UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE CIÊNCIAS
SOCIAS EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA
E SOCIEDADE
TESE
RURALIDADES NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO
HORIZONTE: UM OLHAR À LUZ DE JANUS
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
RURALIDADES NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE:
UM OLHAR À LUZ DE JANUS
DIONE MELO DA SILVA
Sob a orientação do professor
Roberto José Moreira
Tese submetida como requisito parcial
para obtenção do grau de Doutor em
Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade.
Rio de Janeiro, RJ
Outubro de 2014
307.72098151
Silva, Dione Melo da.
S586r
Ruralidades na Região Metropolitana de Belo Horizonte
um olhar à luz de Janus / Dione Melo da Silva, 2014.
202 f.
T
Orientador: Roberto José Moreira.
Tese (doutorado) – Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Sociais.
Bibliografia: 177-187
1. Ruralidade - Teses. 2. Dinâmicas rurais – Teses. 3.
Belo Horizonte, MG – Teses. I. Moreira, Roberto José. II.
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Instituto de
Ciências Humanas e Sociais. III. Título.
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO,
AGRICULTURA E SOCIEDADE
DIONE MELO DA SILVA
Tese submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em
Ciências do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade, na linha de pesquisa Estudos de Cultura e Mundo Rural.
TESE APROVADA EM ___/____/_____
Membros da banca examinadora
______________________________________________
Prof. Ph.D. Roberto José Moreira – CPDA/UFRRJ
(orientador)
______________________________________________
Profª. Dra. Eli Napoleão Lima – CPDA/UFRRJ
_____________________________________________________
Profª. Dra. Regina Landin Bruno – CPDA/UFRRJ
____________________________________________________
Profª. Dra Márcia Maria Menendes Motta – UFRJ
_____________________________________________________
Dr. Otavio Valentim Balsadi – Pesquisador da Embrapa- Brasília
Dedico a vocês, Caca, Deni e Dori, o resultado desta jornada chamada Doutorado!
A prematura partida de vocês foi avassaladora... arrastou muitos planos, sonhos e a
melhor parte do meu coração. O pedaço restante – ainda que árido – teve que sobreviver,
buscando e aprendendo uma nova forma de amá-los: à distância, sem nossas frequentes
brigas, em uma ausência sofrida. Porém, e felizmente, meu coração foi (é) aquecido e
renovado pelas lembranças dos nossos momentos de alegria, de riso farto e fácil. Caca,
minha filha-sobrinha. Dene, meu filho-irmão. Dori, meu pai-irmão. Para vocês esta tese:
ela é a celebração de um processo, marcado pela tristeza, mas também pela perseverança.
Eis a “nossa” tese: um doce amargo, cozido na chama quente do amor e
embrulhado com o papel cinzento da saudade. Um doce com sabor, textura e aroma
inconfundíveis, pois para sempre evocará momentos, lugares, partidas, chegadas, sorrisos
e lágrimas. E sonhos. Ela é o presente e o meu presente. Minha forma de demonstrar um
carinho infinito pela nossa convivência, curta e intensa. Meu agradecimento por ter
aprendido com vocês o significado do verbo AMAR.
Eu vos digo: é necessário ter um caos dentro de si para dar à luz
uma estrela cintilante.
Frederico Nietzsche
Assim Falava Zaratustra (2002, p. 21).
AGRADECIMENTOS
Antes de tudo, agradeço à Vida. Celebrá-la, sempre, em pequenos e grandes
gestos. Mas, afinal de que ela é feita? Barro... Luta... Poesia? Enquanto procuro respostas,
vou agradecendo às pessoas, pois com elas é que vou tecendo a grande teia da Vida.
Roberto Moreira, meu agradecimento especial a você. Grande luz, pessoa e
mestre. Desde o brilhar de olhos na primeira aula até aos brilhos mais recentes das aulas
do dia a dia. Você já sabe, mas faço questão de repetir: cheguei aqui por sua causa.
Aos professores:
Regina Bruno, admiração infinita. Como não se encantar diante de seu
“Demiurgos, sanguessugas e autômatos”?
Eli Lima, que me instigou a buscar respostas aos seus questionamentos. Hoje, já
consigo responder o que é e onde estão as novas ruralidades.
Zezé, por sua franqueza sem limites e por me ensinar a pensar.
Nelson Delgado, um sorriso inesquecível no anonimato da entrevista de seleção.
Leonilde Sérvolo, por sua inquebrantável disciplina e por tudo que tem feito pelo
conhecimento científico acerca dos movimentos sociais.
Fátima Portilho em sua pós-modernidade retrô.
Raimundo, genuína intelectualidade brasileira. Graças ao seu esforço e sua
peculiar organização comecei a ler Caio Prado, Furtado e Gilberto Freyre.
Renato Maluf, com olhos questionadores e grande coração.
Cláudia Schmidt e sua braveza e bravura gaúchas.
Aos meus pilares do dia a dia no CPDA, Têresa, Henrique, Sílvia, Marcos e
Cinthia.
Aos companheiros de ontem, que ficarão para sempre guardados no baú das
memórias. Bons amigos, muitas memórias. Quem sabe não serão companheiros no
amanhã? Luciano, Diógenes, Marta, Paulo, Walter, Rosana, Alessandro, Silvia, Alex,
Wagner, Melqui, Marcelo, Clesson, Malu, Cida, Jaqueline, Débora, Vanessa e Marco.
À Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária e ao povo brasileiro, por eles
assumo responsabilidades, enfrento pressões. Com eles, procuro os motivos para seguir
em frente, vivenciando alegrias e frustrações.
À Moita, Dejoel, Werito e Rosane. Embrapianos que, nesta ordem e a seu modo,
seguraram na minha mão, ajudando-me a chegar aqui.
À professora Cristina Alencar e ao pesquisador Otávio Balsadi por participarem
da banca de defesa e pelas sugestões para sua melhoria.
À Márcia, mais do que Embrapiana, irmã.
À Aelson, mais do irmão, família.
À minha Mãe, meu Pai, aos irmãos D – aos presentes e aos que já estão em outro
plano – ao meu cunhado, cunhadas e sobrinhos. Mais do que Família, Amores.
Ao amor. À vida. Ao amor da minha vida, Amauri. Você enxuga as minhas
lágrimas. Você me fez sorrir.
RESUMO
Esta tese objetiva identificar, descrever e analisar como as identificações rurais são
apreciadas na instância do metropolitano tendo como recorte empírico a Região
Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Utilizo o mito janusiano como procedimento
alegórico para marcar a necessária interconexão entre campo, cidade e metrópole.
Demonstro a existência de um mito fundador que impulsiona e consolida
psicanaliticamente uma identidade atribuída/designada a este território metropolitano,
identidade esta hegemonicamente construída como minerária, industrial, urbana e
moderna, forjada desde os primeiros momentos de sua constituição. Apresento a
ruralidade como uma expressão identitária por meio da qual as sociedades pensam sua
relação com a natureza, na medida em que ela – ruralidade – é culturalmente associada à
terra, aos processos naturais e à natureza natural, isto é, à natureza que se pensa pura por
oposição à existente nas cidades. É desta visão – marcadamente urbana – de que o rural
representa uma natureza não artificializada ou quase não transformada que repousa a
identificação social de seu ambiente como natureza e como campo. Por meio de
entrevistas semi-estruturadas busquei captar como diferentes atores vivenciam as
ruralidades metropolitanas, e, ao fazê-lo, desconstruo a tese de sua inexistência.
Palavras-chaves: campo-cidade, metrópole, identidades rurais, ruralidades.
ABSTRACT
This thesis intends to identify, describe and analyze how the rural identifications are
appreciated in the metropolitan level having as empirical cutting the Metropolitan Region
of Belo Horizonte (MRBH). I will use the Janus myth as an allegorical procedure to mark
the necessary interconnection between the rural areas, the city and metropolis. I will
demonstrate the existence of a foundation myth that impulse and consolidate
psychoanalytically one identity assigned to this metropolitan territory, identity that was
built in a hegemonic way as a mining industry, industrial area, urban and modern, since
the beginning of its formation. I will present rurality as an identitary expression by which
the societies rethink their relation with nature, as – rurality- is culturally associated to the
land, to the cultural processes and to the natural environment, i.e., to the nature that is
considered as pure opposed to the existent in the cities. It is this vision – markedly urbanfrom which the rural represent a non-artificialized or almost a non-transformed nature
that maintain a social identification of its environment as nature and field (land). By mean
of semi structured interviews, I searched to capture as different actors experience the
metropolitan rurality, and in doing so, I deconstruct the thesis of its inexistence.
Key words- Land (field)- city, metropolis, rural identities, ruralities.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Siderurgia: desembolsos efetuados pelo Sistema BNDES. 1952-1989.
Tabela 2: Investimentos na mineração em Minas Gerais. 1990-1999.
Tabela 3: Valor da Transformação Industrial por classe/gênero de indústria. Minas
Gerais e Brasil.
Tabela 4: Indicadores de pobreza e desigualdade de regiões metropolitanas. 2000.
Tabela 5: Evolução da população da RMBH.
Tabela 6: Evolução da população rural e urbana em Minas Gerais, 1950-2000.
Tabela 7: Evolução dos preços de terrenos no aglomerado metropolitano de Belo
Horizonte. 1950-1976.
Tabela 8: Produtos ofertados pelos municípios da RMBH na CeasaMinas.
Tabela 9: Classificação dos imóveis rurais na RMBH. 2005.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Municípios que compõem a Grande Belo Horizonte (RMBH): movimentos
originários e base econômica atual.
Quadro 2: Extensão territorial, percentual de população rural e número de
estabelecimentos rurais dos municípios da RMBH. .
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Edifício Oscar Niemeyer. Disponível em: www.arqbh.com.br
Figura 2: “Janus”, Watercolour by Tony Grist, 1971.
Figura 3: Montagem com nomes dos 34 municípios que compõem a RMBH.
Figura 4: Mapa político-administrativo da Região Metropolitana de Belo Horizonte. No
detalhe, a localização da RMBH no mapa do Estado. Fonte: IBGE, 2007.
Figura 5: Propagandas de algumas indústrias instaladas em Belo Horizonte entre 1920,
1930 e 1940. Fonte: (PAULA; MONTE-MÓR, 2004).
Figura 6: Pico do Cauê, em 1942 e em 2007, à direita, o que sobrou dele. Fotos: 1942,
Companhia Vale do Rio Doce: 50 anos de História e 2007, Cristiane Magalhães.
Figura 7: Mina de Águas Claras, tendo ao fundo a Serra do Curral e a cidade de Belo
Horizonte. Desativada, suas bordas estão em estágio avançado de desmoronamento
(detalhes), e sua cratera de 240 m de profundidade alcançou o lençol freático. Foto de
Fernando Rabelo, 02/2014.
Figura 8: Indicador de pobreza por município da Região Metropolitana de Belo
Horizonte, 2000. Fonte: Cedeplar/UFMG (2004, p. 104).
Figura 9: Representação cultural do mineiro mais recorrente (DANTAS, 2010, p.77).
Figura 10: População rural na RMBH. Dados estratificados. Fontes: IBGE, censo
demográfico 2000; Cadastro do Incra para MG (2007). Adaptado de Mazzetto (2008).
Figura 11: Serra do Rola Moça (foto de Roberto Murta); Mar de morros (foto Alex
Tinoco).
Figura 12: Cachoeira do Índio, em Rio Acima, e Cachoeira Grande, em Jaboticatubas.
Fotos da autora.
Figura 13: Ruas em Sabará (foto de Robson Nunes) e Santa Luzia (Rua Direita, foto
Maya Santana). No centro, o Solar da Baronesa (foto da autora).
Figura 14: Igrejas em estilo barroco colonial em Mateus Leme, Caeté e interior de igreja
em Santa Luzia. Fotos da autora.
Figura 15: Em Baldim, Cortejo de Nossa Senhora do Rosário e Folia de Reis (fotos Ione
Torres).
Figura 16: Sede de Casa de Congado, em Baldim, e apresentação de Congado em Rio
Manso. Fotos: site da Prefeitura Municipal de Baldim e Rio Manso.
Figura 17: Capa do livro: Belo Horizonte: do Arraial à metrópole - 300 anos de história.
Autor: José Maria Rabêlo. Editora Legraphar, 2013.
Figura 18: Mapa ilustrativo da criação de Vilas em Minas Gerais entre 1710-1820.
Fonte: Cunha (2006, p.6). Destaque para a área em amarelo, a região das Minas, onde se
localizavam de forma dispersa as vilas auríferas mais populosas.
Figura 19: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda,
1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.10). Organização:
Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. Em destaque as povoações
classificadas por Caetano Miranda como arraiais freguesias, na área de mineração mais
intensa e próspera.
Figura 20: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda,
1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Adaptado de Santos et al. (2009, p.11).
Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. No detalhe retangular
vermelho, o Curral Del Rey, arraial onde seria instalada a futura capital do Estado, Belo
Horizonte. Também em destaque as povoações classificadas por Caetano Miranda como
arraiais.
Figura 21: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda,
1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.10). Organização:
Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. Em destaque as povoações
classificadas por Caetano Miranda como arraiais capelas.
Figura 22: Carta Geographica da Capitania de Minas Geraes [Caetano Luís de
Miranda, 1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.6).
Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. No mapa foram
destacados os limites da Capitania, de suas comarcas, as vilas cabeças de comarca, os
limites com as outras capitanias e os principais elementos de hidrografia e relevo.
Figura 23: Mapa da capitania em 1720. Projeção sobre mapa atual. Destaque para as
áreas limítrofes, divisão de comarcas e vilas principais. Fonte: Adaptado de Cunha
(2002, p,145). No detalhe em vermelho, o arraial Curral Del Rey, em cujas terras seria
erigida a futura capital. Em azul, Vila Rica (Ouro Preto), capital da capitania.
Figura 24: Mapa da Capitania de Minas Gerais no século XVIII: categorias de percepção
do espaço setecentista. Projeção sobre mapa atual. Fonte: Adaptado de CUNHA (2002,
p.140). No detalhe em cinza, a região das Minas e suas principais nucleações. As barras
laterais indicam os limites de colonização efetiva da capitania no século XVIII.
Figura 25: Mapa da regionalização de Minas Gerais para o século XVIII. Diferenciação
espacial e especialização das atividades e eixos comerciais. Projeção sobre mapa atual
Fonte: Cunha (2006, p.3). Destaque para a área em amarelo, a região das Minas, onde se
localizavam de forma dispersa as vilas auríferas mais populosas.
Figura 26: Julius Kaukal (Viena, 1897 – Belo Horizonte, 1995), ilustração do Arraial de
Curral Del Rei. In: SENNA, Nelson C. Cinqüentenário de Belo Horizonte. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1948. Acervo Arquivo Público da Cidade de Belo
Horizonte.
Figura 27: Julius Kaukal (Viena, 1897 – Belo Horizonte, 1995), ilustração de Belo
Horizonte em 1947. In: SENNA, Nelson C. Cinqüentenário de Belo Horizonte. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1948. Acervo Arquivo Público da Cidade de Belo
Horizonte.
Figura 28: Vista aérea de área de extrativismo mineral na RMBH. Fonte: Estado de
Minas, 20/04/2012.
Figura 29: Cópia de encartes divulgando empreendimentos imobiliários tendo o rural
como chamariz.
Figura 30: Propaganda do empreendimento Recanto das Araras, em Jaboticatubas.
Figura 31: Propriedades improdutivas na RMBH. Fonte: Mazzetto (2008).
Figura 32: Entrada do Condomínio Retiro do Chalé e a vista do Lago Sul. Fotos da
autora.
Figura 33 Museu Inhotim e Fazenda dos Martins, pontos turísticos em Brumadinho.
Fotos da autora.
Figura 34: Manifestação em prol da Preservação da Serra da Moeda, promovida pelo
Movimento pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca. Fonte: Jornal Estado de
Minas, em 21/04/2012.
Figura 35: Material de divulgação da Ong Movimento. Fonte: Movimento pelas Águas e
Serras de Minas e de Casa Branca.
Figura 36: Transporte de tomate; embalagem pela Associação sob o rótulo Bruma Vida e
retirada do leite. Fotos da autora.
Figura 37: Áreas de produção do Assentamento das Pastorinhas e assentada. Fotos da
autora.
Figura 38: Comunidade Quilombola Sapé. Fotos da autora.
Sumário
PERAMBULANDO PELA METRÓPOLE MINEIRA... ................................................ 1
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 13
CAPÍTULO I
REVISITANDO O MITO DE JANUS: PROBLEMATIZANDO A RURALIDADE
METROPOLITANA ...................................................................................................... 28
1. Aprofundando os marcos teóricos da pesquisa: o Deus Janus como procedimento
alegórico......................................................................................................................... 29
2. Um pouco de história: (des)construindo e (re)construindo a relação campo e cidade.
Qual campo? Que cidades? ............................................................................................ 36
3. Ruralidade Instrumental ............................................................................................ 47
4. Ruralidade Hedonista ................................................................................................. 48
5. Ruralidade Amordaçada............................................................................................. 49
CAPÍTULO II
O TERRITÓRIO METROPOLITANO: O INDUSTRIAL COMO ENREDO COLETIVO
........................................................................................................................................ 50
1. As dinâmicas e heterogeneidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte. ...... 51
2. A vocação industrial da Região Metropolitana de Belo Horizonte. .......................... 64
3. A urbanização e a metropolização na RMBH............................................................ 77
4.
O Rural na Região Metropolitana de Belo Horizonte. ........................................... 81
CAPÍTULO III
MITOS FUNDADORES ................................................................................................ 97
1. A sócio-gênese mineira: o ouro, as vilas e a vocação semeadora de cidades. ........... 98
2. Para além da mineração: a produção agropecuária colonial. ................................... 126
3. Religiosidade e modos civilizados: notas sobre a cultura mineira. ......................... 130
4. A sócio-gênese mineira: um rápido resumo. ........................................................... 136
5. Eliminando Ruralidades: do Curral Del Rey a um Belo Horizonte. ....................... 139
CAPÍTULO IV
RURALIDADES EM UM METROPOLITANO INSTITUCIONALIZADO ............ 149
1.
Relações entre ruralidades complexas. ................................................................. 150
2.
Ruralidade Instrumental: a horticultura intensiva em Ibirité. ............................... 151
3.
Ruralidade Hedonista: o ambiental em Nova Lima.............................................. 153
4.
Ruralidade Amordaçada: a questão agrária em Betim. ........................................ 157
5.
Os atores e as ruralidades metropolitanas: dando voz às pessoas. ................................... 162
5.1. A moradora do Condomínio Retiro do Chalé. ............................................... 162
5.2.
A dona da pousada em Casa Branca. ......................................................... 163
5.3. A história de C.C., ativista ambiental............................................................. 165
5.4.
O empregado da mineradora. ..................................................................... 167
5.5.
O dirigente municipal. ................................................................................ 168
5.6.
O estudante. ................................................................................................ 169
5.7.
O casal na roça. .......................................................................................... 169
5.8.
O pecuarista. ............................................................................................... 170
5.8. O trabalhador do Assentamento Pastorinhas. ................................................. 171
5.9.
A liderança quilombola. ............................................................................. 172
5.10. O gerente da mineradora ............................................................................ 173
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 174
Referências Bibliográficas ............................................................................................ 177
Figura 1: Edifício Oscar Niemeyer. Disponível em: www.arqbh.com.br
Não é fácil nem simples amar Belo Horizonte. É natural amar Ouro Preto, Recife,
Salvador, Rio... Nessas cidades há um estilo de amá-las, que se transmite. Mas em Belo
Horizonte cada habitante tem de inventar o seu amor (eu chamo de amor uma
complicação de sentimentos), como quem inventa uma lenda ou um poema. Nela não
temos nem mesmo o rio e o mar, elementos através dos quais as crianças se põem em
contato com o mundo imaginário, em que preferem viver. Menino de Belo Horizonte, de
um lado, tem o programa traçado pelos adultos: estudo, educação, ordens; de outro lado
uma cidade riscada a régua, sem idade e sem mitologia, sem muitos estímulos para a
aventura lírica de todo dia. Os mitos fazem o espírito funcionar e o alimentam de amor.
De repente uma pessoa se surpreende adulta e sente a compressão do tempo: esta pessoa
amará o seu passado pelos incidentes que fizerem dele um acontecimento romanesco,
uma fábula, uma promessa de mistério. (PAULO MENDES CAMPOS, 2000,p.69).
PERAMBULANDO PELA METRÓPOLE MINEIRA...
Um homem passeia, sem direção ou propósito, pelas largas e planejadas
avenidas de Belo Horizonte. Quase não encontra calçadas que abriguem os seus passos.
Protegido pelo anonimato, ele vai registrando sombras, sons, sensações. Faz leituras,
esboça julgamentos. Metrópole1, murmura para si. Antigamente, a pequena Vila do
Curral D’El Rey. Hoje, a metrópole mineira. Como defini-la? Para alguns, uma boca
lançando palavras no ar, sua língua, seu sotaque. Para outros, um animal de patas e
garras afiadas, arranhando desavisados, causando-lhes lacerações, conflitos e dor.
Acredito que seja uma imperatriz fazendo seus súdito-habitantes caminhar sob o véu do
cotidiano. Talvez uma nuvem engolindo o barulho ameaçador do dia-a-dia para
transformá-lo em ritmo e melodia. Pretensiosamente acolhe todos que a procuram.
Metrópole... Murmura novamente. O que seria? Espaço de fluxos? Aglomerado de
pessoas? Rede de cidades? Muitas perguntas, muitas respostas. Talvez uma folha,
jamais em branco, escrita por histórias de corpos e mentes. Certamente hierarquia e
segregação são substantivos que a compõem, pondera o indivíduo solitário. Pensando
alto, enuncia: metrópole, você é um espetáculo-tragédia para os sentidos. Em todos os
sentidos.
Mergulhado em suas reflexões, o andarilho desconhecido, ao fugir dos
andaimes das construções em reforma, vez ou outra esbarra em transeuntes apressados,
cujos passos largos são abafados pelos ruídos frenéticos dos motores. Metrópole... o
lugar “abriga” mais de dois milhões de pessoas... Tropeçar em algumas delas é algo
1
Segundo Lencioni (2006, p.44), etimologicamente, o vocábulo metrópole deriva do grego “Mçtrópolis”,
pela junção de pólis (cidade) com mçtra (útero, mãe). Seu significado seria então a de cidade-mãe em
relação a outras cidades por ela criadas, denominadas de colônias, que, entretanto, guardavam-lhe
independência. Na atualidade, esta palavra, como toda representação mental de dado momento histórico,
guarda profundas diferenças em relação ao vocábulo originário. A este respeito, Arrais (2012, p.9) fez
interessante compilação. Por exemplo, ela destaca que Bolle (2000), em seu estudo sobre o universo da
metrópole a partir da representação histórica de Walter Benjamin, usa o termo para designar uma
categoria do imperialismo oitocentista. Mumford (1998), no capítulo intitulado De Megalópolis a
Necrópolis, do clássico livro A cidade na história, discorre sobre a metrópole no Império Romano,
enquanto Coulanges (2002), em seu livro A cidade antiga, argumenta sobre a relação entre as guerras
romanas, religião e metrópole. Segundo Lemos (1999, p.17), as metrópoles são centros nevrálgicos do
capital monopolista, com o espaço criado para a integração territorial e o poder da elite, definindo e
impondo ideologias e valores homogeneizantes. Mesmo não sendo consensual a definição contemporânea
de metrópole, alguns pontos são comuns nas diferentes conceituações, quais sejam: é uma forma urbana
de tamanho expressivo, seja em termos populacionais quanto territoriais; possui diversidade econômica,
com concentração na economia de serviços; é um locus privilegiado de inovações; espaço de emissão e
recepção de fluxos de informação e comunicação e, finalmente, é um nó significativo de redes diversas
(transportes, informação, cultura, saúde, consumo, poder, cidades, etc.).
1
esperado, conclui ironicamente. Carros? Muito mais que um milhão e meio. Duzentos e
dezoito novos por dia. Semáforos? Quase uma infinidade... Sorrindo, balança a cabeça
admirando-se por recordar aqui e acolá uma ou outra estatística em meio à profusão de
códigos e imagens.
O homem levanta o olhar para mirar o horizonte. Belo horizonte? Enxerga uma
paisagem pasteurizada – asfalto, carros, radares, fios, prédios, avisos, câmeras –
embaçando a visão, e muitos, muitos anúncios de redes de fast food. A cidade parece
eufórica, mas é agônica, féerie eletrônica. Com sarcasmo, o andarilho pondera sobre o
lugar, que assusta e desenraiza2, mas ainda assim atrai migrantes, como mariposas
buscando luz. Imã... Metrópole... Para ela voam muitas abelhas humanas atraídas pela
possibilidade do mel, restando presas na fina teia das armadilhas do progresso. Com
voracidade, ela vai engolindo as pessoas-abelhas, operárias na hierarquia, expulsando-as
depois para colmeias-cortiços, espaços periféricos distantes do centro nevrálgico. As
abelhas-rainhas, por sua vez, fogem para os condomínios fechados, enclaves
fortificados3 de acesso restrito, com seus muros altos, entradas blindadas, câmeras de
vigilância e seguranças armados.
O cidadão solitário sacode com força a cabeça afastando esses devaneios. Uma
mulher passa apressadamente. Ao levantar os olhos para contemplá-la, visualiza apenas
um vulto distante. “Não mais hei de te ver senão na eternidade? Longe daqui! tarde
demais! nunca talvez!”, declama baixinho o poema de Baudelaire (1990, p. 345). Ao
longe, alguém tenta, aos sobressaltos, mudar de calçada e, ato contínuo, uma buzina
toca longamente. O desconhecido imagina muitas delas tocando em uníssono... Seria
como se as trombetas do céu anunciassem o juízo final, avalia.
Tentando sublimar os sons, volta seu olhar com interesse para o emaranhado de
edifícios perfilados na paisagem urbana. Quase todos estão enfeitados com símbolos de
instituições ligadas ao capital financeiro, compondo um mosaico que se destaca pelo
fetichismo visual. Aliás, ainda mais presente nos outdoors com frases imperativas e
cheias de efeito, espalhados na paisagem: compre um carro/Faça inglês/Vá à
2
Simmel (2004) fala da cidade e, por extensão, da metrópole que (des)enraiza, sob a ótica da perda de
referências que marcam a experiência humana. Em termos psíquicos, esta cidade seria um ambiente
socioespacial onde o sujeito parece não se reconhecer, na medida em que o sentimento de origem, de
pertencimento desaparece, desorganizando-lhe de tal forma que “ninguém se sente tão só e abandonado
como na multidão da grande cidade” (SIMMEL, 2004, p. 71).
3
Caldeira (2000, p. 11-12) usa o termo “enclaves fortificados” para designar um novo padrão de
segregação urbana baseado no estabelecimento de espaços privatizados, fechados e monitorados,
destinados à residência, lazer, trabalho ou consumo. Como exemplos, o shopping center, os conjuntos
comerciais e empresariais e os loteamentos imobiliários residenciais.
2
Disney/Venha para tal banco/Assine tal TV (CARLOS, 2007, p.40-50). Igualmente
autoritários, placas e sinais emitem ordens: Fume isso/Compre um Toyota/Use
Nike/Ande (farol verde)/Pare (vermelho)/Proibido estacionar/Proibido virar à
esquerda/Proibido, não permitido, proibido, não permitido! Por que obedecê-los?
Depois de horas a perambular sem destino pelas ruas, observa com interesse o
vaivém das pessoas à espera dos ônibus. Sente-se tentado a entrar em um deles e viver a
experiência do acaso. Quem sabe terei uma aventura “alucinógena, à maneira daquela
realizada por ianomâmis sorvendo cipós e raízes (...)” (ANDRADE, 2003, p. 11),
interroga-se ansioso. Sem muito pensar, entrega-se ao impulso de viver uma experiência
derivacionista4, perambulando sem rumo... Vou viver esta metrópole, balbucia o
derivante. E pela primeira vez em horas é acometido por um espamo entusiasmado!
Como se fizesse parte do livro The Naked City, ícone situacionista escrito por
Debord, embarca no ônibus 4405, na altura da Rua dos Tupis depois de passar pela
Goitacazes. Sorri ao pronunciar os nomes das ruas. Soam estranhos, como se saídos de
uma gramática. Talvez, por isso, sejam ruas anônimas, intui. Nomes tão diferentes
daqueles das ruas parisienses, Royale, Montmartre, Havre, Laferrière, Soufflot,
relembrando reinados, impérios, artistas... Mas, não sabe o andarilho que são nomes
indígenas. Homenagem póstuma a povos e costumes que, se não esquecidos, dizimados:
Tabajaras, Tupis, Tupinambás, Tamoios, Timbiras... Guajajaras, Guaicurus, Guaranis...
Caetés, Carijós...
Olhando através dos vidros do ônibus, acompanha com interesse a paisagem
urbana, lendo anúncios que não consegue entender. “Venha descansar no hotel-fazenda
Moinho, a rusticidade do campo a 45 km de Belo Horizonte”. “Almoce no Restaurante
Fazendinha Porteira Velha, sabor e tradição da fazenda perto de você”. “EcoVillas Vale
Verde: não é bem no coração de Betim, é no seu pulmão. Um bom motivo para viver
cercado de natureza. Lotes a partir de 1000 m². Poucas unidades disponíveis”.
Entretido, vê um painel anunciando a “Central de Abastecimento de Minas
Gerais, Unidade Contagem”. Movido pela curiosidade, resolve descer para saber do que
4
A deriva é uma técnica do pensamento situacionista que defende a passagem rápida por ambiências
variadas como forma de observação ativa dos aglomerados populacionais. Este movimento emerge nas
décadas de 1950/60 na Europa, caracterizando-se pela crítica aguçada às questões urbanas e aos discursos
contemporâneos sobre a cidade. Segundo eles, enquanto a arquitetura e o urbanismo modernos dedicamse demasiadamente à promoção de mudanças estéticas, por exemplo, abrindo largas e planejadas
avenidas, perdem um possível papel formativo em direção à sociedade e ao desmoronamento dos
espetáculos modernos suas diversas ambiências (JACQUES, 2001).
3
se trata. Logo enxerga um amontoado de caminhões e, por entre os veículos, caminha
em direção ao que parecer ser uma cidade. Direciona sua atenção para um gigantesco
painel acrílico: “Seja bem vindo à CeasaMinas, solução em segurança alimentar. Por
aqui passam diariamente cerca de 70.000 pessoas. Garantia de mercado e renda para os
nossos 4,2 mil produtores rurais ativos”. Compreende, então, estar em um grande
mercado.
Andando aqui e acolá, sente um burburinho nervoso imprimir seu ritmo ao
ambiente. Avizinha-se de um pavilhão chamado Mercado Livre do Produtor (MLP),
que, em sua grandiosidade, vagamente o faz lembrar o Les Halles, o desativado
mercado central da cidade-luz. Em ambos, cores, sons e cheiros que inebriam os
sentidos. Ah! Les Halles... sente saudade dos imponentes pavilhões de ferro e vidro,
materiais emblemáticos nos primórdios da sua construção. Nos tempos áureos, tantos
turistas e parisienses interessados na aquisição de víveres por atacado. Les MLP...
sussurra baixinho com sotaque francês pouco disfarçado. Desviando-se das
reminiscências, olha o lugar com interesse renovado. Poucos turistas, conclui.
Esquecendo a arquitetura do mercado francês, o caminhante resolve entrar no mercado
local. Parece ser uma hora agitada, pensa ele. Lança o olhar para um homem que passa
empurrando caixotes de madeira em um carrinho. Ágil, apressado, quase deselegante. O
mesmo acontece com outros. E outros. E outros. Formigas em desvario, conclui para si.
Correm, agitam o corpo e gritam os nomes uns dos outros.
Cansado da confusão de vozes e gestos, volta os olhos para o folheto que acaba
de receber. Ele traz o depoimento de alguém, identificado pelas iniciais A.H.S.
Retratado como um morador de Contagem, município próximo à capital, o quase
anônimo expressa coisas que não compreendo, pensa o andarilho. Diz ele: “aqui na
"pedra" – descobre depois que esse é o apelido dado ao lugar – somos atualmente 9.322
produtores rurais. Venho há muito tempo para vender meus produtos... aqui é como se
fosse minha casa, uma grande família”. Outras narrativas de outros tantos anônimos
aumenta o sentimento de estranheza do andarilho. Permeável às impressões, sente-se
desconfortável com o clima de intimidade que os depoimentos procuram evocar, afinal,
em essência, sou um apaixonado pela multidão, porém à distância, reflete para si.
Desconcertado, desfaz-se do folheto, caminhando a passos largos para voltar ao
burburinho frenético e (in)seguro, porém anônimo da capital.
Depois de horas a perambular sem destino, o observador-caminhante chega ao
bairro Savassi, tradicional reduto boêmio da capital mineira. Atentamente avalia o
4
ambiente ao redor. Ao longe, a praça homônima, ícone do glamour da saudosa Capital
das Minas. Recém-reformada, marca a resistência histórica de um tempo passado. O
perfil bucólico de prédios antigos da vizinhança, com seus rococós e jardins, contrasta
com os vistosos prédios espelhados das redondezas, ocupados por boutiques e lojas de
telefonia móvel, ao largo das quais os transeuntes passam apressados. São as
fantasmagorias reluzentes das metrópoles, pondera com escárnio.
A noite chega e com ela a fadiga. Nesta estranha hora em que as cortinas do
céu são fechadas, a cidades ilumina-se. Onde estão as pessoas, pergunta-se o solitário
andarilho. Ninguém! Sente falta da multidão, sua paixão secreta. Apura o olhar e avista
um aglomerado sem rostos, sem cores, sem intimidade. Na busca por sua amada
multidão, enxerga um enxame humano de expressão apática – um grande deserto de
homens – dirigindo-se em carros modernos a um shopping center, cidadelas medievais
da pós-modernidade em compasso com a voracidade do homem-consumo. Ao longe,
um imenso outdoor com letras em néon convida quem passa a tomar uma Coca-cola.
Como faço para desposar a multidão, acompanhar seus movimentos e,
ociosamente, desvendar seus mistérios, interroga-se o desconhecido. Onde estão as ruas
e passagens?
Sem conseguir achar respostas, traços de nostalgia tomam conta do andarilho.
Não consegue impedir o sentimento da falta do seu tempo, do seu lugar... Onde estão os
confortáveis cafés? Pensa nas praças, na metrópole de outrora... Melancolicamente
chega à conclusão que “(...) as ruas estão vazias, ou antes, mesmo que estejam cheias de
pessoas ou de tráfego, nada mais são que locais de passagem e não de encontros” (DE
SIMONE, 2012, p. 98). Prolifera o não-lugar de Augé (2005). Ruas e parques,
formalmente constituídos como espaços públicos, foram substituídos pelos espaços
privados de acesso restrito ou pelos sites, blogs, flogs e pontos de encontro virtual
alimentados pela internet. Estar, morar, encontrar, festejar... Verbos pretéritos,
substituídos por zapear, “gugar”, enviar, anexar, “espaciar”. A iluminação à gás trocada
pelas lâmpadas de vapor de mercúrio.
Amargurado com tudo que viu, resolve revelar-se. Cá estou eu, o flâneur de
Baudelaire5. Sinto-me angustiado ao perceber o que há de mais vivo no presente é o
5
Conforme Menezes (2009, p.8), Baudelaire foi o literato francês mais cultuado no final do século XIX,
um ícone da poesia moderna. Contemporâneo das transformações econômicas, políticas, sociais e urbanas
no contexto da segunda revolução industrial, sua poesia reflete as profundas mudanças que ele viu
acontecer em Paris - e às quais se opunha -, reagindo criticamente às ideias de moderno e de progresso
ensejadas à época (la vie parisiense). Esta atitude, ainda que dominante, não é inequívoca na sua obra. Em
5
meu passado. Flanar não parece ter sentido na metrópole agora contemporânea, conclui
com tristeza. Não por outro motivo, pronuncia baixinho em meio a seu labirinto
emocional: sou apenas mais um homem nu na multidão de iguais, que sente saudades,
que vive a vida ao comemorar o seu lugar. Como se estivesse em penitência repete
continuamente: não estou na cidade-luz, não estou na minha Paris. Lutando contra
sentimentos confusos, pronuncia com um grito sufocado: sou o flâneur, aquele que
perambula por entre ruas e passagens, o poeta da multidão.
Tentando controlar-se, recorda-se que esta metrópole onde está foi projetada
para ser a “petit” Paris dos trópicos. Belo Horizonte e Paris, ambas cortadas por bisturis
cirúrgicos e urbanísticos. Aqui e lá Paris, tenta se consolar com a lembrança. Mas um
vento provocador e invisível sopra em seu ouvido, murmurando sarcasticamente as
diferenças. Aqui, um turbilhão em uma realidade hibridizada6 da periferia mundial, “(...)
misturando instituições liberais e hábitos autoritários, movimentos sociais democráticos
e regimes paternalistas (...)” (CANCLINI, 1997, p. 28). Lá um vendaval em uma
realidade hegemônica europeia. Espelhos que refletem o capitalismo, em sua divisão
globalizada do trabalho, trocas desiguais e assimetrias de poder.
Extasiado sensorialmente, o flâneur busca abrigo para a escuridão da noite e
para seu cansaço mental. Zanzando sem direção, entra no Vitrola Café, um dos doze mil
bares de Belo Horizonte, deixando lá fora para trás a multidão de trabalhadores, semteto, estudantes, viciados, prostitutas, mendigos e boêmios. Lá fora ficam também as
vitrines e as ruínas da modernidade. Um arrepio de atração e repulsa percorre-lhe o
um primeiro momento, o poeta adula a burguesia, idolatrando-a em sua obstinação pelo progresso
humano. É uma fase de ode à modernidade. Muito depois, sua visão da modernidade muda,
transformando-se em um crítico mordaz. Nesta “segunda fase”, Baudelaire destaca a assimetria entre as
forças materiais e espirituais, bem como a dissonância entre a vida e o homem modernos. Se a metrópole
francesa explodiu sob a forma de símbolo da civilização, revelou simultaneamente um novo problema
social, o fenômeno da multidão, com suas massas urbanas solitárias, sem rumo e miseráveis. O progresso
emerge como passagem para a decadência (PAGOTO & SOUZA, 2009). Para representar esta angústia,
mesmo sentindo-se deslocado da sociedade urbano-industrial, o poeta torna-se um observador andarilho,
representado pela figura do flâneur, que vai às ruas buscar sua poesia. Como dito por Loth (2012, p.1), o
flâneur é um projeto de narrador entre a tradição e a modernidade que, na sua andança cotidiana pela
estrutura física urbana, esbarra nos personagens que protagonizam a modernidade. Sua missão é
conseguir demonstrar o efêmero da cidade aos seus contemporâneos, os quais, embevecidos pelo avanço
da modernidade e pelas promessas do progresso, não atentam para as contradições da metrópole em que
habitam.
6
O autor mexicano Néstor Canclini (2000) questiona a pertinência das interpretações comparativas que
igualam as sociedades periféricas, como as latino-americanas, às sociedades centrais ou avançadas, por
exemplo, as europeias. Canclini postula que, diferentemente destas, as primeiras seriam sociedades
híbridas resultantes do embate de poderes entre as culturas dominante e dominada - permanecendo ambas
e suas manifestações, em um contexto de transformações incompletas. Tais lutas culturais, entretanto, não
afetariam drasticamente o discurso das elites dos grandes centros de acumulação, continuando assim
como expressões de poderes subalternos.
6
corpo. Seu olhar de poeta vagueia pelas marcas e imagens da miséria humana. Ao
divisá-las, sente um misto de “estranhamento, choque, horror e, ao mesmo tempo,
fascínio” (MENEZES, 2008, p. 118).
Sentado, respirando agora mais pausadamente, o homem da multidão bebe uma
água gaseificada francesa e dá uma olhadela ao redor. Uma placa amarela anuncia:
sorria, você está sendo filmado. Celulares, palmtops, tablets e ipods monopolizam as
mesas contíguas, permitindo aos usuários acessar todas as metrópoles do mundo com
um leve deslizar de dedos. Flanêures contemporâneos? Esses minúsculos aparelhos
parecem extensões dos corpos dos presentes tal o grau de simbiose com que se
realcionam, avalia o andarilho. Silenciosamente, interroga-se se este casamento entre
homem e máquina inibe o encontro, a intimidade, o relacionar-se com o outro. Conclui
que sim ao prestar atenção nas pessoas às mesas, manipulando seus apetrechos
tecnológicos sem atentar umas às outras. Não consegue contato visual com nenhum dos
presentes, ainda que, na verdade, também não o queira.
Isolando-se do ambiente, o poeta errante olha com interesse uma manchete no
jornal O Estado de Minas, datado de 10-06-2012, e esquecido na mesa do bar. Em letras
destacadas, lê: “Povoados a pouco mais de uma hora do centro de BH privilegiam a
tranquilidade”. Na matéria, um jornalista de nome Jefferson Coutinho descreve com
entusiasmo seu périplo pela região do entorno da capital mineira, “por trilhas de terras
vermelhas, proseando com a boa gente que amanhece com os galos e dorme com a
criação”. Um sorriso de descrédito toma forma no canto da boca do flâneur.
Refazendo mentalmente seu percurso pela metrópole mineira, o andarilho volta
a ler a matéria com interesse. Nela, Coutinho descreve suas andanças por povoados
muito próximos de Belo Horizonte, em uma região denominada pelo repórter de
metropolitana. Ele afirma, sem esconder certo saudosismo, que por onde andou “as
crianças brincam de roda e não de videogames, as compras são pagas no dinheiro e o
crédito é o da caderneta”. “Aqui ainda se honra o fio do bigode”, repete a expressão de
um morador. Em seu entusiasmo, o jornalista relata a encarnação do tempo e da
natureza nos lugares visitados, recitando o Boitempo de Drummond (2002, p.905):
Entardece na roça de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada sua estátua de sal,
7
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo de cada rês
e tecem de curva em curva
a ilha do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas,
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.
Conversando com os moradores, Coutinho escuta histórias de pessoas, como a
lavradora E. N., de 49 anos, que obtém seu sustento trabalhando na roça. Ela se diz feliz
com a rotina dos dias, que, para a maioria dos agricultores – faz questão de frisar –
começa às quatro horas. Em sua casa, sacos de milho, 35 galinhas gordas e outros
animais são alguns dos itens que materializam sua fartura, conquistada com muito
esforço. Compara sua vida com a de pessoas que saíram dali e foram tentar a sorte na
capital mineira. “Não julgo ninguém, mas sinto-me feliz aqui, é o meu lugar e não
penso em sair”, afirma com segurança. A jovem A. P., 21 anos, concorda com ela e vai
além ao opinar sobre as notícias que acompanha acerca da metrópole belorizontina,
tanto na TV a cabo quanto na Internet. Ela afirma não querer para si as urgências do
mundo de lá: “Os engarrafamentos, os acidentes, os crimes… quero distância de tudo
isso”, comenta a jovem. “Minha irmã mora lá... em Belo Horizonte. Da família, foi só
ela”, diz a garota. “Antigamente, muitos da minha idade pensavam em procurar
emprego por lá, mas hoje temos oportunidade de ver que as coisas não são fáceis em
lugar nenhum. Podemos trabalhar aqui mesmo, talvez ganhar menos, mas certamente
viver melhor”, conclui. O vendedor D. P., 32 anos, trabalha na capital e volta
frequentemente para sua casa na roça. Neste seu vai e vem consegue ajudar a família.
Algumas vezes não pode retornar todo dia, mas deixa claro que estar ali é importante:
“Minha infância, o rio, a casa onde meus pais vivem e me criei... não posso abandonar
isso”. O empresário F. A., 56 anos, reconstruiu sua vida em Brumadinho. “Viemos para
cá fugindo de Belo Horizonte, buscando melhorar a qualidade de vida, ter tranquilidade.
O bucólico está aqui, mas moramos a apenas uma hora da capital”. A professora de
geografia veio da capital e montou um cantinho, com “cama e café” para os visitantes
que amam a natureza. Ela conta que abraçou também uma causa social para retribuir à
comunidade o ar puro que agora respira. E. P., 47, discursa convicto que “tranquilidade
é bem melhor que cultura e dinheiro”. A dona-de-casa R. M., 31 anos, entrevistada na
8
Praça Jesuíno Moreira, enaltece o campo: “Roça significa sossego; as galinhas no
quintal; deitar e acordar cedo. São os valores da boa educação e da vida em
comunidade”. D. G., de 49 anos, participa da conversa. “Também não gosto da cidade
grande. É barulho demais. E prefiro gente à tecnologia”, pontua. Como disse
Drummond no Boitempo, amanhecer e anoitecer na roça têm ritmos próprios.
Nos 530 quilômetros percorridos, ouvi muitas histórias, diz enfático o
jornalista. A roça parece ser como o boi de Drummond, um animal calmo, ruminando
indefinidamente os alimentos, como se não terminasse nunca de digerir suas
recordações. Acredito que as pessoas que entrevistei têm orgulho do seu mundo rural,
como se ali fosse um pasto azul reconquistado. Encantado com o tudo o que viu e
ouviu, Coutinho exalta “a paz, de onde brota a vida no campo”, descrevendo como
heróis aqueles que pegaram o “caminho de volta pra roça”, fugindo do tumulto, da
poluição, dos engarrafamentos, acidentes, crimes e de outras tantas mazelas que
grassam a cidade grande. Admira-se ainda mais ao pensar que esse retorno os fará viver
“na contramão do progresso e das tecnologias de última geração”. Finalizando a
matéria, o jornalista exorta a vida no campo como uma volta ao futuro. Não posso
esconder que algumas pessoas entrevistadas, poucas, trouxeram relatos de insatisfação.
São suas opiniões. Tristes e alegres, opiniões. Eu, particularmente, concordo com R. M,
por isso preferi ser o “arauto das alegres”, posiciona-se concluindo sua reportagem.
Refletindo sobre o que acabou de ler, o flâneur interroga-se, envolto em
incertezas. Povoados rurais? Roça? Rural? Isso não faz parte de um tempo que já
desapareceu? Lembra-se que eram considerados arcaicos na modernidade de seus dias.
Homem do seu tempo, ele também pensa assim. Vasculha suas memórias, vivas como
pedras, e como tais, pesadas, sólidas, imutáveis. Elas lhe dizem que os lugares descritos
por Coutinho estavam destinados a dissipar-se, consumidos pelas águas da civilização7.
Sua surpresa mal disfarçada substitui a atitude blasé com o mundo à sua volta. Achando
inverossímil tudo o que leu, cogita que o escrito seja fruto da imaginação de um jovem
jornalista. Eles são mesmo bastante fantasiosos. Isto não muda em época alguma,
analisa o flâneur.
7
Segundo Menezes (2009, p.8), era notória a rejeição do poeta Baudelaire ao campo, convencendo
seguidores da que a metrópole, a cultura e as diversões urbanas, a vie factice e os paradis artificiel eram
incomparavelmente mais atraentes e também muito mais espirituais e vívidos do que os “encantos” da
natureza. Segundo Hauser (1998, p.911-2), o poeta Baudelaire sentia tanto entusiasmo por tudo que fosse
artificial, que chegou a considerar a natureza como algo moralmente inferior.
9
Deixando a mente navegar livremente, o flâneur lembra-se assustado do
folheto que leu naquela estranha cidade do Les Halles. Um princípio de dúvida começa
a bailar, atormentando-o. Vi tantas coisas estranhas neste caminhar, pondera. Será que
esse tempo e lugar ainda existem?
Com semblante pensativo, compara o que acabou de ler e ver com os valores,
hábitos e características do seu tempo, seu Zeitgeist. Não consegue compreender a
felicidade de Coutinho e das pessoas por ele entrevistadas, vivendo longe da multidão e
da metrópole, sem o desfrute urbano, as grandes avenidas e o trânsito caótico; sem a
possibilidade da errância voluntária pelas ruas. Como disse meu criador, “é impossível
não ficar emocionado com o espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das
fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaide, pelo mercúrio
e todos os venenos usados na fabricação de obras-primas...” (BAUDELAIRE, 19311932, p.637). Definitivamente, não consigo entendê-los. Eles me trazem a sensação de
inadequação e estranhamento, sussurra o andarilho.
Confuso e cansado, conclui que está na hora de partir para reencontrar aquilo
que se permitiu chamar de metrópole. Surpreendente e cruel, mas meu lar e refúgio.
Preciso voltar ao meu tempo, para o cotidiano do mundo da fábrica, da produção e do
trabalho; o mundo das glórias e das mazelas vividas no palco da maior construção
humana, a cidade moderna. Não há lugar em mim para mais que isto. Despedindo-se,
repete seu criador, Baudelaire:
Perdido neste mundo vil, acotovelado pelas multidões, sou como o homem
fatigado cujos olhos não veem no passado, na profundidade dos anos nada
além do desengano e da amargura, e, à sua frente, senão a tempestade (...)
(BAUDELAIRE, 1931/1932, p.641).
Em um último suspiro, o personagem tem ainda um lampejo assombrado:
talvez o mundo de E.N e A. P. seja virtual, como gostam de falar a todo o momento as
pessoas que vivem neste século. Virtual. É... Certamente o jornalista esqueceu-se de
dizer que o que ele descreve em sua matéria é o cenário de um novo filme de ficção em
3D, resgatando com nostalgia esse mundo dito rural – já apagado no tempo e espaço.
Talvez até o jornalista seja um personagem, assim como eu. Um personagem ao gosto
deste século, fazendo um agrado aos chamados pós-modernos em sua estética de
valorização da tradição, do retrô, do arcaico.
Imerso em dúvidas, pouco a pouco o corpo do flâneur vai desaparecendo,
como a fumaça dos cigarros à sua volta. Antes do corpo, esvai-se sua imaginação ativa.
10
No ar, fica a pergunta que ele fez e não respondeu: isso não faz parte de um tempo que
já desapareceu?
A longa narrativa acima, aparentemente desconexa para o contexto de uma tese
– em seu necessário formalismo científico e metodológico – teve a finalidade de trazer
algumas construções culturais hegemônicas8 sobre o mundo rural, usando para tanto um
expediente metafórico. Uma dessas construções, recuperada na fala do flâneur,
personagem oitocentista do poeta e crítico francês Baudelaire, mostra o encantamento
com a grande cidade, suas avenidas, espaços, ritmo de vida, valores e com a multidão. A
fascinação pelo contexto urbano acompanhava sentimentos de desprezo e repulsa em
relação ao mundo rural, considerado como realidade arcaica, medíocre e sem emoções,
fadado ao desaparecimento ou ao resgate benfazejo oportunizado pela civilização
urbana.
Compreender esta poderosa imagem sobre o mundo rural e seus habitantes
implica retroceder no tempo, até chegar a um período de grandes transformações
ensejadas pelas revoluções científica, burguesa e industrial. Elas trazem ao palco da
vida uma nova ordem social, emoldurando um cenário em que a cidade, a metrópole e o
modo de vida urbano são alçados à condição de entes supremos. É neste contexto que o
flâneur exerce seu destino, protestando, por meio de seu ocioso caminhar, contra um
sistema capitalista que se consolida; mas, ao mesmo tempo, festejando alguns dos seus
feitos e valores, como a multidão, a metrópole urbano-industrial, a impessoalidade e o
anonimato.
Uma segunda narrativa dogmática sobre o mundo rural pode ser acompanhada
na matéria escrita pelo jornalista Jefferson Coutinho. Ele o retrata usando um arsenal
arquetípico de imagens romantizadas e globalizadas, construindo-o como um Éden
contemporâneo, habitado por gente feliz e ordeira. No seu texto, o rural passa a ser um
paraíso perdido para o qual vão retornando os cidadãos cansados dos dissabores
(poluição, stress, solidão, etc.) causados pela crise civilizatória do padrão urbanoindustrial. Ou então um balcão de mercadorias, no qual estão disponíveis virtudes,
tradições e o próprio camponês, que, desvalorizados por uma sociedade urbanoindustrial emergente, são agora preciosidades a serem preservadas.
8
O conceito de hegemonia foi formulado por Antonio Gramsci para descrever o tipo de dominação
ideológica de uma classe social sobre outra, particularmente da burguesia sobre o proletariado e outras
classes de trabalhadores.
11
Nesta perspectiva, o mundo rural torna-se então símbolo de qualidade de vida,
segurança, vida familiar, saúde, paz e tranquilidade, revertendo o sentimento de
repulsividade que lhe fora consagrado ao ser fetichizado como um bem de consumo.
Entre as representações do flâneur e do jornalista, enxergo outras
possibilidades analíticas e empíricas do mundo rural. Para evidenciá-las, embarquei em
uma perambulação pela Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Nesta
aventura, resgato outros sentidos do rural. Melhor dizendo, resgato ruralidades,
explicitando assim os vínculos plurais, múltiplos e heterogêneos com o rural no
universo de municípios que compõem essa região. Baldim, Belo Horizonte, Betim,
Brumadinho, Caeté, Capim Branco, Confins, Contagem, Esmeraldas, Florestal, Ibirité,
Igarapé, Itaguara, Itatiaiuçu, Jaboticatubas, Juatuba, Lagoa Santa, Mário Campos,
Mateus Leme, Matozinhos, Nova Lima, Nova União, Pedro Leopoldo, Raposos,
Ribeirão das Neves, Rio Acima, Rio Manso, Sabará, Santa Luzia, São Joaquim de
Bicas, São José da Lapa, Sarzedo, Taquaruçu de Minas e Vespasiano. Trinta e quatro
municípios nos quais vislumbro ruralidades, encetadas por portadores e projetos
diversos, ganhando destaque a visibilização da natureza e a consideração do ser humano
como um dos seres que dela fazem parte.
Estar em Minas é viver as minas. Desta forma, para investigar as ruralidades –
seus atores, tensões, consonâncias e dissonâncias – fiz uso de uma grande bateia,
separando o ouro, pouco a pouco descoberto, dos brutos pedregulhos das dificuldades.
O meu garimpar científico tentou esgueirar-se entre as águas elisianas do involvement
(interesse, envolvimento, engajamento) e do detachment (desinteresse, imparcialidade,
separação, afastamento). Diria que uma travessia dessa natureza é uma aventura quase
impossível, pois, como o próprio Elias admite não existem posições absolutamente
envolvidas ou distanciadas quando se trata do processo de investigação científica
(ELIAS, 1997; 1998). De qualquer forma, navegar é preciso. Ruralidades mineiras à
vista.
