PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A TEORIA POLÍTICA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS: Em direção a um liberalismo político para uma sociedade democrática bemordenada Dissertação de Mestrado Walter Valdevino Oliveira Silva Orientador: Prof. Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr. Porto Alegre 2005 2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A teoria política da justiça de John Rawls: Em direção a um liberalismo político para uma sociedade democrática bemordenada Dissertação de Mestrado Walter Valdevino Oliveira Silva Dissertação para obtenção do título de Mestre em Filosofia (Ética e Filosofia Política), defendida dia 6 de julho de 2005. Banca: Prof. Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr. (orientador) Prof. Dr. Thadeu Weber Prof. Dr. Luiz Fernando Barzotto Agência de financiamento: CNPq Porto Alegre 2005 3 “It does me no injury for my neighbour to say there are twenty gods, or no god.” Thomas Jefferson (1743-1826), Notes on the State of Virginia 4 Em memória de José Valdevino da Silva (1930-2004), meu pai, a quem devo tudo. 5 Agradecimentos Gostaria de agradecer ao professor Nythamar de Oliveira pela amizade e acompanhamento ao longo desse período de dois anos. Seus seminários também tiveram grande importância tanto para definir melhor meus objetivos na dissertação, quanto para dar uma visão mais unificada de vários aspectos da filosofia. Esse período não teria sido tão proveitoso se não fosse a estrutura do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS, que se destaca pela alta produção docente, realização de alguns dos mais importantes eventos de filosofia do país, realização de diversos seminários e interação permanente com Departamentos de Filosofia no exterior. O financiamento através do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) foi essencial. Por fim, agradeço a todos os amigos que, mais diretamente ou mesmo sem saber, contribuíram para que eu superasse os momentos difíceis ao longo desse período. 6 ÍNDICE Siglas Utilizadas....................................................................................................................07 Resumo..................................................................................................................................08 Introdução.............................................................................................................................09 Capítulo 1 — A justiça como eqüidade 1.1. Surgimento da justiça como eqüidade........................................................................19 1.1.1. Método de justificação de ações morais..........................................................19 1.1.2. O contratualismo rawlsiano.............................................................................24 1.1.3. O utilitarismo...................................................................................................31 1.2. A teoria da justiça como eqüidade.............................................................................37 1.2.1. O papel da justiça............................................................................................38 1.2.2. A estrutura básica da sociedade.......................................................................43 1.2.3. Os princípios da justiça...................................................................................46 1.2.4. A questão da liberdade....................................................................................49 1.2.5. A estabilidade de uma sociedade bem-ordenada.............................................51 1.2.6. O senso de justiça............................................................................................55 Capítulo 2 — O liberalismo político 2.1. Principais mudanças...................................................................................................59 2.2. Elementos fundamentais do liberalismo político.......................................................66 2.2.1. Concepção política de justiça..........................................................................68 2.2.2. Concepção política de pessoa..........................................................................70 2.3. A idéia de um consenso sobreposto...........................................................................75 2.3.1. O construtivismo.............................................................................................78 2.3.2. As características do consenso sobreposto......................................................80 2.4. A prioridade do justo sobre o bem.............................................................................86 2.5. A idéia de razão pública.............................................................................................91 Conclusão..............................................................................................................................95 Bibliografia...........................................................................................................................99 7 SIGLAS UTILIZADAS Liberalismo – Rawls, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993. Tradução utilizada: O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000. Teoria – Rawls, John. A Theory of Justice (Edição revisada de 1975). Cambridge: Harvard University Press, 1999. Tradução utilizada: Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000 (4ª ed.). 8 RESUMO Nos anos que se seguiram à publicação de Uma Teoria da Justiça (1971), a produção do filósofo americano John Rawls (1921-2002) foi intensa tanto no sentido de responder às críticas feitas à sua obra, realizando algumas mudanças em sua teoria e aprofundando a idéia kantiana de sua filosofia moral, bem como, num momento posterior, no sentido de redefinir a concepção moral da teoria da justiça, modificando-a em direção a uma concepção estritamente política. Assim, meu objetivo é expor quais mudanças na teoria da justiça como eqüidade (justice as fairness) foram feitas, e de que forma foram feitas, durante as décadas de 1970, 1980 e 1990. Para tanto, tomo como tema de análise a questão da redefinição do caráter moral da teoria da justiça (como tinha sido exposto em Uma Teoria da Justiça) para a adoção de uma teoria simplesmente política, exposta de modo sistemático em O Liberalismo Político (1993). Acredito que, a partir desse tema, é possível ter uma melhor compreensão não somente de aspectos particulares da teoria rawlsiana, mas principalmente obter uma visão mais clara de um dos problemas fundamentais das democracias contemporâneas: como atingir a estabilidade e a unidade de um sistema social em meio ao pluralismo de doutrinas morais, religiosas e filosóficas que, segundo o próprio Rawls, deve ser uma característica intrínseca de qualquer sociedade democrática. 9 INTRODUÇÃO Publicada em 1971, Uma Teoria da Justiça,1 resultado de estudos iniciados cerca de duas décadas antes,2 rapidamente muda o panorama da teoria moral e política, tornando-se obra de referência imprescindível em qualquer debate atual sobre questões sociais, justiça, ética, racionalidade e método filosófico. Durante os anos que se seguem, uma quantidade imensa de artigos que discutem a obra é publicada. Paralelamente — em parte por causa de alguns desses artigos, em parte devido às próprias mudanças históricas e à presença cada vez maior da questão do pluralismo no debate político — Rawls passa a tentar corrigir inconsistências de sua teoria da justiça como eqüidade. As várias conferências nas quais sua teoria é reformulada são reunidas e publicadas em forma de livro em 1993, com o título de O Liberalismo Político.3 Mais do que simplesmente uma evolução teórica isolada, as mudanças da teoria de Rawls são clara conseqüência das transformações ocorridas na agenda dos debates políticos contemporâneos, sobretudo nos Estados Unidos da América. 1 Rawls, John. A Theory of Justice (Edição revisada de 1975). Cambridge: Harvard University Press, 1999. Tradução utilizada: Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000 (4ª ed.). De agora em diante, citada apenas como Teoria. 2 Os principais artigos publicados por John Ralws antes de 1971 são: "Outline of a Decision Procedure for Ethics." The Philosophical Review (Abril de 1951), 60(2): 177-197, "Two Concepts of Rules." The Philosophical Review (Janeiro de 1955), 64(1): 3-32, “Justice as Fairness”, The Philosophical Review, vol. 57 (1958); “Distributive Justice: Some Addenda”, Natural Law Forum, vol. 13 (1968); “Constitutional Liberty and the Concept of Justice”, Nomos VI: Justice, org., C. J. Friedrich e John Chapman (Nova York, Atherton Press, 1963); “Distributive Justice”, Philosophy, Politics and Society, Third Series, org. Peter Laslett e W. G. Runciman (Oxford, Basil Blackwell, 1967); “The Justification o Civil Disobedience”, Civil Disobedience, org. H. A. Bedau (Nova York, Pegasus, 1969); “The Sense of Justice”, The Philosophy Review, vol. 62 (1963). Todos esses artigos podem ser encontrados conjuntamente em Rawls, John. Collected Papers (Org. Samuel Freeman). Cambridge: Harvard University Press, 1999. 3 Rawls, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993. Tradução utilizada: O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000. De agora em diante, citado apenas como Liberalismo. 10 Desde a infância em Baltimore — que contava com uma população negra de cerca de 40%, e também por acompanhar a luta de sua mãe em defesa dos direitos das mulheres — Rawls toma consciência dos problemas da desigualdade e injustiça social.4 Durante a década de 1960, período de intensa atividade intelectual, Rawls já estava dando aula na Universidade de Harvard e presenciou a discussão sobre a Guerra do Vietnam. O questionamento recaía sobre a validade das decisões de um governo, ou de uma classe política, que ascendia ao poder devido à riqueza e que acabava por impor seus interesses particulares nas decisões do governo, como a de ingressar na guerra. Juntamente com essa intensa discussão política, os anos 1950 e 1960 presenciaram uma considerável modificação nos debates sobre filosofia política, da qual Teoria pode ser considerada como uma das obras sintetizadoras. A argumentação em favor dos direitos passa a ocupar um lugar importante no debate acadêmico, sendo que a apropriação de algumas idéias marxistas amplia as reivindicações não só por liberdades civis e políticas, mas também por igual distribuição de renda e riquezas, educação, oportunidade de trabalho, assistência médica e outras medidas com o objetivo de beneficiar os menos favorecidos. De acordo com Amy Gutmann, Teoria pode ser vista, ao rejeitar a predominância dos interesses de classe ou grupos, como uma tentativa de “integração da crítica socialista na teoria liberal.”5 Isso estaria claro nos dois princípios de justiça, responsáveis pela ordenação das principais instituições da sociedade, propostos por Rawls: o primeiro princípio, o da igual liberdade, assegura as liberdades liberais básicas: liberdade de pensamento, consciência, discurso, reunião, voto universal, de estar livre de ser preso sem motivo e liberdade de poder concorrer a cargos públicos. Mas ausentes dessa lista estão as 4 Cf.: Richardson, Henry & Weithman, Paul. The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice. New York: Garland Publishing, 1999, p. 3-4. 5 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 17 11 liberdades de mercado capitalistas: direito de ter propriedade comercial, direito de se apropriar do excedente de produção, direito de herança, etc. Como as partes contratantes da teoria da justiça como eqüidade não conhecem sua riqueza e posição social, não sabendo se são trabalhadores ou proprietários dos meios de produção, escolherão os princípios de justiça apenas preocupadas com que todos, independente da classe social e da riqueza, tenham as condições mínimas necessárias que garantam uma vida decente. Por outro lado, o segundo princípio de justiça justifica somente desigualdades econômicas e sociais que beneficiam os cidadãos menos favorecidos (princípio da diferença) e também defende a igualdade eqüitativa de oportunidades e de chances de vida, independente da renda e da classe social, e não somente a igualdade formal de oportunidades. A conseqüência deste segundo princípio de justiça é que será necessário, por exemplo, adotar esquemas de educação compensatória e evitar grandes desigualdades de riquezas que, como se sabe, são o principal causador de desigualdades políticas e de poder.6 Mesmo assim, embora tentando compatibilizar a crítica socialista com ideais liberais fundamentais, defendendo uma política mais igualitária do que a lockeana e, em certo sentido, mais libertária do que o marxismo, Rawls é criticado por ambos os lados: “Liberais que acreditam na distribuição de acordo com o mercado ou com o mérito individual (ou ambos) têm criticado Rawls por não considerar a liberdade de se apropriar dos frutos do próprio trabalho como estando entre as liberdades básicas. Socialistas que acreditam que 6 Em um interessante trecho sobre as implicações dos dois princípios de justiça, Philippe van Parijs compara a teoria de Rawls com a de Marx: “Essas reservas não impedem, entretanto, que Rawls seja, sob certos aspectos, mais ‘igualitarista’ que Marx, por exemplo. Desse modo, o princípio ‘A cada um segundo seu trabalho’, que, segundo Marx, deve reger a distribuição dos lucros sócio-econômicos no primeiro estágio da sociedade comunista, tolera as desigualdades ligadas à quantidade, à intensidade e talvez ao grau de qualificação do trabalho prestado, o que o princípio da diferença não necessariamente legitimaria. E o mesmo acontece com o princípio ‘A cada um segundo suas necessidades’, que corresponde ao estágio superior da sociedade comunista, se bem que aqui (...) as desigualdades de lucros sócio-econômicos podem ser concebidas como não fazendo mais do que compensar as desigualdades preexistentes e, portanto, como que se increvendo elas mesmas em uma perspectiva igualitarista.” (Fondements d’une théorie de la justice, p. 31). 12 a propriedade capitalista de empresas de larga escala seja uma forma pós-feudal de governo privado têm criticado Rawls por deixar a escolha entre propriedade privada e coletiva da indústria de longa escala aberta à argumentação empírica, ao invés de estabelecê-la sobre fundamentos morais”.7 Em 1975, Rawls revisa o texto original da primeira edição de Teoria para a publicação da edição alemã.8 O núcleo central da obra é mantido, mas algumas mudanças importantes são realizadas. A primeira delas diz respeito à questão da liberdade9 e a segunda diz respeito à análise dos bens primários, que são as coisas que as pessoas racionais desejam, independentemente de quaisquer outras coisas que desejam.10 Além dessas mudanças, resultantes de críticas feitas logo em seguida da publicação de Teoria, na segunda metade da década de 1970 Rawls começa a perceber inconsistências na Terceira Parte de sua obra, especificamente no que dizia respeito à questão da estabilidade de uma “sociedade bem-ordenada”. Essa Terceira Parte não estaria coerente com a visão da teoria da justiça como eqüidade em sua totalidade. A idéia de sociedade bem-ordenada, da forma como exposta em Teoria, dava a entender que todos os cidadãos endossariam a concepção de justiça como eqüidade como se ela fosse uma doutrina filosófica abrangente (comprehensive), ou seja, uma doutrina que diz respeito a vários — senão a todos — aspectos da vida humana: religiosos, morais, filosóficos, etc. 7 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 17 Eine Theorie der Gerechtigkeit. Frankfurt: Suhrkamp, 1975. 9 Essas mudanças foram feitas devido às críticas de H.L.A. Hart, publicadas no artigo “Rawls on Liberty and Its Priority”, University of Chicago Law Review”, vol. 40 (1973), p. 534-555. Rawls afirma, entretanto, que uma resposta mais adequada para as críticas de Hart pode se encontrada no artigo “Basic Liberties and Their Priority”, ("The Basic Liberties and Their Priority." In Sterling M. McMurrin, ed., The Tanner Lectures on Human Values, III (1982), p. 1-87. Salt Lake City: University of Utah Press; Cambridge: Cambridge University Press, 1982), tradução brasileira: “As liberdades básicas e sua prioridade”, in Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 141. 10 Como no caso da liberdade, Rawls afirma que somente no artigo “Social Unity and Primary Goods” (Collected Papers, p. 359) a questão dos bens primários será melhor esclarecida. 8 13 Não que essa inconsistência estivesse clara em Teoria — mesmo porque nesta obra ainda não havia distinção entre doutrinas abrangentes e não-abrangentes —, mas o problema era que a apropriação do contrato social, como aparece em Teoria, parecia fazer parte de uma filosofia moral (também não havia distinção entre filosofia moral e filosofia política). A teoria da justiça como eqüidade não era vista como uma concepção estritamente política de justiça, ou seja, voltada somente para objetivos políticos. A importante limitação ao campo do político não tinha sido feita, o que dava margem à interpretação de que Rawls estaria elaborando uma teoria moral completa ou parcialmente completa, que pudesse estabelecer diretrizes morais para variados aspectos da vida humana; para além do campo político, portanto. Como veremos detalhadamente no Capítulo 2, essa restrição ao campo do político é o segundo grande motivo das críticas feitas contra o filósofo.11 Com as modificações em sua teoria da justiça, Rawls passa a considerar seriamente a questão do pluralismo de doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes existentes nos regimes democráticos contemporâneos. Para ele, é preciso reconhecer que a existência deste “pluralismo razoável” de doutrinas abrangentes é uma conseqüência normal do exercício da razão humana em sociedades livres e democráticas. Seria muito pouco realista acreditar que os cidadãos de uma mesma sociedade democrática constitucional defendessem uma única doutrina abrangente. Por isso, o objetivo de Rawls é formular uma concepção de justiça política para um regime democrático constitucional que possa ser endossada pelas diversas doutrinas razoáveis existentes nesse regime, sem que essas mesmas doutrinas precisem ser substituídas ou receber novos fundamentos. 11 O primeiro é sobre a concepção da posição original de escolha dos princípios de justiça. 14 Assim, reconhecer o fato do pluralismo razoável como fundamental para garantir a estabilidade social é considerar uma questão que, para o filósofo, exerceu um papel de pouco destaque na história da filosofia moral.12 Após essas reformulações, os questionamentos do liberalismo político passam a ser: “... como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. Em outras palavras: como é possível que doutrinas abrangentes profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de um tal consenso sobreposto?”13 Partindo desses questionamentos, gostaria de enfatizar dois aspectos importantes. Um deles remete a uma questão central das democracias contemporâneas; o outro, à própria história da filosofia, especificamente no que diz respeito ao desenvolvimento das concepções liberais. O primeiro aspecto relaciona-se às origens e implicações do que usualmente é chamado de construtivismo político. Com a modernidade, e cada vez mais atualmente, ganha força a idéia de que as instituições humanas e os princípios que as regem devem ser o resultado — agora que não se depende mais da idéia de uma ordem superior, divina ou de qualquer outra espécie — de uma construção, elaborada pelos cidadãos enquanto seres autônomos e possuidores de razão. Por este motivo, Rawls está interessado em propor a construção de uma base de justificação pública que seja amplamente aceita pelos cidadãos, já que ela diz respeito a questões fundamentais, em relação às quais todos sabem que devem opinar e ter um posicionamento. Percebe-se, portanto, a importância da necessidade de 12 13 Cf. Liberalismo, Introdução, p. 25. Liberalismo, Introdução, p. 25-26. 15 distinção entre a razão pública, ou ponto de vista público, e as diversas razões ou pontos de vista não-públicos. Nesse sentido, Rawls confere importância central, como veremos no Capítulo 2, para a distinção entre o razoável e o racional: “... o liberalismo político, em vez de se referir à sua concepção política de justiça como correta, refere-se a ela como uma concepção razoável. Não se trata apenas de uma questão semântica, pois duas implicações decorrem disso. Em primeiro lugar, ‘razoável’ indica um ponto de vista mais limitado da concepção política, que aqui articula valores políticos apenas, e não todos os valores, ao mesmo tempo que apresenta uma base pública de justificação. Em segundo lugar, o termo indica que os princípios e ideais da concepção política baseiam-se nos princípios da razão prática, conjugados a concepções de sociedade e pessoa que advêm, também elas, da razão prática. Tais concepções especificam o arcabouço no interior do qual os princípios da razão prática se aplicam.”14 Serão razoáveis, assim, os princípios derivados de um procedimento adequado de construção realizado por pessoas racionais submetidas a condições razoáveis. Esses princípios constituirão a base para a discussão pública de questões políticas fundamentais. Como espero que fique claro ao longo do texto, desde os primeiros artigos Rawls está tentando elaborar um procedimento construtivista. O segundo aspecto importante a ser enfatizado diz respeito à história da filosofia política e ao surgimento e desenvolvimento do conceito de tolerância e pluralismo, vinculados mais significativamente ao surgimento do período moderno que, segundo Rawls, rompe com os ideais dos antigos principalmente depois de três processos históricos: 1) A Reforma Protestante do século XVI, que levou ao pluralismo religioso; 2) O surgimento do Estado moderno, que centralizou a administração e inicialmente é controlado por monarcas absolutos; 3) O desenvolvimento da ciência moderna, que Rawls entende como “o 14 Liberalismo, Introdução, p. 28. 16 desenvolvimento da astronomia com Copérnico e Kepler, assim como a física newtoniana; e também, é preciso enfatizar, o desenvolvimento da análise matemática (cálculo) por Newton e Leibniz.”15 Assim, para Rawls: “... a origem histórica do liberalismo político (e do liberalismo em geral) está na Reforma e em suas conseqüências, com as longas controvérsias sobre a tolerância religiosa nos séculos XVI e XVII. Foi a partir daí que teve início algo parecido com a noção moderna de liberdade de consciência e de pensamento. Como Hegel sabia muito bem, o pluralismo possibilitou a liberdade religiosa, algo que certamente não era intenção de Lutero, nem de Calvino. É claro que outras controvérsias também tiveram uma importância crucial, como aquelas versando sobre a limitação dos poderes dos monarcas absolutos por princípios adequados e de traçado constitucional, visando a proteger direitos e liberdades básicas.”16 Com a modernidade, portanto, a questão da convivência estável e harmoniosa em sociedade passa a ser um problema de justiça política, e não mais um problema sobre o bem supremo. Embora preocupado, em Teoria, com propor alternativas para a resolução de problemas políticos específicos, sobretudo aqueles relacionados ao conflito clássico na história do pensamento liberal entre igualdade e liberdade, Rawls não dedica atenção necessária ao fato do pluralismo de doutrinas abrangentes que, cada vez mais, constituem um aspecto político fundamental das sociedades contemporâneas. Se a consideração desses fatores, como veremos, levou a várias reformulações na teoria da justiça como eqüidade, por outro lado, acredito que Rawls passa a elaborar uma visão muito mais coerente com, e adequada às, sociedades democráticas contemporâneas. 