange a esta representação de ruralidade. Enquanto a área a oeste e norte da capital mineira vivenciou uma significativa oferta de lotes para um mercado de menor poder aquisitivo, processo inverso se deu ao sul da capital, onde fica Nova Lima. Atraídos pelos atributos ambientais, a princípio como segunda moradia para lazer e depois como moradia principal, populações de média e alta renda ali se estabeleceram, notadamente a partir da década de 1960. Segundo Andrade (2005), os primeiros moradores dos condomínios de Nova Lima buscavam um lugar mais tranquilo e próximo da natureza para passar fins de semana ou até mesmo morar. A carência de serviços públicos motivou a constituição das associações dos moradores dos condomínios, para conquistar benfeitorias como água, telefonia, segurança etc. Daí o forte associativismo desses anos iniciais e a ideia compartilhada pelos moradores mais antigos de que constituíam uma “comunidade” (NASCIMENTO, 2004). Os moradores se conheciam pessoalmente, seja por meio da associação, seja pelas relações de vizinhança (facilitadas pelo baixo número de moradores e pelas necessidades que buscavam suprir coletivamente). Entretanto, nos anos 1990, intensifica-se a ocupação dos antigos condomínios que, contando com melhor infraestrutura, passam a atrair um novo tipo de morador, mais preocupado com segurança e exclusividade e portador de maiores posses. A natureza, fator primordial para os primeiros moradores, é apenas mais um item do que se convencionou chamar de qualidade de vida, e mais apreciada enquanto paisagem. Um dos atores mais ativos na consolidação desta ruralidade são as mineradoras e outras empresas imobiliárias que, com ativa participação da prefeitura, investiram no “marketing da cidade”. Frases espalhadas em imensos outdoors conclamam: “Venha para Nova Lima, ontem terra do ouro, hoje terra do verde”. Ou “Nova lima, cidade para se viver”. “Estamos loteando a felicidade, reserve um pedaço prá Você”. Visando aumentar a arrecadação municipal, que sofrera queda com a retração da atividade mineradora, a prefeitura de Nova Lima passou a disputar com Belo Horizonte empresas e moradores de alto poder aquisitivo. 154 A estratégia deu resultado e o ritmo acelerado da metrópole tomou conta da outrora cidadezinha, despertando sentimentos ambíguos: Olha, eu noto, por exemplo, uma expansão de casas, de condomínios, uma invasão, assim que Belo Horizonte está invadindo Nova Lima e que aquela região tranquila, natural, está virando muito concreto agora. Mas eu sinto que as empresas estão vindo para cá também, as pessoas estão tendo mais oportunidades, o profissional é mais valorizado (A.B., 35 anos, jardineiro). As mineradoras, detentoras de grande parte das terras de Nova Lima e responsáveis por muitos de seus passivos ambientais estão investindo pesado na construção e vendas de empreendimentos imobiliários, sempre ancorados no discurso da preservação ambiental. Uma matéria publicada num jornal de Belo Horizonte, sob o título: “Página virada, Mina de Morro Velho vira polo imobiliário” dá o tom desta mudança: A Mina Velha, em Nova Lima, a mais antiga mina de ouro em operação no mundo, será transformada em um empreendimento imobiliário, incluindo uma estrutura destinada ao turismo, eventos, negócios e lazer. A Anglo Gold/Morro Velho, proprietária da mina, está à procura de parceiros para a exploração da área, totalizando 13,9 mil hectares e abrangendo ainda os municípios de Raposos e Rio Acima. Mas, ao contrário dos empreendimentos comuns, a Anglo Gold vai exigir de seus parceiros e compradores a preservação das áreas verdes. Ou seja, é prevista a utilização de apenas 33,6% da área, sendo os 66,4% restantes constituídos por parques, praças e áreas de preservação (Diário da Tarde, 20/9/2002). Tais empreendimentos estão disseminando-se por toda a RMBH. Brumadinho, Raposos, Betim, Jaboticatubas, Nova Lima, dentre outros, são alguns dos locais onde esta tendência tem se mostrado mais efetiva (Figura 29 e 30). Neles, o signo da natureza efetivamente se constitui como um elemento diferencial que possibilita aos empreendedores extraírem renda fundiária e lucros, a partir da venda deste atributo. Nesta lógica, são produzidos materiais publicitários e sites, destacando a “natureza” como um diferencial. Os nomes escolhidos para estes paraísos metropolitanos mobilizam desejos e fantasias de refúgio e verde, recorrendo-se frequentemente à imagem da “vila” em contraposição à metrópole: Retiro das Pedras, Ville de Montagne, Vila del Rey, Estância Serrana, Vila Campestre, Vila Verde, Serra dos Bandeirantes, Recanto das Araras, Jardins de Petrópolis, entre outros. 155 Figura 29: Cópia de encartes divulgando empreendimentos imobiliários tendo o rural como chamariz. Figura 30: Propaganda do empreendimento Recanto das Araras, em Jaboticatubas. A proposta das elites de preservar a natureza com o estabelecimento de sítios, condomínios fechados, pousadas é contraditória, pois a sua chegada promove a introdução dos equipamentos urbanos que surgem para satisfazer as demandas da classe, acabando por transformar as paisagens naturais, usando o discurso ecológico como estratégia. Esta ruralidade que valoriza o verde tem rebatimentos no preço do solo na RMBH, influenciando na consolidação de ruralidades amordaçadas. Espaços até então destinados ao uso agrário passaram a ser reservados a novas funções tais como a industrial e a residencial. Ao mesmo tempo que se coloca pela valorização do rural, esta ruralidade engendra processos que a destroem, como o da expansão imobiliária. Como bem disse Rousseau: 156 O primeiro homem que cercou um pedaço de terra