12
INTRODUÇÃO
Pensar a ruralidade em uma socioambiência metropolitana. Este é o norte para
o qual se orienta esta tese. Enunciá-lo em meio a um mundo seduzido pelo gigantismo e
onipresença das metrópoles pode soar como um paradoxo, quiçá um desatino, afinal,
uma das diletas narrativas da civilização moderna é aquela que anuncia o fim da
ruralidade9, pelas mãos de seus referentes mitológicos de urbanização e de progresso, ou
ainda sua transformação na idílica Pasárgada, exortada pelo pessimismo frente a estes
referentes. Para aqueles que dividem estas certezas, resta o estranhamento diante da
reflexão proposta, reação espontânea de mentalidades convencidas da impossibilidade
de um mundo vivido, abarcando a simultaneidade, aliás, mais que simultaneidade – a
interligação dialética entre a ruralidade e o metropolitano.
Parte expressiva das pesquisas em ciências sociais tem teorizado acerca da
inevitabilidade da vida urbana, suscitada por um processo de urbanização
homogeneizador e extensivo, eliminando sujeitos, etnias, classes, modos de vida,
sociabilidades, valores e formas espaciais considerados anacrônicos a esse processo,
dentre os quais destaco os relacionados aos rurais, primo “moribundo” do urbano na
cosmologia moderna. Este proceder científico, raramente interdisciplinar, assenta-se no
tripé racionalismo, individualismo e universalismo, tendo por pano de fundo as
revoluções políticas burguesas, científica e industrial, que causaram transformações de
grande monta em diversos âmbitos e em nível mundial.
Sem desconsiderar a importância dos estudos acerca das dinâmicas urbanas,
creio ser relevante destacar que sua consistência e concretude não criam uma realidade
una. Na contramão deste pensamento hegemônico e convencida da coexistência,
proponho-me a refletir sobre a ruralidade contemporânea, pensando-a por meio da
relação entre campo e cidade metropolitanos. Desta escolha pululam argumentações,
prenhes de questionamentos e ricas em sugestões, pautando-me escolhas, como as que
me fazem localizar esta análise sob os holofotes das globalizações e dos processos de
valorização e produção da vida humana, neles inclusas as discussões em torno da
relação homem-natureza.
9
Neste trabalho uso indistintamente os vocábulos rural e ruralidade, como propõe Durán (1998, p.76).
Porém, o faço em uma perspectiva de afastamento da concepção dualística e estereotipada do rural da
modernidade. Nestes termos, vejo-os contemplando outros sentidos e possibilidades. Emprego também o
termo “mundo rural” como o faz Moreira (2005), fazendo referência ao locus de relações sociais que,
contrariando o discurso hegemônico, engloba, além das atividades agrícolas e agropecuárias, atividades
urbanas e de serviços culturais e socioambientais.
13
Diante das muitas evidências da força do mundo rural, a propalada construção
teórica sobre sua dissolução – pelas multidões, tempo abstrato e subjetividade solitária
da cidade e da metrópole – sua “evolução” para um ethos urbano e civilizado ou ainda
sua delimitação pelo uso de adjetivações pejorativas em relação ao urbano estão,
paulatinamente, perdendo força, convivendo com outras elaborações conceituais que
falam de permanências, resistências e também de simultaneidades, enfim, que discorrem
sobre sujeitos, etnias, classes, modos de vida, sociabilidades, valores e formas espaciais
que se (re)constroem concomitantemente à radicalização da dinâmica dominante.
Seduzida pelas possibilidades do mundo rural e colocando-me como sujeito
que o pensa, recupero subjetividades em meio à objetividade acadêmica. Se a
competência no objetivar depende também da emoção, começo esta jornada
relembrando como comecei a interessar-me e viver o rural de forma intensa,
principalmente nos últimos quarenta anos da minha vida.
Primeiramente, na infância em uma cidade do interior baiano, lendo os livros
de Jorge Amado e enlevando-me diante das belas paisagens do mundo dos coronéis,
cacau, sincretismos, gabrielas e outras morenices sedutoras. Demorei em enxergar os
pretos, mulatos, pobres e trabalhadores espoliados que produziam as sementes do
chocolate que nunca tiveram a oportunidade de saborear. Somente os divisei quando, na
adolescência, meus olhos miraram fazendas bem cuidadas, suntuosas com suas louças e
mobiliários europeus, em uma riqueza explícita e orgulhosa de uma elite que vivia parte
do ano na roça e a maior parte dele entre as metrópoles da época, Paris, Rio de Janeiro e
Salvador.
Chocada com tanta imponência, fui aguçando meu olhar, e, finalmente, tive
consciência do outro daquela prosperidade ao avistar a pobreza generalizada do litoral
da região cacaueira, as lavadeiras batendo as roupas de linho das sinhazinhas nas pedras
do rio, os meninos-crianças vendendo peixes-crianças e picolés em ruas mal
ajambradas, a miséria mal disfarçada dos moradores dos casebres e das periferias, com
seus rostos carcomidos, mãos calejadas e corpos recobertos com roupas puídas e
encharcadas com o suor das doze, quinze, não sei quantas horas de trabalho a troco de
farinha, jaca e alguns vinténs. Compreendi então as tocaias e os assassinatos contados
por Jorge em meio às disputas por terra. Sua Bahia mestiça, festeira e sensual era um
laboratório para entender as hierarquias, violências e outros tantos aspectos sociais e
culturais da sociedade brasileira. Só depois entendi que o Cacau vinha do Suor; que a
Gabriela, cravo e canela sofria das mesmas alegrias e tristezas da Teresa Batista
14
cansada de guerra. Tais personagens eram, em suas aparentes antinomias, faces
congruentes de realidades em curso.
Daí em diante o mundo rural entrou em mim. Aquelas imagens retidas na
memória dos meus poucos anos acompanha-me até hoje. Não sei bem se determinou a
escolha pela Agronomia, vivenciada em Minas Gerais, mas certamente direcionou as
minhas escolhas profissionais.
Formada, fui trabalhar como extensionista no Paraná, em um lugar certamente
contabilizado como urbano, classificação que seria ironizada por Veiga (2002), caso
vivenciasse as cinco ruas da “cidade”, cortadas por caminhões com “boias-frias” em
meio a um mar de cafezais e nuvens de algodão. De profissional a serviço do Estado,
transmutei-me ao ser aceita como parte de uma família de italianos que tirava seu
sustento da lida na natureza. Fui “adotada”, colhi, plantei, cortei capim, cuidei da horta,
alimentei as galinhas, esquentei o pé no fogão de lenha. Naquela convivência intensa, vi
suas diminutas terras escorrem entre os dedos da necessidade. Acompanhei a migração
dos dois filhos mais velhos para a cidade e a jornada de trabalho aumentada pela
produção noturna de doces, conservas, pães e embutidos para comercialização na feira
do domingo em uma cidade grande de vinte e poucas ruas. Não sabia francês, mas
naquele lugar compreendi a pluriatividade.
No dia a dia do meu trabalho, acompanhava a rotina de meeiros e parceiros,
produzindo milho, feijão e arroz no interior das plantações de café, amarrados em
contratos sem garantia de futuro por conta da exigência de desocupação imediata das
terras após a colheita. Seguia a rotina de mineiros e nordestinos nos plantios e colheitas
de algodão, perdidos em suas lembranças de partidas e chegadas, cada vez menos
espaçadas nas trilhas da sobrevivência disputada com as lavouras mecanizadas de soja.
Deles guardo algumas histórias. Histórias. Muitas em comum com as dos trabalhadores
do cacau.
Tempos depois, depois do mestrado em Extensão Rural, em Minas Gerais, já
trabalhando na Embrapa, em Brasília, aquele rural foi se distanciando ao realizar
estudos de impacto sobre tecnologias de produção. Mas, alçada à condição de
pesquisadora, retomei minha sensibilidade com ele em meio às polarizações
institucionais entre agricultura familiar e agronegócio. Este reencontro se deu ao
participar de um projeto sobre as possibilidades da agricultura nas cidades, centrado na
metodologia da pesquisa-ação, quando comecei a conviver intensamente com
moradores de uma cidade goiana, cuja maior referência era ser a aglomeração que mais
15
crescera no mundo na década de 1990 em termos populacionais. Uma grande placa
anunciava esse “desenvolvimento”.
Com aqueles atores fui compreendendo a precariedade das demarcações
geográficas entre campo e cidade e demais construções antagônicas. O gosto pelo
plantar e colher mesmo sem a terra, o cultivo das verduras e ervas sem técnicas
modernas, as pescarias, as vivências anteriores em pequenas cidades do interior, a
migração para o Distrito Federal e dali para Goiás, os empregos temporários, a terra
diminuta, os pequenos jardins, as memórias de infância e a espera pelo marido
acampado na luta pela terra misturavam-se à falta de água, de esgoto, de energia e
cidadania em meio à riqueza da natureza farta abastecendo com aventura, lazer,
contemplação, água e ar limpos os moradores da capital federal.
Vivenciando estas lógicas divisei a ruralidade. Demarco-a como realidade
concreta matizada por tensionamentos, discursos e dinâmicas advindos de um
capitalismo contemporâneo em uma lógica glocal10, onde local e global interagem na
disputa entre poderes constituídos e aqueles que os contestam, entre relações das mais
diversas com a natureza, alicerçadas sobre diferentes lógicas de apropriação do
território. Ruralidade como a dos despossuídos do cacau, dos fazendeiros, dos migrantes
do algodão e do café, dos produtores extensivos de soja, dos excluídos na periferia da
metrópole e a dos meus pais adotivos, que ao perder as terras, desabaram na incerteza
da capital paranaense vivendo com as memórias da vida no campo. Múltiplas, abertas,
plurais. Nestes termos, ruralidades.
Esta incursão por diferentes territorialidades motivou-me a enveredar pelo
caminho estigmatizado da ruralidade vivenciada em conexão com o urbano
metropolitano. Digo estigmatizado porque à luz da produção científica, a temática
transita entre a insignificância e a obscuridade. Uma rápida busca em base de dados
acadêmicos traz resultados pífios, que interpreto como sintomas da pouca disposição em
investir em temas pouco reconhecidos no campo científico – o que resultaria, por
extensão, em menor notoriedade – como assinalou Bourdieu (1983) a esse respeito.
10
Glocal é um conceito usado para denominar a mistura de culturas globais modernas e locais
tradicionais, como preconizam Borja e Castells (1997). Santos (2002) dedica-se à descrição desse
processo, mostrando que os processos de globalização – ou mundialização, como preferem outros –
atuam de forma ambivalente, pois perspectivando um mundo uno, é intrinsecamente desigual já que se
manifesta diferentemente consoante os tempos e os espaços. Ao se intensificar, pressionam e diluem
localismos típicos da modernidade, como tradição, nacionalismo, linguagem, ideologia, mas,
paradoxalmente, dão fôlego à emergência de novos localismos, em que se proliferam ou acentuam-se
identidades culturais diferenciadas, específicas, fragmentadas, ou mesmo marcadamente particularistas.
16
Acolhida nos escritos de Thomas Kuhn (2006), lembro que todo caminho para
a produção de novos conhecimentos envolve riscos e embates intelectuais. Enfrentá-los,
porém, é uma escolha que exige uma disposição pautada na certeza da inexistência de
uma verdade absoluta. Mas, não posso fechar os olhos à existência de uma matriz
hegemônica do conhecimento científico que ainda postula um saber neutro indiferente
às assimetrias de poder. Segundo Moreira (2006), o olhar disciplinar do cientista
(observador) revela apenas registros de uma dada existência ou de suas experiências
vividas e “nunca a própria existência. Diferentes observadores, sob circunstâncias
também diferentes, concluirão verdades igualmente diferentes” (MOREIRA, 2006,
p.20). A filosofia kantiana há muito nos alertara que a coisa-em-si é da ordem do
inalcançável.
Pautando-me por contribuir na construção de um conhecimento menos
homogeneizador da realidade, invisto no estudo das imbricações entre campo e cidade
em uma perspectiva complexa, demarcando conexões e simultaneidades nesta relação.
Deste modo, assumo a intenção de identificar, descrever e analisar como as ruralidades
se manifestam sob os feixes dinâmicos e tentaculares do fenômeno metropolitano tendo
como recorte empírico a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Se o
“polvo” metropolitano apavora pela rapidez com que se espraia, ora engolindo,
difundindo ou criando novos padrões de relações sociais – inclusive as de produção – e
estilos de vida, pergunto-me como se manifestam as ruralidades diante desse
movimento.
De imediato adianto que não carrego a pretensão ingênua e pouco profícua de
catalogar a diversidade de ruralidades em curso sob a égide metropolitana. Passando ao
largo desta intenção titânica, direciono-me para (re)pensar as ruralidades neste
território11, conectando-as aos processos sociais contemporâneos de redimensionamento
das relações entre o homem e a natureza. Com isso, desloco o foco da análise do âmbito
da representação da ruralidade-agrícola para considerar aquele da ruralidade-natureza.
11
O conceito de território aqui tomado entrelaça a noção de território-zona, à materialidade do espaço
geográfico onde se desenrolam os acontecimentos, à concepção de territórios existenciais, campo da
subjetividade e das práticas de si, lugar dos afetos e dos afetamentos. Sigo a perspectiva de Magnani
(2009, p, 17) que o referencia como “substrato material, mutável, solo-natureza, limite e chão dos
acontecimentos, objeto-mercadoria do mundo capitalista, foco de concentração do poder e da
dominação”, resultado de “(...) cristalizações de processos de luta e de articulações dos homens com o
entorno, construções coletivas no espaço-tempo”. Mas, como enfatiza a autora, deve ser especialmente
compreendido “como território ético-estético dos afetos, dos sentidos, das singularidades e das
reinvenções criativas dos espaços existenciais; condensação de universos abstratos, ideológicos, artísticos,
oníricos, na unidade mínima territorial: o corpo”.
17
Meu interesse está voltado para apreender os sentidos e discursos – hegemônicos e
contra-hegemônicos – da ruralidade estabelecida entre campo e cidade metropolitanos
diante da cosmologia de proximidade com a natureza vis-à-vis uma teleologia urbanoindustrial. Que atores, conflitos, tensões e embates deles emergem na RMBH?
De antemão, destaco duas singularidades nessa reflexão. Primeiramente, as
identificações rurais são apreciadas na instância do metropolitano, o que nos leva a uma
relação campo-cidade pautada pela densificação de redes e fluxos; circulação,
mobilidades e interconexões aceleradas. Nele presentificam-se as grandes questões do
mundo do Capitalismo Globalizado, do processo de produção do espaço, do trabalho,
das subjetividades, da vida na Grande Cidade. É nesta instância de alta urbanização e
industrialização como processo civilizatório, assoberbada pela possibilidade de
crescimento e ampliação de posses e de poder que se desenvolveu a pesquisa.
Em segundo lugar, não se trata de um metropolitano qualquer, e sim de um
metropolitano periférico – o mineiro – inserido na lógica periférica de um país-mercado
emergente na ordem econômica globalizada. Por conseguinte, ele carrega consigo
especificidades culturais, tais como uma socio-história colonial-extrativista-mineradora,
urbanização precoce e segregadora, altíssima concentração fundiária, metrópole
planejada, foco na produção de commodities e na produção industrial de bens
intermediários e nos serviços. Foi neste metropolitano-periférico-mineiro que conduzi
este estudo.
Refletindo sobre as particularidades acima, busquei inspiração em alguns
escritos da filósofa Marilena Chauí para a elaboração da hipótese norteadora. Ao
abordar a questão da identidade nacional, Chauí (2004; 2000) chama a atenção para a
presença difusa de uma narrativa de origem – um mito fundador12, determinante tanto
para a imagem que possuímos do país quanto para a relação que mantemos com a
12
Segundo Marilena Chauí (2000b, p.32-35), mito fundador é aquele que “impõe um vínculo interno com
o passado como origem”, buscando sempre “novos meios para se exprimir, novas linguagens, novos
valores e ideias, de tal modo que quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si
mesmo”. Como ensina a filósofa, à maneira de toda fundatio, ele vincula-se com “um passado que não
cessa, que não permite o trabalho da diferença temporal e que se conserva como perenemente presente”.
Assim é que, muito tempo depois da descoberta-conquista, continuamos a conceber o país a partir de
alguns elementos ali forjados, quais sejam, a sagração da Natureza (Brasil-Natureza, a obra de Deus), a
sagração da história providencialista (história como realização do plano de Deus ou da vontade divina,
assim somos o país do futuro, pois abençoado pela vontade divina, conforme o discurso das classes
dominantes e camadas dirigentes), a história profético-milenarista (a vida presente como miséria à espera
dos sinais dos tempos que anunciarão a chegada do Anticristo e do combatente vitorioso. Esta é a figura
assumida pelo bom governante perante as classes populares brasileiras) e finalmente a elaboração
jurídico-teocrática do governante pela graça de Deus (“o poder político, isto é, o Estado, antecede a
sociedade e tem sua origem fora dela, primeiro, nos decretos divinos e, depois, pelos decretos do
governante”).
18
história e com a política. Segundo a autora, a fundação se refere a “um momento
passado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente no
curso do tempo” (CHAUÍ, 2000a, p.5). A marca peculiar da fundação é a maneira como
ela põe a transcendência e a imanência do momento fundador, o qual aparece como
emanando da sociedade e, simultaneamente, engendrando a sociedade da qual ela
emana. É importante reter que novos elementos são continuamente agregados ao
repertório inicial de representações da realidade, repetindo algo imaginário, bloqueando
à passagem à realidade e impedindo que se lide com ela.
O imaginário geralmente é acionado quando se quer “falar de algo inventado
(...), ou de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de
outras significações distintas de suas significações ‘normais’ ou canônicas”
(CASTORIADIS, 1965, p.65). Em ambos os casos, fica claro que “o imaginário se
separa do real, que ele pretende se colocar em seu lugar (uma mentira) ou que ele não o
pretende (um romance)”. Neste sentido, o imaginário faz uso do simbólico, não somente
para se exprimir, mas para existir e, inversamente, o simbólico pressupõe a capacidade
imaginária: ver em uma coisa o que ela não é.
Em conformidade com o exposto, postulo a existência de um mito fundador em
Minas Gerais que impulsiona e consolida psicanaliticamente uma identidade
atribuída/designada ao território da RMBH, identidade esta hegemonicamente
construída como minerária, industrial, urbana e moderna. Penso que a fundação da
matriz mítica mineira tem como elementos constitutivos a Natureza, particularmente a
montanha e o conjunto de crenças em torno dela (“uma geografia trágica e
inquietante”); as minas auríferas dos séculos XVII e XVIII; o simbolismo e a dualidade
expressos no nome Minas Gerais; e a “mineiridade”
13
, – valores, comportamentos e
representações existentes no interior na cultura mineira, que encarnariam o “verdadeiro
13
A socióloga Maria Arminda Arruda (1990) defende um cruzamento entre a identidade nacional e aquilo
que se tem chamado de “mineiridade”. De acordo com Reis (2007), a mineiridade é uma construção
imaginária elaborada por uma elite política mineira, tendo por base fatos históricos regionais, com a
finalidade de produzir a identificação entre diversos segmentos da elite, justificar sua hegemonia na
sociedade e demarcar o campo de sua articulação com os interesses nacionais. Quando acionada, a
mineiridade nos fala de atributos originados no passado – busca e defesa da liberdade e igualdade – e
reconstruídos presentemente, os quais mitificam e diferenciam a elite e os políticos mineiros – seus
herdeiros naturais e modernos guardiães – em relação a outros políticos brasileiros. Porém, como alerta
Castro (1991, p.119), a mineiridade na elaboração das elites mineiras “tira sua força da construção
simbólica que o antecede e, dessa forma, permite a identificação de todos, buscando os materiais para a
sua edificação, nos elementos que ultrapassam os espaços de movimentação exclusiva das elites, mas
submetendo tais elementos a um sentido que não lhes é próprio e conduzindo a construção na direção dos
interesses - conflitantes, mas não-antagônlcos - que a presidem”.
19
espírito de Minas”, a “própria alma mineira”, mas que repercute ou ressoa no campo das
elites políticas.
Os elementos acima elencados foram se entrecruzando, construindo e
elaborando uma imagem do real, uma rede de ilusão que transformou uma pluralidade
(“Minas são muitas, ou pelo menos várias”) conflituosa, contraditória, desigual e
profundamente clivada, em um compósito harmônico (“Minas Gerais”, a identidade e
unidade cultural dos mineiros tutelada pelas Minas Gerais, geratriz do ouro, região
central do estado).
Com essa fundatio, sedimentou-se uma poderosa atitude emocional que associa
a RMBH à sua pretensa “vocações urbana, industrial e minerária”, unificadora do estado
(acionada ao longo de muitos anos), bem como uma unidade metropolitana (enfatizada
mais recentemente), invisibilizando ou esvaziando de significado outras identidades ali
vivenciadas em favor da identidade socialmente atribuída/designada à região.
Desta forma, acredito que as imagens e representações para a RMBH
assentaram-se em valores urbano-industriais, dentre os quais cito as riquezas minerais,
as fábricas automotivas, as grandes empresas mineradoras na região, a metrópole
planejada, a construção mitológica de um passado de altivez e luta pelas liberdades, a
urbanização precoce, a industrialização induzida, o grande número de cidades e a
ausência de um litoral.
No plano da autoimagem, o mineiro que ali nasce ou reside considera-se o
legítimo herdeiro das Minas históricas do período da colonização, sujeito culto, de
modos urbanos, defensor de igualdades e de valores tidos como civilizados.
Reconhecendo-se assim, vislumbra bem longe dali o “mineirim” do “uai, sô”, das
atividades do campo e do anedotário popular; o mineiro (sobre)vivente do interior –
Sertões – considerados rústicos, habitantes dos campos, caipiras, roceiros, matutos e
arcaicos em seus jeitos de vestir, falar e comportar-se. Em suma, a vida urbana e a
indústria são os referentes imaginários de civilização e de identidade da RMBH.
Mas, como nos ensinou Chauí (2000a, p.5), um mito fundador renova-se
sempre, usando para tanto “novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos
valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a
repetição de si mesmo”.
Em meio aos (re)arranjos nos processos de acumulação do capital que atingem
todas as dimensões da vida, recodificando a vida urbana por meio do estímulo a
experiências de igualdade biocêntrica entre o homem e a natureza, está em curso um
20
movimento de (re)construção mítica no território da RMBH, oportunizando o
aparecimento de um rural (campo) arquetípico para a vida urbana, produzido como
espaço ecossistêmico da natureza, fonte de beleza, de harmonia e purificador das
angústias e deteriorações ambientais.
É neste contexto que vejo emergir ruralidades na RMBH, as quais são
encetadas por portadores de diferentes interesses, concepções e projetos de apropriação,
que, muitas vezes, são irreconciliáveis. Ruralidades de mineradoras, indústrias,
agricultores,
poder
público,
citadinos,
ecologistas,
imobiliárias.
Ruralidades
invisibilizadas desde o período colonial, ligadas à produção de alimentos para o
abastecimento do mercado interno convivem com as ruralidades advindas das grandes
ansiedades pós-modernas. Ruralidades que se expressam na concentração fundiária,
dividindo espaço com as ruralidades de preservação da natureza em Reservas
Particulares de Patrimônio Natural (RPPN). Enfim, falo da coexistência de ruralidades
de olhares urbanos, como do Estado e das indústrias mineradoras14, que se impõem
hegemonicamente às ruralidades do olhar das populações rurais da RMBH e seus
modos de vida.
Construindo a trilha investigativa, impus algumas condições – teóricas e
metodológicas – que acreditei necessárias para levar adiante o desafio. Começando,
precisei achar uma estrela-guia para dialogar, pois o monólogo interior não me era
suficiente. Felizmente a encontrei. Depois de muitas incertezas, em meio a idas e
vindas, caímos amalgamados – a voz interior, a estrela sábia e eu, investigadora. Unidos
para embarcar nas trilhas e veredas abertas por um vendaval de perguntas (e de
dúvidas), que me fazem refletir sobre as identidades sociais e os processos de
metropolitanização15 e os da natureza em um dado território.
No campo teórico, foi fundamental buscar uma abordagem complexa,
aspirando com ela, como propõe Wittgenstein (2008, p.179), "delimitar o pensável e,
14
Diante da perspectiva de esgotamento da mineração, as mineradoras vêm diversificando suas atividades
e investindo no mercado imobiliário metropolitano, a partir de projetos de grande envergadura,
associando áreas residenciais, comércio e serviços e unidades de conservação. A mineradora Anglo Gold,
por exemplo, em associação com a construtora Norberto Odebrecht, é proprietária do empreendimento
Vale dos Cristais, em Nova Lima (COSTA, 2007).
15
De forma geral, o processo de metropolização é definido a partir da polarização de uma região em
torno de uma grande cidade, em dimensões físicas e, sobretudo, populacional, caracterizando-se pela alta
densidade demográfica, alta taxa de urbanização, ao redor da qual se forma um núcleo metropolitano. O
centro irradiador do processo é a metrópole, termo que remonta aos gregos no sentido de cidade-mãe que
exerce forte influência às demais do seu entorno, as quais, sob sua direta influência, mantém forte relação
de interdependência econômica e notório movimento pendular de sua população (FREITAS, 2009, p. 4446).
21
com isso, o impensável", e, ao mesmo tempo, significar “o indizível ao apresentar
claramente o dizível". Nestes termos, como urdidura teórica relaciono duas categorias
contemporâneas, quais sejam, a Ruralidade e Urbanidade, faces conectadas de Janus16 –
alegoria mítica aqui tomada para destacar a indissociabilidade daquilo que se separou
sob os ditames da modernidade. Para clarificar o olhar, apresento a ruralidade como
uma expressão identitária por meio da qual as sociedades pensam sua relação com a
natureza, na medida em que ela – ruralidade – é culturalmente associada à terra, aos
processos naturais e à natureza natural, isto é, à natureza que se pensa pura por oposição
à existente nas cidades. É desta visão – marcadamente urbana – de que o rural
representa uma natureza não artificializada ou quase não transformada que repousa a
identificação social de seu ambiente como natureza e como campo. Em consequência, o
rural (campo) é pensado como passagem necessária para o natural, e, deste modo
valorizado, já que representa o ponto mediano entre uma natureza selvagem e intocada e
os ambientes construídos e artificiais das cidades e metrópoles. É neste sentido que
novas identificações lhe são postas, combinando as dinâmicas e necessidades de uma
sociedade global às suas próprias dinâmicas.
De mundo de negação da modernidade – seja pelo apego à tradição, modo de
vida ou relações sociais diferenciadas – o rural passa ser valorizado justamente por tais
características, dando espaço a aportes teóricos que o apresentam como “territórios do
futuro”, “patrimônio das gerações”, “espaço de renascimento”, “palco de solução para
questões sociais”, “novo padrão civilizatório”, “lugar de reserva moral e cultural”,
“espaço singular e ator coletivo” ou perpassado por “novas identidades em construção”,
como veremos mais detalhadamente no primeiro capítulo.
À primeira definição conceitual, anteriormente explicitada, incorporo seu
caráter relacional para acionar o seu Outro – a urbanidade, identidades encetadas por
uma natureza não-natural e artificializada, mediadas por um ambiente construído e
transformado por práticas de planejamento urbano em modos específicos de
organização. Identifico urbanidades nos transportes, nas cidades conurbadas,
dormitórios ou rurais, no paisagismo fetichizado das cidades, nos apelos ao consumo
massivo de cosméticos à base de produtos extraídos da natureza, na lógica do
agronegócio, na proliferação de shoppings centers etc.
16
Janus é considerado o Deus das ambivalências e das escolhas excludentes, sendo um verdadeiro ícone
na representação das dualidades modernas. Entretanto, pensando sua simbologia em uma perspectiva
menos literal – as duas faces olhando para direções opostas, considero-a como princípio orientador da
reconciliação, da complexidade e da articulação entre opostos.
22
Do exposto, afirmo a necessidade de reter que urbanidades e ruralidades são
categorias que, em conjunto, revelam uma melànge de tensões, enfrentamentos, valores
e vivências hibridizadas, em uma dialética inacabada. Além disso, como formas de
pensar e viver o mundo social, o ato de considerá-las analiticamente permite a
apreensão de dinâmicas sociais em curso na lógica cultural contemporânea.
Adiantando-me às críticas feitas ao uso de abordagens culturalistas para
explicitar a temática, enfatizo que, ao fazê-lo, não desconsidero as práticas sociais
cotidianas, os processos históricos, as relações e os diferentes gradientes de poder que
têm seu lugar nas sociedades capitalistas. Acompanho e reforço o argumento de que as
ruralidades não ocorrem em um vazio, mas sim em uma arena de interesses, permeada
por disputas e tensões. Contudo, defendo também que rejeitar peremptoriamente tais
abordagens termina por reforçando os enfoques funcional e economicista da ruralidade,
perdendo de vista um rico viés investigativo.
Durante a pesquisa, precisei mergulhar em um universo de saberes. A
princípio, nos hegemônicos, presentes na Sociologia, História, Antropologia, Geografia,
Agronomia e Arquitetura. Creio que isto ficará evidente na diversidade de autores aqui
acionados. Depois, talvez mesmo antes, senti a necessidade de flertar com outros
saberes tidos como não-hegemônicos, caso das mitologias, não menos verdadeiros, ricos
ou esclarecedores que aqueles. Aceitando-os igualmente, busquei a rota da
interdisciplinaridade para a construção epistemológica. Por inúmeras vezes, senti a
necessidade de voltar à superfície para respirar, diante das novas interrogações que
surgiam. Neste movimento dialético, foram necessários tempo, dedicação e oxigênio
para ventilar as encruzilhadas das incertezas. Entre inspirações e aspirações, vaguei por
uma miríade analítica, resgatando algumas noções essenciais que serão explicitadas
durante o movimento investigativo. Adianto que, juntando-as, formei uma constelação
interpretativa que me aproximou dos mistérios unificadores entre dizível-indizível,
visível-invisível, rural-metropolitano, campo-cidade.
Demorei a estabelecer a complexa teia de co-determinações destes processos,
mas, ao compreendê-la, desfiz a disjunção mental entre metrópole, cidades e campos
metropolitanos. Para tanto, no plano metodológico, embarquei em uma viagem
situacionista, nos moldes de Debord e descrita por Jacques (2003, p. 21), como forma
de vivenciar a RMBH. Percorri muitos quilômetros, visualizei paisagens, em uma
experiência desafiadora empreendida nos meses de fevereiro e outubro de 2012,
prolongando-se por meses em função da análise daquilo que vi, escutei, senti e li.
23
Em
entrevistas
semi-estruturadas,
conversei
e,
principalmente,
ouvi
atentamente trinta e duas pessoas, quase todas construindo suas estórias nas tramas
daquela teia, produzindo em si e para si uma realidade hibridizada, dinâmica, forjada
nas múltiplas possibilidades e influências do vai e vem, do conviver e do transitar. A
partir de suas falas, tentei captar os signos e significados das ruralidades por eles
experienciadas.
Agricultores,
funcionários
públicos,
comerciantes,
bancários,
agrônomo, produtor cultural, donos de pousada, autoridades institucionais, aposentados,
professores, estudantes, os quais, amparados pela promessa do anonimato, falaram de
sonhos e de aspirações, alguns deles contados como segredos ao pé do ouvido. Em
casas, sítios, roças, na CeasaMinas, Escritórios da Emater, Sede de poderes públicos,
empresas, nos locais de trabalho, enfim, nos locais dos mais diversos ouvi e rememorei
lembranças e histórias. Momentos enriquecedores, planejados a partir de uma
participação
anônima
nas
oficinas
para
elaboração
do
Plano
Diretor
de
Desenvolvimento Integrado (PDDI) da região, organizadas pela UFMG e parceiros no
já distante ano de 2010. Dessa participação fui construindo uma rede para chegar até os
entrevistados: indicações, no andar por pontos de sociabilidade, igreja, CeasaMinas, nas
ruas, prefeituras, enfim, nos espaços e tempos das cidades e do campo metropolitano.
Adicionalmente a este conjunto de fontes, somam-se as fontes bibliográficas
(dissertações, teses, artigos e livros), fontes documentais escritas (jornais, documentos
oficiais, revistas, panfletos e outros) e as fontes iconográficas (fotos e imagens).
Devo ainda esclarecer que centrei a pesquisa de campo em quatro municípios
dentre os 34 possíveis, além, logicamente da metrópole mineira. Levando em
consideração estudo feito pelo Observatório das Metrópoles (2006) no qual são criados
critérios indicadores que determinam o grau de integração dos municípios da RMBH
com a cidade-polo, selecionei, além da capital, três municípios com diferentes
integrações à mesma. Ao selecioná-los considerei, além da inserção na dinâmica
metropolitana, o conhecimento científico sobre eles acumulados e questões de ordem
prática e operacional. Desta forma, a pesquisa desenvolveu-se em Brumadinho, Nova
Lima e Ibirité.
Previamente ao trabalho de campo referido acima, resolvi obter algumas
informações sobre a região, utilizando um recurso pouco ortodoxo do ponto de vista
acadêmico. Usando um mecanismo de busca da rede mundial de computadores, inseri,
como indexadores, as palavras rural/ruralidade/Belo Horizonte, obtendo como
resultados principais: a) dois artigos acadêmicos (uma monografia sobre planejamento
24
estatal e uma dissertação sofre representações sociais); b) imagens antigas do “Rural”,
carro da montadora Ford, sucesso de vendas em décadas passadas; c) propagandas de
agências bancárias do “Banco Rural S/A”; d) nomes de restaurantes, como o “Villa
Rural”; e) endereços de um conjunto de lojas que comercializam produtos
agropecuários em um espaço centralizado, anunciado como shopping rural; f) listas com
nomes de advogados especializados em “causas trabalhistas rurais”, e, finalmente, g) a
curiosa pergunta de um internauta: qual a população rural de Belo Horizonte? Escolhida
por votação, a resposta considerada “correta” pela maioria aponta que “a população de
BH é 100% urbana, ou seja, "0% rural". Uma afirmativa, no mínimo, desafiadora, que
me instigou a continuar nessa aventura virtual.
Na sequência, utilizei aquelas mesmas palavras-chaves, estabelecendo, porém,
um recorte espacial mais amplo, qual seja, toda a região metropolitana e não somente a
capital. Como resultado, obtive: a) pequenos textos destacando a perda de importância
do rural na região bem como seu progressivo declínio demográfico; b) anúncios de
vendas de imóveis rurais; c) dicas para hospedagens, com imagens e informes
publicitários de hotéis-fazenda, d) oportunidades de moradia em condomínios em meio
à natureza nos municípios de Nova Lima, Brumadinho e Pedro Leopoldo e, finalmente,
e) dicas de turismo rural na região, especialmente no município de Jaboticatubas.
Este exercício, aparentemente pueril e pouco ortodoxo do ponto de vista
acadêmico, propiciou-me uma primeira medida da realidade construída acerca das
ruralidades metropolitanas, presentificada como realidade concreta na questão
ambiental, na valorização da natureza, nas atividades produtivas, nas tradições
alimentares e culturais, nos reassentamentos humanos, na questão agrária, nas
migrações e políticas de segurança alimentar, nutricional e habitação. Elas encontram
eco em um emaranhado de mais de quatro milhões de pessoas espalhadas por 8.900
km2, segundo dados do IBGE para o ano 2000.
Entretanto, de todo o material obtido no ciberespaço, duas matérias publicadas
no jornal O Estado de Minas chamaram-me bastante atenção. Uma delas tem data de
26-09-2002 e a outra de 16-09-2012. A segunda, mais explícita, descreve a casa de
campo como sonho de consumo, desejo este que teve um aumento de 20% na demanda
em comparação ao ano de 2011, no município de Betim, na RMBH. As razões para tal
aumento, segundo entrevistado, é o desejo de morar junto à natureza e tranquilidade
bem como fugir da agitação do dia a dia e do trânsito caótico. A outra razão, bem menos
idílica, “(...) é que os sítios e chácaras tornam-se um bom negócio a longo e médio
25
prazos, em função da valorização do mercado imobiliário”. Afora Betim, esse
movimento vem acontecendo também em Nova Lima, Brumadinho, Betim e Contagem,
já que “essas cidades, além de muito próximas de Belo Horizonte, se tornaram
excelentes opções de moradia e casa de campo, pois oferecem hoje todos os serviços e
comodidades que as pessoas precisam”, complementa.
Segundo outro entrevistado, J. A., “quem compra terra não erra”. Adaptando o
ditado para os dias de hoje, emenda “quem compra um imóvel em condomínio fechado
não erra”. Ele afirma que “nos últimos sete anos, por exemplo, alguns condomínios
fechados com padrão similar ao EcoVillas, localizado em Nova Lima, apresentaram
valorização de até 600%. É um investimento com alto índice de rentabilidade, faz
questão de frisar.
A outra reportagem, na mesma direção, indica o movimento do capital
imobiliário para atender o desejo de uma vida mais tranquila, por meio da oferta de
opções de moradia que “proporcionem aos moradores os principais benefícios de morar
no interior sem abrir mão das vantagens oferecidas pela cidade grande”. Acena assim
com a possibilidade de maior contato com a natureza, sem deixar de “desfrutar do
progresso da civilização”.
Pensando não haver sentido para um conhecimento definitivo, alço este voo
reiterando a incompletude do conhecimento. Acredito na complexidade das relações e
fluxos que envolvem os mistérios da realidade, tendo consciência dos limites
fundamentais de um horizonte teórico à apreensão daquilo que chamamos de mundo
real. Ao bater minhas asas, ensejo contribuir para o maravilhamento outorgado pela
aventura da imaginação baseada nos fatos, afastando-me da afirmativa de que a coisa-é.
Nesta aventura, acompanhada da voz e da estrela, eu – investigadora – trago os
ensinamentos de Kant e Kuhn.
Peço a você caro leitor, caso deseje nos acompanhar – a mim, a voz interior e a
estrela orientadora – que empreste de Ícaro as suas mitológicas asas artificiais.
Precisaremos delas para voar sobre a geografia das terras da Região Metropolitana de
Belo Horizonte, observando do alto as Serras do Curral, do Cipó, Rola-Moça e Moeda,
as planejadas avenidas e construções modernas da capital mineira e também as muitas
estradas de chão batido, onde transitam cavalos, motos e carros. Alerto-lhes que seguir a
trajetória proposta exigirá paciência e desejo de levitar. Na rapidez dos tempos, isto
pode ser um problema. Mas caso queira arriscar-se, asseguro-lhe que valerá a pena sair
do positivismo científico, inclusive visitando divindades, desvelando mitos. Não se trata
26
de negar os ditames da Ciência Normal (KUHN, 2006), mas de conciliá-los com
conhecimentos que foram extirpados pela tesoura afiada da racionalidade.
Aceitando o convite, saiba que compartilharei os ensinamentos teóricos e
vivenciais construídos ao longo de minha estória junto ao Programa de Pós-graduação
em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura – Programa CPDA. Ele tirou-me do
limbo disciplinar, provocando-me para além das ciências agrárias. Para isso, contei com
a ajuda de mãos preciosas a me empurrar na direção do fim do túnel. Com o auxílio de
ouvidos atentos. E com o incentivo de belas vozes que me disseram: caminhar é
preciso! Questionar é imprescindível. Alimentada por estas fagulhas, parto para a
viagem. Começo-a voltando à Antiguidade Clássica, como será visto no primeiro
capítulo. Nele, aciono o Deus Janus, inspirador do título dado à tese, como
procedimento alegórico para aprofundar a problematização e as considerações teóricas
pertinentes. Reflito sobre a questão campo e cidade, as ideias atuais sobre natureza,
ruralidades e urbanidades.
No segundo capítulo, esmiúço a região metropolitana, apresentando a
metrópole mineira e os outros trinta e três municípios nela institucionalizados. Ilumino a
metrópole, as cidades e os campos. Desnudo-a como fios entrelaçados em uma grande
teia de co-determinações. Para tanto, uso os procedimentos metodológicos citados,
combinados ao meu olhar durante a pesquisa de campo.
No capítulo seguinte, trazendo à baila a trama socio-histórica deste território e
suas territorializações, expondo de forma detalhada o que chamo de mito fundador
mineiro e sua influência no território da RMBH, discutindo a sociogênese urbana, a
precoce invisibilização do rural, a importância das montanhas e riquezas minerais no
imaginário mineiro, bem como o processo de formação da metrópole periférica.
No quarto capítulo, aponto atores, dinâmicas e processos em curso no
movimento
de
construção-desconstrução
da
ruralidade
em
um
ambiente
institucionalizado como metropolitano. Trago histórias que falam de embates, de lutas,
esperanças, valores e de diferentes projetos e modos de vida.
Nas considerações finais, sistematizo as principais indagações levantadas, bem
como suas respostas, apresentando também os sentimentos com relação ao trabalho. Por
fim, destaco possíveis linhas investigativas no tempo futuro.
27
CAPÍTULO I
REVISITANDO O MITO DE JANUS: PROBLEMATIZANDO A
RURALIDADE METROPOLITANA
Figura 2: “Janus”, Watercolour by Tony Grist, 1971.
28
1. Aprofundando os marcos teóricos da pesquisa: o Deus Janus como
procedimento alegórico.
Antiguidade Clássica. Como ilustrado nas Ilíadas de Homero, as guerras,
batalhas, duelos e invasões faziam parte do dia-a-dia das principais civilizações da
época, sendo caminho estratégico para a consolidação das cidades-estados romanas ou
da pólis grega. Para defendê-las, muralhas e fortalezas eram erguidas em pontos
estratégicos, dificultando ou impedindo a conquista da urbe pelo inimigo. Aliadas a
estas barreiras físicas, também as divindades desempenhavam um papel protetor, não
raro até maior que tais obstáculos. Para demonstrar gratidão e respeito, os feitos de
deuses e heróis eram propagados de geração em geração por meio de narrativas
especiais – os mitos17. Eles povoavam o inconsciente coletivo, blindando os nobres,
escravos ou plebeus com a força e poder necessários para empreender combates e
suportar as disputas por prestígio, glória ou mesmo pela Vida.
Se a crença nos mythos18 cimentava a existência dos povos, em uma instituição
imaginária da sociedade (CASTORIADIS, 1982), realizar tal existência era viver a
Natureza (physis), em suas manifestações como “natureza naturante” (energia criadora
invisível e inaudível) ou como “natureza naturada” (realidade criada, visível e audível).
Juntos, physis e lógus, realizavam o fechamento do mundo e o encontro com o
(des)conhecido e com o mistério.
Em tempos de primado da racionalidade disjuntiva, de um agir e pensar
considerados metódicos ao separar as partes para recriar o todo, navegar no universo
mitológico pode soar um tanto quanto anacrônico, pois é comum tal conhecimento ser
considerado como devaneio de povos ditos primitivos. De tanto se apregoar que os
mitos, crenças, deuses e experiências – religiosas ou não – nada mais são que “(...) um
17
Segundo Campbell (1991, p.16), os mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de
significação, ao longo dos tempos, tendo, basicamente, quatro funções. A primeira seria mística, abrindo
o mundo para a dimensão e consciência do mistério que subjaz a todas as formas. A segunda, a dimensão
cosmológica, é ocupada pela ciência em seu intento de mostrar a forma do universo (novamente o
mistério se manifesta). A terceira função seria a sociológica – suporte e validação de determinada ordem
social, a qual terminou por assumir a direção do nosso mundo. A quarta função do mito seria pedagógica,
dando o norte de como viver uma vida humana sob qualquer circunstância, fornecendo modelo para o
comportamento humano bem como significado e valor à existência. Acrescento a essas a função
antropológica, explicitada por Chauí (2000), quando o mito é usado como forma imaginária de resolução
de conflitos reais.
18
O termo mythos trazia, em sua carga semântica originária, a tensão vital entre a physis e o lógos.
Porém, a partir de um dado momento, começa-se a privilegiar o lógos como elemento engendrador e
definidor da realidade (CARVALHO, 2006).
29
monstruoso acúmulo de insanidades, crueldades e superstições” (ELIADE, 2002, p. 24),
tornou-se corriqueira a depreciação do saber que eles congregam. Enquanto na
Antiguidade e na Idade Média, os mitos reinaram soberanamente na apreensão da
Natureza e do mistério, na Modernidade – apresentada por Kumar (1997) como um
conjunto de modernismos (dinâmica das instâncias culturais) e modernizações
(dinâmica das instâncias técnico-econômicas) – eles foram insistentemente rechaçados,
especialmente em suas dimensões mística e cosmológica. A Natureza, por sua vez, foi
separada do Divino e instada ao reino das apropriações tecnológicas. Para além disso,
foi abandonada como outro mito qualquer.
Na contramão da vertente dominante, considero que os mitos continuam vivos
e presentes, tanto em sua perspectiva etimológica, de narração pública de feitos
heroicos; e mais ainda no sentido antropológico, quer dizer, como solução imaginária
para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem
resolvidos na realidade (CHAUÍ, 2000). Nesta acepção, os mitos propõem um real,
revelando pensamentos e a concepção da existência e das relações que os homens
devem manter entre si e com o mundo. Vivê-los significa contar uma estória que,
obliterando seu significado, é autopromovida como verdade. Portanto, para além de
fantasmas gratuitos, os mitos são uma “res real, manipulável para o melhor como para o
pior” (DURAND, 2004, p. 20).
Todas as sociedades encarnam seus próprios mitos, os quais, frequentemente,
extrapolam fronteiras, territórios, gerações, épocas e culturas. Os mitos escatológicos
são um bom exemplo desta universalidade, pois a ideia da destruição da humanidade,
seja por conta dos seus pecados ou por sua decadência moral, é quase uma unanimidade,
aparecendo de várias maneiras em diferentes culturas.
Mesmo as sociedades modernas19, ocidentais – tidas como amíticas e atuando
comumente de forma mitofágica – não enterraram os mitos. É “uma ilusão superficial
acreditar que existam mitos novos”, disse Durand (2004, p.20, grifo do autor), melhor
19
Conforme Dupas (2006, p.112-113), a terminologia sociedade moderna foi usada pela primeira vez em
1950, estreitamente associada “à nova lógica de desenvolvimento econômico capitalista com democracia,
mobilização social e abertura cultural universalista”. Entendo por sociedades modernas aquelas que estão
imersas no constructo histórico-social da Modernidade, não sendo, entretanto, moldadas de maneira única
e uniforme por ela. São sociedades organizadas pelo capital, cujas relações privilegiam processos gerais
destinados ao desenvolvimento das forças produtivas e da produção do lucro. Macêdo (2012, p.98),
complementarmente, lembra-nos que tais sociedades “têm na liberdade, na autonomia individual e na
valorização narcísica do indivíduo seus grandes ideais, orientados para o gozo e para o consumo”.
30
seria falar em releituras. De fato, as sociedades modernas aperfeiçoaram os mitos,
aproveitando todas as oportunidades para criá-los, afirmá-los, alterá-los ou mesmo
desfazê-los, adequando-os à sua realidade (BARTHES, 2006; ROCHA, 1996;
CAMPBELL, 1991; JABOUILLE, 1986). Em uma distância sem espaço e em uma
cronologia sem tempo, como não intuir a proximidade mítica entre as narrativas do
invencível Hércules e da onipotente Ciência Moderna? Que tal imaginar o HomemAranha como um sucedâneo do lendário Teseu? E quanto a Moisés e Amadis de Gaula?
Possíveis encarnações pretéritas do self-made man do liberalismo moderno?
Na esteira das muitas interpretações para um mesmo mito, trago à baila duas
narrativas em torno de Janus, o deus romano bifronte que inspirou o título desta tese.
Um delas fala-nos do sentido para a iconografia janusiana na Antiguidade e a outra do
seu sentido sob os preceitos da Modernidade.
De acordo com a mitologia romana e também etrusca, Janus é o Deus protetor
dos portais e mentalidades. Sua cabeça de duas faces mirando em direções opostas era
erigida nos pórticos das cidades da Antiguidade, com a finalidade de proteger o interior
e o exterior aos pórticos. Se nos pórticos Janus cuida não somente do interior da cidade,
mas também daquilo que lhe é exterior, em janeiro, mês que lhe homenageia, ele olha
tanto para o ano que se encerra como para o ano que se insinua.
Mas, afinal, porque Janus tinha tal poder? Reza a lenda que Janus chegou com
a sua frota através do mar Tirreno em terras itálicas, estabelecendo-se na região do
Lácio, na Itália Central, onde se tornou um respeitado rei. Certo dia o Deus Saturno
apareceu nos domínios de Janus, depois de ser expulso do Olimpo por Júpiter. Janus
então o recebeu, dando-lhe abrigo e proteção. Em agradecimento, Saturno ensinou a
Janus a arte agrícola, que ele repassou aos habitantes do lugar. Denominada de “arte da
localidade”, a agricultura trouxe fartura e riqueza para o povo do Lácio, libertando-o das
incertezas alimentares. Porém, mais que ensinar a Janus o cultivo das terras, o maior
presente que Saturno lhe deu foi torná-lo um Deus, com o dom de ver claramente para
frente e para trás, olhando simultaneamente o que foi e o que será. Os dêiticos espaciais
do mitema, ou seja, o “para frente” e “para trás”, seriam, por metáfora lexicalizada,
dêiticos de tempo, apontando, respectivamente, para o futuro e para o passado (ALVES,
1996).
Nas sociedades antigas, a imagem bifronte de Janus foi utilizada para
reproduzir a marcação de contrários, em uma perspectiva de conexão. Neste hibridismo
simbólico, Janus seria um “Deus Ponte”, um mestre com o qual se poderia aprender a
31
arte da reconciliação, da complexidade e da articulação que existe entre os opostos.
Nesta visão abrangente, noite-dia, sol-lua, apolíneo-dionisíaco, razão-emoção, ciênciaimaginação, masculino-feminino, trevas-luz, dentre outros pares possíveis, seriam
construções atreladas ao mesmo processo e desencadeadas em conjunto, facetas
igualmente necessárias da “moeda poética e dialética da existência” (CARVALHO,
2006, p.31).
A imagem de Janus também é usada por Freud nas suas interpretações sobre o
sujeito do inconsciente. Ele, como Janus, seria “(...) uma unidade continuamente clivada
pela dualidade, no qual os contrários coexistem e onde não há nem negação nem
partículas exclusivas, somente aditivas” (JORGE, 1952, p.201).
Na modernidade dos nossos dias, o mito de Janus foi subvertido em narrativas
que o transformaram em “Deus da Dualidade”, “Deus da dupla face” ou “Deus das
entradas e saídas”. Nesta imagem arquetípica, uma das faces de Janus representaria o
moderno, o novo; o semblante maquiado com o pó mágico das qualidades. A outra
encarnaria o arcaico e o tradicional, marcada pelas limitações e negatividades. Janus
torna-se o arquétipo de um mundo sedimentado e produzido ambiguamente em dois
universos, um compreensível e importante e outro irracional e irrelevante20. Solidificase uma tradição de impasses: as faces de Janus expressariam as antinomias do mundo
moderno e suas escolhas totalizantes, onde são confrontadas “(...) duas proposições que
são radicalmente – na verdade absolutamente – incompatíveis, ou se tem uma ou a
outra” (JAMESON, 1977, p.71).
A realidade social construída nessa base seria, como no poema de Meireles,
uma ode ao Ou Isto ou Aquilo: “(...) Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e
não se tem chuva (...)” (MEIRELES, 2001, p.1483), perdendo-se, assim, a beleza do
arco-íris.
Mergulhando na afirmativa que nada no Universo existe em separado, vejo a
iconografia janusiana como o encontro de duas instâncias que se tocam em um instante
sem dimensão, formando um todo conectado e complexo que contraria a ideia primeva
de oposição e rivalidade, cristalizada pelas faces bifrontes. Nesta perspectiva, a exclusão
no poema de Cecília Meireles cede lugar à adição, ao isto e aquilo. Janus seria a
simbologia da interação, como um arco-íris que surge da simultaneidade do sol e da
20
Há que se destacar que é a eficácia do mito e não sua suposta verdade o critério para avaliação do seu
sucesso.
32
chuva. Vejo o deus romano como a transcendência dos processos díspares,
representando o valor essencial da dualidade e também a superação desse equívoco: as
faces que são de Janus não constituem a face do que ele verdadeiramente é (FRÓIS,
2004).
Diante da diversidade de caminhos do pensar, utilizo o mito janusiano como
alegoria
21
para interpretar as ruralidades em uma socioambiência metropolitana.
Expresso com esta postura o desafio de construir um trabalho acadêmico minimizando
as polarizações fragmentadoras, complexificando a análise e recorrendo ao mitológico
para enriquecer o que está posto cientificamente. Pretendo, com isso, aproximar de
forma fecunda e não excludente racionalidade e fantasia:
Quando o mito é aceito alegoricamente, converte-se num relato que tem dois
aspectos, ambos igualmente necessários: o fictício e o real. O fictício consiste
em que, de fato, não ocorreu o que o relato mítico descreve. O real consiste
em que, de algum modo, o que diz o relato mítico corresponde à realidade. O
mito é como um relato do que poderia ter ocorrido se a realidade coincidisse
com o paradigma da realidade (MORA, 2001, p. 478).
Incorporando as reflexões acima, penso na relação entre duas categorias que,
historicamente, foram concebidas antinomicamente. Falo do campo e da cidade, e, por
extensão, do rural e do urbano, ainda que estes não sejam sinônimos daqueles. Entendo
campo e cidade como morfologias materiais e bases prático-sensíveis de realidades
sociais – o urbano e o rural – compostas de relações presentes e futuras, concebidas,
construídas ou reconstruídas pelo pensamento (SOBARZO, 2010). Em outras palavras,
cidade e campo expressam materialidades enquanto rural e urbano são racionalidades ou
lógicas que se manifestam por meio de práticas sociais.