15 16 Liberalismo, Introdução, p. 31. Liberalismo, Introdução, p. 32. 17 Para concluir esta Introdução, gostaria de mencionar rapidamente um último aspecto que, embora não seja analisado no texto com mais detalhes devido à sua abrangência, deve ser considerado como um pressuposto para compreender a teoria rawlsiana e sobretudo as críticas feitas em relação a Liberalismo (voltarei a esse ponto novamente na Conclusão). Trata-se da apropriação que Rawls realiza da teoria kantiana. No conhecido §40 de Teoria (A interpretação kantiana da justiça como eqüidade17) o filósofo pretende deixar claro que sua concepção da justiça se baseia na noção de autonomia kantiana e nos principais aspectos relacionados a ela, como a idéia de escolha racional, e de seres racionais iguais e livres. Assim, a posição original de escolha dos princípios de justiça, juntamente com o véu de ignorância — que priva as partes contratantes de qualquer conhecimento de sua situação social, como classe, renda e riqueza — e demais restrições, estariam muito próximos da doutrina de Kant “pelo menos quando se tem uma visão global de seus escritos sobre a ética.”18 Nesse sentido, agir de acordo com os princípios de justiça escolhidos na posição original seria equivalente a agir com base em imperativos categóricos, já que a descrição da posição original seria equivalente ao ponto de vista do eu em si, ou nôumeno, no que se refere ao significado de um ser racional igual e livre. Essa apropriação da doutrina kantiana, sobretudo por eliminar as dicotomias entre necessário e contingente, a forma e o conteúdo, a razão e o desejo, os nôumenos e os fenômenos, sempre foi objeto de várias críticas. Com as modificações propostas em Liberalismo, Rawls ainda mantém que sua teoria tem uma vinculação clara com a doutrina kantiana. Continua, embora com algumas especificações, mantendo o vínculo apresentado acima entre posição original e a doutrina kantiana, mas passa a dar mais ênfase para a idéia 17 18 Teoria, §40, p. 275-83. Teoria, §40, p. 277. 18 de interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia, para a idéia de construtivismo e para a importante distinção entre o razoável e o racional. A idéia de prioridade do justo sobre o bem, que coloca Rawls na mesma linha de teóricos deontológicos em que Kant se situa, também tem grande importância para compreendermos em que sentido Rawls é um autor essencial nas discussões contemporâneas sobre normatividade. 19 CAPÍTULO 1 – A justiça como eqüidade 1.1. Surgimento da justiça como eqüidade 1.1.1. Método de justificação de ações morais Iniciar a leitura de Teoria sem possuir maiores referências sobre o contexto do debate político americano ou sobre a trajetória teórica do autor antes de 1971 pode levar a alguns estranhamentos. Se é verdade que Rawls passa a ter um amplo reconhecimento após a publicação de Teoria, é preciso lembrar também que desde 1951 o filósofo já estava publicando importantes artigos acadêmicos, interessado, por exemplo, nos debates sobre o utilitarismo e o procedimentalismo.1 Não se tratando somente de reconstituir o percurso intelectual de Rawls, mas com o objetivo de mostrar até mesmo que suas reflexões apresentadas em Liberalismo já encontram a origem de sua formulação nos textos anteriores a 1971, é preciso entender de que modo sua concepção particular de contrato social tomou forma até ganhar uma elaboração mais definitiva em Teoria.2 Como afirma Henry S. Richardson, “seria aconselhável, para qualquer tentativa de chegar a um inteiro entendimento da justiça como 1 Para referência a esses artigos, ver nota 2, p. 9. Esse percurso fica claro através da própria explicação de Rawls no prefácio à primeira edição de Teoria: “Ao apresentar Uma Teoria da Justiça, tentei reunir em uma visão coerente as idéias veiculadas nos artigos que escrevi ao longo dos últimos doze anos aproximadamente. Todos os tópicos centrais desses artigos são retomados, de modo geral com mais detalhamento. As outras questões necessárias para completar a teoria também são discutidas. A exposição se divide em três partes: A primeira parte cobre, com muito maior elaboração, o mesmo terreno de “Justice as Fairness” [“Justiça como eqüidade”] (1958) e “Distributive Justice: Some Addenda” [“Justiça distributiva: alguns adendos”] (1968), enquanto os três capítulos da segunda parte correspondem, respectivamente, mas com muitos acréscimos, aos tópicos de “Constitutional Liberty” [“Liberdade constitucional”] (1963), “Distributive Justice” [“Justiça distributiva”] (1967) e “Civil Disobedience” [“Desobediência civil”] (1966). O segundo capítulo da última parte cobre os temas de “The Sense of Justice” [“O senso de justiça”] (1963). Exceto em uns poucos lugares, os outros capítulos dessa parte não são paralelos aos ensaios publicados. Embora as idéias principais sejam em grande parte as mesmas, tentei eliminar inconsistências e completar e fortalecer o argumento em muitos pontos.” (Teoria, Prefácio, p. XXI) 2 20 eqüidade, considerar a evolução dos primeiros pontos de vista de Rawls e o contexto no qual eles foram originados.”3 Desde o artigo “Outline of a Decision Procedure for Ethics”, de 1951, Rawls se mostra interessado em elaborar alguma forma de procedimentalismo para resolver questões morais.4 Como veremos, a intenção procedimentalista de Rawls é clara, já indicando idéias que, depois, serão expressas através da concepção de equilíbrio reflexivo. Como afirma Amy Gutmann, Rawls argumentará que “não temos melhor modo de justificar princípios que satisfazem padrões mínimos de razão moral (consistência lógica, generalidade, e assim por diante) do que traduzindo os princípios em práticas sociais e julgando se as práticas são consistentes com nossas convicções morais”.5 Embora deslocando o foco de sua teoria da moral para a política, Rawls tentará sempre se manter dentro desta perspectiva teórica. Com este objetivo, a intenção de Rawls neste artigo de 1951 é investigar se “existe um procedimento de decisão razoável que seja suficientemente forte, pelo menos em alguns casos, para determinar a maneira pela qual interesses concorrentes deveriam ser julgados, e, em instâncias de conflito, um interesse ter preferência sobre outro; e, além disso, pode a existência desse procedimento, como também sua racionalidade, ser estabelecido por métodos racionais de investigação?”6 Ou seja, o objetivo é verificar a possibilidade de constituição de um método baseado em princípios racionais que seja capaz de avaliar se decisões morais são válidas ou não. Para tanto, Rawls elabora um “procedimento razoável” ou “método razoável”. O que de fato é interessante neste artigo, sobretudo para compreendermos as formulações rawlsianas 3 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. ix. Em Teoria, ao fazer algumas considerações sobre a teoria moral (§9, p. 49), ou seja, considerações sobre como funciona nosso senso de justiça, Rawls segue o ponto de vista geral de “Outline of a Decision Procedure for Ethics”, como ele mesmo deixa claro em nota (Teoria, p. 663, n. 24). 5 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 20. 6 Collected Papers, p. 1. Todas as citações dessa obra são traduzidas por mim. 4 21 posteriores, é a aproximação entre o seu procedimento razoável e o método da lógica indutiva, o mesmo que estabelece os critérios para verificar a objetividade do conhecimento científico.7 Neste caso, Rawls quer elaborar um procedimento semelhante, baseado nos mesmos critérios, para verificar a objetividade das regras morais. O primeiro passo na elaboração desse procedimento razoável é a escolha da classe de juízes morais competentes. Um juiz moral competente deveria possuir quatro características: 1) ter um certo grau de inteligência que esteja dentro de um padrão de normalidade; 2) ter o conhecimento do funcionamento das coisas à sua volta e das conseqüências das ações de modo geral, bem como das peculiaridades dos fatos que irá julgar; 3) ser um homem razoável, sendo que isso significa a) basear-se em critérios da lógica indutiva para saber em que acreditar, b) mostrar interesse em considerar todos os lados das questões que lhe são apresentadas, c) considerar sempre a possibilidade de rever sua posição no caso da apresentação de evidências adicionais e d) estar atento para não ceder a inclinações pessoais; 4) ter um conhecimento complacente dos interesses humanos que levam à exigência de tomar decisões morais.8 Rawls também toma cuidado para deixar de lado aspetos ideológicos, ou seja, juízes morais competentes devem evitar que ideologias — que são monopólio do conhecimento e da verdade nas mãos de algum grupo, raça, instituição ou classe social — influenciem suas decisões. Colocados esses pressupostos, é importante destacar que Rawls, desde este artigo de 1951, está preocupado com o problema da circularidade, que depois terá que enfrentar e 7 Vale a pena lembrar uma importante frase de Rawls no início de Teoria: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento” (Teoria, §1, p. 3). 8 Cf. Collected Papers, p. 2. 22 que, portanto, é um aspecto relevante a ser considerado para entender o desenvolvimento de sua teoria da justiça: “A competência é determinada somente pela posse de certas características, algumas das quais podem ser ditas capacidades e realizações (inteligência e conhecimento), enquanto outras podem ser ditas virtudes (portanto, as virtudes intelectuais de racionalidade). Ficará claro em seções posteriores por que não podemos definir um juiz competente, pelo menos no começo de nossa investigação, como alguém que aceita certos princípios. A razão é que desejamos dizer de alguns princípios para decidir interesses que um fundamento para aceitá-los como princípios razoáveis é que juízes competentes parecem aplicá-los intuitivamente para decidir questões morais. Obviamente, se um juiz competente fosse definido como alguém que aplica esses princípios, esse raciocínio seria circular. Assim, um juiz competente não deve ser definido em termos do que diz ou por quais princípios usa.”9 Estabelecidas as condições necessárias para avaliar a classe dos juízes morais competentes, o próximo passo é estabelecer a classe dos julgamentos morais ponderados. Para tanto, certas características deverão ser cumpridas: 1) os juízes morais não podem ser punidos pelas decisões que tomam; 2) a integridade do juiz deve ser mantida e ele não pode obter ganhos com sua decisão (pois o medo e a parcialidade prejudicam decisões justas); 3) os casos apresentados devem ser tais que envolvam somente conflitos de interesse reais, excluindo casos hipotéticos. Isso garante que os casos sejam aqueles que costumam surgir na vida comum e sobre os quais as pessoas tiveram a capacidade de refletir; 4) o juiz deve ter acesso a todos os fatos sobre o caso, podendo ouvir todas as partes envolvidas; 5) o juiz deve ter certeza sobre sua decisão, não pode estar em dúvida sobre ela; 6) o julgamento deve ser estável, ou seja, em outras épocas juízes morais devem ter tomado as mesmas decisões para casos similares; 7) o juiz deve aplicar intuitivamente os princípios éticos, sendo que um julgamento intuitivo não significa impulsividade ou instintividade, mas uma reflexão sobre 9 Collected Papers, p. 4. 23 o caso e sobre os possíveis efeitos de decisões diferentes e até mesmo a aplicação do senso comum.10 Como podemos ver ao longo de todo o artigo, a intenção de Rawls é fazer com que se criem certas restrições que tornarão as decisões morais justas: formulação clara das decisões, semelhança entre decisões sobre questões semelhantes, resultados baseados em discussão clara e aberta dos fatores em jogo, e, sobretudo, necessidade de que se trabalhe passo a passo considerando a possibilidade de efetivação prática — sempre, é claro, com a intenção de comprovar a razoabilidade de princípios éticos do mesmo modo que se comprova a razoabilidade de critérios indutivos. O pressuposto aqui é que, se os homens têm a capacidade de distinguir o certo do errado através do método indutivo aplicado nas ciências, eles também terão esta mesma capacidade para distinguir o verdadeiro do falso em julgamentos morais. Além disso, um julgamento moral em um caso particular só poderá ter sua racionalidade verificada se estiver de acordo com um princípio justificável ou conjunto de princípios justificáveis. Embora Rawls esteja tratando aqui somente de julgamentos para ações morais, é clara a semelhança deste procedimento com a adoção dos princípios de justiça em Teoria. São oito os princípios de justiça propostos,11 todos eles procurando seguir as normas da lógica indutiva e especificando restrições. Por fim, Rawls conclui o artigo lembrando que o processo por ele descrito não pode ser encarado como um “modo de descobrir princípios éticos justificáveis”,12 pois não existem métodos precisos para realizar tal tarefa. Para ele, pressupor isso seria muita 10 Collected Papers, p. 5-6. Cf. Collected Papers, p. 14-15. 12 Cf. Collected Papers, p. 18. 11 24 ingenuidade. O que ele propõe, então, é que o processo seja utilizado de maneira inversa, ou seja, para justificar julgamentos feitos em determinados casos, e não como um método que estabeleça critérios para que se realize um julgamento justo. Assim, se alguém fosse justificar sua ação em determinado caso, deveria mostrar que ela pode ser explicada pelos princípios da justiça e ainda estar de acordo com o maior número possível de circunstâncias expostas por Rawls. Em outras palavras, o procedimento proposto no artigo deveria ter como objetivo principal ser uma medida para saber se determinadas decisões estariam dentro dos padrões necessários para serem consideradas morais. Como veremos mais adiante, esse aspecto do procedimentalismo rawlsiano é fundamental para compreendermos a intenção do autor ao elaborar seu contrato social e a teoria da justiça como eqüidade enquanto um procedimento hipotético que pode ser evocado a qualquer momento, por qualquer pessoa racional, para julgar o quanto uma sociedade está próxima ou afastada dos princípios de justiça. 1.1.2. O contratualismo rawlsiano Por que ter iniciado com essa exposição dos objetivos de Rawls em seu artigo de 1951? A razão disso ficará clara a partir do destaque de alguns tópicos dos artigos “Justice as Fairness” (1958), “Constitucional Liberty and the Concept of Justice” (1963), “The Sense of Justice” (1963) e “Distributive Justice” (1967): mostrar que, progressivamente, Rawls reformula sua concepção do que seria uma situação ideal — e, portanto, justa — de estabelecimento, primeiro, de juízos morais e, depois, de princípios de justiça. Como veremos, essas reformulações são feitas no sentido de aumentar cada vez mais as restrições impostas às partes que escolherão os princípios justos para regular o 25 funcionamento de uma sociedade. Com isso, Rawls chegará à elaboração de uma posição original totalmente abstrata, onde as partes estarão submetidas a um véu de ignorância limitador do seu conhecimento a respeito de todos os fatos particulares de suas vidas (que, num sentido kantiano, poderiam fazer com que elas tomassem decisões heterônomas). A originalidade dessa formulação teórica conferirá grande força à Teoria. Mais do que isso, apesar das modificações propostas em Liberalismo, a posição original será mantida na teoria liberal de Rawls como fase indispensável para o estabelecimento dos princípios de uma sociedade democrática justa e estável. Em “Justice as Fairness”, o objetivo geral de Rawls é mostrar que a idéia fundamental do conceito de justiça é a eqüidade, e que, portanto, o utilitarismo não daria conta desse aspecto, impasse que poderia ser solucionado recorrendo a uma teoria do contrato social. Nesse sentido, Rawls chama atenção para o fato de estar interessado, ao contrário do proposto em “Outline of a Decision Procedure for Ethics”, somente na justiça enquanto virtude de instituições sociais, ou o que ele chama de práticas,13 e não mais enquanto justiça de ações morais particulares. Nota-se, portanto, um primeiro deslocamento da teoria de Rawls no sentido de restringir o âmbito de aplicação de sua construção procedimentalista, ou seja, passando a considerar que o procedimentalismo, para ter sucesso, precisa ser aplicado a âmbitos limitados. Encontraremos essa restrição elaborada mais fortemente quando Rawls especificar que sua teoria da justiça tem como objetivo somente a estrutura básica da sociedade. 13 “Uso a palavra ‘prática’ [practice] em todos os lugares como uma espécie de termo técnico significando qualquer forma de atividade especificada por um sistema de regras que define cargos, funções, mudanças, penalidades, defesas e assim por diante, e que dá a estrutura para uma atividade. Como exemplos, pode-se pensar em jogos e rituais, julgamentos ou parlamentos, mercados e sistemas de propriedade.” (Collected Papers, p. 47), 26 Estabelecido isso, Rawls passa diretamente para a formulação dos dois princípios de justiça: “primeiro, cada pessoa que participa de uma prática ou é afetada por ela tem um direito igual à liberdade mais extensa compatível com uma igual liberdade para todos; e segundo, desigualdades são arbitrárias a menos que seja razoável esperar que elas funcionarão para a vantagem de todos e — dadas as posições e cargos que elas atribuem ou os cargos e posições que podem ser ganhos a partir delas — são abertos a todos.”14 Vemos, portanto, a primeira formulação dos clássicos princípios de justiça que serão a estrutura de Teoria, publicada três anos depois. Embora um pouco diferentes das posteriores formulações elaboradas por Rawls, os dois princípios sempre irão manter praticamente o mesmo conteúdo. O importante aqui, entretanto, não são tanto as particularidades dos dois princípios de justiça, mas constatar as condições que Rawls elabora para a escolha dos dois princípios. A primeira característica dessa primeira formulação de posição original é a de que seja imaginada “uma sociedade de pessoas entre as quais um certo sistema de práticas já esteja bem estabelecido”15 e que estas pessoas sejam mutuamente auto-interessadas quando participam de práticas comuns. Além de mostrar que Rawls já pressupõe algo que terá um papel fundamental na sua formulação posterior da teoria da justiça como eqüidade (o mútuo auto-interesse), essa primeira característica mostra que, diferentemente de Teoria, ainda não se trata de uma situação abstrata e hipotética. Aliás, é justamente o caráter histórico e fictício do contrato social que Rawls quer evitar neste artigo de 1958.16 14 Collected Papers, p. 48. Collected Papers, p. 52. 16 Cf. Collected Papers, p. 59. 15 27 Rawls — ainda claramente seguindo os parâmetros de “Outline of a Decision Procedure in Ethics” — estabelece que as pessoas dessa sociedade devem ser racionais, ou seja: “elas conhecem seus próprios interesses mais ou menos de modo preciso; elas são capazes de prever as conseqüências possíveis de adotar uma prática no lugar de outra, elas são capazes de aderir a um curso de ação, uma vez que tenham decidido por isso; elas podem resistir a tentações momentâneas e às seduções do ganho imediato; e o mero conhecimento ou percepção da diferença entre sua condição e aquelas dos outros não é, dentro de certos limites e em si, uma fonte de grande descontentamento.”17 Para garantir o convívio pacífico dessas pessoas racionais em sociedade, também é preciso pressupor que elas possuam interesses e necessidades similares ou complementares e que não haja grandes diferenças de poder e habilidades entre elas. Nesta primeira formulação da situação de escolha dos princípios da justiça, estes serão escolhidos quando as pessoas racionais discutirem sobre o funcionamento das instituições estabelecidas de sua sociedade, sendo que naturalmente do fato da cooperação e da necessidade de reciprocidade surgiriam restrições: “as restrições que assim surgiriam podem ser pensadas como aquelas que uma pessoa teria em mente se estivesse elaborando uma prática na qual seu inimigo devesse lhe atribuir o seu lugar.”18 A idéia de Rawls, ao elaborar essa situação de escolha dos princípios de justiça, é a de que, para se ter uma moralidade, é necessário o reconhecimento de princípios imparciais, que limitem ou refreiem os interesses particulares: “os princípios de justiça podem, então, ser vistos como os princípios que surgem quando os refreamentos de ter uma moralidade são impostos a partes nas circunstâncias típicas de justiça”.19 17 Collected Papers, p. 52. Collected Papers, p. 54. 19 Collected Papers, p. 55. 18 28 Devido às características dessa posição geral (general position) de escolha dos princípios de justiça, Rawls dá ênfase ao que ele chama de dever prima facie (prima facie duty)20 e ao jogo justo (fair play), ambos relacionados com a capacidade de reconhecer as outras pessoas também como portadoras de interesses e sentimentos similares, sobretudo quando engajadas em atividades conjuntas. Já em “Constitucional Liberty and the Concept of Justice”, de 1963, Rawls passa a deixar claro que seu interesse ao falar de justiça é considerá-la enquanto se aplica somente a instituições políticas, ou seja, sistemas de regras reconhecidas publicamente que definem cargos e posições, direitos e deveres, privilégios e penalidades, e que dão forma e estrutura para a atividade social. Não se trata mais, portanto, da justiça aplicada a pessoas particulares e suas ações. Percebe-se, neste artigo, uma separação mais clara ainda das duas esferas, sobretudo porque Rawls está interessado em discutir somente as liberdades constitucionais fundamentais e sua justificação. Neste artigo, Rawls ainda mantém as principais características da situação de escolha dos princípios de justiça apresentadas em “Justice as Fairness”: um procedimento no qual pessoas racionais (com as características de racionalidade já apresentadas), mutuamente auto-interessadas, escolhem os princípios que deverão coordenar um sistema de práticas já estabelecido. A diferença, entretanto, está nas condições que passam a ser formuladas para que as pessoas proponham seus princípios de justiça: é necessário que cada parte possa propor livremente seus princípios, mas levando em conta os princípios dos outros, sendo que todos devem estar cientes de que deverão seguir os princípios acordados. 20 “...se os participantes de uma prática aceitam suas regras como justas, e, portanto, não têm nenhuma queixa a apresentar contra ela, surge então um dever prima facie (e um correspondente direito prima facie) das partes em relação umas às outras de agir de acordo com a prática quando elas a adotam para ser cumprida” (Collected Papers, p. 60). 29 Nesse sentido, o primeiro princípio de justiça seria escolhido porque não haveria modo de se chegar a um acordo que permitisse que cada um ou alguns recebessem mais vantagens; todos escolhem, portanto, como princípio inicial, o princípio de igual liberdade. Já em favor da aceitação do segundo princípio, Rawls desenvolve uma argumentação mais complexa com o objetivo de mostrar que, se existem desigualdades sociais que funcionam como razão para promover maiores esforços dos cidadãos, essas desigualdades seriam aceitas, desde que as vantagens decorrentes dessa situação promovam o ganho de todos, e não somente de alguns. Aqui, Rawls recorre à possível situação hipotética na qual as pessoas desconheceriam suas habilidades e talentos. Seu objetivo é mostrar por que um sistema de casta não seria escolhido como princípio estruturador da sociedade, caso as pessoas estivessem escolhendo os princípios sem saber que lugar ocupariam posteriormente nessa sociedade. Se as pessoas desconhecessem seus talentos e habilidades mas, mesmo assim, por alguma razão, escolhessem o sistema de castas, a chance de pertencerem a uma casta mais alta seria bastante reduzida devido simplesmente ao fator numérico (poucos indivíduos nas castas mais privilegiadas e muitos nas castas inferiores); por outro lado, se elas conhecessem seus talentos e habilidades, escolhendo esse sistema de castas, também seria grande a chance de pertencerem a uma casta inferior e, portanto, de não serem capazes de utilizar essas habilidades para ascender socialmente. Em ambos os casos, as partes seriam levadas, como única alternativa, a escolher uma sociedade aberta (open society), de acordo com o segundo princípio de justiça. 