e disse que era sua propriedade e encontrou pessoas que acreditaram nele foi o fundador da sociedade civil. Daí vieram muitos crimes, muitas guerras, horrores e assassinatos que poderiam ter sido evitados se alguém tivesse arrancado as cercas e alertado para que ninguém aceitasse este impostor. Não podemos esquecer que os frutos da terra pertencem a todos nós e a terra a ninguém (ROUSSEAU apud HARVEY, 1996, p. 162). Mas não é exatamente isso que acontece na região. Em Nova Lima, por exemplo, a terra e os seus frutos são apropriados por poucos, controladas que são pelas empresas e pelo capital estrangeiro: A minha família está sofrendo com isto, você sabe que nós temos um processo há quarenta anos na justiça, e justiça no Brasil fica, assim, séculos para resolver um problema. Nós estamos há quarenta anos lutando para reaver terras que foram cercadas pela Morro Velho, que eles não têm documento delas e eles se apoderaram delas. Desde a época em que os ingleses vieram para Nova Lima que eles se apoderaram de terras que não eram deles e isto é uma política vamos dizer estrangeira. É a política dos mais espertos, quem tem dinheiro corrompe, consegue um papel, consegue uma escritura e você sabe que aqui tudo tem preço, então foi muito fácil apoderar de tudo. (W., em entrevista a Magnoli, 2009, p. 40). A questão fundiária é uma ferida aberta na RMBH. A posse da terra pelas mineradoras é bastante contestada, persistindo como questão de fundo: A grande parte dos terrenos de Nova Lima foram doados pelo seu antigo proprietário, um tal cap. Vilanova a seus escravos, no século passado, e ainda hoje inúmeros descendentes desses escravos pleiteiam em juízo, ou venderam a preço irrisório, seus direitos à Cia. Morro Velho (...). De uma forma ou de outra – a Cia. Morro Velho tomou posse desses terrenos que constituem seu “feudo” e agora se lança num novo negócio cujas perspectivas não são inferiores às ricas minas que exploram (COSTA, 1955, p. 77). Esta situação não se restringe à Nova Lima, como veremos a seguir. Em um contexto de grande especulação imobiliária e fundiária, toma forma a ruralidade amordaçada. 4. Ruralidade Amordaçada: a questão agrária em Betim. Corresponde àquela ruralidade que perpassa os habitantes do campo e as famílias que residem nas periferias metropolitanas, caracterizadas por sua condição de vulnerabilidade socioeconômica. Como vimos, nesta categoria estão tanto grupos vinculados ao rural, por ele ser seu espaço cotidiano de vida quanto por ser seu meio 157 básico de reprodução socioeconômica, quanto grupos fragilizados nas periferias da metrópole, habitando as chamadas cidades-dormitório. Usaremos o caso de Betim para ilustrar esta ruralidade. Em Betim, existem dois projetos de assentamentos de reforma agrária, quais sejam, o Dom Orione, o mais antigo da RMBH, criado em 28 de novembro de 1997, e o Serra Negra, criado em dezembro de 1999. Vivem no primeiro cerca de 40 famílias, em 212, 95 hectares; no segundo 26, em uma área de 247 hectares. A origem de ambos está vinculada aos movimentos sociais de reforma urbana. No caso do Dom Orione, estava em disputa a criação de conjuntos habitacionais, surgindo a reivindicação em prol da criação de um assentamento rural, ideia vencedora. O PA Dom Orione hoje é o mais “urbano” dos projetos de assentamentos, no sentido de que está cercado por dois bairros periféricos da cidade de Betim. Já o assentamento Serra Negra se formou desde um processo de organização de um grupo de famílias moradores de bairros da periferia de Betim, mas que mantinham algum vínculo com a vida rural. De certo modo, a criação do assentamento Dom Orione deu fôlego para seus idealizadores, que anos depois viriam a ocupar a Fazenda Serra Negra na época improdutiva, não cumprindo, pois, a sua função social. É também um assentamento bastante “urbano”, ficando muito próximo do bairro Vianópolis. As expectativas e os projetos de vida dos assentados podem ser resumidos nas palavras de I.M., 53 anos e W., 37 anos. Sempre tive vontade de ter um pedaço de terra pra trabalhar por minha conta, pra ninguém me aborrecer. O que der pra vender a gente vende, o que não der, a gente dá pra porco, pra galinha. É bom demais botar o corpo veio pra descansar e saber que amanhã não vai ter ninguém te expulsando, te pedindo pra sair. Passei muito tempo pulando de lugar pra lugar. Nasci na roça, mas depois tive que arranjar outro trabalho pra ajudar nas contas. Hoje eu me sinto no céu, mesmo com uma coisinha ou outra que acontece na vida da gente (I. M., 53 anos, Assentamento Pastorinhas). Eu entrei no MST pra voltar pra roça, pra ter um emprego, trabalhar. Deixar de ser escravo. É porque quem tem de acordar de madrugada, pegar dois, três ônibus, chegar de noite em casa. Comer correndo, viver correndo, correr pra pagar aluguel, nada nada de luxo. E no final do mês nada também, O emprego hoje em dia na cidade, se a pessoa não tiver um bom estudo, uma boa formação não dá pra sobreviver bem (W, 32 anos, Assentamento Dom Orione). Grande parte dos moradores dos dois assentamentos é oriunda da RMBH e de outras regiões de Minas. Uma pesquisa feita por Mazzeto (2008) nestes assentamentos aponta como razões para migração: terra insuficiente para reprodução de toda a família, diminuição do trabalho rural, família numerosa, ilusão da cidade grande, busca de 158 alternativa de renda e melhores condições de vida. Soma-se a estas motivações, a realidade fundiária dos locais de origem, que, como na RMBH, é bastante concentrada, consolidando uma questão agrária que não se resolve, sendo transportada para as regiões de destino dos migrantes, agora transformados