Como na metáfora janusiana, essas categorias são faces de uma totalidade
complexa e in(di)visível, que nos convida a superar as dicotomias em favor de uma
perspectiva tensionada, em que o campo dialoga com a cidade e o rural com o urbano e
vice-versa, em um moto contínuo de relação dialética. Certamente que uma inflexão
teórica de tal magnitude pressupõe um longo tempo de amadurecimento porque o que
está em jogo é a desmistificação de conceitos e valores fortemente arraigados. Mais do
21
Conforme Pereira (2002, p.27), o alegorismo é um procedimento retórico por meio do qual se exprime
um sentido não imediatamente compreensível. Consiste no uso de uma espécie de máscara - a alegoria aplicada à ideia que se propõe a explicar. Assim, a alegoria traz significações ocultas ou subentendidas,
em que o objeto extraído de seu contexto e esvaziado de sua significação habitual. Bruno Latour (2005)
utilizou a alegoria janusiana para discorrer sobre a ciência em obra recente. Segundo ele, a face austera e
formalista do deus representaria a ciência pronta (ou “prêt-à-porter”); a outra, vivaz e informal, a ciência
em construção (ou “en train de se faire”). Faces que, inevitavelmente, devem ser lidas conjuntamente.
33
que dizer que, hoje, há uma imbricação entre o rural e o urbano, há que se pensar que
essa indissociabilidade sempre existiu, ainda que a relação dos homens e mulheres entre
si através dos assentamentos humanos tenha sido extremamente variada no tempo e no
espaço, não permitindo contar uma única história da relação cidade-campo, uma única
história da relação do rural e do urbano. O que tem nos impedido de ver esse caráter
indissociável entre a cidade e o campo, entre o rural e o urbano são as teorias utilizadas
para referenciá-los, as quais têm servido menos para compreendê-los, e muito mais para
justificar a dominação de um pelo outro (PORTO-GONÇALVES, 2006).
Pelo exposto, não surpreende as referências ao rural como forma natural de
vida, berço da natureza, espaço harmonioso e bucólico vis-à-vis às menções ao urbano
como locus da fragmentação e do aviltamento do indivíduo; lugar por excelência do
barulho, dos vícios, da burocracia e de outras muitas mazelas. De outra parte, nos
deparamos com retratações do urbano como centro de realizações, da racionalidade, do
planejamento e da civilização em oposição a um rural posto como lugar do atraso, da
ignorância, da limitação e da rotina. Nesses termos, rural e urbano constituem-se como
referências quase mitológicas de mundos sociais; rejeitadas ou imitadas, mas,
essencialmente, expressando “(...) visões de mundo e valores distintos de acordo com o
universo simbólico ao qual estão referidas, estando, portanto, sujeitas a reelaborações e
a apropriações diversas” (CARNEIRO, 1998, p.63).
Mesmo que teorias estereotipantes e polarizadoras do mundo continuem em
voga, é interessante destacar que o rural tem despertado interesse sob outras bases que
não a das desqualificações ou das oposições irreconciliáveis frente ao urbano, ensejando
um vigoroso movimento de revitalização conceitual neste século XXI. Desse reencontro
com o rural brotam olhares diferenciados, que preconizam a emergência de novas
ruralidades (CARNEIRO, 1998); defendem o renascimento rural (KAYSER, 1990); a
reestruturação da ruralidade (MARSDEN, 1989); abordam-no sob a perspectiva
territorial (SARRACENO, 1994; ABRAMOVAY, 2000; SCHNEIDER, 2004);
discutem suas potencialidades como territórios do futuro (JEAN, 1997); novo rural
(GRAZIANO DA SILVA, 1999); espaço singular e ator coletivo (WANDERLEY,
2000) e sob a ótica das identidades sociais contemporâneas (MOREIRA, 2005).
Para desconstruir a trama que coloca rural e urbano, campo e cidade, ruralidade
e urbanidade como faces dissociadas do mundo da vida, evidencio nas páginas seguintes
quando, como e porque esta separação foi se consumando epistemicamente e também
politicamente. Para os fins que tenho em mente, cumpro esta trajetória fazendo três
34
recortes. Inicialmente, volto à antiguidade, mostrando que neste momento não se fazia
distinção entre campo e cidade e tampouco rural-urbano. Em seguida, pondero sobre o
crescente acúmulo de poder pelas cidades, enfatizando o nascimento do fenômeno
urbano e industrial. Mostro como a oposição espacial cidade-campo se desloca para
sedimentar a contradição urbano-rural. Finalmente, no último recorte, avalio a relação
entre os campos e as cidades nos dias de hoje, destacando a (re)aproximação entre
natureza e sociedade e a constituição teórica de uma ruralidade dita contemporânea.
Para começar esta longa viagem, pedi ajuda à princesa Ariadne, antecipandome aos possíveis labirintos e encruzilhadas desta trajetória. Como esperado, ela veio em
meu auxílio com seu novelo mitológico. Falei do meu objetivo em chegar às terras
mineiras para investigar a imbricação entre os campos e as cidades na região
metropolitana. Para isso, precisarei aventurar-me no tempo e no espaço para desfazer os
nós que os separaram teoricamente, expliquei a ela. Sentindo seu interesse, fiz o convite
para que me acompanhasse nesta aventura. Para convencê-la, discorri sobre a
resplandecente Serra de Sabarabuçu, vomitando sem parar os minérios que fazem a
riquezas de Minas Gerais. Contei das montanhas serpenteando majestosamente para
além do horizonte, do alto das quais podemos vislumbrar o céu, as brumas e o mar de
morros de Ab’saber (2003). Descrevi com entusiasmo a região em que a serra é do
Curral e também do Cipó; o córrego é do Feijão, da Mata e do Pastinho; o ribeirão é das
Onças; a festa é do Milho, da Goiaba ou da Jabuticaba; o parque é das Mangabeiras; as
cidades têm nomes sugestivos: Igarapé, Capim Branco, Florestal, Jaboticatubas,
Raposos, Rio Acima, Belo Horizonte... Certa de tê-la sensibilizado, comecei a entoar a
canção Cio da Terra. Aos poucos o som da minha voz misturou-se aos ventos fortes
vindos dos Gerais.
Desculpando-se, a princesa declarou sua impossibilidade em seguir-me, mas
garantiu ajuda. Todos os labirintos têm uma saída, disse-me com firmeza. Basta que
encontremos o seu segredo, reconheçamos as suas encruzilhadas e tenhamos o fio que
nos conduza por seus trajetos. Como você mesmo disse, o lugar aonde queres ir “vive
sangrando minério, exportado seu ser para o mundo, em silenciosos trens que não param
de ir sem nunca mais voltar”. Isso já me contara Herbert de Souza, o meu amigo
Betinho. Se bem entendo o que desejas, precisarás ver o sangue da morraria e não
somente admirar as belas paisagens de Minas Gerais. Além de vagar pelas montanhas,
contemplar os rios e as cidades de nomes sugestivos, terás que andar pela via do
Minério e pelo Quadrilátero Ferrífero, percorrer a cidade industrial, conhecer as
35
cidades-dormitórios e a capital planejada. Neste proceder, vai descobrir Contagem,
Esmeraldas, Confins, Lagoa Santa; vai aprender sobre a religiosidade mineira,
transbordada nos nomes das cidades: Santa Luzia, São Joaquim de Bicas, São José da
Lapa.
Surpreendida por seu conhecimento, agradeci e fui saindo devagar. Ela então
me estendeu a mão e disse: leve contigo meu novelo mágico, ele vai acompanhá-la pelo
labirinto das Minas Gerais, ajudando-a a ir ao encontro de Ártemis, a Deusa da Natureza
com Atena, patronesse daquilo que é feito pelas mentes e mãos dos seres humanos.
Agradeci novamente e comecei a caminhar. Sorrindo, Ariadne afastou-se, mas
ainda tive tempo de ouvi-la citando Heráclito de Éfeso:
É mudando que repousa... A vida e a morte, a vigília e o sono, a mocidade e a
velhice são, no fundo, uma e a mesma coisa. Uma transforma-se na outra e
esta volta a ser o que era primeiro. Se alguém me escutou, não a mim, mas ao
meu logos, então sentirá que é sábio afirmar que todas as coisas são uma.
Campo e cidade, rural e urbano. Tensão recíproca, arco e lira, filosofei pegando
o novelo e desenrolando o fio encantado. Em Minas Gerais, começarei procurando por
um belo horizonte, combinei comigo. Partindo dali, darei novas laçadas, arrematarei
outros nós. Mas, antes disso, preciso percorrer certo labirinto e desfazer antigas
amarrações.
2. Um pouco de história: (des)construindo e (re)construindo a relação campo e
cidade. Qual campo? Que cidades?
Cada um de nós carrega consigo uma noção, mesmo que vaga, do que seja
campo e cidade. Imagens, narrativas, paisagens, objetos e pessoas são alguns dos
“referenciais” usados para dar materialidade à realidade construída pelo nosso olhar e
pelas nossas vivências. Por certo, ao fazer menção a um deles – campo ou cidade –
nosso imaginário22 é deslocado, deslizando em direção a alguma experiência, vivida ou
imaginada, sobre um ou sobre ambos. Seja no plano mental e por certo conceitual, são
muitos os caminhos que podem nos levar de alguma forma ao campo ou à cidade e à
articulação entre ambos.
22
Conforme Franco Júnior (2005, p.184) imaginário refere-se ao conjunto de imagens, verbais e visuais,
que uma sociedade ou um segmento social constrói com o material cultural disponível para expressar sua
psicologia coletiva. Logo, todo imaginário é histórico, coletivo, plural, simbólico e catártico.
36
Discutir tal ligação não é propriamente algo novo, mas, certamente, nem
sempre o novo deve ser tomado como essencial. Por isso, arrisco-me a fazê-lo,
mostrando que esta velha relação tem uma longa trajetória de antagonismos, simbiose e
justaposições. E, ainda mais importante, não há uma forma única de apresentá-la.
Campo e cidade. Duas materialidades em coexistência dinâmica. Duas palavras
em inter-relação. Como disse Raymond Williams (1989, p.11) “Campo e Cidade são
palavras muito poderosas, e isso não é de estranhar, se aquilatarmos o quanto elas
representam na vivência das comunidades humanas”. Duas representações sociais
historicamente construídas, às vezes idealizando o campo e tudo a ele ligado (rural), às
vezes enaltecendo a cidade e o que a ela se relaciona (urbano).
Penso na relação entre campo e cidade como uma colcha de retalhos. Pesada, a
colcha-relação carrega consigo densas camadas de (pré)conceitos. Ao manuseá-la, os
modernos diriam que a linha e o tecido que a compõem são da natureza do campo, mas
os equipamentos e as técnicas para sua confecção provêm da artificialidade da cidade.
Outros, pós-modernos, dão destaque ao bordado artesanal, tradição daquela família
camponesa. Os mais afetos à perspectiva econômica enaltecem a máquina de costura, o
espaço da produção, a quantidade produzida. Opiniões que, grosso modo, repercutem
uma divisão de trabalho – o campo respondendo pela produção agrícola, e a cidade,
produzindo bens industriais – que chegou praticamente intocada até os nossos dias,
apesar das substanciais evidências empíricas a contradizê-la (HESPANHA, 2007).
Sacudindo a colcha para debelar a poeira acumulada, somos surpreendidos por
cores, tons, nuances e desenhos que passaram despercebidos a quem se ateve a pensar
estritamente na procedência do material ou no processo de confecção, deixando de
contemplar a harmonia do conjunto, a sutileza das tramas, a beleza do bordado e a
conexão das costuras. Juntos, o fio do algodão, o aço da agulha e o trabalhador. Todos
filhos da mesma natureza.
Campo e cidade. Que estratégia utilizar para tentar compreender esta dialética
relação? Lewis Mumford (1998, p.11), em seu livro A cidade na História, chama
atenção para a necessidade de “seguir a trilha para trás” para entender a cidade. Mas,
voltar no tempo? Como? Não é fato que algo que foi uma vez não é e nunca será o
mesmo a reaparecer? Moreira (2005, p.76) responde dizendo que “o que poderemos
verificar, medir e representar serão apenas índices, indicadores, traços, elementos e
registros... Busquemos por eles então.
37
Seguindo o conselho de Munford (1998), retrocedi no tempo. Cheguei a
Atenas, Biblos, Babilônia, Constantinopla, Cuzco, Machu Picchu, Pequim, Roma, Tical,
Tenochtitlán, Teotihuacán...
Cidades políticas, cidades comerciais, cidades-impérios. Algumas protegidas
por muralhas e fossos, outras abertas... Diferentes conformações espaciais, originadas
de um elemento comum – quase todas fruto da terra – obra de um excedente agrícola
sem o qual seria inconcebível na sua formação mais remota (MUMFORD, 1938).
Assim aconteceu com as cidades da Mesopotâmia, Egito, Índia, China e América précolombiana, onde a produção regular de alimentos e o desenvolvimento da agricultura
suscitaram a sedentarização dos homens em assentamentos23. Pouquíssimas foram as
regiões onde os campos prosperaram sem se fazer acompanhar por uma correspondente
cidade. Para demonstrar a magnitude de tal inter-relação, faremos, como sugeriu
Mumford, uma retrospectiva. O ponto de partida poderia ser Dzibulchaltun, Tebas,
Cartago ou qualquer das cidades anteriormente citadas, mas usaremos Roma como fio
condutor, já que ela (e a civilização em torno da mesma) é colocada como referência do
poderio da cidade na Antiguidade (SPÓSITO, 2000).
Historiadores e arqueólogos afirmam que Roma começou a se formar a partir
de algumas aldeias de agricultores e pastores. Naquela época e lugar a atividade agrícola
era a base da economia, a qual os romanos atribuíam “grande superioridade moral”
(GALBRAITH, 1989, p.12), rivalizando, inclusive, com outra atividade considerada
essencial, a participação em guerras. Assim, a agricultura era algo considerada como
desígnio dos deuses. Mesmo os mais abastados não desdenhavam enfrentar a rabiça do
arado. Além disso, as demarcações delimitadoras dos campos (terrnes) eram respeitadas
como se fossem coisas sagradas e a criação de gado vinculava-se com a natureza
sagrada da terra (PAULA, 1979). Muitas famílias dedicavam-se ao plantio de cereais,
cultivo de oliveiras e à produção de vinho. O preparo da terra para o plantio era feito
com a ajuda do urbanum (arado em latim). O sulco que ele fazia no chão ao ser puxado
pelos bois sagrados era o que delimitava a forma física da ocupação do espaço de vida,
marcando o “território da produção e de vida dos romanos” (MONTE-MÓR, 2006, p.
11). Portanto, na origem, o vocábulo urbano dava a justa medida da relação da
23
Alguns autores têm uma posição contrária a este respeito. Jane Jacobs (1969) foi a primeira a formular
a hipótese da precedência da cidade sobre o campo, baseando-se nas descobertas arqueológicas da
pequena cidade de Çatal Huyuk, na atual Turquia. Mas, como acertadamente salienta Porto-Gonçalves
(s.d.), a discussão da precedência ou não da cidade em relação ao campo só tem sentido nos marcos de
uma visão evolucionista, linearizadora do rural e do urbano.
38
sociedade com a natureza por meio da organização do espaço, quando o sulco do
urbanum ao grafar a terra demarcava a povoação. Nesta lógica, inferimos a inter-relação
campo-cidade, recuperando “o sentido de cultura como originário de culto, cultivo, e
não como algo que se dá fora da relação com a natureza” (PORTO-GONÇALVES, s.d.,
p.5).
Tempos depois, quando Roma expandiu seu território, os cultivos passaram a
ser feitos pelos povos escravizados. Várias guerras foram exclusivamente organizadas
para a obtenção de prisioneiros para trabalho nos grandes latifúndios. Paula (1979)
conta-nos que “os romanos consagraram o hábito de tirar dos inimigos, em proveito
próprio, parte - 1/3 ou menos de 2/3 de seu solo arável e das pastagens”. Neste
movimento imperialista e expansionista, o número de escravos é enormemente
ampliado, ao mesmo tempo em que pequenos e médios proprietários rurais são
eliminados por conta de um processo de concentração fundiária. Em consequência, há
um abandono em massa dos campos em direção a Roma.
Neste cenário de tantas mudanças, há uma inflexão no significado do vocábulo
urbanum. Ele e suas reduções semânticas, urbs e urbe, passam a ser usados
exclusivamente para designar Roma, “mercado de toda a Terra”, para onde tudo e todos
se dirigem. Assim, de espaço de produção, o urbano passa a ser sinônimo de espaço de
dominação, ligado à primazia social do aparelho político-administrativo. O lugar de
onde se enunciaria o urbano passou a ser a cidade imperial dominadora e não mais o
lugar da marca do arado. Daí pra frente “todo o léxico implicado na família de conceitos
(urbano, cidade, city, cité e civitas) foi forjado desde um lugar hegemônico,
hierarquizador (...)” (PORTO-GONÇALVES, s.d., p.5).
Com a queda do grande império romano, ao final da Idade Antiga, o vocábulo
urbanum tem seu uso descontinuado, melhor dizendo, esquecido. A Roma de mais de
um milhão de habitantes vê sua população despencar para menos de cem mil pessoas
em consequência da fome, da violência e dos ataques dos muitos inimigos. Com esta
radical mudança, o vocábulo e seus afins perdem sua razão de ser, só voltando a ser
empregados muito tempo depois em referência às futuras urbs de dominação, quais
sejam, as cidades da era moderna.
Entretanto, antes de nelas chegar, falemos da relação campo e cidade no
período medieval.
Com o ocaso da civilização romana, a produção agrícola entra em declínio por
diversos fatores, dentre os quais a falta de mão de obra escrava, a indisponibilidade de
39
novas áreas para plantio, anteriormente conseguidas pela expansão bélica, e o fim das
atividades mercantis por conta do bloqueio do Mediterrâneo. Em um cenário de
instabilidade política, violência e escassez de gêneros alimentícios, grande parte dos
abastados senhores romanos abandona as cidades buscando refúgio em propriedades no
campo – as vilas romanas – precursoras dos feudos. Outros, menos ricos, conseguem
proteção e trabalho nas terras dos senhores sob a condição de arcar com obrigações de
várias espécies, dentre as quais o pagamento de impostos e taxas (SPÓSITO, 2000). A
terra torna-se assim a única fonte de subsistência e de condição de riqueza em meio à
substituição do sistema escravista de produção pelo sistema servil24. Gestavam-se assim
as condições para a consolidação das formações sociais de natureza feudal no ocidente.
No contexto do modo de produção feudal, a cidade, mais do que estar no
campo, passa a ser uma extensão deste, sendo, portanto, do campo (MUMFORD, 1938,
p.306). Esta situação fez o historiador Georges Duby (1973, p. 11) chamar de “parasitas
tutelares” as cidades de então, diante de sua inexpressividade, seja econômica,
administrativa ou política.
Nos séculos subsequentes, a busca por alimentos cresceu com rapidez e
intensidade, pressionando a produção agrícola. Para atendê-la, novas áreas cultiváveis
foram abertas, ao mesmo tempo em que se tentava aperfeiçoar as técnicas disponíveis.
Surgem os moinhos impulsionados pelo vento ou movidos à água, a charrua em
substituição ao arado e uma forma diferenciada de atrelar os animais, aumentando o
rendimento do trabalho. Este conjunto de mudanças permitiu a geração de excedentes
agrícolas para atender às demandas crescentes.
Diante da impossibilidade de armazenar os excedentes, a produção agrícola
começou a ser levada para comercialização na “praça de mercado”, local no interior das
cidades controladas por mosteiros e castelos (MONTE-MÓR, 2006, p.8), sob a
aprovação explícita da aristocracia clerical, maiores beneficiários deste crescimento
econômico.
Driblando as normas da Igreja, que condenava as atividades comerciais,
rapidamente a praça tornou-se o elemento dinamizador e nucleador destes locais. Deste
24
Segundo Franco Júnior (2005, p. 186), ser “servo implicava não gozar de muitas liberdades, ter
incapacidades jurídicas (...). Contudo, ao contrário do escravo clássico, tinha reconhecida sua condição
humana, podia ficar com parte do que produzia e recebia proteção do seu senhor”. Em função da região
considerada, dava-se mais ênfase à servidão real, que pesava sobre a terra, ou à servidão pessoal,
incidindo sobre o indivíduo. Entretanto, após o século XI, estes dois “tipos” quase sempre se confundem.
40
movimento emerge uma primeira mudança na relação campo e cidade, quando então a
produção agrícola passa a se realizar somente no mercado, transferindo o mais-produto
do campo à cidade. São os primórdios de um desenvolvimento comercial que
desagregará as organizações da produção voltadas ao valor de uso. Paulatinamente, o
capital comercial vai unificando mercados e impondo preços, os quais, dada a
continuidade das trocas, perdem o seu caráter fortuito. Estamos relatando os
movimentos que resultaram na constituição, ainda que lenta, de uma economia de
mercado25 e das cidades mercantis.
A ampliação expressiva do comércio, o desenvolvimento de uma economia
monetária que transformou o caráter da vinculação das mercadorias e o próprio
crescimento das cidades – com tudo que este crescimento significava, sobretudo o
fortalecimento de um espaço fora do domínio feudal – foram "acontecimentos"
históricos que proporcionaram as condições necessárias à corrosão da instituição servil,
pois permitiam aos camponeses o rompimento das amarras que os prendiam à economia
feudal.
É justamente neste ponto da história que se origina a oposição valorativa entre
campo e cidade – e, por extensão, entre os modos de vida a eles associados,
respectivamente, rural e urbano. A antagonização assentou-se no bojo do embate entre
dois modos de produção, o feudal e o capitalista – em ascensão – e entre as respectivas
classes sociais que lhes davam sustentação. Neste contexto, como descreve Silva (1999,
p.3), a cidade e o modo de ali viver são associados ao “novo” (vinculados à ordem
social emergente), ao “progresso” das fábricas, à liberdade, enquanto o rural e o campo
são tomados como “velhos” (ligados à ordem feudal em declínio), “atrasados”,
“tradicionais” e mesmo servis. Fadados estes últimos ao desaparecimento ou à
incorporação aos processos de industrialização e urbanização que tiveram seu lugar na
expansão e domínio do modo capitalista (CASTELLS, 2005; FRANCO JÚNIOR, 2001;
GIDDENS, 1987; LOJKINE, 1977). Neste espaço e lugar, as cidades assumem um
protagonismo inédito na história da humanidade, de “parasitas tutelares” como as
denominou o historiador Georges Duby (1973, p. 11), são reverenciadas como “donas
de tudo e o campo verdadeiro servo e subordinado”.
Além das mudanças já citadas, outras transformações causarão grande impacto
na relação entre campo e cidade no período medieval. Dentre elas, a parcelização do
25
A esse respeito ver o livro “A Cidade na História”, de Lewis Mumford (1965).
41
domínio político feudal, o esfacelamento do poder em sucessivas vassalagens na escala
hierárquica da nobreza, o rompimento dos laços compulsórios da instituição servil e o
fortalecimento das “cidades livres”, os burgos, aos quais certos setores nobres
concediam franquias, isenção de impostos e liberdade. É justamente nos burgos que se
consolida uma classe social – a burguesia (comerciantes e usurários que foram
lentamente acumulando capital e poder) – que dissemina seus hábitos, cultura e tradição
até que, no limite, apropria-se das cidades mercantis em todos os sentidos, tendo por
razão de ser a obtenção do lucro e, por conseguinte, a acumulação através do comércio.
As cidades livres atraíam mais e mais pessoas, mesmo não conseguindo
corresponder às expectativas suscitadas. Segundo Franco Júnior (2001, p.130-136), a
desvalorização dos preços dos produtos agrícolas exacerba esta migração. O êxodo rural
intensifica-se, e, em consequência, forma-se uma legião de pessoas sem ocupação, um
proletariado vagando a esmo e em frequente conflito com a burguesia. Paralelamente à
evasão rural, deu-se a organização do “sistema de trabalho a domicílio”, mecanismo
pelo qual os comerciantes forneciam matéria-prima e ferramentas aos camponeses
“libertos” da servidão, lançando assim as bases da manufatura (SPÓSITO, 2000).
A existência de força de trabalho “livre”, a disponibilidade de capital e a
consolidação de um mercado criam as condições para a revolução industrial, resultando
em total mudança na divisão social do trabalho e no caráter da relação entre o campo e a
cidade. Se no plano econômico e social fervilham transformações, também no plano das
ideias elas se fazem presentes, organizando o ideário que marcará a Idade Moderna.
Todo este processo é brilhantemente descrito por Lefebvre (1972, p.44):
(...) na Europa da Idade Média (tendo o cuidado de excluir o caso do ‘modo
asiático de produção’) a relação cidade-campo torna-se conflituosa. (...) a
cidade e a burguesia medieval tiveram de lutar para conseguir a supremacia
política e a capacidade de explorar economicamente os campos, tomando o
lugar dos senhores fundiários na recolha do sobretrabalho (...). No decurso
desse processo a cidade gera algo diferente, algo que a ultrapassa: no plano
econômico, gera a indústria; no plano social, gera a propriedade de bens
móveis (...); no plano político, finalmente, gera o Estado. Esse o resultado da
primeira grande luta de classes e das formas sociais na Europa: cidade contra
campos, burguesia contra feudalismo, propriedade de bens móveis e
propriedade privada contra propriedade fundiária e comunitária.
A partir deste momento, começa um processo crescente de transformações
radicais no conjunto geral das relações de produção. Se até então a agricultura era a
principal atividade econômica e o campo representava o lugar em que se concentrava a
grande maioria da população de produtores diretos, o surgimento de uma indústria
42
capitalista engendrou uma mudança demográfica nos países onde se originou,
invertendo a proporção entre a quantidade de população nas cidades e nos campos,
agora esvaziado pelas levas migratórias que partem em direção às cidades.
À medida que as cidades ascendem em importância econômica e as mudanças
desencadeadas pela industrialização tornam-se mais impactantes, reações distintas são
manifestadas. A fuligem, a fumaça e o barulho, que tanto incomodam os citadinos e
trabalhadores assalariados, tornam-se o jardim de delícias da burguesia – formas
visíveis do pleno funcionamento dos seus empreendimentos. Para ela, as cidades são
espaços de oportunidade e abundância, como atesta um texto de Alexis de Tocqueville,
descrevendo Manchester, cidade inglesa berço da revolução industrial:
Deste fétido escoadouro flui a maior corrente da indústria humana para
fertilizar o mundo inteiro. Deste imundo esgoto flui ouro puro. Aqui a
humanidade alcança o seu mais completo e o seu mais selvagem
desenvolvimento, aqui a civilização realiza seus milagres (...).
(TOCQUEVILLE, citado em NISBET, 1966, p. 29 apud NICOLACI-DACOSTA, 2002, p. 196).
Essas narrativas, mesmo majoritárias, convivem com outras, mais ou menos
catastróficas, em que as cidades são dissecadas de forma crua e brutal. Sobre a mesma
Manchester, Engels escreveu em 1845:
Em toda parte veem-se montes de detritos de lixo, sujeira, poças d´águas
estagnadas nos lugares de bueiro, e o mau cheiro é tão forte que pessoa
alguma, mesmo semicivilizada poderia achar suportável morar num lugar
assim. Pode-se encontrar, debaixo de uma ponte de ferrovia, uma viela, ainda
mais revoltante que os outros, um buraco que não chega a ter dois metros de
comprimento por 1,5m; aí eu me deparei com duas camas (...). No fim das
contas, o que realmente importa para os ingleses são seus interesses, e o seu
desejo de ganhar dinheiro (ENGELS, F. 1972 apud CARLOS, 2008, p.5354).
Neste cenário surge e se fortalece duas idealizações do campo. Em uma elas,
ele é lugar da produção primária, da terra, da natureza e dos processos naturais.
Portanto, o lugar da agri-cultura e menos (ou nada) de agro-cultura. Neste contexto, o
rural é concebido por meio de adjetivações (des)qualificativas: Rústico, Ultrapassado,
Rudimentar, Arcaico, Lento. Rural. Ao mesmo tempo, seu Outro, a face janusiana
moderna e pintada com o pó da civilização, é legitimada como Universal, Racional,
Bem-sucedido, Artificial, Neofílico, Objetivo. Urbano. Polos magnéticos em repulsão.
Estas adjetivações são estendidas aos protagonistas dos processos sociais. Se o
campo é o passado, lugar da barbárie, da tradição, seus habitantes são, por extensão,
43
selvagens incivilizados. O agricultor então é o parente pobre, ignorante e desgostoso
dos abastados, civilizados e progressistas habitantes das cidades.
A segunda forma de concepção do campo o mostra como lugar do bucólico, do
refúgio e da calmaria, da produção da riqueza, da fartura, dos laços mais sólidos de
relacionamento, da solidariedade mecânica durkheimiana, da Gemeinschaft de Tönnies,
enfim, o baluarte da pureza contra os males da industrialização.
As visões acima passaram a permear grande parte das análises acerca do campo
e da cidade. Aos poucos campo e cidade passam a ser considerados como polos
magnéticos em repulsão, sendo a cidade o Janus positivo, e o campo o negativo. Ou
vice-versa. Idealizações e construções simbólicas que foram levadas à frente por
algumas áreas do conhecimento. No primeiro caso, que defende o protagonismo da
cidade, penso no papel desempenhado pelas Sociologias Rural e Urbana para consolidar
esta visão, como bem destaca Martins (2001). À medida que o mundo da vida era
perpassado pela emergência do fenômeno urbano e pela consolidação das metrópoles
industriais, elas usaram suas cientificidades teórico-analíticas para explicar o fenômeno
vivido. Inclusive, a Escola de Chicago e sua proposta do “urbanismo como modo de
vida” são referenciadas até hoje. No segundo caso, proclamando o protagonismo do
campo, penso no trabalho dos literatos na disseminação do modo de vida rural em sua
vivência “abundante e harmônica”.
Raymond Williams (1992), no clássico O campo e a cidade na História e na
Literatura, reconstitui a relação campo e cidade por meio de obras da literatura inglesa.
Williams revela sinais de uma hierarquização entre campo e cidade que estão presentes
tanto nas atividades produtivas quanto na vida cotidiana, em diferentes momentos da
história social da Inglaterra. Sua análise permite-nos constatar que o nosso
entendimento do que seja campo e cidade provém de profundas e remotas raízes, muitas
vezes homogeneizantes e simplificantes, apesar da diversidade da realidade histórica.
Abro aqui um parêntesis para dizer que poucos são os estudos acadêmicos que
se propõem a quebrar esta hegemonia acadêmica que desqualifica a ruralidade,
espacialmente a metropolitana. Na década de 1980, a professora Baudel Wanderley
(2007), pioneira na formação de importantes quadros na investigação do mundo rural,
deu um depoimento emocionado ao relatar sua “amistosa” convivência com professores
e pesquisadores que creditavam o status de questão menor ao rural, para eles uma
temática ultrapassada tanto na sociedade brasileira quanto na academia. Segundo ela,
sensibilizar cientistas sociais para incluir o rural como objeto de estudo foi uma tarefa
44
árdua, exigindo muito tempo e humildade. Lentamente, este argumento está sendo
dissolvido. Relativamente ao rural metropolitano, em uma perspectiva integradora,
destaco os trabalhos de Karen Karam, Alencar, Santos et al., Rúbio Ferreira e Evandro
Fernandes. Karam (2001), em sua tese de doutoramento, defende que a agricultura
orgânica é uma estratégia para uma nova ruralidade na Região Metropolitana de
Curitiba. Alencar (2003) trata do desenvolvimento humano na perspectiva da
sustentabilidade complexa, estabelecendo relações entre o conhecimento científico e
experiências de ruralidade como nexo de análise na Região Metropolitana de Salvador.
Santos et al. (2004) questionam a possibilidade da existência do rural na Região
Metropolitana de Curitiba e, respondendo afirmativamente, prosseguem descrevendo
suas características à época da análise. Ferreira (2009) estuda a agricultura urbana como
estratégia de reprodução espacial integradora do rural e do urbano na Região
Metropolitana do Recife. Por fim, Fernandes (2008) analisa a reprodução de
agricultores familiares no espaço metropolizado paulistano, por meio de práticas
produtivas diversas.
No
mundo
contemporâneo,
em
sua
dinâmica
do
não-lugar,
das
(des)territorializações, globalizações, localizações e cosmopolitismo, da celeridade das
pessoas e objetos, constatamos que a relação campo e cidade insere-se na ordem dos
múltiplos sentidos e, como esperado, das múltiplas leituras. Uma bricolagem organizada
pela multiplicidade interativa, muito além da polaridade concorrencial e opositora. Não
mais faces de Janus, mas Janus e suas faces; suas forças centrípetas e centrífugas a
marcar a relação entre o campo e a cidade.
Assim constituída, esta relação permite-nos interpretar o rural de forma
ressignificada. Nestes termos, o chamo de ruralidade, esmaecendo assim uma imagem
magmática de inferioridade – basilar na noção moderna – para ascender à condição
contemporânea de manifestação identitária em que subjaz uma relação de proximidade e
reencontro entre homem e natureza, esta investida da condição de sujeito. Implícita
nesta noção está uma nova ontologia do ser em geral, em que a natureza humana é
interpretada na totalidade da natureza, em uma postura de pertença e não de dominação,
contrariamente à ideia de natureza em suas clivagens sujeito-objeto, cultura e natureza,
homem e natureza, sociedade e natureza.
Ao falar de Natureza, não podemos deixar de mencionar que o termo coleciona
múltiplos sentidos. Felizmente Lenoble (1990) lembra-nos daquilo que é essencial: não
existe uma “natureza em si”. Seu sentido sedimenta-se por ser “natureza pensada”,
45
portanto, é na história que ela é edificada, assumindo significações distintas em
consonância com as épocas e os homens que as vivem. Nestes termos, seja como
morada dos deuses, aquilo que faz nascer, alma do mundo, ser inteligente, mundo físico,
mãe, princípio criativo e regulador, sustentáculo da vida ou ainda como natureza-natura,
fato é que a natureza “exprime menos uma realidade passiva apercebida que uma atitude
do homem perante as coisas” (LENOBLE, 1990, p.317). E a atitude é de resgate e
inclusão.
Nas palavras de Mormont (1993, p.11), a ruralidade apresenta-se agora como
uma maneira por meio da qual as nossas sociedades “(…) pensam a transformação da
sua relação à natureza”. Similarmente à atração exercida pelas cidades e vida urbana nas
sociedades desenvolvidas e industrializadas, experimenta-se hoje uma desilusão com as
mesmas, traduzida como a crise da civilização urbano-industrial. Em contrapartida, a
repulsividade ao espaço e vida rurais dissipa-se, dando lugar a uma inusitada atração
traduzida pela “(…) busca de formas de vida alternativas às características do espaço
urbano-industrial” (BARROS, 1990, p. 47). Assim sendo, o rural desposa o estatuto de
natural, porque é retratado como um espaço em que a natureza natural ainda subsiste
comparativamente à natureza artificial da cidade.
O reencontro do rural com o ambiente não é um fenômeno meramente casual,
mas um mito de retorno (à volta à natureza natural e pura), construído em torno da
escassez/esgotamento da natureza e da ausência de segurança nas sociedades modernas.
Os meios de comunicação em massa e o capital imobiliário têm contribuído para sua
consolidação usando para tanto manifestações discursivas e a veiculação de imagens
que evocam o campo como um lugar de vida simples e pura. A casa de campo, a
hospedagem em hotéis-fazenda, o consumo de mobiliários e de bens alimentares são
formas concretas de trazer o rural para casa, de modo simbólico e funcional.
Segundo Luginbuhl (1991, p 30), esta forma ainda não consolidada de definir o
rural pode ser considerada “(...) uma vitória da sociedade urbana, impulsionada pelas
classes burguesas, sobre a sociedade agrícola e rural”. Na mesma linha, Picon (1992, p.
44) adverte:
(...) o crescimento econômico, o aumento do nível de vida, o surgimento da
sociedade de consumo, levam os membros das sociedades industrializadas a
conceber os espaços rurais como espaços naturais, especialmente aqueles que
escaparam à agricultura mecanizada e à urbanização, como objetos de
consumo, como fuga ao seu quadro de vida quotidiano. Esta procura diz
respeito a uma elite social e política primeiro e depois se estende às classes
médias urbanas.
46
Assim colocado, como ficariam as comunidades rurais e os compromissos para
melhorar as suas condições de vida? Qual o futuro do rural se ele ficar encapsulado em
fortes termos simbólicos, como localização florestal, como ecossistema preservado,
como fonte de água e ar puros para os urbanos consumirem, pergunta o autor.
Tentando encaminhar respostas à pergunta, penso que a perspectiva é de lutas
em torno do poder, da dôxa e da hegemonia. Considerando a diversidade de atores
competindo pela apropriação e definição do rural, há que se pensar este processo em um
cenário multifacetado onde a competição impera. Por exemplo, a ruralidade vivida pelos
habitantes do rural é diferente daquela experimentada pelos novos residentes de origem
urbana, resultando em um vasto campo de dissonâncias e de concordâncias. Da disputa
entre ruralidades, cristaliza-se um cenário competitivo entre os diferentes usos da
natureza, cada um deles orientando-se a partir de percepções e preferências
culturalmente orientadas.
Falar em ruralidades implica resgatar consonâncias e dissonâncias de múltiplas
dinâmicas sociais operando, no caso em estudo, em um espaço metropolizado. Implica,
por certo, acionar distintos atores com distintos modos de vivenciá-las. Neste contexto,
como orienta-nos Sastoque (2010, p.26) “mais do que meras abstrações simbólicas, as
ruralidades representam guias empíricas de ação”, protagonizadas pelos próprios atores,
os quais as criam e sustentam, tanto para pensar e projetar o campo como para tomar
decisões relativas ao desenvolvimento de âmbitos rurais específicos.
Assim, tornar operativas as ruralidades em disputa, isto é, convertê-las em
categorias instrumentais úteis para compreender as dinâmicas rurais na Região
Metropolitana de Belo Horizonte, direciona-nos a caracterizar algumas formas de
conceber e atuar sobre o rural neste território. Assim sendo, apresento abaixo três
categorias operativas que julgo relevantes. Enfatizo que elas não pretendem esgotar as
formas de pensar e vivenciar o rural na região, como dito anteriormente, mas, como
desejado, são uma justa medida de dinâmicas sociais ali em curso.
3. Ruralidade Instrumental
Concebo esta categoria como aquela incorporada por municípios, pequenas
mineradoras,
grandes
corporações
minerárias,
produtores
rurais,
instituições
governamentais de intervenção e planejamento, imobiliárias e empresas prestadoras de
47
serviços recreativos e turísticos, dentre outros. Nesta ruralidade, a natureza é entendida
como parte de todas as coisas economicamente utilizáveis, fundamento próprio da
modernização capitalista, submetida por olhares
econômicos,
estratégicos e
intervencionistas. Pessoas são recursos humanos. Montanhas e florestas são recursos
naturais. Vive-se a maldição dos recursos naturais. Quanto mais se tem, mais eles são
explorados. Nesta acepção, a natureza – mãe, berço e geradora de riqueza – embebida
de subjetividade sensível, passa à condição de natureza morta da objetividade
insensível, reduzida então a mero recurso produtivo, um capital a ser plenamente
empregado para proporcionar aumento da produção, da produtividade e da
rentabilidade. Esta categoria incorpora, quando necessário, equipamentos, tecnologias,
conhecimento científico, novos conceitos e valores para se viabilizar. Ou se reorganiza
nos territórios para garantir eficácia aos processos produtivos. Critérios econômicos
quantitativos (geração de empregos, renda, PIB etc.) e a racionalidade competitiva são
os argumentos comumente utilizados para legitimar sua estratégia de atuação, tendo por
possível slogan: “A vontade de poder lança o sujeito homem como dominador sobre o
mundo e sobre o próprio homem, sobre os fracos que não sabem se impor” (BRÜSEKE,
2004, p.9).
4. Ruralidade Hedonista
Esta ruralidade é acionada por entidades ambientalistas, aposentados e outros
novos habitantes do campo, visitantes ocasionais, turistas e prestadores de serviços
recreativos e turísticos, citando alguns. Estes atores vivenciam a ruralidade como
contraimagem do urbano, uma percepção do rural como um modo de vida alternativo e
ambientalmente “sustentável”, em que se busca o amparo e a proteção na natureza para
eliminar as agruras da vida na cidade ou metrópole. A busca por este refúgio pode ser
de forma permanente, migrando e estabelecendo moradia/exercendo atividades nãoagrícolas, ou de maneira mais fortuita, usufruindo as belezas, o ritmo e modo de vida
local, em oportunidades como finais de semana ou férias.
A ideia de viver no campo é envolta com uma aura de reconstituição daquilo
que foi perdido pela vida na cidade. Valorizam-se tradições culturais e os costumes da
vida local. Seus atores são guiados por valores comunitários e coletivos, tidos como
mais presentes no campo. De igual forma, em oposição ao agito da vida na cidade,
48
apostam na liberdade, tranquilidade, naturalidade e simplicidade, postas como sensações
típicas da experiência rural. O maior contato com a natureza, a possibilidade de produzir
parte de seus próprios alimentos, a oportunidade de viver em comunidade e em
ambiente considerado mais saudável, simples, calmo e agradável, fariam parte desse
novo e desejado lifestyle (como publicado nos panfletos das imobiliárias). Neste
contexto, a mentalidade orientadora dessa ruralidade a defende como espaço propício
para materializar ideias de bem-estar e mudanças positivas no modo de vida individual e
familiar, em contraste com o estilo de vida desagregador do meio urbano.
5. Ruralidade Amordaçada
Corresponde àquela ruralidade inerente às famílias habitantes do campo e das
periferias metropolitanas, caracterizadas por sua condição de vulnerabilidade
socioeconômica. Alguns grupos estão vinculados ao rural, tanto por ele ser seu espaço
cotidiano de vida quanto por ser seu meio básico de reprodução socioeconômica
(SASTOQUE, 2010). Outros aumentam as estatísticas dos grupos fragilizados nas
periferias da metrópole, habitando das chamadas cidades-dormitório. Essa ruralidade é
protagonizada, no campo, principalmente por famílias com capacidade econômica
reduzida, sem capacidade para ampliar ou mesmo manter suas áreas. Também dela
fazem parte os trabalhadores sem terra, lutando por continuar no campo com todas as
dificuldades ali enfrentadas, quais sejam, especulação imobiliária, rentismo, insegurança
alimentar e nutricional, precarização das condições de trabalho, poluição do solo e água,
educação e condições sanitárias inadequadas etc.
Nesta forma de ruralidade, essencialmente centrada no cotidiano dos “mais
vulneráveis do campo”, a vivência rural presentifica-se por uma permanente batalha
pela sobrevivência física e social, em meio a tantas condições adversas (SASTOQUE,
2010).
Estas categorias serão acionadas para desvelar algumas ruralidades na RMBH.
Porém, antes disso, nos dedicaremos a conhecer este território chamado Região
Metropolitana de Belo Horizonte. Sobre ele são as reflexões do próximo capítulo.
49
CAPÍTULO II
O TERRITÓRIO METROPOLITANO:
O INDUSTRIAL COMO ENREDO COLETIVO
NOVA LIMA CONTAGEM
RIO
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ESMER
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NOVA UNIÃO
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Figura 3: Montagem com nomes dos 34 municípios que compõem a RMBH.
50
1. As dinâmicas e heterogeneidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Do ponto de vista teórico, discutir região é percorrer um terreno cheio de
armadilhas e labirintos metodológicos (PAVIANI, 1992). Como destaca Lencioni
(2003) há tantas regiões possíveis quantos critérios usados para defini-las. Certamente
esta não é nossa janela analítica, brilhantemente escancarada nos estudos de tradição
geográfica. Mas, linhas gerais, refletir sobre uma região é sedimentar a ideia de espaços
sociais complexos em permanente interação e transformação. É pensá-la como uma
grande rede de circulação de elementos materiais e imateriais, que expressa
espacialmente uma singularidade dentro de uma totalidade com a qual se articula
(AMADO, 1990). Interpretar esta singularidade implica em buscar conhecimentos que
falam de história, geografia, política, economia, enfim, diversos tipos de saberes que,
em interação, ajudam-nos a compreendê-la – um grande e complexo portrait. E, como
dito, em articulação com uma totalidade, que, neste caso, remete-nos a uma epopeia
colonizadora e espoliante, fundamentada na desterritorialização de autóctones –
expulsos ou tornados cativos – e na conformação de um território sob o cariz lusitano. À
materialidade de um mundo físico, adornado por mares de morros ondulados,
vastíssimos e muitos sertões, grandes veredas, rochas geradoras de riquezas minerais e
paisagens diversificadas, encontramos novas e velhas gentes, economias, estruturas
administrativas, relações de poder, crenças, formas de pensar e de representar,
constituindo um território de identidades, uma totalidade representada como Minas
Gerais (FAGUNDES; PIUZANA, 2010).
O mineralogista Francês Claude Henrique Gorceix, fundador da Escola de
Minas de Ouro Preto, definiu o estado de Minas Gerais como aquele com o peito de aço
e o coração de ouro. Entre o peito e o coração, entre o aço e o ouro, na centralidade dos
586.522,122 km² que formam o Estado de Minas Gerais, deparamo-nos com um espaço
singular – nosso portrait – identificado como “Região Central de Minas Gerais”,
“Pedaço
do
Quadrilátero
Ferrífero26”,
“Terra
do
Minério
de
Ferro”
e,
institucionalmente, “Região Metropolitana de Belo Horizonte”. Esta identidade, a ela
foi atribuída pela Lei nº 14 de 8/6/1973, remete-nos ao significado etimológico do termo
26
O Quadrilátero Ferrífero, uma estrutura geológica cuja forma se assemelha a um quadrado, estende-se
entre a antiga capital de Minas Gerais, Ouro Preto a sudeste, e Belo Horizonte, a nova capital a noroeste.
Dos trinta municípios que dela fazem parte, 17 fazem parte da RMBH.
51
região – domínio e poder – pois lhe foi dada no governo militar, no contexto da política
nacional de desenvolvimento urbano, em sua estratégia de fomento à produção
industrial e à consolidação das metrópoles como lócus desse processo (MOURA;
DELGADO; DESCHAMPS; CARDOSO, 2003) 27.
Porém, antes mesmo da existência de um aparato institucional e jurídico para a
intervenção metropolitana – que veio a se sedimentar com o Plambel (Plano
Metropolitano de Belo Horizonte) – o governo estadual já intervinha na região dita
então Grande Belo Horizonte.
Voltando ainda mais no tempo, antes de ser Grande Belo Horizonte ou Região
Metropolitana de Belo Horizonte, este espaço foi o lar de Luzia, nome dado ao fóssil
humano mais antigo encontrado aqui na América. Séculos depois de Luzia, a região
tornou-se a casa dos Xacriabás, Puris, Pataxós, Panhames, Mocurins, Maxacalis,
Kamakãs, Coroados, Crenaques, Botocudos, Aaranãs e Au-auá-araxás, os quais,
dominados por processos civilizatórios, reconfiguraram seus valores e costumes
indígenas, enfim, suas vidas.
Com a descoberta das minas aluvionais, a região passou à história como a
Terra do Ouro, a concretização do mito de Sabarabuçu, a serra resplandecente dos
cronistas portugueses. Tornou-se também o lugar de outras etnias indígenas e,
especialmente, de portugueses, paulistas, baianos, e muitos outros imigrantes, enlaçados
em uma miscigenação ampla e entorpecidos pela possibilidade de possuir o metal que
jorrava das lendárias minas de Cataguás, Sabarabuçu, Caeté, Rio das Mortes, Itambé,
Itabira, Ouro Preto e de Ouro Branco, dentre as muitas minas reais e imaginadas. Uma
região forjada no contraste entre a pobreza dos despossuídos e o fausto do ouro, das
pedras preciosas e dos minérios; decantada pela vitalidade de sua natureza – água
abundante, minérios, sertões, montanhas e pelas dificuldades que ela pretensamente lhe
impôs – isolamento geográfico, dificuldade de comunicação; enaltecida por suas
iguarias, couve, tutu, queijos e cachaças.
27
Sob a égide do governo militar, na base desenvolvimentista de então, surgiram as nove primeiras
regiões metropolitanas brasileiras (São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife,
Fortaleza, Belém, em 1973, e Rio de Janeiro, em 1974). Até o início dos anos de 1990, ainda se
mantinham essas nove regiões metropolitanas iniciais, mas, a partir daí – por força da Constituição de
1988, delegando aos governos das unidades da federação a incumbência da criação de novas regiões
metropolitanas – houve um verdadeiro “boom” quantitativo das mesmas, em especial, depois de 1994
(BARRETO, 2012).
52
Ouro, natureza, comida, pessoas: referências de um espaço metropolitano a
alimentar mentes e corpos de todos os mineiros e, claro, o estômago, o cofre e o luxo
português em séculos passados.
Por certo, culturalmente, a RMBH (e suas cidades) oscila entre três formas de
reconhecimento, sendo referenciada como a “terra do ouro e dos minérios”, pela
proximidade com a “capital planejada e industrial” ou ainda pela geografia das
“montanhas”, formas essas que podem aparecer de forma combinada:
“Nossa cidade é linda em natureza. Nossa indústria é o verde. E estamos tão
pertinho da capital” (V. A., professora em Brumadinho);
“Estamos colados com Belo Horizonte” (M.A., bancário em Nova Lima);
“Lá em Sabará têm muitas lembranças do ciclo do ouro. Muita coisa daquela
época mantemos: casas, igrejas, ruas, calçamentos, chafariz. Quando tinha o
ouro ali era o centro do mundo” (J.R.,comerciante, Sabará).
“Você já foi em Caeté? Se quiser entender a região tem que ir até lá. Muita
coisa bonita do tempo do ouro, dos escravos. Um tempo que tá na memória
da região. Muita gente vem de longe pra ver” (J.G.,funcionário público,
Caeté).
“Raramente saímos daqui. Quando precisamos de alguma coisa diferente é só
ir pra BH. Nova União não é longe da capital, não” (M.B., produtor rural,
Nova União).
“Rio Acima é a princesinha dos minerais. Caminhar pelas suas ruas e
estradas é sentir a história. É reviver o tempo que a região respirava ouro” (N.
V., dona de pousada, Rio Acima).
“Nova Lima é a cidade das montanhas de Minas. Nossas raízes estão
cravadas nas montanhas e na extração mineral” (J.P., estudante, morador de
Nova Lima).
“Viver aqui não é qualquer coisa não. Acima de nós, o céu. Abaixo dele,
essas montanhas” (A.M., moradora de condomínio Brumadinho).
“Ser mineiro é estar aqui nessa região, sentir-se em casa, é prosear em frases
curtas, tão curtas que algumas letras some na pronunce, ser mineiro é ficar
quetin escutano um joguim e ter BH como capitá” (J.S., bancário, Belo
Horizonte).
Retornando ao metropolitano institucionalizado, em 1973, apenas catorze
municípios dele faziam parte. Depois, em 1989, mais seis foram incorporados. Daí em
diante, em cinco momentos distintos, chegamos aos atuais trinta e quatro, distribuídos
em quase 8.900 km2 de área, visualizáveis no mapa abaixo, Figura 4.
53
Figura 4: Mapa político-administrativo da Região Metropolitana de Belo Horizonte. No detalhe, a
localização da RMBH no mapa do Estado. Fonte: IBGE, 2007.
54
Esta integração negociada é objeto de muitas críticas, tendo por alvo a
incorporação do não-metropolitano naquilo que é tido como metropolitano:
A especificidade do metropolitano decorre do fato de os elementos do espaço
(meio ecológico, infraestruturas, sujeitos sociais) guardarem uma
interdependência estreita, sistemática e cotidiana, manifesta de forma
concentrada em uma determinada fração do território que se encontra
fragmentado pela divisão político-administrativa vigente (LOPES, 2006,
p.139).
Usando tais referências, são comuns as declarações restringindo o fenômeno
metropolitano aos municípios de Belo Horizonte, Betim, Contagem; assim apenas estes
seriam extensões da metrópole. Este laço visceral é exposto nas informações
econômicas – os três primeiros respondem juntos por 35,21% de todo o produto interno
bruto de Minas Gerais (86,43% da RMBH).
Mas esta “pujança econômica” tem facetas, para além do indicador
macroeconômico, que se irradiam para muitos municípios. Ribeirão das Neves, por
exemplo, está, estatisticamente, muito aquém do “círculo metropolitano de riqueza”
metropolitano, mas funciona como cidade-dormitório para que ele possa acontecer. Ele
e mais sete municípios são responsáveis por 94% do total do movimento pendular diário
dos atuais 33 municípios metropolitanos com destino a Belo Horizonte. Jaboticatubas,
mais distante ainda deste índice econômico, passa por processo de intensa especulação
imobiliária em face das dinâmicas metropolitanas, com a população de alta renda
buscando refúgio para as agruras causadas pelas hegemonias econômicas,
concentradoras e desiguais.
Usando os exemplos citados, penso que existem ligações intensas – em maior
ou menor grau – entre os municípios que compõem a RMBH. Elas nos remetem a
histórias, biodiversidade, expansão do capitalismo industrial, imobiliário e de serviços,
ao estreitamento das relações cotidianas entre os diversos lugares, às trocas econômicas,
geralmente desiguais, e principalmente, a um mito de origem comum. Neste sentido,
penso que a complexidade é que peculiariza o metropolitano, abarcando muito mais do
que os três ou cinco municípios citados pelos estudos urbanísticos. Nesse sentido, como
enfatiza Lencioni (2004, p.85):
(...) pensar a metrópole, a região metropolitana ou o entorno metropolitano é
pensar uma região. Mesmo examinando apenas a metrópole, o espectro da
região aparece, porque ela em si não é mais uma cidade isolada, mas uma
cidade-região. Uma cidade-região que não se definiu por um planejamento,
mas uma cidade que assim se definiu por um processo, por uma lógica
55
histórica que desafia a compreensão de sua dinâmica e, até mesmo, o
planejamento urbano.
Para compreender a RMBH, sua “mineiridade” – suposta identidade cultural
mineira (ARRUDA, 1999; DULCI, 1999; ROCHA, 2003) e suas “mineirices” –
expressões da identidade regional (ARRUDA, 1999), é necessário conhecer as
encruzilhadas e os (des)caminhos de Minas Gerais, o que nos leva, invariavelmente, aos
fins do século XVII e início do século XVIII. Isto porque quase todos os municípios da
região tiveram suas povoações originárias vinculadas a este período e à atividade
mineradora, seja pela prática dessa atividade em seu próprio território – caso de Nova
Lima e Sabará, seja pela produção de gêneros alimentícios para abastecimento das áreas
de mineração – como em Raposos e Ibirité. Mas, precisamos também analisar a virada
do século XIX para o século XX, período de constituição da nova capital mineira, polo
centralizador da região.