30 Como vemos, a abstração de desconhecer talentos e habilidades é apresentada aqui somente como contra-argumento a um possível questionamento sobre a escolha do segundo princípio de justiça, e não como integrante do próprio processo de escolha.21 Já em 1963, no artigo “The Sense of Justice”, Rawls faz uma longa consideração sobre o que leva as pessoas a cooperarem socialmente e a seguirem os dois princípios de justiça escolhidos por elas mesmas. Para tanto, realiza uma contrução psicológica (psychological construction) procurando mostrar a importância dos sentimentos morais, dos laços de amizade, afeição e confiança mútua, e destacando a necessidade de que os cidadãos possuam a capacidade de ter um senso de justiça. É neste artigo que Rawls passa a formular pela primeira vez a posição original efetivamente como um procedimento de abstração submetido às restrições que ele defenderá até seus últimos textos: “Nesta posição assume-se que há uma ausência de informação; em particular, assume-se que as partes não conhecem sua posição social, nem conhecem seus talentos e habilidades peculiares — ou seja, seus dons inatos. Em suma, elas não sabem se foram bem sucedidas na loteria natural. (...) Assume-se que as partes na posição original sejam pessoas morais abstraídas de certos tipos de conhecimento sobre si e sua situação.”22 Em 1967, no artigo “Distributive Justice”, no qual Rawls desenvolve algumas implicações do artigo “Justice as Fairness”, a expressão véu de ignorância é adotada pela primeira vez como parte essencial da construção hipotética da posição original e com o objetivo de se aproximar da formulação kantiana do imperativo categórico: 21 Segundo Rawls, “no caso das características básicas do sistema social em que cada um inicia (a constituição e os principais sistemas econômicos e sociais), os dois princípios devem ser satisfeitos. Na ausência de decisões reais de pessoas racionais sob condições de igual liberdade, deve-se se guiar por aqueles princípios que se pode mostrar que pessoas racionais, quando submetidas às restrições da moralidade, reconheceriam. Os princípios de arranjos hipotéticos com os quais as pessoas poderiam concordar sob condições de riscos reais são irrelevantes” (Collected Papers, p. 85, grifo meu). 22 Collected Papers, p. 113. 31 “O véu de ignorância impede qualquer um de ter vantagem ou desvantagem devido às contingências da classe social e da fortuna; e, portanto, os problemas de barganha que surgem na vida diária devido à posse desse conhecimento não afetam a escolha dos princípios. Pois a doutrina do contrato, a teoria da justiça e, sem dúvida, a própria ética são parte da teoria geral de escolha racional, um fato perfeitamente claro na sua formulação kantiana.”23 1.1.3. O utilitarismo Antes de passar para uma exposição do conteúdo de Teoria que possa tornar inteligível o motivo pelo qual Rawls, alguns anos após a publicação da obra, afirma haver inconsistências relativas à estabilidade na Terceira Parte, gostaria — ainda como introdução, mas também já adiantando aspectos importantes da obra — de fazer algumas considerações sobre o utilitarismo. Rawls não avalia em detalhes nem a evolução da teoria utilitarista nem seus principais autores, somente toma como objeto de crítica a idéia utilitarista geral de que uma sociedade bem-ordenada seria aquela cujas instituições funcionam de modo a atingir o maior saldo líquido de satisfação resultante da soma das participações individuais de todos os seus membros.24 É importante ficar claro a razão pela qual Rawls toma o utilitarismo como objeto de crítica: para ele, obviamente não é o caso que a teoria utilitarista é dominante no mundo anglo-saxão porque a maioria das pessoas aderiu a ela simplesmente, mas pelo fato de que todas as tentativas teóricas de explicação 23 Collected Papers, p. 132. Em nota (Teoria, p. 25, nota 9, remetendo à página 659), Rawls cita os principais autores e obras utilitaristas clássicos em oposição aos quais ele está escrevendo. São eles: Henry Sidgwick, com The Method of Ethics (7ª ed. Londres, 1907), Principles of Political Economy (Londres, 1883) e Outline of the History of Ethics (5ª ed. Londres, 1902); A. C. Pigou, The Economics of Welfare (Londres, Macmillan, 1920); Shaftsbury, com An Inquiry Concerning Virtue and Merit (1711); Hutcheson, com An Inquiry Concerning Moral Good and Evil (1725); Hume, com A Treatise of Human Nature (1739), e An Inquiry Concerning the Principles of Morals (1751); Adam Smith, com A Theory of the Moral Sentiments (1759); Bentham, com The Principles of Morals and Legislation (1789); J. S. Mill, com Utilitarianism (1863); Edgeworth, com Mathematical Psychics (1888). Além dos autores clássicos, Rawls também cita, nessa mesma nota já mencionada, comentadores contemporâneos da tradição utilitarista. 24 32 da moralidade caíram em alguma espécie de utilitarismo. Essas tentativas certamente receberam muitas críticas, mas nenhuma consistente o suficiente para enfraquecer seus argumentos principais. Como exemplo recente não de teoria explicativa da moralidade, mas de adoção de critérios com justificação utilitarista, temos, após os ataques de 11 de setembro de 2001, várias tentativas da parte do governo americano de restringir as liberdades básicas dos cidadãos em nome do “benefício de toda a sociedade”. Como continuaremos a ver, Rawls é um contratualista e quer, com isso, deixar claro que sua posição é contrária a qualquer tipo de teoria teleológica ou intuicionista. Se isso ficou claro em Teoria, as mudanças realizadas posteriormente em Liberalismo abriram espaço para críticas que afirmam que Rawls acabou por enfraquecer, como um todo, sua argumentação contra o utilitarismo, que seria mais consistente na obra de 1971 — mesmo que Rawls sempre tenha se mantido na posição contrária ao utilitarismo, no campo da teoria contratualista deontológica.25 Entretanto, é preciso notar que a intenção principal de Rawls em Teoria é elaborar uma teoria que dê conta da distribuição desigual das vantagens da cooperação social — desde direitos e liberdades, até ocupação de cargos e posições e, principalmente, rendas e riquezas. Nesse sentido, o embate de uma teoria deontológica contra outra teleológica (utilitarismo defendendo a utilidade como critério de escolha) é evidente. Isso não ocorre com a mesma intensidade nas discussões levantadas em Liberalismo, obra na qual o filósofo dá como pressuposta a escolha dos princípios de justiça (e, portanto, como 25 “... o utilitarismo é uma teoria teleológica ao passo que a justiça como eqüidade não o é. Por definição, portanto, a segunda é uma teoria deontológica, que ou não especifica o bem independentemente do justo, ou não interpreta o justo como maximizador do bem. (Deve-se notar que as teorias deontológicas se definem como não teleológicas, e como entendimentos que não caracterizam a justeza de instituições e atos independentemente de suas conseqüências. Todas as doutrinas éticas merecedoras de nossa atenção levam em consideração as conseqüências no julgamento da justeza. Aquela que não o fizesse seria simplesmente irracional, inservível). A justiça como eqüidade é uma teoria deontológica no segundo sentido.” (Teoria, §6, p. 32,). 33 pressuposta toda a justificativa anti-utilitarista já exposta em Teoria). Nesta obra, Rawls está interessado na questão da tolerância e com o fato do pluralismo razoável de concepções morais, religiosas e filosóficas de uma democracia constitucional, ou seja, o centro do debate passa a ser a questão consenso político e não mais — ou pelo menos não com a mesma ênfase — a questão da justiça distributiva. Já em 1955, no artigo “Two Concepts of Rules”, Rawls deixa clara sua relação com a teoria utilitarista. Nas décadas anteriores ao início do esboço das principais idéias apresentadas de forma sistemática em Teoria, o utilitarismo tinha grande influência dentro e fora do meio acadêmico. Mas ainda existia uma resistência daqueles que defendiam que os direitos individuais não poderiam ser relegados a segundo plano em troca de se atingir a maximização dos benefícios sociais (o que, segundo Rawls, acaba por ser a conseqüência inevitável de todas as teorias utilitaristas). Entretanto, essa resistência era desarticulada e não apresentava argumentos filosoficamente consistentes. Além disso, os defensores dos direitos individuais também não encontravam possibilidade de diálogo com outro importante grupo, o dos marxistas, que, de forma geral, tinham a tendência — o que provavelmente tenha sido um dos maiores equívocos desse movimento — de vincular até mesmo os direitos fundamentais do homem (em oposição ao que Marx chama de “direitos do cidadão”) com a luta pelo “interesse de classe da burguesia”. Mas, a partir da década de 1950, o pensamento político na academia muda, segundo Amy Gutmann, em três sentidos: “primeiro, a maioria dos defensores dos direitos aproveita parte da crítica marxista e defende não apenas a tradicional lista de liberdades civis e políticas, mas também uma distribuição mais igual de renda, riqueza, educação, oportunidade de trabalho, assistência médica, e 34 outros bens essenciais para garantir o bem-estar e a dignidade dos desprovidos. Segundo, muitos filósofos políticos proeminentes passam a ser teóricos dos direitos. O utilitarismo está em toda a parte na defensiva. Terceiro, a grande teoria política está novamente viva na academia.”26 Para esse comentador, a obra de Rawls, além de fazer parte dessa mudança, é uma de suas principais inspiradoras. A intenção de Rawls, de acordo com a interpretação de Michel Meyer, é a de corrigir as falhas do marxismo e do utilitarismo, que tentaram sem sucesso elaborar critérios de justiça sócio-econômica:27 “Ele [Rawls] se insere entre o marxismo que fala negativamente da justiça, dizendo o que ela não é o que deveria ser, sem nos dizer, por outro lado, como ela poderia ser o que deveria ser, e o utilitarismo, que, embora mais concreto na sua aproximação de um optimum de bem-estar coletivo, trata a justiça sem se preocupar muito com as falhas nem mesmo com a igualdade que não seja apenas formal”.28 Como já destacamos, o primeiro princípio da justiça dá prioridade para assegurar liberdades básicas, mas não estabelece liberdades capitalistas de mercado, como o direito a ter bens de produção, a se apropriar do trabalho alheio etc. Já o segundo, dividido em duas partes, defende que as desigualdades sociais e econômicas só são justificáveis se maximizarem os benefícios dos menos privilegiados e se houver igualdade justa de oportunidade para todos, que é uma exigência maior do que simplesmente a de “carreiras abertas a talentos”, defendida pelo liberalismo clássico; ou seja, para que ela seja cumprida é preciso limitar de alguma forma as desigualdades econômicas e promover esquemas compensatórios, como, por exemplo, na educação. 26 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 16. Para uma tentativa de aproximação entre Rawls e Marx no contexto de uma teoria normativa contra uma teoria meta-ética, ver Haarscher, Guy. “Rawls, Marx et la question de la justice” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 104-28. 28 Meyer, Michel. “Rawls, les fondements de la justice distributive et l’égalité” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 55. 27 35 Mas, evidentemente, a teoria de Rawls não é prontamente aceita, e surgem objeções e críticas de vários grupos: socialistas e liberais radicais, libertários, socialistas democráticos, comunitaristas. Além de conseguir dar uma nova perspectiva à teoria liberal, Rawls também tem o mérito igualmente importante — ao propor sua teoria como contraposta ao utilitarismo — de dar preferência aos direitos, colocando a utilidade em uma posição secundária, o que fica evidenciado pelos dois princípios da justiça e suas implicações. Resumidamente, a posição de Rawls contra o utilitarismo, expressa em detalhes em Teoria, é a de que o individualismo no sentido dos diretos garantidos pela justiça a todo cidadão não pode ser violado de forma alguma em troca de interesses políticos, econômicos, sociais ou de qualquer outra espécie. Com isso, Rawls quer resgatar os valores liberais fundamentais, desenvolvendo uma teoria da justiça que ele considera implícita na concepção dos direitos naturais representada pela tradição contratualista: “minha intenção foi formular uma concepção de justiça que fornecesse uma alternativa razoavelmente sistemática ao utilitarismo, que, de uma forma ou de outra, dominou por um longo tempo a tradição anglo-saxã do pensamento político. A razão principal para buscar essa alternativa é, no meu modo de pensar, a fragilidade da doutrina utilitarista como fundamento das instituições da democracia constitucional. Em particular, não acredito que o utilitarismo possa explicar as liberdades e direitos básicos dos cidadãos como pessoas livres e iguais, uma exigência de importância absolutamente primordial para uma consideração das instituições democráticas.”29 O utilitarismo teve tanta influência sobre a teoria moral, segundo Rawls, por ser uma teoria elaborada por grandes pensadores tais como Hume, Adam Smith, Bentham e Mill. Rawls tenta dar uma natureza kantiana à teoria da justiça, generalizando e elevando a uma 29 Teoria, Prefácio à edição brasileira, p. XIV. 36 ordem mais alta de abstração a teoria contratualista. Fazendo isso, ele espera fornecer uma alternativa à teoria utilitarista dominante na tradição.30 Mas não seria razoável fazer uma comparação dos princípios de justiça para as sociedades com as escolhas individuais que fazemos, ou seja, considerar a maximização do bem-estar como objetivo tanto pessoal quanto social? Adotando esse raciocínio e seguindo a teoria utilitarista, chegaríamos à situação de uma sociedade bem-ordenada quando fosse atingida a maximização do saldo líquido de satisfações individuais. Por que, então, não defender princípios de justiça que adotam o bem-estar — no sentido de satisfação racional dos desejos — como princípio superior ao justo, já que se trata de pensar a sociedade como um conjunto voltado para a realização teleológica de fins? Princípios teleológicos utilitaristas desse tipo poderiam, segundo Rawls, ser adotados se não houvesse importantes objeções contra eles. A mais importante delas é a que de as visões utilitaristas não levam em consideração — a não ser indiretamente — a maneira pela qual as distribuições são feitas entre os indivíduos, já que o objetivo é seguir critérios que garantam a máxima satisfação geral. Um problema, portanto, é instaurado: “Assim em princípio não há razão para que os benefícios maiores de alguns não devam compensar as perdas menores de outros; ou, mais importante, para que a violação da liberdade de alguns não possa ser justificada por um bem maior partilhado por muitos. Simplesmente acontece que em muitíssimas situações, pelo menos num estágio razoavelmente avançado da civilização, a maior soma de vantagens não é obtida desse modo. Não há dúvida de que o rigor dos preceitos de justiça ditados pelo senso comum têm uma certa utilidade na limitação das tendências humanas para a injustiça e para as ações socialmente ofensivas; mas o utilitarista acredita que seja um erro afirmar esse rigor como um princípio básico de costumes morais.”31 30 31 Cf. Teoria, Prefácio, p. XXII. Teoria, p. 28. 37 Rawls, elaborando uma teoria deontológica, certamente não aceita essas conseqüências do utilitarismo. Para ele, são necessários critérios fixos, baseados na justiça, que regulem a distribuição das vantagens da cooperação social de modo que seja levada a sério a diferença entre as pessoas. Em última instância, o que Rawls quer enfatizar ao destacar as diferenças entre a justiça como eqüidade e o utilitarismo é a própria diferença entre as concepções fundamentais de sociedade pressupostas por essa duas teorias: na primeira, a sociedade é um sistema de cooperação regulado por princípios escolhidos numa posição inicial eqüitativa, na qual a prioridade do justo sobre o bem é a característica reguladora central; na segunda, trata-se de uma sociedade como modo eficiente de maximizar a satisfação dos desejos. Ambas são concepções sobre a distribuição dos benefícios da cooperação social, mas são visões radicalmente distintas. 1.2. A teoria da justiça como eqüidade Cabe agora retomar os pontos principais de Teoria. Farei isso tentando apresentar concisamente as principais idéias da obra, completando, assim, o que já foi apresentado sobre os artigos anteriores a 1971, com o objetivo de deixar claro por que Rawls precisa dar uma “fundamentação mais sólida”32 à teoria da justiça na Terceira Parte da obra e, conseqüentemente, também procurando mostrar por que posteriormente ele irá achar que essa fundamentação não será suficiente para garantir a estabilidade de uma sociedade bemordenada. 32 Cf.: Teoria, p. 437. 38 Assim, destaco os seguintes pontos: a importância da justiça para a cooperação social; a concepção de justiça como devendo ser aplicada à estrutura básica da sociedade; características mais específicas da posição original onde são escolhidos os princípios de justiça; e, por fim, considerações sobre a racionalidade, teorias do bem, senso de justiça e equilíbrio da teoria da justiça, estas últimas já como pressupostos para compreender as mudanças realizadas em Liberalismo. 1.2.1. O papel da justiça Como já vimos, a preocupação central de Rawls, sobretudo por oposição ao utilitarismo, é o papel da justiça em uma teoria sobre o funcionamento de uma democracia constitucional. A intenção é buscar princípios que ordenem de maneira justa a distribuição das vantagens da cooperação social. Evidentemente — e Rawls deixa isso bem claro — deve-se buscar princípios reguladores porque é um fato normal que qualquer sociedade é, primeiro, uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que aceitam, e em geral cumprem, determinadas regras que organizam suas condutas. E, segundo, uma sociedade é marcada por um conflito e uma identidade de interesses: “Há uma identidade de interesses porque a cooperação social possibilita que todos tenham uma vida melhor da que teria qualquer um dos membros se cada um dependesse de seus próprios esforços. Há um conflito de interesses porque as pessoas não são indiferentes no que se refere a como os benefícios maiores produzidos pela colaboração mútua são distribuídos, pois para perseguir seus fins cada um prefere uma participação maior a uma menor.”33 33 Teoria, p. 4-5. 39 Vemos, portanto, mais uma vez, que a preocupação de Rawls é com a questão da distribuição dos benefícios e encargos da cooperação social. Como o problema da distribuição pode ser resolvido? Como as pessoas que participam da cooperação social podem chegar a um acordo sobre a questão da distribuição das vantagens dessa cooperação? Como já sabemos, Rawls propõe uma situação abstrata de contrato social na qual as pessoas, livres, iguais e racionais, escolheriam os princípios que regulariam a distribuição em sua sociedade. Aqui, Rawls deixa claro que a posição original não é nem uma situação histórica real, nem uma condição primitiva da cultura. Trata-se simplesmente de uma situação hipotética de contrato social (mais abstrata do que as doutrinas contratualistas tradicionais) que tem por função levar à escolha de princípios de justiça quando as partes são privadas de qualquer conhecimento sobre seu lugar na sociedade, a posição de sua classe social, sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, inteligência, força e todas as demais características que poderiam resultar em qualquer diferenciação entre os cidadãos, seja pelas contingências sociais, seja pelo acaso da distribuição de dotes, ou seja, aspectos que são arbitrários do ponto de vista moral. São essas as restrições do véu de ignorância. O que ocorre, portanto, é que as partes contratantes devem escolher entre alternativas possíveis de acordo com uma conduta que seja o resultado de preferências e obstáculos, semelhante ao que ocorre em uma situação de equilíbrio entre mercados competitivos, no qual os indivíduos fazem concessões uns aos outros de modo a atingir a melhor situação. Essas alternativas possíveis são encontradas em uma lista de concepções tradicionais de justiça, historicamente relevantes. Como já foi mostrado, na situação de escolha dos princípios, Rawls está mais preocupado com o segundo princípio de justiça. O primeiro princípio, o da maior liberdade 40 igual, é tido como uma escolha natural à qual as partes chegariam quando submetidas às restrições da posição original. As alternativas apresentadas ao segundo princípio, o princípio da diferença, são as seguintes: variações do princípio da utilidade média,34 concepções teleológicas clássicas (utilidade ou perfeição), concepções intuicionistas e concepções egoísticas.35 É importante notar que, ao mencionar as circunstâncias de justiça,36 Rawls coloca a condição de escassez moderada (ou seja, os bens materiais de uma sociedade não são ilimitados) como circunstância objetiva, e o conflito de interesses a respeito da distribuição dos benefícios sociais como circunstância subjetiva. Ambos seriam fatos naturais que não podem ser contornados (devem, inclusive, ser conhecidos na posição original). Vemos, assim, que a discordância entre os indivíduos que procura ser solucionada não é a que diz respeito a diferentes concepções do bem, mas a que diz respeito à questão distributiva. Embora reconheça como natural que os cidadãos possuam concepções do bem, Rawls parece deixar de lado a questão como algo que simplesmente deve ser evitado de modo a não atrapalhar o consenso na escolha dos princípios de justiça: “Deve-se notar que eu não faço nenhuma suposição restritiva a respeito das concepções que as partes têm do bem, exceto que elas são planos racionais a longo prazo. Embora esses planos determinem os objetivos e interesses de uma determinada pessoa, os objetivos e interesses presumivelmente não são egoísticos ou interesseiros. Decidir se esse é ou não o caso depende dos tipos de objetivos perseguidos por alguém. Se a riqueza, a posição, a influência, bem como as honras do prestígio social, são os propósitos finais de uma pessoa, então com certeza a sua concepção do bem é egoística. Seus interesses dominantes estão centrados em si mesmo, e não são simplesmente, como devem sempre ser, os interesses de um eu. Não há inconsistência, portanto, em supormos 34 Para uma explicação detalhada de por que, na posição original, os princípios de justiça são escolhidos de acordo com o critério maximin, ao invés de serem escolhidos a igualdade estrita ou o princípio da utilidade média, ver o artigo “Some reasons for the maximin criterion” (Collected Papers, p. 225-31). 35 Cf.: Teoria, §21, p. 133-4. 36 Cf.: Teoria, §22, p. 136. 