em camponeses-urbanos sem terra. Na RMBH, dos 21.392 estabelecimentos agrícolas, 734 são considerados pelo Incra grandes propriedades, e 519 delas improdutivas. Em Betim, do total de 1.247 estabelecimentos, 39 são grandes e destes, 22 são improdutivos. Considerando os inúmeros conflitos em curso pela terra, esta é uma questão latente na RMBH, mostrando que há espaço para políticas de reforma agrária na região. Na Tabela 9 podemos visualizar a classificação dos imóveis rurais na região, construída usando dados do cadastro do Incra para o ano de 2005. Observamos que se destaca o município de Esmeraldas, o segundo maior da região, com 128 latifúndios improdutivos. Em seguida vem Pedro Leopoldo, Taquaraçu de Minas e Sabará que possuem entre 30 e 40 latifúndios improdutivos. No total, de acordo com as informações do cadastro do Incra, existiriam 519 latifúndios improdutivos na região, o que significaria um enorme potencial para a criação de assentamentos de reforma agrária. Observa-se ainda que quase 85% dos imóveis rurais da RMBH são ou minifúndios ou pequenas propriedades. Já as grandes propriedades somam cerca de 3% do total de imóveis rurais. A partir da Tabela 9, Mazzetto (2008), elaborou um mapa (Figura 31) que retrata as classes relativas ao número de grandes propriedades improdutivas dos municípios da RMBH. 159 Tabela 9: Classificação dos imóveis rurais na RMBH. 2005. Município Baldim Belo Horizonte Betim Brumadinho Caeté Capim Branco Confins Contagem Esmeraldas Florestal Ibirité Igarapé Itaguara Itatiaiuçu Jaboticatubas Juatuba Lagoa Santa Mario Campos Mateus Leme Matozinhos Nova Lima Nova União Pedro Leopoldo Raposos Ribeirão das Neves Rio Acima Rio Manso Sabará Santa Luzia S.J. da Lapa S.J. de Bicas Sarzedo Taquaruçu Vespasiano RMBH (n°/%) Minifúndio Pequena propriedade Média Grande propriedade 343 79 171 49 59 28 14 1 847 1.021 483 171 224 263 335 58 111 80 155 60 17 1 9 8 22 6 28 16 1.247 1.431 1.047 316 94 287 992 351 149 341 1.337 679 1.094 162 320 62 40 126 559 197 94 63 298 222 374 36 151 45 14 60 442 40 25 18 23 43 107 16 101 5 2 8 52 1 1 6 8 8 - 1 16 128 1 11 1 1 16 3 16 2 154 316 2.186 548 291 434 1.677 1.231 1.630 218 1.630 116 696 249 56 5 4 1.017 180 160 483 142 77 74 154 142 46 38 2 98 24 1 1 13 19 24 2 39 347 332 642 453 8 167 15 94 4 44 1 4 2 15 38 329 146 642 436 413 57 121 43 479 86 13.071 61,10% 93 147 198 166 31 41 39 155 52 5.032 23,52% 40 19 99 123 11 10 13 100 21 2.114 9,88% 5 12 9 3 2 6 4 215 1% 14 31 22 3 1 4 37 2 519 2,43% 308 820 794 744 111 178 110 479 168 21.392 100% produtiva Improduti va 10 11 Total 649 176 Fonte: Mazzetto (2008). 160 Figura 31: Propriedades improdutivas na RMBH. Fonte: Mazzetto (2008). 161 Pelo exposto, concluímos que as ruralidades contemporâneas abarcam desde as expectativas e interesses do consumo urbano quanto os sonhos e expectativas de uma vida melhor de camponeses urbanos. Mas, quantas ruralidades mais poderíamos descortinar na região? Para respondê-la não podemos prescindir de ouvir os atores sociais que as vivenciam, descortinando suas lógicas e relações. Cada um deles tem sua própria forma de adaptação, ideologia e modo de vida, entrando em choque ou harmonizando com a forma do outro, dando assim a dimensão social do conflito. É com esta inspiração que apresento as falas de alguns atores nos parágrafos seguintes. 5. Os atores e as ruralidades metropolitanas: dando voz às pessoas. Pensando em Walter Benjamin (1987) e seu alerta sobre o fato da memória ser a mais épica de todas as faculdades, tive a inspiração de ouvir as pessoas, suas reminiscências, valores e lutas para compreender as ruralidades metropolitanas. Assumindo sua complexidade, defendo que são atores sociais desse processo os movimentos ambientalistas, as mineradoras, os agricultores, as comunidades quilombolas, os neo-rurais, dentro muito outros. Vamos girar a roda, acompanhando a interconexão de suas histórias. 5.1. A moradora do Condomínio Retiro do Chalé. Sempre pensei em fugir da cidade grande. Estava muito difícil continuar vivendo em Belo Horizonte. Nossa vida estava muito atribulada. Vivíamos no Bairro dos Funcionários, mas o clima de insegurança e a falta de um contato maior com as coisas simples do dia a dia nos levaram a fugir pra cá. Aqui sinto tranquilidade, a paisagem natural é exuberante, o clima é ameno, zero de poluição, sem contar com o jeitinho de cidade do interior. No início do condomínio, a Associação comprou grande parte das terras não parceladas limítrofes ao condomínio, de forma que não precisamos nos preocupar com a preservação ambiental [Estas práticas de garantia de isolamento têm também a função de evitar uma futura “ocupação espontânea”]. Antigamente aqui era uma Fazenda e depois outras áreas foram compradas. Nem parece que estamos tão próximos de BH. Meus filhos podem aproveitar a estrutura do condomínio e socializar 162 com outras crianças, sem que me preocupe tanto. No início, quando não tínhamos as crianças, vínhamos para cá nos fins de semana. Depois percebemos que era um momento propício e demos uma guinada na vida mudando definitivamente pra cá. Já estamos aqui há doze anos. Inclusive, temos alguns amigos de Belo Horizonte que fizeram o mesmo. Aqui temos qualidade de vida. Temos bons restaurantes e estrutura de lazer. Abro a janela, ouço passarinho, cachoeira, vejo o verde, a serra. Ao redor, temos lugares interessantes pra conhecer e aproveitar (A. M., 43 anos). Figura 32: Entrada do Condomínio Retiro do Chalé e a vista do Lago Sul. Fotos da autora. 