PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A TEORIA POLÍTICA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS:
Em direção a um liberalismo político para uma sociedade democrática bemordenada
Dissertação de Mestrado
Walter Valdevino Oliveira Silva
Orientador:
Prof. Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr.
Porto Alegre
2005
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A teoria política da justiça de John Rawls:
Em direção a um liberalismo político para uma sociedade democrática bemordenada
Dissertação de Mestrado
Walter Valdevino Oliveira Silva
Dissertação para obtenção do título de Mestre em Filosofia (Ética e Filosofia
Política), defendida dia 6 de julho de 2005.
Banca: Prof. Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr. (orientador)
Prof. Dr. Thadeu Weber
Prof. Dr. Luiz Fernando Barzotto
Agência de financiamento: CNPq
Porto Alegre
2005
3
“It does me no injury for my neighbour to say
there are twenty gods, or no god.”
Thomas Jefferson (1743-1826),
Notes on the State of Virginia
4
Em memória de José Valdevino da Silva (1930-2004), meu pai,
a quem devo tudo.
5
Agradecimentos
Gostaria de agradecer ao professor Nythamar de Oliveira pela amizade e
acompanhamento ao longo desse período de dois anos. Seus seminários também tiveram
grande importância tanto para definir melhor meus objetivos na dissertação, quanto para
dar uma visão mais unificada de vários aspectos da filosofia.
Esse período não teria sido tão proveitoso se não fosse a estrutura do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS, que se destaca pela alta produção docente,
realização de alguns dos mais importantes eventos de filosofia do país, realização de
diversos seminários e interação permanente com Departamentos de Filosofia no exterior.
O financiamento através do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) foi essencial.
Por fim, agradeço a todos os amigos que, mais diretamente ou mesmo sem saber,
contribuíram para que eu superasse os momentos difíceis ao longo desse período.
6
ÍNDICE
Siglas Utilizadas....................................................................................................................07
Resumo..................................................................................................................................08
Introdução.............................................................................................................................09
Capítulo 1 — A justiça como eqüidade
1.1. Surgimento da justiça como eqüidade........................................................................19
1.1.1. Método de justificação de ações morais..........................................................19
1.1.2. O contratualismo rawlsiano.............................................................................24
1.1.3. O utilitarismo...................................................................................................31
1.2. A teoria da justiça como eqüidade.............................................................................37
1.2.1. O papel da justiça............................................................................................38
1.2.2. A estrutura básica da sociedade.......................................................................43
1.2.3. Os princípios da justiça...................................................................................46
1.2.4. A questão da liberdade....................................................................................49
1.2.5. A estabilidade de uma sociedade bem-ordenada.............................................51
1.2.6. O senso de justiça............................................................................................55
Capítulo 2 — O liberalismo político
2.1. Principais mudanças...................................................................................................59
2.2. Elementos fundamentais do liberalismo político.......................................................66
2.2.1. Concepção política de justiça..........................................................................68
2.2.2. Concepção política de pessoa..........................................................................70
2.3. A idéia de um consenso sobreposto...........................................................................75
2.3.1. O construtivismo.............................................................................................78
2.3.2. As características do consenso sobreposto......................................................80
2.4. A prioridade do justo sobre o bem.............................................................................86
2.5. A idéia de razão pública.............................................................................................91
Conclusão..............................................................................................................................95
Bibliografia...........................................................................................................................99
7
SIGLAS UTILIZADAS
Liberalismo – Rawls, John. Political Liberalism. New York: Columbia University
Press, 1993. Tradução utilizada: O liberalismo político. São Paulo: Ática,
2000.
Teoria – Rawls, John. A Theory of Justice (Edição revisada de 1975). Cambridge:
Harvard University Press, 1999. Tradução utilizada: Uma Teoria da
Justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000 (4ª ed.).
8
RESUMO
Nos anos que se seguiram à publicação de Uma Teoria da Justiça (1971), a
produção do filósofo americano John Rawls (1921-2002) foi intensa tanto no sentido de
responder às críticas feitas à sua obra, realizando algumas mudanças em sua teoria e
aprofundando a idéia kantiana de sua filosofia moral, bem como, num momento posterior,
no sentido de redefinir a concepção moral da teoria da justiça, modificando-a em direção a
uma concepção estritamente política.
Assim, meu objetivo é expor quais mudanças na teoria da justiça como eqüidade
(justice as fairness) foram feitas, e de que forma foram feitas, durante as décadas de 1970,
1980 e 1990. Para tanto, tomo como tema de análise a questão da redefinição do caráter
moral da teoria da justiça (como tinha sido exposto em Uma Teoria da Justiça) para a
adoção de uma teoria simplesmente política, exposta de modo sistemático em O
Liberalismo Político (1993).
Acredito que, a partir desse tema, é possível ter uma melhor compreensão não
somente de aspectos particulares da teoria rawlsiana, mas principalmente obter uma visão
mais clara de um dos problemas fundamentais das democracias contemporâneas: como
atingir a estabilidade e a unidade de um sistema social em meio ao pluralismo de doutrinas
morais, religiosas e filosóficas que, segundo o próprio Rawls, deve ser uma característica
intrínseca de qualquer sociedade democrática.
9
INTRODUÇÃO
Publicada em 1971, Uma Teoria da Justiça,1 resultado de estudos iniciados cerca de
duas décadas antes,2 rapidamente muda o panorama da teoria moral e política, tornando-se
obra de referência imprescindível em qualquer debate atual sobre questões sociais, justiça,
ética, racionalidade e método filosófico. Durante os anos que se seguem, uma quantidade
imensa de artigos que discutem a obra é publicada. Paralelamente — em parte por causa de
alguns desses artigos, em parte devido às próprias mudanças históricas e à presença cada
vez maior da questão do pluralismo no debate político — Rawls passa a tentar corrigir
inconsistências de sua teoria da justiça como eqüidade. As várias conferências nas quais sua
teoria é reformulada são reunidas e publicadas em forma de livro em 1993, com o título de
O Liberalismo Político.3
Mais do que simplesmente uma evolução teórica isolada, as mudanças da teoria de
Rawls são clara conseqüência das transformações ocorridas na agenda dos debates políticos
contemporâneos, sobretudo nos Estados Unidos da América.
1
Rawls, John. A Theory of Justice (Edição revisada de 1975). Cambridge: Harvard University Press, 1999.
Tradução utilizada: Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000 (4ª ed.). De agora em
diante, citada apenas como Teoria.
2
Os principais artigos publicados por John Ralws antes de 1971 são: "Outline of a Decision Procedure for
Ethics." The Philosophical Review (Abril de 1951), 60(2): 177-197, "Two Concepts of Rules." The
Philosophical Review (Janeiro de 1955), 64(1): 3-32, “Justice as Fairness”, The Philosophical Review, vol.
57 (1958); “Distributive Justice: Some Addenda”, Natural Law Forum, vol. 13 (1968); “Constitutional
Liberty and the Concept of Justice”, Nomos VI: Justice, org., C. J. Friedrich e John Chapman (Nova York,
Atherton Press, 1963); “Distributive Justice”, Philosophy, Politics and Society, Third Series, org. Peter
Laslett e W. G. Runciman (Oxford, Basil Blackwell, 1967); “The Justification o Civil Disobedience”, Civil
Disobedience, org. H. A. Bedau (Nova York, Pegasus, 1969); “The Sense of Justice”, The Philosophy
Review, vol. 62 (1963). Todos esses artigos podem ser encontrados conjuntamente em Rawls, John. Collected
Papers (Org. Samuel Freeman). Cambridge: Harvard University Press, 1999.
3
Rawls, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993. Tradução utilizada: O
liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000. De agora em diante, citado apenas como Liberalismo.
10
Desde a infância em Baltimore — que contava com uma população negra de cerca
de 40%, e também por acompanhar a luta de sua mãe em defesa dos direitos das mulheres
— Rawls toma consciência dos problemas da desigualdade e injustiça social.4 Durante a
década de 1960, período de intensa atividade intelectual, Rawls já estava dando aula na
Universidade de Harvard e presenciou a discussão sobre a Guerra do Vietnam. O
questionamento recaía sobre a validade das decisões de um governo, ou de uma classe
política, que ascendia ao poder devido à riqueza e que acabava por impor seus interesses
particulares nas decisões do governo, como a de ingressar na guerra.
Juntamente com essa intensa discussão política, os anos 1950 e 1960 presenciaram
uma considerável modificação nos debates sobre filosofia política, da qual Teoria pode ser
considerada como uma das obras sintetizadoras. A argumentação em favor dos direitos
passa a ocupar um lugar importante no debate acadêmico, sendo que a apropriação de
algumas idéias marxistas amplia as reivindicações não só por liberdades civis e políticas,
mas também por igual distribuição de renda e riquezas, educação, oportunidade de trabalho,
assistência médica e outras medidas com o objetivo de beneficiar os menos favorecidos.
De acordo com Amy Gutmann, Teoria pode ser vista, ao rejeitar a predominância
dos interesses de classe ou grupos, como uma tentativa de “integração da crítica socialista
na teoria liberal.”5 Isso estaria claro nos dois princípios de justiça, responsáveis pela
ordenação das principais instituições da sociedade, propostos por Rawls: o primeiro
princípio, o da igual liberdade, assegura as liberdades liberais básicas: liberdade de
pensamento, consciência, discurso, reunião, voto universal, de estar livre de ser preso sem
motivo e liberdade de poder concorrer a cargos públicos. Mas ausentes dessa lista estão as
4
Cf.: Richardson, Henry & Weithman, Paul. The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main
Outlines of Rawls's Theory of Justice. New York: Garland Publishing, 1999, p. 3-4.
5
The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 17
11
liberdades de mercado capitalistas: direito de ter propriedade comercial, direito de se
apropriar do excedente de produção, direito de herança, etc. Como as partes contratantes da
teoria da justiça como eqüidade não conhecem sua riqueza e posição social, não sabendo se
são trabalhadores ou proprietários dos meios de produção, escolherão os princípios de
justiça apenas preocupadas com que todos, independente da classe social e da riqueza,
tenham as condições mínimas necessárias que garantam uma vida decente.
Por outro lado, o segundo princípio de justiça justifica somente desigualdades
econômicas e sociais que beneficiam os cidadãos menos favorecidos (princípio da
diferença) e também defende a igualdade eqüitativa de oportunidades e de chances de vida,
independente da renda e da classe social, e não somente a igualdade formal de
oportunidades. A conseqüência deste segundo princípio de justiça é que será necessário, por
exemplo, adotar esquemas de educação compensatória e evitar grandes desigualdades de
riquezas que, como se sabe, são o principal causador de desigualdades políticas e de poder.6
Mesmo assim, embora tentando compatibilizar a crítica socialista com ideais
liberais fundamentais, defendendo uma política mais igualitária do que a lockeana e, em
certo sentido, mais libertária do que o marxismo, Rawls é criticado por ambos os lados:
“Liberais que acreditam na distribuição de acordo com o mercado ou
com o mérito individual (ou ambos) têm criticado Rawls por não
considerar a liberdade de se apropriar dos frutos do próprio trabalho
como estando entre as liberdades básicas. Socialistas que acreditam que
6
Em um interessante trecho sobre as implicações dos dois princípios de justiça, Philippe van Parijs compara a
teoria de Rawls com a de Marx: “Essas reservas não impedem, entretanto, que Rawls seja, sob certos
aspectos, mais ‘igualitarista’ que Marx, por exemplo. Desse modo, o princípio ‘A cada um segundo seu
trabalho’, que, segundo Marx, deve reger a distribuição dos lucros sócio-econômicos no primeiro estágio da
sociedade comunista, tolera as desigualdades ligadas à quantidade, à intensidade e talvez ao grau de
qualificação do trabalho prestado, o que o princípio da diferença não necessariamente legitimaria. E o
mesmo acontece com o princípio ‘A cada um segundo suas necessidades’, que corresponde ao estágio
superior da sociedade comunista, se bem que aqui (...) as desigualdades de lucros sócio-econômicos podem
ser concebidas como não fazendo mais do que compensar as desigualdades preexistentes e, portanto, como
que se increvendo elas mesmas em uma perspectiva igualitarista.” (Fondements d’une théorie de la justice, p.
31).
12
a propriedade capitalista de empresas de larga escala seja uma forma
pós-feudal de governo privado têm criticado Rawls por deixar a escolha
entre propriedade privada e coletiva da indústria de longa escala aberta
à argumentação empírica, ao invés de estabelecê-la sobre fundamentos
morais”.7
Em 1975, Rawls revisa o texto original da primeira edição de Teoria para a
publicação da edição alemã.8 O núcleo central da obra é mantido, mas algumas mudanças
importantes são realizadas. A primeira delas diz respeito à questão da liberdade9 e a
segunda diz respeito à análise dos bens primários, que são as coisas que as pessoas
racionais desejam, independentemente de quaisquer outras coisas que desejam.10
Além dessas mudanças, resultantes de críticas feitas logo em seguida da publicação
de Teoria, na segunda metade da década de 1970 Rawls começa a perceber inconsistências
na Terceira Parte de sua obra, especificamente no que dizia respeito à questão da
estabilidade de uma “sociedade bem-ordenada”. Essa Terceira Parte não estaria coerente
com a visão da teoria da justiça como eqüidade em sua totalidade. A idéia de sociedade
bem-ordenada, da forma como exposta em Teoria, dava a entender que todos os cidadãos
endossariam a concepção de justiça como eqüidade como se ela fosse uma doutrina
filosófica abrangente (comprehensive), ou seja, uma doutrina que diz respeito a vários —
senão a todos — aspectos da vida humana: religiosos, morais, filosóficos, etc.
7
The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 17
Eine Theorie der Gerechtigkeit. Frankfurt: Suhrkamp, 1975.
9
Essas mudanças foram feitas devido às críticas de H.L.A. Hart, publicadas no artigo “Rawls on Liberty and
Its Priority”, University of Chicago Law Review”, vol. 40 (1973), p. 534-555. Rawls afirma, entretanto, que
uma resposta mais adequada para as críticas de Hart pode se encontrada no artigo “Basic Liberties and Their
Priority”, ("The Basic Liberties and Their Priority." In Sterling M. McMurrin, ed., The Tanner Lectures on
Human Values, III (1982), p. 1-87. Salt Lake City: University of Utah Press; Cambridge: Cambridge
University Press, 1982), tradução brasileira: “As liberdades básicas e sua prioridade”, in Justiça e
democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 141.
10
Como no caso da liberdade, Rawls afirma que somente no artigo “Social Unity and Primary Goods”
(Collected Papers, p. 359) a questão dos bens primários será melhor esclarecida.