41 que, removido o véu de ignorância, as partes descobrem que têm vínculos de sentimento e afeição, e desejam promover os interesses dos outros e ver os seus objetivos atingidos. Mas o postulado da indiferença mútua na posição original visa a assegurar que os princípios da justiça não dependem de suposições muito exigentes. Lembremo-nos de que a posição original tem por objetivo incorporar condições amplamente partilhadas e, também, pouco pretensiosas. Uma concepção da justiça não deve pressupor, então, laços abrangentes de sentimento natural. Na base da teoria, tentamos presumir o mínimo possível.”37 Para Rawls, é preciso que a posição original incorpore o que ele chama de “restrições formais do conceito de justo”:38 são restrições que devem se aplicar a qualquer situação de escolha de princípios — como, por exemplo, princípios éticos — e não somente à escolha dos princípios de justiça no caso da posição original. As restrições devem ser de cinco tipos: 1) os princípios devem ser gerais em sua formulação; 2) os princípios devem ser gerais em sua aplicação; 3) os princípios devem ser públicos (a publicidade é uma característica fundamental de uma teoria contratualista e está de acordo com a noção kantiana de lei moral39); 4) uma concepção de justo deve impor às reivindicações conflitantes uma ordenação; 5) os princípios têm caráter terminativo, ou seja, devem ser a última instância de apelação do raciocínio prático. A idéia de véu de ignorância, portanto, é ser uma situação que garanta a aplicação dessas restrições formais do conceito de justo, fazendo com que as partes ignorem uma lista de fatos particulares: “Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços característicos de sua psicologia, como por exemplo, a sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. Mais 37 Teoria, §22 p. 139-40. Cf.: Teoria, §23, p. 140. 39 Cf.: Teoria, p. 667, n. 8. 38 42 ainda, admito que as partes não conhecem as circunstâncias particulares de sua própria sociedade. Ou seja, não conhecem a posição econômica e política dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. As pessoas na posição original não têm informação sobre a qual geração pertencem.” (...) “Na medida do possível, o único fato particular que as partes conhecem é que a sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça e a qualquer conseqüência que possa decorrer disso. Entretanto, considerase como um dado que elas conhecem os fatos genéricos sobre a sociedade humana. Elas entendem as relações políticas e os princípios da teoria econômica; conhecem a base da organização social e as leis que regem a psicologia humana. De fato, presume-se que as partes conhecem quaisquer fatos genéricos que afetem a escolha dos princípios de justiça.”40 Para Rawls, a importância das restrições impostas às informações particulares na posição original é tal que, sem elas, a própria idéia de teoria da justiça estaria inviabilizada. Não seria possível solucionar o problema da negociação na posição original. Se as partes contratantes não estivessem situadas de forma eqüitativa e não fossem tratadas de forma igual como pessoas éticas, inevitavelmente contingências arbitrárias, naturais do mundo, influenciariam na escolha dos princípios.41 É preciso assinalar que Rawls já concebe as pessoas na posição original como sendo racionais, mas não conhecendo sua própria concepção de bem. Assim, elas serão levadas a tomar a decisão a favor dos dois princípios simplesmente porque possuem uma explicação do que são os bens primários: essas pessoas preferem sempre ter uma quantidade maior a uma menor desses bens. Além de racionais, é preciso pressupor também que as partes possuem um senso de justiça, o que significa dizer que há uma confiança mútua entre elas de que todas agirão conforme os princípios escolhidos. Central para a compreensão de como funciona a 40 Teoria, § 24, p. 147-148. Para especificações mais detalhadas sobre as restrições e características da posição original, tais como a ausência de inveja, egoísmo e conhecimento de fatos genéricos, ver Teoria, §§ 23, 24 e 25. 41 43 estabilidade de uma sociedade bem-ordenada pelos princípios de justiça, os desdobramentos da idéia de senso de justiça serão analisados logo adiante. 1.2.2. A estrutura básica da sociedade Embora a idéia de uma teoria da justiça para a estrutura básica da sociedade — devido à insistência do próprio Rawls — tenha passado a ser melhor compreendida, inicialmente ela foi alvo de críticas e incompreensões. Não foram poucos os críticos que quiseram ver nos princípios de justiça uma concepção que poderia ser aplicada aos casos de justiça em geral. Aqui, trata-se apenas da justiça social. Os princípios de justiça não se aplicam a organizações como igrejas, universidades e nem mesmo às relações internas dentro da família:42 “Para nós o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes quero dizer a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais. Assim, a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade particular no âmbito dos meios de produção e a família monogâmica 42 Sobre isso, Rawls, na nota 48 do §50 de Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, comenta uma crítica de Sandel: “Michael Sandel, em Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge: Cambridge University Press, 1982), p. 33, considera a situação em que a família harmoniosa se vê abalada por dissensões. Os afetos e a franqueza dos tempos passados dão lugar a demandas de eqüidade e direitos. Ele imagina os bons sentimentos passados sendo substituídos por uma integridade e judiciosidade inquestionáveis, para que jamais prevaleça a injustiça. “Pais e filhos refletem de forma ponderada, submetem-se zelosa embora carrancudamente aos dois princípios de justiça, até onde conseguem instalar as condições de estabilidade e congruência para que o bem da justiça se realize em seu lar”. Um dos erros aqui é que ele supõe que os dois princípios valem de forma geral para todas as associações, quando na verdade eles só valem para a estrutura básica. Outro erro é que aparentemente, a seu ver, a justiça como eqüidade diz que o estabelecimento da justiça plena restauraria o caráter moral da família. Isto a justiça como eqüidade não diz. Existem, de fato, algumas concepções de justiça consideradas apropriadas para a família, bem como para outras associações e casos de justiça local. Tais concepções — geralmente uma para cada tipo de associação — são necessárias, embora de forma alguma suficientes, para restaurar o caráter moral da família. Não se deve atribuir à função fundamental da justiça básica mais do que ela é.” (Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, p. 234.) 44 constituem exemplos das instituições sociais mais importantes. Tomadas em conjunto como um único esquema, as instituições sociais mais importantes definem os direitos e deveres dos homens e influenciam seus projetos de vida, o que eles podem esperar vir a ser e o bem-estar econômico que podem almejar. A estrutura básica é o objeto primário da justiça porque seus efeitos são profundos e estão presentes desde o começo.”43 Ou seja, a estrutura básica da sociedade é constituída por suas principais instituições políticas, econômicas e sociais, e sua importância está no modo pelo qual essas instituições distribuem direitos e deveres, oportunidades e riquezas. Assim, Rawls não pretende adotar uma teoria completa do contrato social, que escolhe um sistema ético mais ou menos completo de princípios sobre todas as virtudes. O foco da teoria da justiça como eqüidade é somente a questão da justiça social e a maneira pela qual ela pode ser garantida em uma sociedade bem-ordenada. Ora, em uma sociedade complexa como as atuais democracias constitucionais, é impossível pensar a distribuição dos bens e serviços sociais sem pensar numa estrutura institucional básica que promova esses elementos da cooperação social. Devido a esse papel fundamental, a influência dessas instituições perpassa toda a sociedade, tem repercussões nas mais variadas áreas sociais. Mas não somente isso: a existência de uma estrutura básica é fundamental para garantir uma sociedade justa ao longo do tempo, ou o que Rawls chama de “condições de fundo justas”,44 pois é altamente provável que, mesmo estabelecendo uma situação inicial justa, as condições, ao longo do tempo, se deteriorem, comprometendo a situação de justiça. Portanto, mais do que uma simples característica da teoria da justiça como eqüidade que tem por objetivo definir a justiça para um âmbito limitado de instituições, a restrição à 43 44 Teoria, p. 7-8. Liberalismo, Parte III, VII, §4, p. 318. 45 estrutura básica mostra os fundamentos da justificativa rawlsiana para não cair num libertarianismo do tipo que, por exemplo, é defendido por Robert Nozick45. É necessário algum tipo de intervenção e os motivos são esclarecidos em Liberalismo: “...as condições necessárias para a justiça básica podem ser solapadas, mesmo que ninguém aja de forma injusta ou tenha consciência de como o resultado global de muitas trocas distintas afeta as oportunidades dos outros. Não há regras viáveis que se possa exigir que os agentes econômicos obedeçam em suas transações cotidianas visando a evitar essas conseqüências indesejáveis. Tais conseqüências se manifestam num futuro tão remoto, ou são tão indiretas, que a tentativa de prevê-las como normas restritivas que se apliquem aos indivíduos representaria uma carga excessiva, se não impossível.”46 Percebe-se, assim, em que sentido e em que dimensão podemos compreender a “defesa intervencionista” de Rawls. Sua visão pressupõe que somente instituições da estrutura básica da sociedade podem controlar os acordos entre os cidadãos, pois não há como definir se eles são justos ou eqüitativos antecipadamente. O objetivo aqui é favorecer uma mistura de supervisão e liberdade entre os indivíduos e associações, ou seja, deixá-los livres para buscar seus fins dentro da estrutura social, mas ao mesmo tempo dando a certeza de que sempre estarão sendo tomadas medidas necessárias para corrigir a justiça básica. Ora, uma conseqüência inevitável de uma estrutura como essa é que os cidadãos sejam afetados em relação ao que são e ao que querem ser, que seus planos de vida sejam inevitavelmente moldados pelas opções que lhes são oferecidas e pelas normas que precisam respeitar. Na verdade, como sabemos, qualquer estrutura social — justa ou injusta — tem um papel determinante na forma de produzir e reproduzir a concepção das pessoas sobre a sociedade e sobre si próprias. O que Rawls está propondo é que isso seja feito de 45 Nozick, Robert. Anarchy, State and Utopia. New York: Basic Books, 1974. Edição brasileira: Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. 46 Liberalismo, Parte III, VII, §4, p. 318-9. 46 modo a garantir uma situação de justiça que esteja de acordo com os princípios escolhidos pelos cidadãos como os mais justos. Por fim, para que o funcionamento social seja adequado, é um pressuposto necessário que cada cidadão conheça as instituições básicas de sua sociedade, para que saiba o que elas exigem e o que podem exigir delas; também deve ter certeza que os outros cidadãos também possuem esse mesmo conhecimento. Como Rawls sempre irá enfatizar, o critério de publicidade é essencial para o funcionamento de uma sociedade bem-ordenada.47 1.2.3. Os princípios de justiça Dadas as condições da posição original, quais seriam os princípios de justiça escolhidos pelas partes contratantes? Passo diretamente para a formulação final dos princípios apresentada em Teoria:48 “Primeiro Princípio Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos. Segundo Princípio As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades.”49 47 Para mais detalhes sobre as instituições da estrutura básica da sociedade, casos de justiça, compatibilidade entre justiça formal (aquela garantida pelo estado de direito) e justiça substancial (justiça de fato cumprida, não só garantida formalmente), ver Teoria, §10 — “As instituições e a justiça formal”, p. 57. 48 Teoria, §46, p. 333. 49 A primeira formulação é feita no §11, p. 64 e a segunda, no §13, p. 88. 47 Algumas especificações a respeito desses princípios precisam ser destacadas. A primeira delas é que é necessário compreender a estrutura social como possuindo dois aspectos: um que define e assegura as liberdades básicas iguais,50 e o outro que especifica e estabelece as desigualdades econômicas e sociais. Cada princípio, portanto, será aplicado a um aspecto social. Uma segunda importante especificação é a de que os dois princípios devem ser entendidos e aplicados em ordem serial:51 o primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo e, dentro do segundo, a segunda parte tem prioridade sobre a primeira (considerando, evidentemente, a ordenação apresentada em Teoria). Isso significa que o primeiro princípio, o da igual liberdade para todos, tem prioridade sobre o princípio que regula as desigualdades sociais e econômicas, ou seja, a estrutura básica deve regular as desigualdades de distribuição de riqueza e autoridade de modo consistente com as liberdades exigidas pelo primeiro princípio. O objetivo principal de Rawls ao estabelecer a ordem serial é fazer com que não seja possível trocar certas liberdades fundamentais, por exemplo, por ganhos econômicos e/ou sociais. Poderíamos pensar no caso de um governo ditatorial que eleva as condições de vida da população, embora não permita eleições ou impeça a liberdade de imprensa. De acordo com os dois princípios da justiça, isso não seria permitido. Um terceiro esclarecimento sobre os dois princípios de justiça diz respeito aos seus quatro estágios de aplicação, inspirados, como o próprio Rawls afirma, pela constituição e pela história dos Estados Unidos da América. Os quatro estágios são: 50 Para Rawls, as liberdades básicas mais importantes são: “a liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a agressão física (integridade da pessoa); o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito.” (Teoria, §11 p. 65). 51 Para mais detalhes, Teoria, §8, p. 46, incluindo a nota 23 que remete à p. 662. 48 1) estágio da posição original, com todas as características já apresentadas. 2) estágio da convenção constitucional, logo após a escolha dos princípios de justiça.52 Nesse estágio, algumas restrições do véu de ignorância são retiradas: as partes passam a conhecer os princípios da teoria social e os fatos genéricos relevantes sobre a sociedade onde vivem (recursos naturais, situação econômica, social, política, cultura, etc), embora continuem sem conhecer sua posição como indivíduos específicos (posição social, riqueza, concepção do bem). O objetivo é elaborar a constituição justa mais eficaz de acordo com os princípios da justiça, levando em conta os aspectos sociais. 3) estágio legislativo, onde todo o conjunto de fatos econômicos e sociais de caráter geral entra em jogo com o objetivo de fazer com que as políticas econômicas e sociais maximizem as expectativas de oportunidades a longo prazo das camadas menos favorecidas (evidentemente, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades e de acordo com a garantia das liberdades iguais). 4) estágio da aplicação das regras a casos particulares por juízes e administradores e da observância dessas regras gerais pelos cidadãos. Evidentemente, neste estágio há um conhecimento completo de todos os fatos. Os quatro estágios são uma espécie de continuação da situação hipotética da posição original, com o objetivo de pensar a aplicação dos princípios de justiça. Não se trata, 52 Rawls esclarece: “É importante distinguir a seqüência de quatro estágios e sua concepção de uma convenção constituinte, separando-a da visão da escolha constituinte encontrada na teoria social e exemplificada por J. M. Buchanan e Gordon Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor, University of Michigan Press, 1963). A idéia da seqüência de quatro estágios é parte de uma teoria moral e não serve como uma explicação do funcionamento de constituições concretas, exceto na medida em que organismos políticos são influenciados pela concepção da justiça em questão. Na doutrina contratualista, os princípios da justiça já foram acordados, e a nossa dificuldade consiste em formular um esquema que nos ajude na sua aplicação. O objetivo é o de caracterizar uma constituição justa e não o de verificar que tipo de constituição seria adotado ou consentido, com base em presunções mais ou menos realistas (embora simplificadas) a respeito da vida política, e muito menos com base em presunções individualistas típicas da teoria econômica” (Teoria, p. 674, n. 2). 49 portanto, de uma explicação de como funcionam na prática instituições constituintes, legislativas ou judiciais. 1.2.4. A questão da liberdade Embora o segundo princípio — o princípio da diferença — seja o mais controverso, envolvendo discussões sobre justiça entre gerações, poupança justa, critérios para definir os menos favorecidos etc.,53 o primeiro princípio também provoca objeções que são importantes para esclarecer mais detalhadamente o que Rawls entende por liberdade e por que faz desse princípio o primeiro na sua ordem lexical de aplicações dos princípios de justiça. A principal crítica já foi mencionada aqui: trata-se das objeções levantadas por H.L.A. Hart54, reconhecidas por Rawls, e que levaram à reformulação do primeiro princípio, com a substituição da expressão “o mais abrangente sistema total de liberdades básicas” por “esquema plenamente adequado de liberdades básicas”.55 Essa mudança mostra que Rawls quer se referir a um conjunto fundamental de liberdades civis e políticas tradicionais na história das democracias ocidentais, e não a uma idéia abstrata, única ou sem conteúdo de liberdade que deveria simplesmente ser maximizada. 53 Para análises específicas sobre o segundo princípio de justiça, ver o capítulo “The Difference Principle”, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, com artigos de Amartya Sen (“Welfare Inequalities and Rawlsian Axiomatics”, p. 85-104), Wolfgang Leininger (“Rawls’ Maximin Criterion and Time-Consistency: Further Results”, p. 105-13), Paul Voice (“Rawls’s Difference Principle and a Problem of Sacrifice”, p. 114-17), Philippe Van Parijs (“Social Justice and Individual Ethics”, p. 118-41) e G.A. Cohen (“Where the Action Is: On the Site of Distributive Justice”, p. 143-170). O capítulo 4 de Pogge, Thomas. Realizing Rawls, p. 161-207, também aborda o segundo princípio. 54 “Rawls on Liberty and Its Priority”, University of Chicago Law Review”, vol. 40 (1973), p. 534-555. Reproduzido em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 2-23. 55 Na forma como é encontrado na sua formulação final em Rawls, John. Justiça como Eqüidade – Uma reformulação, §13, p. 60. 50 A crítica de Hart diz respeito à possibilidade de aplicação prática da idéia de liberdade56. Sua crítica parte de duas expressões utilizadas por Rawls na primeira edição de Teoria: “o princípio da maior liberdade igual” e “a liberdade pode ser restringida apenas em troca da liberdade”. Todo o problema, para Hart, está em uma ambigüidade: ao mesmo tempo em que Rawls apresenta uma lista específica de liberdades fundamentais,57 insiste em falar em liberdade de modo abstrato, como “sistema mais amplo”, “maior liberdade” etc. Assim, após o próprio Rawls ter reconhecido essa falha, fica claro que sua intenção, como Hart também indica, era de fato usar a lista de liberdades básicas como o critério para definir o sentido do termo “liberdade”. Sem dúvida, a revisão que Rawls se vê obrigado a fazer — tentando eliminar possíveis conotações metafísicas ou até mesmo imprecisões devido à utilização de “liberdade”, para adotar uma lista determinada de liberdades básicas historicamente reconhecidas — pode ser vista como um primeiro passo para todas as mudanças posteriores no sentido de retirar o conteúdo metafísico da teoria ao adotar uma lista precisa e bem especificada de liberdades civis e políticas que possam garantir a maior variedade possível de planos de vida aos cidadãos:58 “Não se atribui nenhuma prioridade à 56 A maioria das críticas feitas a Rawls em relação aos princípios de justiça na verdade extrapolam o âmbito da teoria ideal e dizem respeito à possibilidade social de execução dos princípios. Um interessante artigo a respeito da relação entre os dois princípios de justiça é o de Norman Daniels: “Equal Liberty and Unequal Worth of Liberty, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 25-53, no qual Daniels, que segue uma orientação com inclinação marxista, tenta mostrar que de fato não há uma incompatibilidade lógica entre o primeiro princípio das liberdades e o segundo, que permite desigualdades, mas sim um problema de “possibilidade social” de articulação entre os dois. O mesmo tópico, abordado de forma diferente e numa análise mais minuciosa, é discutido por Brian Barry: “John Rawls and the Priority of Liberty”, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 172-188. 57 Para a lista de liberdades fundamentais, ver nota 50, p. 47. 58 Thomas Pogge faz uma interessante interpretação do princípio da liberdade em Rawls, afirmando que os valores fundamentais que o filósofo propõe são os da liberdade, igualdade e participação (“The interpretation of Rawls’ first principle of justice”, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 55-83). 51 liberdade como tal, como se o exercício de algo chamado ‘liberdade’ tivesse um valor preeminente e fosse a principal, senão a única, finalidade da justiça política e social.”59 Obviamente, a discussão do tema nos leva a pensar sobre a fundamentação da prioridade da liberdade. Rawls, em Liberalismo, esclarece que essa fundamentação está baseada em dois pressupostos: a concepção dos cidadãos enquanto pessoas livres e iguais, ou seja, uma concepção liberal de pessoa, e a idéia de bens primários — que serão analisadas mais adiante. Além disso, a opção por uma lista de liberdades fundamentais, ao invés de definições gerais e princípios primeiros e abrangentes, tem por objetivo dar uma compreensão mais eficaz do que aquela apresentada pelos princípios primeiros do utilitarismo, do perfeccionismo ou do intuicionismo60. 1.2.5. A estabilidade de uma sociedade bem-ordenada Ao tratar de questões como a psicologia moral, aquisição do sentimento de justiça, teoria do bem e valores sociais, o objetivo geral de Rawls, na Terceira Parte de Teoria, é mostrar que, em uma sociedade bem-ordenada, existe uma congruência entre a justiça e o bem. A primeira condição para compreendermos não só a argumentação de Teoria, mas principalmente as reformulações realizadas em Liberalismo, é entender a distinção entre o que Rawls chama de teoria restrita e teoria plena do bem: a teoria restrita está relacionada aos bens primários (coisas que as pessoas racionais desejam, independentemente de 59 Liberalismo, VIII, §1, p. 345. Para uma visão unificada da posição de Rawls sobre a questão da liberdade, ver a última conferência de Liberalismo, VIII – As liberdades fundamentais e sua prioridade, p. 343-430. O fato de fechar a obra com essa conferência indica o papel central da questão da liberdade na teoria da justiça como eqüidade, com Rawls mostrando de que forma toda a teoria se articula para garantir certos valores fundamentais. 60 52 quaisquer outras coisas que elas desejem) e tem por objetivo assegurar que as premissas a respeito desses bens são necessárias para se chegar aos princípios da justiça. Por sua vez, a teoria plena do bem implica uma interpretação mais ampla do bem, o que envolve considerações relacionadas ao bem no sentido de objetivos finais, inclusive no que diz respeito à disposição dos cidadãos em agir de acordo com a concepção pública de justiça na esfera das instituições sociais. Para Rawls, no sentido da teoria restrita, possuir um senso de justiça é um bem fundamental para garantir a estabilidade em uma sociedade bem-ordenada. O segundo ponto que deve ser compreendido é o significado do bem para os planos de vida de uma pessoa, sendo que um plano racional de vida para uma pessoa determina o que é o bem para ela. Por sua vez, um plano de vida é racional se obedece a dois critérios: 1) ser um dos planos consistentes com os princípios de escolha racional quando aplicado a todas as características relevantes da situação desse plano; 2) é o plano que seria escolhido com racionalidade deliberativa plena (total consciência dos fatos relevantes e cuidadosa avaliação das conseqüências). Além disso, os interesses e objetivos de alguém só são racionais se merecerem ser encorajados e forem previstos pelo plano de vida que é racional para essa pessoa.61 O importante é compreender que os bens primários são essenciais para que se possa realizar efetivamente planos de vida, seja qual for sua natureza e objetivos. A intenção de Rawls, portanto, é mostrar que existe uma profunda relação entre os planos de vida que escolhemos e o modo pelo qual nossa sociedade é regulada: “As convicções sobre que tipo de pessoa devemos ser também estão, de forma semelhante, implícitas na aceitação dos princípios da justiça.”62 61 Para uma definição mais completa do que seja um plano de vida racional e o princípio de escolha racional, ver Teoria, §63, p. 452-60. 