5.2.A dona da pousada em Casa Branca. Cheguei aqui em Brumadinho há uns vinte anos. Antes, passei um período morando em BH. Digo passei porque sempre imaginei me libertar da opressão que sentia morando lá. Minha família é daqui. Queria ter uma vida mais tranquila, mas para isso, precisei ficar um tempo e juntar dinheiro para montar alguma coisa. Felizmente consegui. Desde que cheguei vivo do turismo. Não sinto saudades das coisas da capital, mesmo porque estou tão perto que o que precisar posso correr pra lá: médico, hospital, aeroporto, essas coisas. As coisas aqui têm mudado e isso me preocupa um pouco. A cidade tinha um charme, a começar pelo próprio nome elogiando a montanha, as brumas, isso aí da natureza. Aqui em Casa Branca [um dos quatro distritos do 163 município] era um sossego. A estrada de terra segurava um pouco o alvoroço. Mas até que o asfalto pra BH não foi ruim não. A inauguração do Inhotim [Museu/Parque de Arte Contemporânea localizado nas antigas terras de um quilombo. Inaugurado em 2006, é uma referência turística da região. Muitas peças ficam ao ar livre para a interação com os visitantes] foi muito positiva para nós. Trouxe mais propaganda. Mais gente. Mas agora a cidade está crescendo muito. O lixo e a degradação de trilhas e cachoeiras são problemas que estamos vivendo. E a água? Tá faltando água. Há um tempo estava saindo água com óleo nas torneiras. Já ficamos sem água para os hóspedes. Também agora o que mais tem aqui é condomínio. Eles estão tomando conta de tudo. Interessante que eles vêm pra cá pra ficar perto da natureza, mas a primeira coisa que têm feito é abrir poço, arrancar matas. E jogar esgoto nos riachos. Veja o Retiro das Pedras [um dos maiores condomínio do município]. Tá jogando esgoto direto no Ribeirão Catarina. E o Retiro do Chalé? O desperdício de água é enorme. Já saiu até matéria sobre isso. Como é que pode? Por isso vivemos em guerra com os condomínios. Se antes já tinha nossa briga com as mineradoras... Essa então é bem injusta. Você conhece o Movimento em Defesa das Águas e Serras aqui de Casa Branca? [na minha negativa, começa a contar]. Foi um ponto alto de união aqui. Em 2011, a Vale [Cia. Vale do Rio Doce] estava expandindo seus negócios aqui e começou a abrir estrada na mata, a fazer um monte de crime para expandir a Jangada [mina]. Começamos uma grande briga e eles não vinham conversar com a gente. Depois perceberam que o movimento só crescia e vieram conversar. Bem que tentamos fazer valer nosso ponto de vista, mas como brigar com quem manda no município? Mas eles tem sentido que estamos em guerra. Quando organizamos o Dia do Abraço na Serra atraímos muita gente e saiu matéria falando da situação em jornal, no rádio e na TV. Mas mesmo assim o poder das mineradoras é grande. Eu não sou contra essa economia do município, mas destruir o lugar por causa disso não posso aceitar. Quero garantir a preservação da natureza porque meu negócio depende disso. Eu recebo muitos hóspedes do Rio de Janeiro, pela Estrada Real, e muitos de Belo Horizonte e redondezas que vêm aproveitar a natureza, a tranquilidade e as belezas daqui. Eu vejo este lugar como um paraíso. Mesmo com muito trabalho, porque pousada é trabalho, eu arranjo um tempinho pra viver estas belezas daqui. Não é todo mundo que pode acordar em um lugar que Deus colocou tanta coisa linda. Quero preservar isso aqui. Não quero que as coisas aqui se transformem. Do jeito que estão indo... (L.S., 59 anos). 164 Figura 33 Museu Inhotim e Fazenda dos Martins, pontos turísticos em Brumadinho. Fotos da autora. 5.3. A história de C.C., ativista ambiental. A história da nossa Quatro Cantos [Ong] começou com o voluntariado de quatro amigos com as crianças da Apae [Associação de Pais e Amigos de Excepcionais]. Desenvolvendo com elas atividades recreativas, o grupo de crianças era dividido em quatro; cada um destes ficava em um canto da quadra de esportes fazendo determinada atividade. Deste projeto social nasceu a Ong e o propósito de desenvolver ações que levassem mais consciência, atitude e esperança às pessoas. Tempos depois, já na universidade, participamos de um evento com tema ambiental e deu aquele clique. É isso que queremos fazer. Tornar o mundo melhor pela temática socioambiental. Logo em seguida, organizamos um encontro sobre meio ambiente na nossa faculdade e daí para formalizar e registrar nossa entidade foi um pulo. Ao longo da trajetória, alguns projetos ganharam destaque [pergunto sobre as ações no Distrito de Casa Branca]. Foi no decorrer de 2011 que o povoado de Casa Branca assistiu à eclosão do Movimento [pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca], denunciando a ação predatória da mineração. A gênese dele se deu no projeto intitulado Resgate da Cidadania, cujo foco, visando às eleições de 2012, era preparar estratégias para fortalecer os interesses políticos de Casa Branca, bastante negligenciada pelo poder público de Brumadinho. Durante essas reuniões, foram levantados os diversos problemas da comunidade, sendo um tema prioritário a água. O Grupo de Estudos da Água extrapolou o projeto inicial e tomou, espontaneamente, um rumo inesperado, crescendo e ganhando a adesão popular. A primeira ação do Movimento ocorreu quando a Vale começou a realizar sondagens para a expansão de uma mina sua, usando veículos e equipamentos de grande porte para abrir inúmeras vias de acesso em plena mata atlântica. Foi um Deus nos acuda. Eles 165 derrubaram muitas árvores de maneira ilegal, produziram rachaduras nas casas por conta das explosões e, mais assustador, por conta da mina começou a faltar água neste lugar que é o berço das nascentes que abastecem boa parte da região metropolitana. Enfim, o conflito estava no ar. Já havia revolta porque a população foi