8
13
Não que essa inconsistência estivesse clara em Teoria — mesmo porque nesta obra
ainda não havia distinção entre doutrinas abrangentes e não-abrangentes —, mas o
problema era que a apropriação do contrato social, como aparece em Teoria, parecia fazer
parte de uma filosofia moral (também não havia distinção entre filosofia moral e filosofia
política). A teoria da justiça como eqüidade não era vista como uma concepção
estritamente política de justiça, ou seja, voltada somente para objetivos políticos. A
importante limitação ao campo do político não tinha sido feita, o que dava margem à
interpretação de que Rawls estaria elaborando uma teoria moral completa ou parcialmente
completa, que pudesse estabelecer diretrizes morais para variados aspectos da vida
humana; para além do campo político, portanto.
Como veremos detalhadamente no Capítulo 2, essa restrição ao campo do político é
o segundo grande motivo das críticas feitas contra o filósofo.11 Com as modificações em
sua teoria da justiça, Rawls passa a considerar seriamente a questão do pluralismo de
doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes existentes nos regimes democráticos
contemporâneos. Para ele, é preciso reconhecer que a existência deste “pluralismo
razoável” de doutrinas abrangentes é uma conseqüência normal do exercício da razão
humana em sociedades livres e democráticas. Seria muito pouco realista acreditar que os
cidadãos de uma mesma sociedade democrática constitucional defendessem uma única
doutrina abrangente. Por isso, o objetivo de Rawls é formular uma concepção de justiça
política para um regime democrático constitucional que possa ser endossada pelas diversas
doutrinas razoáveis existentes nesse regime, sem que essas mesmas doutrinas precisem ser
substituídas ou receber novos fundamentos.
11
O primeiro é sobre a concepção da posição original de escolha dos princípios de justiça.
14
Assim, reconhecer o fato do pluralismo razoável como fundamental para garantir a
estabilidade social é considerar uma questão que, para o filósofo, exerceu um papel de
pouco destaque na história da filosofia moral.12
Após essas reformulações, os questionamentos do liberalismo político passam a ser:
“... como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e
justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas
religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. Em
outras palavras: como é possível que doutrinas abrangentes
profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas
endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a
estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de
um tal consenso sobreposto?”13
Partindo desses questionamentos, gostaria de enfatizar dois aspectos importantes.
Um deles remete a uma questão central das democracias contemporâneas; o outro, à própria
história da filosofia, especificamente no que diz respeito ao desenvolvimento das
concepções liberais.
O primeiro aspecto relaciona-se às origens e implicações do que usualmente é
chamado de construtivismo político. Com a modernidade, e cada vez mais atualmente,
ganha força a idéia de que as instituições humanas e os princípios que as regem devem ser o
resultado — agora que não se depende mais da idéia de uma ordem superior, divina ou de
qualquer outra espécie — de uma construção, elaborada pelos cidadãos enquanto seres
autônomos e possuidores de razão. Por este motivo, Rawls está interessado em propor a
construção de uma base de justificação pública que seja amplamente aceita pelos cidadãos,
já que ela diz respeito a questões fundamentais, em relação às quais todos sabem que devem
opinar e ter um posicionamento. Percebe-se, portanto, a importância da necessidade de
12
13
Cf. Liberalismo, Introdução, p. 25.
Liberalismo, Introdução, p. 25-26.
15
distinção entre a razão pública, ou ponto de vista público, e as diversas razões ou pontos de
vista não-públicos.
Nesse sentido, Rawls confere importância central, como veremos no Capítulo 2, para
a distinção entre o razoável e o racional:
“... o liberalismo político, em vez de se referir à sua concepção política
de justiça como correta, refere-se a ela como uma concepção razoável.
Não se trata apenas de uma questão semântica, pois duas implicações
decorrem disso. Em primeiro lugar, ‘razoável’ indica um ponto de vista
mais limitado da concepção política, que aqui articula valores políticos
apenas, e não todos os valores, ao mesmo tempo que apresenta uma base
pública de justificação. Em segundo lugar, o termo indica que os
princípios e ideais da concepção política baseiam-se nos princípios da
razão prática, conjugados a concepções de sociedade e pessoa que
advêm, também elas, da razão prática. Tais concepções especificam o
arcabouço no interior do qual os princípios da razão prática se
aplicam.”14
Serão razoáveis, assim, os princípios derivados de um procedimento adequado de
construção realizado por pessoas racionais submetidas a condições razoáveis. Esses
princípios constituirão a base para a discussão pública de questões políticas fundamentais.
Como espero que fique claro ao longo do texto, desde os primeiros artigos Rawls está
tentando elaborar um procedimento construtivista.
O segundo aspecto importante a ser enfatizado diz respeito à história da filosofia
política e ao surgimento e desenvolvimento do conceito de tolerância e pluralismo,
vinculados mais significativamente ao surgimento do período moderno que, segundo Rawls,
rompe com os ideais dos antigos principalmente depois de três processos históricos: 1) A
Reforma Protestante do século XVI, que levou ao pluralismo religioso; 2) O surgimento do
Estado moderno, que centralizou a administração e inicialmente é controlado por monarcas
absolutos; 3) O desenvolvimento da ciência moderna, que Rawls entende como “o
14
Liberalismo, Introdução, p. 28.
16
desenvolvimento da astronomia com Copérnico e Kepler, assim como a física newtoniana; e
também, é preciso enfatizar, o desenvolvimento da análise matemática (cálculo) por Newton
e Leibniz.”15
Assim, para Rawls:
“... a origem histórica do liberalismo político (e do liberalismo em geral)
está na Reforma e em suas conseqüências, com as longas controvérsias
sobre a tolerância religiosa nos séculos XVI e XVII. Foi a partir daí que
teve início algo parecido com a noção moderna de liberdade de
consciência e de pensamento. Como Hegel sabia muito bem, o pluralismo
possibilitou a liberdade religiosa, algo que certamente não era intenção
de Lutero, nem de Calvino. É claro que outras controvérsias também
tiveram uma importância crucial, como aquelas versando sobre a
limitação dos poderes dos monarcas absolutos por princípios adequados
e de traçado constitucional, visando a proteger direitos e liberdades
básicas.”16
Com a modernidade, portanto, a questão da convivência estável e harmoniosa em
sociedade passa a ser um problema de justiça política, e não mais um problema sobre o bem
supremo.
Embora preocupado, em Teoria, com propor alternativas para a resolução de
problemas políticos específicos, sobretudo aqueles relacionados ao conflito clássico na
história do pensamento liberal entre igualdade e liberdade, Rawls não dedica atenção
necessária ao fato do pluralismo de doutrinas abrangentes que, cada vez mais, constituem
um aspecto político fundamental das sociedades contemporâneas. Se a consideração desses
fatores, como veremos, levou a várias reformulações na teoria da justiça como eqüidade, por
outro lado, acredito que Rawls passa a elaborar uma visão muito mais coerente com, e
adequada às, sociedades democráticas contemporâneas.
15
16
Liberalismo, Introdução, p. 31.
Liberalismo, Introdução, p. 32.
17
Para concluir esta Introdução, gostaria de mencionar rapidamente um último aspecto
que, embora não seja analisado no texto com mais detalhes devido à sua abrangência, deve
ser considerado como um pressuposto para compreender a teoria rawlsiana e sobretudo as
críticas feitas em relação a Liberalismo (voltarei a esse ponto novamente na Conclusão).
Trata-se da apropriação que Rawls realiza da teoria kantiana. No conhecido §40 de Teoria
(A interpretação kantiana da justiça como eqüidade17) o filósofo pretende deixar claro que
sua concepção da justiça se baseia na noção de autonomia kantiana e nos principais aspectos
relacionados a ela, como a idéia de escolha racional, e de seres racionais iguais e livres.
Assim, a posição original de escolha dos princípios de justiça, juntamente com o véu de
ignorância — que priva as partes contratantes de qualquer conhecimento de sua situação
social, como classe, renda e riqueza — e demais restrições, estariam muito próximos da
doutrina de Kant “pelo menos quando se tem uma visão global de seus escritos sobre a
ética.”18 Nesse sentido, agir de acordo com os princípios de justiça escolhidos na posição
original seria equivalente a agir com base em imperativos categóricos, já que a descrição da
posição original seria equivalente ao ponto de vista do eu em si, ou nôumeno, no que se
refere ao significado de um ser racional igual e livre.
Essa apropriação da doutrina kantiana, sobretudo por eliminar as dicotomias entre
necessário e contingente, a forma e o conteúdo, a razão e o desejo, os nôumenos e os
fenômenos, sempre foi objeto de várias críticas. Com as modificações propostas em
Liberalismo, Rawls ainda mantém que sua teoria tem uma vinculação clara com a doutrina
kantiana. Continua, embora com algumas especificações, mantendo o vínculo apresentado
acima entre posição original e a doutrina kantiana, mas passa a dar mais ênfase para a idéia
17
18
Teoria, §40, p. 275-83.
Teoria, §40, p. 277.
18
de interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia, para a idéia de
construtivismo e para a importante distinção entre o razoável e o racional. A idéia de
prioridade do justo sobre o bem, que coloca Rawls na mesma linha de teóricos
deontológicos em que Kant se situa, também tem grande importância para compreendermos
em que sentido Rawls é um autor essencial nas discussões contemporâneas sobre
normatividade.
19
CAPÍTULO 1 – A justiça como eqüidade
1.1. Surgimento da justiça como eqüidade
1.1.1. Método de justificação de ações morais
Iniciar a leitura de Teoria sem possuir maiores referências sobre o contexto do
debate político americano ou sobre a trajetória teórica do autor antes de 1971 pode levar a
alguns estranhamentos. Se é verdade que Rawls passa a ter um amplo reconhecimento após
a publicação de Teoria, é preciso lembrar também que desde 1951 o filósofo já estava
publicando importantes artigos acadêmicos, interessado, por exemplo, nos debates sobre o
utilitarismo e o procedimentalismo.1
Não se tratando somente de reconstituir o percurso intelectual de Rawls, mas com o
objetivo de mostrar até mesmo que suas reflexões apresentadas em Liberalismo já
encontram a origem de sua formulação nos textos anteriores a 1971, é preciso entender de
que modo sua concepção particular de contrato social tomou forma até ganhar uma
elaboração mais definitiva em Teoria.2 Como afirma Henry S. Richardson, “seria
aconselhável, para qualquer tentativa de chegar a um inteiro entendimento da justiça como
1
Para referência a esses artigos, ver nota 2, p. 9.
Esse percurso fica claro através da própria explicação de Rawls no prefácio à primeira edição de Teoria: “Ao
apresentar Uma Teoria da Justiça, tentei reunir em uma visão coerente as idéias veiculadas nos artigos que
escrevi ao longo dos últimos doze anos aproximadamente. Todos os tópicos centrais desses artigos são
retomados, de modo geral com mais detalhamento. As outras questões necessárias para completar a teoria
também são discutidas. A exposição se divide em três partes: A primeira parte cobre, com muito maior
elaboração, o mesmo terreno de “Justice as Fairness” [“Justiça como eqüidade”] (1958) e “Distributive
Justice: Some Addenda” [“Justiça distributiva: alguns adendos”] (1968), enquanto os três capítulos da
segunda parte correspondem, respectivamente, mas com muitos acréscimos, aos tópicos de “Constitutional
Liberty” [“Liberdade constitucional”] (1963), “Distributive Justice” [“Justiça distributiva”] (1967) e
“Civil Disobedience” [“Desobediência civil”] (1966). O segundo capítulo da última parte cobre os temas de
“The Sense of Justice” [“O senso de justiça”] (1963). Exceto em uns poucos lugares, os outros capítulos
dessa parte não são paralelos aos ensaios publicados. Embora as idéias principais sejam em grande parte as
mesmas, tentei eliminar inconsistências e completar e fortalecer o argumento em muitos pontos.” (Teoria,
Prefácio, p. XXI)
2
20
eqüidade, considerar a evolução dos primeiros pontos de vista de Rawls e o contexto no
qual eles foram originados.”3
Desde o artigo “Outline of a Decision Procedure for Ethics”, de 1951, Rawls se
mostra interessado em elaborar alguma forma de procedimentalismo para resolver questões
morais.4 Como veremos, a intenção procedimentalista de Rawls é clara, já indicando idéias
que, depois, serão expressas através da concepção de equilíbrio reflexivo. Como afirma
Amy Gutmann, Rawls argumentará que “não temos melhor modo de justificar princípios
que satisfazem padrões mínimos de razão moral (consistência lógica, generalidade, e
assim por diante) do que traduzindo os princípios em práticas sociais e julgando se as
práticas são consistentes com nossas convicções morais”.5 Embora deslocando o foco de
sua teoria da moral para a política, Rawls tentará sempre se manter dentro desta perspectiva
teórica.
Com este objetivo, a intenção de Rawls neste artigo de 1951 é investigar se
“existe um procedimento de decisão razoável que seja suficientemente
forte, pelo menos em alguns casos, para determinar a maneira pela qual
interesses concorrentes deveriam ser julgados, e, em instâncias de
conflito, um interesse ter preferência sobre outro; e, além disso, pode a
existência desse procedimento, como também sua racionalidade, ser
estabelecido por métodos racionais de investigação?”6
Ou seja, o objetivo é verificar a possibilidade de constituição de um método baseado
em princípios racionais que seja capaz de avaliar se decisões morais são válidas ou não.
Para tanto, Rawls elabora um “procedimento razoável” ou “método razoável”. O que de
fato é interessante neste artigo, sobretudo para compreendermos as formulações rawlsianas
3
The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. ix.
Em Teoria, ao fazer algumas considerações sobre a teoria moral (§9, p. 49), ou seja, considerações sobre
como funciona nosso senso de justiça, Rawls segue o ponto de vista geral de “Outline of a Decision Procedure
for Ethics”, como ele mesmo deixa claro em nota (Teoria, p. 663, n. 24).
5
The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 20.
6
Collected Papers, p. 1. Todas as citações dessa obra são traduzidas por mim.
4
21
posteriores, é a aproximação entre o seu procedimento razoável e o método da lógica
indutiva, o mesmo que estabelece os critérios para verificar a objetividade do conhecimento
científico.7 Neste caso, Rawls quer elaborar um procedimento semelhante, baseado nos
mesmos critérios, para verificar a objetividade das regras morais.
O primeiro passo na elaboração desse procedimento razoável é a escolha da classe
de juízes morais competentes. Um juiz moral competente deveria possuir quatro
características: 1) ter um certo grau de inteligência que esteja dentro de um padrão de
normalidade; 2) ter o conhecimento do funcionamento das coisas à sua volta e das
conseqüências das ações de modo geral, bem como das peculiaridades dos fatos que irá
julgar; 3) ser um homem razoável, sendo que isso significa a) basear-se em critérios da
lógica indutiva para saber em que acreditar, b) mostrar interesse em considerar todos os
lados das questões que lhe são apresentadas, c) considerar sempre a possibilidade de rever
sua posição no caso da apresentação de evidências adicionais e d) estar atento para não
ceder a inclinações pessoais; 4) ter um conhecimento complacente dos interesses humanos
que levam à exigência de tomar decisões morais.8
Rawls também toma cuidado para deixar de lado aspetos ideológicos, ou seja, juízes
morais competentes devem evitar que ideologias — que são monopólio do conhecimento e
da verdade nas mãos de algum grupo, raça, instituição ou classe social — influenciem suas
decisões.