62 Teoria, §63, p. 460. 53 Assim, para Rawls, o bem para uma pessoa é determinado pelo plano de vida que ela adotaria com plena racionalidade deliberativa se seu futuro pudesse ser previsto e imaginado com precisão. Fica clara, então, a importância dos princípios de justiça — que regulam a sociedade de modo a torná-la bem-ordenada ao longo do tempo — em relação à escolha de vida dos cidadãos. Mais do que isso: para Rawls, “A estrutura básica da sociedade funciona de forma a encorajar e sustentar certos tipos de planos mais que outros, recompensando os seus membros pela contribuição para com o bem comum de maneiras que são consistentes com a justiça. Considerar essas contingências [o que inclui também os fatos genéricos que atuam sobre as escolhas individuais] limita a gama de planos alternativos de forma que o problema da decisão se torna, pelo menos em alguns casos, razoavelmente definido.”63 Outro fato que deve ser notado em Teoria são as características que Rawls quer atribuir para a relação entre a concepção de justiça e as teorias do bem em geral e também do bem moral. Para ele, a concepção da justiça escolhida na posição original é um guia para definir as virtudes e os sentimentos morais: “Uma boa pessoa (...) ou uma pessoa de valor moral, é aquela que tem, num grau maior que a média, os traços de caráter moral de cunho genérico que é racional que as pessoas na posição original queiram encontrar umas nas outras. Como os princípios da justiça foram escolhidos, e estamos supondo obediência estrita, cada um sabe que, em uma sociedade, ele desejará que os outros tenham os sentimentos morais que apóiam a obediência a esses padrões. Assim, poderíamos dizer, alternativamente, que uma boa pessoa tem os traços de caráter moral que é racional que os membros de uma sociedade bem-ordenada queiram encontrar em seus consócios.”64 Os princípios da justiça, portanto, são uma espécie de orientação para que se estenda a definição do bem para questões mais amplas do bem moral. Nesse sentido, Rawls quer tornar possível a transformação de uma teoria restrita numa teoria plena, através da posição original. Fazendo essa transformação ou junção da teoria da justiça (teoria restrita) com a 63 64 Teoria, §65, p. 470. Teoria, §66, p. 484. 54 teoria do bem (teoria plena) seria possível ter um bom critério para avaliar valores morais, para saber se alguém é justo ou injusto, mau, perverso, etc. Importante destacar também algumas diferenças estabelecidas entre o conceito de justo e o conceito de bem. A primeira delas é que os princípios do justo são escolhidos na posição original, como todas as características e implicações já conhecidas. Isso não se aplica ao conceito de bem, à teoria do bem: não há acordo sobre os princípios da escolha racional pelo simples fato de que as pessoas são livres para fazer suas próprias escolhas. A segunda diferença é que Rawls considera um fato positivo que as concepções dos indivíduos sobre o seu próprio bem devam divergir significativamente entre si, enquanto isso não deve ocorrer com a concepção do justo. A terceira diferença é metodológica: enquanto as aplicações dos princípios de justiça são restringidas pelo véu de ignorância, as avaliações sobre o bem de uma pessoa dependem do total conhecimento dos fatos, já que, evidentemente, nossos planos de vida estão estritamente ligados com nossas circunstâncias de vida. Mesmo com essas distinções, Rawls afirma que “nosso modo de vida, não importa quais sejam as circunstâncias particulares, deve sempre estar de acordo com os princípios da justiça, que são definidos independentemente.”65 65 Teoria, §68, p. 498. 55 1.2.6. O senso de justiça Como veremos, existe uma íntima relação entre os conceitos de sociedade bemordenada, senso de justiça, concepção do bem e estabilidade. Para Rawls, uma sociedade bem-ordenada é: “... aquela estruturada para promover o bem de seus membros e efetivamente regulada por uma concepção comum da justiça. Assim, trata-se de uma sociedade em que todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e cujas instituições sociais básicas satisfazem esses princípios, sendo esse fato publicamente reconhecido.”66 A publicidade dos princípios de justiça, portanto, é uma das características principais de uma sociedade bem-ordenada. Outra característica de uma sociedade desse tipo é que ela deve ser regulada por uma concepção pública de justiça. Isso significa uma disposição dos cidadãos em agir de acordo com os princípios da justiça. Vemos, aqui, a importância que Rawls atribui à idéia geral de aprendizado moral, ou seja, os cidadãos, ao perceberem que vivem em uma sociedade justa, adquirem um senso de justiça que fará com que desejem manter as instituições dessa sociedade, da mesma forma que, seguindo princípios básicos das “leis psicológicas”, uma criança que cresce em um ambiente educacional justo e com amparo desenvolverá naturalmente sentimentos de reconhecimento e amor. Para Rawls, a força de uma teoria da justiça deve ser medida de acordo com o sucesso em promover esse senso de justiça nos cidadãos. E como uma sociedade é um sistema de cooperação que perdura ao longo do tempo, uma teoria da justiça será preferível a outras se for capaz de garantir a força desse senso de justiça ao longo do tempo. Essa é a 66 Teoria, §69, p. 504. 56 estabilidade, a situação de equilíbrio, na qual um determinado estado de coisas persiste através do tempo sem ser perturbado por nenhuma força externa. Para Rawls, os sentimentos morais são essenciais para garantir que a estrutura básica de uma sociedade esteja de acordo com a justiça. De modo geral, independentemente da tradição moral avaliada (empirismo utilitarista de Hume a Sidgwick, teoria da aprendizagem moral de Freud, racionalismo de Rousseau e Kant),67 o aprendizado moral pode ser caracterizado como as influências exercidas sobre nós que nos fazem adotar condutas que beneficiam os outros e a sociedade, ao invés de prejudicá-los. Esse aprendizado ocorre ao longo de nossas vidas, desde a infância (moralidade da autoridade) com a educação que recebemos de nossos pais, passando pela moralidade de grupo, através da qual adquirimos noções dos padrões morais que devemos seguir nas associações a que pertencemos de modo que, à medida que mudamos de lugar durante a vida, adquirimos noções mais complexas de moralidade, chegando ao que Rawls denomina moralidade de princípios, que envolve noções como as de cidadania igual e de ser uma pessoa justa, ou seja, ter conhecimento dos padrões de justiça. Assim, “Uma vez aceita uma moralidade de princípios (...), as atitudes morais deixam de estar unicamente ligadas ao bem-estar e à aprovação de indivíduos ou grupos específicos, e são moldados por uma concepção do justo escolhida independentemente dessas contingências. Nossos sentimentos morais manifestam uma independência em relação às circunstâncias acidentais de nosso mundo, sendo que o significado dessa independência é dado pela descrição da posição original e de sua interpretação kantiana.”68 Essa concepção está fundamentada sobre as três leis psicológicas da moral, formuladas por Rawls da seguinte maneira: 67 68 Cf.: Teoria, §69, p. 508-12. Teoria, §72, p. 527. 57 “Primeira lei: dado que as instituições familiares são justas, e que os pais amam a criança e expressam manifestamente esse amor preocupando-se com o seu bem, então a criança, reconhecendo o amor evidente que sentem por ela, aprende a amá-los. Segunda lei: dado que a capacidade de uma pessoa para o sentimento de companheirismo tornou-se uma realidade quando ela adquiriu vínculos de acordo com a primeira lei, e dado que uma organização social é justa e esse fato é publicamente reconhecido por todos, então essa pessoa desenvolve laços de amizade e confiança em relação aos outros na associação, à medida que estes, com evidente intenção, cumprem seus deveres e obrigações, e correspondem aos ideais de sua situação. Terceira lei: dado que a capacidade de uma pessoa para o sentimento de companheirismo foi realizada quando ela criou vínculos de acordo com as duas primeiras leis, e dado que as instituições de uma sociedade são justas e esse fato é publicamente reconhecido por todos, então essa pessoa adquire o senso de justiça correspondente, à medida que reconhece que ela e aqueles por quem se interessa se beneficiam dessas organizações.”69 A explicação sobre a estabilidade é completada por Rawls tentando mostrar que existe uma congruência entre a justiça como eqüidade e o bem como racionalidade, ou seja, em uma sociedade bem-ordenada, o plano racional de vida de uma pessoa sustenta e afirma seu senso de justiça. Para que uma sociedade seja estável é necessário, portanto, que o senso efetivo de justiça faça parte do bem dos indivíduos. Rawls também adianta alguns pontos que serão centrais em Liberalismo. Um deles é o fato de que a personalidade moral das pessoas é composta por duas aptidões: uma para a concepção do bem, e outra para um senso de justiça, ou seja, para agir conforme os princípios do justo. Nesse sentido, outro aspecto fundamental destacado é que toda a teoria da justiça como eqüidade pressupõe a prioridade do justo sobre o bem. Mesmo assim, ainda parece haver uma ligação às vezes sem limites bem estabelecidos entre as concepções do bem e a idéia do justo, já que Rawls chega a considerar que a concepção do bem de uma pessoa, definida por seu plano racional de vida, é um subplano do plano maior e mais 69 Teoria, §75, p. 544-5. 58 abrangente que regula a sociedade. Esse plano maior forneceria ideais e formas de vida tanto para indivíduos como para associações de indivíduos, o que acabaria por ser algo positivo no sentido de delimitar as possibilidades de escolha, contribuindo, inclusive, para torná-las mais factíveis.70 Há, portanto, uma clara vinculação entre a concepção do justo e as visões morais particulares dos cidadãos, vinculação que Rawls tentará depois eliminar. Essa limitação de escolha dos planos racionais ao âmbito dos princípios de justiça também é assinalada por André Berten: “Os princípios de justiça e a sociedade bem-ordenada constituem o quadro que torna possível a execução de um plano racional de vida e, através disso, a elaboração de uma teoria completa do bem. Mas, fazendo isso, os princípios de justiça limitam a esfera do que pode ser considerado como uma satisfação do desejo racional. A prioridade do justo sobre o bem significa, portanto, que as finalidades não são indiferentes, mas devem corresponder a uma certa concepção da justiça.”71 Com essa explicação da idéia de senso de justiça, juntamente com a exposição que Rawls faz sobre a felicidade,72 o hedonismo,73 entre outros trechos que discutem em detalhe as questões morais, pode-se perceber que, de fato, não há uma nítida divisão entre o nãopolítico (ou seja, concepções morais, doutrinas religiosas e filosóficas, concepções do bem etc.) e o que posteriormente será considerado estritamente político. 70 Cf.: Teoria, §85, p. 629. Berten, André. “John Rawls, Jürgen Habermas et la rationalité des normes” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 187. 72 Cf.: Teoria, §83, p. 610. 73 Cf.: Teoria, §84, p. 617. 71 59 CAPÍTULO 2 — O liberalismo político 2.1. Principais mudanças Na década seguinte à publicação de Teoria, Rawls escreve vários artigos1 com o objetivo de esclarecer alguns pontos da obra que não ficaram claros ou mesmo que ele gostaria que tivessem mais destaque. Nesse sentido, procurou também rebater críticas e reforçar o caráter kantiano de sua teoria da justiça como eqüidade. Portanto, passo agora diretamente para o artigo que é considerado central para avaliar que modificações são feitas na teoria da justiça e qual a nova interpretação que Rawls apresenta: “A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica” (1985).2 Não se trata de um artigo voltado somente para resolver o que Rawls considera inconsistências de sua teoria, mas também de um artigo que propõe mudanças significativas 1 Esses artigos são: “Some Reasons for the Maximin Criterion”, American Economic Review (Maio 1974), 64(2): 141-146 e Collected Papers, p. 225-231; “Reply to Alexander and Musgrave”. Quarterly Journal of Economics (Novembro 1974), 88(4): 633-655 e Collected Papers, p. 232-253; “A Kantian Conception of Equality” Cambridge Review [Londres] (Fevereiro 1975), 96(2225): 94-99 e Collected Papers, p. 254-266; “Fairness to Goodness” The Philosophical Review (Outubro 1975), 84(4): 536-554 e Collected Papers, p. 267-285; “The Independence of Moral Theory.” Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association (Novembro 1975), 48: 5-22 e Collected Papers, p. 286-302; “The Basic Structure as Subject”. American Philosophical Quarterly (Abril 1977), 14(2): 159-165 e Justiça e Democracia (“A estrutura básica como objeto”), p. 1-42 (tradução da versão revisada do artigo, publicada em 1978: “The Basic Structure as Subject.” In Alvin I. Goldman and Jaegwon Kim, eds., Values and Morals: Essays in Honor of William Frankena, Charles Stevenson, and Richard B. Brandt, pp. 47-71. Dordrecht, Holland & Boston: Reidel, 1978); “Kantian Constructivism in Moral Theory”. Journal of Philosophy (September 1980), 77(9): 515572, Collected Papers, p. 303-358 e Justiça e Democracia (“O construtivismo kantiano na teoria moral”), p. 43-140; “Social Unity and Primary Goods”. In Amartya Sen and Bernard Williams, eds., Utilitarianism and Beyond, pp. 159-185. Cambridge: Cambridge University Press e Collected Papers, p. 359-387. “The Basic Liberties and Their Priority” In Sterling M. McMurrin, ed., The Tanner Lectures on Human Values, III (1982), pp. 1-87. Salt Lake City: University of Utah Press e Justiça e Democracia (“As liberdades básicas e sua prioridade”), p. 141-198. 2 “Justice as Fairness: Political not Metaphysical.” Philosophy & Public Affairs (Verão 1985), 14(3): 223-251, Collected Papers, p. 388-414 e Justiça e Democracia, p. 199-241. 60 tanto do ponto de vista do método filosófico quanto em relação ao que se espera que seja o papel de uma filosofia política. Em “O construtivismo kantiano na teoria moral” (1980), Rawls já tinha deixado claro que seu objetivo era elaborar uma fundamentação para uma concepção de justiça enquanto tarefa social prática, e não enquanto teoria epistemológica ou metafísica. Nesse sentido, o artigo antecipa o que Rawls pretende que seja uma concepção adequada de uma teoria liberal, ou seja, uma teoria que esteja voltada somente para o aspecto político, o que, como vimos, será sua preocupação central em Liberalismo. Assim, Rawls se aproxima mais da idéia de tolerância: abandonando as pretensões que poderiam ser interpretadas, em Teoria, como universalistas, sua concepção liberal passa a tentar dar conta da pluralidade de crenças individuais presentes nas sociedades democráticas contemporâneas. Obviamente Rawls estava consciente dessa pluralidade de crenças desde os seus primeiros textos, como tentei mostrar com a breve exposição de seus primeiros artigos, até chegar em Teoria. É importante não esquecer, quando se passa a uma leitura mais específica de Liberalismo, que o fato do pluralismo e a incapacidade de concordar sobre princípios de justiça fundamentais é justamente o que leva Rawls, em Teoria, a elaborar sua original concepção de posição original na qual as partes contratantes ignoram suas crenças pessoais. O que passa a ser questionado, portanto, é a amplitude e as condições de possibilidade desse consenso. A diferença agora é que é preciso reconhecer seriamente que não é possível mais chegar a um consenso numa sociedade liberal a não ser que essa sociedade deixe de ser liberal, ou seja, que uma determinada concepção tente ser estabelecida pelo uso da força. 61 O que resta, então? Para Rawls, é preciso — com o objetivo de não invadir o âmbito particular de cada concepção moral, religiosa e filosófica, nem de privilegiar nenhuma delas — abandonar o conceito de verdade em relação a uma teoria sobre a justiça e sobre as concepções fundamentais que regulam o funcionamento social.3 Rawls adota, assim, um “método de esquiva” (method of avoidance). O que deve ser buscado é um consenso somente sobre os aspectos políticos essenciais da sociedade. Se esta é uma restrição considerável, outra maior será feita quando Rawls insiste em deixar claro que o que ele está fazendo é simplesmente tentando oferecer uma formulação mais precisa e consistente para o funcionamento das nossas sociedades democráticas ocidentais. O primeiro aspecto que deve ser destacado para compreendermos em que sentido a teoria da justiça deve estar restrita ao âmbito do político é considerar que Rawls retoma com muito mais força a idéia, já apresentada em Teoria, de que a concepção política da justiça tem somente um único objetivo: a estrutura básica de uma sociedade democrática constitucional, com suas instituições econômicas, sociais e políticas. Provavelmente como uma das características mais importantes da teoria de Rawls — cuja má compreensão certamente leva a equívocos —, esta restrição à estrutura básica precisa ser levada em consideração: “... saber se a teoria da justiça como eqüidade pode ser uma concepção política geral, estendendo-se a diferentes tipos de sociedades, em condições históricas e sociais diferentes, ou se ela pode ampliar-se e tornar-se uma concepção moral geral, ou pelo menos uma parte importante desta última são questões inteiramente distintas, sobre as quais evitarei me pronunciar de uma ou de outra maneira.”4 3 Para uma interessante análise — que mantém os pressupostos rawlsianos, mas ao mesmo tempo tenta ir além de sua argumentação — com o objetivo de mostrar que a teoria da justiça acaba por poder ser vista como uma teoria verdadeira, ver Raz, Joseph. “Facing Diversity: The Case of Epistemic Abstinence”, em The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 133-76. 4 Justiça e Democracia, p. 203-4. 62 O vínculo entre a idéia de estrutura básica e as concepções democráticas é estabelecido: somente às instituições da estrutura básica da sociedade poderão ser aplicados princípios que expressam as idéias intuitivas e tradicionais que fundamentam as instituições políticas de um regime democrático constitucional. Estender essas idéias intuitivas e tradicionais para além da estrutura básica é extrapolar as restrições de uma teoria exclusivamente política. Essa especificação provavelmente surpreendeu alguns leitores de Teoria, na qual eram propostos princípios de justiça para sociedades justas, sem maiores restrições, portanto. Evidentemente, por trás dessas idéias existe uma concepção do que é o papel da filosofia política. Para Rawls, esse papel muda de acordo com épocas e circunstâncias políticas e sociais. No contexto atual de democracias constitucionais, a filosofia política deveria, segundo ele, investigar se existe uma base subjacente possível de acordo que permita a cooperação política. Seria uma tentativa, portanto, de resolver especificamente uma questão: “O desenvolvimento do pensamento democrático desde cerca de dois séculos mostrou claramente que não existe acordo algum sobre a maneira de organizar as instituições básicas numa democracia caso elas devam especificar e garantir os direitos e as liberdades básicas dos cidadãos e responder às reivindicações da igualdade democrática — os cidadãos sendo concebidos como pessoas livres e iguais.”5 Para tanto, Rawls apresenta uma argumentação que, embora não conflitante com a de Teoria,6 dá ênfase a outras questões: para ele, ao buscarmos princípios capazes de regular a estrutura básica de nossa sociedade, é preciso primeiramente partir de convicções 5 Justiça e Democracia, p. 206. Em nota, Rawls esclarece este ponto: “Ainda que TJ utilize essa idéia desde o começo (ela é introduzida a partir da p. 4), ali eu não insisto (como faço aqui e no “Kantian Constructivism”) no fato de as idéias básicas da teoria da justiça como eqüidade serem consideradas implícitas ou latentes na cultura pública de uma sociedade democrática.” (Justiça e Democracia, p. 213) 6 63 historicamente estabelecidas ao longo da tradição democrática, como a de tolerância religiosa e de repúdio à escravidão. Depois, devemos considerar nossa própria cultura política pública, com suas instituições e tradições, de modo que seja possível formular princípios que expressem satisfatoriamente essas idéias. Nesse sentido, a tarefa de encontrar uma base pública para um acordo político só é possível se a sociedade for vista como um sistema de cooperação social eqüitativa entre pessoas livres e iguais e como membros normais e integrais dessa sociedade durante toda a sua vida. Essa seria, segundo Rawls, a questão central do debate entre liberais contra aristocratas, socialistas contra a democracia constitucional liberal e liberais contra conservadores (atualmente): a propriedade privada e a legitimidade ou eficácia dos programas sociais do chamado “Estado-Providência”. Isso nos leva a entender em que sentido a teoria rawlsiana é tanto prática quanto filosófica: é filosófica porque exige uma complexa doutrina moral de justiça, mas, ao mesmo tempo, é prática por estar preocupada em propor soluções que garantam a estabilidade e a unidade social baseadas no consenso. A relação fica ainda mais clara quando sabemos que Rawls, reiteradamente, insiste que o sucesso de uma teoria da justiça deve ser medido por sua capacidade de se transformar em tarefa prática. Assim, Rawls — numa das passagens fundamentais para entendermos suas intenções — é explicitamente claro: “... o objetivo da teoria da justiça como eqüidade não é metafísico nem epistemológico, mas prático. De fato, ela não se apresenta como uma concepção verdadeira, mas sim como uma base para um acordo político informado e totalmente voluntário entre cidadãos que são considerados como pessoas livres e iguais. Quando esse acordo está baseado solidamente em atitudes sociais e políticas públicas, ele garante o bem de todos os indivíduos e de todos os grupos que fazem parte de um regime democrático justo. Por isso tentamos evitar tanto quanto possível as questões filosóficas, assim como as morais e políticas que estejam sujeitas 64 à controvérsia. Não porque essas questões não têm importância ou porque nos são indiferentes, mas porque as consideramos como demasiado importantes e reconhecemos que não é possível resolvê-las no plano político. A única alternativa para o princípio da tolerância seria o recurso autocrático ao poder do Estado. É por isso que, falando filosoficamente, a teoria da justiça como eqüidade permanece na superfície. Dadas as profundas diferenças que existem entre as crenças e as concepções do bem a partir da Reforma, devemos reconhecer que, como no caso das questões de moral ou de religião, um acordo público sobre as questões filosóficas básicas não pode ser obtido sem que o Estado ofenda as liberdades fundamentais. A filosofia, enquanto busca da verdade no tocante a uma ordem moral e metafísica independente, não pode, a meu ver, proporcionar uma base comum e aplicável para uma concepção política da justiça numa democracia.”7 Mais do que isso, Rawls está, desse modo, tentando evitar recorrer a questões filosóficas de fundo que não foram resolvidas, como, por exemplo, o que seria a concepção metafísica de pessoa. Pois como querer que questões filosóficas controversas possam servir de fundamento público para um Estado democrático? Só nos resta recorrer à tolerância e ao respeito mútuo como os únicos critérios possíveis para colocar de lado questões controversas e buscar o consenso sobre princípios fundamentais. Nesse sentido, percebemos que, já em 1974, com o artigo “Reply to Alexander and Musgrave”, Rawls desloca a discussão do âmbito de uma decisão sobre como melhor dividir os benefícios da cooperação social para o âmbito da tolerância democrática: “é muito melhor olhar a noção de uma sociedade bem-ordenada como uma extensão da idéia de tolerância religiosa do que da idéia de uma economia competitiva”.8 No entanto, é fundamental perceber que as mudanças feitas por Rawls no sentido de passar a abordar a justificação política, a questão do realismo e a natureza prática da filosofia política de forma alguma significam uma mudança substancial na sua concepção igualitária da teoria da justiça. Os valores fundamentais da teoria da justiça como eqüidade — igual liberdade (representada sobretudo 7 8 Justiça e Democracia, p. 211-12. Collected Papers, p 235. 