privada do acesso às cachoeiras localizadas nas terras pertencentes à Vale. A comunidade assustada e sem explicações do que estava acontecendo começou a se reunir para enfrentar esse desafio. Organizamos caminhadas, coletamos assinaturas da população e entramos com uma representação junto ao Ministério Público para esclarecer o que estava acontecendo e tomar as devidas medidas judiciais. O Movimento se fortaleceu, a população começou a participar de audiências públicas; encontros e fóruns ambientais. Organizamos blocos de protesto nos carnavais de Rua de Casa Branca; shows, almoços comunitários e feiras de trocas. Buscamos recursos, por meio de campanhas diversas. Mas uma grande mobilização popular acontecida em maio de 2011 fez com que o poder público e a Vale parassem de ignorar a existência do Movimento e da própria comunidade. Foi um marco pra nós. Exibimos o filme Não Vale, de Silvestro Montanaro, sobre o impacto do ciclo de mineração e siderurgia no corredor de Carajás e as ações da Vale ali, o impacto socioambiental, os conflitos trabalhistas e a degradação de vidas humanas causados pela ação da mineradora. Posteriormente, na madrugada de segunda-feira, a comunidade bloqueou a “Avenida Um” que liga Casa Branca à Sede do Município e à Mina da Jangada. Esta mobilização ficou conhecida como o Dia da Alegria. Como resultado da ação, no mesmo dia a Vale enviou vários representantes para dialogarem com a comunidade, a mídia noticiou o ocorrido em cadeia nacional e nas redes sociais da internet. Finalmente a mineradora sentiu que a comunidade não estava brincando, estabelecendo, finalmente, um canal de comunicação com a mesma. Acredito que eles estavam bem preocupados porque a licença de operação da mineradora estava vencendo. Mesmo com os protestos e manifestações contrárias do Movimento, a licença foi renovada algum tempo depois, inclusive autorizando-a a realizar todos os tipos de uso da água, inclusive o rebaixamento de lençol freático. Mas a nossa luta continua. Não são só as minas da Vale. Lutamos também contra a V&M Mineração (antiga Mannesmann), a Ferrous Resources do Brasil, AVG Mineração Ltda, a MMX e com muitas outras. Toda a Região Metropolitana sofre os impactos socioambientais causados por elas. É nosso papel alertar as pessoas dos quatro cantos do planeta Minas. Como divulgamos nos adesivos de uma de nossas campanhas, consideramos a “Mineração, um Câncer no Seio das Gerais”. 166 Figura 34: Manifestação em prol da Preservação da Serra da Moeda, promovida pelo Movimento pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca. Fonte: Jornal Estado de Minas, em 21/04/2012. Figura 35: Material de divulgação da Ong Movimento. Fonte: Movimento pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca. 5.4. O empregado da mineradora. Trabalho na Vale há muito tempo. Não aceito esta coisa de abraçar montanha. As mesmas pessoas que poluem muito mais criticam uma atividade que só traz benefício e impacta muito pouco. Pelo contrário, as mineradoras preservam porque tem compromisso e porque são obrigadas por lei. Não existe lei para as pessoas em 167 condomínios não poluírem. Pergunta se eles já fizeram algum protesto, já trouxeram algum geólogo para avaliar o impacto que os condomínios fechados fazem na Serra da Moeda e no meio ambiente? O que acontece com a fossa, o esgoto gerado pelo condomínio? Será que não estão impactando nossas nascentes, águas subterrâneas? A maioria desse povo que fica protestando e criticando a mineração polui muito mais. Eles ficam preocupados com verde, ar puro, montanha e esquece do povo. Eu tenho uma vida digna hoje graças à mineradora. Eu nunca vi mineração alguma fazer mal a Brumadinho. O município tá crescendo, as coisas estão melhorando desde que as mineradoras vieram pra cá. É emprego pra muita gente. Muito melhor do que trabalhar na casa destes ricos que estão vindo pra cá. Ou mesmo na roça, com pouca terra pra crescer. O que eu vejo é o que os políticos não fazem nada por Brumadinho. Isso sim. Esses que querem preservar a natureza então nem se fala. Não precisam trabalhar, ficam só servindo essas ONGs estrangeiras, ganhando dinheiro fácil pra fazer confusão (J.X., operador de escavadeira, 39 anos). 5.5. O dirigente municipal. Hoje empregamos quase 2.000 funcionários. Quase 20% de toda a receita vêm de compensação financeira pela exploração mineral. Não posso desprezar as receitas da mineração. Ela traz saúde, educação, estradas melhores, não tem como negar. Graças a ela, o IDH do município é alto. [pergunto sobre as manifestações] As minas da Vale que estão em operação atualmente, a do Córrego do Feijão e Jangada, estão acabando e eles vão ampliar a Jangada. A nova mina será bem maior e irá gerar uma arrecadação financeira muito positiva para o município. Do turismo ainda não arrecadamos muito. Eu entendo que a gente tenha que cuidar do meio ambiente. Eu até decretei o aumento das áreas de proteção ambiental. Eu tenho também tentado diversificar a economia, incentivando a instalação de fábricas de peças de automóveis, cerâmicas, frigoríficos e a implantação de unidades de processamento dos minérios retirados aqui. Mas isso não é de imediato. A agricultura daqui não arrecada muito, mas tem muito produtor no município ainda (A.V., dirigente municipal). 