Fazendo o primeiro movimento, verificamos que quanto mais complicados e
custosos os processos de extração do metal, mais se sedentarizavam os mineradores.
Nesta labuta, era fundamental o estabelecimento de arraiais de caráter permanente, que
alternavam (ou combinavam) a exploração minerária e a produção agrícola para
abastecimento alimentar. Desde cedo o povo aprendeu “que ouro não se come, por isso
é preciso fazer o que comer”.
Os arredores dos povoados e vilas eram “invadidos” por “fazendas, geralmente
estabelecidas nas áreas de colinas arredondadas que separam os maciços azuis das
montanhas uns dos outros” (TORRES, 2011, p.173). A presença das fazendas ao redor
das povoações “veio trazer uma nova contribuição para a cultura nascida entre o homem
e a montanha: a presença muito próxima do campo”, de forma que, do ponto de vista
social, os limites entre um e outro, entre as vilas e fazendas, eram absolutamente
incertos e sem sentido. Desde cedo o povo mineiro também vivenciou a coexistência
entre campo e cidade, entre fazenda e arraial, como podemos acompanhar nas
descrições do Quadro 1.
Dos 34 municípios hoje pertencentes à região, vinte tiveram origens
relacionadas à produção ou comercialização de produtos agropecuários. Dos catorze
restantes, sete eram povoados exclusivamente mineradores e os demais tinham dupla
atividade, produzindo alimentos, mas também extraindo ouro. Com o fim do ouro,
muitos migraram a produção agrícola ou passaram a explorar outros minerais.
56
Quadro 1: Municípios que compõem a Grande Belo Horizonte (RMBH): movimentos
originários e base econômica atual. (Continua).
Município
Belo Horizonte
Baldim
Betim
Brumadinho
Caeté
Capim Branco
Origem
Inaugurado em 1897, oito anos após a Proclamação da República, quando, em
oposição ao modelo monarquista, se consolidavam novos interesses políticos e
econômicos no País. A cidade foi erigida nas terras do antigo Arraial do Curral D'
El Rey, com muitas fazendas produzindo viveres para atender as áreas de
mineração. O projeto que a motivou acalantava o desejo de produzir uma cidade
capaz de polarizar a economia mineira, por meio da industrialização, que fosse a
síntese de um novo tempo, regido pelas premissas de modernidade e
racionalidade. As décadas de 20, 30 e 40 representaram um dos períodos áureos
da industrialização da RMBH, especialmente pela expansão do setor siderúrgico e
de mercados e serviços. Hoje a cidade tem o quinto maior PIB entre os
municípios brasileiros, gerado pelo comércio, a prestação de serviços e setores de
tecnologia de ponta.
O município tem o nome em homenagem à Serra do Baldim. Desde seus
primórdios, seus habitantes dedicavam-se à agricultura e à criação de gado, em
meio à exploração aurífera. Ainda hoje, encontram-se resquícios da busca de ouro
nas terras das fazendas Chácara, Patrimônio e Gameleira da Palma. Baldim tem se
destacado na produção industrial de doces e aves. Destaca-se na produção de cana
de açúcar, milho, manga, tomate, limão, pepino, quiabo e feijão.
A história de Betim remonta ao século XVIII, quando o Brasil, ainda colônia de
Portugal, vivia o auge do seu ciclo do ouro. A região fazia parte de uma
importante rota de bandeirantes provenientes de São Paulo indo para Pitangui e,
nesta rota, surge o povoado como resultado das passagens e paradas de tropeiros.
Ali principiou uma agricultura vigorosa, que se irradiou pelas áreas
circunvizinhas. Um marco para o já município foi a instalação das primeiras
indústrias de Betim, na década de 1940. Na década de 1950, o planejamento
estadual forjou para Betim duas outras funções econômicas: a industrialização de
base, representada pelas siderúrgicas, e a produção de alimentos para o
abastecimento local.
As brumas frequentes contornando as montanhas do Vale do Rio Paraopeba
inspiraram os bandeirantes a nominar o povoado especializado na
comercialização e produção agrícola para abastecimento dos núcleos minerários.
Muito depois, com a construção da Ferrovia Central do Brasil para transportar o
minério de ferro da região, o povoado foi crescendo, sendo hoje um dos principais
núcleos industriais da região. No município foi instalado o Centro de Arte
Contemporânea Inhotim, um complexo museológico e botânico, com uma das
maiores coleções de arte a céu aberto.
A cidade de Caeté tem sua origem no início do ciclo do ouro. Em meados do
século XVII, surgiram em Minas Gerais os primeiros grupos de aventureiros que
vinham do litoral em busca de ouro, prata e pedras preciosas. Caeté, que em tupiguarani significa mato virgem ou mato denso, foi palco da Guerra dos Emboabas,
conflito pelo controle da exploração das áreas auríferas recém-descobertas,
travado entre paulistas e emboabas (denominação dada aos portugueses,
nordestinos e outros migrantes). Caeté tem hoje sua economia baseada na
economia de serviços, no setor agropecuário e no turismo.
O nome do povoado foi dado pelos tropeiros que vinham e iam para Diamantina e
aqui paravam para descansar às margens do Ribeirão da Mata, onde existia uma
grande quantidade de capim da cor branca. A fertilidade das terras atraiu novos
moradores, desenvolvendo-se o povoado que tem, hoje, como base econômica a
agricultura, pecuária e indústria manufatureira e fabril.
57
Quadro 1. Continuação.
Município
Confins
Contagem
Esmeraldas
Florestal
Ibirité
Igarapé
Itaguara
Origem
A história de Confins se confunde com a do município vizinho Lagoa Santa.
Ambos abrigam lagoas e grutas que foram, a partir de 1835, objetos de pesquisa
do renomado paleontólogo Peter Lund, famoso pela teoria sobre as origens da
raça humana na América do Sul. A cidade recebeu o nome de Confins devido à
sua localização extrema. Ela se encontrava, no período áureo da mineração, nos
limites das fazendas instaladas em toda a região. Sua economia tem um elevado
peso dos serviços na formação do PIB.
A história de Contagem se divide em três grandes momentos. O marco inicial foi
a instalação de um posto de fiscalização para fazer a contagem do gado que vinha
da região do Rio São Francisco em direção à região das minas (Ouro Preto e
Mariana). Quando a capital foi transferida para Belo Horizonte, impulsionou seu
crescimento. Em 1941 a instalação da Cidade Industrial moldou as feições que o
município assumiu nos anos seguintes.
Sua história começa no século XVII, quando o bandeirante Fernão Dias Paes
Leme acalentava seu grande sonho: descobrir pedras preciosas. Esmeraldas surgiu
às margens do caminho que ligava Pitangui a Sabará, mediante doação de terreno
para construção de uma capela. Como no período minerador, sua principal
atividade econômica é a pecuária leiteira, hoje acrescida da produção de
hortigranjeiros.
O capitão-do-mato Salles, caçador de escravos, foi o fundador do povoado, ao
aparecer na região por volta de 1845, à procura de escravos fugitivos de fazendas
do estado. No século XVII, era intensa na região de Florestal a movimentação das
bandeiras paulistas em direção às minas de Pitangui. À procura de metais, os
bandeirantes abriam caminhos e fundavam povoados, como Florestal, nome que
lhe foi dado por causa das florestas virgens que existiam ao seu redor. Sua
atividade econômica predominante era a produção de gêneros alimentícios para
abastecimento das minas.
O povoamento da área correspondente ao município de Ibirité remonta aos
séculos XVII e XVIII, com as primeiras entradas e bandeiras nas áreas centrais da
capitania das Minas Gerais. O povoado especializou-se na produção de víveres,
surgindo fazendas especializadas no cultivo de gêneros alimentícios e criação de
gado. A inauguração da Estrada de Ferro Central do Brasil e da estrada ligando
Belo Horizonte ao sul de Minas e a São Paulo promoveu o escoamento de sua
produção e o crescimento do município. Sua bacia hidrográfica abaste com água
potável parte da região metropolitana.
Igarapé surgiu com a Bandeira de Fernão Dias e Borba Gato em 1710.
A cidade teve sua ocupação iniciada com o garimpo de ouro no distrito de São
Joaquim de Bicas. Por ser um lugar de solo muito fértil e água em abundância,
sua economia desde sempre teve um caráter agrícola, destacando-se a criação de
gado de corte e leite, peixes, aves, abelhas, flores e hortaliças. Também é polo de
atividades industriais.
Antes da chegada do bandeirante Lourenço Castanho Tanques, em 1675, ali
viviam os índios Cataguás, dizimados com a descoberta do ouro. Com o declínio
ouro, Itaguara passou à atividade pecuária.
58
Quadro 1. Continuação.
Município
Itatiaiuçu
Jaboticatubas
Juatuba
Lagoa Santa
Mário Campos
Mateus Leme
Matozinhos
Origem
Segundo consta, quem primeiro povoou as imediações de Itatiaiuçu foi Manoel de
Borba Gato, antes de 1710, tendo por referência a Serra de mesmo nome. Ali
foram descobertos ricos veios de ouro. Em 1750, a mineração atingiu o auge e o
movimento dos escravos e faiscadores lançados às águas do Ribeirão Veloso era
uma cena impressionante. Atualmente, a base econômica do município são as
atividades industriais e a fruticultura.
A história de Jaboticatubas tem origem nas sesmarias de terras de um antigo
convento. Com o passar do tempo foram surgindo numerosos núcleos de
população em torno dele, ali cultivando vários produtos. Hoje o setor agrícola
continua dominando o cenário produtivo. Os principais produtos são cana-deaçúcar, milho, banana, laranja, abacaxi, tomate e mandioca e a pecuária. Vem se
tornando um município de forte atração turística e de residências de fins de
semana.
O povoamento de Juatuba iniciou-se em torno da estação ferroviária da antiga
Rede Mineira de Viação. Este primeiro registro de habitação da região vincula-se
ao ciclo do ouro. No percurso destas bandeiras, em busca de um ponto de
referência, os bandeirantes passavam por Juatuba que oferecia todas as condições
para hospedagem. O nome é de origem indígena – Ayú á – vem do Juá (fruta
colhida dos espinhos) e Tuba, o Sítio dos Juás. Suas principais fontes de renda são
a agropecuária, incluindo o cultivo de eucalipto, café e criação de gado; e a
produção industrial.
Lagoa Santa foi fundada por Felipe Rodrigues em 1713. Estabelecendo-se na
região chamada Sabarabussu, ergueu o primeiro engenho para beneficiamento de
cana-de-açúcar. Reza a lenda que o desbravador foi acometido por uma doença,
causadora de feridas generalizadas. Banhando-se diariamente nas águas de uma
lagoa, elas cicatrizaram milagrosamente. Ainda hoje as pessoas vêm em busca de
cura de seus males nas águas da lagoa. O município depende da produção agrícola
e de algumas atividades industriais.
Por volta de 1911 a 1918, iniciou-se a construção da Estrada de Ferro Central do
Brasil. Nesta época, aconteceram as primeiras desapropriações para dar passagem
ao “progresso”, com a inauguração da estação ferroviária do Jacaré. Em torno
dela surge o povoado do Jacaré, depois, Mário Campos. O município
especializou-se na produção de hortaliças folhosas para abastecer a capital.
Também é considerada cidade-dormitório.
O nome do município homenageia o bandeirante paulista que fundou o povoado.
Desde o princípio se especializou na produção agropecuária, cultivando
principalmente café, arroz, feijão, milho, flores, além da pecuária leiteira. Hoje é
o maior fornecedor de hortifrutigranjeiros para a capital mineira. Tem na
produção industrial sua principal fonte de renda.
O povoado foi fundado pelo bandeirante Dom Rodrigo de Castelo Branco. Após
sua morte, seus companheiros ali fixaram residência, apossando-se das terras ao
redor de onde se encontravam. Há vestígios comprovantes de que toda a região
fora anteriormente habitada por indígenas. A inauguração da Estrada de Ferro
Central do Brasil, em 1895, trouxe consigo a primeira fábrica de tecidos de lã em
Minas gerais, em 1908, na localidade denominada Periperi. Hoje a atividade
econômica divide-se entre indústria mecânica, mineração e alguns poucos
estabelecimentos agropecuários tecnificados.
59
Quadro 1. Continuação.
Município
Nova Lima
Nova União
Pedro Leopoldo
Raposos
Ribeirão das
Neves
Rio Acima
Rio Manso
Sabará
São Joaquim de
Bicas
Origem
Sua história está vinculada à descoberta e extração do ouro. Diversas minas, ainda
ativas, ficam no município, incluindo as minas de Morro Velho, Mostardas, e Rio
de Peixe. É a cidade com o maior PIB de ouro no Brasil, seno da Global Value
Soluções, empresa do grupo IBM, e da Fiat do Brasil.
O povoado surgiu como ponto de comércio dos viajantes. A população cresceu e
em 24 de janeiro de 1714, foi criada a Vila Nova da Rainha de Caeté, que
compreendia em seus limites, entre outros, o distrito da atual Nova União. O
município foi emancipado em 1962, desmembrando-se de Caeté. Tem na
fruticultura sua base econômica.
A história da região de Pedro Leopoldo iniciou muito antes da chegada dos
bandeirantes paulistas à região, pois ali se já se criava gado e se produzia feijão,
milho e cana. Em 1895, ao ser inaugurada a Estação Ferroviária da Central do
Brasil, os produtos do município passaram a ser escoados com maior facilidade.
Até meados de 1950, a economia do município baseava-se exclusivamente na
agricultura e na pecuária, e uma industrialização têxtil incipiente, substituída
posteriormente pela exploração das rochas calcárias.
O município de Raposos, um dos primeiros povoados de Minas Gerais, foi
fundado em 1690 pelo bandeirante Pedro de Morais Raposo. O povoado foi
crescendo com a instalação de engenhos, monjolos para a fabricação da farinha de
mandioca e com as plantações de feijão, arroz, milho e cana-de-açúcar, além do
ouro. Com o passar dos tempos, o ouro foi ficando mais difícil de ser garimpado.
Entra em cena a Mineradora Morro Velho, ali atuando há mais de 150 anos.
Teve o seu povoamento iniciado em meados do século XVIII, mas seu
crescimento somente tomou impulso após a implantação, em suas terras, da
Penitenciária Agrícola de Neves, em 1938. Recentemente, seu crescimento
atrelou-se à expansão da capital mineira. É conhecida como cidade-dormitório.
Por volta de 1736 surgiu o povoado de Santo Antônio de Rio Acima, às margens
do Rio das Velhas. A localidade foi descoberta por bandeirantes que desbravavam
o interior das Minas Gerais a procura de ouro. Suas 84 cachoeiras fazem com que
a cidade seja a grande caixa d’água da região metropolitana. É a única cidade
mineira com 100% do território localizado dentro da Área de Proteção Ambiental
Sul. O turismo é importante fonte de renda.
Sua origem está relacionada à ocupação inicial de Minas Gerais, com a vinda dos
bandeirantes, entre os séculos XVII e XVIII. O nome do município homenageia
o rio que o corta no sentido sul/norte. A base econômica do município é agrícola.
Denominado inicialmente Arraial de Santo Antônio do Bom Retiro da Roça
Grande, foi fundado por Borba Gato. Alguns historiadores destacam que, antes da
chegada de Borba Gato, os baianos já ocupavam os sertões de Sabará, com roças
e gado. O nome “Sabará” deriva do tupi itá'berab'uçú (pedra grande brilhante),
que designava a mítica “serra das esmeraldas” procurada pelos bandeirantes.
Atualmente a economia de Sabará baseia-se na indústria siderúrgica e no
extrativismo mineral – minério de ferro e ouro, feito pela Companhia Siderúrgica
Belgo Mineira. O turismo é outra importante fonte de renda.
Foi seguindo o curso do Rio Paraopeba que chegaram a São Joaquim os
bandeirantes Manuel Borba Gato e Francisco Duarte Meireles. As terras próximas
ao Rio Paraopeba eram férteis e próprias para a prática agrícola e a criação de
gado, atividades que dominam o cenário econômico até hoje.
60
Quadro 1. Continuação
Município
São José da Lapa
Origem
A origem do município de São José da Lapa está ligada à história de Vespasiano
que o tinha como distrito até a década de noventa. No final dos anos 40,
instalaram-se ali a Indústria de Calcinação (ICAL) e a Cia. de Cimento Itaú. O
setor produtivo do município baseia-se na extração mineral para a produção de cal
e cimento.
Santa Luzia
Sua história começa em 1692, com o ciclo do ouro. Com o fim de sua exploração,
o povoado tornou-se um importante centro comercial e agropecuário, ponto de
parada dos tropeiros que vinham negociar e comprar mercadorias. Durante o
período de industrialização mineira, foi escolhida para sediar um distrito
industrial, base de sua receita econômica.
Sarzedo
Fundado no século XIX, com a implantação da Estrada de Ferro Central do
Brasil. As terras do atual município ficaram à margem do processo de ocupação e
urbanização que caracterizou as regiões auríferas de Minas Gerais. Sua economia
é agrícola, destacando-se na produção de hortigranjeiros que abastecem
parcialmente a cidade e também outras regiões.
Taquaraçu de
Minas
Espraiado no sopé da Serra da Piedade, o município guarda ainda o aspecto
colonial das cidades do ciclo do ouro. Muitas foram as fazendas ali instaladas por
coronéis, aproveitando a topografia e fertilidade do vale onde está assentado.
Desde sua origem, é um município de base agropecuária, produzindo milho, canade-açúcar, arroz e feijão e banana, além da pecuária leiteria e produção de queijo.
Vespasiano
O primeiro núcleo habitacional do município surgiu por volta de 1745 com a
chegada dos primeiros mineradores em busca de riquezas. Ao redor do Arraial,
estabeleceram-se várias fazendas agropecuárias: Fazenda Maçaricos, Angicos,
Barreiro, Varginha. Nelas se cultivava cana-de-açúcar, milho, feijão e se criava
gado. Mais tarde, desenvolveu-se a indústria de cal. A partir de 1970, seu
crescimento atrelou-se ao da capital.
Fontes: Associação dos municípios da RMBH (GRANBEL, 2014) e Sites das Prefeituras Municipais,
2013-2014.
Godoy (2009) defende que a produção e a circulação dos principais recursos
minerais à época favoreceram a prática de atividades voltadas para o abastecimento das
minas, como a pecuária e a agricultura de subsistência, sendo esta articulação a primeira
experiência de integração produtiva na América portuguesa. Ao mesmo tempo em que o
produto colonial ouro saía do núcleo minerador para o mercado externo, outros produtos
para ali eram direcionados, advindos da produção local ou da articulação com outros
pontos da Colônia – caso das tropas de muares do extremo Sul, do gado bovino do Sul e
do Nordeste – fazendo de Minas Gerais o principal polo do mercado interno. Neste
sentido, a economia do ouro e pedras preciosas possibilitou tanto o povoamento e a
colonização quanto o crescimento de uma ocupação produtiva diversificada na RMBH.
Apesar da inegável articulação entre produção agrária e produção/
mercantilização do ouro, a percepção hegemônica construiu um território mineiro
61
exclusivamente minerador. Tal fato, ainda que real nas Vilas de Ouro Preto, Sabará,
Caeté e Mariana, assim como na Demarcação Diamantina, não o era em outras vilas e
freguesias, nas quais os sítios e as fazendas determinavam as pulsações da vida,
concentrando a maior parte da população (CARRARA, 2004; 1999). Libby e Paiva
(2002, p.3) esclarecem que, no território mineiro, as amarras do sistema colonial não
foram capazes de impedir o desenvolvimento de setores produtivos voltados ao mercado
interno, de forma que “(...) trabalhando em silêncio e ainda dependente do braço
escravo, Minas tornou-se o grande celeiro do mercado sudeste brasileiro”.
Mas ser celeiro não parecia suficiente para o olhar historiográfico tradicional
(ANTONIL, 1997; VASCONCELLOS, 1968). Segundo Furtado (2009) o par
“frustração com a agricultura/encantamento com a mineração” aparece no pensamento
econômico brasileiro, principalmente entre aqueles que acreditam na “vocação
exportadora” da economia brasileira. Nessa ótica, o extrativismo minerador é visto
positivamente, por ter possibilitado o “fausto” da sociedade mineira, uma relativa
democratização do acesso à riqueza (aparente) e a expansão da vida urbana. Nestes
termos, a perda de dinamismo da exploração aurífera significou, para muitos, a entrada
de Minas Gerais na “idade de trevas” (FURTADO, 2009, p.117). Em suas palavras:
Não se havendo criado nas regiões mineiras formas permanentes de
atividades econômicas – à exceção de alguma agricultura de subsistência –,
era natural que, com o declínio da produção de ouro, viesse a rápida e geral
decadência. (...) Todo sistema se ia assim atrofiando, perdendo vitalidade,
para finalmente desagregar-se numa economia de subsistência (FURTADO,
2009, p. 132).
Este desprezo, a meu ver, reflete a lógica mercantil dominante, onde as práticas
produtivas não condizentes com a construção de impérios alimentares (PLOEG, 2008)
são desconstruídas. A desagregação da economia do ouro promoveu uma reestruturação
produtiva nos municípios da atual região metropolitana, consolidando a economia
mercantil voltada ao mercado interno28, o que desmistifica a ideia tradicional de
absoluta pauperização da zona áureo-diamantífera. Como explicita Martins (2001, p.
58), ao invés de falar em “involução” ou “estagnação” econômica, de se aceitar
apressadamente “o modelo proverbial do boom and bust”, é mais coerente pensar em
termos de um processo gradual de rearticulação interna e de contínua diversificação
28
Certamente que determinadas localidades mineiras se inseriram na lógica monocultora exportadora,
primeiro, o sul mineiro com a cafeicultura, depois as regiões do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba,
tradicionalmente vinculadas ao mercado paulista, para o qual exportam, principalmente, carne bovina e
grãos.
62
produtiva, em que as lavouras de mantimentos e a pequena criação garantiram níveis de
rendimentos que permitiram um avanço da fronteira agrícola (CARRARA, 2000).
Minas Gerais vive então um movimento de descentralização econômica e de
desconcentração espacial e demográfica, tornando-se um verdadeiro mosaico
econômico-político. A pulverização das atividades econômicas propicia o aparecimento
de áreas de produção bem demarcadas, assim como a formação de vários grupos
oligárquicos, disputando o controle político da capitania, da província e, depois, do
Estado. Nesta perspectiva, não se constitui um centro integrador do território mineiro,
papel exercido pela região mineradora, pois cada uma das distintas áreas tem seu
próprio polo de ligação, as “forças centrífugas” que reforçariam o “dilaceramento da
província” (SINGER apud PAULA, M., 1976, p. 77). Fora das Minas, caso da Zona da
Mata (vinculada à área cafeicultora e ao porto do Rio de Janeiro); em São Paulo,
situação do Sul de Minas e Triângulo Mineiro, extensões da cafeicultura paulista,
escoando a produção pelo Porto de Santos. Algumas regiões se mantinham isoladas. Por
sua vez, o Centro-Sul do território, mais densamente povoado, se especializa na
produção de alimentos e outros itens da “agricultura mercantil de subsistência” (LIBBY,
1988, p. 49).
A consolidação do mosaico mineiro (WIRTH, 1985) vem nos dizer que o
processo civilizatório mineiro não se restringe ao ouro e à RMBH, como aponta Godoy
(2009, p. 92). Seria um “anacronismo histórico considerar Minas Gerais como uma
entidade homogênea sob qualquer aspecto que se considere”. Portanto, o palco da vida
mineira sustenta muitos cenários, e não apenas “os vales sombrios rodeados por altas
montanhas” (TORRES, 1944, p. 26). Sobre isso já escrevera Guimarães Rosa no seu
Grande Sertão: Veredas, revelando-nos o sertanejo, seu ambiente natural, falas e
costumes. Os chapadões, os vales, os rios que atravessam os Gerais – especialmente o
Velho Chico – o território dos jagunços e dos coronéis, o gado, a amplidão dos campos,
a aridez do cerrado, enfim, tudo aquilo que se relaciona ao sertão-mundo mineiro –
cidades, relevo, fauna, flora e gentes – compõe as Gerais. Isso considerado, concluímos
pela coexistência de muitas Minas e de muitos Gerais.
As muitas minas e gerais expõem a ausência de um centro integrador que
promova o investimento do capital proveniente da produção mineira no próprio estado.
É neste contexto que toma impulso um projeto modernizante, promovido pelas elites
políticas nacionais, com apoio firme das elites mineiras, dando forma e conteúdo a um
processo de industrialização sustentado na exploração intensiva da Natureza – pessoas,
63
minérios, florestas, solos e rios. Neste momento, a RMBH prepara-se para voltar ao
centro do palco revivendo, em outra dinâmica, a mística do ouro. O discurso a embalar
o projeto tem como pressuposto dar outro rumo à região, industrializando-a para que
renasça “(...) dos escombros da economia do ouro” (DINIZ, 1981 apud MONTE-MÓR,
1994, p. 15).
2. A vocação industrial da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
No início do século XIX, a província mineira e sua região central, há pouco
tidas como pujante e dinâmica, passaram a ser vistas pela elite política, agrária,
industrial e intelectual do estado como terra da tradição e do atraso. Segundo Dulci
(1999), aliada às lembranças dos tempos áureos da mineração, é diante da disparidade
da economia mineira em relação à paulista que se diagnostica essa posição de
inferioridade, trazendo para agenda política estadual a discussão em torno da
“recuperação econômica” (PAULA, 2006). Os motivos elencados para tal diferenciação
entre Minas Gerais e São Paulo incluem as relações de produção não assalariadas (em
Minas, o que travava a formação de um mercado consumidor), baixa entrada de
imigrantes e o tipo de economia ensejada (grosso modo, exportadora, no caso paulista e
voltada ao mercado interno, em Minas), impedindo o fortalecimento do capital. Em
Minas Gerais não havia grandes usinas, mas, humilhação maior na comparação com São
Paulo, não havia indústrias nem tampouco grandes centros urbano-industriais. Neste
contexto, a expressão indústria era usada pelos mineiros de forma estrita, qual seja, no
sentido da existência de formas de produção fabril e fordista, desconsiderando, pois, a
produção artesanal doméstica, corporativa e manufatureira como atividades industriais.
Mesmo com a multiplicidade de interesses econômicos e políticos envolvidos,
pactuou-se que o Estado deveria assumir o protagonismo para promover a
modernização de Minas Gerais, o que não chega a surpreender, considerando a presença
de longo prazo de um aparato estatal forte, moldado no controle e fiscalização do
espaço minerador. Usando como argumentos a “prudência”, “conciliação”, “equilíbrio”
e “unidade de Minas” (BOMENY, 1994, p.16) – qualidades postas ao mito da
mineiridade, já se esboçava como o setor público deveria agir no processo.
Em um cenário de disputas político-econômicas entre as elites mineiras, onde
reverberam tendências separatistas, ganha força a ideia da constituição de uma nova
64
capital, afinada com os novos tempos republicanos, e, principalmente, calcada em uma
perspectiva industrializante (PARREIRAS, 2006). Planeja-se então erigir uma nova
capital para que assuma a centralidade da economia e da política, unindo Minas Gerais
para, enfim, recolocar o estado na “trilha do progresso”.
Porém, o sentimento que vai aflorando entre os mineiros não era apenas ter
uma nova capital, mas sim romper a “dependência neocolonial” mineira (OLIVEIRA,
1995; WIRTH, 1982), a qual lhe reservava o papel de provedor de matérias-primas e de
produtos agropecuários para as regiões de industrialização mais dinâmica, reproduzindo
localmente as relações centro-periferia de escala mundial. É com este sentimento que se
planeja e constrói Belo Horizonte, como veremos no capítulo III. Em termos concretos,
este foi o primeiro esforço expressivo para integrar as diversas regiões mineiras.
As primeiras indústrias que ali se estabelecem são diversas pequenas empresas,
que iam da produção de cerâmica às bebidas e cartões postais, do processamento de
fumos à fabricação de balas e bombons. Em linhas gerais, tinham três características:
produção voltada para o mercado local; matérias primas provenientes do setor primário,
e baixo grau de mecanização, estando, portanto mais próximas da manufatura do que
propriamente da indústria desejada pelas elites mineiras. Algumas propagandas
publicadas na Revista Agrícola, Industrial e Comercial Mineira, em 1924, Revista
Comercial de Minas Gerais, em 1939, e no Anuário Comercial e Industrial de Minas
Gerais, em 1946, ilustram o perfil daquelas empresas (Figura 5).
O desejo de erigir um centro industrial agregador e promotor do
desenvolvimento demoraria a se concretizar. Isto porque faltava infraestrutura viária na
região; faltava energia elétrica; faltavam moradias para os que construíram a nova
cidade; faltava espaço; faltava mão de obra qualificada, faltava a modernidade ensejada
pela presença das indústrias, enfim, muita coisa ainda faltava, apesar de todo o esforço
estatal para organizar um mundo do trabalho no sentido industrial. E, especialmente,
“(...) faltavam operários e máquina em condições suficientes para produzirem aos
moradores destas terras a condição para, enfim, reconhecerem-se modernos” (PAULA,
1994, p. 34).
65
Figura 5: Propagandas de algumas indústrias instaladas em Belo Horizonte entre 1920, 1930 e 1940.
Fonte: (PAULA; MONTE-MÓR, 2004).
Somente em 1920, com a instalação da Companhia Siderúrgica Belgo Mineira,
o sonho mineiro de ser uma capital industrial iria avançar. Porém, por muito pouco
tempo. Já na década de 1940 ocorre o movimento de transferência de indústrias da área
urbana de Belo Horizonte para os municípios vizinhos, em busca de espaços adequados
para a expansão de suas instalações. A criação dos polos industriais no entorno de Belo
Horizonte torna-se imprescindível para superar os limites da pequena área periférica da
cidade destinada à industrialização, contradição no mínimo desconcertante para uma
cidade criada com o objetivo de ser um portentoso centro industrial (PARREIRAS,
2006). Mas, é pertinente dizer que a concretização de tais polos deu fôlego ao projeto
industrializante mineiro, fazendo finalmente a RMBH inserir-se na produção industrial
ao estilo fordista, com um parque industrial justaposto à capital administrativa. Esta
onda de industrialização concentra-se no setor de bens intermediários (principalmente
aços e cimento), que se tornam os mais importantes da produção industrial do estado,
em substituição aos tradicionais têxteis e agroindustriais.
Para facilitar o acesso àqueles polos industriais, são construídos grandes eixos
viários ligando a capital aos municípios vizinhos. Os investimentos na indústria
66
estimularam o mercado imobiliário e provocaram um processo especulativo de
parcelamento de terras nas áreas a oeste, afetando os municípios de Betim e Contagem,
consolidando-os, juntamente com Belo Horizonte, como o eixo de industrialização por
excelência. Todos estes elementos foram o fermento para um avassalador processo de
metropolização, acompanhado pela “profusão de novos loteamentos, alguns conjuntos
habitacionais e desapropriações para implantação de novos equipamentos (por exemplo,
Cidade Universitária, Escola Técnica Federal)” (MONTE-MÓR, 1994, p. 17).
Sintomaticamente, entre 1950 e 1960, a população da RMBH cresce ao ritmo de 6% ao
ano (MENDONÇA; ANDRADE, 2009).
Sucessivas intervenções da máquina estatal, em âmbito estadual e federal, dão
materialidade a outros “sonhos” alinhados à mesma lógica, qual seja, a industrialização
como caminho para reafirmar a centralidade e a pujança de Minas Gerais (e do Brasil).
O surgimento e a difusão das ideias industrialistas evoluem paralelamente à propagação
de princípios nacionalistas, dando margem às frases que exortam a industrialização
como caminho para o “engrandecimento do país” e “fortalecimento da nação”. É neste
contexto ufanista que saem das pranchetas os esboços de uma cidade industrial, na
localidade de Ferrugem, município de Betim, e do Parque Siderúrgico Nacional, em
Contagem; inaugurado em 1946. Em 1950, um segundo polo industrial é instalado em
Santa Luzia. Na sequência, grandes empresas instalam-se em Betim, Contagem e Belo
Horizonte, aproveitando-se dos incentivos estatais e da proximidade dos centros de
mineração vis-à-vis a ascensão do ferro e aço como importante matéria-prima no
cenário econômico mundial. A produção mineira de bens intermediários ligados ao
complexo mínero-siderúrgico caminha a passos largos. Sua consolidação vai
naturalizar, no plano ideológico, a metafísica da “vocação mínero-siderúgica”, ou, de
forma mais abrangente, a “vocação industrial” dessa região (CARNEIRO, 2003).
Como estratégia de ação deste movimento, são dados vultosos incentivos,
proteções tarifárias e subsídios a indústrias específicas – especialmente àquelas ligadas
à metalurgia e extração mineral. É importante esclarecer que estas iniciativas fazem
parte da política federal de incentivo à industrialização, centrada na substituição de
indústrias básicas por grandes siderúrgicas.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) foi a
principal instituição financeira a financiar os investimentos industriais. Na Tabela 1
podemos acompanhar o volume investimentos despendidos pelo banco entre 1952-1974
para a siderurgia.
67
Tabela 1: Siderurgia: desembolsos efetuados pelo Sistema BNDES. 1952-1989.
Anos
1952-57
1958
1959
1960
1961
1962
1963
1964
1965
1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1952-1973
1974
1975
1976
1977
1978
1979
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1974-1989
Total BNDES
(U$$ milhões)
128
39
51
51
32
113
87
59
114
150
164
136
252
313
429
530
874
3.622
1.638
2.734
3.020
3.456
4.052
4.163
3.329
3.102
4.004
3.653
3.277
3.006
3.500
4.267
4.129
3.156
54.486
BNDES Siderurgia
(U$$ milhões)
6
14
4
38
7
69
74
44
83
63
73
20
38
33
74
74
165
878
375
250
222
278
403
370
780
628
1.022
797
323
216
246
164
218
58
6.350
Investimentos no
Setor (U$$ milhões)
15
31
8
76
13
107
101
57
97
91
84
28
59
60
165
250
412
1.652
929
1.252
1.243
1.607
2.269
3.090
2.713
2.882
2.224
1.521
509
474
548
365
524
601
22.751
% BNDES Setor
40,0
45,2
50,0
50,0
54,0
64,5
73,3
77,2
85,6
80,2
75,0
71,4
64,4
55,0
45,0
29,6
40,0
53,1
26,9
30,0
17,9
17,3
17,8
12,0
28,7
21,8
45,9
52,4
63,5
45,6
45,0
44,9
41,6
9,7
27,9
Fonte: Andrade & Cunha (s.d., n.p.).
Entre 1958 e 1967, quase 60% dos recursos da instituição foram destinados ao
setor, inclusive para ampliação do parque industrial da Belgo-Mineira, já que à época
não havia restrição legal para o financiamento a empresas estrangeiras (como também
hoje não há). Neste proceder, “o Estado agiu como verdadeira alavanca de acumulação
capitalista, transferindo recursos públicos para empresas privadas” (DINIZ, 1981, p.
79), porque ainda que tenha entrado capital estrangeiro para induzir a industrialização
em Minas Gerais, de fato foi o Estado que, efetivamente, capitaneou o processo, não só
68
produzindo infraestrutura, mas também viabilizando todo tipo de recurso ao seu alcance
(GOMES, 2012).
Além dos recursos federais, as facilidades oferecidas às indústrias siderúrgicas
contemplaram ainda redução ou isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços (ICMS) ou ainda a conversão do imposto a ser recolhido em crédito e
financiamento a taxas preferenciais da parte do governo estadual. Outro tipo de suporte,
e não menos importante, foi a ampliação, melhoria e construção de infraestrutura
necessária ao bom funcionamento das plantas industriais. A gestão do prefeito e depois
governador Juscelino Kubitscheck foi emblemática neste sentido, tentando sanar as
deficiências energéticas (construção de quatro usinas) e os gargalos com os transportes
(3.725 km de estradas construídas entre 1951-1955). Em um dos seus discursos ele
aponta:
A industrialização é a diretriz para o desenvolvimento econômico de um
Estado populoso, com um grande mercado interno potencial e dotado de
adequados recursos naturais. Além de representar, em si, um estágio evoluído
de produtividade econômica (DULCI, 1999, p. 103).
Na década de 1970 o impulso industrializante intensifica-se, materializando-se
outro ciclo, agora denominado de “nova industrialização mineira”. Novamente o aparato
estatal concede incentivos tributários para as plataformas industriais que se instalassem
na RMBH, reduzindo em até 32% do ICMS. Um grande número de empresas de capital
estrangeiro desembarca na porção central do estado, como navios piratas farejando as
riquezas do paraíso, só que na condição de convidados. Grandes corporações dos ramos
siderúrgico e metalúrgico atendem aos apelos, instalando-se na RMBH, atraídas pelos
lobbies das elites mineiras, destacando os “baixíssimos preços” das terras e a
inexistência de restrições e controles públicos sobre os impactos ecológicos das
atividades desenvolvidas. Acompanhando o ciclo de expansão do complexo industrial
“fordista” mundial e nacional, elas impulsionarão a extração de, literalmente,
montanhas de minério de ferro (CARNEIRO, 2003).
Na atualidade, alavancada por estes surtos sucessivos de modernização, em
consonância com uma dinâmica global que refunda a divisão internacional do trabalho
no interior do sistema mundial de produção de mercadorias, a metafísica da “vocação”
de Minas vai se consolidando e, por extensão, da RMBH. Devorando milhão por
milhão, como apontado na Tabela 2, para o período 1990-1999.
69
Os valores abaixo são bastante modestos diante dos 109,7 bilhões a serem
empregados entre 2008 e 2014, segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento
Econômico de Minas Gerais (Sede). .
Tabela 2: Investimentos na mineração em Minas Gerais. 1990-1999.
Ano
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
1990-1999
Investimentos (milhões de reais)
170
109
416
495
362
312
183
419
488
352
3.306
Fonte: BDMG (2002, p. 44).
Estes investimentos têm aumentado exponencialmente em um cenário de
demanda crescente por minério de ferro, impulsionado pelo forte crescimento chinês.
Em função disso, inclusive, as siderúrgicas instaladas na região metropolitana passaram
a investir fortemente, deixando de apenas produzir apenas aço para fornecer também
minério de ferro, matéria-prima de seu principal produto. Siderúrgica, industrial e
minerária. Parece que a vocação está consolidada, como se vê nos depoimentos e
materiais diversos a este respeito:
Ao realizar investimentos de R$ 5,8 bilhões em um momento tão desafiador
para a indústria do aço, reforçamos nossa convicção no desenvolvimento do
Brasil e de Minas Gerais. A opção por realizar o investimento em Minas
reitera a vocação do estado para a mineração e produção de aço (depoimento
de um executivo da Gerdau, anunciando a parceria com governo mineiro, em
28/11/2013);
A Região Metropolitana de Belo Horizonte achou o caminho para o
desenvolvimento, descobriu sua vocação, quando o Estado trouxe para cá as
grandes siderúrgicas. Ele [o Estado] aproveitou os minérios daqui para
produzir um progresso real (entrevista com dirigente de Contagem, oficina
para elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da RMBH,
2010);
Somos um grande Estado. Um estado com a força do ferro e do aço (Slogan
da Edição 58 da Revista Siderurgia Brasil, produzida com dados da
Assessoria de Comunicação da Secretaria de Estado de Desenvolvimento
Econômico do Governo de Minas Gerais);
Minas Gerais sempre foi um estado conhecido pelos setores de mineração,
siderurgia e automotivo, que criaram uma vocação industrial para a região,
(entrevista com gerente de empresa de recrutamento de pessoal, escritório de
70
Belo Horizonte, oficina para elaboração
Desenvolvimento Integrado da RMBH, 2010);
do
Plano
Diretor
de
Renova Betim a sua força/com seu distrito industrial/revela
grandeza/motivo de orgulho nacional (trecho do hino a Betim);
sua
Com muito prazer participamos aqui dessa oportunidade que Contagem está
se tornando cidade-irmã de Jiaxing, duas cidades importantes para o
segmento industrial. O acordo vai trazer desenvolvimento maior no Brasil,
com a participação dos chineses naquilo que é importante para nós: a criação
de novos empregos e de novas empresas (discurso do prefeito de Contagem
em visita à China, em 25/10/2013, reproduzido pela CRI - China Radio
International);
A nossa região nasceu para ser o coração industrial do país. Temos água,
temos montanhas, minérios. JK já tinha previsto que o futuro do Brasil estaria
aqui em Minas (entrevista com Secretário de Desenvolvimento Econômico
Santa Luzia, Oficina do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da
RMBH, 2010).
Vespasiano desponta hoje como um dos municípios mais promissores da
RMBH, possuindo e oferecendo as condições mais objetivas para o
desenvolvimento da região como um todo, e, a nível municipal, reforça e
amplia sua vocação industrial (site da Prefeitura Municipal de Vespasiano,
2013).
A cidade mantém, ao mesmo tempo, o clima pacato e interiorano e a vocação
industrial de uma grande metrópole (entrevista com municipal de Betim,
oficina para elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da
RMBH, 2010).
O que dizer então da ideia-vetor que qualifica a RMBH como opulenta e
inesgotável em recursos minerais? Ao olhar montanhas e montanhas deles quase somos
levados a concordar. Sim, são visíveis. Estão em toda parte. Mas será que são
intermináveis? O desaparecimento do Pico do Cauê (Figura 6) e a degradação da Serra
do Curral (Figura 7) parecem provar que não.
Figura 6: Pico do Cauê, em 1942 e em 2007, à direita, o que sobrou dele. Fotos: 1942,
Companhia Vale do Rio Doce: 50 anos de História e 2007, Cristiane Magalhães.
71
Figura 7: Mina de Águas Claras, tendo ao fundo a Serra do Curral e a cidade de Belo
Horizonte. Desativada, suas bordas estão em estágio avançado de desmoronamento
(detalhes), e sua cratera de 240 m de profundidade alcançou o lençol freático. Foto de
Fernando Rabelo, 02/2014.
De maneira resumida, o perfil industrial da RMBH tem como base o complexo
mínero-metal-mecânico exportador, além de uma gama de setores principalmente
voltados para a demanda metropolitana, como o setor de alimentos e bebidas (Tabela 3).
A indústria extrativa mineral concentra-se na Região Central. Mesmo que,
aparentemente, ela pareça ser pouco importante na geração de riquezas, os recursos
minerais dão suporte à expressiva parcela da indústria de transformação, ainda centrada
na produção de bens intermediários. A participação da RMBH é de 21,40%, aí se
destacando o município de Nova Lima, cuja participação é de quase 15%. Na
metalurgia, a participação da RMBH é de 23,2%, concentrada em Contagem (8,5%) e
Betim (6,2%). Ainda é da RMBH a mais expressiva concentração da mineração nãometálica (47,5%), com destaque para Contagem (15,5%), Vespasiano (12,1%) e Betim
(4,6%) e São José da Lapa (4,3%). Também a indústria química (56,3%) concentra-se
na região e a de Transportes (80%). As atividades ligadas à mineração e à metalurgia
exportam não somente para fora da metrópole, mas também para mercados internacionais. Existe também um setor mecânico, que atende principalmente ao mercado
consumidor brasileiro (de automóveis, principalmente), mas vem apresentando por parte
de algumas indústrias uma tendência à exportação de peças, componentes e bens de
capital do setor automotivo para outros países.
72
Tabela 3: Valor da Transformação Industrial por classe/gênero de indústria. Minas
Gerais e Brasil.
Classes/Gêneros
Minas Gerais
Brasil
Minas/Brasil
Indústria geral
Extrativa mineral
Indústria de transformação
Metalurgia
Produtos alimentares
Material de transporte
Química
Minerais não-metálicos
Têxtil
Material elétrico/comunicações
Mecânica
Papel e papelão
Vestuário/calçados/artefatos de tecidos
Mobiliário
Perfumaria/sabão/velas
Bebidas
Produtos de matéria plástica
Editorial/gráfica
Fumo
Farmacêutica
Couros e peles
Borracha
Madeira
Diversas
Total
100
12,78
87,22
25,73
14,07
10,98
0,12
6,53
5,22
4,25
3,07
3,53
2,25
1,84
1,75
1,78
1,19
1,79
1,49
1,09
0,28
0,52
0,45
12,06
100
100
5,63
94,37
10,21
14,28
7,95
0,16
3,81
3,42
8,02
5,04
4,27
3,66
2,13
1,85
3,14
2,84
4,43
1,08
4,68
0,42
1,35
1,49
15,77
100
9,62
21,62
8,89
22.42
8.76
12,28
6,76
15,24
13,57
4,72
5,41
7,34
5,47
7,68
8,42
5,04
3,74
3,59
12,31
2,07
6,04
3,39
2,70
8,90
Fonte: IBGE. Pesquisa Industrial anual, 1999.
Mas todas as transformações ensejadas pelas atividades industriais na RMBH e
todos os recursos para ela carreados não criaram um espaço mais igualitário. Embora
exista uma mitologia a respeito da identidade e unidade cultural dos mineiros, a verdade
é que a disparidade cultural, econômica e social entre as regiões e dentro das regiões
que compõem o estado sempre foi muito acentuada. Conforme Beato (1998), tomando o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) adotado pela ONU, chega-se à conclusão
que existem regiões em Minas com fronteiras muito nítidas. À prosperidade e
desenvolvimento humano de regiões como a Central e o Triângulo Mineiro contrapõemse alguns índices quase africanos no Vale do Jequitinhonha, Mucuri ou na Região
Norte. Os índices de desigualdade são tão maiores quanto mais pobres as regiões. A
maioria da população do Norte de Minas, Jequitinhonha, Mucuri, Rio Doce, Vertente do
Caparaó e Vale do Rio Piranga, quase a metade do território do Estado de Minas, ainda
está abaixo da linha de pobreza. Usando os mesmos critérios n território da RMBH
chegaremos à conclusão similar. Belo Horizonte concentra 64,70% da riqueza da região.
73
À exceção de Betim e Contagem, que contribuem com 11,30% e 10,40%,
respectivamente, os demais municípios participam, juntos, com irrisórios 13,60%.
Parece que ouro, os minérios e as pedras preciosas só brilham para uma parcela dos
municípios e da população da RMBH.
Pesquisa do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da
Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG (CEDEPLAR/UFMG, 2004) explicita
que a RMBH, mesmo não sendo tão pobre quanto outras regiões metropolitanas, é uma
das mais desiguais do Brasil, refletindo anos e anos de políticas econômicas de
resultados limitados e de perfil concentrador e elitista. Com base em dados do Censo
demográfico de 2000, a instituição produziu a Tabela 4, comparando indicadores de
pobreza29 e desigualdade30 entre regiões metropolitanas brasileiras.
Tabela 4: Indicadores de pobreza e desigualdade de regiões metropolitanas. 2000.
Região
Metropolitana
Belo Horizonte
IPC
GINI RD
90/10 RD
GINI RT
90/10 RT
0,1494
0,6307
16,54
0,5934
9,93
Curitiba
0,1321
0,6080
14,86
0,5796
11,11
Porto Alegre
0,1479
0,5992
15,00
0,5692
11,25
Rio de Janeiro
0,1646
0,6295
17,29
0,5781
11,92
Salvador
0,1868
0,6628
18,57
0,6250
11,67
São Paulo
0,1309
0,6163
15,51
0,5694
10,15
.
Fonte: Cedeplar/UFMG (2004, p.104).
Analisando a tabela, percebemos que o indicador de pobreza não é
perfeitamente correlacionado com os indicadores de desigualdade. A Metropolitana de
Porto Alegre ocupa a posição de quarta região mais pobre, mas, de acordo com o índice
de Gini31, é a região metropolitana com menor desigualdade, tanto para rendimento
29
O indicador de pobreza calculado (IPC) é construído sobre variáveis que revelam atributos pessoais, de
rendimento e infraestrutura dos domicílios. Ele pode variar de zero a um, aumentando com o grau de
pobreza relativa da população. Ou seja, quanto maior a pobreza relativa da população, mais próximo de
um é o indicador e vice-versa.
30
O trabalho usa duas medidas de desigualdade de renda: o Índice de Gini e a Razão 90/10. Neste
trabalho, o autor calcula o Índice de Gini e a Razão 90/10 para dois tipos de renda: renda domiciliar per
capita (RD) e rendimento de todos os trabalhos (RT). A variável “renda domiciliar per capita” é definida
como a divisão da renda total do domicílio pelo número de moradores do domicílio. Ver
CEDEPLAR/UFMG, 2004, pp.96-126.
31
Segundo o IPEA (2004), o Índice de Gini, criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um
instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Ele aponta a diferença
entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero a um (alguns
74
domiciliar per capita quanto para o rendimento do trabalho (terceira e quinta coluna da
tabela). O cálculo do índice de Gini mostra que a metropolitana de Belo Horizonte é
relativamente mais desigual do que pobre. No ordenamento das regiões mais desiguais
para as menos desiguais, a região metropolitana de Belo Horizonte ocupa a segunda
posição. Ou seja, de acordo com o índice de Gini, a região metropolitana de Belo
Horizonte só é menos desigual que a de Salvador. O valor encontrado do referido índice
para o rendimento domiciliar e para o rendimento do trabalho são 0,6307 e 0,5934,
respectivamente.
Com relação à razão 90/10 do rendimento domiciliar per capita e do
rendimento do trabalho, percebe-se que a região metropolitana de Belo Horizonte possui
uma posição a menos no ordenamento, sendo ultrapassada pelo Rio de Janeiro. Sua
renda domiciliar do nono decil é 16,54 vezes a renda domiciliar do primeiro decil,
enquanto a do Rio de Janeiro é 17,29 vezes.
Com base nos dados apresentados, podemos concluir que a metropolitana de
Belo Horizonte apresenta posição relativamente ruim em comparação às outras regiões
metropolitanas analisadas. Apesar de a renda per capita na região ser uma das mais
elevadas, além de estar entre as mais pobres, ela está entre as mais desiguais, com
fortíssimos contrastes, opondo áreas e pontos de intenso “desenvolvimento” industrial
com outras, verdadeiros enclaves da miséria.
Ao comparar os índices de pobreza nos municípios da RMBH, o Cedeplar
(2004) representou espacialmente os resultados por meio da Figura 8, abaixo. Na figura
percebe-se que a grande maioria dos municípios – catorze – está na faixa de 0,13 a 0,16,
posição intermédia de pobreza, quais sejam, Contagem, São José da Lapa, Brumadinho,
Capim Branco, Raposos, Betim, Matozinhos, Nova Lima, Ibirité, Nova União, Pedro
Leopoldo, Sarzedo, Caeté e Confins. As áreas mais escuras correspondem aos
municípios mais pobres, Esmeraldas e Mateus Leme, na faixa de 0,25 a 0,29. Os menos
pobres da região, faixa de 0,1 a 0,13, são Florestal, Itaguara, Belo Horizonte e Rio
Acima. Porém, Belo Horizonte, que aparece entre os menos pobres, está entre os mais
desiguais da região metropolitana. Nas demais faixas estão: Mário Campos, Santa
Luzia, Lagoa Santa, Sabará, Vespasiano e Baldim (entre 0,16 e 0,19); Jaboticatubas,
Rio Manso, Taquaraçu de Minas, Ribeirão das Neves, São Joaquim de Bicas e Igarapé
apresentam de zero a cem). O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma
renda. O valor um (ou cem) está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa detém toda a riqueza. Na
prática, o Índice de Gini costuma comparar os 20% mais pobres com os 20% mais ricos.
75
(entre 0,19 e 0,22); e Juatuba (entre 0,22 e 0,25). Podemos observar que nove dos 33
municípios ocupam as três faixas mais pobres da distribuição de pobreza.
Figura 8: Indicador de pobreza por município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, 2000. Fonte:
Cedeplar/UFMG (2004, p. 104).
Finalizando, ainda com relação à metrópole mineira, o estudo do
Cedeplar/UFMG (2004) mostra ainda que, no ano 2000, existiam 107.327 domicílios
em favelas na RMBH, 62,03% em Belo Horizonte. Estes valores, somados aos
domicílios com a mesma conformação em Betim, Contagem, atingem mais de 88% do
total da região, fazendo-nos exclamar: pobre região rica.
De muitas formas, vários estudos apontam que as desigualdades na RMBH
recrudesceram à medida que os fenômenos de urbanização e metropolização nela
avançaram. Vejamos como e porque isso aconteceu.
76
3. A urbanização e a metropolização na RMBH.
O início da industrialização como atividade econômica e como forma por meio
da qual a sociedade se apropriava da natureza influenciou decisivamente a produção
social dos espaços na Grande Belo Horizonte. Certamente que a urbanização como
processo não está exclusivamente associada ao ciclo industrial, mas, não obstante isso,
ele foi decisivo na mudança drástica e rápida do perfil da urbanização ocorrida na
RMBH. Por isso, o crescimento urbano que se deu via desenvolvimento do capitalismo
industrial não deve ser tomada apenas pelo crescimento do número de pessoas vivendo
nas cidades da região, mas também pelos processos qualitativos que culminaram com a
mudança do papel desempenhado pelas cidades.
Lembremos que, como já dito, no período colonial havia uma estreita relação
entre vilas/povoados/arraiais e fazendas/roças/campos em toda a região metropolitana.
Contudo, as iniciativas voltadas a promover a industrialização da economia mineira e
brasileira, os investimentos em infraestrutura rodoviária e a expansão dos meios de
comunicação de massas fizeram com que ali acontecesse um surto urbanizador de
grande proporção (Tabela 5). Milhares de pessoas migraram para a RMBH,
especialmente para a capital Belo Horizonte e para as urbes industrializadas sob sua
órbita, principalmente, Contagem, Betim e Santa Luzia.
Tabela 5: Evolução da população da RMBH.
Anos
BH
RRMBH (1)
RMBH
1940
211.377
157.407
368.784
1950
352.724
170.195
522.919
1960
693.328
237.955
931.283
1970
1.235.030
484.460
1.719.490
1980
1.780.855
895.537
2.676.392
1990
2.020.161
1.494.840
3.515.001
2000
2.238.526
2.108.158
4.346.684
2010
2.392.541
2.969.948
5.362.489
Fonte: Censos demográficos 1940 a 2000 e Cedeplar (2003). (1) Municípios metropolitanos, menos
Belo Horizonte.
Entre os anos 1940 e 1970, a região vivenciou uma nova corrida do ouro, com
intenso fluxo populacional entre municípios. Em 1940, a população residente em Belo
Horizonte era de 212 mil habitantes, aumentando, em 2000, para mais de dois milhões.