Colocados esses pressupostos, é importante destacar que Rawls, desde este artigo de
1951, está preocupado com o problema da circularidade, que depois terá que enfrentar e
7
Vale a pena lembrar uma importante frase de Rawls no início de Teoria: “A justiça é a primeira virtude das
instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento” (Teoria, §1, p. 3).
8
Cf. Collected Papers, p. 2.
22
que, portanto, é um aspecto relevante a ser considerado para entender o desenvolvimento de
sua teoria da justiça:
“A competência é determinada somente pela posse de certas
características, algumas das quais podem ser ditas capacidades e
realizações (inteligência e conhecimento), enquanto outras podem ser
ditas virtudes (portanto, as virtudes intelectuais de racionalidade).
Ficará claro em seções posteriores por que não podemos definir um juiz
competente, pelo menos no começo de nossa investigação, como alguém
que aceita certos princípios. A razão é que desejamos dizer de alguns
princípios para decidir interesses que um fundamento para aceitá-los
como princípios razoáveis é que juízes competentes parecem aplicá-los
intuitivamente para decidir questões morais. Obviamente, se um juiz
competente fosse definido como alguém que aplica esses princípios, esse
raciocínio seria circular. Assim, um juiz competente não deve ser
definido em termos do que diz ou por quais princípios usa.”9
Estabelecidas as condições necessárias para avaliar a classe dos juízes morais
competentes, o próximo passo é estabelecer a classe dos julgamentos morais ponderados.
Para tanto, certas características deverão ser cumpridas: 1) os juízes morais não podem ser
punidos pelas decisões que tomam; 2) a integridade do juiz deve ser mantida e ele não pode
obter ganhos com sua decisão (pois o medo e a parcialidade prejudicam decisões justas); 3)
os casos apresentados devem ser tais que envolvam somente conflitos de interesse reais,
excluindo casos hipotéticos. Isso garante que os casos sejam aqueles que costumam surgir
na vida comum e sobre os quais as pessoas tiveram a capacidade de refletir; 4) o juiz deve
ter acesso a todos os fatos sobre o caso, podendo ouvir todas as partes envolvidas; 5) o juiz
deve ter certeza sobre sua decisão, não pode estar em dúvida sobre ela; 6) o julgamento deve
ser estável, ou seja, em outras épocas juízes morais devem ter tomado as mesmas decisões
para casos similares; 7) o juiz deve aplicar intuitivamente os princípios éticos, sendo que um
julgamento intuitivo não significa impulsividade ou instintividade, mas uma reflexão sobre
9
Collected Papers, p. 4.
23
o caso e sobre os possíveis efeitos de decisões diferentes e até mesmo a aplicação do senso
comum.10
Como podemos ver ao longo de todo o artigo, a intenção de Rawls é fazer com que
se criem certas restrições que tornarão as decisões morais justas: formulação clara das
decisões, semelhança entre decisões sobre questões semelhantes, resultados baseados em
discussão clara e aberta dos fatores em jogo, e, sobretudo, necessidade de que se trabalhe
passo a passo considerando a possibilidade de efetivação prática — sempre, é claro, com a
intenção de comprovar a razoabilidade de princípios éticos do mesmo modo que se
comprova a razoabilidade de critérios indutivos. O pressuposto aqui é que, se os homens
têm a capacidade de distinguir o certo do errado através do método indutivo aplicado nas
ciências, eles também terão esta mesma capacidade para distinguir o verdadeiro do falso em
julgamentos morais.
Além disso, um julgamento moral em um caso particular só poderá ter sua
racionalidade verificada se estiver de acordo com um princípio justificável ou conjunto de
princípios justificáveis. Embora Rawls esteja tratando aqui somente de julgamentos para
ações morais, é clara a semelhança deste procedimento com a adoção dos princípios de
justiça em Teoria. São oito os princípios de justiça propostos,11 todos eles procurando
seguir as normas da lógica indutiva e especificando restrições.
Por fim, Rawls conclui o artigo lembrando que o processo por ele descrito não pode
ser encarado como um “modo de descobrir princípios éticos justificáveis”,12 pois não
existem métodos precisos para realizar tal tarefa. Para ele, pressupor isso seria muita
10
Collected Papers, p. 5-6.
Cf. Collected Papers, p. 14-15.
12
Cf. Collected Papers, p. 18.
11
24
ingenuidade. O que ele propõe, então, é que o processo seja utilizado de maneira inversa,
ou seja, para justificar julgamentos feitos em determinados casos, e não como um método
que estabeleça critérios para que se realize um julgamento justo. Assim, se alguém fosse
justificar sua ação em determinado caso, deveria mostrar que ela pode ser explicada pelos
princípios da justiça e ainda estar de acordo com o maior número possível de circunstâncias
expostas por Rawls. Em outras palavras, o procedimento proposto no artigo deveria ter
como objetivo principal ser uma medida para saber se determinadas decisões estariam
dentro dos padrões necessários para serem consideradas morais. Como veremos mais
adiante, esse aspecto do procedimentalismo rawlsiano é fundamental para compreendermos
a intenção do autor ao elaborar seu contrato social e a teoria da justiça como eqüidade
enquanto um procedimento hipotético que pode ser evocado a qualquer momento, por
qualquer pessoa racional, para julgar o quanto uma sociedade está próxima ou afastada dos
princípios de justiça.
1.1.2. O contratualismo rawlsiano
Por que ter iniciado com essa exposição dos objetivos de Rawls em seu artigo de
1951? A razão disso ficará clara a partir do destaque de alguns tópicos dos artigos “Justice
as Fairness” (1958), “Constitucional Liberty and the Concept of Justice” (1963), “The
Sense of Justice” (1963) e “Distributive Justice” (1967): mostrar que, progressivamente,
Rawls reformula sua concepção do que seria uma situação ideal — e, portanto, justa — de
estabelecimento, primeiro, de juízos morais e, depois, de princípios de justiça.
Como veremos, essas reformulações são feitas no sentido de aumentar cada vez
mais as restrições impostas às partes que escolherão os princípios justos para regular o
25
funcionamento de uma sociedade. Com isso, Rawls chegará à elaboração de uma posição
original totalmente abstrata, onde as partes estarão submetidas a um véu de ignorância
limitador do seu conhecimento a respeito de todos os fatos particulares de suas vidas (que,
num sentido kantiano, poderiam fazer com que elas tomassem decisões heterônomas). A
originalidade dessa formulação teórica conferirá grande força à Teoria. Mais do que isso,
apesar das modificações propostas em Liberalismo, a posição original será mantida na
teoria liberal de Rawls como fase indispensável para o estabelecimento dos princípios de
uma sociedade democrática justa e estável.
Em “Justice as Fairness”, o objetivo geral de Rawls é mostrar que a idéia
fundamental do conceito de justiça é a eqüidade, e que, portanto, o utilitarismo não daria
conta desse aspecto, impasse que poderia ser solucionado recorrendo a uma teoria do
contrato social. Nesse sentido, Rawls chama atenção para o fato de estar interessado, ao
contrário do proposto em “Outline of a Decision Procedure for Ethics”, somente na justiça
enquanto virtude de instituições sociais, ou o que ele chama de práticas,13 e não mais
enquanto justiça de ações morais particulares. Nota-se, portanto, um primeiro deslocamento
da teoria de Rawls no sentido de restringir o âmbito de aplicação de sua construção
procedimentalista, ou seja, passando a considerar que o procedimentalismo, para ter
sucesso, precisa ser aplicado a âmbitos limitados. Encontraremos essa restrição elaborada
mais fortemente quando Rawls especificar que sua teoria da justiça tem como objetivo
somente a estrutura básica da sociedade.
13
“Uso a palavra ‘prática’ [practice] em todos os lugares como uma espécie de termo técnico significando
qualquer forma de atividade especificada por um sistema de regras que define cargos, funções, mudanças,
penalidades, defesas e assim por diante, e que dá a estrutura para uma atividade. Como exemplos, pode-se
pensar em jogos e rituais, julgamentos ou parlamentos, mercados e sistemas de propriedade.” (Collected
Papers, p. 47),
26
Estabelecido isso, Rawls passa diretamente para a formulação dos dois princípios de
justiça:
“primeiro, cada pessoa que participa de uma prática ou é afetada por ela
tem um direito igual à liberdade mais extensa compatível com uma igual
liberdade para todos; e segundo, desigualdades são arbitrárias a menos
que seja razoável esperar que elas funcionarão para a vantagem de todos
e — dadas as posições e cargos que elas atribuem ou os cargos e
posições que podem ser ganhos a partir delas — são abertos a todos.”14
Vemos, portanto, a primeira formulação dos clássicos princípios de justiça que serão
a estrutura de Teoria, publicada três anos depois. Embora um pouco diferentes das
posteriores formulações elaboradas por Rawls, os dois princípios sempre irão manter
praticamente o mesmo conteúdo.
O importante aqui, entretanto, não são tanto as particularidades dos dois princípios
de justiça, mas constatar as condições que Rawls elabora para a escolha dos dois princípios.
A primeira característica dessa primeira formulação de posição original é a de que seja
imaginada “uma sociedade de pessoas entre as quais um certo sistema de práticas já esteja
bem estabelecido”15 e que estas pessoas sejam mutuamente auto-interessadas quando
participam de práticas comuns. Além de mostrar que Rawls já pressupõe algo que terá um
papel fundamental na sua formulação posterior da teoria da justiça como eqüidade (o mútuo
auto-interesse), essa primeira característica mostra que, diferentemente de Teoria, ainda não
se trata de uma situação abstrata e hipotética. Aliás, é justamente o caráter histórico e
fictício do contrato social que Rawls quer evitar neste artigo de 1958.16
14
Collected Papers, p. 48.
Collected Papers, p. 52.
16
Cf. Collected Papers, p. 59.
15
27
Rawls — ainda claramente seguindo os parâmetros de “Outline of a Decision
Procedure in Ethics” — estabelece que as pessoas dessa sociedade devem ser racionais, ou
seja:
“elas conhecem seus próprios interesses mais ou menos de modo preciso;
elas são capazes de prever as conseqüências possíveis de adotar uma
prática no lugar de outra, elas são capazes de aderir a um curso de ação,
uma vez que tenham decidido por isso; elas podem resistir a tentações
momentâneas e às seduções do ganho imediato; e o mero conhecimento
ou percepção da diferença entre sua condição e aquelas dos outros não
é, dentro de certos limites e em si, uma fonte de grande
descontentamento.”17
Para garantir o convívio pacífico dessas pessoas racionais em sociedade, também é
preciso pressupor que elas possuam interesses e necessidades similares ou complementares e
que não haja grandes diferenças de poder e habilidades entre elas.
Nesta primeira formulação da situação de escolha dos princípios da justiça, estes
serão escolhidos quando as pessoas racionais discutirem sobre o funcionamento das
instituições estabelecidas de sua sociedade, sendo que naturalmente do fato da cooperação e
da necessidade de reciprocidade surgiriam restrições: “as restrições que assim surgiriam
podem ser pensadas como aquelas que uma pessoa teria em mente se estivesse elaborando
uma prática na qual seu inimigo devesse lhe atribuir o seu lugar.”18
A idéia de Rawls, ao elaborar essa situação de escolha dos princípios de justiça, é a
de que, para se ter uma moralidade, é necessário o reconhecimento de princípios imparciais,
que limitem ou refreiem os interesses particulares: “os princípios de justiça podem, então,
ser vistos como os princípios que surgem quando os refreamentos de ter uma moralidade
são impostos a partes nas circunstâncias típicas de justiça”.19
17
Collected Papers, p. 52.
Collected Papers, p. 54.
19
Collected Papers, p. 55.
18
28
Devido às características dessa posição geral (general position) de escolha dos
princípios de justiça, Rawls dá ênfase ao que ele chama de dever prima facie (prima facie
duty)20 e ao jogo justo (fair play), ambos relacionados com a capacidade de reconhecer as
outras pessoas também como portadoras de interesses e sentimentos similares, sobretudo
quando engajadas em atividades conjuntas.
Já em “Constitucional Liberty and the Concept of Justice”, de 1963, Rawls passa a
deixar claro que seu interesse ao falar de justiça é considerá-la enquanto se aplica somente
a instituições políticas, ou seja, sistemas de regras reconhecidas publicamente que definem
cargos e posições, direitos e deveres, privilégios e penalidades, e que dão forma e estrutura
para a atividade social. Não se trata mais, portanto, da justiça aplicada a pessoas
particulares e suas ações. Percebe-se, neste artigo, uma separação mais clara ainda das duas
esferas, sobretudo porque Rawls está interessado em discutir somente as liberdades
constitucionais fundamentais e sua justificação.
Neste artigo, Rawls ainda mantém as principais características da situação de
escolha dos princípios de justiça apresentadas em “Justice as Fairness”: um procedimento
no qual pessoas racionais (com as características de racionalidade já apresentadas),
mutuamente auto-interessadas, escolhem os princípios que deverão coordenar um sistema
de práticas já estabelecido. A diferença, entretanto, está nas condições que passam a ser
formuladas para que as pessoas proponham seus princípios de justiça: é necessário que cada
parte possa propor livremente seus princípios, mas levando em conta os princípios dos
outros, sendo que todos devem estar cientes de que deverão seguir os princípios acordados.
20
“...se os participantes de uma prática aceitam suas regras como justas, e, portanto, não têm nenhuma
queixa a apresentar contra ela, surge então um dever prima facie (e um correspondente direito prima facie)
das partes em relação umas às outras de agir de acordo com a prática quando elas a adotam para ser
cumprida” (Collected Papers, p. 60).
29
Nesse sentido, o primeiro princípio de justiça seria escolhido porque não haveria modo de
se chegar a um acordo que permitisse que cada um ou alguns recebessem mais vantagens;
todos escolhem, portanto, como princípio inicial, o princípio de igual liberdade.
Já em favor da aceitação do segundo princípio, Rawls desenvolve uma
argumentação mais complexa com o objetivo de mostrar que, se existem desigualdades
sociais que funcionam como razão para promover maiores esforços dos cidadãos, essas
desigualdades seriam aceitas, desde que as vantagens decorrentes dessa situação promovam
o ganho de todos, e não somente de alguns.