65 pela liberdade política), igual oportunidade e eqüidade de distribuição — continuam válidos. Como afirma Joshua Cohen, “O reconhecimento da diversidade ressaltado pela noção de um consenso sobreposto não exclui a crítica do privilégio contida nos aspectos igualitários do liberalismo igualitário.” 9 Mesmo assim, todas esses mudanças provocaram fortes reações críticas, como explica Paul Weithman: “Alguns vêm um ceticismo moral levemente velado na recusa de Rawls em declarar a verdade da justiça como eqüidade. A maioria vê em seus recentes ensaios uma desenfatização [de-emphasis] dos elementos kantianos tão proeminentes em Uma Teoria da Justiça e um movimento em direção à realpolitk de Hobbes ou o pragmatismo de Dewey. Mas o que traz à tona a mais forte reação tanto dos que aplaudem quanto dos que criticam o trabalho recente de Rawls é o que parece ser sua politização da filosofia política. A importância que Rawls atribui à consecução de um consenso sobreposto e à fundação de sua teoria em idéias amplamente compartilhadas sugeriu para alguns que o que Rawls realmente dá valor é para resultados políticos e não filosóficos — nas palavras de Jean Hampton, ‘paz e estabilidade ao mais baixo custo político’. Além disso, Rawls parece não estar interessado precisamente no tipo de justificação que os filósofos tradicionalmente buscam. Sua afirmação de que idéias implícitas na cultura democrática são o ponto de partida apropriado para a filosofia política e sua recusa em justificá-los aprofundando mais impressiona alguns como sendo inconsistente com a afirmação de que Rawls está engajado em filosofia e não na prática política.”10 O que está em jogo, portanto, são concepções distintas de qual deve ser o balanço entre metafísica e política ao elaborar uma teoria de filosofia política. O próprio Paul Weithman sugere uma interpretação que toma a tarefa rawlsiana em duplo sentido: primeiro, como o desenvolvimento de uma teoria da justiça que deve mostrar-se adequada 9 Cohen, Joshua, “Moral pluralism and political consensus”, em The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 66. 10 Weithman, Paul. “Liberalism and the Political Character of Political Philosophy”, em The Pilosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 224. Neste artigo, Weithman elabora uma pertinente argumentação para mostrar que divisões muito estanques entre “filosofia política”, “teoria política”, “filosofia moral”, “teoria moral” etc. podem levar a uma interpretação inadequada da obra de Rawls e, por extensão, de muitos outros autores da tradição filosófica. 66 para determinada sociedade e, segundo, como a construção de um consenso sobreposto sobre essa teoria, ou seja, um consenso que deve se mostrar passível de aceitação pelos cidadãos. Uma fundamentação mais aprofundada da teoria está, assim, excluída. Esse tipo de interpretação, segundo Weithman, responde tanto às críticas de que Rawls transformou a filosofia política em política prática, quando às que de que a idéia de democracia, com todos os seus pressupostos, superou a filosofia (no sentido de capacidade de formular justificações). Outro tipo de interpretação à qual Weithman quer se opor é a que defende que a única forma de se atingir o consenso sobreposto é através de argumentos políticos, e não filosóficos, já que as formas de justificação se darão através da razão pública baseada em valores políticos. Como veremos ao analisar as características mais específicas do consenso sobreposto, essa de fato não parece ser a argumentação de Rawls. 2.2. Elementos fundamentais do liberalismo político A mudança central que Rawls realiza, portanto, com a idéia de liberalismo político, é a tentativa de demonstrar que uma sociedade bem-ordenada não pode ter por fundamento crenças morais essenciais. Isso seria impossível nas sociedades democráticas atuais, onde o que prevalece de modo geral é uma profunda divisão de concepções religiosas, filosóficas e morais. Como já vimos, esse é um fato político, social e cultura que não pode ser negado. Uma teoria política precisa levar realmente a sério essas condições — mais a sério do que já se tenha tentado anteriormente em filosofia política. Para Rawls, é irrealista elaborar uma 67 teoria que seja “incoerente com a realização de seus princípios num cenário de alta previsibilidade”.11 É importante constatar que Rawls mantém a estrutura geral de Teoria. Sua inovadora idéia de posição original — com todas suas conseqüências, sobretudo a escolha dos dois princípios de justiça — é mantida, pois Rawls continua insistindo no aspecto liberal e igualitário dos dois princípios12. Assim, o que vemos estruturado em Liberalismo são dois desafios: 1) manter as idéias centrais de Teoria — que Rawls acredita ser a formulação mais adequada dos princípios que devem estabelecer o funcionamento da estrutura básica de uma sociedade democrática —, mas agora levando em conta o fato do pluralismo razoável; 2) elaborar uma teoria política que seja plausível ao explicar como é possível que, através de um consenso sobreposto, cidadãos com as mais diversas concepções morais, filosóficas e religiosas possam chegar a um acordo sobre a mais justa concepção exclusivamente política (portanto, nem moral, nem religiosa, nem filosófica) para um regime democráticoconstitucional, sem que suas concepções particulares sejam substituídas ou ganhem novos fundamentos. Trata-se, em outras palavras, de garantir a existência de uma base de justificação pública razoável sobre questões políticas fundamentais. A questão que Rawls quer resolver é a junção desses dois desafios. Cito novamente um trecho já reproduzido na Introdução, sobre o questionamento principal de Liberalismo: “... como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. Em 11 Liberalismo, Introdução, p. 25 Após comentar sobre o aspecto igualitário da teoria da justiça, Rawls afirma: “Faço esse comentário porque alguns pensaram que minha formulação das idéias do liberalismo político significava renunciar à concepção igualitária de Teoria. Não me lembro de nenhuma revisão que implique tal mudança e penso que essa conjectura não tem fundamento” (Liberalismo, I, §1, p. 49, nota 6). 12 68 outras palavras: como é possível que doutrinas abrangentes profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de um tal consenso sobreposto?”13 Uma exposição sobre a estrutura da obra pode ser feita destacando as três idéias que o próprio Rawls considera como “centrais” para o liberalismo político, juntamente com seus pressupostos e implicações. Primeiro, a idéia de um consenso sobreposto (2.3). Para uma adequada compreensão dessa idéia é necessário destacar o que Rawls entende por construtivismo político (2.3.1). Segundo, a idéia de prioridade do justo sobre o bem (2.4) quando se trata de uma concepção política, o que também envolve a relação entre as concepções de razoável e racional. Terceiro, a idéia de razão pública (2.5) e sua importância para a democracia. 2.2.1. Concepção política de justiça Porém, antes de passar a essas três idéias centrais, é preciso destacar alguns conceitos e definições fundamentais para uma compreensão adequada do liberalismo político rawlsiano. O primeiro deles é o significado do que é uma concepção política de justiça — concepção, afinal, essencial para a argumentação de Liberalismo, sobretudo no que se refere às diferenças deste livro em relação à Teoria. Para Rawls, uma concepção política de justiça possui três características principais. A primeira diz respeito ao objetivo. Trata-se de enfatizar mais uma vez que a concepção política é voltada para a estrutura básica da sociedade, ou seja, para as principais 13 Liberalismo, Introdução, p. 25-6. 69 instituições políticas, sociais e econômicas de uma democracia constitucional moderna. Evidentemente, aqui é preciso também considerar o modo pelo qual essas instituições afetam o caráter e as atitudes dos cidadãos dessa sociedade. A segunda característica de uma concepção política de justiça — e com isso se estabelece a diferença em relação à Teoria — é a de que ela deve ser uma visão autosustentada, ou seja, não deve depender da justificação em relação a uma ou mais doutrinas abrangentes, não deve ter compromisso mais amplo com qualquer outra doutrina. Como veremos ao longo deste texto, tornar essas considerações plausíveis é o objetivo central de Liberalismo: “Usando uma expressão em voga, a concepção política é um módulo, uma parte constitutiva essencial que se encaixa em várias doutrinas abrangentes razoáveis subsistentes na sociedade regulada por ela, podendo conquistar o apoio daquelas doutrinas. Isso significa que pode ser apresentada sem que se afirme, saiba ou se arrisque uma conjectura a respeito das doutrinas a que possa pertencer ou de qual delas poderá conquistar apoio”.14 A terceira característica de uma concepção política de justiça “é que seu conteúdo é expresso por meio de certas idéias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política pública de uma sociedade democrática”.15 Notemos que, na definição de Rawls, ocorre uma ampliação em relação à Teoria: a cultura pública não se resume mais somente ao que é expresso pelos ideais da constituição democrática, mas agora ganha importância também a interpretação das tradições públicas, textos e documentos históricos de conhecimento geral e a “cultura de fundo” da sociedade civil, formada pelas diversas doutrinas abrangentes professadas pelos cidadãos: “É a cultura do social, não do político. É a cultura da vida cotidiana, de suas diversas associações: igrejas e universidades, sociedades de eruditos 14 15 Liberalismo, I, §2, p. 55 Liberalismo, I, §2, p. 56. 70 e cientistas, clubes e times, para citar apenas algumas. Numa sociedade democrática, há uma tradição de pensamento democrático cujo teor é, no mínimo, familiar e inteligível ao senso comum16 civilizado dos cidadãos em geral. As diversas instituições da sociedade, e as formas aceitas de interpretá-las, são vistas como um fundo de idéias e princípios implicitamente compartilhados”.17 Esse fundo de idéias e princípios implicitamente compartilhados — juntamente com a idéia organizadora fundamental da justiça como eqüidade e da sociedade enquanto sistema eqüitativo de cooperação no decorrer do tempo — deve conquistar um consenso sobreposto. 2.2.2. Concepção política de pessoa Se em Teoria Rawls não trata de doutrinas abrangentes, ou seja, das concepções religiosas, morais e filosóficas professadas pelos cidadãos, em Liberalismo, como sabemos, esse pluralismo será decisivo. Isso poderia significar que Rawls se voltaria para o cidadão enquanto indivíduo, para uma análise das crenças individuais. No entanto, a posição de Rawls é muito mais a de olhar o pluralismo simplesmente como um fato dado e irreversível das sociedades democráticas contemporâneas. Sua análise não tem por objetivo os conflitos e as características dessas diversas doutrinas ou seu significado histórico e moral — a não ser, evidentemente, quando isso tem relação direta com seu objetivo central: saber como é possível que cidadãos que professam as mais variadas doutrinas abrangentes possam chegar a um acordo sobre princípios políticos fundamentais. Assim, podemos compreender, por 16 Para uma excelente análise da teoria da justiça como uma articulação e explicitação de noções compartilhadas latentes no senso comum, ver a primeira parte do artigo: Perelman, Chaim, “Les conceptions concrete et abstraite de la raison et de la justice” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 195-211. 17 Liberalismo, I, §2, p. 56. 71 extensão, que a “idéia fundamental de pessoa” está ligada diretamente à idéia de “sociedade enquanto sistema eqüitativo de cidadãos livres e iguais no decorrer do tempo”. Mas, na verdade, a concepção de pessoa em Rawls evolui e é definida de modo diferente ao longo de suas obras. No artigo “Constitutional Liberty and the concept of justice” (1963), em uma breve passagem, a pessoa é definida como sujeito de direito, ou seja, como pessoa jurídica: “O termo ‘pessoa’ deve ser entendido de modo geral como um sujeito de reivindicações. Em alguns casos, ele significa indivíduos humanos, mas, em outros, se refere a nações, corporações, igrejas, times e assim por diante. Embora haja uma certa prioridade para o caso de indivíduos humanos, os princípios de justiça se aplicam para relações entre todos esses tipos de pessoas, e a noção de uma pessoa deve ser interpretada de acordo.”18 Em Teoria, essa concepção é abandonada e a pessoa passa a ser compreendida como indivíduo humano ou, às vezes, como chefe de família (no sentido de representante de interesses). Os indivíduos são considerados como portadores das mesmas capacidades físicas e mentais e como possuidores de seus próprios planos de vida ou concepções do bem — condições que necessariamente levarão ao conflito de opiniões sobre a divisão dos benefícios da cooperação social. Já antecipando um aspecto importante de sua teoria, Rawls também enfatiza que há uma “diversidade de crenças filosóficas e religiosas, e de doutrinas políticas e sociais”. De qualquer forma, essa visão de pessoa ainda está ligada à idéia fundamental de Teoria de se voltar para a resolução do problema da divisão dos recursos naturais e sociais disponíveis. Mas em 1980, em “Kantian Constructivism in Moral Theory”, Rawls já esboça uma concepção de pessoa no sentido kantiano de sujeito moral livre, responsável e autônomo que, a partir de então, será adotada ao longo de todas as obras seguintes: 18 Collected Papers, p. 75. 72 “No momento, entretanto, estou preocupado com as partes na posição original apenas como agentes racionalmente autônomos de construção que (como tais agentes) representam o aspecto da racionalidade que é parte da concepção da pessoa moral afirmada pelos cidadãos em uma sociedade bem-ordenada. A autonomia racional das partes na posição original contrasta com a autonomia total dos cidadãos na sociedade. Assim, a autonomia racional é aquela das partes como agentes de construção: é uma noção relativamente estreita, e tem um paralelo vago com a noção kantiana dos imperativos categóricos (ou com a noção de racionalidade encontrada na economia neoclássica); a autonomia total é aquela dos cidadãos na vida diária que pensam em si mesmos de um certo modo e afirmam e agem de acordo com o primeiro princípio de justiça que seria acordado.”19 Em Liberalismo, Rawls está interessado na pessoa enquanto alguém que pode ser um cidadão, ou seja, um membro cooperativo da sociedade. Para isso, é necessário que as pessoas possuam duas capacidades morais: 1) capacidade de ter senso de justiça; 2) capacidade de ter uma concepção do bem: “Senso de justiça é a capacidade de entender a concepção pública de justiça que caracteriza os termos eqüitativos da cooperação social, de aplicá-la e de agir de acordo com ela. Dada a natureza da concepção política de especificar uma base pública de justificação, o senso de justiça também expressa uma disposição, quando não o desejo, de agir em relação a outros em termos que eles também possam endossar publicamente. A capacidade de ter uma concepção do bem é a capacidade de formar, revisar e procurar concretizar racionalmente uma concepção de vantagem racional pessoal, ou bem”.20 Além dessas faculdades morais, as pessoas também devem ser reconhecidas como tendo concepções do bem sobre aquilo que é importante na vida humana, ou seja, fins últimos que queremos realizar. Trata-se, portanto, de um conjunto de características cujo objetivo é somente apontar o que seria um cidadão de uma sociedade democrática. Isso fica claro quando Rawls exclui casos eventuais, como, por exemplo, o de pessoas que, por motivos como incapacidade física ou mental, não podem participar adequadamente da 19 20 Collected Papers, p. 308. Liberalismo, I, §3, p. 62. 73 cooperação social, pois o que interessa na elaboração da teoria é somente um ideal de cidadão que pode participar ativamente da vida social. Nesse sentido, Rawls tenta se aproximar de uma concepção a mais “neutra” possível de pessoa, o que percebemos se voltarmos a refletir sobre as condições da posição original de escolha dos princípios de justiça: a idéia de véu de ignorância é elaborada simplesmente como um artifício de representação e pretende não supor nenhuma concepção metafísica particular de pessoa.21 A descrição das partes na posição original não é nem uma tentativa de explicação da psicologia moral nem de como os cidadãos agem numa sociedade bemordenada.22 O objetivo de Rawls é mostrar que os cidadãos devem ser concebidos apenas como livres. E são livres em três sentidos. Primeiro, “concebem a si mesmos e aos outros como indivíduos que têm a faculdade moral de ter uma concepção do bem”.23 Isso implica a independência entre a sua identidade pública, como cidadão, e suas crenças específicas sobre o bem ao longo da vida. Ou seja, abandonar uma crença religiosa (apostasia), não muda em nada o papel de uma pessoa enquanto cidadã, sua identidade pública ou 21 Acusação feita, por exemplo, por Michael Sandel em Liberalism and the Limits os Justice (Cambridge: Cambridge University Press, 1982) e rebatida por Rawls. 22 Um importante nota de Rawls esclarece esse ponto: “Parte da dificuldade é que não há uma interpretação aceita do que seja uma doutrina metafísica. Pode-se dizer, como Paul Hoffman me sugeriu, que desenvolver uma concepção política de justiça sem pressupor, ou sem usar explicitamente, uma doutrina metafísica específica como, por exemplo, uma concepção metafísica de pessoa, já é pressupor uma tese metafísica, qual seja, que não se requer nenhuma doutrina metafísica para esse propósito. Também se pode dizer que nossa concepção corrente das pessoas como unidades básicas de deliberação e responsabilidade pressupõe, ou envolve de algum modo, certas teses metafísicas sobre a natureza das pessoas enquanto agentes morais ou políticos. Seguindo o método de esquiva, não quero negar essas proposições. O que se deve dizer é o seguinte: se examinarmos a apresentação da justiça como eqüidade e observarmos como é formulada, e observarmos as idéias e concepções que usa, nenhuma doutrina metafísica particular sobre a natureza das pessoas, distinta e contraposta a outras doutrinas metafísicas, aparece entre suas premissas, ou parece exigida pela argumentação. Se há pressupostos metafísicos envolvidos, talvez sejam tão gerais que não se distinguiriam entre as visões metafísicas — cartesiana, leibniziana ou kantiana; realista, idealista ou materialista — que constituem o objeto tradicional da filosofia. Nesse caso, não pareceriam relevantes para a estrutura e o conteúdo de uma concepção política de justiça” (Liberalismo, I, §5, p. 72, nota 31). 23 Liberalismo, I, §5, p. 73. 74 institucional. Essa mudança diz respeito somente à concepção particular do bem e, portanto, essa pessoa não pode ser, de nenhuma forma, punida por essa mudança. Segundo, os cidadãos são livres porque são “fontes auto-autenticadoras de reivindicações válidas. Isto é, consideram-se no direito de fazer reivindicações a suas instituições de modo a promover suas concepções do bem (desde que essas concepções estejam incluídas no leque permitido pela concepção pública de justiça)”.24 Terceiro, os cidadãos são livres por serem capazes de assumir responsabilidades por seus objetivos, o que influencia o modo como lidam com suas reivindicações. Dadas essas características da concepção de pessoa relacionada ao papel do cidadão na sociedade, fica mais fácil entender por que Rawls dá tanto destaque à diferença entre sociedade democrática bem-ordenada, associação e comunidade (tipo especial de associação, unida por uma doutrina abrangente, como uma igreja). A primeira diferença é que uma sociedade democrática é um sistema social completo e fechado: é auto-suficiente e tem espaço para todos os principais objetivos da vida humana, e, para fins metodológicos (evitar casos específicos demais, de difícil solução, como a questão dos imigrantes), só se entra nela pelo nascimento e só se sai com a morte. Essa característica permite diferenciar uma sociedade bem-ordenada de uma associação porque nesta pode-se ingressar a qualquer momento da vida. Na sociedade, não: nela nascemos e passamos toda a vida. A segunda diferença entre sociedade bem-ordenada e associação talvez explique melhor por que Rawls elabora sua teoria estabelecendo uma distinção total entre doutrinas abrangentes que constituem o pluralismo razoável e a concepção estritamente política de justiça. Trata-se do fato de que uma sociedade bem-ordenada não tem fins últimos da mesma forma que as pessoas ou as associações têm: 24 Liberalismo, I, §5, p. 76. 75 “Muitas sociedades do passado pensavam de outra forma: consideravam como fins últimos a religião e a formação de impérios, a dominação e a glória; e os direitos e status dos indivíduos e classes dependiam de seu papel na realização desses fins. Nesse sentido, viam a si próprias como associações. Contrariamente a isso, uma sociedade democrática, com sua concepção política de justiça, não pode de modo algum conceber-se como uma associação. Não tem o direito, como as associações no interior da sociedade geralmente têm, de oferecer termos diferenciados a seus membros (nesse caso, àqueles nascidos nela), em função do valor de sua contribuição potencial para a sociedade como um todo, ou aos fins daqueles que já são membros dela. Se fazer isso é permissível no caso das associações, isso ocorre porque, nesse caso, os membros futuros ou possíveis já têm garantido o status de cidadãos livres e iguais, e as instituições de justiça de base da sociedade asseguram que outras alternativas estejam abertas para eles”.25 2.3. A idéia de um consenso sobreposto Complementar à concepção de pessoa e seu papel numa sociedade bem-ordenada, a distinção entre razoável e racional é fundamental para compreender a idéia de consenso sobreposto e a sua exeqüibilidade — idéia que, como próprio Rawls afirma, é de inspiração kantiana: “A distinção entre o razoável e o racional remonta, creio eu, a Kant: é expressa em sua distinção entre o imperativo categórico e o hipotético em Foundations e em outros textos seus. O primeiro representa a razão prática pura, o segundo representa a razão prática empírica. Para os propósitos de uma concepção política de justiça, atribuo ao razoável um sentido mais restrito e associo a ele, primeiro, a disposição de propor e sujeitar-se a termos eqüitativos de cooperação e, segundo, à disposição de reconhecer os limites do juízo e de aceitar suas conseqüências.”26 Nesta linha kantiana, Rawls dirá que as pessoas são razoáveis quando são capazes de escolher e seguir normas que poderão contribuir para a cooperação social, ou seja, serão 25 26 Liberalismo, I, §7, p. 85-6. Liberalismo, II, §1, p. 92, nota 1. 