Entre as décadas de 1950 a 1970, houve uma intensificação dos fluxos migratórios
77
campo-cidade e a conurbação em torno da capital. Com uma dinâmica concentradora
em determinadas áreas, a urbanização contribuiu, de um lado, para a emergência de
Belo Horizonte como metrópole e de outro para o espraiamento do fenômeno para os
municípios vizinhos, metropolizando a segregação social dos mais pobres (BRITO;
SOUZA, 2005).
Como aponta Lencioni (2006, p.47), o sentido incorporado pelo termo
metropolização é o de processo, de ação continuada, “um processo relativo ao espaço”.
Neste sentido, a metropolização na RMBH vai engolfando cidades e pessoas,
disseminando-se de Belo Horizonte para Contagem, Betim, Ibirité, Vespasiano e
Ribeirão das Neves.
Vários estudos apontam que a maior parte dos novos “mineradores” que
aportou na RMBH foi o próprio povo mineiro (BRITO; SOUZA, 2005; CAETANO;
RIGOTTI, 2008), 81% deles vindos das cidades do interior e das áreas rurais. Desses,
79% desembarcaram na capital e 89% nas demais cidades da RMBH. Lançavam-se
assim no jogo da sobrevivência.
A origem da maioria dos migrantes parece despertar um sentimento de
inferioridade expresso na reclamação da falta de “cosmopolitismo” da região,
principalmente da capital, uma metrópole cujo dinamismo provém, primordialmente, de
sua influência no Estado de Minas Gerais. Um artigo publicado em jornal da cidade
escancara essa emoção:
Belo Horizonte é, até os dias de hoje, uma metrópole essencialmente mineira.
Dados de 2002 indicam que apenas 5,7% dos que migram para a cidade são
provenientes de localidades de fora do Estado de Minas Gerais. Para alguns,
esta é a razão da capital mineira conservar ares ainda provincianos e
encontrar dificuldades para potencializar seu desejado cosmopolitismo (NA
ENCRUZILHADA. Estado de Minas. Belo Horizonte, 28 fev. 2002. Caderno
Gerais, p. 25).
Parece ser este mesmo sentimento que Dantas (2010) diz ter constatado em sua
pesquisa de doutorado, falando da rejeição dos mineiros da região das Minas históricas
à costumeira representação do mineiro como um sujeito de aparência simples, com
hábitos rústicos, vinculado ao campo e que não fala português formal, como retratado
na charge abaixo (Figura 9). Para a autora, sentindo-se ligado ao mundo urbano e aos
valores da civilização, o mineiro que nasce e reside na capital enxerga nos mineiros das
Gerais – os rurais – o único e legítimo representante dessa cultura mineira, “arcaicos no
vestir, falar e mesmo no jeito de se comportar”. Mas, complementa Dantas, nem o
mineiro das Gerais e tampouco os moradores das áreas rurais que entrevistou aceitam
78
esta representação. Apesar dessas observações, não se pode negar o caráter
preconceituoso destas representações, retomando a ideia do morador do rural como
caipira, matuto, o Jeca Tatu de Lobato.
Quem entender esta mensagem é um verdadeiro mineiro!
Causo mineiro
Sapassado, era sessetembro
Taveu na cuzinha tomandu uma pincumel
E cuzinhandu unkidicarne cumastumati pra fazer
Uma macarronada cum galinhassada. Quascai di susto
Quanduvi um barui vindi dentuforno parecenum tidiguerra,
A receita mandôpô midipipoca
Denda galinha prassá.
O forno isquentô, o miistorô e o fiofó da galinhispludiu!
Nossinhora! Fiquei branco quinein um lidileite.Foi um treim
Doidimais. Quascai dendapia. Fiquei sensabê doncovim,
noncotô, proncovô. Ópcevê quilocura.
Grazadeus ninguem semaxucô.
Figura 9: Representação cultural do mineiro mais recorrente (DANTAS, 2010, p.77).
O auge do processo de industrialização na RMBH é também o ápice da
modernização da agropecuária mineira, fenômeno que suscitou o abandono massivo do
campo. Similarmente ao acontecido em outras localidades do país, também em Minas
Gerais o campo anoiteceu e acordou na cidade, expressão usada por Furtado (2009) para
falar da rapidez e intensidade com que se deu o processo de urbanização, estreitamente
vinculado à modernização das áreas rurais.
Induzida pelo Estado (oferta de crédito agrícola, estímulo à adoção de novas
tecnologias, subsídios à compra de insumos, máquinas e implementos agrícolas etc.), a
modernização agrícola32 transformou a base técnica da agropecuária mineira,
respondendo pela introdução de relações capitalistas de produção no campo. Com a
modernização, Minas Gerais incorporou novas áreas de cultivo (Triângulo Mineiro,
Alto Parnaíba e depois o Noroeste de Minas); determinadas categorias de produtos
foram
32
impulsionadas,
inserindo-se
em
modernas
redes
internacionais
de
Para aprofundamento ver Martine (1990), Graziano da Silva (1987) e Delgado (1985).
79
comercialização; e, a mais impactante consequência, um sem-número de trabalhadores e
pequenos proprietários do campo foram expulsos ou perderam suas terras. Esse êxodo
pode ser visualizado nos números expostos na Tabela 6, abaixo.
Tabela 6: Evolução da população rural e urbana em Minas Gerais, 1950-2000.
Censos
1950
1960
1970
1980
1991
2000
População
rural
5.459.273
5.995.460
5.427.115
4.398.419
3.956.259
3.219.666
%
70,15
60,20
47,20
32,90
25,10
18,00
População
urbana
2.322.915
3.964.580
6.060.300
8.982.134
11.786.893
14.671.828
%
29,85
39,80
52,80
67,10
74,90
82,00
População
Total
7.782.188
9.960.040
11.487.415
13.380.553
15.743.152
17.891.494
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 1950, 1960 e FJP/IBGE 1970 a 2000.
Até 1960, Minas Gerais apresentava uma população rural maior que a urbana,
com uma concentração em torno de 60% (cerca de 1/7 da população rural brasileira). Já
na década de 70, a população urbana passa a ser maior que a população rural, em quase
6%. Esta situação vai se agravando de tal forma que, em 2000, Minas Gerais passa a ter
14.671.828 habitantes no urbano e 3.219.666 no rural, em um cenário de grande
discrepância. De acordo com Portes e Santos (2012), as limitadas condições de
sobrevivência no campo, especialmente em termos de trabalho e da produção, foram
determinantes para a desvalorização e o empobrecimento da sua população,
expropriação de seus direitos e, consequentemente, para sua saída dos espaços rurais,
gerando um contingente enorme de expropriados do campo.
Segundo Mazzetto (2008), as consequências mais deletérias deste processo são
a periferização/favelização de uma parcela expressiva da população, a criação de novas
identidades (já não mais rurais, nem tipicamente urbanas), a emergência de movimentos
sociais e a massificação da precarização de uma vida urbana incompleta.
Na Grande Belo Horizonte, a intensidade destas consequências vai
sedimentando a ideia da inexistência ou desaparecimento do rural e de suas populações
neste contexto de intensa metropolização. Vejamos abaixo como esta visão janusiana
hegemônica está sendo contestada.
80
4. O Rural na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Conforme adverte Bicalho (1988), o estudo do rural metropolitano brasileiro é
bastante difícil e até desacreditado, principalmente porque os dados sobre o incremento
das atividades rurais, agrícolas e não agrícolas, nas cidades brasileiras serem pouco
conhecidos (MAIA, 2001) ou mais propriamente por serem analisadas como atividades
residuais fadadas ao desaparecimento. Acrescento a isso o fato de se pensar o rural sob
uma perspectiva exclusivamente produtiva.
Maia (2001) destaca que as atividades tidas como tipicamente rurais, ainda que
continuem persistindo, sendo praticadas nas margens, bordas ou anéis das cidades e
metrópoles, parecem ser invisíveis aos olhos dos estudiosos dos fenômenos urbanos.
Esta constatação parece estar diretamente vinculada à ideia de que na luta pela ocupação
do espaço urbano, as atividades rurais, em sua conotação como atividade econômica,
são as mais frágeis e consideradas muitas vezes como não essenciais ao contexto
urbano, tornando-se “natural” que elas também sejam as que mais facilmente sejam
deslocadas, abrindo espaço à lógica expressa no uso e na valorização do solo urbano: a
da acumulação do capital.
Abro aqui um parêntesis para dizer que poucos são os estudos acadêmicos que
se propõem a quebrar esta hegemonia acadêmica que desqualifica a ruralidade,
espacialmente a metropolitana. Na década de 1980, a professora Baudel Wanderley
(2007), pioneira na formação de importantes quadros na investigação do mundo rural,
deu um depoimento emocionado ao relatar sua “amistosa” convivência com professores
e pesquisadores que creditavam o status de questão menor ao rural, para eles uma
temática ultrapassada tanto na sociedade brasileira quanto na academia. Segundo ela,
sensibilizar cientistas sociais para incluir o rural como objeto de estudo foi uma tarefa
árdua, exigindo muito tempo e humildade. Lentamente, este argumento está sendo
dissolvido. Relativamente ao rural metropolitano, em uma perspectiva integradora,
destaco os trabalhos de Karen Karam, Alencar, Santos et al., Rúbio Ferreira e Evandro
Fernandes. Karam (2001), em sua tese de doutoramento, defende que a agricultura
orgânica é uma estratégia para uma nova ruralidade na Região Metropolitana de
Curitiba. Alencar (2003) trata do desenvolvimento humano na perspectiva da
sustentabilidade complexa, estabelecendo relações entre o conhecimento científico e
experiências de ruralidade como nexo de análise na Região Metropolitana de Salvador.
Santos et al. (2004) questionam a possibilidade da existência do rural na Região
81
Metropolitana de Curitiba e, respondendo afirmativamente, prosseguem descrevendo
suas características à época da análise. Ferreira (2009) estuda a agricultura urbana como
estratégia de reprodução espacial integradora do rural e do urbano na Região
Metropolitana do Recife. Por fim, Fernandes (2008) analisa a reprodução de
agricultores familiares no espaço metropolizado paulistano, por meio de práticas
produtivas diversas.
Grande parte dos 34 municípios que fazem parte da RMBH são essencialmente
rurais, não entraram na dinâmica urbana e, muito menos, na metropolitana. Com esta
assertiva, Faria (2010) conduz um dos estudos mais interessantes no sentido de resgatar
a importância da ruralidade na região.
Ainda que sujeito à crítica postulada por Wanderley (2001) e Veiga (2002),
com relação à atual delimitação dos municípios e da área rural, Faria (2010) defende
que, para ele, parece óbvio esperar que os municípios que compõem uma região
metropolitana tenham um alto grau de urbanização. Entretanto, continua o autor, um
olhar mais detido sobre a RMBH proporciona interessantes constatações. Seguem-se
algumas. Se 16 dos 34 municípios componentes da RMBH tinham, em 2000, taxas de
urbanização de mais de 90%; seis deles tinham taxas abaixo de 60%, sendo que em
Nova União e em Taquaraçu de Minas a população rural era maior que a urbana (taxas
de urbanização de 26,3% e 39,5%, respectivamente). Levando-se em consideração que
o grau de urbanização do Brasil era de 81,2% de sua população, constata-se que 15 dos
34 municípios da RMBH tinham uma taxa de urbanização abaixo da média nacional em
2000 (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2006, p.19).
Enquanto o município polo tinha em 2000, segundo os dados do IBGE, uma
população de 2.238.526 habitantes, o menor município da RMBH, Taquaraçu de Minas,
tinha 3.491. Dezessete dos 34 municípios da RMBH, 50%, tinham menos de 20 mil
habitantes em 2000. No que diz respeito à distância da capital, 21 dos municípios
membros estão localizados a mais de trinta km, sendo que o mais distante, Itaguara, está
situado a 85 km de Belo Horizonte. Por fim, Ibirité é o mais densamente povoado
(1.812,3 habitantes por km2), ao passo que 14 dos 34 municípios-membro têm menos de
100 habitantes por km2, sendo Taquaraçu de Minas aquele de menor densidade
demográfica (10,6).
Uma interessante comparação para ilustrar as desigualdades populacionais
entre os municípios que compõem a RMBH é acionada por Faria (2010). Segundo o
autor, o edifício JK, marco do modernismo mineiro, com seus 1.086 apartamentos,
82
distribuídos em dois blocos, possui um número de moradores, aproximadamente 6.800,
muito maior do que cinco dos 34 municípios da RMBH, pelos dados do censo de 2000.
Defendendo a presença de assimetrias e grande heterogeneidade na região,
quer pelo anteriormente exposto, quer por conta das “discrepâncias relativas aos
indicadores socioeconômicos e à capacidade administrativa dos municípios membros”,
Faria (2010, p.4) diz que motivos de várias ordens impeliram os municípios a fazerem
parte da RMBH, dentre os quais destaca os fatores legal, político-eleitoral, institucional
e ideacional. Além do investimento financeiro e da alocação de recursos feitos pelo
governo federal nas regiões metropolitanas à época de sua criação, o ganho simbólico
de fazer parte de um espaço metropolitano é algo a povoar o imaginário de muitos
municípios. Neste sentido, ele ilustra seu argumento usando o slogan exposto em placa
colocada na entrada de uma das cidades da região: “Você já está na Região
Metropolitana de Belo Horizonte” (FARIA, 2010, p.13). Distante cerca de 80 km de
Belo Horizonte, a pequena cidade tenta vincular-se à imagem de Belo Horizonte e sua
conurbação, procurando elevar o seu status, em um movimento ideológico que celebra a
metrópole como lugar do progresso.
Várias dimensões analíticas mostram que, na RMBH, as ruralidades
presentificam-se na questão ambiental, na valorização da natureza, nas atividades
produtivas, nas tradições alimentares e culturais, nos reassentamentos humanos, na
questão agrária, nas migrações e políticas de segurança alimentar, nutricional e
habitação, como defende a Rede de Intercambio de Tecnologias Alternativas em Minas
Gerais em sua página na web (www.redemg.org.br). Segundo eles:
Apesar de não representar um papel de destaque na região, como a mineração
e a indústria, a agricultura é significativa em alguns municípios,
principalmente o cultivo de produtos da horticultura que abastecem grande
parte da RMBH. Há também municípios onde predomina a característica
rural, com presença da agricultura familiar em pequenas e médias
propriedades, além de festas típicas e outras expressões culturais relacionadas
à vida no campo. Mesmo nos municípios mais urbanizados é recorrente a
prática agrícola e pecuária em diferentes tipos de espaços e por distintas
motivações.
Porém, de forma geral, o pensamento hegemônico tem por viés conectar a
ruralidade a uma natureza técnica e mecanicista e ao esvaziamento populacional,
destacando sua inviabilidade econômica em um contexto onde o PIB é o elemento
definidor da racionalidade produtiva.
83
Mazzetto (2008), organizando dados do censo de 2000, apresenta a Figura 10,
tipificando os municípios da RMBH em mais ou menos rurais, por meio do cruzamento
entre dados demográficos do censo e dados obtidos por ele nos cadastros do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária, em Minas Gerais.
Figura 10: População rural na RMBH. Dados estratificados. Fontes: IBGE, censo demográfico 2000;
Cadastro do Incra para MG (2007). Adaptado de Mazzetto (2008).
84
De imediato, faço um adendo ao fato do autor evocar, grosso modo, em sua
tipologia a ideia de continuum33, ao estratificar os municípios em mais ou menos rurais
por critério exclusivamente demográfico. É importantes salientar que tal critério não é
suficiente para iluminar as muitas nuances da ruralidade na região, sendo, pois,
necessário ir além do viés estatístico.
A ilustração acima sugere que o percentual de população considerada rural
cresce à medida que se afasta do núcleo metropolitano. Este núcleo, formado, segundo o
autor, por onze municípios, não teria população rural (0 a 3%). Assim, pelo critério
populacional, o autor conclui pela inexistência do rural em Belo Horizonte, Betim,
Contagem, Nova Lima, Raposos, Sabará, Ibirité, Ribeirão das Neves, Santa Luzia,
Vespasiano e Juatuba.
Discordando do autor, vejo a presença do rural em práticas culturais,
produtivas, na paisagem, no discurso da valorização da natureza, entre outras de suas
muitas expressões e, especialmente, nas falas das pessoas. Falas que, dissonantes e
consonantes, delineiam um cenário de tensão e de espaços em disputas, formando um
complexo caleidoscópio com espaços de minerar, industrializar, plantar, abastecer,
entreter, viver, lutar e sobreviver:
“Moro aqui há muito tempo. Nasci e fui criado por aqui. Tenho amor a este
lugar. É uma preocupação ver a terra aumentando tanto de preço. Isso atrai
gente de dinheiro que tem condição de comprar os terrenos daqui. Não sei
quanto tempo mais consigo ficar. O cerco tá aumentando” (J. A., agricultor
em Brumadinho).
“Só temos uns poucos agricultores, dá para contar nos dedos. Creio que no
futuro vendam suas terras, livrando-se deste fardo que é a roça” (M.S, 48
anos, comerciante Betim).
“Aqui é chão de muita pedra, não dá pra cultivar coisa de valor como no
Triângulo. Mas vivo bem com o que tenho. Não quero sair daqui” (A.C, 57
anos, agricultor Nova União).
“No meio dessa roça eu nasci e vou morrer. Minha vida é amaciar essa terra”
(P.A, 64 anos, agricultor Ibirité).
33
Segundo Wanderley (2001, p. 32-3), a ideia do continuum rural-urbano expressa as relações entre dois
polos que se inter-relacionam. Para a autora este conceito, assim como o de urbanização do campo, tem
sido utilizado em duas vertentes principais. Uma delas corresponde a uma visão “urbano-centrada”,
privilegiando o polo urbano do continuum, visto ser este a fonte do progresso e dos valores dominantes
que se impõem ao conjunto da sociedade. O extremo rural do continuum seria o polo atrasado, o qual
tenderia a reduzir-se ou desaparecer sob a influência incontestável do polo desenvolvido. A segunda
vertente considera o continuum rural-urbano em uma perspectiva relacional na qual há uma aproximação
e integração de dois polos extremos. Nesta segunda perspectiva, ainda que tenha lugar uma continuidade
entre o rural e o urbano, “as relações entre o campo e a cidade não destroem as particularidades dos dois
polos e, por conseguinte, não representam o fim do rural”.
85
“Em Nova Lima temos um verde que não troco por nada deste mundo”
(A.V., 43 anos, dona de casa).
“As indústrias são a solução para os problemas de desemprego na nossa
cidade. Não dá mais pra viver de agricultura” (P. A., professora em Nova
União).
“É difícil viver em um lugar com tantas mineradoras. Elas são predatórias,
elas destroem a fauna, a flora e as comunidades locais, expulsando as pessoas
para a periferia da capital. Mas os prefeitos brigam para trazer esses monstros
para cá, de olho na arrecadação de impostos, Quando as pessoas abrirem os
olhos cadê montanha, cadê rio, cadê saúde, cadê roça?” (J.P., agrônomo
Esmeraldas).
A inexistência ou invisibilidade do rural metropolitano mineiro é ampliada
pelos olhares institucionais, sendo comumente explicitada em documentos produzidos
por entidades governamentais. Esta frase pinçada de documento produzido pela
Fundação João Pinheiro (1974, p.88) é emblemática: “O Setor Agropecuário na Região
Metropolitana praticamente inexiste (...), estando “estagnado através do tempo” (...) em
função da “ausência de terras adequadas à atividade” (grifo nosso)”. Mesmo
publicações mais recentes fazem uso deste argumento:
(...) nos primórdios da ocupação agrícola de Minas Gerais, as terras de boa
qualidade eram mais abundantes pelo fato mesmo de pouco ou nada
exploradas, imunes ainda à ação deletéria de uma ocupação predatória.
Todavia, a diferença entre os solos dos setecentos e os da atualidade, é,
segundo João Antônio de Paula, escudado nos trabalhos de Octávio Barbosa
e Djalma Guimarães, sobretudo, pela sistemática depreciação pela prática já
de uma tricentenária agricultura frequentemente predatória, baseada na
queimada e na ausência de cuidados com a terra no passado, além da
utilização indiscriminada de tecnologias inadequadas nos dias atuais
(PAULA, 2006, p.74).
O gigantismo das atividades e serviços vinculados ao complexo industrialsiderúrgico parece criar um manto de aço, ferro e concreto que engole as ruralidades,
inclusive a agrícola. Os argumentos usados para “explicar” a estagnação e/ou suposta
ausência de atividades agrícolas na região são recheados por verbetes técnicos e
fundamentações agronômicas, tais como, as condições e tipos de solo são
desfavoráveis, a topografia da região é desfavorável, os recursos naturais
desfavoráveis, dentre outras adversidades apresentadas; nada é mencionado sobre a
estrutura fundiária e temas relacionados34. Estas argumentações são utilizadas para dar
34
Nas duas últimas décadas, a estrutura socioespacial da Região Metropolitana de Belo Horizonte tem se
caracterizado por: a) contínua elitização dos espaços centrais e pericentrais, com diminuição relativa, e
absoluta em algumas áreas, das regiões mais centrais da capital, com mobilidade residencial dos grupos
de maior renda em direção a estas áreas; b) adensamento das áreas periféricas ao norte; c) espraiamento
86
substância à perspectiva da inviabilidade do rural – especialmente o agrícola – na
RMBH, em um território onde a terra é objeto de disputa e especulação fundiária e
imobiliária.
De fato, entre os fatores que compõem um cenário bastante desfavorável à
manutenção da ruralidade metropolitana estão o alto valor da terra e dos impostos
territoriais, bem como a crescente transformação das áreas rurais em áreas urbanas
através dos planos diretores municipais. Para exemplificar tal processo, na Tabela 7,
apresento a evolução dos preços da terra no aglomerado metropolitano entre 1950-1976.
Tabela 7: Evolução dos preços de terrenos no aglomerado metropolitano de Belo
Horizonte. 1950-1976.
Anos
Preços (m2)
1950
1951
1952
1953
1954
1955
1956
1957
1958
1959
1960
1961
1962
1963
Aglomerado
62,00
78,00
97,00
119,00
130,00
107,00
116,00
153,00
142,00
129,00
126,00
115,00
127,00
96,00
Índice
1950=100%
25,81
30,65
35,48
17,74
- 37,10
14,52
59,68
- 17.74
-20,97
-4,84
-17,74
19,35
-50,00
Anos
Preços (m2)
1964
1965
1966
1967
1968
1969
1970
1971
1972
1973
1974
1975
1976
114,00
122,00
179,00
182,00
206,00
288,00
246,00
213,00
256,00
271,00
347,00
466,00
531,00
Índice
1950=100%
29,03
12,90
77,42
19,35
38,71
132,26
-67,74
-53,23
69,35
24,19
122,58
191,94
103,84
Média= 185,52
Fonte: Marques (2001, p.118).
Os preços dos terrenos na RMBH tenderam ao crescimento em quase todo o
período mostrado, destacando-se dois grandes momentos, um de baixa, entre 1960-1964
e 1970-1971; e outro de alta, entre 1950-1957 e 1964-1969. Em uma perspectiva macro,
podemos inferir que a variação dos preços dos terrenos reflete o ciclo das economias
mineira e brasileira, suas políticas econômicas e seu desempenho global. As fases de
alta correspondem a períodos de expansão, como em parte da década de 1950, durante o
período do chamado milagre econômico (1967-1973) e na fase da marcha forçada da
economia brasileira, durante os anos 1970. Por outro lado, a retomada da
das classes médias pelas áreas centrais e em direção à região industrial, a oeste (Mendonça, 2008;
Mendonça; Andrade, 2006), o que tem motivado intensa especulação imobiliária.
87
industrialização na RMBH nos anos 1960 também contribuiu para a alta dos preços.
Entre 1960-1964, período de recessão e inflação generalizada no país, coincide com
uma diminuição dos preços dos terrenos (MARQUES, 2001). Por fim, o período de
baixa entre 1969-1972 é atribuído, segundo a Plambel (1987), pela ampliação do
mercado acionário no país, drenando a poupança das famílias e aplicações financeiras
dos agentes econômicos para a Bolsa de Valores, diminuindo assim o volume de
recursos para a realização de parcelamentos.
Mesmo com tudo isto, o rural metropolitano permanece. Mazetto (2008)
apresenta dados, organizados por mim no Quadro 2, abaixo, para ilustrar o peso do rural
na realidade dos municípios da RMBH.
Quadro 2: Extensão territorial, percentual de população rural e número de
estabelecimentos rurais dos municípios da RMBH. (Continua).
Município
Extensão (km2)
Baldim
Belo Horizonte
Betim
Brumadinho
Caeté
Capim Branco
Confins
Contagem
Esmeraldas
Florestal
Ibirité
Igarapé
Itaguara
Itatiaiuçu
Jaboticatubas
554,029
330,954
345,913
640,15
541,094
94,147
42,008
194,586
909,592
194,356
73,027
109,93
410,719
295,062
1.113,77
Total de imóveis rurais
(2007)*
649
176
1.247
1.431
1.047
316
154
496
2.186
598
291
434
1.677
1.231
1.630
Juatuba
Lagoa Santa
Mário Campos
Mateus Leme
Matozinhos
Nova Lima
Nova União
Pedro Leopoldo
Raposos
Ribeirão Neves
Rio Acima
96,789
231,994
35,115
302,589
252,908
428,449
171,482
291,038
71,85
154,18
230,143
218
625
116
1.017
347
332
642
453
38
329
308
% população rural
(2000)**
40,92
0,00
2,74
27,21
12,79
9,54
35,94
0,87
18,92
32,00
0,53
7,49
30,94
40,84
47,41
2,81
6,54
24,52
15,53
8,29
2,10
73,67
19,42
5,84
0,58
14,13
88
Quadro 2. Continuação.
Rio Manso
Sabará
Santa Luzia
S. Joaquim Bicas
São José da Lapa
Sarzedo
Taquaraçu Minas
Vespasiano
RMBH
232,102
303,564
233,759
72,455
48,636
61,892
329,363
70,108
8898,50
820
794
744
178
111
110
479
168
38,40
2,30
0,38
24,44
40,64
14,68
60,53
1,58
1,89
Fonte: Mazzetto (2008). *Cadastro do Incra-MG (2007); ** Censo 2000.
Cotejando os dados tabulados por Mazzetto (2008), referentes ao cadastro do
Incra, aos do Censo Agropecuário do IBGE de 1995/96, verificamos que não houve
significativa oscilação, nem esvaziamento/perda de população rural, já que o censo
apresentou índices/valores próximos aos obtidos pelo autor, quando não menores. Por
exemplo, foram contabilizados pelo censo 7.746 estabelecimentos rurais na região
enquanto o autor chegou a 21.400 imóveis rurais usando os dados do Incra. Esta
diferença, se comprovada pelo censo agropecuário subsequente, parece indicar um
intenso fracionamento da terra na região. Mazzetto (2008, p.22) é enfático neste sentido,
defendendo que há “(...) uma questão agrário-fundiária que não se resolve nas regiões
rurais de origem e que é transferida para as regiões metropolitanas, tomando nova
forma”.
Um estudo sobre os aspectos fundiários das áreas rurais da RMBH, realizado
por Mazzetto (2008) aponta que 85% dos imóveis rurais eram constituídos por
minifúndios ou pequenas propriedades e as grandes propriedades somavam 3% do total
de imóveis. Outra pesquisa efetuada no âmbito do Plano Diretor de Desenvolvimento
Integrado da RMBH indica que, de acordo com o Censo Agropecuário de 2006,
aproximadamente 73% dos imóveis rurais na RMBH eram de agricultores familiares,
ocupando uma área de 103.523 ha, o que corresponde a 19,34% da área rural total da
RMBH.
Analisando os dados do censo (2000), 1,90% do total de habitantes da região
foi considerada rural; treze municípios tiveram mais de 20% de sua população
classificada como rural. Nova União e Taquaraçu de Minas destacam-se em termos de
percentual de população rural, 73,67% e 60,53%, respectivamente. Jaboticatubas,
89
Baldim, Esmeraldas, Brumadinho e Caeté, todos com mais de 500 km2, apresentam,
respectivamente, 40%, 27%, 19% e 13% de sua população total considerada rural.
Estudo feito por Cunha et alii (2005), do Departamento Técnico da CeasaMinas, mostra um número significativo de agricultores familiares da RMBH
cadastrados para a entrega de seus produtos no Mercado Local do Produtor. Cerca de
50% daqueles que entregam seus produtos na CeasaMinas são proprietários das áreas
cultivadas e 32% são arrendatários, com idade média de 42 anos, pouco acesso à
internet e baixa escolaridade. Ao todo são 124 produtores de Mateus Leme, 92 de Nova
União, 88 de Rio Manso, 65 de Igarapé, 49 de Jaboticatubas, 47 de Brumadinho, 36 de
São Joaquim de Bicas e 34 de Esmeraldas. Há uma expressiva diversificação produtiva.
Igarapé entrega 69 produtos distintos, Brumadinho 68, Mateus Leme 66, Jaboticatubas
66, Ibirité 61, Baldim 61, São Joaquim de Bicas 57, Mário Campos 48, Itatiaiuçu 48,
Esmeraldas 47 e Pedro Leopoldo 47. Apenas Nova União e São Joaquim de Bicas
apresentam especialização produtiva, a banana nanica e chuchu, respectivamente.
Pelo exposto, constatamos que os municípios da RMBH se mantêm firmes na
produção de hortifrutigranjeiros. Há diversificação e abundância de produtos, conforme
apontado na Tabela 8.
Da tabela, podemos inferir a especialização de alguns municípios (Mateus
Leme, Nova União e Igarapé) vis-à-vis a diversificação produtiva de outros. Além dessa
lista de produtos ofertados à CeasaMinas, outras produções em menor escala são feitas
por agricultores de pequeno porte no próprio comércio do município em função dos
altos custos de transporte.
Para além do rural agrícola, Ortega (2003) nos alerta que o caso da Região
Metropolitana de Belo Horizonte é emblemático no que diz respeito à ampliação das
atividades rurais não-agrícolas em Minas Gerais. Os números revelam que as atividades
exclusivamente agrícolas apresentaram uma redução da população ocupada de 9,8% ao
ano, enquanto que as atividades rurais não-agrícolas apresentaram coincidentemente a
mesma taxa, entretanto, com sinal trocado, no período compreendido entre 1992/99. O
estudo de Ortega defende que o fenômeno da expansão do emprego rural com base
naquelas atividades ocorre numa velocidade mais intensa que a média de Minas Gerais,
para o rural metropolitano.
90
Tabela 8: Produtos ofertados pelos municípios da RMBH na CeasaMinas.
Município
Baldim
Betim
Brumadinho
Capim Branco
Caeté
Esmeraldas
Florestal
Ibirité
Igarapé
Itatiauçu
Jaboticatubas
Juatuba
Lagoa Santa
Mário Campos
Mateus Leme
Matozinhos
Nova União
Pedro Leopoldo
Ribeirão das
Neves
Sabará
Santa Luzia
Sarzedo
São Joaquim de
Bicas
São José da
Lapa
Taquaruçu de
Minas
tomate
alface
tangerina
alho
banana nanica
tomate
milho verde
chuchu
chuchu
couve-flor
mandioca
milho verde
tangerina
chuchu
milho verde
Milho verde
banana nanica
ovos
manga
Participação
(%) na oferta
total do município à Ceasa
31
16
52
78
53
14
29
77
23
30
22
35
33
75
18
88
86
60
26
Produto
Participação
(%) na
oferta
Participação
(%) total na
Ceasa
pepino
Jiló
tomate
jiló
mandioca
beterraba
milho verde
milho
laranja
banana nanica
caju
alface
pepino
banana prata
abacate
-
27
10
17
13
17
6
13
14
13
33
22
6
17
13
5
-
6
1
6
1
1
1
1
7
11
4
4
1
0
2
15
0
13
2
0
banana prata
banana prata
chuchu
chuchu
34
44
90
59
banana nanica
banana nanica
tomate
22
19
11
0
0
3
9
jiló
36
-
-
0
banana prata
53
banana nanica
44
1
Produto
Fonte: CeasaMinas, 2007-2009.
Exemplos da interface entre o agrícola e o não-agrícola estão em curso em
vários municípios da RMBH. Por exemplo, Brumadinho, Pedro Leopoldo e Nova União
têm produção e comercialização de cachaça; Itaguara destaca-se pelo artesanato usando
fibras de bananeira; em Juatuba há uma profusão de os pesque-pague; e, em toda a região,
atividades de beneficiamento, produzindo queijo, requeijão, farinha de mandioca, fubá de
milho, rapadura, polvilho etc. (ORTEGA, 2001).
Vários estudos de caso têm indicado outras manifestações de ruralidades na
RMBH. Em Nova Lima os sítios de recreio, os restaurantes com temática “caipira” e a
prática de atividades rurais não-agrícolas dão a tônica do que está sendo caracterizado
como novo rural (GRAZIANO DA SILVA, 1997). Aliado a ele, nos deparamos também
com os condomínios luxuosos para a população de alta renda, que, em busca de maior
qualidade de vida e maior contato com a “natureza” (BRITO; SOUZA; SOARES, s.d,
91
p.5), tem edificado suas residências entre matas, montanhas, cursos d’água, clima
ameno e belas paisagens do município, inflacionado assim o mercado de terras já
pressionado pelo domínio fundiário das mineradoras. Em Betim, a Cooperativa
Agropecuária, a Divisão de Análise e Incentivo à Agropecuária e as tradicionais
Exposição Agropecuária e a Betim Rural são manifestações institucionais e culturais da
presença do rural, como também o é a luta pela terra protagonizada pelos produtores
rurais do Assentamento Serra Negra (BRAGANÇA; PORCINO, 2004) e do
acampamento Dois de Julho (RIQUELME HERNANDÉZ, 2008). Em Ibirité, Tubaldini
e Rodrigues (2000) descrevem a disputa entre os loteamentos de baixa renda, os
condomínios de lazer e os “nichos agrícolas” (de 0,2 a 3,1 hectares), onde se pratica
uma horticultura intensiva. Filgueiras (2006) escreve sobre as manifestações da ruralidade
contemporânea do Mercado Central de Belo Horizonte, para a autora o local mais
representativo da cultura mineira, onde se evocam as tradições e a lembrança do mundo
rural, e vendem-se produtos de qualidade e exclusivos.
Desviando o olhar em direção à identificação mais estreita entre o campo (o
rural) e a natureza, vejo belíssimas paisagens naturais. As serras serpenteiam por todas
as direções, substituindo a costumeira visão do litoral. Se Minas não tem mar, nos
9.467,797 km2 da RMBH, ele é substituído por um mar singular, um mar de morros
(des)florestados (Figura 11) em um eterno ondular.
Figura 11: Serra do Rola Moça (foto de Roberto Murta); Mar de morros (foto Alex Tinoco).
92
Inúmeros mananciais e nascentes contribuem decisivamente para o
abastecimento de água, recarga de mananciais superficiais e subterrâneos e formação de
diversas cachoeiras (Figura 12).
Figura 12: Cachoeira do Índio, em Rio Acima, e Cachoeira Grande, em Jaboticatubas. Fotos da autora.
Estas ruralidades têm favorecido a proliferação de balneários, campings,
hotéis-fazenda, hotéis em fazendas coloniais, consolidando a expansão do capitalismo
de serviços e a apropriação da natureza. Como destacam Mathieu e Jollivet (1989), os
residentes urbanos associam o ambiente à natureza e a natureza ao campo. Neste
contexto, assistimos a uma valorização do rural como espaço mantenedor do natural, de
heranças, tradições e memórias sociais, culturais e ambientais, deixando de ser apenas
lugares onde as pessoas vivem e trabalham – rural produtor de alimentos e matériasprimasr – para assumir funções de importância como reserva cultural, social e
ambiental. Deste modo, começa a entender-se a ruralidade como “reserva moral e
cultural”, nos termos de Chamboredon, 1980, ou seja, a ruralidade é considerada para
além da condição concreta de oposição ou marginalização relativamente ao processo de
modernização que atravessou toda a sociedade, mas antes como sinônimo de uma noção
que remete para a modernidade (ou a pós-modernidade), vivida pela descoberta e
valorização das diferenças, do autêntico e do genuíno. Assim tem se apresentado o
turismo nas cidades históricas da RMBH, consideradas guardiãs das construções
coloniais do auge da mineração, com suas fazendas, casarios coloniais (Figura 13) e
igrejas barrocas (Figura 14); e com as tradicionais festas em louvor aos santos (Figuras
15 e 16).
93
Figura 13: Ruas em Sabará (foto de Robson Nunes) e Santa Luzia (Rua Direita, foto Maya Santana).
No centro, o Solar da Baronesa (foto da autora).
Figura 14: Igrejas em estilo barroco colonial em Mateus Leme, Caeté e interior de igreja em Santa
Luzia. Fotos da autora.
Figura 15: Em Baldim, Cortejo de Nossa Senhora do Rosário e Folia de Reis (fotos Ione Torres).
94
Figura 16: Sede de Casa de Congado, em Baldim, e apresentação de Congado em Rio Manso. Fotos:
site da Prefeitura Municipal de Baldim e Rio Manso.
No aspecto linguístico, a ruralidade está muito presente nos topônimos
regionais. Araçaí (Rio dos Araçás), Juatuba (Sítio do Juá), Ingaí (Rio do Ingá), Pequi,
Pitangui (Rio das Pitangas), Jaboticatubas (Sítio das Jabuticabas), Jatobá, Jenipapo de
Minas, Bananal, Arrozal, Santo Antônio do Arrozal, Santo Antônio do Bacalhau, Santo
Antônio da Figueira, Santo Antônio do Leite, Santo Antônio do Limoeiro, Assa-Peixe,
Pescador, Peixe Cru, Goiabeiras, São José do Goiabal, São José do Mantimento, São
José do Buriti, Sant’Ana do Buriti, Buritis, Buritizeiro, Milho Verde, Chácara, São
Sebastião da Chácara, São Sebastião do Feijão Cru, Frutal, Manga, Figueira, Barra da
Figueira, Barra do Bacalhau, Dores do Marmelada, Ribeirão das Pitangas, Palmital,
Limoeiro, Laranjal, Laranjeiras, Divino das Laranjeiras, Pimentas, Pimenteira,
Rapadura, Taiobas, Taiobeiras, Mangabeiras, Cafezal, Curral de Dentro, Curralinho,
Serra do Curral, Porteirinha, Novilhona, Fazenda Velha, Cerca Grande, Capim Branco e
Rancharia são palavras corriqueiras que indicam a presença do rural na RMBH
(COSTA, 1997).
De tudo o que foi exposto, inferimos que a RMBH são os índios, negros e
portugueses de sua gente. Ouro, serras, cachoeiras. Também dela fazem parte o concreto
e o asfalto selvagem. Montanhas e estradas de ferro; prédios de vidro e o trem de
superfície que é quase um metrô. Água, sangue e areia. A Festa do Divino, de Nossa
Senhora Rosário, o congado, os quilombos. Os festivais de cinema, o teatro, vídeo, som
e luz. Nos botecos, a canequinha e o bule de café esmaltados e os copos de acrílico. As
bandas de praça, o Clube da Esquina e as bandas de rock. A pedra sabão e o plástico. A
cachaça artesanal e a coca-cola. Os móveis antigos, as fazendas, o gado; o aço e o
cimento. As minas e as fábricas. A riqueza e a devastação. O carro de boi e a Fiat. O
95
feijão tropeiro e o petit gatêau. Grutas, rios; pontes e arranha-céus. O campo e a cidade.
O campo e a cidade. Faces de Janus interconectadas. Ruralidades e urbanidades que se
misturam em um metropolizado complexo.
Ainda que tenhamos tantas evidências ecoando a ruralidade metropolitana, suas
vozes são engolidas pelo eco do invisível. Esta invisibilização, como veremos, já era
anunciada no período de formação da região metropolitana. Por isso penso que o
passado da região precisa ser explicitado mais detalhadamente, pois nele já se aninhava
os ecos do presente. No próximo capítulo analiso algumas especificidades constitutivas
da sociedade mineira, tendo como elemento balizador a descoberta de riquezas minerais
em seu território. Para tanto, apresento um recorte histórico, que remonta ao século
XVIII, descrevendo as mudanças encetadas em um espaço até então considerado como
um grande e desconhecido “sertão”. Neste processo, destaco alguns elementos que
influenciaram o território da RMBH, que seriam, segundo alguns autores, sinais da
modernidade mineira e da busca incansável do progresso.
96
CAPÍTULO III
MITOS FUNDADORES
Figura 17: Capa do livro: Belo Horizonte: do Arraial à metrópole - 300 anos de história. Autor: José Maria
Rabêlo. Editora Legraphar, 2013.
97
1. A sócio-gênese mineira: o ouro, as vilas e a vocação semeadora de cidades.
Desde as primeiras expedições portuguesas à terra brasilis, ainda que fossem
atribuídas a esta colônia características depreciativas, objetivando reforçar a pretensa
superioridade do velho continente, persistia uma visão edênica da colônia recémconquistada, um lugar de mitos e sonhos, e de natureza exuberante (MELLO E SOUZA,
1997). Por muito tempo a metrópole portuguesa viveu a expectativa de encontrar metais
preciosos em seus domínios coloniais. Ainda que Pero Vaz de Caminha tivesse escrito
ao rei dizendo não ser possível saber se havia “ouro nem prata nenhuma cousa de metal
nem de ferro” na terra “recém-descoberta”, a esperança de achá-los nunca arrefeceu.
Tal desejo não era uma prerrogativa portuguesa. Desde que “o Novo Mundo se
tornou conhecido, criou-se uma possibilidade de representação do paraíso na Terra,
sonho perseguido pelos cristãos, [...] encontrar a Cocanha”
35
(MAGALHÃES, 2009,
p.2). Alguns povos já tinham conseguido realizar tal façanha, como a Espanha junto aos
Incas. Restava aos demais uma tênue chama de esperança, fundamental para a
iluminação dos combalidos e sombrios cofres das monarquias europeias.
No final do século XVII e começo do XVIII, o mundo português comemora
“[...] a boa-nova há tanto tempo esperada: existia ouro em profusão nos socavões e
encostas” (ÁVILA, 1990, p.76) de um “sertão desconhecido” denominado
oportunamente de “Minas Gerais”. A esperança não foi em vão para os portugueses.
Foram aquinhoados com “[...] um distrito onde sempre foi, e é geral o ouro em toda a
terra [...]” (MACHADO, 1967 [1734], p.179 apud PAULA, 2000, p.94). Enfim, aquela
combalida chama agora podia se revigorar com o brilho flamejante do ouro encontrado.
Com a descoberta das riquezas em solo mineiro, finalmente a denominada
“Terra de Santa Cruz” dos primórdios colonialistas proporcionaria aos portugueses o
seu esperado paraíso terreal, um éden de fartura e abundância, sua tão sonhada Cocanha.
O desejo de obter as verdes esmeraldas, acalentado e perseguido incansavelmente por
Fernão Dias e outros bandeirantes, cedeu lugar a uma realidade colorida pelo amarelo
do ouro aluvional que brotava em abundância nas montanhas, vales e riachos do
“sertão”.
35
O país da Cocanha seria uma terra fantástica, abundante em metais preciosos e outras riquezas, com
comida, bebida e orgia fartas e abundantes, sem que houvesse necessidade do trabalho para obtê-los
(MAGALHÃES, 2009, p.2). Adaptado para o ambiente medieval, esse mito grego é representado pela
cornucópia, um corno de chifre de cabra com poderes dados por Zeus capaz de gerar fertilidade e
abundância ilimitadas.
98
O relato anterior exemplifica a dimensão e a expectativa criadas com a
descoberta de metais preciosos no Brasil. Se elas causaram tal “comoção” no país
ibérico, o que dizer das mudanças descortinadas na região das minas, espaço que, em
um curto tempo, passa da condição de imenso sertão para promissor Eldorado,
interferindo decisivamente nos rumos da colônia e da metrópole portuguesa. Como
aponta Monte-Mór:
[...], a riqueza mineral concentrada principalmente em Minas Gerais integrou
a colônia diretamente, por algumas décadas, ao centro motor da economia
mercantilista mundial, permitindo interações políticas e culturais
inimagináveis em colônia até então tão abandonada. [...] (MONTE-MÓR,
2001b, p.5).
Tal a centralidade do ouro na história de Minas Gerais que qualquer reflexão
que se proponha sobre a sociedade mineira não pode prescindir da análise dos seus
impactos no cotidiano e nas trajetórias dos seus habitantes. Ainda que outros elementos
tenham sido determinantes na gênese do tecido social mineiro, tais como, a
religiosidade, a geografia da região, a expressiva presença de escravos e a falta de
mulheres portuguesas durante o estabelecimento da capitania, entre outros aspectos
destacados por Schwartz & Lockhart (2002), pensar Minas Gerais em sua
complexidade, explicitar as relações rural-urbanas em sua região metropolitana como se
pretende, requer que se proceda a algumas considerações retrospectivas da influência da
dimensão produtiva – mais particularmente a mineração do ouro – em processos outros
que terminaram por marcar, direta ou indiretamente, determinadas características do
espaço, da economia, da cultura e da sociedade mineiras na atualidade. Esta
“especificidade material, econômica mesmo”, [...] [esta] “centralidade do ouro” [foi o
fator que suscitou] “a ocupação e fixação dos núcleos iniciais do território” (CUNHA,
2007, p. 27). Não por outra razão, autores como Iglésias (1985, p. 11) indagam “como
teria sido o desenvolvimento de minas sem o ouro”.
Expectativas sobre um futuro ou passado diferentes em função do ouro à parte,
fato é que ele foi o elemento condutor que, em pouco mais de um século, auxiliou na
transformação de um espaço relativamente desconhecido em um conjunto de regiões
integradas com preponderante importância na articulação econômica da colônia
(PAULA, 2000), possibilitando também a saída de Portugal do relativo ostracismo
econômico em que se encontrava.
Ainda que alguma mineração de ouro de lavagem já tivesse lugar na Capitania
de São Vicente, somente por volta de 1640, e em diversas regiões de Minas Gerais, é
99
que, finalmente, ocorrem descobertas significativas de mineração aluvional (MELLO E
SOUZA, 1997), principalmente pela iniciativa de diferentes grupos paulistas (BOXER,
1969). Duas consequências advêm desse fato. Em primeiro lugar, o ouro mineiro
propiciou ao país ibérico a possibilidade de recuperar uma hegemonia nostálgica, que
remonta ao século XV, quando a escassez de numerário não era tão comum quanto foi
nos séculos subsequentes. Como enfatizado por Silva (2008, p.61), a entrada crescente
dos metais preciosos permitiu a Portugal equilibrar rapidamente sua combalida balança
comercial, no mesmo momento em que sua desastrosa política mercantil fez com que o
pequeno país se tornasse cada vez mais refém da economia inglesa. “É o tempo do
longo reinado de D. João V, em que o ouro brasileiro adornou a monarquia, construiu
palácios e conventos, mas, sobretudo, enriqueceu a Inglaterra” (PAULA, 2000, p. 67).
Em segundo lugar, à medida que as expectativas de lucros com a exploração
das jazidas eram cada vez mais animadoras, o império português aguçou seu olhar
metropolitano em torno da colônia, na forma de pesadas taxas e impostos bem como no
aumento do controle e fiscalização sobre a riqueza que se extraía do solo. Desta forma,
Portugal, que havia prestado pouca atenção ao Brasil durante seu período de supremacia
naval no oriente (MONTE-MÓR, 2001a), muda sua política, dando uma guinada na
forma de administrar e fiscalizar sua agora promissora fonte de riquezas minerais. O
Brasil colônia torna-se “a joia da coroa portuguesa” (MONTE-MÓR, 2001a, p.3), ou,
nas palavras de Dom João IV, sua “vaca de leite” (BOXER, 1972, p. 70), com as Minas
Gerais em primeiro plano.
A notícia da descoberta de metais preciosos no Brasil se espalhou tal qual
rastilho de pólvora, dando origem a uma verdadeira loucura coletiva em busca de ouro.
Em 1698, com a descoberta das Minas de Ouro Preto, esse movimento assume tal
magnitude que se transforma em uma epidemia febril: de todos os lados chegam
mineradores, camponeses, comerciantes, enfim, aventureiros esperançosos em
enriquecer rapidamente no eldorado mineiro:
Este primeiro momento das Minas de Ouro foi marcado por um sem-número
de tumultos, de crimes, de convulsões de toda a sorte [...]. Não só da
capitania vizinha de São Paulo vieram os aventureiros em busca da riqueza
fácil: nos portos de Santos e do Rio de Janeiro muitos navios foram
abandonados pela tripulação, a quem os trabalhos nos regatos auríferos
pareciam muito mais promissores [...]. O mesmo acontecia com os guardas
das guarnições que [...] iam tentar a sorte nas Minas. Da Bahia também
acorreram muitos indivíduos [...]. Da metrópole vieram aventureiros, e as
estatísticas mostram que cerca de 10 mil indivíduos deixaram anualmente
100
Portugal com destino à Colônia durante os primeiros sessenta anos do século
XVIII. (MELLO E SOUZA, 1997, p 16-18).
A formação da Região das Minas [...] atrai nos primeiros anos a estas terras
toda espécie de gentes, antes o “marginal das cidades, o camponês, imbuído
de muito menos preconceito, acostumado à convivência comunitária” que o
“fidalgo”. (VASCONCELLOS,1968, p. 142).
A atração populacional exercida pela região das Minas foi de tal sorte que
outras localidades rapidamente foram perdendo população. Moraes (2005, p.10) salienta
que o “rush de proporções gigantescas”, expressão cunhada por Prado Júnior (1985, p.
64, grifo nosso) para destacar a intensa migração em direção às minas, trouxe
consequências inesperadas tanto na colônia quanto no reino, como atestam vários
documentos da época. Por exemplo, D. Álvaro da Silveira Albuquerque, governador do
Rio de Janeiro à época, desabafa ao então governador da Bahia, em correspondência
datada de cinco de maio de 1704, sua preocupação com a intensa migração para a região
das minas:
[...] Em cada dia me acho mais só, assim de soldados como de moradores,
porque o excesso com que fogem para as minas nos dá a entender que
brevemente ficaremos sem ninguém. Também suponho que V. S. a assim o
experimenta porque das minas me escreve o Cônego Gaspar Ribeiro que é
tanto o excesso de gente que entra pelo sertão da Bahia que brevemente
entende se despovoará essa terra [...]. Museu do Arquivo Nacional, Coleção
Governadores do Rio de Janeiro, Livro XIII A, f. 273 v. (SANTOS, s.d, p.6).
Neste sentido, o abandono das áreas rurais de produção, a perda de
contingentes militares responsáveis pela defesa do território, a falta de tripulantes para
as embarcações, a escassez de artesãos e oficiais para as manufaturas e de braços para a
construção, além do diminuto número de clérigos para os ofícios religiosos foram os
efeitos mais visíveis e sintomáticos do processo migratório em curso (MORAES, 2005,
p.10). Todos queriam ir às minas. Todos queriam possuir um pedaço do novo eldorado.
A esperança de ficar rico minerando era como um bálsamo suavizante no contexto
colonial até então cristalizado pela relação senhor e escravo, pois trazia consigo a
expectativa de apropriação de renda e riqueza e, de forma subjacente, uma perspectiva
generalizada de ascensão que emergiu entre pobres, pretos, cativos, brancos, libertos ou
já ricos.
Porém, ainda que alguma ascensão social tenha acontecido, como a
consolidação de classes sociais intermediárias, como a dos negros forros, a reprodução
da pobreza continuou a ser um traço característico desta sociedade, ainda que, como
dito por Mello e Souza (1982), por muito tempo tenha passado à história com a simples
101
máscara do fausto. Superficialmente adornada com a pompa e o esplendor do ouro de
suas edificações, esta sociedade permanecia envolta pela imensa colcha de retalhos
tecida com os pedaços da pele sofrida dos homens livres e incontáveis pobres. A
referida autora aponta que a sociedade mineradora longe de ser a sociedade da riqueza,
nivelou a população por baixo, democratizando a pobreza e gerando uma massa
expressiva de “desclassificados sociais”.
A Coroa portuguesa, preocupada com o fluxo intenso de forasteiros para seus
domínios, tentou ordená-lo e estancá-lo de diversas formas, principalmente dificultando
o acesso a esse “mundo sem lei nem rei” (ÁVILA, 1990, p.77). Chegou, inclusive, a
proibir a edição e circulação do livro de Antonil intitulado “Cultura e Opulência do
Brasil”, que em sua terceira parte “oferecia informes bem detalhados sobre as Minas,
inclusive uma descrição dos caminhos de acesso ao seu território”. Porém,
definitivamente, isso não surtiu efeito. Os “mineradores” chegavam de todos os lugares,
e, para garantir terras e lavras, fixavam-se onde fosse possível, provisoriamente em um
primeiro momento, ao apostar no enriquecimento fácil e rápido, e depois em caráter
permanente, montando acampamentos que se transformariam em arraiais, vilas ou
cidades.
Faço aqui um breve parêntesis para destacar que, em Portugal, o sentido
costumeiro dado ao termo “arraial” era de um acampamento militar. Ou os locais de
reunião festiva da população. Por conseguinte, ambos os espaços tinham caráter
precário e provisório. Transposto para Minas Gerais, o termo passou a designar
genericamente acampamentos de tamanhos variados, pontos de pouso, ranchos ou
vendas, fundados junto às lavras e/ou ao longo dos caminhos, que vieram a se constituir
rapidamente em núcleos urbanos de natureza permanente, portanto sem o sentido da
transitoriedade do original português (MORAES, 2005; MONTE-MÓR, 2000;
LATIF,1960 apud CUNHA; MONTE-MÓR, 2000). Esta mudança de sentido foi
captada por Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês viajando pelo Brasil, que
relatou:
Nota-se que na província de Santa Catarina não se usa, como em Minas, o
termo arraial para designar os povoados, mas freguesia. Arraial, propriamente
dito, significa acampamento, e acampar era o que realmente faziam os
primeiros mineiros. A grande quantidade de ouro, porém, que eles
encontravam em certos lugares decidia-os a aí se fixarem, e a palavra arraial
foi pouco a pouco perdendo a sua significação. [...] (SAINT-HILAIRE, 1936,
p.30).