Aqui, Rawls recorre à possível situação hipotética na qual as pessoas
desconheceriam suas habilidades e talentos. Seu objetivo é mostrar por que um sistema de
casta não seria escolhido como princípio estruturador da sociedade, caso as pessoas
estivessem escolhendo os princípios sem saber que lugar ocupariam posteriormente nessa
sociedade. Se as pessoas desconhecessem seus talentos e habilidades mas, mesmo assim,
por alguma razão, escolhessem o sistema de castas, a chance de pertencerem a uma casta
mais alta seria bastante reduzida devido simplesmente ao fator numérico (poucos
indivíduos nas castas mais privilegiadas e muitos nas castas inferiores); por outro lado, se
elas conhecessem seus talentos e habilidades, escolhendo esse sistema de castas, também
seria grande a chance de pertencerem a uma casta inferior e, portanto, de não serem capazes
de utilizar essas habilidades para ascender socialmente. Em ambos os casos, as partes
seriam levadas, como única alternativa, a escolher uma sociedade aberta (open society), de
acordo com o segundo princípio de justiça.
30
Como vemos, a abstração de desconhecer talentos e habilidades é apresentada aqui
somente como contra-argumento a um possível questionamento sobre a escolha do segundo
princípio de justiça, e não como integrante do próprio processo de escolha.21
Já em 1963, no artigo “The Sense of Justice”, Rawls faz uma longa consideração
sobre o que leva as pessoas a cooperarem socialmente e a seguirem os dois princípios de
justiça escolhidos por elas mesmas. Para tanto, realiza uma contrução psicológica
(psychological construction) procurando mostrar a importância dos sentimentos morais,
dos laços de amizade, afeição e confiança mútua, e destacando a necessidade de que os
cidadãos possuam a capacidade de ter um senso de justiça.
É neste artigo que Rawls passa a formular pela primeira vez a posição original
efetivamente como um procedimento de abstração submetido às restrições que ele
defenderá até seus últimos textos:
“Nesta posição assume-se que há uma ausência de informação; em
particular, assume-se que as partes não conhecem sua posição social,
nem conhecem seus talentos e habilidades peculiares — ou seja, seus
dons inatos. Em suma, elas não sabem se foram bem sucedidas na loteria
natural. (...) Assume-se que as partes na posição original sejam pessoas
morais abstraídas de certos tipos de conhecimento sobre si e sua
situação.”22
Em 1967, no artigo “Distributive Justice”, no qual Rawls desenvolve algumas
implicações do artigo “Justice as Fairness”, a expressão véu de ignorância é adotada pela
primeira vez como parte essencial da construção hipotética da posição original e com o
objetivo de se aproximar da formulação kantiana do imperativo categórico:
21
Segundo Rawls, “no caso das características básicas do sistema social em que cada um inicia (a
constituição e os principais sistemas econômicos e sociais), os dois princípios devem ser satisfeitos. Na
ausência de decisões reais de pessoas racionais sob condições de igual liberdade, deve-se se guiar por
aqueles princípios que se pode mostrar que pessoas racionais, quando submetidas às restrições da
moralidade, reconheceriam. Os princípios de arranjos hipotéticos com os quais as pessoas poderiam
concordar sob condições de riscos reais são irrelevantes” (Collected Papers, p. 85, grifo meu).
22
Collected Papers, p. 113.
31
“O véu de ignorância impede qualquer um de ter vantagem ou
desvantagem devido às contingências da classe social e da fortuna; e,
portanto, os problemas de barganha que surgem na vida diária devido à
posse desse conhecimento não afetam a escolha dos princípios. Pois a
doutrina do contrato, a teoria da justiça e, sem dúvida, a própria ética
são parte da teoria geral de escolha racional, um fato perfeitamente
claro na sua formulação kantiana.”23
1.1.3. O utilitarismo
Antes de passar para uma exposição do conteúdo de Teoria que possa tornar
inteligível o motivo pelo qual Rawls, alguns anos após a publicação da obra, afirma haver
inconsistências relativas à estabilidade na Terceira Parte, gostaria — ainda como
introdução, mas também já adiantando aspectos importantes da obra — de fazer algumas
considerações sobre o utilitarismo. Rawls não avalia em detalhes nem a evolução da teoria
utilitarista nem seus principais autores, somente toma como objeto de crítica a idéia
utilitarista geral de que uma sociedade bem-ordenada seria aquela cujas instituições
funcionam de modo a atingir o maior saldo líquido de satisfação resultante da soma das
participações individuais de todos os seus membros.24 É importante ficar claro a razão pela
qual Rawls toma o utilitarismo como objeto de crítica: para ele, obviamente não é o caso
que a teoria utilitarista é dominante no mundo anglo-saxão porque a maioria das pessoas
aderiu a ela simplesmente, mas pelo fato de que todas as tentativas teóricas de explicação
23
Collected Papers, p. 132.
Em nota (Teoria, p. 25, nota 9, remetendo à página 659), Rawls cita os principais autores e obras
utilitaristas clássicos em oposição aos quais ele está escrevendo. São eles: Henry Sidgwick, com The Method
of Ethics (7ª ed. Londres, 1907), Principles of Political Economy (Londres, 1883) e Outline of the History of
Ethics (5ª ed. Londres, 1902); A. C. Pigou, The Economics of Welfare (Londres, Macmillan, 1920);
Shaftsbury, com An Inquiry Concerning Virtue and Merit (1711); Hutcheson, com An Inquiry Concerning
Moral Good and Evil (1725); Hume, com A Treatise of Human Nature (1739), e An Inquiry Concerning the
Principles of Morals (1751); Adam Smith, com A Theory of the Moral Sentiments (1759); Bentham, com The
Principles of Morals and Legislation (1789); J. S. Mill, com Utilitarianism (1863); Edgeworth, com
Mathematical Psychics (1888). Além dos autores clássicos, Rawls também cita, nessa mesma nota já
mencionada, comentadores contemporâneos da tradição utilitarista.
24
32
da moralidade caíram em alguma espécie de utilitarismo. Essas tentativas certamente
receberam muitas críticas, mas nenhuma consistente o suficiente para enfraquecer seus
argumentos principais. Como exemplo recente não de teoria explicativa da moralidade, mas
de adoção de critérios com justificação utilitarista, temos, após os ataques de 11 de
setembro de 2001, várias tentativas da parte do governo americano de restringir as
liberdades básicas dos cidadãos em nome do “benefício de toda a sociedade”.
Como continuaremos a ver, Rawls é um contratualista e quer, com isso, deixar
claro que sua posição é contrária a qualquer tipo de teoria teleológica ou intuicionista. Se
isso ficou claro em Teoria, as mudanças realizadas posteriormente em Liberalismo abriram
espaço para críticas que afirmam que Rawls acabou por enfraquecer, como um todo, sua
argumentação contra o utilitarismo, que seria mais consistente na obra de 1971 — mesmo
que Rawls sempre tenha se mantido na posição contrária ao utilitarismo, no campo da
teoria contratualista deontológica.25
Entretanto, é preciso notar que a intenção principal de Rawls em Teoria é elaborar
uma teoria que dê conta da distribuição desigual das vantagens da cooperação social —
desde direitos e liberdades, até ocupação de cargos e posições e, principalmente, rendas e
riquezas. Nesse sentido, o embate de uma teoria deontológica contra outra teleológica
(utilitarismo defendendo a utilidade como critério de escolha) é evidente. Isso não ocorre
com a mesma intensidade nas discussões levantadas em Liberalismo, obra na qual o
filósofo dá como pressuposta a escolha dos princípios de justiça (e, portanto, como
25
“... o utilitarismo é uma teoria teleológica ao passo que a justiça como eqüidade não o é. Por definição,
portanto, a segunda é uma teoria deontológica, que ou não especifica o bem independentemente do justo, ou
não interpreta o justo como maximizador do bem. (Deve-se notar que as teorias deontológicas se definem
como não teleológicas, e como entendimentos que não caracterizam a justeza de instituições e atos
independentemente de suas conseqüências. Todas as doutrinas éticas merecedoras de nossa atenção levam
em consideração as conseqüências no julgamento da justeza. Aquela que não o fizesse seria simplesmente
irracional, inservível). A justiça como eqüidade é uma teoria deontológica no segundo sentido.” (Teoria, §6,
p. 32,).
33
pressuposta toda a justificativa anti-utilitarista já exposta em Teoria). Nesta obra, Rawls
está interessado na questão da tolerância e com o fato do pluralismo razoável de
concepções morais, religiosas e filosóficas de uma democracia constitucional, ou seja, o
centro do debate passa a ser a questão consenso político e não mais — ou pelo menos não
com a mesma ênfase — a questão da justiça distributiva.
Já em 1955, no artigo “Two Concepts of Rules”, Rawls deixa clara sua relação com
a teoria utilitarista. Nas décadas anteriores ao início do esboço das principais idéias
apresentadas de forma sistemática em Teoria, o utilitarismo tinha grande influência dentro
e fora do meio acadêmico. Mas ainda existia uma resistência daqueles que defendiam que
os direitos individuais não poderiam ser relegados a segundo plano em troca de se atingir a
maximização dos benefícios sociais (o que, segundo Rawls, acaba por ser a conseqüência
inevitável de todas as teorias utilitaristas). Entretanto, essa resistência era desarticulada e
não apresentava argumentos filosoficamente consistentes. Além disso, os defensores dos
direitos individuais também não encontravam possibilidade de diálogo com outro
importante grupo, o dos marxistas, que, de forma geral, tinham a tendência — o que
provavelmente tenha sido um dos maiores equívocos desse movimento — de vincular até
mesmo os direitos fundamentais do homem (em oposição ao que Marx chama de “direitos
do cidadão”) com a luta pelo “interesse de classe da burguesia”.
Mas, a partir da década de 1950, o pensamento político na academia muda, segundo
Amy Gutmann, em três sentidos:
“primeiro, a maioria dos defensores dos direitos aproveita parte da
crítica marxista e defende não apenas a tradicional lista de liberdades
civis e políticas, mas também uma distribuição mais igual de renda,
riqueza, educação, oportunidade de trabalho, assistência médica, e
34
outros bens essenciais para garantir o bem-estar e a dignidade dos
desprovidos. Segundo, muitos filósofos políticos proeminentes passam a
ser teóricos dos direitos. O utilitarismo está em toda a parte na
defensiva. Terceiro, a grande teoria política está novamente viva na
academia.”26
Para esse comentador, a obra de Rawls, além de fazer parte dessa mudança, é uma
de suas principais inspiradoras. A intenção de Rawls, de acordo com a interpretação de
Michel Meyer, é a de corrigir as falhas do marxismo e do utilitarismo, que tentaram sem
sucesso elaborar critérios de justiça sócio-econômica:27
“Ele [Rawls] se insere entre o marxismo que fala negativamente da
justiça, dizendo o que ela não é o que deveria ser, sem nos dizer, por outro
lado, como ela poderia ser o que deveria ser, e o utilitarismo, que,
embora mais concreto na sua aproximação de um optimum de bem-estar
coletivo, trata a justiça sem se preocupar muito com as falhas nem mesmo
com a igualdade que não seja apenas formal”.28
Como já destacamos, o primeiro princípio da justiça dá prioridade para assegurar
liberdades básicas, mas não estabelece liberdades capitalistas de mercado, como o direito a
ter bens de produção, a se apropriar do trabalho alheio etc. Já o segundo, dividido em duas
partes, defende que as desigualdades sociais e econômicas só são justificáveis se
maximizarem os benefícios dos menos privilegiados e se houver igualdade justa de
oportunidade para todos, que é uma exigência maior do que simplesmente a de “carreiras
abertas a talentos”, defendida pelo liberalismo clássico; ou seja, para que ela seja cumprida
é preciso limitar de alguma forma as desigualdades econômicas e promover esquemas
compensatórios, como, por exemplo, na educação.
26
The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 16.
Para uma tentativa de aproximação entre Rawls e Marx no contexto de uma teoria normativa contra uma
teoria meta-ética, ver Haarscher, Guy. “Rawls, Marx et la question de la justice” in Fondements d’une théorie
de la justice, p. 104-28.
28
Meyer, Michel. “Rawls, les fondements de la justice distributive et l’égalité” in Fondements d’une théorie
de la justice, p. 55.
27
35
Mas, evidentemente, a teoria de Rawls não é prontamente aceita, e surgem objeções
e críticas de vários grupos: socialistas e liberais radicais, libertários, socialistas
democráticos, comunitaristas.
Além de conseguir dar uma nova perspectiva à teoria liberal, Rawls também tem o
mérito igualmente importante — ao propor sua teoria como contraposta ao utilitarismo —
de dar preferência aos direitos, colocando a utilidade em uma posição secundária, o que fica
evidenciado pelos dois princípios da justiça e suas implicações.
Resumidamente, a posição de Rawls contra o utilitarismo, expressa em detalhes em
Teoria, é a de que o individualismo no sentido dos diretos garantidos pela justiça a todo
cidadão não pode ser violado de forma alguma em troca de interesses políticos,
econômicos, sociais ou de qualquer outra espécie. Com isso, Rawls quer resgatar os valores
liberais fundamentais, desenvolvendo uma teoria da justiça que ele considera implícita na
concepção dos direitos naturais representada pela tradição contratualista:
“minha intenção foi formular uma concepção de justiça que fornecesse
uma alternativa razoavelmente sistemática ao utilitarismo, que, de uma
forma ou de outra, dominou por um longo tempo a tradição anglo-saxã
do pensamento político. A razão principal para buscar essa alternativa é,
no meu modo de pensar, a fragilidade da doutrina utilitarista como
fundamento das instituições da democracia constitucional. Em
particular, não acredito que o utilitarismo possa explicar as liberdades e
direitos básicos dos cidadãos como pessoas livres e iguais, uma
exigência de importância absolutamente primordial para uma
consideração das instituições democráticas.”29
O utilitarismo teve tanta influência sobre a teoria moral, segundo Rawls, por ser uma
teoria elaborada por grandes pensadores tais como Hume, Adam Smith, Bentham e Mill.
Rawls tenta dar uma natureza kantiana à teoria da justiça, generalizando e elevando a uma
29
Teoria, Prefácio à edição brasileira, p. XIV.
36
ordem mais alta de abstração a teoria contratualista. Fazendo isso, ele espera fornecer uma
alternativa à teoria utilitarista dominante na tradição.30
Mas não seria razoável fazer uma comparação dos princípios de justiça para as
sociedades com as escolhas individuais que fazemos, ou seja, considerar a maximização do
bem-estar como objetivo tanto pessoal quanto social? Adotando esse raciocínio e seguindo a
teoria utilitarista, chegaríamos à situação de uma sociedade bem-ordenada quando fosse
atingida a maximização do saldo líquido de satisfações individuais. Por que, então, não
defender princípios de justiça que adotam o bem-estar — no sentido de satisfação racional
dos desejos — como princípio superior ao justo, já que se trata de pensar a sociedade como
um conjunto voltado para a realização teleológica de fins?