168 5.6. O estudante. Vejo essa região como uma pobre menina rica. Fala-se tanto no desenvolvimento que a indústria e as minas trazem pra região, mas não vejo isso. Ao redor tem as periferias e muita pobreza. Os prefeitos daqui ficam o tempo todo querendo trazer indústria. Pra eles isso é desenvolvimento. Não dão apoio pra outras coisas. Se aparece algum empresário deste ramo é só sorriso. Isenção fiscal, menos imposto, terreno, infraestrutura. Pra eles não tem outra coisa no mundo. Lembro de um prefeito daqui da região que a história saiu até no jornal. Ele queria trazer pro município dele uma indústria de doce. Foi pra capital conversou com o desenvolvimento econômico e tal. Depois ficou sabendo que ia ganhar uma siderúrgica porque o município dele ficava em uma área de interesse pra eles. Ele festejou demais. Começou a dizer que o progresso ia chegar. A fabrica de doce de fruta foi pro beleléu (J.A., estudante). 5.7. O casal na roça. Nossa família veio da Cachoeira dos Antunes. Perdemos as terras quando alagaram pra distribuir água do Rio Manso pra região e viemos pra cá. Começamos tudinho de novo. Plantar feijão, milho, mandioca, horta. É o que sabemos fazer. Gosto de acordar cedo. Eu e a veia... Ela vai dar comida pros bichos e eu corto o napier [tipo de capim] e dou pro gado. Boi é igual gente: se tá de barriga cheia, tá tudo bem. Senão já viu... A vida aqui é simples, mas não falta nada. A terra é pouca, mas criei os meninos tirando o sustento daqui. Meu filho mais novo tá estudando na Fazenda Modelo em Pedro Leopoldo. Se não quiser voltar pra cá, vai ter estudo. Tenho orgulho. Os outros dois tão mais perto, têm família. Da roça tiro milho e feijão que entrego na associação e eles embalam [Associação embala esses produtos agregando-lhes valor usando a marca Bruma Vida]. Duas vezes na semana levo as verduras pra vender na cidade. E também levo queijo e doces. Não volto com quase nada. Não uso veneno nem nada. É tudo caseiro. O povo fica doido. Ainda mais que tem um monte de gente de mais poder morando por aqui agora. Falou que é sem químico as coisas, tem fila pra comprar. Mas quase tudo que produzo eu entrego em uma pousada e na cidade. Se tivesse mais área e mais gente talvez aumentasse a produção. Mas achar quem queira trabalhar na roça é difícil. O 169 trabalho é duro. Muitos preferem ir procurar serviço nessas empresas de peça de carro [empresas que estão produzindo para a montadora Fiat] ou nas mineradoras. Eu sempre gostei de roça. Minha família sempre viveu na roça. Então foi natural a gente ir ficando por aqui. Recebo proposta pra vender a terra, mas ainda não quero isso não, porque eu não sei se consigo viver engaiolado nessas casas da cidade. As imobiliárias vivem perguntando se a gente não quer [vender a propriedade porque há uma grande demanda de áreas para fins de lazer e fracionamento para loteamento e moradias]. Mas por agora vou ficando aqui [dona S.V. entra na conversa]. Meu pai me ensinou que a gente não se desfaz do que tem. Tem que dar um jeito de ir vivendo. Comprar mais nós não vai conseguir, mas também não temos que entregar o que é nosso. Eu gosto demais daqui. Quando vou pras casas dos parentes na cidade fico doida de vontade de voltar. Fico até meio doente, com saudades do meu tear [me mostra as peças que produz] (J.V. e S.V., agricultores). Figura 36: Transporte de tomate; embalagem pela Associação sob o rótulo Bruma Vida e retirada do leite. Fotos da autora. 5.8. O pecuarista. Tenho uma boa área aqui. Tenho gado e capim. Moro em Belo Horizonte e venho de vez em quando. Tenho um vaqueiro que cuida das coisas pra mim, ele mora no quilombo. O município está crescendo e minhas terras estão valorizando. Quem sabe o futuro? Esses condomínios, o turismo, o Inhotim. Isso tudo é bom para os negócios (J. R., pecuarista 57 anos). 170 5.8. O trabalhador do Assentamento Pastorinhas. Quando jovem eu ficava pensando em vim pra capital, arrumar um bom emprego, trabalhar, crescer, essas coisas que todo mundo quer. Aí vim, cheguei a Belo Horizonte e consegui vaga em uma firma. Mas o tempo foi passando e aquele sonho, assim, que a gente tinha de poder crescer e tudo que a gente sempre via na televisão: “ah, Belo Horizonte, aqui deve ser tudo muito bom e bonito”, não virou nada. Trabalhava muito, ganhava pouco, não sobrava quase nada depois de pagar conta, aluguel. Aí em 2003 resolvi me juntar ao grupo, fui entrosando com a turma e hoje sou assentado. A história começou com 120 famílias, mas hoje somos apenas 20. Lutamos muito para conseguir esse pedaço de terra. Ficamos muito tempo acampados debaixo de um viaduto da mineradora Vale. Queríamos ocupar a fazenda que estava improdutiva, mas devido à medida provisória que proibia a vistoria de imóveis rurais ocupados por sem terra, ficamos esperando. Depois cansamos de esperar pela prévia vistoria do Incra, então ocupamos a fazenda, que era uma parte do condomínio Menezes. Em 2006, recebemos a posse e o direito a um lugar digno para se viver. Temos 142 hectares de mata e cerrados, que continuamos preservando. Plantamos nos 14 hectares que já estavam desmatados [mostra com orgulho as plantações de hortaliças e o roçado com feijão]. Aqui é coletivo, mas assim cada um planta o seu. Alguns trabalham nos condomínios do município. Às vezes você planta muito e perde. Eu não planto mais porque não tem onde escoar. Para gente escoar ela toda eu tenho que arranjar um jeito de entregar no Ceasa, mas e o transporte? Hoje estou tocando a minha vida, tenho liberdade. Da agricultura já consegui minha casinha. Quero continuar aqui pra sempre (A.S., 41 anos, assentado). Figura 37: Áreas de produção do Assentamento das Pastorinhas e assentada. Fotos da autora. 