102
Interessa ainda salientar que para serem elevados à categoria de vila ou
cidades, os lugares necessitavam da permissão direta da Coroa Portuguesa, conforme
estabelecido pelas Ordenações Afonsinas. Constituíam-se assim categorias geográficas
de caráter administrativo e jurídico. A estas categorias sobrepunham-se outras de cunho
eclesiástico, por exemplo. O primeiro elemento a fundamentar uma identidade regional
era, portanto, o lugar, a paragem, que adotava o nome do vale de algum córrego ou
ribeirão ali presente. O conjunto dos lugares podia constituir um distrito, quer dizer, as
porções do termo (uma espécie de município nos dias atuais) comandadas por um
capitão de uma companhia de ordenança. Apesar de não ter uma demarcação precisa, os
distritos eram úteis do ponto de vista fiscal-administrativo. Mais segura, precisa e
referencial era a categoria freguesia, basilar para a Igreja e para o governo da capitania,
por meio da qual eram cobrados os dízimos. As freguesias compunham os termos, cujas
sedes eram as vilas. Estas sim eram as referências práticas e cotidianas para a
população, pois lá era que se administrava a justiça, se recorria sobre questões
eclesiásticas, fiscais e administrativas. A cidade podia se originar de uma vila e essa
posição ou título representava fundamentalmente mais que um privilégio, uma honraria
concedida pela coroa (CARRARA, 2007, p. 50-1).
Magnani (2009) destaca que a forma de colonização e a exploração das
riquezas minerais moldaram grande parte das vilas/cidades mineiras e seus respectivos
estilos de vida. Os primeiros campos de exploração de ouro transformaram-se em
centros urbanos e as vilas foram surgindo ao longo dos principais locais de mineração, o
que redundou em forte adensamento populacional tanto nas vilas quanto no seu entorno
(SCHWARTZ, LOCKHART; 2002), e nas vendas e ranchos tropeiros estabelecidos na
beira de caminhos e perto das lavras. Essas iniciativas permitiam uma fixação provisória
e próxima aos locais de mineração. Na medida em que determinados veios auríferos
esgotavam-se, os “mineradores” buscavam novas áreas de exploração, desbravando
assim outros territórios, como aconteceu com Goiás e Mato Grosso.
Ilustrando a precoce urbanização36 mineira37, na metade do século XVIII,
quase todos os quadrantes da capitania já tinham um número considerável de núcleos
36
O sentido moderno do termo “urbanização”, embora expresse um fenômeno antigo, está estreitamente
associado à industrialização em razão dos impactos decorrentes das revoluções industriais, o que tem
condicionado seu emprego às questões contemporâneas. Neste contexto, usualmente associa-se
urbanização à transferência de pessoas do meio rural para o meio urbano, o que implica na ideia de
concentração de muitas pessoas em um espaço restrito, a cidade, cujo percentual de aumento populacional
seria superior em relação à população rural. Desta forma, há que se considerar que o número de vilas ou
mesmo de cidades no contexto da colonização da América portuguesa não é, per se, parâmetro irrefutável
103
urbanos, em uma sucessão de vilas que refletiam tanto a dinâmica itinerante da
atividade mineradora quanto as exigências de diversificação produtiva que ela
significou, quer pelas crescentes necessidades de abastecimento, quer pelo próprio
esgotamento das riquezas minerais. A ideia aqui implícita é que a economia mineratória
foi a mola propulsora de uma precoce urbanização, ampliada posteriormente pelo
desenvolvimento da agricultura e da manufatura, em um panorama diverso e complexo
de fatores. Neste processo, foram se espalhando pelo território mineiro tanto a
população quanto a “vocação semeadora de cidades” (PAULA, 2000, p.14).
Ainda que diversos núcleos urbanos em terras mineiras apresentassem
condições de serem elevados às categorias de vila ou cidade segundo os critérios da
época (IGLÉSIAS, 1960, p.372), eram comuns as negativas às solicitações de
emancipação. Enquanto as Capitanias da Bahia e São Paulo contavam, respectivamente,
com 40 e 31 vilas oficializadas, em Minas foram elevadas a tal condição apenas quinze
vilas e uma única cidade, Mariana
38
(MORAES, 2005, p.6). Na Figura 18, abaixo,
podemos visualizar a distribuição desses núcleos populacionais na capitania.
Do
ponto
de
vista formal
e
administrativo,
a
capitania
mineira,
comparativamente às outras existentes na colônia, não era algo urbanizada. Para Costa
(2007), os objetivos fundamentais desta restrita “política de urbanização” eram,
basicamente, estabelecer a ordem e, especialmente, permitir um rígido controle sobre a
população flutuante dos mineradores, facilitando a fiscalização e controle das riquezas
extraídas. Zenha (1948, p.102 apud Paula, 2000, p.37) diz que ao impedir a elevação
das vilas à categoria de cidade, a Coroa demonstrava seu poder, assegurava meios para
para qualificar seu grau de urbanização (MORAES, 2005, p.3). Entretanto, o que aqui se expõe é que a
descoberta do ouro e diamantes em Minas Gerais colaborou para a intensa migração de pessoas, vindas
das mais diversas paragens da colônia e da metrópole, as quais terminaram por se concentrar nos espaços
de produção, ou seja, nas “cidades mineradoras”, conforme os termos de Monte-Mór (2001b). Nesse
sentido, constituíram-se de fato como cidades: “espaços de concentração de um excedente econômico
expresso na qualidade do espaço urbano e na monumentalidade das edificações; espaços de intensa
organização social e política, geradoras de novas práticas sociais; e espaços de forte expressividade
simbólica, cultural e religiosa na sua organização arquitetônica e urbanística” (MONTE-MÓR, 2001a,
p.6).
37
O termo mineiro (a) é usado neste texto como definição toponímica, sem relação com as pessoas que se
dedicavam à atividade mineradora, aqui denominadas mineradores.
38
Como Mariana foi escolhida para ser sede de bispado, foi então elevada à condição de cidade já que
“[...] os bispos eram [...] nobres de primeira grandeza, príncipes titulares, não podiam residir, nem o Papa
o consentia, em vilas, que, pois, estas não se fundavam em termos próprios” (VASCONCELLOS, 1974,
p.39). Esse exemplo serve como constatação de que, na maioria das vezes, o “status de cidade estava
diretamente relacionado à concessão de certas prerrogativas de caráter honorífico às aglomerações de
maior importância religiosa, política ou militar”. Hierarquicamente, as cidades “[...] eram aglomerações
superiores às vilas por se assentarem em terras próprias de modo a perpetuar em si o sentido de município
romano, independente e livre”. (MORAES, 2005, p.4, grifo da autora).
104
possíveis barganhas com grupos locais, além de exercer rigidez no controle da região no
intuito de garantir “a paz” e evitar conflitos, já que, entre outras restrições, aos
habitantes de vilas era proibido o manuseio de pistola, faca de ponta e punhal, artefatos
cuja posse e uso eram privilégios concedidos exclusivamente aos moradores de cidades.
Figura 18: Mapa ilustrativo da criação de Vilas em Minas Gerais entre 1710-1820. Fonte: Cunha (2006,
p.6). Destaque para a área em amarelo, a região das Minas, onde se localizavam de forma dispersa as
vilas auríferas mais populosas.
As negativas ou permissões para emancipação faziam parte de um jogo de
concentração/descentralização de poder da metrópole para com a colônia. Quando havia
necessidade de intensificar o esforço de povoamento ou o controle, arrecadação e
fiscalização metropolitanas, o soerguimento de vilas e cidades figurava como uma
importante estratégia para a Coroa portuguesa, pois implicava na implantação em
âmbito local de uma estrutura de organização administrativa, jurídica, fiscal, militar e
territorial (MORAES, 2005, p. 5-6). Por outro lado, isso também representava a cessão
de maior autonomia a algumas localidades e suas respectivas elites, o que sempre
representava certo perigo para a Coroa, como, por exemplo, nos momentos de crises,
105
rebeliões ou insubordinações da população, ou mesmo nas disputas e rivalidades de
caráter estritamente local39, como largamente aconteceu em Minas Gerais.
Diante da necessidade premente de total controle sobre a capitania mineira e
seus recursos naturais, a possibilidade de dar ou não relativa autonomia a algumas
nucleações populacionais funcionava como valiosa moeda de troca, em um jogo de
interesses no qual figuravam tanto aspectos de estratégia político-administrativa, quanto
as disputas e concorrências de caráter estritamente local. Isso explica, por exemplo, os
porquês de vários núcleos urbanos mineiros não conseguirem ter suas solicitações de
emancipação atendidas, mesmo apresentando prosperidade e atributos semelhantes aos
das cidades e vilas existentes (MORAES, 2005). De qualquer forma, vale dizer que, em
face das dimensões territoriais brasileiras, o Estado português, ainda que centralizador,
“[...] não agia de forma uniforme para alcançar seus objetivos, utilizando-se de
estratégias várias, que levavam em conta as particularidades de um território extenso e
desigual” (MORAES, 2005, p. 6).
Monte-Mór (2001b, p.3) adverte que as vilas e cidades coloniais brasileiras
possuíam características bastante distintas das europeias, berços do capitalismo
mercantil. Para o autor as cidades europeias seriam um espaço privilegiado, onde “a
cidadania foi (re)constituída tornando-se o locus da revolução burguesa” enquanto as
cidades brasileiras, aglomerados coloniais e dependentes em sua essência, seriam meros
arremedos de um “poder altamente centralizado, representado e exercido pelo Estado
monárquico absolutista”. Guardadas as devidas proporções em uma comparação dessa
natureza, Monte-Mór (2001b) argumenta que na justa proporção em que a “cidade
capitalista embrionária” conseguiu encapsular as contradições básicas ao sistema feudal
e absolutista no continente europeu, minando-o por dentro e lançando as bases para a
ascensão de um novo modo de produção e respectiva classe dominante, também no
Brasil, a cidade “colonial se tornou o espaço no qual [...] as contradições do sistema
colonial apareceram mais claramente”, especialmente naquelas cujo produto alcançava
maior valor de mercado, como no caso do ouro mineiro.
39
A respeito das inúmeras insubordinações que tiveram lugar em Minas Gerais, e mais particularmente
sobre a Inconfidência Mineira, Moraes (2005) destaca que vários trabalhos coevos têm retomado a
discussão sobre as motivações e jogos de poder em curso, corroborando uma afirmação mais geral que
“[...] entre os inconfidentes, grandes negociantes e proprietários de terras na Comarca do Rio das Mortes,
a [...] participação no movimento foi movida pelo descontentamento com a posição política marginal da
comarca frente aos olhos da Coroa, eventualmente mais preocupada com as áreas mineradoras”.
(MORAES, 2005, p. 20).
106
Nesta lógica, ao peso do ouro na economia portuguesa e mundial, o autor
atribui as constantes revoltas, motins e insurreições ocorridas na capitania mineira40,
precipitando os sentidos de uma futura ruptura. Entretanto, é importante destacar que as
mudanças apregoadas pelos indivíduos que participavam de tais movimentos estavam,
majoritariamente, imbuídas em uma perspectiva meramente reformista, questionando
“[...] tão somente os excessos da política colonial, [...] buscando evitar soluções mais
radicais” (CUNHA, 2002, p.44), que questionassem também seu poder, posição e
prestígio dentro da colônia.
Em contrapartida ao restrito número de cidades e vilas institucionalizadas nas
Minas coloniais, mais de “70 freguesias e muitos arraiais” não “autorizados” foram se
proliferando ao ritmo das descobertas de novos veios nos regatos e grupiaras, áreas nas
encostas e topos de morros (MORAES, 2005, p. 20).
Visualizando as reproduções abaixo, Figuras 19 e 20, organizadas por Santos et
al. (2009) a partir das ilustrações feitas por Caetano Luís de Miranda em bico de pena e
aquarela, podemos perceber o grande número de nucleações populacionais encontradas
na então capitania de Minas Gerais, principalmente nas comarcas de Vila Rica e Serro
Frio, locais de maior concentração de ouro e diamantes. Ainda que o manuscrito
produzido por Miranda seja datado de 1804, a configuração territorial ali delineada
corresponde aos contornos da capitania em 1720, com o acréscimo do termo da Vila de
Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí – Minas Novas –
(SANTOS et al., 2009).
Naquela ocasião Miranda classificou as povoações em diferentes ordens de
importância: arraiais freguesias, os mais importantes e consolidados; as capelas, menos
significativos do ponto de vista econômico e populacional e as povoações
intermediárias denominadas simplesmente arraiais.
40
Na perspectiva de Monte-Mór (2001), a sanha e voracidade portuguesa em conseguir o maior lucro
possível da capitania de Minas Gerais, por meio de pesadas taxas, tributos e rigorosa fiscalização, foram
os estopins para uma série de revoltas e conflitos visando ao controle dos espaços de poder nas cidades
coloniais. Tais eventos envolveram “[...] o Estado colonial, a Igreja, o capital comercial, e outros
interesses locais e regionais da colônia que incluíam demandas e pressões colocadas pelos grupos sociais
mais explorados, tais como os trabalhadores urbanos, índios, mestiços e escravos negros. Em lugar algum
da colônia tais conflitos entre as formas urbanas nascentes e o sistema colonial foram tão expressivos
como nas cidades mineradoras, mais particularmente, as cidades mineiras do século XVIII (MONTEMÓR, 2001a, p.x).
107
Figura 19: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda,
1804, Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.10).
Organização: Santos, Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. Em destaque as
povoações classificadas por Caetano Miranda como arraiais freguesias, na área de
mineração mais intensa e próspera.
108
Figura 20: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo
Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Adaptado de Santos et al. (2009, p.11). Organização: Santos,
Márcia M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. No detalhe retangular vermelho, o Curral Del Rey, arraial
onde seria instalada a futura capital do Estado, Belo Horizonte. Também em destaque as povoações
classificadas por Caetano Miranda como arraiais.
À medida que a exploração metalífera com bateia – espécie de bacia de
madeira, redonda e achatada – às margens dos ribeirões já não resultava em grandes
achados, os exploradores subiam serras, em busca de ouro nas encostas dos morros, em
altitudes cada vez maiores (SOUZA, 2009). Esse movimento favoreceu ainda mais a
formação de novos arraiais, com as nucleações se organizando ao redor de capelas
(Figura 21), espalhando-se por áreas contíguas e compondo uma coesa e “complexa
rede urbana” que se espraiava no ritmo das descobertas de novos veios (MORAES,
109
2005, p.20). Nas palavras de Cunha & Godoy (2003), a partir do impulso econômico do
ouro, no intervalo de um século, o espaço das minas se transformaria muito
rapidamente, produzindo não só uma reformulação interna na sua economia e estrutura
demográfica, como promovendo intensamente a primeira articulação macrorregional do
território brasileiro.
Figura 21: Carta Geográfica da Capitania de Minas Gerais [Caetano Luís de Miranda, 1804, Arquivo
Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.10). Organização: Santos, Márcia M. Duarte
dos; Mouchrek, Najla M. Em destaque as povoações classificadas por Caetano Miranda como arraiais
capelas.
Uma diferenciação importante no processo de colonização da capitania mineira
relativamente às demais diz respeito à política de distribuição de terras. Segundo
Monte-Mór (2001a, p.3), inicialmente não havia a quem se dirigir para regularizar a
110
posse da terra, existindo apenas escrivães comissionados autorizados a conceder posse
apenas para as catas41 e datas42 de mineração. Existiam dificuldades até mesmo para
conseguir terras para habitação, uma vez que sendo as áreas de mineração reguladas
pela legislação real, eram todas as terras caracterizadas também como datas. A
estratégia frequentemente utilizada era a de se fazer uma petição de terras à Coroa com
o intuito de se erigir uma capela, ao mesmo tempo em que se tentava uma autorização
para se habitar em seu entorno (MARX, 1990-1992, p. 390-391). Desta forma, as
descobertas ou primeiros achados expressivos de ouro definiam o assentamento e
implicavam também a construção imediata de capelas, ainda que inicialmente toscas. Os
arraiais se proliferavam, organizando-se em torno das capelas e se estendiam pelos
caminhos de acesso às áreas de mineração, seja nas montanhas ou vales, em uma
tentativa de domínio dessas áreas, seguindo o próprio espaço da produção (CUNHA;
MONTE-MÓR, 2000, p. 308). Esse desalinho constitutivo das cidades mineradoras
mineiras foi objeto de ironia por parte de Sérgio Buarque de Holanda, ao afirmar que,
enquanto os espanhóis construíam cidades geométricas, a fantasia era a marca das vilas
portuguesas, pois suas casas, em desalinho, pareciam que eram colocadas de acordo
com a vontade dos moradores (HOLANDA, 1993).
Murillo Marx, a partir da leitura de obra de Sylvio de Vasconcellos, chama a
atenção para o pequeno tamanho das glebas de terras regulamentadas nas minas, opostas
às generosas concessões de terras na colônia como um todo, marcada pelo sistema
sesmarial. Nas aglomerações urbanas das minas, os amplos espaços rurais sesmariais
vêm como que “a reboque das datas de mineração e dos primeiros acampamentos”
(MARX, 1990-92, p.390). Vale lembrar que na medida em que novas jazidas eram
descobertas em áreas de sesmarias, as terras passavam a ser regidas pelas normas
referentes às datas minerais.
Diante do precoce e intenso mercado de terras em curso, potencializado pela
circulação monetária advinda da mineração, do esgotamento precoce das jazidas e do
controle rígido exercido por Portugal quanto às posses de terras, duas ordens de
concessão na região das minas eram possíveis, as sesmarias e as datas minerais
41
Murilo Marx interpretando Vasconcellos (1990, p.389), explica que nas minas, os mineradores
acompanharam os cursos d’água “para fazerem suas descobertas e estabelecer as catas, obtendo a garantia
de uma área e a licença governamental para sua exploração.”
42
Segundo Teixeira (2009, p.9) o solo mineiro, inicialmente, foi dividido em datas, parcelas bem menores
do que as sesmarias, que eram usadas nas áreas rurais da Colônia e cuja unidade de parcelamento
considerava a légua quadrada. As datas minerais, por sua vez, tinham como unidade de parcela a ‘braça
de quadra’, que equivalia a apenas 66 metros quadrados, cabendo a cada minerador o número de datas, a
serem exploradas, de acordo com o número de escravos que possuía.
111
(CUNHA; MONTE-MÓR, 2000, p. 307; CARRARA, 2007, p.149), predominando as
segundas. Segundo Carrara (2007, p. 156), ainda que distintas do ponto de vista formal,
ou seja, com relação às formas de registro, controle e tributação dos dízimos e da
capitação, na prática eram praticamente indiferenciadas, com as concessões em
sesmarias restringindo-se a meia légua em quadra onde houvesse terra com minas
(CUNHA, 2002, p.141; CARRARA, 2007, p.154) e a três léguas nos demais espaços do
território mineiro. Para se ter uma ideia de grandeza, nas demais capitanias as sesmarias
concedidas tinham tamanho variável. As concessões nas capitanias do norte abrangiam,
em geral, extensões maiores que nas do sul onde, em linhas gerais, as sesmarias não
excediam três léguas de extensão, enquanto naquelas podiam ser encontradas
concessões de 20, 50 e mais léguas (NOZOE, 2006). Isso só veio mudar em 1695
quando foi fixado um limite para as sesmarias de quatro léguas de comprimento e uma
de largo, bem como a determinação de foros de sesmarias, a serem cobrados
proporcionalmente à extensão e qualidade das novas concessões (NOZOE, 2006,
p.593).
Silva (2008, p.145) enfatiza que “a legislação sobre sesmarias na capitania de
Minas Gerais não seguiu uma norma definida, variando de acordo com as
circunstâncias”. Essa assertiva é compartilhada por Mello e Souza (1997), a qual
enfatiza que as concessões também podiam variar em função do número de escravos
tidos pelos mineradores: aqueles que possuíam 12 ou mais escravos recebiam uma área
equivalente a 66 m² por escravo enquanto os que tinham menos de 12 recebiam 5,5 m²
por escravo. Naturalmente que os possuidores de maior número de escravos e capital
conseguiam obter lucros superiores e melhores resultados nas atividades mineradoras e
afins.
De acordo com Souza (2009, p.8), “a corrida do ouro não se deu apenas pelo
sonho do enriquecimento rápido, mas, também, pela necessidade, agravada, no caso da
população brasileira, pelas próprias consequências das descobertas”, pois, o processo de
povoamento rápido e desordenado também implicou em impactos indesejáveis tanto nas
áreas mineradoras quanto no restante da colônia. Mello e Souza (1997, p.18-19)
descreve que o fluxo intenso de pessoas à região mineradora não foi acompanhado pela
organização de uma infraestrutura mínima para o seu abastecimento, suprimento e
subsistência alimentar, suscitando nesse cenário a ocorrência de surtos generalizados de
fome, já que o custo de importação de alimentos era muito alto.
112
Schwartz & Lockhart (2002) enfatizam que os mineiros pagavam caro pelas
coisas que precisavam. Tudo que chegava às minas seguia um longo percurso,
transportado no lombo de animais, em tropas de cargas, por estradas precárias e
caminhos sinuosos. Três eram os principais centros de abastecimento das minas durante
o século XVIII: São Paulo, fornecendo milho, trigo, marmelada, frutas em geral, e
entreposto de gado; Rio de Janeiro, que era o fornecedor de escravos africanos e artigos
de luxo importados da Europa que desembarcavam em seu porto; e de Salvador vinham
os escravos africanos recém-chegados ou egressos das lavouras açucareiras nordestinas
em crise. A Bahia fornecia ainda o gado criado nos currais do Rio São Francisco e
também mercadorias europeias, tais como tecidos, ferramentas, ferro, sal, entre outros
produtos (MELLO E SOUZA, 1997, p. 19-20).
Sendo a capitania incapaz de produzir em quantidade os meios de subsistência
necessários à sua população sempre crescente, ela transformou-se em grande
importadora de bens de consumo, pressionando o custo de vida em outras regiões do
país. Em um movimento reativo, um número considerável de trabalhadores dessas
regiões migrou para a capitania de Minas como única saída para sua sobrevivência,
agravando ainda mais o problema (SOUZA, 2009).
Como consequência da situação anteriormente apontada, crises intensas de
gêneros de primeira necessidade assolaram as Minas do Ouro, atingindo, em alguns
anos, proporções catastróficas43. Taunay citado por Souza (2009, p.9) ilustra a sua
dimensão:
E houve tal que matou ao seu companheiro por lhe tomar com a sua tenaz de
pau uma pipoca de milho que do seu borralho saltou para o do outro dos
poucos grãos que cada um tinha para alimentar a vida naqueles dias,
aprovando-se por este caso como realidade o provérbio comum de que a
fome não tem lei (Taunay, 1981, p.31 apud Souza, 2009, p.9).
O resultado de tal situação: insubordinação, revoltas, mortes por inanição, fuga
e abandono de arraiais... Ao mesmo tempo em que as Minas do Ouro eram propagadas
de forma mitológica como um Eldorado tentador para potenciais desbravadores,
frequentemente a realidade vivida por quem ali acorria diferia bastante das lendas
fantasiosas proporcionadas pela febre do metal tão cobiçado. A ideia de enriquecimento
43
A capitania de Minas Gerais foi assolada por crises de fome que ficaram na história entre os anos de
1668-1669, 1697/98 e 1700/01 (SOUZA, 2009), conjugadas muitas vezes aos surtos de varíola, também
chamada de bexiga. Como fatores agravantes destas crises, o autor destaca, entre outros: a longa distância
da capitania das regiões produtoras/exportadoras de secos e molhados aliada; a precariedade dos
caminhos e dos meios de transporte; concentração de braços nas atividades de mineração; falta de moeda
circulante; os altos tributos que incidiam sobre as mercadorias importadas, contribuindo com isso para a
elevação de preços no mercado bem como para a escassez desses produtos, sobretudo alimentos.
113
fácil esbarrou muitas vezes em muitos obstáculos como fome, fadiga, frio, escassez de
gêneros alimentícios, gerando por fim, frustração, fracasso... Porém, de forma
paradoxal, novos aglomerados humanos eram formados durante essas movimentações.
Preocupada com os efeitos das turbulências sobre a atividade mineradora e
diante da gravidade da situação, a Coroa tomou providências imediatas para manter o
controle social e minimizar a falta de mantimentos e víveres sobre as minas: investiu na
abertura de novas vias de comunicação, facilitando a passagem dos rios; ordenou o
plantio de roças e o estabelecimento de estalagens nos caminhos que conduziam às
minas. Para além dos efeitos de cunho mais social e de teor humanitário advindos destas
medidas, o que estava em jogo era apoiar as atividades de mineração, garantindo e
ampliando a arrecadação.
Magalhães (2009, p.7) destaca que as crises alimentícias e a carestia dos
gêneros alimentares constituíram-se traços marcantes nas Minas no início de sua
colonização. Segundo a autora, a escassez e falta de alimentos foram o cenário para que
se cunhasse o “mito da mineiridade”, um comportamento associado à “fartura e
abundância alimentar”, supostamente existente entre os mineiros nos dias de hoje,
como forma de compensação das penúrias passadas durante o primeiro momento da
colonização.
Nos momentos iniciais de intenso povoamento, os moradores das Minas Gerais
padeceram por conta de sua insularidade geográfica. Distantes do litoral, as mesas dos
mineiros eram abastecidas comumente com alimentos oriundos e produzidos
localmente, mas com pouca diversificação, o que implica na necessidade de
complementação, feita geralmente com produtos reinóis (FURTADO, 2009, 136).
Entretanto, com a decadência da mineração e a progressiva predominância da
agricultura como atividade econômica principal, passou-se a ter uma “fartura de
alimentos [que] possibilitava a hospitalidade e por vezes até o esbanjamento, dando a
ideia de recursos ilimitados” (MAGALHÃES, 2009, p.9). Outrossim, os tempos de
precariedade criaram também uma nova relação dos mineiros com os gêneros
alimentícios, tornando-os mais previdentes e fazendo-os desenvolver técnicas de
armazenamento e estocagem da comida para uso em períodos de menor disponibilidade,
tais como produção de conservas caseiras, doces, queijos artesanais, embutidos e
alimentos defumados.
A transição da economia mineradora, com uma sociedade predominantemente
urbana, para uma economia agrária, institucionalizando uma sociedade rural, foi, para
114
muitos autores, o fio condutor do “mito da mineiridade” como sinônimo da abastança.
Os primeiros que os propagaram foram os viajantes estrangeiros e tropeiros,
nababescamente tratados nas fazendas em que se hospedavam. Uma leitura
complementar a esta versão menciona que a fartura de mantimentos, muitas vezes
apenas aparente, era um mecanismo utilizado pelos mineiros durante as refeições,
principalmente quando na presença de visitantes, para ostentar riqueza ou mesmo para a
obtenção de prestígio. Tal riqueza, quando verdadeira, se mostrava no fausto da avocada
“mesa mineira”, reavivando o mito da cornucópia da abundância. Quando falsa, era
disfarçada de todos os modos e sabores possíveis.
Apesar das medidas adotadas pela Coroa para debelar as insubordinações e
motins advindos das crises de abastecimento, segundo Anastasia (2005, p.33-4), nos
primeiros anos de ocupação da região das minas, o Estado não se fez presente de modo
marcante. Com a efetiva descoberta do ouro, as primeiras medidas visaram apenas
normatizar a arrecadação tributária. Entretanto, com a eclosão do conflito denominado
Guerra dos Emboabas (1709-1710), a disputa de hegemonia pelas minas que opôs os
paulistas aos portugueses, baianos e pernambucanos, entre outros, a Coroa interveio
com punhos de ferro sobre a região mineradora sob o pretexto de aplacar as contendas.
O que estava em jogo, porém, era a necessidade sentida pela metrópole de aumentar
ainda mais o cerco ao contrabando de ouro.
Primeiramente a região das Minas do Ouro foi separada, juntamente com a
capitania de São Paulo, da capitania do Rio de Janeiro. Depois, em 1720, adquiriu o
status de capitania autônoma, separada de São Paulo, o que provocou uma migração
externa e interna jamais vista até então, conferindo-lhe neste processo a posição de
capitania mais populosa do país (MONTE-MÓR, 2001a, p.1).
Neste período, povoados foram alçados à categoria de vilas, de forma “que as
pessoas que assistem nas minas vivam reguladas, e na subordinação da justiça”
(MORAES, 2005, p.17). Outras medidas tomadas foram: a institucionalização de mais
um recorte territorial, as comarcas, sedes de todo um aparato judicial; a instalação das
câmaras nas vilas, para exercer um papel político-institucional, e a demarcação dos
termos44, submetidos a aparatos regulatórios da vida cotidiana urbana e rural
(MORAES, 2005, p.20).
44
Correspondendo ao município de hoje, “termo designa toda extensão de território sob a jurisdição de
uma vila, incluindo as freguesias e os arraiais” (MORAES, 2005, p.20).
115
A máquina judiciária instalada na capitania também reflete o controle da
Metrópole para evitar sonegação:
Enquanto em outras capitanias o aparato judiciário está concentrado numa
única comarca, em Minas Gerais, no período colonial, serão instaladas quatro
comarcas (Vila Rica, Rio das Mortes, Sabará e Serro), distribuídas pelo
território de forma a garantir a proximidade da imposição da lei (LIMA JR.,
1965, p. 25 apud PAULA, 2000, p.99).
Ainda com relação às ações fiscalizatórias do governo lusitano destaca-se a
adoção de medidas visando ao reconhecimento e mapeamento do espaço da capitania,
acarretando a produção de um “conjunto notável de mapas e descrições geográficas”
(FURTADO, 2009, p. 135). Só nas instituições nacionais encontramos sete mapas
distintos, a maioria elaborada entre 1778 e 1815 (SANTOS et al. 2003). Mesmo com as
contraditórias demarcações neles presentes quando comparados, eles oportunizaram um
reconhecimento mais acurado da capitania. Abaixo apresentamos a Figura 35, outra
representação geográfica feita por Santos et al. (2009, p.6), utilizando novamente o
material produzido por Caetano Luís de Miranda. Para efeito comparativo,
apresentamos também a Figura 36, elaborada por Cunha (2002, p.145), com o mesmo
objetivo de representação, porém, apresentando a capitania projetada sobre o mapa atual
do estado.
Como pode ser visualizado nas Figuras 22 e 23, a então capitania de Minas
tinha os seguintes marcos referenciais: ao sul, as capitanias de São Paulo e Rio de
Janeiro; ao norte, as de Pernambuco e Bahia; a oeste, a de Goiás; a leste, novamente a
capitania da Bahia e a do Espírito Santo. Segundo Mello e Souza (1997), na região das
Minas, três locais se destacavam como espaços com maior concentração populacional e
de núcleos mineradores: Ouro Preto/Ribeirão do Carmo, Rio das Velhas e Rio das
Mortes. Elevados posteriormente à condição de comarcas, suas sedes foram erigidas em
Vila Rica, Sabará e São João Del Rei, respectivamente. Outras comarcas foram
institucionalizadas anos depois, como Serro Frio, com sede na Vila do Príncipe.
116
Figura 22: Carta Geographica da Capitania de Minas Geraes [Caetano Luís de Miranda, 1804,
Arquivo Histórico do Exército, RJ]. Fonte: Santos et al. (2009, p.6). Organização: Santos, Márcia
M. Duarte dos; Mouchrek, Najla M. No mapa foram destacados os limites da Capitania, de suas
comarcas, as vilas cabeças de comarca, os limites com as outras capitanias e os principais elementos
de hidrografia e relevo.
117
Figura 23: Mapa da capitania em 1720. Projeção sobre mapa atual. Destaque para as áreas
limítrofes, divisão de comarcas e vilas principais. Fonte: Adaptado de Cunha (2002, p,145). No
detalhe em vermelho, o arraial Curral Del Rey, em cujas terras seria erigida a futura capital. Em
azul, Vila Rica (Ouro Preto), capital da capitania.
Apesar da existência de um núcleo populacional com status de cidade –
Mariana – foi Vila Rica que teve a primazia de ser elevada à categoria de capital da
capitania em 1720, e, posteriormente, em 1823, quando da separação da colônia da
metrópole portuguesa, à capital da província de Minas Gerais, com o nome de Imperial
Cidade de Ouro Preto. Por trás da alegação de que a localização e a prosperidade foram
os elementos definidores da escolha, pois “situada no centro de todas as Minas, aonde
(sic) ficam as distâncias sem queixas iguais a todos, para os requerimentos da justiça, e
expedição dos interesses” (MACHADO, 1967 [1734]: 179-81 apud CUNHA, 2007, p.
29), o elemento motor desta opção por Vila Rica foi o desejo da Coroa de minimizar o
poder eclesiástico então instalado em Mariana.
Em Vila Rica passaram a residir toda a nobreza e força da milícia, os homens
mais letrados, os mais portentosos,
118
cujo tráfego e importância excediam o maior dos maiores homens de
Portugal”. Para lá se “encaminham, e recolhem as grandiosas somas de ouro
de todas as Minas na Real casa da Moeda”, [...] “é por situação da natureza
cabeça de toda a América, pela opulência das riquezas a pérola preciosa do
Brasil (MACHADO, 1967 [1734]: 179-81 apud CUNHA, 2007, p. 29).
Em 1715, Vila Rica já era considerada um grande centro comercial, dispondo
de 73 vendas, 63 lojas e duas farmácias, além de uma quantidade considerável de
ofícios diversos, conforme foi levantado para fins de cobrança do quinto (SOUZA,
2009, p.8). Em 1740, contava com mais de 15.000 habitantes, recebendo o maior
contingente populacional entre os principais centros mineradores (SCHWARTZ;
LOCKHART, 2002). Para se ter ideia dessa magnitude, em termos comparativos, no
ano de 1700, a população de cidades norte-americanas não alcançava a dimensão
populacional da capital da capitania. Boston, por exemplo, tinha uma população
estimada de sete mil habitantes; Filadélfia quatro mil; New Port 2.600; Charleston 1.100
e New York 3.900 (BRAUDEL, 1970, p. 407 apud PAULA, 2000, p.34). Em 1776,
enquanto Vila Rica contava com quase 80.000 habitantes, New York, a mais populosa
das cidades citadas, tinha apenas 25.000 habitantes (PAULA, 2000, p. 35).
Foi construído em Vila Rica um palácio para o governador e instaladas as
repartições administrativas, a junta da Real Fazenda e o comando das tropas militares.
Além destes órgãos, ouvidorias, varas da justiça, intendências fiscais, casas de fundição
e guarnições de milícias foram estabelecidas na capital e nas outras sedes das comarcas,
completando assim uma estrutura político-administrativa interligada (ÁVILA, 1990, p.
78). Este modelo de organização local foi basilar em todas as colônias da América
Portuguesa desde o século XVI, não sofrendo aqui alterações significativas (MORAES,
2005, p.5). Impunha-se, no Brasil, a figura do Estado e seus respectivos tentáculos
burocrático-administrativos.
Fato relevante é apontado por Silva (2008, p.99) em relação à organização
burocrático-administrativa implantada na capitania. Embora a forte presença do Estado
na capitania seja algo inegável, com as autoridades estabelecidas se empenhando em
cumprir à risca as ordens emanadas da metrópole portuguesa e as leis promulgadas na
colônia, “o recurso à repressão direta dos elementos desviantes da sociedade” [não
garantiu] “a previsibilidade da ordem social e a imposição do Estado sobre aquela
região”. Tensões, ambiguidades, atritos e conflitos davam o tom das relações entre a
metrópole, seu braço administrativo na colônia e os habitantes da capitania.
119
Melo e Souza (1982, p. 91-140) ao analisar a forma como o poder
metropolitano se fez presente na colônia, adjetivou-a com a expressão o “o agre e o
doce”. Se as autoridades localmente constituídas pareciam se agigantar, pois uma vez
longe do centro do poder – o rei –, tomavam para si a voz do soberano, por outro lado, a
imensidão da capitania dava margem ao alargamento do poder privado, além de
acentuar a sensação de desgoverno. Assim, amalgamando a reflexão de Caio Prado Jr,
que via no desgoverno a marca da presença portuguesa, à de Raymundo Faoro, que
acentuava o centralismo e o controle efetivo da região por parte das autoridades, Mello
e Souza (1982) envereda por um caminho diferenciado em sua análise, analisando a
presença estatal na capitania mineira como uma combinação de centralidade e
ineficiência administrativa.
Na mesma linha reflexiva de Mello e Souza, Paula (2000, p.94) argumenta que
duas questões são centrais com relação à presença e natureza do Estado em Minas
Gerais. A primeira reside no fato de Minas ter tido a “primazia” de ser a capitania onde
efetivamente o Estado se impôs contrariamente à frouxa presença estatal que persistiu
na colônia entre os séculos XVI e XVII. A outra questão diz respeito à natureza
intrínseca deste Estado, com uma forma de atuação “[...] discricionária, coercitiva,
tributária vis-à-vis ausência de dimensão efetivamente democrática ou de atendimento
do interesse público” (PAULA, 2000, p.97).
Estes dois elementos combinados, quer dizer, a presença forte de um Estado
coercitivo, foram concebidos para colocar ordem, sufocar rebeliões, enforcar escravos,
apagar arestas e atrevimentos de potentados locais, fiscalizar os quintos e o extravio dos
metais preciosos. Desta forma o aparato estatal via burocracia colonial demonstrava e
reforçava o domínio da coroa sobre a colônia, subordinando-a mais diretamente ao
centro de decisão, em uma faceta mais agre que doce, usando os termos de Mello e
Souza (1982). Porém, isso nunca foi tão simples, pois nas Minas do Ouro, segundo o
nobre português Conde de Assumar, “a terra parece que evapora tumultos; a água exala
motins; o ouro toca desaforos; destilam liberdades os ares; vomitam insolências as
nuvens, influem desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião”
(MELLO E SOUZA, 1997, p. 38).
A opinião de Assumar vai em direção contrária àquelas explicitadas por muitos
escritores e analisadas sobre a vida de Minas Gerais. Simone Rocha (2007) assinala em
sua tese de doutorado o apego dos mineiros à tradição, ordem, prudência e à moderação.
Alceu Amoroso Lima, por exemplo, ressaltava o conservadorismo mineiro que tem,
120
entre seus valores fundamentais, a segurança, a permanência, a intensidade e a tradição.
Heloisa Starling, que é mineira e autora do livro Os senhores das Gerais – os Novos
Inconfidentes e o golpe de 1964 (publicado em 1986), analisou com mais detalhe a tese
da cordialidade mineira, entendo ser esta tese ambígua, pois as revoltas mineiras, que
culminaram na Inconfidência de 1789, seriam indicativos da intratabilidade dos
mineiros. Para a autora, já há pelo menos dois séculos se atribui aos mineiros a vocação
para a política e, simultaneamente, uma propensão para conspirações e rebeldias.
Mesmo tendo o aparelho burocrático instalado na capitania estendido seus
olhos e portentosos braços fiscais sobre os diferentes polos da atividade mineradora,
estabelecendo-se sobre uma opressiva e voraz trama tributária, para Ávila (1999) o
complexo arrecadador e fiscalizador auxiliou na geração de empregos e na circulação de
renda, na medida em que atraiu interesses, impulsionou ainda mais o crescimento
demográfico e favoreceu a dinamização da indústria da construção, do comércio e dos
serviços. Deixava assim algo de doce no processo de formação da capitania mineira.
No embate entre a Coroa e a capitania mineira, há que se ressaltar que esta
última desempenhou importante papel no contexto do processo de acumulação
primitiva. A produção de ouro e diamantes e a ampla pauta de importações a que a
capitania se acostumou, ainda que sob uma imposição opressiva em termos tributários,
significaram a geração de lucros coloniais consideráveis, essenciais na consolidação do
modo de produção capitalista (PAULA, 2000, p. 73). Isto porque o ouro, principal
produto de Minas, era “meio de circulação, dinheiro, que, legal ou ilegalmente circulou
amplamente na capitania” (PAULA, 2000, p.14), desenvolvendo as trocas e
estabelecendo mercados. Por outro lado, este mesmo meio de circulação garantia fundos
para a Metrópole Portuguesa e para a Inglaterra, sua “aliada”.
Estudando o grau de mercantilização alcançado pela capitania mineira no
século XVIII, um interessante artigo organizado por Cunha et al. (2006, 2007) apresenta
um esboço de regionalização para a capitania, delimitando “cadeias e regiões
econômicas” em voga nas Minas Gerais no referido século. A ideia subjacente na
regionalização proposta é que a conformação do território mineiro foi orientada pela
expansão e diversificação econômica, propiciadas pela economia mineradora, e
irradiadas dos centros mineradores em direção às fronteiras da capitania. Teríamos
assim “um processo de organização espacial orientado pelas especificidades produtivas
locais [em consonância] com os arranjos das rotas de comércio que articula” (CUNHA,
2002, p.133).
121
Ainda que apontar uma configuração de realidades regionais na capitania
mineira nos anos setecentos nos pareça algo bastante incisivo, tentar fazê-lo tendo como
elemento central o processo de diversificação suscitado pela economia mineradora é um
exercício teórico arrojado e ao mesmo tempo inovador, “pois a preocupação com a
efetiva tradução espacial, em bases cartográficas, desta diversificação de áreas, não tem
tido lugar nas pesquisas sobre o Dezoito” (CUNHA; GODOY, 2003, p.3-4). Aliás, não
só a projeção cartográfica da diversificação de áreas é inovadora, também o é a própria
ideia de diversificação, pois, por muito tempo esteve cristalizada na historiografia a
noção de que a capitania mineira restringia-se, em termos econômicos, à atividade
mineradora.
Retomando a ideia proposta por Cunha & Godoy (2003, p.4-6), destacamos
que os referidos autores começaram sua análise delimitando “categorias de percepção
geográfica” à época, quer dizer, como as pessoas (forasteiros e nativos) reconheciam e
nomeavam as especificidades naturais com as quais se deparavam. Simultaneamente,
determinaram quais as mudanças nelas processadas a partir do dinamismo da economia
mineradora. Como resultado, desenharam uma representação cartográfica da capitania
de Minas Gerais para o século XVIII (Figura 24).
Delineia-se do referido estudo que, na geografia colonial, antes das primeiras
descobertas auríferas, Minas Gerais era considerado um grande e desconhecido
“Sertão”
45
, mesmo já tendo recebido algumas expedições em busca de riquezas
minerais que resultaram infrutíferas. Essa era, em linhas gerais, a percepção que se tinha
do espaço mineiro (CUNHA; GODOY, 2003).
Contudo, à medida que as descobertas metalíferas se concretizaram, avançando
ao largo da capitania, o “desconhecido” sertão vai paulatinamente se transformando em
espaço “conhecido” (CUNHA, 2002). Neste processo, em que a atividade mineradora
45
Segundo Carrara (2007, 42-2), as primeiras referências ao vocábulo, ou seja, a acepção original da
palavra sertão remonta aos navegadores portugueses que chamavam de “sartaam” as terras localizadas
além das costas ao longo das quais navegavam e conheciam. A partir daí o termo foi sendo transmutado
até chegar à fase de identificação das áreas no interior do continente como sertões. Neste sentido, à
orientação geográfica do seu significado original seguiram-se outros, mas, sempre indicando
comparações: as conhecidas costas, engenhos, vilas, minas se opunham aos sertões, estes sempre
considerados como lugares ermos, desconhecidos ou pouco habitados. Na capitania mineira, por muito
tempo após a descoberta do ouro, os sertões eram considerados áreas de ocupação proibida ou restrita,
fechadas à ocupação. Tal medida tomada pela Coroa portuguesa objetivava evitar o extravio de ouro ou a
abertura de novos caminhos, sobre os quais não se tinha controle e fiscalização. Anastasia (2005, p.35-6),
em estudo sobre a geografia do crime nas minas setecentistas, identifica os sertões como área de non
droit, onde proliferavam desbravadores tidos como não oficiais e considerados vadios, salteadores ou
contrabandistas.
122
era o ponto focal, o espaço foi sendo modelado a partir da oposição do agora conhecido
espaço das minas, as Minas, em oposição ao espaço que continuava desconhecido, o
espaço do sertão. Em outras palavras, Minas seria a região governada pelos primeiros
descobrimentos auríferos e seu perímetro de influência imediata. O sertão, grosso modo,
após o estabelecimento dos núcleos mineradores, era tudo aquilo que estivesse além
deles, fazendo-se assim “uma clara dissociação entre os espaços do nascimento das vilas
do ouro e suas áreas contíguas, em oposição às paragens mais distantes, difíceis ou
incertas [...]” (CUNHA, 2002, p. 137).
Figura 24: Mapa da Capitania de Minas Gerais no século XVIII: categorias de percepção do espaço
setecentista. Projeção sobre mapa atual. Fonte: Adaptado de CUNHA (2002, p.140). No detalhe em cinza,
a região das Minas e suas principais nucleações. As barras laterais indicam os limites de colonização
efetiva da capitania no século XVIII.
Com a expansão do surto colonizador, dá-se um crescente avanço sobre as
áreas desconhecidas simultaneamente à sua apropriação econômica, resultando em uma
mudança na percepção do espaço. Por exemplo, à medida que a pecuária extensiva foi
ocupando áreas no desconhecido sertão, estas passam a ser reconhecidas como Currais.
Algo semelhante processou-se ao sul da capitania. Nesta área de grande fertilidade,
borda do sertão adentrada pelos paulistas, floresceu uma produção agrícola destinada ao
123
abastecimento das minas, conformando o sertão desconhecido em Campos Sul
(CUNHA, 2002).
Avançando no território mineiro, na extensão da Serra da Mantiqueira até o pé
da Serra do Mar na capitania do Rio de Janeiro, os desbravadores “descobriram” uma
área de vegetação exuberante e mais densa que foi denominada de Matos. “Marca-se aí
na paisagem natural uma divisão clara entre os ‘campos’ férteis e abertos ao sul do Rio
Grande e as áreas fechadas, dos ‘matos’ a leste” (CUNHA, 2002, p.141).
Em viagem pelas minas, escreveu o ouvidor Caetano da Costa Matoso ao se
deparar com os Matos:
[...] daí entrei a subir e vim até um ribeiro em pouca distância e dele entrei a
subir por uma serra acima, chamada Mantiqueira. [...] Do alto dela, olhando
para trás, vi a distância do que tinha andado até a serra do Mar e a infinidade
de montes de que se compõem estas serras, na verdade, demasiadamente
fragosas. [...] E daí vim descobrindo alguns morros descobertos sem mato, e
só as baixas é que tinham algum, até que cheguei mais me foram aparecendo
descobertos os morros [...] deixando aquele afogado e melancólico caminho
em que em dez dias não via outra coisa senão o mato e árvores imediatas a
mim. Assim nesse maior desafogo, cheguei pelo meio dia a uma baixa em
que há um sítio chamado a Borda do Campo, por nele acabar o caminho do
mato [...] (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1999, p. 895).
Pela descrição feita por Matoso, inferimos quão difícil era para a Coroa evitar o
extravio de ouro por meio de caminhos e picadas nos matos. Diante da impossibilidade
de manter uma fiscalização e controle efetivos dos “Sertões da Mantiqueira”, a Coroa
proibiu em 1736 a ocupação, a abertura de qualquer via, a instalação de sítios e mesmo
a circulação de homens naquela área. Conforme Anastasia (2000, p. 121-2), essa medida
restritiva estava direcionada não só aos matos, mas também às outras extremidades não
povoadas da capitania, sobre as quais as posses só seriam permitidas mediante a
autorização expressa do governador.
Sintetizando o exposto, podemos dizer que o sertão, “designação irrestrita dos
espaços desconhecidos” (CUNHA, 2002, p.142-3), vai sendo paulatinamente
“empurrado para as bordas do não ocupado, não transformado e no limite não
conhecido”. Neste processo, rapidamente se transmuta em minas, currais, campos e
matos, em um movimento de expansão dos contornos iniciais da capitania e depois
província até chegar à atual conformação do estado. Portanto podemos inferir que as
fronteiras mineiras foram sendo modeladas por longo tempo como um “objeto em
construção”, tendo como eixo propulsor a força do impulso minerador que vai urdindo
progressivamente o território:
124
[...] ‘o conjunto do território mineiro vai sendo produzido a partir da força
integradora da economia da mineração’, [em uma velocidade impressionante
e com], [...] uma progressiva incorporação de espaços de formação distinta,
diferenciados a partir de suas especificidades físico-geográficas e do curso de
suas formações econômico-sociais. (CUNHA; GODOY, 2007, p. 5-6).
As paisagens mineiras, com seus distintos relevo, hidrografia, vegetação, solo,
clima e demais especificidades naturais pouco a pouco passam a ter outras
significações. Importante destacar que estas diferenças naturais só constituem categorias
distintas de percepção com o movimento de ocupação efetiva das áreas, sendo então
traduzidas em diferentes “identidades econômicas”, [com] “uma certa unidade de
atributos geográficos, aos quais, em última instância, as atividades produtivas estão
associadas” (CUNHA; GODOY, 2003, p.33). Em outras palavras, às categorias de
percepção ditas como mato e sertão, como não ocupadas e/ou exploradas
economicamente, permaneciam identificadas como Sertões. As demais categorias,
currais, campos sul e minas, corresponderiam, respectivamente, às regiões Curraleira,
Campos Sul e Região das Minas, conforme visualizadas na Figura 25, abaixo.
.
Figura 25: Mapa da regionalização de Minas Gerais para o século XVIII. Diferenciação espacial e
especialização das atividades e eixos comerciais. Projeção sobre mapa atual Fonte: Cunha (2006, p.3).
Destaque para a área em amarelo, a região das Minas, onde se localizavam de forma dispersa as vilas
auríferas mais populosas.
125
Os espaços demarcados no mapa como Sertões não conformariam regiões do
ponto de vista econômico nos fins do século XVIII, sendo não mais que a soma de áreas
fracamente povoadas ou integradas (CUNHA; GODOY, 2003). Um segundo espaço,
ultrapassando um pouco os limites setecentistas da comarca do Rio das Mortes, foi
denominado Região Campos Sul, parte da capitania especialmente dedicada à produção
agropecuária. Em destaque em amarelo no mapa, qualificaram a existência superposta
do “hinterland da Região Mineradora, ou [...] Região das Minas, com seu entorno
estendido onde se qualifica para além da mineração, [...], concentrada na nucleação
urbana, tanto produção agropecuária como manufatureira” (CUNHA, 2006, p.8, grifo
do autor).
Além das regiões citadas, os autores ainda divisaram espaços por eles
denominados de regiões de enclave, como Paracatu e Minas Novas, as quais mesmo
possuindo algumas nucleações urbanas de hierarquia superior, não apresentavam
complementaridade econômica com as áreas a elas contíguas.
2. Para além da mineração: a produção agropecuária colonial.
Ainda que a historiografia mais tradicional mencione a total dependência da
capitania de Minas Gerais de produtos importados de outras localidades para seu
abastecimento, não realizando nenhuma outra atividade econômica além da mineradora,
mais recentemente tal assertiva vem sendo redimensionada, como vimos anteriormente
no trabalho desenvolvido por Cunha et al. (2003).
A perspectiva que ainda defende a exclusividade produtiva de ouro, segundo
diversos autores, reflete a visão hegemônica e mercantilista da metrópole portuguesa
sobre a colônia (SILVA, 2008), sendo extremamente influenciada pela farta
documentação produzida neste sentido pelo Estado português (CARRARA, 2007). Por
conseguinte, as análises baseadas nos ciclos econômicos exportadores se tornaram
referências obrigatórias quando se tratava de analisar a mineração aurífera ou
diamantífera colonial (FURTADO, 1980). Nesta dimensão, o período minerador foi
compreendido como a fase áurea da história mineira, ao realizar plenamente a vocação
exportadora da economia brasileira (PAULA, 1988).
Para além da perspectiva hegemônica e metropolitana, segundo Silva (2008,
p.76), a economia mineira no século XVIII apresentava uma relativa complexidade,
126
com uma rede interna de abastecimento, que incluía a produção agropecuária e a
“fabricação” de tecidos grosseiros, pois:
A necessidade de alimentos e de outros produtos, logo a partir dos
descobrimentos auríferos, fez com que rapidamente se diversificasse a
economia mineira. Pequenas granjas, fazendas e roças logo foram se
instalando ao longo dos caminhos que conduziam às primeiras minas de ouro
e, mais tarde, núcleos de produção foram se estabelecendo em torno das vilas
e dos arraiais (SILVA, 2008, p.76).
Neste sentido, apresentam-se, além da tradicional tese da exclusividade
produtiva aurífera, duas outras narrativas teóricas acerca das atividades econômicas
encetadas em Minas Gerais no século XVIII. De forma resumida, uma propõe a
coexistência da produção aurífera com alguma agricultura de subsistência (FURTADO,
1974; PRADO JR,1981), sendo esta, porém, encarada como atividade marginal. A
segunda narrativa defende a importância e a existência de outras atividades econômicas,
especialmente a agricultura e as atividades artesanais e sua articulação com a
mineração, porém, não em uma perspectiva secundária.
Com relação à historiografia clássica, vários são os argumentos utilizados para
defender a tese da incipiente ou mesmo inexistente produção agrícola na capitania.
Alguns estudiosos utilizam como argumento a “escassez” da mão de obra escrava. Por
conseguinte, em um contexto onde a atividade mineradora era central, não seria
interessante o desvio da força produtiva disponível para outra atividade de menor
significado e lucratividade econômica (ZEMELLA, 1995, p. 234).
As crises de abastecimento e os surtos de fome ocorridos na capitania também
são argumentos usados para rechaçar uma possível produção agrícola local vigorosa.
Esquecem os autores que a utilizam que a dimensão e a rapidez do crescimento
populacional na região das minas foram de tal ordem que a demanda por víveres cresceu
vertiginosamente, sendo muito difícil supri-la, mesmo em um cenário de considerável
produção interna.
Muitos que defendem a coexistência da agricultura com a mineração apontam a
atividade agrícola como auxiliar, secundária, precária, destinada à auto-subsistência ou
sua valorização e crescimento somente a partir da crise da atividade mineradora. Cunha
(2009, p.65), por exemplo, acredita que, os espaços inicialmente ocupados, voltados à
mineração, demandaram fluxos de abastecimento, e, neste sentido, o espaço urbano
terminou por criar um espaço rural. Com as crises de escassez nos primeiros anos do
século XVIII, momentos em que a população pioneira ainda não dispunha de vias
estabelecidas de abastecimento para os núcleos urbanos, houve a necessidade de
127
produzir “espaços complementares de produção agrícola e pastoril e, com isso, a
produção em si do espaço rural”. Assim, para Cunha (2009, p.58), além de
simplesmente anteceder o rural, o espaço urbano das cidades mineradoras é que o cria e
condiciona, “e não o contrário, como via de regra se pensa o caminho da formação das
cidades e dos espaços urbanos na história”.