Princípios teleológicos utilitaristas desse tipo poderiam, segundo Rawls, ser adotados
se não houvesse importantes objeções contra eles. A mais importante delas é a que de as
visões utilitaristas não levam em consideração — a não ser indiretamente — a maneira pela
qual as distribuições são feitas entre os indivíduos, já que o objetivo é seguir critérios que
garantam a máxima satisfação geral. Um problema, portanto, é instaurado:
“Assim em princípio não há razão para que os benefícios maiores de
alguns não devam compensar as perdas menores de outros; ou, mais
importante, para que a violação da liberdade de alguns não possa ser
justificada por um bem maior partilhado por muitos. Simplesmente
acontece que em muitíssimas situações, pelo menos num estágio
razoavelmente avançado da civilização, a maior soma de vantagens não
é obtida desse modo. Não há dúvida de que o rigor dos preceitos de
justiça ditados pelo senso comum têm uma certa utilidade na limitação
das tendências humanas para a injustiça e para as ações socialmente
ofensivas; mas o utilitarista acredita que seja um erro afirmar esse rigor
como um princípio básico de costumes morais.”31
30
31
Cf. Teoria, Prefácio, p. XXII.
Teoria, p. 28.
37
Rawls, elaborando uma teoria deontológica, certamente não aceita essas
conseqüências do utilitarismo. Para ele, são necessários critérios fixos, baseados na justiça,
que regulem a distribuição das vantagens da cooperação social de modo que seja levada a
sério a diferença entre as pessoas.
Em última instância, o que Rawls quer enfatizar ao destacar as diferenças entre a
justiça como eqüidade e o utilitarismo é a própria diferença entre as concepções
fundamentais de sociedade pressupostas por essa duas teorias: na primeira, a sociedade é
um sistema de cooperação regulado por princípios escolhidos numa posição inicial
eqüitativa, na qual a prioridade do justo sobre o bem é a característica reguladora central;
na segunda, trata-se de uma sociedade como modo eficiente de maximizar a satisfação dos
desejos. Ambas são concepções sobre a distribuição dos benefícios da cooperação social,
mas são visões radicalmente distintas.
1.2. A teoria da justiça como eqüidade
Cabe agora retomar os pontos principais de Teoria. Farei isso tentando apresentar
concisamente as principais idéias da obra, completando, assim, o que já foi apresentado
sobre os artigos anteriores a 1971, com o objetivo de deixar claro por que Rawls precisa dar
uma “fundamentação mais sólida”32 à teoria da justiça na Terceira Parte da obra e,
conseqüentemente, também procurando mostrar por que posteriormente ele irá achar que
essa fundamentação não será suficiente para garantir a estabilidade de uma sociedade bemordenada.
32
Cf.: Teoria, p. 437.
38
Assim, destaco os seguintes pontos: a importância da justiça para a cooperação
social; a concepção de justiça como devendo ser aplicada à estrutura básica da sociedade;
características mais específicas da posição original onde são escolhidos os princípios de
justiça; e, por fim, considerações sobre a racionalidade, teorias do bem, senso de justiça e
equilíbrio da teoria da justiça, estas últimas já como pressupostos para compreender as
mudanças realizadas em Liberalismo.
1.2.1. O papel da justiça
Como já vimos, a preocupação central de Rawls, sobretudo por oposição ao
utilitarismo, é o papel da justiça em uma teoria sobre o funcionamento de uma democracia
constitucional. A intenção é buscar princípios que ordenem de maneira justa a distribuição
das vantagens da cooperação social. Evidentemente — e Rawls deixa isso bem claro —
deve-se buscar princípios reguladores porque é um fato normal que qualquer sociedade é,
primeiro, uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que aceitam, e em
geral cumprem, determinadas regras que organizam suas condutas. E, segundo, uma
sociedade é marcada por um conflito e uma identidade de interesses:
“Há uma identidade de interesses porque a cooperação social possibilita
que todos tenham uma vida melhor da que teria qualquer um dos
membros se cada um dependesse de seus próprios esforços. Há um
conflito de interesses porque as pessoas não são indiferentes no que se
refere a como os benefícios maiores produzidos pela colaboração mútua
são distribuídos, pois para perseguir seus fins cada um prefere uma
participação maior a uma menor.”33
33
Teoria, p. 4-5.
39
Vemos, portanto, mais uma vez, que a preocupação de Rawls é com a questão da
distribuição dos benefícios e encargos da cooperação social.
Como o problema da distribuição pode ser resolvido? Como as pessoas que
participam da cooperação social podem chegar a um acordo sobre a questão da distribuição
das vantagens dessa cooperação? Como já sabemos, Rawls propõe uma situação abstrata de
contrato social na qual as pessoas, livres, iguais e racionais, escolheriam os princípios que
regulariam a distribuição em sua sociedade. Aqui, Rawls deixa claro que a posição original
não é nem uma situação histórica real, nem uma condição primitiva da cultura. Trata-se
simplesmente de uma situação hipotética de contrato social (mais abstrata do que as
doutrinas contratualistas tradicionais) que tem por função levar à escolha de princípios de
justiça quando as partes são privadas de qualquer conhecimento sobre seu lugar na
sociedade, a posição de sua classe social, sua sorte na distribuição de dotes e habilidades
naturais, inteligência, força e todas as demais características que poderiam resultar em
qualquer diferenciação entre os cidadãos, seja pelas contingências sociais, seja pelo acaso
da distribuição de dotes, ou seja, aspectos que são arbitrários do ponto de vista moral. São
essas as restrições do véu de ignorância.
O que ocorre, portanto, é que as partes contratantes devem escolher entre
alternativas possíveis de acordo com uma conduta que seja o resultado de preferências e
obstáculos, semelhante ao que ocorre em uma situação de equilíbrio entre mercados
competitivos, no qual os indivíduos fazem concessões uns aos outros de modo a atingir a
melhor situação. Essas alternativas possíveis são encontradas em uma lista de concepções
tradicionais de justiça, historicamente relevantes.
Como já foi mostrado, na situação de escolha dos princípios, Rawls está mais
preocupado com o segundo princípio de justiça. O primeiro princípio, o da maior liberdade
40
igual, é tido como uma escolha natural à qual as partes chegariam quando submetidas às
restrições da posição original. As alternativas apresentadas ao segundo princípio, o
princípio da diferença, são as seguintes: variações do princípio da utilidade média,34
concepções teleológicas clássicas (utilidade ou perfeição), concepções intuicionistas e
concepções egoísticas.35
É importante notar que, ao mencionar as circunstâncias de justiça,36 Rawls coloca a
condição de escassez moderada (ou seja, os bens materiais de uma sociedade não são
ilimitados) como circunstância objetiva, e o conflito de interesses a respeito da distribuição
dos benefícios sociais como circunstância subjetiva. Ambos seriam fatos naturais que não
podem ser contornados (devem, inclusive, ser conhecidos na posição original). Vemos,
assim, que a discordância entre os indivíduos que procura ser solucionada não é a que diz
respeito a diferentes concepções do bem, mas a que diz respeito à questão distributiva.
Embora reconheça como natural que os cidadãos possuam concepções do bem,
Rawls parece deixar de lado a questão como algo que simplesmente deve ser evitado de
modo a não atrapalhar o consenso na escolha dos princípios de justiça:
“Deve-se notar que eu não faço nenhuma suposição restritiva a respeito
das concepções que as partes têm do bem, exceto que elas são planos
racionais a longo prazo. Embora esses planos determinem os objetivos e
interesses de uma determinada pessoa, os objetivos e interesses
presumivelmente não são egoísticos ou interesseiros. Decidir se esse é ou
não o caso depende dos tipos de objetivos perseguidos por alguém. Se a
riqueza, a posição, a influência, bem como as honras do prestígio social,
são os propósitos finais de uma pessoa, então com certeza a sua
concepção do bem é egoística. Seus interesses dominantes estão
centrados em si mesmo, e não são simplesmente, como devem sempre ser,
os interesses de um eu. Não há inconsistência, portanto, em supormos
34
Para uma explicação detalhada de por que, na posição original, os princípios de justiça são escolhidos de
acordo com o critério maximin, ao invés de serem escolhidos a igualdade estrita ou o princípio da utilidade
média, ver o artigo “Some reasons for the maximin criterion” (Collected Papers, p. 225-31).
35
Cf.: Teoria, §21, p. 133-4.
36
Cf.: Teoria, §22, p. 136.
41
que, removido o véu de ignorância, as partes descobrem que têm vínculos
de sentimento e afeição, e desejam promover os interesses dos outros e
ver os seus objetivos atingidos. Mas o postulado da indiferença mútua na
posição original visa a assegurar que os princípios da justiça não
dependem de suposições muito exigentes. Lembremo-nos de que a
posição original tem por objetivo incorporar condições amplamente
partilhadas e, também, pouco pretensiosas. Uma concepção da justiça
não deve pressupor, então, laços abrangentes de sentimento natural. Na
base da teoria, tentamos presumir o mínimo possível.”37
Para Rawls, é preciso que a posição original incorpore o que ele chama de
“restrições formais do conceito de justo”:38 são restrições que devem se aplicar a qualquer
situação de escolha de princípios — como, por exemplo, princípios éticos — e não somente
à escolha dos princípios de justiça no caso da posição original. As restrições devem ser de
cinco tipos: 1) os princípios devem ser gerais em sua formulação; 2) os princípios devem
ser gerais em sua aplicação; 3) os princípios devem ser públicos (a publicidade é uma
característica fundamental de uma teoria contratualista e está de acordo com a noção
kantiana de lei moral39); 4) uma concepção de justo deve impor às reivindicações
conflitantes uma ordenação; 5) os princípios têm caráter terminativo, ou seja, devem ser a
última instância de apelação do raciocínio prático.
A idéia de véu de ignorância, portanto, é ser uma situação que garanta a aplicação
dessas restrições formais do conceito de justo, fazendo com que as partes ignorem uma lista
de fatos particulares:
“Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua
posição de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a
sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência
e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua concepção
do bem, as particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo
os traços característicos de sua psicologia, como por exemplo, a sua
aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. Mais
37
Teoria, §22 p. 139-40.
Cf.: Teoria, §23, p. 140.
39
Cf.: Teoria, p. 667, n. 8.
38
42
ainda, admito que as partes não conhecem as circunstâncias particulares
de sua própria sociedade. Ou seja, não conhecem a posição econômica e
política dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi
capaz de atingir. As pessoas na posição original não têm informação
sobre a qual geração pertencem.”
(...)
“Na medida do possível, o único fato particular que as partes conhecem
é que a sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça e a
qualquer conseqüência que possa decorrer disso. Entretanto, considerase como um dado que elas conhecem os fatos genéricos sobre a
sociedade humana. Elas entendem as relações políticas e os princípios
da teoria econômica; conhecem a base da organização social e as leis
que regem a psicologia humana. De fato, presume-se que as partes
conhecem quaisquer fatos genéricos que afetem a escolha dos princípios
de justiça.”40
Para Rawls, a importância das restrições impostas às informações particulares na
posição original é tal que, sem elas, a própria idéia de teoria da justiça estaria inviabilizada.
Não seria possível solucionar o problema da negociação na posição original. Se as partes
contratantes não estivessem situadas de forma eqüitativa e não fossem tratadas de forma
igual como pessoas éticas, inevitavelmente contingências arbitrárias, naturais do mundo,
influenciariam na escolha dos princípios.41
É preciso assinalar que Rawls já concebe as pessoas na posição original como sendo
racionais, mas não conhecendo sua própria concepção de bem. Assim, elas serão levadas a
tomar a decisão a favor dos dois princípios simplesmente porque possuem uma explicação
do que são os bens primários: essas pessoas preferem sempre ter uma quantidade maior a
uma menor desses bens.
Além de racionais, é preciso pressupor também que as partes possuem um senso de
justiça, o que significa dizer que há uma confiança mútua entre elas de que todas agirão
conforme os princípios escolhidos. Central para a compreensão de como funciona a
40
Teoria, § 24, p. 147-148.
Para especificações mais detalhadas sobre as restrições e características da posição original, tais como a
ausência de inveja, egoísmo e conhecimento de fatos genéricos, ver Teoria, §§ 23, 24 e 25.
41
43
estabilidade de uma sociedade bem-ordenada pelos princípios de justiça, os
desdobramentos da idéia de senso de justiça serão analisados logo adiante.
1.2.2. A estrutura básica da sociedade
Embora a idéia de uma teoria da justiça para a estrutura básica da sociedade —
devido à insistência do próprio Rawls — tenha passado a ser melhor compreendida,
inicialmente ela foi alvo de críticas e incompreensões. Não foram poucos os críticos que
quiseram ver nos princípios de justiça uma concepção que poderia ser aplicada aos casos de
justiça em geral. Aqui, trata-se apenas da justiça social. Os princípios de justiça não se
aplicam a organizações como igrejas, universidades e nem mesmo às relações internas
dentro da família:42
“Para nós o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade,
ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais
importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a
divisão de vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições
mais importantes quero dizer a constituição política e os principais
acordos econômicos e sociais. Assim, a proteção legal da liberdade de
pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade
particular no âmbito dos meios de produção e a família monogâmica
42
Sobre isso, Rawls, na nota 48 do §50 de Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, comenta uma crítica
de Sandel: “Michael Sandel, em Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge: Cambridge University
Press, 1982), p. 33, considera a situação em que a família harmoniosa se vê abalada por dissensões. Os
afetos e a franqueza dos tempos passados dão lugar a demandas de eqüidade e direitos. Ele imagina os bons
sentimentos passados sendo substituídos por uma integridade e judiciosidade inquestionáveis, para que
jamais prevaleça a injustiça. “Pais e filhos refletem de forma ponderada, submetem-se zelosa embora
carrancudamente aos dois princípios de justiça, até onde conseguem instalar as condições de estabilidade e
congruência para que o bem da justiça se realize em seu lar”. Um dos erros aqui é que ele supõe que os dois
princípios valem de forma geral para todas as associações, quando na verdade eles só valem para a
estrutura básica. Outro erro é que aparentemente, a seu ver, a justiça como eqüidade diz que o
estabelecimento da justiça plena restauraria o caráter moral da família. Isto a justiça como eqüidade não
diz. Existem, de fato, algumas concepções de justiça consideradas apropriadas para a família, bem como
para outras associações e casos de justiça local. Tais concepções — geralmente uma para cada tipo de
associação — são necessárias, embora de forma alguma suficientes, para restaurar o caráter moral da
família. Não se deve atribuir à função fundamental da justiça básica mais do que ela é.” (Justiça como
Eqüidade: Uma Reformulação, p. 234.)
44
constituem exemplos das instituições sociais mais importantes. Tomadas
em conjunto como um único esquema, as instituições sociais mais
importantes definem os direitos e deveres dos homens e influenciam seus
projetos de vida, o que eles podem esperar vir a ser e o bem-estar
econômico que podem almejar. A estrutura básica é o objeto primário da
justiça porque seus efeitos são profundos e estão presentes desde o
começo.”43
Ou seja, a estrutura básica da sociedade é constituída por suas principais instituições
políticas, econômicas e sociais, e sua importância está no modo pelo qual essas instituições
distribuem direitos e deveres, oportunidades e riquezas. Assim, Rawls não pretende adotar
uma teoria completa do contrato social, que escolhe um sistema ético mais ou menos
completo de princípios sobre todas as virtudes. O foco da teoria da justiça como eqüidade é
somente a questão da justiça social e a maneira pela qual ela pode ser garantida em uma
sociedade bem-ordenada.