76 aceitas por todos. A reciprocidade, portanto, é um elemento fundamental do razoável. Trata-se também, da idéia de uma concepção pública. De modo distinto, a reciprocidade não está relacionada ao racional, que diz respeito às ações dos agentes individualmente, na busca de seus interesses particulares e a todos os aspectos dessa busca ou escolha de fins ou bens. Não é uma concepção pública, portanto.27 Assim, razoável e racional são duas idéias distintas e independentes e uma não pode ser derivada da outra. Rawls nega sobretudo a derivação do razoável (princípios bem definidos de justiça) a partir do racional (preferências e decisões dos agentes):28 “A justiça como eqüidade rejeita essa idéia. Não procura derivar o razoável do racional. Na verdade, a tentativa de fazer isso pode indicar que o razoável não é fundamental e necessita de uma base da qual o racional não precisa na mesma medida. Dentro da idéia da cooperação eqüitativa, o razoável e o racional são noções complementares. Ambos são elementos dessa idéia fundamental, e cada um deles conecta-se com uma faculdade moral distinta — respectivamente, com a capacidade de ter um senso de justiça e com a capacidade de ter uma concepção do bem. Ambos trabalham em conjunto para especificar a idéia de termos eqüitativos de cooperação, levando-se em conta o tipo de cooperação social em questão, a natureza das partes e a posição de cada uma em relação à outra”.29 27 Para uma lista completa dos elementos básicos da concepção dos cidadãos como razoáveis e racionais, ver Liberalismo, II, § 7, p. 126. 28 Nesse sentido, na posição inicial não ocorre uma derivação do razoável em relação ao racional: “Aqui corrijo uma observação de Teoria, p. 16, segundo a qual a teoria da justiça é uma parte da teoria da decisão racional. A partir do que acabamos de dizer, isso é simplesmente incorreto. O que deveria ter sido dito é que a interpretação das partes, e de seu raciocínio, usa a teoria da decisão racional, embora apenas de forma intuitiva. Essa teoria é, ela mesma, parte de uma concepção política de justiça, uma concepção que procura apresentar uma definição dos princípios razoáveis de justiça. Não há a menor intenção de derivar esses princípios do conceito de racionalidade como o único conceito normativo. Acredito que o texto de Teoria como um todo está de acordo com essa interpretação” (Liberalismo, II, §1, p. 96, nota 7). 29 Liberalismo, II, §1, p. 95-6. 77 Portanto, embora distintas, o razoável e o racional são complementares: agentes puramente razoáveis não teriam fins próprios, e agentes puramente racionais não teriam senso de justiça, inviabilizando, portanto, a cooperação social.30 Dada a definição de razoável, é possível agora especificar o que são doutrinas abrangentes razoáveis. Para Rawls, elas possuem três características: 1) ser um exercício da razão teórica, ou seja, estar relacionada aos principais aspectos religiosos, filosóficos e morais da vida humana; 2) ser também um exercício da razão prática porque seleciona valores e tenta equilibrá-los quando em conflito; 3) ser baseada numa tradição de pensamento e doutrina.31 Assim, a existência de um pluralismo de doutrinas razoáveis abrangentes é um fato normal de um regime democrático. Melhor dizendo, é um fato normal do pensamento humano que pode ser desenvolvido em regimes democráticos que procuram garantir especialmente a liberdade de expressão. E essas diversas doutrinas são razoáveis na medida em que conseguem coexistir umas com as outras, num ambiente de tolerância e liberdade de pensamento. Cada cidadão, com sua doutrina razoável, sabe que os outros são livres para terem suas próprias doutrinas e que, portanto, não há espaço para qualquer tipo de coação por alguém adotar qualquer tipo de doutrina, desde que ela seja razoável. 30 Para um entendimento do que Rawls chama de “limites do juízo” (burdens of judgement), ou seja, elementos que causam discordância entre as pessoas razoáveis, e que são de extrema importância para a idéia democrática de tolerância, ver “Os limites do juízo” (Liberalismo, II, §2). 31 Como a intenção de Rawls é elaborar uma teoria ideal, ele evita uma definição demasiadamente fechada de doutrina abrangente: “Essa definição de doutrinas abrangentes e razoáveis é deliberadamente vaga. Evitamos excluir doutrinas como não-razoáveis, a não ser que tenhamos razões sólidas para tanto, fundadas em aspectos claros do razoável propriamente dito. Caso contrário, nossa definição corre o risco de ser arbitrária e exclusiva. O liberalismo político considera razoáveis muitas das doutrinas conhecidas e tradicionais — religiosas, filosóficas e morais —, mesmo quando não as levamos seriamente em conta em termos pessoais, por pensarmos que dão peso excessivo a alguns valores e não reconhecem a importância de outros. Mas o liberalismo político não precisa de um critério mais rigoroso para seus propósitos”. (Liberalismo, II, §3, p. 103-4). Por outro lado, sua visão é bastante clara quando se trata de limitar doutrinas não-razoáveis: “A existência de doutrinas que negam uma ou mais liberdades democráticas é, por si, um fato permanente da vida, ou assim parece. Isso nos impõe a tarefa prática de contê-las — como se contém uma guerra ou uma doença —, para que não subvertam a justiça política”. (Liberalismo, II, §3, p. 108, nota 19). 78 Essa concepção de convivência entre doutrinas razoáveis tem por objetivo criar a possibilidade de existência de uma base pública de justificação, através da qual os cidadãos, embora com suas concepções particulares, possam chegar a um acordo sobre questões políticas fundamentais. Portanto, outro fator essencial para garantir uma base pública de justificação é o que Rawls chama de “condição de publicidade”, com seus três níveis. O primeiro diz respeito ao momento em que “a sociedade é efetivamente regulada por princípios públicos de justiça: os cidadãos aceitam e sabem que os outros também aceitam esses princípios, e essa percepção, por sua vez, é publicamente reconhecida.”32 O nível seguinte diz respeito às crenças gerais, são as visões públicas do que é uma sociedade bem-ordenada. E o terceiro nível diz respeito à justificação plena da concepção pública de justiça, presente na cultura pública, no sistema jurídico, nas instituições políticas e nas tradições históricas. Assim, é importante que uma estrutura básica apoiada em sanções coercitivas (Estado como detentor do monopólio da força) satisfaça as condições do que Rawls chama de “publicidade plena”, já que as instituições da estrutura básica devem resistir ao exame público e os cidadãos devem ter claro para si mesmos o que essas instituições exigem e o que podem exigir delas — instituições essas que são, afinal, responsáveis por moldar as concepções dos cidadãos sobre si mesmos, seu caráter e seus fins. 2.3.1. O construtivismo O aspecto kantiano da obra de Rawls apresenta, além da distinção entre razoável e racional, um outro elemento: a concepção de que os princípios de justiça política devem ser 32 Liberalismo, II, §4, p. 110. 79 o resultado de um procedimento de construção. Esse processo construtivista tem por objetivo atingir uma concepção adequada de objetividade e é a estrutura que gera o conteúdo (os princípios de justiça): “Nesse procedimento, modelado de acordo com a posição original, os agentes racionais, enquanto representantes dos cidadãos e sujeitos a condições razoáveis, selecionam os princípios públicos de justiça que devem regular a estrutura básica da sociedade. Esse procedimento, assim conjeturamos, sintetiza todos os requisitos relevantes da razão prática e mostra como os princípios de justiça resultam dos princípios da razão prática conjugados às concepções de sociedade e pessoa, também elas idéias da razão prática.”33 Fazendo uma distinção entre o construtivismo político e o realismo moral representado pelo intuicionismo racional por um lado, e o construtivismo moral kantiano, por outro lado,34 Rawls apresenta as quatro características principais do construtivismo político. Primeiro, como já foi mencionado, o procedimento de construção é a estrutura que elabora os princípios de justiça através da seleção feita pelas partes submetidas a condições razoáveis. Segundo, o procedimento de construção está baseado na razão prática, e não na teórica, ou seja, está baseado na razão que — seguindo a definição de Kant — produz objetos de acordo com a concepção desses objetos, como a concepção de um regime constitucional justo como sendo o objetivo da atividade política; enquanto a razão teórica está relacionada somente ao conhecimento dos objetos. Terceiro, o construtivismo político recorre a uma concepção completa de pessoa e de sociedade, de acordo com o já exposto, ou seja, as pessoas (com suas capacidades 33 34 Liberalismo, III, p. 134. Cf. Liberalismo, III, §§ 1 e 2. 80 morais e concepções do bem) são vistas como membros de uma sociedade política que, por sua vez, é vista como um sistema eqüitativo de cooperação social. Por fim, em quarto lugar, o construtivismo não usa o conceito de verdade, mas sim o de razoabilidade, de acordo com as características dessa concepção já vistas por nós. Nesse sentido, o construtivismo político não gera nenhuma ordem de valores morais, pois está preocupado somente com princípios de justiça. Essa e todas as demais características estão relacionadas com a idéia de que os princípios de justiça devem estar de acordo com a cooperação social baseada não em alguma verdade suprema ou autoridade externa, como, por exemplo, a autoridade divina, mas em um acordo entre os próprios cidadãos sobre o que promoverá o benefício mútuo. Em suma, é uma visão doutrinal autônoma porque não depende de exigências morais — exteriores ou não (caso da heteronomia doutrinal). Semelhantemente à concepção construtivista na matemática, o construtivismo político adota a idéia de avaliação de todos os critérios relevantes para a escolha do raciocínio correto, só assim é possível articular uma concepção política de justiça que possa ser aceitável para todas as doutrinas abrangentes e razoáveis de uma sociedade. 2.3.2. As características do consenso sobreposto Analisados todos esses elementos fundamentais, podemos passar agora para uma caracterização mais detalhada da idéia de consenso sobreposto com o objetivo de seguir a argumentação rawlsiana sobre a possibilidade de um tal consenso garantir a estabilidade e unidade de uma sociedade democrática bem-ordenada — que não podem ser garantidas através de uma doutrina abrangente. Trata-se, portanto, de saber como o liberalismo político é possível, o que significa questionar como é possível que valores políticos possam 81 superar o conflito entre os valores não-políticos, e também o conflito desses valores com o próprio valor político. O pressuposto de Rawls é que os cidadãos possuem a capacidade de fazer uma distinção clara entre sua visão política e sua visão abrangente, cabendo a eles próprios a tarefa de relacionar esses dois âmbitos. 35 Assim, uma sociedade será estável se cumprir duas condições, relacionadas, respectivamente, com as duas questões principais do liberalismo político (estabelecer uma concepção de justiça e lidar com o fato do pluralismo razoável): “A estabilidade envolve duas questões: a primeira é saber se as pessoas que crescem em meio a instituições justas (como a concepção política as define) adquirem um senso de justiça suficiente, de modo a geralmente agirem de acordo com essas instituições. A segunda é saber se, em vista dos fatos gerais que caracterizam a cultura política e pública de uma democracia — e, em particular, o fato do pluralismo razoável —, a concepção política pode ser o foco de um consenso sobreposto. Pressuponho que esse consenso consista em doutrinas abrangentes e razoáveis que, em uma estrutura básica justa (como a concepção política a define), provavelmente persistirão e conquistarão adeptos no decorrer do tempo. Ambas as questões requerem uma resposta em separado. A primeira é respondida pela exposição da psicologia moral, de acordo com a qual os cidadãos de uma sociedade bem-ordenada adquirem um senso de justiça normalmente suficiente, de tal modo que agem de acordo com seus arranjos justos. A segunda é respondida pela idéia de um consenso sobreposto e pelo enfrentamento das várias dificuldades geradas por ele.”36 Em ambos os casos, será preciso recorrer à idéia de psicologia moral, já que se trata de conquistar o apoio de cada cidadão. Uma das importantes características destacadas por Rawls para que se entenda exatamente em que consiste um consenso sobreposto é diferenciá-lo de um modus vivendi, 35 Jeremy Waldron, no artigo “Disagreements about justice” (The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 78-91), defende a tese de que é preciso especificar melhor a distinção entre desacordo sobre o bem e desacordo sobre a justiça, ou seja, sobre concepções de justiça. Waldron tenta mostrar que Rawls não leva em consideração esse último desacordo de uma forma adequada com a política e o processo constitucional de nossas sociedades. 36 Liberalismo, IV, §2, p. 187. 82 expressão utilizada para descrever um tratado entre dois Estados em conflito. O acordo só é possível porque se chega a um equilíbrio de interesses que seja vantajoso para ambos. Essa estabilidade será quebrada se um Estado, ou ambos, pressionarem no sentido de perseguir seus interesses particulares. Portanto, o modus vivendi é uma situação de aparente estabilidade, baseada em condições que não fornecem uma justificação satisfatória para a tolerância. Como afirma Samuel Scheffler, “... uma defesa da tolerância que se baseia inteiramente em fundamentos pragmáticos parece incapaz de dar conta do apelo moral da idéia de tolerância e, de qualquer forma, mantém a sua força apenas enquanto o balanço necessário de poder na sociedade é preservado. Se um grupo ganha força suficiente de modo que uma política de intolerância possa parecer tentadora, o argumento pragmático não fornece razões para resistir à tentação.”37 A função do consenso sobreposto é justamente diferenciar-se desse modus vivendi. Para isso, o objetivo é que o acordo sobre os princípios políticos fundamentais venha de cada uma das próprias visões abrangentes. Esse fato, juntamente com a idéia de uma concepção política independente e que não contraria nenhuma doutrina abrangente, faz com que o consenso sobreposto seja mantido mesmo que alguma doutrina abrangente ganhe mais força na sociedade, diferentemente do que ocorre com um simples modus vivendi. O mérito do consenso sobreposto seria, portanto, combinar as vantagens da situação de equilíbrio de um modus vivendi (a estabilidade) com as de uma concepção pluralista de valor,38 mas evitando as falhas de ambas (precariedade da estabilidade e falta de fundamentação para a tolerância). Isso é feito através de uma combinação do 37 Scheffler, Samuel. “The Appeal of Political Liberalism”, The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 95. 38 Uma concepção pluralista de valor pode ser um nome dado às teorias que afirmam que o que tem valor para as pessoas é algo irredutivelmente heterogêneo e, portanto, só resta tolerar os mais diversos modos de vida. É um tipo de teoria que, portanto, não oferece fundamentos mais profundos para a idéia de tolerância. 83 reconhecimento do desacordo e da diversidade presentes na sociedade e da tentativa de evitar o conflito com qualquer argumentação moral controversa. Rawls procura fundamentar sua argumentação somente nas razões morais que os cidadãos possuem e que sustentam a sociedade liberal. Uma segunda característica importante do consenso sobreposto é que ele não defende nem nega qualquer doutrina abrangente. A questão sobre a verdade das doutrinas abrangentes não pode ser objeto do consenso sobreposto. Só dessa forma é possível fazer com que todos os cidadãos aceitem uma concepção política de justiça e, a parir de suas próprias visões filosóficas, religiosas e morais, apóiem essa concepção. Sem isso, as controvérsias seriam inevitáveis, e o consenso, impossível. Evidentemente, essa concepção de Rawls é o aspecto mais problemático e de difícil aceitação de todo o seu liberalismo político. Rawls apresenta quatro exemplos de tipos de situações que poderiam levar a um consenso sobreposto. O primeiro seria o caso de adeptos de uma doutrina religiosa que aceitariam o consenso porque defendem a livre expressão da fé, o que é garantido pelas liberdades fundamentais de um regime constitucional em uma sociedade regida pelos dois princípios de justiça. O segundo exemplo seria o de defensores de doutrinas liberais abrangentes como as de Kant e de Stuart Mill; essas pessoas chegariam ao consenso porque ele não contraria nenhuma de suas visões abrangentes particulares. Uma das insistências de Rawls, portanto, é em diferenciar seu liberalismo político desses tipos de liberalismos abrangentes. O terceiro exemplo seria, na verdade, o mais freqüente em sociedades capitalistas com uma certa tradição democrática: pessoas que não necessariamente possuem uma visão abrangente unificada, somente crenças sobre concepções de justiça, juntamente com outros valores não políticos. Para Rawls, neste caso não seria difícil chegar a um consenso sobreposto. O quarto exemplo é o mais 84 problemático: que adeptos de teorias utilitaristas aceitariam o consenso sobreposto. Ora, toda a argumentação de Rawls sobre os dois princípios de justiça tem por objetivo ser uma alternativa à teoria utilitarista, como já vimos estar bastante claro sobretudo em Teoria. Como, então, adeptos do utilitarismo poderiam endossar um consenso sobreposto sobre os princípios da justiça como eqüidade? Claro que a resposta de Rawls, até mesmo já antecipada em Teoria, é a de que em condições sociais normais até mesmo um utilitarista concordaria que os princípios de justiça seriam uma aproximação mais adequada do princípio da utilidade. Mas essa resposta é satisfatória? É satisfatória para esse e também para os demais casos de doutrinas abrangentes? E até que ponto a aceitação do consenso sobreposto não força em direção a um enfraquecimento das doutrinas abrangentes? Talvez uma resposta não possa ser dada especificamente para essas questões, mas sim uma resposta em direção à outra forma pela qual um consenso sobreposto pode ser alcançado. E essa resposta está justamente no terceiro exemplo mencionado logo acima: que o comum em sociedades liberais que já internalizaram seus valores fundamentais é que os cidadãos não sejam adeptos de doutrinas abrangentes totalmente articuladas, e sim que defendam valores e convicções que variam em graus de generalidade. Isso remeteria para a idéia de que um consenso sobreposto precisa ser compreendido como consenso entre cidadãos e não entre adeptos de determinadas teorias abrangentes. Essa interpretação estaria de acordo com a concepção rawlsiana de cidadão e de pessoa e das visões que esses cidadãos precisam ter sobre a sociedade onde vivem. Outro aspecto controverso é até que ponto os cidadãos que aceitam um consenso sobreposto o vêem como uma concepção de fato política, ou seja, uma concepção que sustenta a si mesma — portanto, não derivada de nenhuma doutrina abrangente — e é a 85 formulação de idéias implícitas na cultura política pública de uma sociedade. Como Samuel Scheffler explica, trata-se de uma questão de nível de exigência: “... pareceria insensato fazer disso [aceitar o consenso sobreposto como uma concepção política] um requisito para participar de um consenso sobreposto. Pois em quanto mais coisas as pessoas tenham que acreditar de forma a serem incluídas em tal consenso, mais difícil será para um consenso ser realmente alcançado. Em outras palavras, se a participação no consenso requer a afirmação não apenas de um conjunto particular de princípios de justiça, mas também de certas “metateses” [metatheses] sobre o status desses princípios, então, mantendo as outras coisas, se esperaria que o consenso incluísse menos pessoas.”39 Podemos considerar que uma possível resposta para esse problema estaria na idéia de razão pública e no modo pela qual ela funciona de modo a dar apoio a uma idéia de consenso sobreposto que seja compreendido como exclusivamente político. Veremos logo em seguida que a distinção feita por Rawls entre visão inclusiva e visão exclusiva de razão pública pode ajudar a esclarecer esse ponto. Por fim, Rawls apresenta uma exposição do modo pelo qual um consenso sobreposto se forma. A idéia é baseada em parte numa concepção que toma a história como exemplo: num primeiro estágio, há um consenso constitucional sobre os princípios liberais de justiça, inicialmente aceitos apenas como um modus vivendi. Por serem princípios adotados na constituição, de alguma forma os cidadãos alterarão suas doutrinas abrangentes caso elas sejam contrárias a esses princípios liberais. A partir de então, alguns passos são dados em direção ao consenso sobreposto. Primeiramente, os grupos políticos, de uma forma ou de outra, são forçados a participar da discussão pública. Já que inevitavelmente haverá confrontos com outros grupos que não apóiam a mesma doutrina abrangente, isso implica que é necessário elevar a discussão para 39 Scheffler, Samuel. “The Appeal of Political Liberalism”, The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 103. 86 o âmbito de concepções políticas de justiça mais amplas que possam ser justificadas publicamente. Logo em seguida, surgem reivindicações relacionadas à extensão do consenso, já que é preciso garantir que haja um certo nível mínimo de bem-estar material e social que torne os cidadãos capazes de participar da sociedade como iguais. A idéia geral de Rawls é a de que, ao longo do tempo, a partir de um modus vivendi instável, passando por um consenso constitucional em direção, finalmente, a um consenso sobreposto, os cidadãos ganham confiança uns nos outros e em todo o processo. Nesse sentido, passam a ter respeito pelos limites da razão pública. Só assim é possível garantir uma harmonia entre a concepção política e as visões abrangentes, conjuntamente com o reconhecimento público das principais virtudes e valores políticos. 2.4. A prioridade do justo sobre o bem Outro aspecto essencial para o liberalismo político é compreender os motivos e as conseqüências da afirmação de que, na teoria da justiça como eqüidade, o justo tem prioridade sobre o bem. Trata-se novamente de tornar claros os limites entre a concepção política de justiça, restrita à estrutura básica da sociedade, e as diversas doutrinas abrangentes — cada uma com significados próprios do que seja o bem — presentes na sociedade: “O significado específico da prioridade do justo é o de que as concepções abrangentes do bem são aceitáveis, ou pode-se procurar realizá-las na sociedade, apenas quando sua realização está em conformidade com a concepção política de justiça.”40 40 Liberalismo, V, §1, p. 223, nota 2. 87 Rawls cita cinco idéias de bem que são encontradas na justiça como eqüidade: 1) o bem como racionalidade; 2) os bens primários; 3) o bem enquanto parte de doutrinas abrangentes; 4) as virtudes políticas; 5) o bem numa sociedade bem-ordenada. Apenas faço alguns comentários sobre as idéias que ilustram de forma mais esclarecedora a distinção entre a concepção política de justiça e as doutrinas abrangentes. Uma importante idéia de bem que precisa ser levada em consideração é a de bens primários, que são escolhidos através de um entendimento político sobre o que deveria ser publicamente reconhecido como as necessidades básicas dos cidadãos. O objetivo é chegar a uma lista de bens primários que garanta que os cidadãos possam realizar seus projetos racionais, ou seja, suas idéias do que seja o bem racional (primeiro tipo de bem citado acima). Baseado em comparações interpessoais e levando em consideração o fato do pluralismo razoável, Rawls propõe as seguintes categorias de bens primários:41 “a. os direitos e liberdades fundamentais, que também constituem uma lista; b. liberdade de movimento e livre escolha de ocupação num contexto de oportunidades diversificadas; c. poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica; d. renda e riqueza; e. as bases sociais do auto-respeito.”42 Assim, essa idéia de bens razoáveis é uma concepção política que tem como objetivo atender à idéia de bem como racionalidade. Os bens primários especificam as necessidades dos cidadãos em relação às questões de justiça política. 