Para os autores revisionistas que defendem o papel central da agricultura, já
existia uma produção interna significativa desde os primórdios das atividades
mineradoras, inclusive porque os altos preços alcançados pelos gêneros alimentícios nas
minas constituíam um estímulo à produção. Vários estudos têm abordado que ao redor
das áreas de mineração, cresceram fazendas e roças nas quais se empregavam muita
mão de obra, exclusivamente voltadas para a produção e venda de gêneros alimentícios,
ainda na época de auge da extração aurífera (GUIMARÃES; REIS, 1987;
GUIMARÃES; REIS, 1986; ANDRADE, 1985).
Segundo Charles Boxer (1969, p. 71): “Muita gente, de fato, depressa
considerou mais lucrativo plantar a fim de fornecer alimento aos mineiros do que se
entregar ela própria à mineração”. Em assim sendo, muitos sitiantes e fazendeiros, com
a utilização do trabalho familiar e/ou escravo, tornaram produtivas terras localizadas no
raio de algumas léguas dos núcleos urbanos e terrenos minerais, incluindo aquelas
disponíveis nos subúrbios das vilas e arraiais, nestas obtendo uma gama variada de
hortaliças, frutas, farinhas, quitandas, laticínios, doces e bebidas. A esse respeito,
Martins (s.d) fez estudo de caso sobre a produção em Diamantina, mostrando a
diversidade produtiva para o abastecimento local em um espaço farto em riquezas
minerais como era a referida cidade.
Na linha argumentativa que defende a centralidade da agricultura vis à vis
atividade mineradora, o artigo de Guimarães e Reis (1987) é um clássico, recuperando
informações das cartas de concessão de sesmarias e terras para contextualizar a
essencialidade da agricultura, a qual, para esses e outros autores, absorvia expressivo
contingente populacional, tendo sido primordial para a implantação e crescimento da
empresa e da sociedade mineradoras, assim como o foi com a crise desencadeada pela
decadência da mineração. Segundo os autores citados:
O argumento da absorção de todas as atenções pela atividade mineradora
deve ser refutado em dois níveis: o primeiro referente à possibilidade de se
chegar ao ouro e diamantes por meio de outras atividades, e o segundo, que
nos remete à utilização comprovada da mão de obra escrava, em quantidade
expressiva, em outras atividades diferentes da mineração, mesmo no
128
momento em que a atividade extrativa se encontra em seu apogeu.
(GUIMARÃES; REIS, 1987, p.20).
Guimarães & Reis (1987, p.20-1) apoiam a visão de Sérgio Buarque de
Holanda, citando-o ao enfatizar que na metade do século XVIII era provável que a
população que se dedicava à mineração não chegasse nem à terça parte do total, o
restante estando voltado a atividades diversas. Carrara (2007, p. 38), também vai nessa
linha argumentativa, utilizando alguns dados disponíveis sobre a estrutura ocupacional
da população à época para iluminar o lugar ocupado pela agricultura em Minas Gerais e,
em especial, nos distritos mineradores, nos quais grande parte da população estava
voltada às atividades agropecuárias. Porém, o autor enfatiza que os documentos
relativos ao período setecentista são precários para se corroborar de forma mais
abrangente sua assertiva. Ainda a esse respeito, Paula (2000, p. 40-1) advoga em seu
livro que os espaços de mineração, centrados na exploração aluvional, tiveram ritmos
diferentes, o que explicaria assim a especialização em atividades agropecuárias em
algumas regiões. Assim, conforme o autor, somente a região central – apontada no mapa
3 no detalhe em amarelo –, ficou mais tempo restrita a essa atividade em função de ter
tido um surto minerador mais longo. Nas demais localidades, a atividade mineradora foi
substituída mais rapidamente ou foi explorada concomitantemente com as atividades
agropecuárias. A hipótese da co-existência de diferentes ritmos e espaços produtivos é
também aventada por Carrara (2007, p.285), que aponta a heterogeneidade local e diz
que à capitania mineira não cabem adjetivos generalizantes, pois lá existiam muitas
Minas.
As especificidades de cada atividade produtiva em relação às demais dão uma
perspectiva da dinâmica da economia global (GUIMARÃES; REIS, 1987) e dos fatores
que terminaram por influenciar a gênese da sociedade mineira. Há que se perceber uma
polarização que contrapõe os interesses metropolitanos, representados pelos lucros
auferidos com a mineração, com os interesses dos coloniais que se dedicavam a outras
atividades que não as de extração de metais preciosos. Os argumentos apresentados são
importantes para termos uma dimensão da complexidade da sociedade mineira à época.
Como dito por Paula:
Trata-se, assim, de reconhecer, desde o século XVIII, a existência, em Minas
Gerais, de uma sociedade diversificada do ponto de vista social e produtivo,
dotada de estruturas burocráticas complexas, de mobilidade social, de vida
cultural e artística com uma insuspeitada força, tudo isto nos limites dos
constrangimentos coloniais. Numa palavra, trata-se de surpreender, nas
Minas Gerais setecentistas, uma sociedade urbana, uma rede articulada de
núcleos urbanos que se estrutura rapidamente [...] uma “civilização urbana”,
129
o que não significa negar a presença ampla e marcante da dimensão rural na
constituição das Minas Gerais, senão que afirmar a diversidade da Capitania,
da província, do Estado [...]. (PAULA, 2000, p. 14-15).
As ideias apresentadas por Paula (2000) fazem coro com as defendidas por
Schwartz & Lockhart (2002). Segundo eles, por volta de 1760 o ouro começou a
escassear, porém, o tecido social mineiro já estava consolidado. Estimuladas pelo forte
mercado local do período de expansão, fazendas mistas de mineração, agricultura e
pecuária já estavam desenvolvidas e bem consolidadas. O comércio nas vilas era
diversificado, contando com produtos alimentícios e artesanais de origem local. Tal
diversificação econômica conseguiu absorver o impacto da decadência da atividade
mineradora.
3. Religiosidade e modos civilizados: notas sobre a cultura mineira.
As especificidades da constituição de Minas Gerais não se restringiram ao
campo econômico. Um aspecto particularmente expressivo na sua formação diz respeito
às relações Estado-Igreja. Diferente das demais capitanias, onde a influência e poderio
jesuíta se mostravam no dia-a-dia no período colonial, na capitania mineira será
praticamente nula a presença dessa ordem religiosa. Alguns atribuem essa situação ao
tratamento essencialmente político dado pela Coroa à presença da Igreja, inclusive,
proibindo o “estacionamento das ordens religiosas ou expulsando os religiosos sem
função em atividades espirituais” (CUNHA, 2002, p. 190), estando o reino português
mais preocupado com uma possível apropriação dos tesouros mineiros por terceiros do
que com a evangelização dos gentios. Outros usam também esse argumento para
explicar o desinteresse e/ou fragilidade demonstrada pelas ordens religiosas na missão
evangelizadora, qual seja, pouco interesse em atividades espirituais vis à vis às suas
crescentes ambições materiais. A esse respeito, escreveu Teixeira Coelho:
Os Frades de diversas religiões, levados pelo espírito do interesse, e não do
bem das Almas, acrescentaram em grande parte o número do povo: eles,
como se fossem seculares, se fizeram mineiros, e se ocuparam em
negociações e em adquirir cabedais por meios ilícitos, sórdidos e impróprios
de seu Estado (COELHO, 1903, p. 448).
Os clérigos são revoltosos; que faltam com pasto espiritual às ovelhas, que
são ambiciosos, simoníacos, e que são rebeldes em pagar os quintos,
pertencendo não mais a isto obrigados, ocultando os Escravos na repartição
das Bateias (COELHO, 1903, p. 448).
130
A ausência e/ou a precariedade das ordens religiosas tradicionais na capitania
mineira cederam espaço à constituição e proliferação das Ordens Terceiras, Pias Uniões,
Confrarias, Arquiconfrarias e “irmandades”, muitas destas sendo organizações laicas
com práticas religiosas inspiradas em suas homônimas metropolitanas, porém singulares
em suas manifestações, “dedicadas às devoções prediletas da população local”,
adequando-se assim às especificidades das minas (CUNHA, 2002, p.188). Isso resultou
em uma vida religiosa local menos marcada pelo influxo contrarreformista,
característico da ação jesuítica, e a manutenção de uma prática religiosa em grande
medida pré-reformada, ou seja, “com fortes vínculos com a religiosidade medieval em
que há decisiva participação dos leigos, vis-à-vis, uma menor influência dos clérigos”
(PAULA, 2000, p. 99). Além disso, muitas destas instituições garantiam diversas
manifestações da vida social, tais como assistência social, festas, bem como a defesa de
interesses individuais e coletivos.
Se grassava na capitania o desejo mundano de enriquecer, as disputas ferrenhas
pelo ouro, a competição pelo subsolo, a ambição pelo poder e riqueza, existia também
um sentimento religioso que se manifestava concretamente na edificação de capelas e
igrejas em qualquer arraial e freguesia que ensaiasse existir, feitas em taipa ou em outro
material disponível, que, muitas vezes, chegavam ao nível de freguesias e paróquias
organizadas (MONTE-MÓR, 2001a). Sob essa ótica, esses espaços de fé delineados
com as cores da singular religiosidade local eram o único elemento de certa forma
estável diante da “paisagem inquieta dos ajuntamentos marcados pelo sabor das
descobertas auríferas” (CUNHA, 2002, p.188).
Em face da fragilidade do poder central nas minas e de sua impossibilidade de
dar respostas consistentes às necessidades de uma dinâmica econômica e demográfica
jamais vistas na colônia, a proliferação das irmandades foi incentivada pela Coroa como
alternativa organizacional à centralização da Igreja, tornando-se “importantes
instituições da sociedade civil de então, isto é, os únicos espaços capazes de garantir
algum grau de organização autônoma, de busca de defesa de interesses coletivos”
(CUNHA, 2002, p. 49), com destacada abrangência na capitania e exercendo atração
sobre todas as camadas da população.
Neste sentido, Cunha (2002) destaca que as irmandades penetravam
profundamente na vida das pessoas, sendo imprescindível filiar-se a uma dessas, uma
“condição de vida e morte para o habitante das Minas”, já que até mesmo o
sepultamento não se fazia sem o hábito de “Irmão” (BOSCHI, 1986, p. 150-151 e p.
131
177), pois as áreas destinadas a tal fim, a céu aberto ou dentro dos templos, pertenciam
às irmandades.
Em contrapartida às dificuldades e crueza da atividade mineradora e ao
embrutecimento cunhado pela labuta nas minas, as irmandades religiosas acenavam
com auxílio espiritual e material, com o apoio mútuo e a solidariedade em meio ao
ambiente hostil, onde a “[...] insegurança e instabilidade” eram os elementos mais
palpáveis naquelas longínquas paragens (MONTE-MÓR, 2001a, p.5). Há que se
destacar, porém, que as irmandades se organizavam em grupos de acordo com a
condição social dos irmãos, por exemplo, os comerciantes ricos, donos de lavras e
burocratas pertenciam normalmente aos quadros das ordens terceiras do Carmo e de São
Francisco; as classes dirigentes originais das povoações e dos reinóis associavam-se às
confrarias do Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora da Conceição, São Miguel e
Almas, Bom Jesus dos Passos e Almas Santas; os escravos africanos às irmandades do
Rosário, São Benedito e Santa Efigênia; os escravos crioulos, forros, mulatos à
irmandade Mercês, e os pardos à de São Gonçalo (SALES, 1963, p. 47; BORGES,
1998, p. 66).
O naturalista francês Saint-Hilaire (1975, p.85) descreveu a religiosidade laica
mineira com desconfiança, traduzindo-a como ausência da fé, já no século XIX. Para ele
era comum o mineiro ir “[...] à missa bater no peito e, ao mesmo tempo, conversar com
os vizinhos. Quase todos os mineiros usam um rosário no pescoço, mas muito poucos
existem a quem tenha visto rezar”. Contrapondo-se a essa perspectiva, Boschi (1986)
argumenta que a religiosidade mineira revestiu-se de um viés essencialmente
pragmático. Assim, as devoções pessoais, o culto aos santos, as pompas das festas e das
procissões, características da religiosidade mineira, longe de representarem ausência de
fé ou ostentação eram manifestações imbuídas de um:
[...] caráter essencialmente prático e imediatista, em que se busca suprir a
insegurança emocional, levar consolo e prestar auxílio nas doenças (...). Por
isso, o culto aos santos, longe de ser uma atipicidade, tornou-se exatamente o
seu traço peculiar. Em síntese, não houve naquela realidade social sinais de
irreligiosidade; antes, ali aflorou uma forma própria de vivência do
catolicismo, em que a fé se associava à cultura local. (BOSCHI, 1986, p. 1789).
Com as vantagens proporcionadas pelas ordens laicas para a Coroa, dentre elas
a possibilidade de redução de custos pela transferência às comunidades de diversas
tarefas e obrigações funcionais e financeiras do estado português, as irmandades foram
132
ao longo dos anos não só incentivadas quanto por ele cooptadas. Por sua vez, esta
relativa descentralização de poder resultou no fortalecimento em Minas Gerais de uma
urbanidade e cidadania peculiares no contexto das cidades coloniais brasileiras. Como
resultado desse processo dá-se a formação de uma população livre nas vilas da
mineração, superior numericamente, em alguns momentos e locais, à população escrava.
Outra peculiaridade que teve lugar na capitania mineira foi a emergência de uma classe
média poderosa e diversificada, desenvolvida com o comércio e artesanato,
monetariamente capaz de realizar investimentos urbanos e empenhar-se em disputas de
poder ao nível local. Algumas dessas redundaram, por exemplo, em tentativas de
estabelecer uma autonomia republicana, tal qual na Inconfidência Mineira.
Retomando a ideia da singularidade constitutiva da sociedade mineira, outro
ponto que merece ser destacado é que a ebulição econômica, social e política bem como
sua religiosidade “típica” também trouxeram consequências no âmbito cultural,
projetando em Minas Gerais um espaço diferenciado, seja na música, na literatura,
artesanato e, como não poderíamos deixar de citar, na arquitetura. Utilizando materiais
locais, a saber, pedra sabão, madeira e alvenaria, as construções civis bem como as
edificações religiosas são reconhecidamente marcadas pela engenhosidade e pela
qualidade técnico-artística. Não por outro motivo, a quantidade de mestres e artesãos
que residiam na capitania mineira era muito expressiva além de, como aponta Paula
(2000, p.45-6), uma grande diversidade de pessoas ligadas às “manifestações artísticas e
profissionais típicas da civilização urbana”, tais como música, teatro, escultura, pintura,
ofícios jurídicos e práticas médicas, inclusive tendo um corpo médico dos mais
atualizados da colônia.
Este caldeirão cultural transbordava de refinamento intelectual, rebeldia, e
impressionante criatividade artística e, aliado à presença de notáveis equipamentos
urbanos, “(...) fizeram de Minas um lugar singular na América portuguesa”, enfim, “(...)
um resíduo de vilas, igrejas, artesãos, música, arte, e outras formas de vida cultural
(SCHWARTZ; LOCKHART, 2002, p. 436), que possibilitaram uma profusão de
cultura em estado puro”.
Paula (2000, p.117) destaca a capacidade intrínseca dos mineiros de se
apropriarem, ao longo do tempo, de elementos culturais externos, recobrindo-os com
um verniz próprio, ou seja, plasmando-os “a partir de uma genuína cor local”. Segundo
ele existem muitos exemplos de como os repertórios culturais europeus foram agilmente
assimilados, transformados e difundidos nas Minas, mesmo com as precárias condições
133
de transporte e comunicação vigentes à época. Por outro lado, esses códigos da cultura
europeia não eram tão somente copiados, mas resultavam em efetivas apropriações que,
não raro, impressionam por transcender a motivação da matriz europeia, como por
exemplo, o movimento Barroco.
Avaliando que, ao se falar de um sistema cultural, não podemos considerar
apenas o referente às artes, ao discurso letrado, mas também àquilo que diz respeito ao
“cotidiano e suas várias tramas”, é importante perceber que determinados aspectos da
cultura mineira “são tão constituintes de sua identidade quanto o decorrente de suas
manifestações estético-religiosas”. Sob esta ótica fazem parte do sistema cultural
mineiro também sua comida e as condições em que eles a “inventaram” no período
colonial, ainda que seja a “alimentação um fato histórico, que se transforma ao longo do
tempo, que não admite juízos fixos” (PAULA, 2000, p.115).
Cabe ainda mencionar outro elemento constituinte da identidade mineira que é
a forma como a língua portuguesa foi ali adaptada. A ausência da educação jesuítica, a
interdição da imigração de estrangeiros, a forte presença africana – em uma sociedade
com expressivo contingente populacional e relativo grau de mobilidade –, suscitaram
em Minas uma trama social complexa e heterogênea. Tais elementos, sob intensa
interação e sobrepostos a uma estrutura produtiva diversificada, considerável nível de
urbanização e presença do Estado, resultaram na formação de um efetivo “sistema
cultural” a partir do século XVIII, ou seja, um conjunto articulado, interativo e
complexo dos citados elementos, produzindo tanto “(...) instituições quanto símbolos,
mentalidades e representações” (PAULA, 2000, p.117).
Pelo exposto anteriormente, poderíamos inferir que estaria em curso na
capitania mineira, a partir do século XVIII, um processo civilizador nos moldes de
Norbert Elias (1993)? Esta é realmente uma questão complexa que merece investigação
particular. Alguns autores dão algumas contribuições neste sentido.
Eduardo Frieiro (1966), por exemplo, fala da rudeza e precariedade dos
mineiros, especialmente à mesa, onde comiam sem o uso de talheres, entre outros
costumes “incivilizados” dos menos abastados. Júnia Furtado assim os descreve:
As mãos desses homens e mulheres davam forma à pedra, à madeira e a
outros objetos que, juntamente com as mercadorias que o comércio trazia de
longe, compunham o universo material que moldava o cotidiano da sociedade
mineradora. Dentro das casas reinava a simplicidade, os móveis eram poucos
e rústicos, as roupas, em geral escassas. A maioria das pessoas dormia em
redes ou em estrados de madeira, cobertos de palha. As camas de madeira,
134
principalmente as com dossel, eram raras e constituíam um luxo. À mesa, os
hábitos eram simples. Sentava-se geralmente em tamboretes e comia-se em
pratos de folha ou estanho, quase sem a utilização de talheres. Os talheres de
prata serviam mais como pecúlio, penhorado em troca de moedas em uma
hora de aperto (FURTADO, 2009, p. 137).
Porém, a autora faz um contraponto, dizendo que tal padrão de comportamento
não era generalizado, pois “[...] havia ambientes onde o luxo imperava, muitas vezes até
mesmo onde se esperaria a simplicidade” (FURTADO, 2009, p.137). Parece ser esse o
caso, por exemplo, dos modos de vida de negras mineiras alforriadas, conforme
descrição seguinte:
Não foram poucas as mulheres forras que reuniram entre as paredes de sua
casa objetos que rememoravam seu passado africano, junto a outros que
permitiam a inserção delas na cultura branca portuguesa, assumindo em parte
seus hábitos, a partir do domínio sobre a cultura material, o que lhes
distanciava cada vez mais do mundo da senzala onde nasceram (FURTADO,
2009, p.137).
O exemplo nos remonta à análise de Moreira (2006, p. 7) quando este diz que
na “dimensão da vida das pessoas, alguns valores e éticas de comportamentos são
construídos legitimados como verdadeiros e superiores enquanto outros valores e éticas
são localizados como falsos e inferiores”. Nesta perspectiva, não era fato raro nas minas
coloniais, os libertos possuírem escravos, propriedades urbanas e transmitirem bens a
seus descendentes, invertendo papéis e hierarquias sociais cristalizadas.
Baseado nos depoimentos de viajantes estrangeiros em passagem pela capitania
mineira, Frieiro (1966) escreveu acerca dos rotineiros e luxuosos modos dos mineiros
ricos, tais como o jeito refinado de se trajar, o uso de louças finas da Índia e de Macau e
outras de procedência inglesa e portuguesa, bem como o emprego de talheres de prata
nas refeições diárias. Segundo ele:
Mais de um viajante estrangeiro, ao penetrar no território de Minas, depois de
ter conhecido São Paulo, Rio de Janeiro, pôde observar que havia mais luxo
no vestir da gente mineira do que na de outras partes do país. Quase todos
notaram também, registrando-o em relatos de viagem, o que havia de
acolhedor e afável no seu trato. [...], John Luccokc, inglês atilado e veraz, que
não poupava críticas, às vezes malignas, aos defeitos de nossos costumes e às
falhas da nossa organização social e econômica, louvou a “civilidade
calorosa” com que o trataram nos lugares de Minas por ele percorridos em
1817. [o citado inglês fala sobre um jantar em São João Del Rey] Além de
muita prata e louça inglesa, havia rosca da cidade, cerveja inglesa
engarrafada e bom vinho do Porto servido em cangirões de cristal lapidado
(FRIERO, 1966, p. 103-5).
Ainda sobre os comportamentos e gostos diferenciados dos mineiros bem
aquinhoados financeiramente, a narração feita pelos alemães Von Spix e Von Martius
135
durante sua passagem por Diamantina, uma das mais prósperas vilas do período
colonial, é esclarecedora a esse respeito e, ainda que longa, merece ser aqui transcrita:
É fato observado por todos os viajantes, que os mineiros, embora isso
surpreenda, diferem inteiramente pelo caráter e pelo físico dos habitantes de
outras capitanias, [...]. O mineiro tem [...] por natureza um certo garbo nobre,
e o seu modo de tratar é muito delicado, obsequioso e sensato; no gênero de
vida é sóbrio e parece sobretudo gostar de uma vida cavalheiresca. Em todos
esses traços tem ele muito mais semelhança com o vívido pernambucano do
que com o paulista pesadão. Tal como o primeiro ele parece ter uma certa
predileção pelos produtos e vestuários da Europa. Como os ingleses, o
mineiro faz muita questão de grande asseio no trajar e do terno branco,
sobretudo nos dias de festa. [...]. Em geral ele traja jaqueta de chita ou de
veludo cotelão preto, colete branco com botões de ouro, calças de veludo ou
de pano de Manchester e botas compridas de couro, não tingidos, que são
atadas acima do joelho com fivelas; o chapéu de feltro com abas largas serve
de guarda-sol; a espada e não raro a espingarda, além do guarda-chuva, são
seus companheiros inseparáveis, desde que sai de casa. As viagens, mesmo as
mais curtas não se fazem senão montados em mulas. Estribos e freios são
aqui de prata, e do mesmo metal é o cabo do facão que eles escondem na
bota. As mulheres viajam de liteiras carregadas por bestas ou negros, ou se
sentam em uma cadeirinha segura às costas de mulas, vestidas com larga
amazona azul e chapéu redondo. No mais, excetuando a cabeça, que é
protegida apenas por guarda-sol, elas vestem-se à moda francesa, tendo a
bainha de baixo da saia branca não raro guarnecida com flores, bordados ou
estampados, ou mesmo com galantes versos (VON SPIX; VON MARTIUS,
1981, p.175).
Mello e Souza (1982), rechaçando a noção de riqueza da sociedade mineira à
época do ouro, mostra em seu clássico estudo que nela, ao contrário do que se apregoa,
a pobreza era generalizada, predominando o universo da pobreza e marginalidade, com
sua imensa massa de “desclassificados sociais”. Na obra assim intitulada, a autora se
debruça sobre a posição e o tipo de vida desfrutada por homens e mulheres na capitania,
demonstrando que a mesma era decorrente de suas posses. A presença de clivagens e
desigualdades econômicas se refletia no quadro cultural.
4. A sócio-gênese mineira: um rápido resumo.
Retomando as reflexões sobre a sócio-gênese mineira, vimos que a
preponderância inicial de um sistema urbano, a implantação pioneira de um sistema
estatal nas terras mineiras, a presença de um sistema monetário-mercantil e um sistema
cultural e religioso próprios tornaram Minas Gerais um espaço diferenciado, sendo
reverenciado por muitos por um suposto ethos urbano, inusitado e moderno,
comparativamente às outras capitanias. Alguns autores defendem que os citados
136
elementos diferenciadores, presentes no território mineiro, terminaram por moldar uma
“tessitura de modernidade” em Minas Gerais em pleno século XVIII (PAULA, 2000,
p.15) Este autor define a modernidade mineira contrapondo-a a uma série de
características típicas da época medieval, quais sejam, ruralização, fragmentação do
poder político, localismo, hegemonia absoluta da religiosidade, estratificação rígida da
estrutura social e ampla presença das relações de dependência pessoal.
De acordo com Alexander (1995), o termo modernidade é altamente relativista.
Emergindo no século XV como uma invenção do cristianismo, o termo foi utilizado à
época pelos romanos cristianizados para distinguir sua religiosidade da “barbárie” dos
pagãos da antiguidade e dos judeus não regenerados. Nos tempos medievais, a
modernidade foi reinventada como um termo designativo de cultivo e aprendizado, o
que permitiu aos intelectuais se identificarem com os aprendizados clássicos dos pagãos
gregos e romanos. Durante o Iluminismo, ainda de acordo com Alexander (1995), o
termo modernidade passou a ser usado como sinônimo de racionalidade, ciência,
progresso e futuro.
Brusëke (2002, p.138) propõe analisar a modernidade como uma mudança
essencialmente técnica. Ele explica esta escolha enfatizando ironicamente que desta
forma evitar-se-ia “uma discussão sem parâmetros sobre os ideais iluministas, em que
uma boa ideia se opõe a outra”. Para ele, contestar a modernidade em seus ideais, um
verdadeiro e belo catálogo de promessas que inclui o clamor pela igualdade, liberdade e
justiça; o humanismo e sua moralidade universal; a valorização do direito, da ordem e
do progresso da humanidade; a razão centrada no sujeito; a racionalidade e
cientificidade, é tarefa ambiciosa, visto que tais ideais, em seu conjunto, são orientados
por um “amálgama de resquícios da consciência moral cristã, de um individualismo
nascente (...) e novas formas racionalizantes de se pensar o mundo, bem como o homem
no mundo. Conforme o autor, já que a modernidade como época histórica, nasce com a
ciência e a técnica moderna, sendo tão influenciada por elas, deveria ser denominada e
caracterizada como “modernidade técnica”.
Acompanhando a visão de Teixeira (2006), penso que para entender a
modernidade, deve-se considerá-la não somente como um fato científico, técnico ou
filosófico, mas como um evento cultural e global, porquanto as ideias modernas não
consistem somente no surgimento de ideias novas, mas de uma práxis. Giddens (1991,
p.11), por exemplo, em suas primeiras elaborações teóricas, enfatiza uma definição de
modernidade calcada em cultura e epistemologia. Para o autor, o termo definiria “um
137
estilo, costume de vida ou organização social” que, surgindo primeiramente na Europa,
em meados do século XVII, posteriormente se expandiu por todo o mundo. Para ele,
isto associa “a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica
inicial”, mas essa construção como definidora da modernidade em si, não é suficiente,
permanecendo “suas características principais guardadas em segurança numa caixa
preta”.
Abrindo-a em trabalho mais recente, Giddens (1991, p.11) parte de uma
definição de modernidade que abarca como principais dimensões a industrialização, o
modo de produção capitalista, as instituições de vigilância, o controle dos meios de
violência, a ascensão das organizações, além do Estado-nação. O termo modernidade é
por ele empregado em um sentido mais geral, referindo-se “às instituições e modos de
comportamento”, que se tornaram mundiais em seu impacto e influência no século XX,
em uma disseminação começada a partir da Europa.
Valendo-nos de Kumar (1997) para acrescentar mais alguns senões à
proposição de Paula (2000), não podemos esquecer que a modernidade é composta não
só de modernismo, no sentido de instâncias culturais, mas também de modernização,
relacionada às instâncias técnico-econômica, ou ainda uma condição, associada às
sociedades industriais, marcada pelo compromisso com a mudança e a inovação em
caráter permanente. Sob essa ótica, parece-nos arriscado afirmar a existência de um
processo de tal magnitude em Minas Gerais ao pensamos modernidade como
emergência de instituições, de valores, de concepções, de atitudes, de modos específicos
de vivência do tempo, de apropriações do espaço, de produção e reprodução material, de
organização da vida política, de vivências subjetivas, enfim, em uma época e espaço
moldados por assimetrias de poderes. Por conseguinte, mesmo estando lá presentes o
Estado, um mercado dinâmico e um sistema cultural próprios não podemos
desconsiderar que essas instituições estavam sujeitos aos constrangimentos da situação
colonial da capitania.
Como defende Moreira (2005, p.28-33), sob os auspícios de uma modernização
capitalista periférica incompleta, o Brasil, e obviamente Minas Gerais, carrega os traços
do domínio colonial-escravista português, tendo assim especificidades da vivência de
processos de modernismos culturais sem modernizações econômicas abrangentes. Desta
forma, seria um erro interpretativo supor que o processo vivenciado em Minas se
assemelhe aos processos da modernidade europeia, nos quais há uma íntima associação
entre modernismo cultural e modernização econômica.
138
Desta forma, se o processo de colonização em Minas Gerais constituiu-se de
forma diferenciada com relação aos outros estados, ainda assim há que se destacar que
sua pretensa modernidade foi limitada, sendo, em última instância, reprodutora de uma
estrutura social excludente.
Retomando a ideia lançada por Paula (2000), é interessante pensar o acontecido
em Minas Gerais no século XVIII, ainda que não caracteristicamente como um processo
modernizador, mas como algo diferente do que se passou no resto das conquistas na
América Portuguesa. Porém, para muitos, este diferente era um sinal claro da
modernidade mineira. E, para fazer jus a essa especificidade não bastava mais ter uma
capital como Vila Rica. Era preciso uma capital moderna.
Neste sentido, começa a fazer eco, alinhada à ideia da modernidade mineira a
necessidade da mudança da capital. Aparentemente, com a perda da hegemonia
econômica e política da região das Minas, não fazia mais sentido ser a capital da
capitania e depois da província, a cidade de Vila Rica. Veremos a seguir mais um
pedaço da história mineira e suas inter-relações com os acontecimentos nacionais. De
uma Vila Rica parte-se então para um Belo Horizonte.
5. Eliminando Ruralidades: do Curral Del Rey a um Belo Horizonte.
Conforme vimos, a mineração foi a atividade motora por trás da configuração
espacial mineira desde o século XVII. Em Minas Gerais, a cidade – e não o campo – foi
a forma inicial de organização do espaço no qual o homem encontrou meios adequados
para sua sobrevivência e desenvolvimento de suas potencialidades. Ancorada na pujante
base material do ouro e pedras preciosas com os quais havia sonhado o colonizador
português por quase dois séculos, a ocupação mineira nasceu urbana. Única região das
colônias ibéricas cuja base cultural foi enraizadamente urbana, no início do século XIX,
já havia em Minas Gerais, cerca de 400 núcleos urbanos.
Esse fenômeno de urbanização precoce de toda uma extensa área acidentada e
central do país, até o final do século anterior inóspita e penetrada apenas pelos
exploradores pioneiros, deveu-se sem dúvida a alguns fatores peculiares, entre eles o
predomínio econômico da indústria extrativa mineral, consolidada e submetida ao
controle de uma burocracia organizada que estendia seus braços fiscais aos diferentes
polos da atividade mineradora. Enquanto Vila Rica, elevada à condição de capital em
139
1720 com a criação da capitania autônoma de Minas Gerais, abrigava o palácio do
governador, as repartições administrativas imediatamente subordinadas, a poderosa
junta da Real Fazenda e o comando das tropas militares, as demais vilas, especialmente
as cabeças de comarca, incluída aí a própria Vila Rica, reuniam órgãos de jurisdição
regional como as ouvidorias e varas de justiça, as intendências, casas de fundição e
guarnições de milícia. A presença desse complexo aparelho burocrático, ao gerar
empregos, atrair interesses e fazer circular a renda, impulsionava não só o crescimento
demográfico e urbano dos núcleos, como também a indústria da construção, o comércio
e os serviços.
Em pouco mais de meio século haveria de consolidar-se na região das Minas
um elevado número de centros urbanos dispersos pelo território montanhoso da
província das Minas:
O processo de ocupação do território que veio a se tornar Minas Gerais se
acentuou entre o final do século XVII e início do XVIII, com a descoberta de
ouro. As criações das três primeiras vilas – em 1711, Vila Real de N. Sra. Do
Carmo (Mariana), Vila Rica (Ouro Preto) e Vila Real da Conceição de
Sabará – sinalizam os primeiros focos de extração aurífera e o principal
destino dos imigrantes. No segundo momento, de 1713 a 1750, as ereções das
vilas de São João e São José del Rei [atual Tiradentes], Caeté, Pitangui,
Minas Novas e Serro marcaram a consolidação do “núcleo minerador
principal de Minas Gerais” (Paula, 1988 apud Rodarte, 2008).
Segundo Rodarte (2008), essa ocupação, como testemunha o relativamente rápido
ciclo de auge da produção aurífera, ocorre em grande velocidade. Ao longo de pouco
mais de meio século, acorreram à região um elevado número de reinóis, gente branca da
colônia e, numerosos escravos, cujos braços fortes e o conhecimento prático trazido de
seu continente natal foi muitas vezes fundamental para o êxito da atividade mineradora,
já que muitos:
“homens e mulheres africanos, embarcados na Costa da Mina (...) eram
tradicionais conhecedores de técnicas de mineração do ouro e do ferro, [e]
técnicas de fundição desses metais. (...) conheciam muito mais sobre a
matéria que os portugueses...” (PAIVA, 2002, p.17).
Esse influxo de população, pela sua dimensão e rapidez, ocasionou
“desequilíbrios econômicos”, em função do descompasso entre a expansão da demanda
por víveres e sua incipiente, ou mesmo inexistente, produção na região, aliada à
irregularidade na importação de gêneros alimentícios de outras áreas da colônia
(RODARTE, 2008). Diante das muitas crises de abastecimento alimentar e das revoltas
resultantes das mesmas, em breve, já na segunda década do XVIII viriam as primeiras
140
cartas da coroa portuguesa aceitando a delimitação de propriedades rurais destinadas à
criação, ao cultivo de milho e cana-de-açúcar para produção de açúcar, rapadura e
aguardente (RODARTE, 2008). Importava à coroa a manutenção da ordem e da paz
para a perfeita condução da atividade mineradora.
A cidade mineradora mineira, e o espaço econômico que ela ordenou, percorre
um caminho tortuoso ao longo do séc. XIX, após a decadência da produção de metais e
pedras preciosas nos moldes sob os quais ela se assentava – principalmente em termos
técnicos – no período de auge do século anterior. Seu espaço econômico se
metamorfoseia de modo a se adaptar ao novo contexto nacional que emerge, na qual o
centro econômico se constitui no Rio de Janeiro e em seguida em São Paulo
(RODARTE, 2008).
Naquele cenário, um manto de ruralidade se estenderia sobre a consolidada
rede urbana mineira em função da ausência, ou desconhecimento, de novas técnicas que
tornassem a mineração do ouro novamente possível na base técnica até então utilizada.
Esse processo implicou na transmutação da província de importadora em exportadora de
viveres e gêneros alimentícios, ao mesmo tempo em que a economia da mineração se
restabeleceria em bases muito mais amplas e francamente industriais, eliminado assim a
mineração de base artesanal. O “coração de ouro” dos recursos minerais do estado
estaria disponível somente com o emprego das técnicas industriais avançadas de
exploração que seriam implantadas pelo capital estrangeiro, especialmente inglês que,
posteriormente, assume a mineração do ferro e sua cadeia produtiva no estado ao longo
do século XX.
Simultaneamente ao ocaso da atividade mineradora, vários movimentos
capitaneados pela emergente classe agrário-exportadora são deflagrados no sentido de
promover a mudança da capital. Para eles, a “velha Ouro Preto”, capital da província e
centro irradiador da atividade mineradora, não conseguia mais dar suporte às novas
atividades econômicas e respectivas demandas. É importante ressaltar que a construção
da nova capital era considerada urgente pelos grupos políticos dominantes, dadas às
pressões internas e a necessidade de garantir coesão, articulação e integração territorial
e política ao Estado. Estavam lançadas as sementes para a constituição da futura capital,
inaugurada como símbolo da modernidade, contrapondo-se assim a um país de
características urbanas ainda marcadamente coloniais.
Para fazer jus ao título de estado urbano, portanto “moderno”, Minas Gerais
não podia continuar a ter uma capital cuja localização era inóspita ao crescimento –
141
como era dito de Ouro Preto – para muitos a representação imagética de um passado a
ser esquecido diante dos alvores da República. Ouro Preto, a capital, era a
materialização do arcaico, do imperial, da desordem urbana, com suas “ruas estreitas e
casas amontoadas, ‘sem espaço, sem horizonte, sem luz’” (SALGUEIRO, 2001, p.144),
um ajuntamento de “ruas tortuosas (...), casas baixas e deselegantes” (BARRETO, 1995,
p.245). Deveria então ceder lugar ao novo, a um espaço projetado que permitisse
visualizar a grandeza mineira, amplificada pelo seu belo horizonte:
Como se vê, a nova capital de Minas será brevemente uma cidade digna
desse Estado próspero, e que abriga, sobretudo em minerais, riquezas por
assim dizer inesgotáveis. Sua exploração não poderá deixar de favorecer esta
obra, empreendida com ousadia e executada com perseverança. (RIMG,
1897apud ANGIOTTI-SALGUEIRO, 2007, p. 54).
O traçado regular de Belo Horizonte e a uniformidade de sua malha urbana
vieram a se contrapor à desorganização da ocupação espontânea que ocorreu no Curral
Del Rey (BARROS, 2001), arraial46 cujas terras e população sucumbiram diante da
voracidade modernizadora de implantação da futura capital. Nesta metamorfose, o novo
necessariamente deveria substituir o antigo (Figuras 26 e 27).
Figura 26: Julius Kaukal (Viena, 1897 – Belo Horizonte, 1995), ilustração do Arraial de
Curral Del Rei. In: SENNA, Nelson C. Cinqüentenário de Belo Horizonte. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1948. Acervo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.
46
O arraial recebeu este nome porque, segundo Dias (1897, p.18), ali era um lugar de ajuntamento e de
partilha do gado pertencente à Coroa e que descia da Bahia em direção ao Rio de Janeiro. O arraial
abastecia as grandes minerações da zona do Rio das Velhas e via aumentar sua população com a chegada
dos forasteiros. Seu primeiro habitante iniciou a atividade agrícola e pastoril, promovendo o
desenvolvimento da área e tornando-a centro de abastecimento e produção num setor pouco explorado já
que o espírito da época estava voltado para exploração do ouro. Quando da passagem da Monarquia à
República, o nome do arraial foi mudado para Belo Horizonte, pois o desejo à época era “apagar para
sempre tudo o que ‘cheirasse’ a trono ou se referisse ao rei”.
142
Figura 27: Julius Kaukal (Viena, 1897 – Belo Horizonte, 1995), ilustração de Belo Horizonte
em 1947. In: SENNA, Nelson C. Cinqüentenário de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1948. Acervo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.
Segundo Gomes (2005), a criação de um novo centro urbano e administrativo
não foi episódio superficial na vida mineira, sofrendo a influência de fatores mais
concretos, de ordem econômica; e facilitada por outros, de ordem financeira. Como
causas econômicas, o autor salienta a inadequação da localização e da estrutura urbana
das cidades da mineração, bem como a decadência da atividade mineradora vis à vis ao
crescimento econômico das zonas sul, oeste, sudoeste e da mata, impulsionadas pela
pecuária e agricultura. O fator financeiro foi a ocorrência de superávit no caixa do
governo estadual devido ao bom desempenho da cultura cafeeira no período
imediatamente anterior à mudança.
O contexto que envolveu a transferência e a construção da nova capital foi
marcado pela Abolição da Escravatura e pela Proclamação da República, esta fundada –
no plano discursivo –, sobre os valores da liberdade, da ordem, da ciência e do
progresso. Como aponta Barros (2004, p.8), o planejamento e a construção da capital
mineira resultaram de uma “estratégia espaço-temporal e simbólica de construção de
uma nova legitimidade”. Para Julião (1996, p.50), distinguir-se da antiga ordem criou a
necessidade de um “deslocamento, uma mudança de lugar e o advento da República era
o elemento-chave na concepção desta temporalidade, sendo a cidade, o espaço de sua
representação”.
143
Desta forma, a nova capital emerge sob a égide da ordem política republicana,
ao mesmo tempo em que é associada simbolicamente a um novo tempo, o da
modernidade:
(...) Um novo tempo nasceria junto com uma nova cidade, combinando a
solidez natural das montanhas e a rigidez humana dos edifícios; a fluidez das
paisagens mineiras e a leveza de parques e alamedas projetadas
(FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1997, p.24).
Segundo Passos (2009, p.39), “Belo Horizonte surgiria tendo como ideal ser
uma metrópole, não somente de Minas Gerais, mas da República”. O projeto da cidade
teria sido pensado de forma a escrevê-la no mundo moderno, apresentando-se assim,
como espaço para constituição de uma nova sociabilidade. Nos dizeres da época: “a
nova capital de Minas Gerais atrairá irresistivelmente a atenção do mundo europeu (...)”
(DIAS, 1892, p. 46 apud ANGIOTTI-SALGUEIRO, 2007, p. 46).
A intervenção do Estado foi primordial para a construção de Belo Horizonte,
cujo traçado inspirou-se nas experiências urbanísticas das cidades europeias e norteamericanas para produzir “a cidade planejada”.
Passos (2009) citando o livro Carne e pedra, de Richard Sennett, lembra que
os arquitetos e engenheiros das cidades planejadas à época tinham como elementos
inspiradores dos seus traçados a compreensão do corpo humano e de sua circulação
sanguínea, como descritos por William Harvey em De motu cordis, obra de 1628, tida
como revolucionária dentro dos preceitos da razão científica moderna. Nesta obra,
Harvey descreve o coração bombeando o sangue por meio das artérias e veias, ao
mesmo tempo em que o recebe das veias para ser bombeado. O fato foi que muitos
engenheiros e urbanistas usaram esta descrição fisiológica como analogia para o
planejamento e construção de suas cidades: “a livre circulação (como a sanguínea) ao
longo das ruas principais, estas se tornando um importante espaço urbano, cruzando
áreas residenciais ou atravessando o centro da cidade” (PASSOS, 2009, p.43).
Não foi diferente em Belo Horizonte, pois como cidade que se deseja moderna,
não fugiu ao paradigma de ser um local de segmentação (PASSOS, 2009, p.44). Como
apregoado nos ditames urbanísticos e arquitetônicos progressistas, iniciados na segunda
metade do século XIX, a nova Capital de Minas Gerais também foi planejada para ter
espaços classificados e ordenados de acordo com as funções e necessidades sociais.
Assim, no plano da nova capital, foram delimitadas três zonas: urbana, suburbana e
rural, assim estabelecidas como um “instrumento para o controle da cidade” (JULIÃO,
144
1996, p.57). O objetivo deste “enquadramento social” seria, portanto, o de estabelecer
uma ordem dentro da cidade.
Passos (2009, p. 45) discorrendo acerca das cidades planejadas recorre à
Foucault e a noção de vigília exposta no seu livro “Vigiar e Punir: o nascimento da
prisão” para ilustrar a forma como os indivíduos são disciplinados em tais cidades. De
acordo com a autora, a arquitetura destas cidades faz com que o poder seja exercido a
cada olhar, nas ruas largas, vastas e limpas, possibilitando uma vigilância e tensão
constantes sobre o indivíduo. Como nas palavras de Foucault:
(...) uma arquitetura que não é feita simplesmente para ser vista (fausto dos
palácios) ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas
para permitir um controle interior, articulado, detalhado; para se tornar
visíveis os que nela se encontram. Uma arquitetura que seria um operador
para transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio
sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-los
a um conhecimento, modificá-los. O velho esquema simples do
encarceramento e do fechamento (...) começa a ser substituído pelo cálculo
das aberturas, dos vazios, das passagens e das transparências (FOUCAULT,
1984 apud PASSOS, 2009, p.45).
A zona urbana constituía o espaço moderno e ordenado, com suas avenidas
largas, retas, geométricas, infraestrutura sanitária e técnica, enfim, um espelho das
cidades mais modernas do mundo, com a tarefa de projetar e inscrever no seu espaço, os
valores do progresso e da racionalidade. Caracterizava-se por uma privilegiada
topografia com baixa declividade, sendo utilizada pela elite como local de residência.
Deu origem ao bairro dos Funcionários e sítios de recreios nos contornos da capital
(SILVA, s.d.). A zona urbana tinha como limite um boulevard circundante, que recebeu
o sugestivo nome de Avenida do Contorno.
Na zona suburbana, fora dos limites da Avenida do Contorno – esta quase uma
muralha intransponível a separar a vida urbana da suburbana –, as moradias eram
sofríveis e os serviços precários. Aqui seria a área de expansão da cidade, com
crescimento a ser controlado e balizado pelos mesmos valores e regras construtores de
sua área central. Foi projetada para os terrenos mais acidentados, com traçados
adaptados à topografia irregular, com lotes irregulares, de maiores dimensões e com
ruas estreitas (SILVA, s.d.).
Finalmente, a zona rural, um cinturão verde projetado para garantir o
abastecimento da cidade e controlar sua expansão, com núcleos coloniais que
145
produziriam hortaliças, frutas, e outras matérias-primas necessárias às demais zonas
(SILVA, s.d).
Com a divisão nas três zonas apresentadas, fixavam-se os limites,
classificavam-se e hierarquizavam-se os territórios, os quais deixavam de ter uma
“dimensão indefinida” para se transformarem em áreas delimitadas e identificáveis
(JULIÃO, 1996, p.51). Concluindo, ela enfatiza que esta “revolução” urbana empurrou
os “humildes cidadãos”, concentrando-os em lugares distantes do perímetro urbano da
nova capital.
Passos (2009, p.48) aponta que tal qual acontecera na Paris de Haussmann, as
reformas dos espaços e o tão decantado planejamento das zonas rural e suburbana foram
mera maquilagem, pois atrás dos prédios de fachadas determinadas pelas normas da
construção civil, estavam as casas/cortiços com chiqueiros e nenhum tipo de ventilação.
Dizia-se que Belo Horizonte cheirava, de um lado, a lenços d´alcobaça e a mofo das
secretarias e do outro lado a água de colônia, toucinho e álcool, especiarias à época.
Paula a esse respeito escreve:
Cidade sintonizada com os novos termos da urbanização modernista – amplas
avenidas, amplos espaços públicos, parques e jardins, espaços distribuídos
funcionalmente. E, no entanto, por detrás desta fachada moderna, como um
cenário de Potenkin, a mesma continuidade da exclusão, os pobres
interditados, a terra urbana privatizada e concentrada, a velha sonegação de
direitos sociais que acompanha, como uma sombra, a luz, por vezes intensa,
da modernidade mineira. Retrato fiel e expressivo dos dilemas históricos do
país (PAULA, 2000, p.57).
Voltando à zona rural, foi ali que inicialmente se “refugiaram” os pequenos
sitiantes, antigos moradores do arraial alijados de suas terras, bem como os pequenos
produtores migrantes de outras regiões de Minas Gerais. Para lá foram expulsos os
“inadequados pobres”, em uma tentativa de invisibilização capitaneada por Aarão Reis,
engenheiro-chefe da comissão responsável pela construção da capital, ecoando a voz
dos modernistas:
(...) não queria nenhum dos antigos proprietários (...) dentro da área traçada
para a nova cidade, e que tratasse o povo de ir se retirando (BARRETO,
1995, vol.2, p.77). Restava à “plebe”, a alternativa de se retirar para outras
paragens, como aves de arribação. Assim o fizeram, “com os olhos banhados
em lágrimas” (BARRETO, 1995, vol.2, p.72).
Lentamente a prática de produção de alimentos para abastecimento da cidade
na zona rural foi sendo sufocada pela emergência de novos agrupamentos
146
populacionais, em um rápido processo de assimilação dessas colônias rurais
(PLAMBEL, 1985, p.35).
De acordo com Pereira (2001) é preciso lembrar que o ideal de modernidade
trazido pela República, e que teve como espaço de realização a cidade de Belo
Horizonte, compreendeu traços de conservadorismo e de autoritarismo. Tidos como
detentores de costumes “rurais e arcaicos”, os 4.000 habitantes das 32 fazendas que
compunham o Curral Del Rey (PEREIRA, 2001) foram tratados como obstáculos a
serem removidos para a realização da cidade moderna e planejada. Por isso, ainda em
1890, intuitivamente, como que prevendo seu destino, os moradores do Arraial trataram
de se adaptar aos novos ares republicanos, mudando seu nome para “Arraial do Bello
Horizonte”. Foi o suspiro final do pequeno arraial de quase duzentos anos (PASSOS,
2009).
Não obstante o uso potencial dos imóveis da população do Arraial, nas
desapropriações efetuadas considerou-se que eles possuíam “valor insignificantíssimo”
(BARRETO, 1995, p.277). Por conseguinte, sendo as propriedades de “pequena valia” e
a maioria dos proprietários possuidor de apenas um imóvel, os donos de bens de raiz no
antigo arraial foram convertidos em não-proprietários na capital planejada, porquanto
nas palavras do próprio engenheiro-chefe, todos os “proprietários teriam de receber dos
cofres públicos importâncias que, de modo algum, chegariam para a aquisição de um
lote na futura cidade” (BARRETO, 1995, p.277). Para Lemos (1988, p.93), essa
conversão “mostra nitidamente a transição de uma população organizada em antigas
estruturas rurais para a organização capitalista urbana”. Conforme Penna (1997) ao
converter-se o Arraial do Curral Del Rey em Belo Horizonte, converte-se a terra em
mercadoria.
Cercada pela Serra do Curral, Belo Horizonte conta hoje com uma estrutura de
27 parques e diversas áreas verdes (OLIVEIRA NETO, 2006). O Parque Municipal
Américo Renné Giannetti, um pulmão urbano, seguindo as ideias de Harvey, foi
inaugurado em pleno centro da cidade, demonstrando que, desde o início, seus
idealizadores se preocuparam em proporcionar espaços que pudessem colocar as
pessoas em contato direto com a natureza vis à vis a expulsão dos agricultores dos seus
lotes de produção. A ruralidade natureza se sobrepõe a ruralidade agrícola.
A preocupação com o “verde” para a população metropolitana – ou pelo menos
para parte dela – se fortalece com a inauguração, em 1982, do Parque das Mangabeiras,
projetado pelo paisagista Burle Marx, considerado um dos maiores parques urbanos do
147
país, com seus três milhões de metros quadrados. As praças (cerca de 500) e ruas
concentram aproximadamente 560 mil árvores, número que sobe para dois milhões
quando considerados os parques e áreas de preservação (OLIVEIRA NETO, 2006).
Não foram somente os aperfeiçoamentos paisagísticos ligados à valorização do
verde que tomaram conta da capital mineira. Desde a sua edificação até os dias de hoje,
Belo Horizonte passou por inúmeras transformações. Do plano inicial que orientou a
construção da cidade, apenas o traçado retilíneo de suas ruas, cruzadas em ângulos retos
e formando grandes tabuleiros de xadrez, permaneceu inalterável. Em 1940, por
exemplo, passou por um surto de crescimento, “(...), passando a viver uma nova fase: a
da modernização acelerada” (FREIRE, 1999, p.211). A partir deste período, Belo
Horizonte começa a ser talhada para se firmar como um centro urbano-industrial, como
esperado para uma cidade “orientada para o progresso”.
Nos dias atuais, de forma algo diferente do que já explicitado, o crescimento
industrial, os investimentos estatais e o mercado de terras têm sido os fatores
determinantes da estruturação do território da RMBH. Sob estas condições, neste
território planejado eclodem ruralidades que refletem as lutas, esperanças, valores e
diferentes projetos de atores que o vivenciam. É o que veremos no capítulo seguinte.
148
CAPÍTULO IV
RURALIDADES EM UM METROPOLITANO
INSTITUCIONALIZADO
Figura 28: Vista aérea de área de extrativismo mineral na RMBH. Fonte: Estado de Minas,
20/04/2012
149
1. Relações entre ruralidades complexas.
Para explicitar como as diferentes ruralidades se manifestam no território
metropolizado da RMBH, articularemos as três categorias operativas apresentadas no
primeiro capítulo, quais sejam, Ruralidades Instrumental, Hedonista e Amordaçada.
Elas expressam tensionamentos, discursos e dinâmicas advindos de um capitalismo
contemporâneo, onde sobressaem relações das mais diversas com a natureza,
concretizadas em diferentes formas de apropriação do território.
A ideia fundante da ruralidade como processo dinâmico e interativo entre
diferentes atores sociais impõe o diálogo entre campo e cidade em outro patamar.
Sublima-se a lógica opositiva pela conexão complexa e janusiana, ancorada na
identificação do homem como ser da Natureza; reencontro inelutável devido à sua
exclusão anterior e de uma nova visão de natureza, Aceita-se assim o ser humano como
um finíssimo fio dessa rede universal que é a Teia da Vida (CAPRA, 1996).
A contínua e crescente identificação da ruralidade com o ambiente natural têm
seus primórdios nas sociedades que viveram mais intensamente a expansão dos
símbolos máximos da modernidade – a urbanização e a industrialização – e, por
extensão, as incertezas e as vicissitudes do risco, como coloca Beck (1998).
Ironicamente, nessas mesmas sociedades está em curso uma “negação” da modernidade,
e, por extensão, de seus valores e ícones, inaugurando um ciclo centrado na valorização
das tradições, sociedades e modos de vida considerados rurais, entendidos como
herança a preservar.
Picon (1992, p. 44) pondera que os membros das sociedades industrializadas
têm concebido os espaços rurais como espaços naturais e, nesta medida, objetos de
consumo, especialmente aqueles que escaparam à agricultura mecanizada e à
urbanização. A demanda primeira pela ruralidade natureza advém de uma elite social e
política, estendendo-se posteriormente às classes médias urbanas. Neste contexto, a
ruralidade não é óbice ao processo de modernização, mas sim uma noção que remete
para a modernidade (ou a pós-modernidade), vivida por meio da descoberta e
valorização das diferenças, do autêntico e do genuíno, como vimos no depoimento da
líder quilombola no capítulo dois.