Ora, em uma sociedade complexa como as atuais democracias constitucionais, é
impossível pensar a distribuição dos bens e serviços sociais sem pensar numa estrutura
institucional básica que promova esses elementos da cooperação social. Devido a esse
papel fundamental, a influência dessas instituições perpassa toda a sociedade, tem
repercussões nas mais variadas áreas sociais.
Mas não somente isso: a existência de uma estrutura básica é fundamental para
garantir uma sociedade justa ao longo do tempo, ou o que Rawls chama de “condições de
fundo justas”,44 pois é altamente provável que, mesmo estabelecendo uma situação inicial
justa, as condições, ao longo do tempo, se deteriorem, comprometendo a situação de
justiça. Portanto, mais do que uma simples característica da teoria da justiça como eqüidade
que tem por objetivo definir a justiça para um âmbito limitado de instituições, a restrição à
43
44
Teoria, p. 7-8.
Liberalismo, Parte III, VII, §4, p. 318.
45
estrutura básica mostra os fundamentos da justificativa rawlsiana para não cair num
libertarianismo do tipo que, por exemplo, é defendido por Robert Nozick45. É necessário
algum tipo de intervenção e os motivos são esclarecidos em Liberalismo:
“...as condições necessárias para a justiça básica podem ser solapadas,
mesmo que ninguém aja de forma injusta ou tenha consciência de como o
resultado global de muitas trocas distintas afeta as oportunidades dos
outros. Não há regras viáveis que se possa exigir que os agentes
econômicos obedeçam em suas transações cotidianas visando a evitar
essas conseqüências indesejáveis. Tais conseqüências se manifestam num
futuro tão remoto, ou são tão indiretas, que a tentativa de prevê-las como
normas restritivas que se apliquem aos indivíduos representaria uma
carga excessiva, se não impossível.”46
Percebe-se, assim, em que sentido e em que dimensão podemos compreender a
“defesa intervencionista” de Rawls. Sua visão pressupõe que somente instituições da
estrutura básica da sociedade podem controlar os acordos entre os cidadãos, pois não há
como definir se eles são justos ou eqüitativos antecipadamente. O objetivo aqui é favorecer
uma mistura de supervisão e liberdade entre os indivíduos e associações, ou seja, deixá-los
livres para buscar seus fins dentro da estrutura social, mas ao mesmo tempo dando a
certeza de que sempre estarão sendo tomadas medidas necessárias para corrigir a justiça
básica.
Ora, uma conseqüência inevitável de uma estrutura como essa é que os cidadãos
sejam afetados em relação ao que são e ao que querem ser, que seus planos de vida sejam
inevitavelmente moldados pelas opções que lhes são oferecidas e pelas normas que
precisam respeitar. Na verdade, como sabemos, qualquer estrutura social — justa ou injusta
— tem um papel determinante na forma de produzir e reproduzir a concepção das pessoas
sobre a sociedade e sobre si próprias. O que Rawls está propondo é que isso seja feito de
45
Nozick, Robert. Anarchy, State and Utopia. New York: Basic Books, 1974. Edição brasileira: Anarquia,
Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
46
Liberalismo, Parte III, VII, §4, p. 318-9.
46
modo a garantir uma situação de justiça que esteja de acordo com os princípios escolhidos
pelos cidadãos como os mais justos.
Por fim, para que o funcionamento social seja adequado, é um pressuposto
necessário que cada cidadão conheça as instituições básicas de sua sociedade, para que
saiba o que elas exigem e o que podem exigir delas; também deve ter certeza que os outros
cidadãos também possuem esse mesmo conhecimento. Como Rawls sempre irá enfatizar, o
critério de publicidade é essencial para o funcionamento de uma sociedade bem-ordenada.47
1.2.3. Os princípios de justiça
Dadas as condições da posição original, quais seriam os princípios de justiça
escolhidos pelas partes contratantes? Passo diretamente para a formulação final dos
princípios apresentada em Teoria:48
“Primeiro Princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente
sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível
com um sistema semelhante de liberdade para todos.
Segundo Princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de
tal modo que, ao mesmo tempo:
a) tragam o maior benefício possível para os menos
favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança
justa, e
b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos
em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades.”49
47
Para mais detalhes sobre as instituições da estrutura básica da sociedade, casos de justiça, compatibilidade
entre justiça formal (aquela garantida pelo estado de direito) e justiça substancial (justiça de fato cumprida,
não só garantida formalmente), ver Teoria, §10 — “As instituições e a justiça formal”, p. 57.
48
Teoria, §46, p. 333.
49
A primeira formulação é feita no §11, p. 64 e a segunda, no §13, p. 88.
47
Algumas especificações a respeito desses princípios precisam ser destacadas. A
primeira delas é que é necessário compreender a estrutura social como possuindo dois
aspectos: um que define e assegura as liberdades básicas iguais,50 e o outro que especifica e
estabelece as desigualdades econômicas e sociais. Cada princípio, portanto, será aplicado a
um aspecto social.
Uma segunda importante especificação é a de que os dois princípios devem ser
entendidos e aplicados em ordem serial:51 o primeiro princípio tem prioridade sobre o
segundo e, dentro do segundo, a segunda parte tem prioridade sobre a primeira
(considerando, evidentemente, a ordenação apresentada em Teoria). Isso significa que o
primeiro princípio, o da igual liberdade para todos, tem prioridade sobre o princípio que
regula as desigualdades sociais e econômicas, ou seja, a estrutura básica deve regular as
desigualdades de distribuição de riqueza e autoridade de modo consistente com as liberdades
exigidas pelo primeiro princípio.
O objetivo principal de Rawls ao estabelecer a ordem serial é fazer com que não seja
possível trocar certas liberdades fundamentais, por exemplo, por ganhos econômicos e/ou
sociais. Poderíamos pensar no caso de um governo ditatorial que eleva as condições de vida
da população, embora não permita eleições ou impeça a liberdade de imprensa. De acordo
com os dois princípios da justiça, isso não seria permitido.
Um terceiro esclarecimento sobre os dois princípios de justiça diz respeito aos seus
quatro estágios de aplicação, inspirados, como o próprio Rawls afirma, pela constituição e
pela história dos Estados Unidos da América. Os quatro estágios são:
50
Para Rawls, as liberdades básicas mais importantes são: “a liberdade política (o direito de votar e ocupar
um cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as
liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a agressão física (integridade
da pessoa); o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo
com o conceito de estado de direito.” (Teoria, §11 p. 65).
51
Para mais detalhes, Teoria, §8, p. 46, incluindo a nota 23 que remete à p. 662.
48
1) estágio da posição original, com todas as características já apresentadas.
2) estágio da convenção constitucional, logo após a escolha dos princípios de
justiça.52 Nesse estágio, algumas restrições do véu de ignorância são retiradas: as partes
passam a conhecer os princípios da teoria social e os fatos genéricos relevantes sobre a
sociedade onde vivem (recursos naturais, situação econômica, social, política, cultura, etc),
embora continuem sem conhecer sua posição como indivíduos específicos (posição social,
riqueza, concepção do bem). O objetivo é elaborar a constituição justa mais eficaz de acordo
com os princípios da justiça, levando em conta os aspectos sociais.
3) estágio legislativo, onde todo o conjunto de fatos econômicos e sociais de caráter
geral entra em jogo com o objetivo de fazer com que as políticas econômicas e sociais
maximizem as expectativas de oportunidades a longo prazo das camadas menos favorecidas
(evidentemente, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades e de acordo com a
garantia das liberdades iguais).
4) estágio da aplicação das regras a casos particulares por juízes e administradores e
da observância dessas regras gerais pelos cidadãos. Evidentemente, neste estágio há um
conhecimento completo de todos os fatos.
Os quatro estágios são uma espécie de continuação da situação hipotética da posição
original, com o objetivo de pensar a aplicação dos princípios de justiça. Não se trata,
52
Rawls esclarece: “É importante distinguir a seqüência de quatro estágios e sua concepção de uma
convenção constituinte, separando-a da visão da escolha constituinte encontrada na teoria social e
exemplificada por J. M. Buchanan e Gordon Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor, University of
Michigan Press, 1963). A idéia da seqüência de quatro estágios é parte de uma teoria moral e não serve
como uma explicação do funcionamento de constituições concretas, exceto na medida em que organismos
políticos são influenciados pela concepção da justiça em questão. Na doutrina contratualista, os princípios
da justiça já foram acordados, e a nossa dificuldade consiste em formular um esquema que nos ajude na sua
aplicação. O objetivo é o de caracterizar uma constituição justa e não o de verificar que tipo de constituição
seria adotado ou consentido, com base em presunções mais ou menos realistas (embora simplificadas) a
respeito da vida política, e muito menos com base em presunções individualistas típicas da teoria econômica”
(Teoria, p. 674, n. 2).
49
portanto, de uma explicação de como funcionam na prática instituições constituintes,
legislativas ou judiciais.
1.2.4. A questão da liberdade
Embora o segundo princípio — o princípio da diferença — seja o mais controverso,
envolvendo discussões sobre justiça entre gerações, poupança justa, critérios para definir os
menos favorecidos etc.,53 o primeiro princípio também provoca objeções que são
importantes para esclarecer mais detalhadamente o que Rawls entende por liberdade e por
que faz desse princípio o primeiro na sua ordem lexical de aplicações dos princípios de
justiça. A principal crítica já foi mencionada aqui: trata-se das objeções levantadas por
H.L.A. Hart54, reconhecidas por Rawls, e que levaram à reformulação do primeiro
princípio, com a substituição da expressão “o mais abrangente sistema total de liberdades
básicas” por “esquema plenamente adequado de liberdades básicas”.55 Essa mudança
mostra que Rawls quer se referir a um conjunto fundamental de liberdades civis e políticas
tradicionais na história das democracias ocidentais, e não a uma idéia abstrata, única ou
sem conteúdo de liberdade que deveria simplesmente ser maximizada.
53
Para análises específicas sobre o segundo princípio de justiça, ver o capítulo “The Difference Principle”, em
The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, com artigos de Amartya Sen
(“Welfare Inequalities and Rawlsian Axiomatics”, p. 85-104), Wolfgang Leininger (“Rawls’ Maximin
Criterion and Time-Consistency: Further Results”, p. 105-13), Paul Voice (“Rawls’s Difference Principle and
a Problem of Sacrifice”, p. 114-17), Philippe Van Parijs (“Social Justice and Individual Ethics”, p. 118-41) e
G.A. Cohen (“Where the Action Is: On the Site of Distributive Justice”, p. 143-170). O capítulo 4 de Pogge,
Thomas. Realizing Rawls, p. 161-207, também aborda o segundo princípio.
54
“Rawls on Liberty and Its Priority”, University of Chicago Law Review”, vol. 40 (1973), p. 534-555.
Reproduzido em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 2-23.
55
Na forma como é encontrado na sua formulação final em Rawls, John. Justiça como Eqüidade – Uma
reformulação, §13, p. 60.
50
A crítica de Hart diz respeito à possibilidade de aplicação prática da idéia de
liberdade56. Sua crítica parte de duas expressões utilizadas por Rawls na primeira edição de
Teoria: “o princípio da maior liberdade igual” e “a liberdade pode ser restringida apenas em
troca da liberdade”. Todo o problema, para Hart, está em uma ambigüidade: ao mesmo
tempo em que Rawls apresenta uma lista específica de liberdades fundamentais,57 insiste
em falar em liberdade de modo abstrato, como “sistema mais amplo”, “maior liberdade”
etc.
Assim, após o próprio Rawls ter reconhecido essa falha, fica claro que sua intenção,
como Hart também indica, era de fato usar a lista de liberdades básicas como o critério para
definir o sentido do termo “liberdade”. Sem dúvida, a revisão que Rawls se vê obrigado a
fazer — tentando eliminar possíveis conotações metafísicas ou até mesmo imprecisões
devido à utilização de “liberdade”, para adotar uma lista determinada de liberdades básicas
historicamente reconhecidas — pode ser vista como um primeiro passo para todas as
mudanças posteriores no sentido de retirar o conteúdo metafísico da teoria ao adotar uma
lista precisa e bem especificada de liberdades civis e políticas que possam garantir a maior
variedade possível de planos de vida aos cidadãos:58 “Não se atribui nenhuma prioridade à
56
A maioria das críticas feitas a Rawls em relação aos princípios de justiça na verdade extrapolam o âmbito
da teoria ideal e dizem respeito à possibilidade social de execução dos princípios. Um interessante artigo a
respeito da relação entre os dois princípios de justiça é o de Norman Daniels: “Equal Liberty and Unequal
Worth of Liberty, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 25-53, no
qual Daniels, que segue uma orientação com inclinação marxista, tenta mostrar que de fato não há uma
incompatibilidade lógica entre o primeiro princípio das liberdades e o segundo, que permite desigualdades,
mas sim um problema de “possibilidade social” de articulação entre os dois. O mesmo tópico, abordado de
forma diferente e numa análise mais minuciosa, é discutido por Brian Barry: “John Rawls and the Priority of
Liberty”, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 172-188.
57
Para a lista de liberdades fundamentais, ver nota 50, p. 47.
58
Thomas Pogge faz uma interessante interpretação do princípio da liberdade em Rawls, afirmando que os
valores fundamentais que o filósofo propõe são os da liberdade, igualdade e participação (“The interpretation
of Rawls’ first principle of justice”, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their
justification, p. 55-83).
51
liberdade como tal, como se o exercício de algo chamado ‘liberdade’ tivesse um valor
preeminente e fosse a principal, senão a única, finalidade da justiça política e social.”59
Obviamente, a discussão do tema nos leva a pensar sobre a fundamentação da
prioridade da liberdade. Rawls, em Liberalismo, esclarece que essa fundamentação está
baseada em dois pressupostos: a concepção dos cidadãos enquanto pessoas livres e iguais,
ou seja, uma concepção liberal de pessoa, e a idéia de bens primários — que serão
analisadas mais adiante. Além disso, a opção por uma lista de liberdades fundamentais, ao
invés de definições gerais e princípios primeiros e abrangentes, tem por objetivo dar uma
compreensão mais eficaz do que aquela apresentada pelos princípios primeiros do
utilitarismo, do perfeccionismo ou do intuicionismo60.
1.2.5. A estabilidade de uma sociedade bem-ordenada
Ao tratar de questões como a psicologia moral, aquisição do sentimento de justiça,
teoria do bem e valores sociais, o objetivo geral de Rawls, na Terceira Parte de Teoria, é
mostrar que, em uma sociedade bem-ordenada, existe uma congruência entre a justiça e o
bem.