171 5.9. A liderança quilombola. A comunidade de Sapé tem uma história de muitos anos. Somos considerados quilombolas. A gente sabe que a gente é descendente dos escravos porque os avós da gente contam. Eles me contaram que o primeiro escravo era João Borges. Ele veio fugido da Fazenda do Martins. Quando aconteciam as fugas dos escravos, eles não iam para onde hoje é a comunidade mesmo, não. Tem a igreja numa baixada e depois tem um terreno alto, um morro. Os escravos saiam das fazendas e fugiam para lá. E lá para onde eles iam há muitos anos é chamado de quilombo. E até hoje é chamado de quilombo. As pessoas de Sapé plantavam as roças de milho e feijão lá e falavam: a minha roça é lá no quilombo. Só que ninguém relacionou uma coisa com a outra, né? Só aflorou mesmo esse assunto de quilombo depois. Mas a gente tinha medo. A gente tinha medo de abrir a boca para falar. Discriminavam a gente demais, aí a gente ficava caladinha, a gente ficava no canto da gente. Quando a associação começou a se organizar, a gente falava Sapé, a gente não pronunciava quilombo não. Hoje isso tá mais misturado. Tem preconceito, já ouvi muito “ô cambada de criolada do Sapé”, mas tem muita gente curiosa, vindo pra cá, querendo ver como vivemos, como é um quilombo. É gente que vem no fim de semana, fica nos hotéis e pousadas. Alguns vêm das casas chiques dos condomínios, trazendo visitas. Eu acho isso bom e ruim. Todo muito curioso pra ver como vivemos. Parece que somos seres estranhos. Fico preocupada que os nossos aprendam esses modos que o povo que tá vindo aqui tem e percam o orgulho de nossas origens. Nossas tradições são muitas. Temos a festa de Santa Cruz, a Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e a Guarda de Congado de São Benedito, as danças folclóricas que a gente tem. Aí a gente sai para todos os lugares, para todo município. Temos parentes por todo lado aqui: em Aranhas, Ribeirão, Marinhos. É muito parente. Aqui somos 44 famílias, mais ou menos isso. A maioria do povo trabalha fora, mas ainda temos uns roçados de feijão e milho pra nosso gasto. Como eu disse, quando tudo isso começou era uma grande fazenda, mas depois foi ficando difícil viver da lavoura. A gente plantava lá com os fazendeiros e aí eles tomaram a terra. Agora nas terras de lá só se planta capim. Eles não deixam a população de Sapé plantar mais. A nossa terra era uma terra bem extensa. Tem até uma história que roda de boca em boca. Disse que uma família daqui que tinha terra grande, aí o fazendeiro soltava o gado na terra daquela família e como a pessoa não podia cercar aquela propriedade grande, 172 cercava só um pedaço pequenininho que podia e aquele que ficava fora da cerca, ficava para o fazendeiro. Acredito que por isso a terra foi ficando pouca pra plantar (T.A., 39 anos, liderança quilombola). 5.10. O gerente da mineradora A empresa tem uma história de amor com esta região. Antigamente havia muita reclamação porque era uma época que não tínhamos condições técnicas de prever algum descontrole do processo produtivo. Mas hoje temos clareza que precisamos monitorá-lo, mitigando os impactos socioambientais. Para isso, há todo um processo de licenciamento ambiental, tendo por base os Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (Rima). Temos consciência que a durabilidade de nosso negócio é diretamente proporcional ao atendimento de todas as exigências das instituições fiscalizadoras. Além disso, procuramos sempre estar integrados com as comunidades e municípios estabelecendo parcerias e ações sociais (R.W, 54 anos). Os relatos deixam entrever um cenário de tensões e disputas, onde ruralidades e urbanidades interagem, estabelecendo relações das mais diversas com a natureza, alicerçadas sobre diferentes lógicas de apropriação do território. 173 CONSIDERAÇÕES FINAIS As trilhas investigativas que se propõem a explicitar e compreender o rural em ambiente metropolitano causam estranhamento em quem ouve a intenção e desconforto naquele que resolve fazê-lo. Isso porque a simples menção da existência de ruralidades na ambiência metropolitana usualmente traz perplexidade, como manifestado pelo flâneur baudelariano nos tópicos iniciais deste trabalho. Murmúrios de “ah”, “que?” e as muitas perguntas questionando o para que e os porquês de tal pesquisa foram frequentes na minha trajetória, segregando-me dentro de uma lógica instrumental e utilitarista fundamentada em preceitos da ciência moderna. Esta reação reflete uma ideia generalizada de que a urbanização – em sua dimensão superlativizada, qual seja, a metropolização –, se espraia de forma tão homogênea e com tal magnitude que nada sobra além dos seus elementos e valores. Como resultado, o rural metropolitano termina sendo um objeto de análise pouco privilegiado. As argumentações para não se tomar o rural metropolitano como objeto de análise tanto transitam entre a alegação de sua inexistência como fenômeno social porquanto é considerado como algo subsumido, submerso nos processos da urbanidade – passam pela tese da proeminência das relações socioespaciais urbanas no contexto metropolitano e, como não poderia deixar de ser, finalizam o ciclo discorrendo acerca da irrelevância econômica do rural metropolitano como há muito querem fazer crer as forças hegemônicas assentadas no urbano. Fugindo das trivialidades e (pré)conceitos que parecem engolir com ferocidade atores e processos em torno da ruralidade metropolitana, trilhamos um caminho investigativo que a privilegiou, mostrado a ruralidade como um campo autônomo e, simultaneamente, pertencente ao conjunto social, e não nos termos clássicos da modernidade. Como objetivo desta investigação, tentamos iluminar a ruralidade metropolitana na RMBH com a tinta do esclarecimento e as cores da descoberta. Conduzimos o trabalho em torno da hipótese da existência de um pensamento totalizante que fermentou as narrativas sobre o desaparecimento e a insignificância do mundo