Trazendo o campo de análise para o território da RMBH, constatamos um
hibridismo nas formas de conceber e viver as ruralidades, alvo que são de percepções
150
distintas. Em uma visão complexa, as visualizamos nos relacionamentos e nos
processos. Vejamos então como elas se entrecruzam.
2. Ruralidade Instrumental: a horticultura intensiva em Ibirité.
A lógica intrínseca a esta ruralidade é a de natureza como espaço
socioprodutivo, em relações marcadas pela intensa violência sobre as suas raridades:
água, ar, solo, espécies animais, vegetais e minerais, dentre outras, aí inclusa a pressão
sobre a espécie humana. Esta intensidade elege a natureza no lugar da produtividade
como sendo a meta. Para alcançá-la toda sorte de pacotes tecnológicos devem ser
empregados, em uma vã tentativa de estabilizar o ritmo do mundo e dominar os
fenômenos da natureza para auferir os maiores ganhos possíveis em um cenário
extremamente competitivo de disputas entre capitais.
Sabendo dos muitos atores inseridos nesta categoria, cito os horticultores de
Ibirité47 como representantes desta dinâmica específica, sendo acompanhados neste
processo por instituições (Emater, Instituto Mineiro de Agricultura, prefeitura, agências
financiadoras), e pelos onipresentes agentes de assistência técnica e extensão rural,
empenhados em melhorar a potencialidade produtiva dos agricultores. Assim é que o
sucesso da atividade produtiva é medido pelas quantidades produzidas e pela obtenção
de níveis de renda compatíveis com os valores investidos, ou seja, o reconhecimento
destes atores se dá por sua participação direta no processo produtivo, logrando
maximização do lucro. Nesta linha, esse rural seria uma empresa gerenciada por
horticultores-empresários, competitivos e com “visão empreendedora e de futuro”.
A maior parte destes agricultores tem um canal de comercialização definido,
visto a elevada perecibilidade dos produtos que comercializam, destinando-os ao
mercado consumidor de Belo Horizonte, Nova Lima e Contagem, municípios do eixo
industrial da RMBH. As áreas cultivadas localizam-se tanto nos perímetros urbanos
quanto rurais e a sua exiguidade – 0,2 a 3,0 hectares – é compensada pela intensificação
das atividades e produção (BICALHO, 1992).
Este tipo de produção de hortaliças – chamada matriz produtiva convencional –
é uma atividade que exige constante injeção de capital, tecnologias intensivas em
agroquímicos, bem nível alto de capitalização para iniciar a atividade. Aliado ao fato
47
Poderia abordar também os horticultores de Mário Campos, Itaguara, Sarzedo, Taquaraçu de Minas,
Nova União, enfim, de vários outros municípios metropolitanos com essa mesma dinâmica rural.
151
dos terrenos rurais em Ibirité estarem passando por intensa especulação devido à
proximidade da metrópole e à procura por chácaras e condomínios de lazer, esta é uma
ruralidade circunscrita a um número restrito de produtores.
Amparados no discurso da intensidade produtiva, os horticultores-empresários
têm empregado mão de obra terceirizada, especialmente mulheres, fugindo assim das
obrigações trabalhistas. Neste sentido, é importante enfatizar que, além do terceirizados,
eles também fazem uso de parcerias através do regime de meação, submetendo outros
agricultores que não conseguem conduzir de forma independente a atividade,
principalmente pelo não acesso a terra.
Quanto aos aspectos agronômicos, o uso indiscriminado de agrotóxicos e
fertilizantes químicos e a qualidade da água usada na irrigação da lavoura são bastante
preocupantes. Pesquisa feita com Fernandes et al. (2012) apontou que 84,5% de 22
agricultores entrevistados afirmaram comprar agrotóxicos sem receita, dos quais 54,5%
afirmaram ser esta a prática comum e 45,5% eventual. Eles afirmam não ser necessário
acompanhamento técnico pois trabalham com horticultura há muito tempo. Na
sequência, dizem que os prestadores deste tipo de serviço nunca estão disponíveis.
Ouvindo extensionista da Emater sobre esta situação, eles assim se defendem:
Sou extensionista há mais de quinze anos. Vi um pouco da mudança desta
região. Era um monte de município com jeito de cidade do interior. Mas as
coisas começaram a mudar muito, principalmente nos anos 90. Foi um
período difícil pra instituição que alguns dizem que foi de modernização.
Viramos vendedores. As prefeituras tinham que pagar convênio senão a
Emater não ficava no município. Aqui na região, como a prioridade não era a
agricultura, o meio rural, aliás não é, foi muito difícil sobreviver. Todo
mundo pensa que aqui só tem indústria e mineradora e tal e nada de
agricultura. Fica difícil justificar nossa existência. Hoje tá mais fácil porque
tem um monte de política pública que depende do nosso trabalho. Pronaf,
merenda escolar, horta comunitária, território sustentável e assim vai. Como
o município recebe recursos pra isso então precisa da presença da Emater.
Mas não temos condições de atender todos que nos procuram. De parto a
como fazer doce é a Emater que tem que ensinar a fazer.
Segundo os horticultores de Ibirité, a urbanização desordenada tem
comprometido as condições da água usada para irrigação das lavouras, pois os córregos
de abastecimento têm recebido esgotos e lixos da cidade. Muitos agricultores, na
impossibilidade de continuar na atividade, já pensam em se desfazer das propriedades,
deslocando-se para áreas mais distantes, já que as disputas por espaços entre
condomínios, áreas de lazer bem como com os loteamentos para populações de menor
renda aumentam a cada dia.
152
Em linhas gerais, a ruralidade instrumental se alinha em torno de três eixos
principais: a) o rural como espaço socioprodutivo ajustado às dinâmicas capitalistas de
mercado; b) uso intensivo de capital e tecnologias modernas; e c) modelo
agroempresarial como caminho para o desenvolvimento. Portanto, para enquadrar-se a
nestas direções, o agricultor metropolitano deveria assumir o clássico papel de produtor
moderno: eficiente, produtivo, competitivo, tecnificado e capitalizado. Esta lógica
também está presente na exploração dos recursos naturais feita pelas mineradoras, em
uma direção na qual a natureza passa a ser vista por olhares econômicos, estratégicos e
intervencionistas.
3. Ruralidade Hedonista: o ambiental em Nova Lima.
É a ruralidade concebida e acionada pelos grupos sociais urbanos ou
urbanizados, portadores desta redefinição social da ruralidade, a qual além de incluir a
dimensão ambiental, abarca também as dimensões de defesa do patrimônio e da cultura
rurais. Os novos moradores do campo, seus visitantes esporádicos, o mercado
imobiliário bem como os prestadores de serviços recreativos e turísticos são alguns de
seus porta-vozes. Seu eixo orientador é a busca da natureza como fonte de prazer,
espaço de fruição, produto, bem de consumo e mesmo para o desenvolvimento de
projetos de vida considerados alternativos, como a moradia ou o trabalho no campo.
Mas, de fato, mais que uma alternativa, esta ruralidade apresenta-se como uma
alteridade para a cidade, um contraponto que permite questioná-la, um escape para as
ansiedades que a rodeia e uma ideia de qualidade de vida que remete para outra
possibilidade de vida e de território.
De forma ampla, a ruralidade hedonista orienta-se por uma lógica que concilia
o contato com a natureza e o os benefícios proporcionados pela civilização. Ela se
expressa com mais vitalidade em locais de alta densificação urbana, onde a natureza é
escassa e muito socializada. Nestes locais, a representação de uma natureza primeira,
extinta pela e na urbanidade, torna-se excessiva e romanticamente contemplativa já que
distante da vida cotidiana, transfigura-se em diferenciais competitivos de mercado,
quais sejam, a raridade e o distanciamento dos signos do trabalho moderno que
hegemonicamente dominam as metrópoles. Por isso, essa representação precisa estar
isolada das metrópoles, ainda que inteiramente dependente das mesmas. Além de
paisagens verdes, silêncio e águas cristalinas, costuma-se negociar a expectativa irreal
153
de um lugar em que o tempo decorrido e as conquistas tecnológicas estejam presentes (e
tudo o que isso significa: água, luz, eletrodomésticos, telefone, acesso por automóvel e
aviões), sem alterar a natureza sonhada, de forma que a vertigem do futuro se acalme,
ainda que somente nos finais de semana.
O caso dos condomínios fechados de Nova Lima é emblemático no que tange a
esta representação de ruralidade. Enquanto a área a oeste e norte da capital mineira
vivenciou uma significativa oferta de lotes para um mercado de menor poder aquisitivo,
processo inverso se deu ao sul da capital, onde fica Nova Lima. Atraídos pelos atributos
ambientais, a princípio como segunda moradia para lazer e depois como moradia
principal, populações de média e alta renda ali se estabeleceram, notadamente a partir
da década de 1960.
Segundo Andrade (2005), os primeiros moradores dos condomínios de Nova
Lima buscavam um lugar mais tranquilo e próximo da natureza para passar fins de
semana ou até mesmo morar. A carência de serviços públicos motivou a constituição
das associações dos moradores dos condomínios, para conquistar benfeitorias como
água, telefonia, segurança etc. Daí o forte associativismo desses anos iniciais e a ideia
compartilhada pelos moradores mais antigos de que constituíam uma “comunidade”
(NASCIMENTO, 2004). Os moradores se conheciam pessoalmente, seja por meio da
associação, seja pelas relações de vizinhança (facilitadas pelo baixo número de
moradores e pelas necessidades que buscavam suprir coletivamente). Entretanto, nos
anos 1990, intensifica-se a ocupação dos antigos condomínios que, contando com
melhor infraestrutura, passam a atrair um novo tipo de morador, mais preocupado com
segurança e exclusividade e portador de maiores posses. A natureza, fator primordial
para os primeiros moradores, é apenas mais um item do que se convencionou chamar de
qualidade de vida, e mais apreciada enquanto paisagem.
Um dos atores mais ativos na consolidação desta ruralidade são as mineradoras
e outras empresas imobiliárias que, com ativa participação da prefeitura, investiram no
“marketing da cidade”. Frases espalhadas em imensos outdoors conclamam: “Venha
para Nova Lima, ontem terra do ouro, hoje terra do verde”. Ou “Nova lima, cidade para
se viver”. “Estamos loteando a felicidade, reserve um pedaço prá Você”. Visando
aumentar a arrecadação municipal, que sofrera queda com a retração da atividade
mineradora, a prefeitura de Nova Lima passou a disputar com Belo Horizonte empresas
e moradores de alto poder aquisitivo.
154
A estratégia deu resultado e o ritmo acelerado da metrópole tomou conta da
outrora cidadezinha, despertando sentimentos ambíguos:
Olha, eu noto, por exemplo, uma expansão de casas, de condomínios, uma
invasão, assim que Belo Horizonte está invadindo Nova Lima e que aquela
região tranquila, natural, está virando muito concreto agora. Mas eu sinto que
as empresas estão vindo para cá também, as pessoas estão tendo mais
oportunidades, o profissional é mais valorizado (A.B., 35 anos, jardineiro).
As mineradoras, detentoras de grande parte das terras de Nova Lima e
responsáveis por muitos de seus passivos ambientais estão investindo pesado na
construção e vendas de empreendimentos imobiliários, sempre ancorados no discurso da
preservação ambiental. Uma matéria publicada num jornal de Belo Horizonte, sob o
título: “Página virada, Mina de Morro Velho vira polo imobiliário” dá o tom desta
mudança:
A Mina Velha, em Nova Lima, a mais antiga mina de ouro em operação no
mundo, será transformada em um empreendimento imobiliário, incluindo
uma estrutura destinada ao turismo, eventos, negócios e lazer. A Anglo
Gold/Morro Velho, proprietária da mina, está à procura de parceiros para a
exploração da área, totalizando 13,9 mil hectares e abrangendo ainda os
municípios de Raposos e Rio Acima. Mas, ao contrário dos empreendimentos
comuns, a Anglo Gold vai exigir de seus parceiros e compradores a
preservação das áreas verdes. Ou seja, é prevista a utilização de apenas
33,6% da área, sendo os 66,4% restantes constituídos por parques, praças e
áreas de preservação (Diário da Tarde, 20/9/2002).
Tais empreendimentos estão disseminando-se por toda a RMBH. Brumadinho,
Raposos, Betim, Jaboticatubas, Nova Lima, dentre outros, são alguns dos locais onde
esta tendência tem se mostrado mais efetiva (Figura 29 e 30). Neles, o signo da
natureza efetivamente se constitui como um elemento diferencial que possibilita aos
empreendedores extraírem renda fundiária e lucros, a partir da venda deste atributo.
Nesta lógica, são produzidos materiais publicitários e sites, destacando a “natureza”
como um diferencial. Os nomes escolhidos para estes paraísos metropolitanos
mobilizam desejos e fantasias de refúgio e verde, recorrendo-se frequentemente à
imagem da “vila” em contraposição à metrópole: Retiro das Pedras, Ville de Montagne,
Vila del Rey, Estância Serrana, Vila Campestre, Vila Verde, Serra dos Bandeirantes,
Recanto das Araras, Jardins de Petrópolis, entre outros.
155
Figura 29: Cópia de encartes divulgando empreendimentos imobiliários tendo o
rural como chamariz.
Figura 30: Propaganda do empreendimento Recanto das Araras, em Jaboticatubas.
A proposta das elites de preservar a natureza com o estabelecimento de sítios,
condomínios fechados, pousadas é contraditória, pois a sua chegada promove a
introdução dos equipamentos urbanos que surgem para satisfazer as demandas da classe,
acabando por transformar as paisagens naturais, usando o discurso ecológico como
estratégia.
Esta ruralidade que valoriza o verde tem rebatimentos no preço do solo na
RMBH, influenciando na consolidação de ruralidades amordaçadas. Espaços até então
destinados ao uso agrário passaram a ser reservados a novas funções tais como a
industrial e a residencial. Ao mesmo tempo que se coloca pela valorização do rural, esta
ruralidade engendra processos que a destroem, como o da expansão imobiliária. Como
bem disse Rousseau:
156
O primeiro homem que cercou um pedaço de terra e disse que era sua
propriedade e encontrou pessoas que acreditaram nele foi o fundador da
sociedade civil. Daí vieram muitos crimes, muitas guerras, horrores e
assassinatos que poderiam ter sido evitados se alguém tivesse arrancado as
cercas e alertado para que ninguém aceitasse este impostor. Não podemos
esquecer que os frutos da terra pertencem a todos nós e a terra a ninguém
(ROUSSEAU apud HARVEY, 1996, p. 162).
Mas não é exatamente isso que acontece na região. Em Nova Lima, por
exemplo, a terra e os seus frutos são apropriados por poucos, controladas que são pelas
empresas e pelo capital estrangeiro:
A minha família está sofrendo com isto, você sabe que nós temos um
processo há quarenta anos na justiça, e justiça no Brasil fica, assim, séculos
para resolver um problema. Nós estamos há quarenta anos lutando para
reaver terras que foram cercadas pela Morro Velho, que eles não têm
documento delas e eles se apoderaram delas. Desde a época em que os
ingleses vieram para Nova Lima que eles se apoderaram de terras que não
eram deles e isto é uma política vamos dizer estrangeira. É a política dos
mais espertos, quem tem dinheiro corrompe, consegue um papel, consegue
uma escritura e você sabe que aqui tudo tem preço, então foi muito fácil
apoderar de tudo. (W., em entrevista a Magnoli, 2009, p. 40).
A questão fundiária é uma ferida aberta na RMBH. A posse da terra pelas
mineradoras é bastante contestada, persistindo como questão de fundo:
A grande parte dos terrenos de Nova Lima foram doados pelo seu antigo
proprietário, um tal cap. Vilanova a seus escravos, no século passado, e ainda
hoje inúmeros descendentes desses escravos pleiteiam em juízo, ou venderam
a preço irrisório, seus direitos à Cia. Morro Velho (...). De uma forma ou de
outra – a Cia. Morro Velho tomou posse desses terrenos que constituem seu
“feudo” e agora se lança num novo negócio cujas perspectivas não são
inferiores às ricas minas que exploram (COSTA, 1955, p. 77).
Esta situação não se restringe à Nova Lima, como veremos a seguir. Em um
contexto de grande especulação imobiliária e fundiária, toma forma a ruralidade
amordaçada.
4. Ruralidade Amordaçada: a questão agrária em Betim.
Corresponde àquela ruralidade que perpassa os habitantes do campo e as
famílias que residem nas periferias metropolitanas, caracterizadas por sua condição de
vulnerabilidade socioeconômica. Como vimos, nesta categoria estão tanto grupos
vinculados ao rural, por ele ser seu espaço cotidiano de vida quanto por ser seu meio
157
básico de reprodução socioeconômica, quanto grupos fragilizados nas periferias da
metrópole, habitando as chamadas cidades-dormitório. Usaremos o caso de Betim para
ilustrar esta ruralidade.
Em Betim, existem dois projetos de assentamentos de reforma agrária, quais
sejam, o Dom Orione, o mais antigo da RMBH, criado em 28 de novembro de 1997, e o
Serra Negra, criado em dezembro de 1999. Vivem no primeiro cerca de 40 famílias, em
212, 95 hectares; no segundo 26, em uma área de 247 hectares. A origem de ambos está
vinculada aos movimentos sociais de reforma urbana. No caso do Dom Orione, estava
em disputa a criação de conjuntos habitacionais, surgindo a reivindicação em prol da
criação de um assentamento rural, ideia vencedora. O PA Dom Orione hoje é o mais
“urbano” dos projetos de assentamentos, no sentido de que está cercado por dois bairros
periféricos da cidade de Betim. Já o assentamento Serra Negra se formou desde um
processo de organização de um grupo de famílias moradores de bairros da periferia de
Betim, mas que mantinham algum vínculo com a vida rural. De certo modo, a criação
do assentamento Dom Orione deu fôlego para seus idealizadores, que anos depois
viriam a ocupar a Fazenda Serra Negra na época improdutiva, não cumprindo, pois, a
sua função social. É também um assentamento bastante “urbano”, ficando muito
próximo do bairro Vianópolis.
As expectativas e os projetos de vida dos assentados podem ser resumidos nas
palavras de I.M., 53 anos e W., 37 anos.
Sempre tive vontade de ter um pedaço de terra pra trabalhar por minha conta,
pra ninguém me aborrecer. O que der pra vender a gente vende, o que não
der, a gente dá pra porco, pra galinha. É bom demais botar o corpo veio pra
descansar e saber que amanhã não vai ter ninguém te expulsando, te pedindo
pra sair. Passei muito tempo pulando de lugar pra lugar. Nasci na roça, mas
depois tive que arranjar outro trabalho pra ajudar nas contas. Hoje eu me
sinto no céu, mesmo com uma coisinha ou outra que acontece na vida da
gente (I. M., 53 anos, Assentamento Pastorinhas).
Eu entrei no MST pra voltar pra roça, pra ter um emprego, trabalhar. Deixar
de ser escravo. É porque quem tem de acordar de madrugada, pegar dois, três
ônibus, chegar de noite em casa. Comer correndo, viver correndo, correr pra
pagar aluguel, nada nada de luxo. E no final do mês nada também, O
emprego hoje em dia na cidade, se a pessoa não tiver um bom estudo, uma
boa formação não dá pra sobreviver bem (W, 32 anos, Assentamento Dom
Orione).
Grande parte dos moradores dos dois assentamentos é oriunda da RMBH e de
outras regiões de Minas. Uma pesquisa feita por Mazzeto (2008) nestes assentamentos
aponta como razões para migração: terra insuficiente para reprodução de toda a família,
diminuição do trabalho rural, família numerosa, ilusão da cidade grande, busca de
158
alternativa de renda e melhores condições de vida. Soma-se a estas motivações, a
realidade fundiária dos locais de origem, que, como na RMBH, é bastante concentrada,
consolidando uma questão agrária que não se resolve, sendo transportada para as
regiões de destino dos migrantes, agora transformados em camponeses-urbanos sem
terra.
Na RMBH, dos 21.392 estabelecimentos agrícolas, 734 são considerados pelo
Incra grandes propriedades, e 519 delas improdutivas. Em Betim, do total de 1.247
estabelecimentos, 39 são grandes e destes, 22 são improdutivos. Considerando os
inúmeros conflitos em curso pela terra, esta é uma questão latente na RMBH, mostrando
que há espaço para políticas de reforma agrária na região.
Na Tabela 9 podemos visualizar a classificação dos imóveis rurais na região,
construída usando dados do cadastro do Incra para o ano de 2005.
Observamos que se destaca o município de Esmeraldas, o segundo maior da
região, com 128 latifúndios improdutivos. Em seguida vem Pedro Leopoldo, Taquaraçu
de Minas e Sabará que possuem entre 30 e 40 latifúndios improdutivos.
No total, de acordo com as informações do cadastro do Incra, existiriam 519
latifúndios improdutivos na região, o que significaria um enorme potencial para a
criação de assentamentos de reforma agrária. Observa-se ainda que quase 85% dos
imóveis rurais da RMBH são ou minifúndios ou pequenas propriedades. Já as grandes
propriedades somam cerca de 3% do total de imóveis rurais. A partir da Tabela 9,
Mazzetto (2008), elaborou um mapa (Figura 31) que retrata as classes relativas ao
número de grandes propriedades improdutivas dos municípios da RMBH.
159
Tabela 9: Classificação dos imóveis rurais na RMBH. 2005.
Município
Baldim
Belo
Horizonte
Betim
Brumadinho
Caeté
Capim
Branco
Confins
Contagem
Esmeraldas
Florestal
Ibirité
Igarapé
Itaguara
Itatiaiuçu
Jaboticatubas
Juatuba
Lagoa Santa
Mario
Campos
Mateus
Leme
Matozinhos
Nova Lima
Nova União
Pedro
Leopoldo
Raposos
Ribeirão das
Neves
Rio Acima
Rio Manso
Sabará
Santa Luzia
S.J. da Lapa
S.J. de Bicas
Sarzedo
Taquaruçu
Vespasiano
RMBH
(n°/%)
Minifúndio
Pequena
propriedade
Média
Grande propriedade
343
79
171
49
59
28
14
1
847
1.021
483
171
224
263
335
58
111
80
155
60
17
1
9
8
22
6
28
16
1.247
1.431
1.047
316
94
287
992
351
149
341
1.337
679
1.094
162
320
62
40
126
559
197
94
63
298
222
374
36
151
45
14
60
442
40
25
18
23
43
107
16
101
5
2
8
52
1
1
6
8
8
-
1
16
128
1
11
1
1
16
3
16
2
154
316
2.186
548
291
434
1.677
1.231
1.630
218
1.630
116
696
249
56
5
4
1.017
180
160
483
142
77
74
154
142
46
38
2
98
24
1
1
13
19
24
2
39
347
332
642
453
8
167
15
94
4
44
1
4
2
15
38
329
146
642
436
413
57
121
43
479
86
13.071
61,10%
93
147
198
166
31
41
39
155
52
5.032
23,52%
40
19
99
123
11
10
13
100
21
2.114
9,88%
5
12
9
3
2
6
4
215
1%
14
31
22
3
1
4
37
2
519
2,43%
308
820
794
744
111
178
110
479
168
21.392
100%
produtiva
Improduti
va
10
11
Total
649
176
Fonte: Mazzetto (2008).
160
Figura 31: Propriedades improdutivas na RMBH. Fonte: Mazzetto (2008).
161
Pelo exposto, concluímos que as ruralidades contemporâneas abarcam desde as
expectativas e interesses do consumo urbano quanto os sonhos e expectativas de uma
vida melhor de camponeses urbanos. Mas, quantas ruralidades mais poderíamos
descortinar na região? Para respondê-la não podemos prescindir de ouvir os atores
sociais que as vivenciam, descortinando suas lógicas e relações. Cada um deles tem sua
própria forma de adaptação, ideologia e modo de vida, entrando em choque ou
harmonizando com a forma do outro, dando assim a dimensão social do conflito. É com
esta inspiração que apresento as falas de alguns atores nos parágrafos seguintes.
5. Os atores e as ruralidades metropolitanas: dando voz às pessoas.
Pensando em Walter Benjamin (1987) e seu alerta sobre o fato da memória ser
a mais épica de todas as faculdades, tive a inspiração de ouvir as pessoas, suas
reminiscências, valores e lutas para compreender as ruralidades metropolitanas.
Assumindo sua complexidade, defendo que são atores sociais desse processo os
movimentos ambientalistas, as mineradoras, os agricultores, as comunidades
quilombolas, os neo-rurais, dentro muito outros. Vamos girar a roda, acompanhando a
interconexão de suas histórias.
5.1. A moradora do Condomínio Retiro do Chalé.
Sempre pensei em fugir da cidade grande. Estava muito difícil continuar
vivendo em Belo Horizonte. Nossa vida estava muito atribulada. Vivíamos no Bairro
dos Funcionários, mas o clima de insegurança e a falta de um contato maior com as
coisas simples do dia a dia nos levaram a fugir pra cá. Aqui sinto tranquilidade, a
paisagem natural é exuberante, o clima é ameno, zero de poluição, sem contar com o
jeitinho de cidade do interior. No início do condomínio, a Associação comprou grande
parte das terras não parceladas limítrofes ao condomínio, de forma que não precisamos
nos preocupar com a preservação ambiental [Estas práticas de garantia de isolamento
têm também a função de evitar uma futura “ocupação espontânea”]. Antigamente aqui
era uma Fazenda e depois outras áreas foram compradas. Nem parece que estamos tão
próximos de BH. Meus filhos podem aproveitar a estrutura do condomínio e socializar
162
com outras crianças, sem que me preocupe tanto. No início, quando não tínhamos as
crianças, vínhamos para cá nos fins de semana. Depois percebemos que era um
momento propício e demos uma guinada na vida mudando definitivamente pra cá. Já
estamos aqui há doze anos. Inclusive, temos alguns amigos de Belo Horizonte que
fizeram o mesmo. Aqui temos qualidade de vida. Temos bons restaurantes e estrutura de
lazer. Abro a janela, ouço passarinho, cachoeira, vejo o verde, a serra. Ao redor, temos
lugares interessantes pra conhecer e aproveitar (A. M., 43 anos).
Figura 32: Entrada do Condomínio Retiro do Chalé e a vista do Lago Sul. Fotos da autora.
5.2.A dona da pousada em Casa Branca.
Cheguei aqui em Brumadinho há uns vinte anos. Antes, passei um período
morando em BH. Digo passei porque sempre imaginei me libertar da opressão que
sentia morando lá. Minha família é daqui. Queria ter uma vida mais tranquila, mas para
isso, precisei ficar um tempo e juntar dinheiro para montar alguma coisa. Felizmente
consegui. Desde que cheguei vivo do turismo. Não sinto saudades das coisas da capital,
mesmo porque estou tão perto que o que precisar posso correr pra lá: médico, hospital,
aeroporto, essas coisas. As coisas aqui têm mudado e isso me preocupa um pouco. A
cidade tinha um charme, a começar pelo próprio nome elogiando a montanha, as
brumas, isso aí da natureza. Aqui em Casa Branca [um dos quatro distritos do
163
município] era um sossego. A estrada de terra segurava um pouco o alvoroço. Mas até
que o asfalto pra BH não foi ruim não. A inauguração do Inhotim [Museu/Parque de
Arte Contemporânea localizado nas antigas terras de um quilombo. Inaugurado em
2006, é uma referência turística da região. Muitas peças ficam ao ar livre para a
interação com os visitantes] foi muito positiva para nós. Trouxe mais propaganda. Mais
gente. Mas agora a cidade está crescendo muito. O lixo e a degradação de trilhas e
cachoeiras são problemas que estamos vivendo. E a água? Tá faltando água. Há um
tempo estava saindo água com óleo nas torneiras. Já ficamos sem água para os
hóspedes. Também agora o que mais tem aqui é condomínio. Eles estão tomando conta
de tudo. Interessante que eles vêm pra cá pra ficar perto da natureza, mas a primeira
coisa que têm feito é abrir poço, arrancar matas. E jogar esgoto nos riachos. Veja o
Retiro das Pedras [um dos maiores condomínio do município]. Tá jogando esgoto direto
no Ribeirão Catarina. E o Retiro do Chalé? O desperdício de água é enorme. Já saiu até
matéria sobre isso. Como é que pode? Por isso vivemos em guerra com os condomínios.
Se antes já tinha nossa briga com as mineradoras... Essa então é bem injusta. Você
conhece o Movimento em Defesa das Águas e Serras aqui de Casa Branca? [na minha
negativa, começa a contar]. Foi um ponto alto de união aqui. Em 2011, a Vale [Cia.
Vale do Rio Doce] estava expandindo seus negócios aqui e começou a abrir estrada na
mata, a fazer um monte de crime para expandir a Jangada [mina]. Começamos uma
grande briga e eles não vinham conversar com a gente. Depois perceberam que o
movimento só crescia e vieram conversar. Bem que tentamos fazer valer nosso ponto de
vista, mas como brigar com quem manda no município? Mas eles tem sentido que
estamos em guerra. Quando organizamos o Dia do Abraço na Serra atraímos muita
gente e saiu matéria falando da situação em jornal, no rádio e na TV. Mas mesmo assim
o poder das mineradoras é grande. Eu não sou contra essa economia do município, mas
destruir o lugar por causa disso não posso aceitar. Quero garantir a preservação da
natureza porque meu negócio depende disso. Eu recebo muitos hóspedes do Rio de
Janeiro, pela Estrada Real, e muitos de Belo Horizonte e redondezas que vêm aproveitar
a natureza, a tranquilidade e as belezas daqui. Eu vejo este lugar como um paraíso.
Mesmo com muito trabalho, porque pousada é trabalho, eu arranjo um tempinho pra
viver estas belezas daqui. Não é todo mundo que pode acordar em um lugar que Deus
colocou tanta coisa linda. Quero preservar isso aqui. Não quero que as coisas aqui se
transformem. Do jeito que estão indo... (L.S., 59 anos).
164
Figura 33 Museu Inhotim e Fazenda dos Martins, pontos turísticos em Brumadinho.
Fotos da autora.
5.3. A história de C.C., ativista ambiental.
A história da nossa Quatro Cantos [Ong] começou com o voluntariado de
quatro amigos com as crianças da Apae [Associação de Pais e Amigos de
Excepcionais]. Desenvolvendo com elas atividades recreativas, o grupo de crianças era
dividido em quatro; cada um destes ficava em um canto da quadra de esportes fazendo
determinada atividade. Deste projeto social nasceu a Ong e o propósito de desenvolver
ações que levassem mais consciência, atitude e esperança às pessoas. Tempos depois, já
na universidade, participamos de um evento com tema ambiental e deu aquele clique. É
isso que queremos fazer. Tornar o mundo melhor pela temática socioambiental. Logo
em seguida, organizamos um encontro sobre meio ambiente na nossa faculdade e daí
para formalizar e registrar nossa entidade foi um pulo. Ao longo da trajetória, alguns
projetos ganharam destaque [pergunto sobre as ações no Distrito de Casa Branca]. Foi
no decorrer de 2011 que o povoado de Casa Branca assistiu à eclosão do Movimento
[pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca], denunciando a ação predatória da
mineração. A gênese dele se deu no projeto intitulado Resgate da Cidadania, cujo foco,
visando às eleições de 2012, era preparar estratégias para fortalecer os interesses
políticos de Casa Branca, bastante negligenciada pelo poder público de Brumadinho.
Durante essas reuniões, foram levantados os diversos problemas da comunidade, sendo
um tema prioritário a água. O Grupo de Estudos da Água extrapolou o projeto inicial e
tomou, espontaneamente, um rumo inesperado, crescendo e ganhando a adesão popular.
A primeira ação do Movimento ocorreu quando a Vale começou a realizar sondagens
para a expansão de uma mina sua, usando veículos e equipamentos de grande porte para
abrir inúmeras vias de acesso em plena mata atlântica. Foi um Deus nos acuda. Eles
165
derrubaram muitas árvores de maneira ilegal, produziram rachaduras nas casas por
conta das explosões e, mais assustador, por conta da mina começou a faltar água neste
lugar que é o berço das nascentes que abastecem boa parte da região metropolitana.
Enfim, o conflito estava no ar. Já havia revolta porque a população foi privada do
acesso às cachoeiras localizadas nas terras pertencentes à Vale. A comunidade assustada
e sem explicações do que estava acontecendo começou a se reunir para enfrentar esse
desafio. Organizamos caminhadas, coletamos assinaturas da população e entramos com
uma representação junto ao Ministério Público para esclarecer o que estava acontecendo
e tomar as devidas medidas judiciais. O Movimento se fortaleceu, a população começou
a participar de audiências públicas; encontros e fóruns ambientais. Organizamos blocos
de protesto nos carnavais de Rua de Casa Branca; shows, almoços comunitários e feiras
de trocas. Buscamos recursos, por meio de campanhas diversas. Mas uma grande
mobilização popular acontecida em maio de 2011 fez com que o poder público e a Vale
parassem de ignorar a existência do Movimento e da própria comunidade. Foi um
marco pra nós. Exibimos o filme Não Vale, de Silvestro Montanaro, sobre o impacto do
ciclo de mineração e siderurgia no corredor de Carajás e as ações da Vale ali, o impacto
socioambiental, os conflitos trabalhistas e a degradação de vidas humanas causados pela
ação da mineradora. Posteriormente, na madrugada de segunda-feira, a comunidade
bloqueou a “Avenida Um” que liga Casa Branca à Sede do Município e à Mina da
Jangada. Esta mobilização ficou conhecida como o Dia da Alegria. Como resultado da
ação, no mesmo dia a Vale enviou vários representantes para dialogarem com a
comunidade, a mídia noticiou o ocorrido em cadeia nacional e nas redes sociais da
internet. Finalmente a mineradora sentiu que a comunidade não estava brincando,
estabelecendo, finalmente, um canal de comunicação com a mesma. Acredito que eles
estavam bem preocupados porque a licença de operação da mineradora estava
vencendo. Mesmo com os protestos e manifestações contrárias do Movimento, a licença
foi renovada algum tempo depois, inclusive autorizando-a a realizar todos os tipos de
uso da água, inclusive o rebaixamento de lençol freático. Mas a nossa luta continua.
Não são só as minas da Vale. Lutamos também contra a V&M Mineração (antiga
Mannesmann), a Ferrous Resources do Brasil, AVG Mineração Ltda, a MMX e com
muitas outras. Toda a Região Metropolitana sofre os impactos socioambientais causados
por elas. É nosso papel alertar as pessoas dos quatro cantos do planeta Minas. Como
divulgamos nos adesivos de uma de nossas campanhas, consideramos a “Mineração, um
Câncer no Seio das Gerais”.
166
Figura 34: Manifestação em prol da Preservação da Serra da Moeda, promovida pelo Movimento
pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca. Fonte: Jornal Estado de Minas, em 21/04/2012.
Figura 35: Material de divulgação da Ong Movimento. Fonte: Movimento
pelas Águas e Serras de Minas e de Casa Branca.
5.4.
O empregado da mineradora.
Trabalho na Vale há muito tempo. Não aceito esta coisa de abraçar montanha.
As mesmas pessoas que poluem muito mais criticam uma atividade que só traz
benefício e impacta muito pouco. Pelo contrário, as mineradoras preservam porque tem
compromisso e porque são obrigadas por lei. Não existe lei para as pessoas em
167
condomínios não poluírem. Pergunta se eles já fizeram algum protesto, já trouxeram
algum geólogo para avaliar o impacto que os condomínios fechados fazem na Serra da
Moeda e no meio ambiente? O que acontece com a fossa, o esgoto gerado pelo
condomínio? Será que não estão impactando nossas nascentes, águas subterrâneas? A
maioria desse povo que fica protestando e criticando a mineração polui muito mais. Eles
ficam preocupados com verde, ar puro, montanha e esquece do povo. Eu tenho uma
vida digna hoje graças à mineradora. Eu nunca vi mineração alguma fazer mal a
Brumadinho. O município tá crescendo, as coisas estão melhorando desde que as
mineradoras vieram pra cá. É emprego pra muita gente. Muito melhor do que trabalhar
na casa destes ricos que estão vindo pra cá. Ou mesmo na roça, com pouca terra pra
crescer. O que eu vejo é o que os políticos não fazem nada por Brumadinho. Isso sim.
Esses que querem preservar a natureza então nem se fala. Não precisam trabalhar, ficam
só servindo essas ONGs estrangeiras, ganhando dinheiro fácil pra fazer confusão (J.X.,
operador de escavadeira, 39 anos).
5.5.
O dirigente municipal.
Hoje empregamos quase 2.000 funcionários. Quase 20% de toda a receita vêm
de compensação financeira pela exploração mineral. Não posso desprezar as receitas da
mineração. Ela traz saúde, educação, estradas melhores, não tem como negar. Graças a
ela, o IDH do município é alto. [pergunto sobre as manifestações] As minas da Vale que
estão em operação atualmente, a do Córrego do Feijão e Jangada, estão acabando e eles
vão ampliar a Jangada. A nova mina será bem maior e irá gerar uma arrecadação
financeira muito positiva para o município. Do turismo ainda não arrecadamos muito.
Eu entendo que a gente tenha que cuidar do meio ambiente. Eu até decretei o aumento
das áreas de proteção ambiental. Eu tenho também tentado diversificar a economia,
incentivando a instalação de fábricas de peças de automóveis, cerâmicas, frigoríficos e a
implantação de unidades de processamento dos minérios retirados aqui. Mas isso não é
de imediato. A agricultura daqui não arrecada muito, mas tem muito produtor no
município ainda (A.V., dirigente municipal).
168
5.6. O estudante.
Vejo essa região como uma pobre menina rica. Fala-se tanto no
desenvolvimento que a indústria e as minas trazem pra região, mas não vejo isso. Ao
redor tem as periferias e muita pobreza. Os prefeitos daqui ficam o tempo todo
querendo trazer indústria. Pra eles isso é desenvolvimento. Não dão apoio pra outras
coisas. Se aparece algum empresário deste ramo é só sorriso. Isenção fiscal, menos
imposto, terreno, infraestrutura. Pra eles não tem outra coisa no mundo. Lembro de um
prefeito daqui da região que a história saiu até no jornal. Ele queria trazer pro município
dele uma indústria de doce. Foi pra capital conversou com o desenvolvimento
econômico e tal. Depois ficou sabendo que ia ganhar uma siderúrgica porque o
município dele ficava em uma área de interesse pra eles. Ele festejou demais. Começou
a dizer que o progresso ia chegar. A fabrica de doce de fruta foi pro beleléu (J.A.,
estudante).
5.7. O casal na roça.
Nossa família veio da Cachoeira dos Antunes. Perdemos as terras quando
alagaram pra distribuir água do Rio Manso pra região e viemos pra cá. Começamos
tudinho de novo. Plantar feijão, milho, mandioca, horta. É o que sabemos fazer. Gosto
de acordar cedo. Eu e a veia... Ela vai dar comida pros bichos e eu corto o napier [tipo
de capim] e dou pro gado. Boi é igual gente: se tá de barriga cheia, tá tudo bem. Senão
já viu... A vida aqui é simples, mas não falta nada. A terra é pouca, mas criei os
meninos tirando o sustento daqui. Meu filho mais novo tá estudando na Fazenda
Modelo em Pedro Leopoldo. Se não quiser voltar pra cá, vai ter estudo. Tenho orgulho.
Os outros dois tão mais perto, têm família. Da roça tiro milho e feijão que entrego na
associação e eles embalam [Associação embala esses produtos agregando-lhes valor
usando a marca Bruma Vida].
Duas vezes na semana levo as verduras pra vender na cidade. E também levo
queijo e doces. Não volto com quase nada. Não uso veneno nem nada. É tudo caseiro. O
povo fica doido. Ainda mais que tem um monte de gente de mais poder morando por
aqui agora. Falou que é sem químico as coisas, tem fila pra comprar. Mas quase tudo
que produzo eu entrego em uma pousada e na cidade. Se tivesse mais área e mais gente
talvez aumentasse a produção. Mas achar quem queira trabalhar na roça é difícil. O
169
trabalho é duro. Muitos preferem ir procurar serviço nessas empresas de peça de carro
[empresas que estão produzindo para a montadora Fiat] ou nas mineradoras. Eu sempre
gostei de roça. Minha família sempre viveu na roça. Então foi natural a gente ir ficando
por aqui. Recebo proposta pra vender a terra, mas ainda não quero isso não, porque eu
não sei se consigo viver engaiolado nessas casas da cidade. As imobiliárias vivem
perguntando se a gente não quer [vender a propriedade porque há uma grande demanda
de áreas para fins de lazer e fracionamento para loteamento e moradias]. Mas por agora
vou ficando aqui [dona S.V. entra na conversa]. Meu pai me ensinou que a gente não se
desfaz do que tem. Tem que dar um jeito de ir vivendo. Comprar mais nós não vai
conseguir, mas também não temos que entregar o que é nosso. Eu gosto demais daqui.
Quando vou pras casas dos parentes na cidade fico doida de vontade de voltar. Fico até
meio doente, com saudades do meu tear [me mostra as peças que produz] (J.V. e S.V.,
agricultores).
Figura 36: Transporte de tomate; embalagem pela Associação sob o rótulo Bruma Vida e retirada do
leite. Fotos da autora.
5.8. O pecuarista.
Tenho uma boa área aqui. Tenho gado e capim. Moro em Belo Horizonte e
venho de vez em quando. Tenho um vaqueiro que cuida das coisas pra mim, ele mora
no quilombo. O município está crescendo e minhas terras estão valorizando. Quem sabe
o futuro? Esses condomínios, o turismo, o Inhotim. Isso tudo é bom para os negócios (J.
R., pecuarista 57 anos).
170
5.8. O trabalhador do Assentamento Pastorinhas.
Quando jovem eu ficava pensando em vim pra capital, arrumar um bom
emprego, trabalhar, crescer, essas coisas que todo mundo quer. Aí vim, cheguei a Belo
Horizonte e consegui vaga em uma firma. Mas o tempo foi passando e aquele sonho,
assim, que a gente tinha de poder crescer e tudo que a gente sempre via na televisão:
“ah, Belo Horizonte, aqui deve ser tudo muito bom e bonito”, não virou nada.
Trabalhava muito, ganhava pouco, não sobrava quase nada depois de pagar conta,
aluguel. Aí em 2003 resolvi me juntar ao grupo, fui entrosando com a turma e hoje sou
assentado. A história começou com 120 famílias, mas hoje somos apenas 20. Lutamos
muito para conseguir esse pedaço de terra. Ficamos muito tempo acampados debaixo de
um viaduto da mineradora Vale. Queríamos ocupar a fazenda que estava improdutiva,
mas devido à medida provisória que proibia a vistoria de imóveis rurais ocupados por
sem terra, ficamos esperando. Depois cansamos de esperar pela prévia vistoria do Incra,
então ocupamos a fazenda, que era uma parte do condomínio Menezes. Em 2006,
recebemos a posse e o direito a um lugar digno para se viver. Temos 142 hectares de
mata e cerrados, que continuamos preservando. Plantamos nos 14 hectares que já
estavam desmatados [mostra com orgulho as plantações de hortaliças e o roçado com
feijão]. Aqui é coletivo, mas assim cada um planta o seu. Alguns trabalham nos
condomínios do município. Às vezes você planta muito e perde. Eu não planto mais
porque não tem onde escoar. Para gente escoar ela toda eu tenho que arranjar um jeito
de entregar no Ceasa, mas e o transporte? Hoje estou tocando a minha vida, tenho
liberdade. Da agricultura já consegui minha casinha. Quero continuar aqui pra sempre
(A.S., 41 anos, assentado).
Figura 37: Áreas de produção do Assentamento das Pastorinhas e assentada. Fotos da autora.
171
5.9.
A liderança quilombola.
A comunidade de Sapé tem uma história de muitos anos. Somos considerados
quilombolas. A gente sabe que a gente é descendente dos escravos porque os avós da
gente contam. Eles me contaram que o primeiro escravo era João Borges. Ele veio
fugido da Fazenda do Martins. Quando aconteciam as fugas dos escravos, eles não iam
para onde hoje é a comunidade mesmo, não. Tem a igreja numa baixada e depois tem
um terreno alto, um morro. Os escravos saiam das fazendas e fugiam para lá. E lá para
onde eles iam há muitos anos é chamado de quilombo. E até hoje é chamado de
quilombo. As pessoas de Sapé plantavam as roças de milho e feijão lá e falavam: a
minha roça é lá no quilombo. Só que ninguém relacionou uma coisa com a outra, né? Só
aflorou mesmo esse assunto de quilombo depois. Mas a gente tinha medo. A gente tinha
medo de abrir a boca para falar. Discriminavam a gente demais, aí a gente ficava
caladinha, a gente ficava no canto da gente. Quando a associação começou a se
organizar, a gente falava Sapé, a gente não pronunciava quilombo não. Hoje isso tá mais
misturado. Tem preconceito, já ouvi muito “ô cambada de criolada do Sapé”, mas tem
muita gente curiosa, vindo pra cá, querendo ver como vivemos, como é um quilombo. É
gente que vem no fim de semana, fica nos hotéis e pousadas. Alguns vêm das casas
chiques dos condomínios, trazendo visitas. Eu acho isso bom e ruim. Todo muito
curioso pra ver como vivemos. Parece que somos seres estranhos. Fico preocupada que
os nossos aprendam esses modos que o povo que tá vindo aqui tem e percam o orgulho
de nossas origens. Nossas tradições são muitas. Temos a festa de Santa Cruz, a Guarda
de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e a Guarda de Congado de São Benedito,
as danças folclóricas que a gente tem. Aí a gente sai para todos os lugares, para todo
município. Temos parentes por todo lado aqui: em Aranhas, Ribeirão, Marinhos. É
muito parente. Aqui somos 44 famílias, mais ou menos isso. A maioria do povo trabalha
fora, mas ainda temos uns roçados de feijão e milho pra nosso gasto. Como eu disse,
quando tudo isso começou era uma grande fazenda, mas depois foi ficando difícil viver
da lavoura. A gente plantava lá com os fazendeiros e aí eles tomaram a terra. Agora nas
terras de lá só se planta capim. Eles não deixam a população de Sapé plantar mais. A
nossa terra era uma terra bem extensa. Tem até uma história que roda de boca em boca.
Disse que uma família daqui que tinha terra grande, aí o fazendeiro soltava o gado na
terra daquela família e como a pessoa não podia cercar aquela propriedade grande,
172
cercava só um pedaço pequenininho que podia e aquele que ficava fora da cerca, ficava
para o fazendeiro. Acredito que por isso a terra foi ficando pouca pra plantar (T.A., 39
anos, liderança quilombola).
5.10. O gerente da mineradora
A empresa tem uma história de amor com esta região. Antigamente havia
muita reclamação porque era uma época que não tínhamos condições técnicas de prever
algum descontrole do processo produtivo. Mas hoje temos clareza que precisamos
monitorá-lo, mitigando os impactos socioambientais. Para isso, há todo um processo de
licenciamento ambiental, tendo por base os Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e
Relatório de Impacto Ambiental (Rima). Temos consciência que a durabilidade de
nosso negócio é diretamente proporcional ao atendimento de todas as exigências das
instituições fiscalizadoras. Além disso, procuramos sempre estar integrados com as
comunidades e municípios estabelecendo parcerias e ações sociais (R.W, 54 anos).
Os relatos deixam entrever um cenário de tensões e disputas, onde ruralidades
e urbanidades interagem, estabelecendo relações das mais diversas com a natureza,
alicerçadas sobre diferentes lógicas de apropriação do território.
173
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As trilhas investigativas que se propõem a explicitar e compreender o rural em
ambiente metropolitano causam estranhamento em quem ouve a intenção e desconforto
naquele que resolve fazê-lo. Isso porque a simples menção da existência de ruralidades
na ambiência metropolitana usualmente traz perplexidade, como manifestado pelo
flâneur baudelariano nos tópicos iniciais deste trabalho. Murmúrios de “ah”, “que?” e as
muitas perguntas questionando o para que e os porquês de tal pesquisa foram
frequentes na minha trajetória, segregando-me dentro de uma lógica instrumental e
utilitarista fundamentada em preceitos da ciência moderna. Esta reação reflete uma ideia
generalizada de que a urbanização – em sua dimensão superlativizada, qual seja, a
metropolização –, se espraia de forma tão homogênea e com tal magnitude que nada
sobra além dos seus elementos e valores. Como resultado, o rural metropolitano termina
sendo um objeto de análise pouco privilegiado.
As argumentações para não se tomar o rural metropolitano como objeto de
análise tanto transitam entre a alegação de sua inexistência como fenômeno social porquanto é considerado como algo subsumido, submerso nos processos da urbanidade
– passam pela tese da proeminência das relações socioespaciais urbanas no contexto
metropolitano e, como não poderia deixar de ser, finalizam o ciclo discorrendo acerca
da irrelevância econômica do rural metropolitano como há muito querem fazer crer as
forças hegemônicas assentadas no urbano.
Fugindo das trivialidades e (pré)conceitos que parecem engolir com ferocidade
atores e processos em torno da ruralidade metropolitana, trilhamos um caminho
investigativo que a privilegiou, mostrado a ruralidade como um campo autônomo e,
simultaneamente, pertencente ao conjunto social, e não nos termos clássicos da
modernidade.
Como
objetivo
desta
investigação,
tentamos
iluminar
a
ruralidade
metropolitana na RMBH com a tinta do esclarecimento e as cores da descoberta.
Conduzimos o trabalho em torno da hipótese da existência de um pensamento
totalizante que fermentou as narrativas sobre o desaparecimento e a insignificância do
mundo rural, mostrando uma força ampliada e difusa quando o recorte de análise é o
metropolitano.
No espaço da RMBH, dois dos maiores símbolos da modernidade tiveram um
grande papel no processo de desconstrução do mundo rural, quais sejam, a
174
industrialização e a urbanização, suscitando a formação de um pensamento hegemônico,
introjetado nos corpos e mentalidades, apregoando o desaparecimento da ruralidade
sucumbiu diante da soterradora avalanche suscitada pelo fenômeno metropolitano.
Certamente que tal fato não é exclusivo da RMBH. Entretanto, sua socio-historia,
marcada pela exploração intensiva de metais preciosos e pelo estabelecimento de uma
rede de cidades no período aurífero e minerador, foi elemento determinante para a
negação da ruralidade.
Afirmações obtidas na pesquisa de campo refletem um completo alinhamento à
visão hegemônica do território metropolitano. “Quilombos? Não existem”. “Conflitos
agrários? Não têm isso, não é lugar disso”. Agricultor familiar? Uns poucos que estão
vendendo suas áreas para empreendimentos imobiliários. Aqui não é lugar para “mexer”
com agricultura. Opiniões que reforçam o mito originário da região, narrado e renovado
com diferentes roupagens. Mas, por outro lado, presenciei falas nas quais se revela o
apreço à ruralidade ao se resgatar valores caros à “mineiridade”: os hábitos alimentares
da “roça”, passar o fim de semana nos sítios de parentes no interior “caipira”, ver e
sentir morros, curvas e cachoeiras, ou mesmo contar causos do desconfiado “Mineirim”,
personagem famoso com seu característico “uai sô”.
Coube às elites mineiras e ao aparato estatal forjar processos que terminaram
por criar a ideia da vocação industrial da RMBH e, em consequência, de sua pouca
aptidão para atividades sinérgicas com o mundo rural. Festas, comida, valores, símbolos
e tradições que remetem ao universo agrícola são, simultaneamente, negados e
festejados. Negados quando se tem em perspectiva seus agentes, em ruralidades
instrumentais e amordaçadas. Festejados quando divisados pelos urbanos em sua
ruralidade hedonista.
Nesta caminhada nos deparamos com muitas evidências da força, permanência
e persistência do rural e das ruralidades, que são expressas de formas diferentes em
universos heterogêneos, do ponto de vista cultural, social e econômico. Relatos nos
mostram a força da ruralidade hedonista que aparece como um anteparo espacial e
referencial para as mazelas indesejáveis do caos urbano. Nestes termos, a ruralidade é
objetivada como mercadoria e reserva de valor, expressão do patrimônio coletivo,
elemento de preservação do ambiente e da paisagem ou ainda como válvula de escape
para as tensões inerentes ao cotidiano metropolitano, adequando-se às necessidades,
interesses e expectativas da metrópole e de seus habitantes. Relatos também nos alertam
para as ruralidades amordaçadas, latentes em um espaço onde a concentração fundiária
175
e a especulação imobiliária são expressões das desigualdades e antinomias de poder de
um território recortado historicamente como igualitário e cheio de riquezas, apropriáveis
por quem assim puder. Histórias também nos falam das ruralidades instrumentais que
tem sua permanência condicionada a adoção de uma lógica agroempresarial, onde
eficiência, eficácia, produtividade são os elementos definidores de sua continuidade.
Nos municípios que compõem a RMBH, constatamos a valorização da
ruralidade relacionada à natureza, situação divisada primeiramente nas sociedades
ocidentais mais industrializadas. A anterior repulsividade ao mundo rural e a seus
valores tem sido minimizada, em processos de identificação que deixam entrever a
passagem de um mundo rural dominado pelo agrícola, para um mundo rural assimilado
pelo ambiente.
Muitas são as ruralidades presentes na região analisada e a elas associamos um
universo de atores em disputas. As empresas mineradoras, movimentos ambientalistas,
poderes públicos, agricultores, imobiliárias e empresas ligadas ao turismo são alguns
dos entes que atuam no metropolitano institucionalizado. Entretanto, ao divisar sua
heterogeneidade, acredito que seja necessário dar continuidade a este processo
investigativo, buscando elaborar e construir mais categorias operativas que consigam
explicar este universo ruralizado-urbanizado-(re)ruralizado. Creio ser importante
investigar as ruralidades que preconizam processos voltados à segurança alimentar e
nutricional das populações em situação de risco bem como as ruralidades do
agronegócio na região, as quais não foram devidamente visibilizadas nesta pesquisa.
Finalmente, penso na necessidade de buscar a companhia do flâneur para que
consigamos estabelecer uma viagem interpretativa nesta metrópole periférica e
contemporânea chamada Belo Horizonte, apontada por muitos como provinciana e nada
moderna como assim ela se deseja.
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Dione Melo da Silva