A primeira condição para compreendermos não só a argumentação de Teoria, mas
principalmente as reformulações realizadas em Liberalismo, é entender a distinção entre o
que Rawls chama de teoria restrita e teoria plena do bem: a teoria restrita está relacionada
aos bens primários (coisas que as pessoas racionais desejam, independentemente de
59
Liberalismo, VIII, §1, p. 345.
Para uma visão unificada da posição de Rawls sobre a questão da liberdade, ver a última conferência de
Liberalismo, VIII – As liberdades fundamentais e sua prioridade, p. 343-430. O fato de fechar a obra com
essa conferência indica o papel central da questão da liberdade na teoria da justiça como eqüidade, com Rawls
mostrando de que forma toda a teoria se articula para garantir certos valores fundamentais.
60
52
quaisquer outras coisas que elas desejem) e tem por objetivo assegurar que as premissas a
respeito desses bens são necessárias para se chegar aos princípios da justiça. Por sua vez, a
teoria plena do bem implica uma interpretação mais ampla do bem, o que envolve
considerações relacionadas ao bem no sentido de objetivos finais, inclusive no que diz
respeito à disposição dos cidadãos em agir de acordo com a concepção pública de justiça na
esfera das instituições sociais. Para Rawls, no sentido da teoria restrita, possuir um senso de
justiça é um bem fundamental para garantir a estabilidade em uma sociedade bem-ordenada.
O segundo ponto que deve ser compreendido é o significado do bem para os planos
de vida de uma pessoa, sendo que um plano racional de vida para uma pessoa determina o
que é o bem para ela. Por sua vez, um plano de vida é racional se obedece a dois critérios: 1)
ser um dos planos consistentes com os princípios de escolha racional quando aplicado a
todas as características relevantes da situação desse plano; 2) é o plano que seria escolhido
com racionalidade deliberativa plena (total consciência dos fatos relevantes e cuidadosa
avaliação das conseqüências). Além disso, os interesses e objetivos de alguém só são
racionais se merecerem ser encorajados e forem previstos pelo plano de vida que é racional
para essa pessoa.61 O importante é compreender que os bens primários são essenciais para
que se possa realizar efetivamente planos de vida, seja qual for sua natureza e objetivos. A
intenção de Rawls, portanto, é mostrar que existe uma profunda relação entre os planos de
vida que escolhemos e o modo pelo qual nossa sociedade é regulada: “As convicções sobre
que tipo de pessoa devemos ser também estão, de forma semelhante, implícitas na aceitação
dos princípios da justiça.”62
61
Para uma definição mais completa do que seja um plano de vida racional e o princípio de escolha racional,
ver Teoria, §63, p. 452-60.
62
Teoria, §63, p. 460.
53
Assim, para Rawls, o bem para uma pessoa é determinado pelo plano de vida que ela
adotaria com plena racionalidade deliberativa se seu futuro pudesse ser previsto e imaginado
com precisão. Fica clara, então, a importância dos princípios de justiça — que regulam a
sociedade de modo a torná-la bem-ordenada ao longo do tempo — em relação à escolha de
vida dos cidadãos. Mais do que isso: para Rawls,
“A estrutura básica da sociedade funciona de forma a encorajar e
sustentar certos tipos de planos mais que outros, recompensando os seus
membros pela contribuição para com o bem comum de maneiras que são
consistentes com a justiça. Considerar essas contingências [o que inclui
também os fatos genéricos que atuam sobre as escolhas individuais]
limita a gama de planos alternativos de forma que o problema da decisão
se torna, pelo menos em alguns casos, razoavelmente definido.”63
Outro fato que deve ser notado em Teoria são as características que Rawls quer
atribuir para a relação entre a concepção de justiça e as teorias do bem em geral e também
do bem moral. Para ele, a concepção da justiça escolhida na posição original é um guia para
definir as virtudes e os sentimentos morais:
“Uma boa pessoa (...) ou uma pessoa de valor moral, é aquela que tem,
num grau maior que a média, os traços de caráter moral de cunho
genérico que é racional que as pessoas na posição original queiram
encontrar umas nas outras. Como os princípios da justiça foram
escolhidos, e estamos supondo obediência estrita, cada um sabe que, em
uma sociedade, ele desejará que os outros tenham os sentimentos morais
que apóiam a obediência a esses padrões. Assim, poderíamos dizer,
alternativamente, que uma boa pessoa tem os traços de caráter moral
que é racional que os membros de uma sociedade bem-ordenada queiram
encontrar em seus consócios.”64
Os princípios da justiça, portanto, são uma espécie de orientação para que se estenda
a definição do bem para questões mais amplas do bem moral. Nesse sentido, Rawls quer
tornar possível a transformação de uma teoria restrita numa teoria plena, através da posição
original. Fazendo essa transformação ou junção da teoria da justiça (teoria restrita) com a
63
64
Teoria, §65, p. 470.
Teoria, §66, p. 484.
54
teoria do bem (teoria plena) seria possível ter um bom critério para avaliar valores morais,
para saber se alguém é justo ou injusto, mau, perverso, etc.
Importante destacar também algumas diferenças estabelecidas entre o conceito de
justo e o conceito de bem. A primeira delas é que os princípios do justo são escolhidos na
posição original, como todas as características e implicações já conhecidas. Isso não se
aplica ao conceito de bem, à teoria do bem: não há acordo sobre os princípios da escolha
racional pelo simples fato de que as pessoas são livres para fazer suas próprias escolhas.
A segunda diferença é que Rawls considera um fato positivo que as concepções dos
indivíduos sobre o seu próprio bem devam divergir significativamente entre si, enquanto
isso não deve ocorrer com a concepção do justo.
A terceira diferença é metodológica: enquanto as aplicações dos princípios de
justiça são restringidas pelo véu de ignorância, as avaliações sobre o bem de uma pessoa
dependem do total conhecimento dos fatos, já que, evidentemente, nossos planos de vida
estão estritamente ligados com nossas circunstâncias de vida. Mesmo com essas distinções,
Rawls afirma que “nosso modo de vida, não importa quais sejam as circunstâncias
particulares, deve sempre estar de acordo com os princípios da justiça, que são definidos
independentemente.”65
65
Teoria, §68, p. 498.
55
1.2.6. O senso de justiça
Como veremos, existe uma íntima relação entre os conceitos de sociedade bemordenada, senso de justiça, concepção do bem e estabilidade.
Para Rawls, uma sociedade bem-ordenada é:
“... aquela estruturada para promover o bem de seus membros e
efetivamente regulada por uma concepção comum da justiça. Assim,
trata-se de uma sociedade em que todos aceitam e sabem que os outros
aceitam os mesmos princípios de justiça, e cujas instituições sociais
básicas satisfazem esses princípios, sendo esse fato publicamente
reconhecido.”66
A publicidade dos princípios de justiça, portanto, é uma das características
principais de uma sociedade bem-ordenada. Outra característica de uma sociedade desse
tipo é que ela deve ser regulada por uma concepção pública de justiça. Isso significa uma
disposição dos cidadãos em agir de acordo com os princípios da justiça. Vemos, aqui, a
importância que Rawls atribui à idéia geral de aprendizado moral, ou seja, os cidadãos, ao
perceberem que vivem em uma sociedade justa, adquirem um senso de justiça que fará com
que desejem manter as instituições dessa sociedade, da mesma forma que, seguindo
princípios básicos das “leis psicológicas”, uma criança que cresce em um ambiente
educacional justo e com amparo desenvolverá naturalmente sentimentos de reconhecimento
e amor.
Para Rawls, a força de uma teoria da justiça deve ser medida de acordo com o
sucesso em promover esse senso de justiça nos cidadãos. E como uma sociedade é um
sistema de cooperação que perdura ao longo do tempo, uma teoria da justiça será preferível
a outras se for capaz de garantir a força desse senso de justiça ao longo do tempo. Essa é a
66
Teoria, §69, p. 504.
56
estabilidade, a situação de equilíbrio, na qual um determinado estado de coisas persiste
através do tempo sem ser perturbado por nenhuma força externa.
Para Rawls, os sentimentos morais são essenciais para garantir que a estrutura
básica de uma sociedade esteja de acordo com a justiça. De modo geral, independentemente
da tradição moral avaliada (empirismo utilitarista de Hume a Sidgwick, teoria da
aprendizagem moral de Freud, racionalismo de Rousseau e Kant),67 o aprendizado moral
pode ser caracterizado como as influências exercidas sobre nós que nos fazem adotar
condutas que beneficiam os outros e a sociedade, ao invés de prejudicá-los. Esse
aprendizado ocorre ao longo de nossas vidas, desde a infância (moralidade da autoridade)
com a educação que recebemos de nossos pais, passando pela moralidade de grupo, através
da qual adquirimos noções dos padrões morais que devemos seguir nas associações a que
pertencemos de modo que, à medida que mudamos de lugar durante a vida, adquirimos
noções mais complexas de moralidade, chegando ao que Rawls denomina moralidade de
princípios, que envolve noções como as de cidadania igual e de ser uma pessoa justa, ou
seja, ter conhecimento dos padrões de justiça.
Assim,
“Uma vez aceita uma moralidade de princípios (...), as atitudes morais
deixam de estar unicamente ligadas ao bem-estar e à aprovação de
indivíduos ou grupos específicos, e são moldados por uma concepção do
justo escolhida independentemente dessas contingências. Nossos
sentimentos morais manifestam uma independência em relação às
circunstâncias acidentais de nosso mundo, sendo que o significado dessa
independência é dado pela descrição da posição original e de sua
interpretação kantiana.”68
Essa concepção está fundamentada sobre as três leis psicológicas da moral,
formuladas por Rawls da seguinte maneira:
67
68
Cf.: Teoria, §69, p. 508-12.
Teoria, §72, p. 527.
57
“Primeira lei: dado que as instituições familiares são justas, e que
os pais amam a criança e expressam manifestamente esse amor
preocupando-se com o seu bem, então a criança, reconhecendo o amor
evidente que sentem por ela, aprende a amá-los.
Segunda lei: dado que a capacidade de uma pessoa para o
sentimento de companheirismo tornou-se uma realidade quando ela
adquiriu vínculos de acordo com a primeira lei, e dado que uma
organização social é justa e esse fato é publicamente reconhecido por
todos, então essa pessoa desenvolve laços de amizade e confiança em
relação aos outros na associação, à medida que estes, com evidente
intenção, cumprem seus deveres e obrigações, e correspondem aos ideais
de sua situação.
Terceira lei: dado que a capacidade de uma pessoa para o
sentimento de companheirismo foi realizada quando ela criou vínculos de
acordo com as duas primeiras leis, e dado que as instituições de uma
sociedade são justas e esse fato é publicamente reconhecido por todos,
então essa pessoa adquire o senso de justiça correspondente, à medida
que reconhece que ela e aqueles por quem se interessa se beneficiam
dessas organizações.”69
A explicação sobre a estabilidade é completada por Rawls tentando mostrar que
existe uma congruência entre a justiça como eqüidade e o bem como racionalidade, ou seja,
em uma sociedade bem-ordenada, o plano racional de vida de uma pessoa sustenta e afirma
seu senso de justiça. Para que uma sociedade seja estável é necessário, portanto, que o
senso efetivo de justiça faça parte do bem dos indivíduos.
Rawls também adianta alguns pontos que serão centrais em Liberalismo. Um deles é
o fato de que a personalidade moral das pessoas é composta por duas aptidões: uma para a
concepção do bem, e outra para um senso de justiça, ou seja, para agir conforme os
princípios do justo. Nesse sentido, outro aspecto fundamental destacado é que toda a teoria
da justiça como eqüidade pressupõe a prioridade do justo sobre o bem. Mesmo assim, ainda
parece haver uma ligação às vezes sem limites bem estabelecidos entre as concepções do
bem e a idéia do justo, já que Rawls chega a considerar que a concepção do bem de uma
pessoa, definida por seu plano racional de vida, é um subplano do plano maior e mais
69
Teoria, §75, p. 544-5.
58
abrangente que regula a sociedade. Esse plano maior forneceria ideais e formas de vida
tanto para indivíduos como para associações de indivíduos, o que acabaria por ser algo
positivo no sentido de delimitar as possibilidades de escolha, contribuindo, inclusive, para
torná-las mais factíveis.70 Há, portanto, uma clara vinculação entre a concepção do justo e
as visões morais particulares dos cidadãos, vinculação que Rawls tentará depois eliminar.
Essa limitação de escolha dos planos racionais ao âmbito dos princípios de justiça
também é assinalada por André Berten:
“Os princípios de justiça e a sociedade bem-ordenada constituem o
quadro que torna possível a execução de um plano racional de vida e,
através disso, a elaboração de uma teoria completa do bem. Mas, fazendo
isso, os princípios de justiça limitam a esfera do que pode ser considerado
como uma satisfação do desejo racional. A prioridade do justo sobre o
bem significa, portanto, que as finalidades não são indiferentes, mas
devem corresponder a uma certa concepção da justiça.”71
Com essa explicação da idéia de senso de justiça, juntamente com a exposição que
Rawls faz sobre a felicidade,72 o hedonismo,73 entre outros trechos que discutem em detalhe
as questões morais, pode-se perceber que, de fato, não há uma nítida divisão entre o nãopolítico (ou seja, concepções morais, doutrinas religiosas e filosóficas, concepções do bem
etc.) e o que posteriormente será considerado estritamente político.
70
Cf.: Teoria, §85, p. 629.
Berten, André. “John Rawls, Jürgen Habermas et la rationalité des normes” in Fondements d’une théorie de
la justice, p. 187.
72
Cf.: Teoria, §83, p. 610.
73
Cf.: Teoria, §84, p. 617.
71
59
CAPÍTULO 2 — O liberalismo político
2.1. Principais mudanças
Na década seguinte à publicação de Teoria, Rawls escreve vários artigos1 com o
objetivo de esclarecer alguns pontos da obra que não ficaram claros ou mesmo que ele
gostaria que tivessem mais destaque. Nesse sentido, procurou também rebater críticas e
reforçar o caráter kantiano de sua teoria da justiça como eqüidade.
Portanto, passo agora diretamente para o artigo que é considerado central para
avaliar que modificações são feitas na teoria da justiça e qual a nova interpretação que
Rawls apresenta: “A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica”
(1985).2
Não se trata de um artigo voltado somente para resolver o que Rawls considera
inconsistências de sua teoria, mas também de um artigo que propõe mudanças significativas
1
Esses artigos são: “Some Reasons for the Maximin Criterion”, American Economic Review (Maio 1974),
64(2): 141-146 e Collected Papers, p. 225-231; “Reply to Alexander and Musgrave”. Quarterly Journal of
Economics (Novembro 1974), 88(4): 633-655 e Collected Papers, p. 232-253; “A Kantian Conception of
Equality” Cambridge Review [Londres] (Fevereiro 1975), 96(2225): 94-99 e Collected Papers, p. 254-266;
“Fairness to Goodness” The Philosophical Review (Outubro 1975), 84(4): 536-554 e Collected Papers, p.