rural, mostrando uma força ampliada e difusa quando o recorte de análise é o metropolitano. No espaço da RMBH, dois dos maiores símbolos da modernidade tiveram um grande papel no processo de desconstrução do mundo rural, quais sejam, a 174 industrialização e a urbanização, suscitando a formação de um pensamento hegemônico, introjetado nos corpos e mentalidades, apregoando o desaparecimento da ruralidade sucumbiu diante da soterradora avalanche suscitada pelo fenômeno metropolitano. Certamente que tal fato não é exclusivo da RMBH. Entretanto, sua socio-historia, marcada pela exploração intensiva de metais preciosos e pelo estabelecimento de uma rede de cidades no período aurífero e minerador, foi elemento determinante para a negação da ruralidade. Afirmações obtidas na pesquisa de campo refletem um completo alinhamento à visão hegemônica do território metropolitano. “Quilombos? Não existem”. “Conflitos agrários? Não têm isso, não é lugar disso”. Agricultor familiar? Uns poucos que estão vendendo suas áreas para empreendimentos imobiliários. Aqui não é lugar para “mexer” com agricultura. Opiniões que reforçam o mito originário da região, narrado e renovado com diferentes roupagens. Mas, por outro lado, presenciei falas nas quais se revela o apreço à ruralidade ao se resgatar valores caros à “mineiridade”: os hábitos alimentares da “roça”, passar o fim de semana nos sítios de parentes no interior “caipira”, ver e sentir morros, curvas e cachoeiras, ou mesmo contar causos do desconfiado “Mineirim”, personagem famoso com seu característico “uai sô”. Coube às elites mineiras e ao aparato estatal forjar processos que terminaram por criar a ideia da vocação industrial da RMBH e, em consequência, de sua pouca aptidão para atividades sinérgicas com o mundo rural. Festas, comida, valores, símbolos e tradições que remetem ao universo agrícola são, simultaneamente, negados e festejados. Negados quando se tem em perspectiva seus agentes, em ruralidades instrumentais e amordaçadas. Festejados quando divisados pelos urbanos em sua ruralidade hedonista. Nesta caminhada nos deparamos com muitas evidências da força, permanência e persistência do rural e das ruralidades, que são expressas de formas diferentes em universos heterogêneos, do ponto de vista cultural, social e econômico. Relatos nos mostram a força da ruralidade hedonista que aparece como um anteparo espacial e referencial para as mazelas indesejáveis do caos urbano. Nestes termos, a ruralidade é objetivada como mercadoria e reserva de valor, expressão do patrimônio coletivo, elemento de preservação do ambiente e da paisagem ou ainda como válvula de escape para as tensões inerentes ao cotidiano metropolitano, adequando-se às necessidades, interesses e expectativas da metrópole e de seus habitantes. Relatos também nos alertam para as ruralidades amordaçadas, latentes em um espaço onde a concentração fundiária 175 e a especulação imobiliária são expressões das desigualdades e antinomias de poder de um território recortado historicamente como igualitário e cheio de riquezas, apropriáveis por quem assim puder. Histórias também nos falam das ruralidades instrumentais que tem sua permanência condicionada a adoção de uma lógica agroempresarial, onde eficiência, eficácia, produtividade são os elementos definidores de sua continuidade. Nos municípios que compõem a RMBH, constatamos a valorização da ruralidade relacionada à natureza, situação divisada primeiramente nas sociedades ocidentais mais industrializadas. A anterior repulsividade ao mundo rural e a seus valores tem sido minimizada, em processos de identificação que deixam entrever a passagem de um mundo rural dominado pelo agrícola, para um mundo rural assimilado pelo ambiente. Muitas são as ruralidades presentes na região analisada e a elas associamos um universo de atores em disputas. As empresas mineradoras, movimentos ambientalistas, poderes públicos, agricultores, imobiliárias e empresas ligadas ao turismo são alguns dos entes que atuam no metropolitano institucionalizado. Entretanto, ao divisar sua heterogeneidade, acredito que seja necessário dar continuidade a este processo investigativo, buscando elaborar e construir mais categorias operativas que consigam explicar este universo ruralizado-urbanizado-(re)ruralizado. Creio ser importante investigar as ruralidades que preconizam processos voltados à segurança alimentar e nutricional das populações em situação de risco bem como as ruralidades do agronegócio na região, as quais não foram devidamente visibilizadas nesta pesquisa. Finalmente, penso na necessidade de buscar a companhia do flâneur para que consigamos estabelecer uma viagem interpretativa nesta metrópole periférica e contemporânea chamada Belo Horizonte, apontada por muitos como provinciana e nada moderna como assim ela se deseja. 176 Referências Bibliográficas ALENCAR, C. M. M. de. Indicador qualitativo de ruralidade em espaço regional Metropolitano. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 12, n. 2, p. 109-126, mai./ago. 2007. ALEXANDER, J. Modern, ante, post, and neo: how intellectuals have coded, narrated, and explained the “crisis of our times”. In: ALEXANDER, J. Fin-de-siècle social theory: relativism, reduction, and the problem of reason. London/New York: Verso, 1995, pp. 07-64. ANDERSON, P. Neoliberalismo. In: SADER, Emir. GENTILI, Pablo (org). PósNeoliberalismo - As políticas sociais e o Estado democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995. ANDRADE, F. A enxada complexa: roceiros e fazendeiros em Minas gerais na primeira metade do século XIX. 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