41 Rawls chama atenção (Liberalismo, V, §3, p. 231-4) para as várias objeções levantadas sobre a questão dos bens primários (idéia já exposta em Teoria). Essas objeções dizem respeito à adequação dos bens primários à diversidade de capacidades morais, intelectuais, físicas (deficiências), à diversidade de concepções de bem, de gosto, de preferência, etc. Refutando essas objeções, digamos assim, contingentes, fica claro que Rawls está interessado somente numa formulação ideal da idéia dos bens primários. 42 Liberalismo, V, §3, p. 228. 88 Outro importante aspecto que precisa ser destacado são as observações de Rawls sobre a questão da neutralidade: “Historicamente, um tema comum do pensamento liberal é o de que o Estado não deve favorecer nenhuma doutrina abrangente, nem a concepção do bem associada a cada uma delas. Mas um tema igualmente comum de crítica ao liberalismo é o de que este não consegue pôr essa idéia em prática e, na verdade, tende arbitrariamente em favor de uma forma ou outra de individualismo. Como observei no início, pode parecer que a afirmação da prioridade do justo deixa a justiça como eqüidade (enquanto uma forma de liberalismo político) vulnerável a uma objeção semelhante.”43 Essa posição do liberalismo leva à necessidade de especificar em que sentidos a teoria da justiça como eqüidade pode ser chamada de neutra. Rawls apresenta três sentidos para o termo neutralidade: 1) neutralidade procedimental; 2) neutralidade de objetivos; 3) neutralidade de influência. A neutralidade procedimental seria aquela pressuposta num procedimento que não recorreria a qualquer valor moral. Rawls afirma que a justiça como eqüidade não é neutra no sentido procedimental. Isso ocorre porque ela recorre, sim, a princípios de justiça que são substantivos e a concepções determinadas de pessoa e de sociedade. Quanto à neutralidade de objetivos, Rawls enfatiza que a justiça como eqüidade só é neutra em relação aos objetivos se isso significar não-interferência do Estado para promover ou favorecer qualquer doutrina abrangente ou os que a seguem. Assim, não há neutralidade de objetivo nem no sentido de promover qualquer doutrina abrangente (somente as doutrinas que respeitam os princípios de justiça podem florescer), nem no sentido de não exercer certa influência sobre doutrinas abrangentes que, afinal, devem seguir os princípios da justiça: 43 Liberalismo, V, §5, p. 238. 89 “...podemos distinguir a neutralidade procedimental da neutralidade de objetivo; mas esta última não deve ser confundida com neutralidade de efeito ou de influência. Enquanto uma concepção política voltada para a estrutura básica, a justiça como eqüidade, considerada em seu todo, procura oferecer um terreno comum como objeto de um consenso sobreposto. E também espera satisfazer a neutralidade de objetivo, a fim de que as instituições básicas e a política pública não sejam planejadas para favorecer qualquer doutrina abrangente específica. O liberalismo político deixa de lado a neutralidade de efeito ou de influência como algo impraticável, e, como essa idéia é sugerida muito fortemente pelo próprio termo “neutralidade”, tem-se aí um motivo para evitá-lo. Embora o liberalismo político procure um terreno comum e seja neutro quanto ao objetivo, é importante enfatizar que, apesar disso, pode afirmar a superioridade de certas formas de caráter moral e encorajar certas virtudes morais. Assim sendo, a justiça como eqüidade inclui uma definição de certas virtudes políticas — as virtudes da cooperação social eqüitativa, tais como as virtudes da civilidade e da tolerância, da razoabilidade e do senso de justiça. O ponto crucial é que admitir essas virtudes no âmbito de uma concepção política não leva ao Estado perfeccionista de uma doutrina abrangente.”44 A idéia de Rawls, portanto, é a de que o Estado deve procurar somente seguir os princípios mais razoáveis para garantir a cooperação social entre cidadãos livres e iguais. Isso pode influenciar certas doutrinas abrangentes? Sim, mas este fato, para Rawls, não pode ser evitado. Resta saber, então, se essa influência inevitável sobre doutrinas abrangentes e modos de vida ligados a elas é justa. Para Rawls, essa influência parece ser justa, dado que os dois casos em que há conflitos são resultado de doutrinas abrangentes que, devido a suas reivindicações, não podem encontrar espaço numa sociedade democrática: 1) doutrinas abrangentes que não concordam com os princípios de justiça (a favor da escravidão, por exemplo) e 2) doutrinas abrangentes que, embora permissíveis, não conquistam adeptos justamente por pregar idéias como a de controle do Estado ou a intolerância. Recorrendo a Isaiah Berlin,45 Rawls afirma que é impossível uma sociedade 44 45 Liberalismo, V, §5, p. 242. Cf. Liberalismo, V, §6, p. 245, nota 32. 90 que comporte absolutamente todas as visões de mundo, pois isso levaria ao caos. Alguma perda sempre haverá. Por fim, a última idéia de bem — o bem da sociedade política — esclarece de que modo Rawls lida com as críticas de que seu liberalismo político não consegue ultrapassar a concepção liberal clássica de “sociedade de fins individuais” ou “sociedade privada”, na qual o que importa é somente a busca individual dos interesses de cada cidadão, ou seja, onde não haveria uma “ideal de comunidade”. Para Rawls, se por “ideal de comunidade” se entender um ideal social determinado por uma doutrina abrangente, de fato não há espaço para esse ideal na sociedade proposta pelo seu liberalismo político. A única unidade social possível é aquela derivada de um consenso sobreposto relativo a uma concepção política de justiça para um regime constitucional. Não seria possível desejar mais do que esse consenso sobreposto a respeito das questões políticas fundamentais:46 “A partir dessas suposições, podemos dizer que a sociedade bemordenada da justiça como eqüidade é um bem em dois sentidos. O primeiro é ser um bem para as pessoas individualmente, e por duas razões. Uma delas é que o exercício das duas capacidades morais é percebido como um bem. Trata-se de uma conseqüência da psicologia moral utilizada pela justiça como eqüidade. (...) Uma segunda razão para dizermos que a sociedade política é um bem para os cidadãos é que lhes garante o bem da justiça e das bases sociais de seu auto-respeito e do respeito mútuo. Assim sendo, ao assegurar iguais direitos e liberdades fundamentais, igualdade eqüitativa de oportunidades e assim por diante, a sociedade política garante os elementos essenciais do reconhecimento público das pessoas como cidadãos livres e iguais. Ao garantir essas coisas, a sociedade política satisfaz as necessidades fundamentais dos cidadãos.”47 46 Para complementar as explicações sobre o bem da sociedade política, ver as importantes considerações feitas por Rawls sobre o “republicanismo clássico” e o “humanismo cívico” em Liberalismo, V, §7, p. 253-5. 47 Liberalismo, V, §7, p. 251-2. 91 2.5. A idéia de razão pública O último elemento a destacar no liberalismo político de Rawls é a importante idéia de razão pública: “A razão pública é característica de um povo democrático: é a razão de seus cidadãos, daqueles que compartilham o status da cidadania igual. O objeto dessa razão é o bem público: aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objetivos e fins a que devem servir. Portanto, a razão pública é pública em três sentidos: enquanto a razão dos cidadãos como tais, é a razão do público; seu objetivo é o bem do público e as questões de justiça fundamental; e sua natureza e conceito são públicos, sendo determinados pelos ideais e princípios expressos pela concepção de justiça política da sociedade e conduzidos à vista de todos sobre essa base.”48 Para Rawls, portanto, a razão pública está restrita aos “elementos constitucionais essenciais”49 e às questões de justiça básica, mas não a todas questões políticas, mesmo que sejam questões políticas públicas. Obviamente, também não se aplica às deliberações pessoais ou de grupos (igrejas, universidades, sociedades científicas, grupos profissionais etc., que possuem razões não públicas50) sobre questões políticas. O objetivo é evitar controvérsias, tanto que Rawls exclui até mesmo o segundo princípio de justiça — igualdade eqüitativa de oportunidades e o princípio da diferença — dos elementos constitucionais essenciais por ele não ser uma questão tão pacífica quanto o primeiro princípio que garante as liberdades básicas. 48 Liberalismo, VI, p. 261-2. Os elementos constitucionais essenciais são de dois tipos: “a. os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do Estado e do processo político: as prerrogativas do legislativo, do executivo e do judiciário; o alcance da regra da maioria; b. os direitos e liberdades fundamentais e iguais de cidadania que as maiorias legislativas devem respeitar, tais como o direito ao voto e à participação na política, a liberdade de consciência, a liberdade de pensamento e de associação, assim como as garantias do império da lei.” (Liberalismo, VI, §5, p. 277). 50 Cf. Liberalismo, VI, §3, p. 269-72). 49 92 Com isso, Rawls quer deixar claro que os limites da razão pública devem ser respeitados em qualquer discussão sobre questões políticas fundamentais, ou seja, não se pode recorrer a uma concepção de verdade para resolver problemas políticos fundamentais. Assim, os limites da razão pública são especificados precisamente: além de se voltar exclusivamente para as questões políticas fundamentais, a razão pública deve se aplicar não somente aos fóruns oficiais e àqueles que os ocupam, mas também aos cidadãos em geral. Sem isso, a idéia de cooperação social ruiria e não haveria sentido em pensar os cidadãos como detentores de igual poder político coercitivo: “Enquanto razoáveis e racionais, e sabendo-se que endossam uma grande diversidade de doutrinas religiosas e filosóficas razoáveis, os cidadãos devem estar dispostos a explicar a base de suas ações uns para os outros em termos que cada qual razoavelmente espera que outros possam aceitar, por serem coerentes com a liberdade e igualdade dos cidadãos. Procurar satisfazer essa condição é uma das tarefas que esse ideal de política democrática exige de nós. Entender como se comportar enquanto cidadão democrático inclui entender um ideal de razão pública.”51 Obviamente, Rawls não desconsidera os problemas mais comuns enfrentados pela razão pública, mostrando, assim, que ela não é um conceito “engessado”. É preciso levar em consideração que às vezes não será possível chegar a um acordo muito grande na razão pública, mas isso não pode significar um motivo para abandoná-la. A idéia central de Rawls, aqui, é que não é necessário que todos aceitem os mesmos princípios de justiça, mas que as discussões sejam conduzidas em termos de idéias sobre a concepção política que todos aceitam, ou seja, através da qual possam justificar seu voto uns aos outros através de argumentos razoáveis. Nesse sentido, estabelece-se uma clara diferença entre o que a razão pública e uma doutrina abrangente dariam como resposta para uma determinada questão política. Apenas o que se espera é que a resposta da razão pública esteja no que Rawls 51 Liberalismo, VI, §2, p. 267. 93 chama de “margem de segurança permitida por cada uma das doutrinas abrangentes e razoáveis que constituem um consenso sobreposto”.52 Evidentemente, essa margem tem que ser compreendida no sentido de que é preciso que as doutrinas abrangentes estejam de acordo com a concepção política que é, afinal, uma expressão razoável das idéias políticas fundamentais estabelecidas por cidadãos livres e iguais. Além disso, Rawls estabelece a distinção entre “visão exclusiva” e “visão inclusiva” da razão pública. A primeira afirma que as razões de doutrinas abrangentes não devem ser introduzidas na razão pública; a segunda afirma que é permitido aos cidadãos apresentar os valores políticos de doutrinas abrangentes em fóruns públicos, desde que isso sirva pra fortalecer o próprio ideal de razão pública. A opinião de Rawls sobre esse ponto mostra como sua concepção de razão pública é “flexível”, como ele mesmo afirma: “A questão é, nesse caso, saber se devemos entender o ideal de razão pública de acordo com a visão exclusiva ou de acordo com a visão inclusiva. A resposta depende de qual das duas visões incentiva mais os cidadãos a respeitarem o ideal da razão pública, assegurando suas condições sociais ao longo prazo numa sociedade bem-ordenada. Aceitando-se isso, a visão inclusiva parece ser a melhor, pois em condições políticas e sociais diferentes, com diferentes famílias de doutrina e prática, o ideal deve certamente ser promovido e realizado de formas diferentes, às vezes pelo que parece ser uma visão exclusiva, outras vezes pelo que parece ser uma visão inclusiva. Aquelas condições determinam, portanto, a melhor maneira de atingir o ideal, tanto a curto quanto a longo prazo. A visão inclusiva admite essa variação e é mais flexível, quando isso é necessário para promover o ideal de razão pública.”53 Assim, a visão exclusiva seria mais adequada a uma sociedade bem-ordenada, enquanto a inclusiva, a uma sociedade mais ou menos bem-ordenada. O exemplo que Rawls dá é o do complexo conflito presente em várias discussões sobre o 52 53 Liberalismo, VI, §7, p. 297. Liberalismo, VI, §8, p. 299. 94 multiculturalismo, a respeito da igualdade eqüitativa de oportunidades para a educação, sobretudo em relação à intervenção do Estado em escolas que pertencem a igrejas. A alternativa proposta é que os argumentos das doutrinas abrangentes sejam apresentados no fórum público, de modo a mostrar a todos quais são os reais pressupostos da discussão e, assim, mostrar que, embora conflitantes, as doutrinas abrangentes não estão em um mero modus vivendi, ou seja, seus defensores querem respeitar um consenso sobreposto e realizar a discussão em termos de razão pública.54 De modo semelhante, Rawls cita o exemplo dos protestos contra a escravidão antes da Guerra Civil Americana. Vários dos abolicionistas defendiam o fim da escravidão com argumentos religiosos, sobretudo o da igualdade entre os homens perante deus. Nesse caso, os abolicionistas poderiam sem problemas apoiar os valores estritamente políticos da razão pública — valores, portanto, não religiosos:55 “Isso aponta para o fato de que possivelmente, para que uma sociedade bem-ordenada, na qual a discussão pública consiste principalmente no apelo a valores políticos, venha a existir, as condições históricas prévias podem exigir que razões abrangentes sejam invocadas para fortalecer esses valores. Isso parece mais provável quando só há algumas poucas doutrinas abrangentes que, apesar de serem objeto de uma crença intensa, são similares em certos aspectos, e quando a diversidade das visões características dos tempos recentes ainda não se desenvolveu. A essas condições acrescente-se uma outra: a de que a idéia de razão pública, com seu dever de civilidade, ainda não tenha se expressado na cultura pública e permaneça desconhecida.”56 54 Para uma discussão bastante completa sobre razão pública, com uma visão crítica sobre a possibilidade de acordo sobre os elementos constitucionais essenciais, sobre a natureza e o problema dos princípios essenciais e sobre a dificuldade para estabelecer distinção entre elementos essenciais e não-essenciais, ver Greenawalt, Kent. “On Public Reason”, em The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 247-267. 55 Evidentemente, esse exemplo trata de uma possibilidade, não de um fato histórico, mesmo porque, como o próprio Rawls reconhece (Liberalismo, VI, §8, p. 302), normalmente as pessoas não fazem uma distinção clara entre razões abrangentes e razões públicas. 56 Liberalismo, VI, §8, p. 303, nota 41. 95 CONCLUSÃO Como conclusão, gostaria de destacar alguns tópicos tratados ao longo do texto com o objetivo de deixar mais explícito meu percurso de análise da obra de Rawls, já que procurei seguir o desenvolvimento e desdobramentos de seus textos desde 1951 até 1993. Obviamente, essa escolha de percurso de análise voltada especificamente para alguns tópicos e preocupada em encontrar linhas argumentativas ao longo dos textos implica necessariamente uma limitação dos temas abordados. Como já mencionei, a obra de Rawls tornou-se fundamental para qualquer discussão sobre filosofia política a partir dos anos 1970 até a atualidade. Conseqüentemente, são mais de 30 anos de comentários, artigos e livros discutindo a obra do filósofo, implicações de sua teoria, sem contar as obras que questionam sua visão, apontando ou não alternativas. Assim, dentro dos limites expositivos de uma dissertação, procurei adotar alguns eixos de análise da obra de Rawls para mostrar — como diz o subtítulo da dissertação — que a teoria rawlsiana evolui “em direção a um liberalismo político para uma sociedade democrática bem-ordenada”. O primeiro aspecto destacado — e que acaba perpassando toda a obra de Rawls — é a evolução do seu procedimentalismo (1.1.1). Com o artigo “Outline of a Decision Procedure for Ethics” (1951), Rawls apresenta um método de avaliar juízos e juízes morais que pretende ser o mais imparcial possível. Como vimos, ao longo dos artigos seguintes ocorrem restrições em dois sentidos: 1) um abandono das decisões morais em direção a uma abordagem limitada somente aos princípios políticos e 2) uma restrição cada vez maior em relação às condições de imparcialidade necessárias às partes contratantes. Como tentei mostrar, esses dois tipos de restrições acabam por ser a origem da elaboração da original teoria rawlsiana de contrato social, na qual as partes contratantes estão sob um véu de 96 ignorância que as priva de qualquer informação sobre sua condição particular dentro da sociedade. Essa idéia — bastante criticada devido às implicações procedimentais e metodológicas — permanecerá como o centro da teoria da justiça como eqüidade até os últimos textos de Rawls. O que muda, entretanto, é a ênfase no aspecto distributivo em Teoria para a ênfase no aspecto de tolerância em Liberalismo. Na primeira obra, Rawls é bastante claro ao especificar que está interessado em propor uma solução para o problema liberal clássico da compatibilidade entre igualdade e liberdade. Isso está relacionado tanto com a distribuição de direitos e liberdades fundamentais, quanto com a distribuição dos benefícios da cooperação social relativos à renda, riquezas e oportunidades. Esse segundo aspecto distributivo — relacionado ao segundo princípio de justiça —, como fica bastante destacado, exerce um papel determinante no equilíbrio social. Este, portanto, é o primeiro objetivo da teoria da justiça como eqüidade como um todo: tratar da questão distributiva. Com a percepção de que a Terceira Parte de Teoria apresentava inconsistências não em relação aos princípios de justiça que regulam a estrutura básica da sociedade, mas em relação à aceitação desses princípios pelos participantes do contrato social — sobretudo no que diz respeito às interferências dessas concepções de justiça nos planos de vida individuais dos cidadãos —, Rawls passa a se preocupar com o problema da diversidade de doutrinas morais, religiosas e filosóficas presentes em qualquer sociedade democrática. Assim, o segundo objetivo da teoria da justiça como eqüidade como um todo é tratar da questão do pluralismo de visões de mundo dos cidadãos de sociedades democráticas. Rawls tenta deixar essa dupla tarefa de sua teoria bem clara, o que torna difícil, mesmo para os críticos que apresentam argumentos mais contundentes, apontar para um 97 enfraquecimento da teoria rawlsiana logo que as modificações em Teoria começaram a ocorrer. Os pressupostos fundamentais de Teoria continuam válidos em Liberalismo. Portanto, o que pode ser criticado pelos defensores de fundamentos liberais mais restritos e limitados (ou seja, menos sensíveis às reivindicações multiculturais, religiosas e étnicas) é a adequação dos novos pressupostos da obra de 1993 com os da obra de 1971, mas não se pode dizer que há um abandono dos fundamentos já expostos em Teoria. Da mesma forma que os pressupostos fundamentais, o aspecto kantiano da teoria da justiça também é mantido. No conhecido §40 de Teoria, Rawls esclarece que sua interpretação de Kant está baseada sobretudo na idéia de autonomia. Isso fica ainda mais claro em Liberalismo quando é desenvolvida a concepção política de pessoa (2.2.2). É, preciso, pois, antes de qualquer julgamento precipitado, compreender em que sentido ocorre a apropriação da teoria kantiana. Como Rawls afirma, “É um erro, na minha opinião, enfatizar o lugar da generalidade e da universalidade na ética de Kant. A afirmação de que os princípios morais são gerais e universais mal constitui uma novidade em sua obra; e, como vimos, essas condições de qualquer modo não nos levam muito longe. É impossível construir uma teoria moral sobre uma base tão exígua, e portanto restringir a discussão da doutrina de Kant a essas noções é reduzi-la a trivialidades. A verdadeira força de sua visão reside noutros pontos.”57 Assim, Rawls adota pressupostos kantianos quando afirma que os princípios devem ser objeto de uma escolha racional, escolha essa feita por homens racionais iguais e livres, agindo autonomamente — o que ele tenta estabelecer através das condições da posição original, na qual a ignorância a respeito da posição social e das habilidades tem por objetivo evitar qualquer tipo de heteronomia. O objetivo é levar realmente a sério a idéia de que os cidadãos só serão livres e terão respeito uns pelos outros quando estabelecerem as 57 Teoria, IV, §40, p. 275. 98 suas próprias leis. Além disso, em Liberalismo fica ainda mais claro que a intenção de Rawls é dar uma interpretação procedimental à idéia kantiana de autonomia. Com essa apropriação de Kant, acredito que fica mais fácil compreender tanto a continuidade e unidade da teoria da justiça como eqüidade, quanto as importantes mudanças em relação ao papel da filosofia política que são conseqüência da obra de Rawls — sobretudo a partir da adoção da teoria kantiana “dentro da estrutura de uma teoria empírica.”58 Por fim, espero ter exposto satisfatoriamente as mudanças — ou redefinições — realizadas por Rawls em sua teoria da justiça. Acredito que elas são importantes não somente para a compreensão da obra de um dos mais importantes filósofos da segunda metade do século passado, como também para ter uma visão mais clara do papel atual e futuro da filosofia e do próprio pensamento político. Creio que uma lição — entre muitas — que Rawls nos deixou é a de que talvez não haja mais propósito em elaborar teorias filosóficas sobre o dever ser. Precisamos nos ater à situação concreta de nossas sociedades para podermos avaliar adequadamente quais são os problemas e suas possíveis soluções. O papel da filosofia política seria, então, o de estabelecer critérios de avaliação para que, através de ações concretas, nos aproximemos mais de ideais de justiça, eqüidade e igualdade. 58 Teoria, IV, §40, p. 281. 99 BIBLIOGRAFIA Obras de John Rawls Rawls, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993. Rawls, John & Habermas, Jürgen. Débat sur la justice politique. Paris: Les Éditions du Cerf, 1997. Rawls, John. Collected Papers (Org. Samuel Freeman). Cambridge: Harvard University Press, 1999. ________. A Theory of Justice (Edição revisada de 1975). Cambridge: Harvard University Press, 1999. ________. Uma Teoria da Justiça. 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