267-285; “The Independence of Moral Theory.” Proceedings and Addresses of the American Philosophical
Association (Novembro 1975), 48: 5-22 e Collected Papers, p. 286-302; “The Basic Structure as Subject”.
American Philosophical Quarterly (Abril 1977), 14(2): 159-165 e Justiça e Democracia (“A estrutura básica
como objeto”), p. 1-42 (tradução da versão revisada do artigo, publicada em 1978: “The Basic Structure as
Subject.” In Alvin I. Goldman and Jaegwon Kim, eds., Values and Morals: Essays in Honor of William
Frankena, Charles Stevenson, and Richard B. Brandt, pp. 47-71. Dordrecht, Holland & Boston: Reidel,
1978); “Kantian Constructivism in Moral Theory”. Journal of Philosophy (September 1980), 77(9): 515572, Collected Papers, p. 303-358 e Justiça e Democracia (“O construtivismo kantiano na teoria moral”), p.
43-140; “Social Unity and Primary Goods”. In Amartya Sen and Bernard Williams, eds., Utilitarianism and
Beyond, pp. 159-185. Cambridge: Cambridge University Press e Collected Papers, p. 359-387. “The Basic
Liberties and Their Priority” In Sterling M. McMurrin, ed., The Tanner Lectures on Human Values, III
(1982), pp. 1-87. Salt Lake City: University of Utah Press e Justiça e Democracia (“As liberdades básicas e
sua prioridade”), p. 141-198.
2
“Justice as Fairness: Political not Metaphysical.” Philosophy & Public Affairs (Verão 1985), 14(3): 223-251,
Collected Papers, p. 388-414 e Justiça e Democracia, p. 199-241.
60
tanto do ponto de vista do método filosófico quanto em relação ao que se espera que seja o
papel de uma filosofia política. Em “O construtivismo kantiano na teoria moral” (1980),
Rawls já tinha deixado claro que seu objetivo era elaborar uma fundamentação para uma
concepção de justiça enquanto tarefa social prática, e não enquanto teoria epistemológica
ou metafísica.
Nesse sentido, o artigo antecipa o que Rawls pretende que seja uma concepção
adequada de uma teoria liberal, ou seja, uma teoria que esteja voltada somente para o
aspecto político, o que, como vimos, será sua preocupação central em Liberalismo. Assim,
Rawls se aproxima mais da idéia de tolerância: abandonando as pretensões que poderiam
ser interpretadas, em Teoria, como universalistas, sua concepção liberal passa a tentar dar
conta da pluralidade de crenças individuais presentes nas sociedades democráticas
contemporâneas.
Obviamente Rawls estava consciente dessa pluralidade de crenças desde os seus
primeiros textos, como tentei mostrar com a breve exposição de seus primeiros artigos, até
chegar em Teoria. É importante não esquecer, quando se passa a uma leitura mais
específica de Liberalismo, que o fato do pluralismo e a incapacidade de concordar sobre
princípios de justiça fundamentais é justamente o que leva Rawls, em Teoria, a elaborar sua
original concepção de posição original na qual as partes contratantes ignoram suas crenças
pessoais. O que passa a ser questionado, portanto, é a amplitude e as condições de
possibilidade desse consenso. A diferença agora é que é preciso reconhecer seriamente que
não é possível mais chegar a um consenso numa sociedade liberal a não ser que essa
sociedade deixe de ser liberal, ou seja, que uma determinada concepção tente ser
estabelecida pelo uso da força.
61
O que resta, então? Para Rawls, é preciso — com o objetivo de não invadir o âmbito
particular de cada concepção moral, religiosa e filosófica, nem de privilegiar nenhuma
delas — abandonar o conceito de verdade em relação a uma teoria sobre a justiça e sobre as
concepções fundamentais que regulam o funcionamento social.3 Rawls adota, assim, um
“método de esquiva” (method of avoidance). O que deve ser buscado é um consenso
somente sobre os aspectos políticos essenciais da sociedade. Se esta é uma restrição
considerável, outra maior será feita quando Rawls insiste em deixar claro que o que ele está
fazendo é simplesmente tentando oferecer uma formulação mais precisa e consistente para
o funcionamento das nossas sociedades democráticas ocidentais.
O primeiro aspecto que deve ser destacado para compreendermos em que sentido a
teoria da justiça deve estar restrita ao âmbito do político é considerar que Rawls retoma
com muito mais força a idéia, já apresentada em Teoria, de que a concepção política da
justiça tem somente um único objetivo: a estrutura básica de uma sociedade democrática
constitucional, com suas instituições econômicas, sociais e políticas. Provavelmente como
uma das características mais importantes da teoria de Rawls — cuja má compreensão
certamente leva a equívocos —, esta restrição à estrutura básica precisa ser levada em
consideração:
“... saber se a teoria da justiça como eqüidade pode ser uma concepção
política geral, estendendo-se a diferentes tipos de sociedades, em
condições históricas e sociais diferentes, ou se ela pode ampliar-se e
tornar-se uma concepção moral geral, ou pelo menos uma parte
importante desta última são questões inteiramente distintas, sobre as
quais evitarei me pronunciar de uma ou de outra maneira.”4
3
Para uma interessante análise — que mantém os pressupostos rawlsianos, mas ao mesmo tempo tenta ir
além de sua argumentação — com o objetivo de mostrar que a teoria da justiça acaba por poder ser vista
como uma teoria verdadeira, ver Raz, Joseph. “Facing Diversity: The Case of Epistemic Abstinence”, em The
philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 133-76.
4
Justiça e Democracia, p. 203-4.
62
O vínculo entre a idéia de estrutura básica e as concepções democráticas é
estabelecido: somente às instituições da estrutura básica da sociedade poderão ser aplicados
princípios que expressam as idéias intuitivas e tradicionais que fundamentam as instituições
políticas de um regime democrático constitucional. Estender essas idéias intuitivas e
tradicionais para além da estrutura básica é extrapolar as restrições de uma teoria
exclusivamente política. Essa especificação provavelmente surpreendeu alguns leitores de
Teoria, na qual eram propostos princípios de justiça para sociedades justas, sem maiores
restrições, portanto.
Evidentemente, por trás dessas idéias existe uma concepção do que é o papel da
filosofia política. Para Rawls, esse papel muda de acordo com épocas e circunstâncias
políticas e sociais. No contexto atual de democracias constitucionais, a filosofia política
deveria, segundo ele, investigar se existe uma base subjacente possível de acordo que
permita a cooperação política. Seria uma tentativa, portanto, de resolver especificamente
uma questão:
“O desenvolvimento do pensamento democrático desde cerca de dois
séculos mostrou claramente que não existe acordo algum sobre a maneira
de organizar as instituições básicas numa democracia caso elas devam
especificar e garantir os direitos e as liberdades básicas dos cidadãos e
responder às reivindicações da igualdade democrática — os cidadãos
sendo concebidos como pessoas livres e iguais.”5
Para tanto, Rawls apresenta uma argumentação que, embora não conflitante com a
de Teoria,6 dá ênfase a outras questões: para ele, ao buscarmos princípios capazes de
regular a estrutura básica de nossa sociedade, é preciso primeiramente partir de convicções
5
Justiça e Democracia, p. 206.
Em nota, Rawls esclarece este ponto: “Ainda que TJ utilize essa idéia desde o começo (ela é introduzida a
partir da p. 4), ali eu não insisto (como faço aqui e no “Kantian Constructivism”) no fato de as idéias
básicas da teoria da justiça como eqüidade serem consideradas implícitas ou latentes na cultura pública de
uma sociedade democrática.” (Justiça e Democracia, p. 213)
6
63
historicamente estabelecidas ao longo da tradição democrática, como a de tolerância
religiosa e de repúdio à escravidão. Depois, devemos considerar nossa própria cultura
política pública, com suas instituições e tradições, de modo que seja possível formular
princípios que expressem satisfatoriamente essas idéias. Nesse sentido, a tarefa de
encontrar uma base pública para um acordo político só é possível se a sociedade for vista
como um sistema de cooperação social eqüitativa entre pessoas livres e iguais e como
membros normais e integrais dessa sociedade durante toda a sua vida. Essa seria, segundo
Rawls, a questão central do debate entre liberais contra aristocratas, socialistas contra a
democracia constitucional liberal e liberais contra conservadores (atualmente): a
propriedade privada e a legitimidade ou eficácia dos programas sociais do chamado
“Estado-Providência”.
Isso nos leva a entender em que sentido a teoria rawlsiana é tanto prática quanto
filosófica: é filosófica porque exige uma complexa doutrina moral de justiça, mas, ao
mesmo tempo, é prática por estar preocupada em propor soluções que garantam a
estabilidade e a unidade social baseadas no consenso. A relação fica ainda mais clara
quando sabemos que Rawls, reiteradamente, insiste que o sucesso de uma teoria da justiça
deve ser medido por sua capacidade de se transformar em tarefa prática.
Assim, Rawls — numa das passagens fundamentais para entendermos suas
intenções — é explicitamente claro:
“... o objetivo da teoria da justiça como eqüidade não é metafísico nem
epistemológico, mas prático. De fato, ela não se apresenta como uma
concepção verdadeira, mas sim como uma base para um acordo político
informado e totalmente voluntário entre cidadãos que são considerados
como pessoas livres e iguais. Quando esse acordo está baseado
solidamente em atitudes sociais e políticas públicas, ele garante o bem de
todos os indivíduos e de todos os grupos que fazem parte de um regime
democrático justo. Por isso tentamos evitar tanto quanto possível as
questões filosóficas, assim como as morais e políticas que estejam sujeitas
64
à controvérsia. Não porque essas questões não têm importância ou
porque nos são indiferentes, mas porque as consideramos como
demasiado importantes e reconhecemos que não é possível resolvê-las no
plano político. A única alternativa para o princípio da tolerância seria o
recurso autocrático ao poder do Estado. É por isso que, falando
filosoficamente, a teoria da justiça como eqüidade permanece na
superfície. Dadas as profundas diferenças que existem entre as crenças e
as concepções do bem a partir da Reforma, devemos reconhecer que,
como no caso das questões de moral ou de religião, um acordo público
sobre as questões filosóficas básicas não pode ser obtido sem que o
Estado ofenda as liberdades fundamentais. A filosofia, enquanto busca da
verdade no tocante a uma ordem moral e metafísica independente, não
pode, a meu ver, proporcionar uma base comum e aplicável para uma
concepção política da justiça numa democracia.”7
Mais do que isso, Rawls está, desse modo, tentando evitar recorrer a questões
filosóficas de fundo que não foram resolvidas, como, por exemplo, o que seria a concepção
metafísica de pessoa. Pois como querer que questões filosóficas controversas possam servir
de fundamento público para um Estado democrático? Só nos resta recorrer à tolerância e ao
respeito mútuo como os únicos critérios possíveis para colocar de lado questões
controversas e buscar o consenso sobre princípios fundamentais. Nesse sentido,
percebemos que, já em 1974, com o artigo “Reply to Alexander and Musgrave”, Rawls
desloca a discussão do âmbito de uma decisão sobre como melhor dividir os benefícios da
cooperação social para o âmbito da tolerância democrática: “é muito melhor olhar a noção
de uma sociedade bem-ordenada como uma extensão da idéia de tolerância religiosa do
que da idéia de uma economia competitiva”.8 No entanto, é fundamental perceber que as
mudanças feitas por Rawls no sentido de passar a abordar a justificação política, a questão
do realismo e a natureza prática da filosofia política de forma alguma significam uma
mudança substancial na sua concepção igualitária da teoria da justiça. Os valores
fundamentais da teoria da justiça como eqüidade — igual liberdade (representada sobretudo
7
8
Justiça e Democracia, p. 211-12.
Collected Papers, p 235.
65
pela liberdade política), igual oportunidade e eqüidade de distribuição — continuam
válidos. Como afirma Joshua Cohen, “O reconhecimento da diversidade ressaltado pela
noção de um consenso sobreposto não exclui a crítica do privilégio contida nos aspectos
igualitários do liberalismo igualitário.” 9
Mesmo assim, todas esses mudanças provocaram fortes reações críticas, como
explica Paul Weithman:
“Alguns vêm um ceticismo moral levemente velado na recusa de Rawls em
declarar a verdade da justiça como eqüidade. A maioria vê em seus
recentes ensaios uma desenfatização [de-emphasis] dos elementos
kantianos tão proeminentes em Uma Teoria da Justiça e um movimento em
direção à realpolitk de Hobbes ou o pragmatismo de Dewey. Mas o que
traz à tona a mais forte reação tanto dos que aplaudem quanto dos que
criticam o trabalho recente de Rawls é o que parece ser sua politização
da filosofia política. A importância que Rawls atribui à consecução de um
consenso sobreposto e à fundação de sua teoria em idéias amplamente
compartilhadas sugeriu para alguns que o que Rawls realmente dá valor é
para resultados políticos e não filosóficos — nas palavras de Jean
Hampton, ‘paz e estabilidade ao mais baixo custo político’. Além disso,
Rawls parece não estar interessado precisamente no tipo de justificação
que os filósofos tradicionalmente buscam. Sua afirmação de que idéias
implícitas na cultura democrática são o ponto de partida apropriado para
a filosofia política e sua recusa em justificá-los aprofundando mais
impressiona alguns como sendo inconsistente com a afirmação de que
Rawls está engajado em filosofia e não na prática política.”10
O que está em jogo, portanto, são concepções distintas de qual deve ser o balanço
entre metafísica e política ao elaborar uma teoria de filosofia política. O próprio Paul
Weithman sugere uma interpretação que toma a tarefa rawlsiana em duplo sentido:
primeiro, como o desenvolvimento de uma teoria da justiça que deve mostrar-se adequada
9
Cohen, Joshua, “Moral pluralism and political consensus”, em The philosophy of Rawls, Vol 5 —
Reasonable Pluralism, p. 66.
10
Weithman, Paul. “Liberalism and the Political Character of Political Philosophy”, em The Pilosophy of
Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 224. Neste artigo, Weithman elabora uma pertinente argumentação
para mostrar que divisões muito estanques entre “filosofia política”, “teoria política”, “filosofia moral”,
“teoria moral” etc. podem levar a uma interpretação inadequada da obra de Rawls e, por extensão, de muitos
outros autores da tradição filosófica.
66
para determinada sociedade e, segundo, como a construção de um consenso sobreposto
sobre essa teoria, ou seja, um consenso que deve se mostrar passível de aceitação pelos
cidadãos. Uma fundamentação mais aprofundada da teoria está, assim, excluída. Esse tipo
de interpretação, segundo Weithman, responde tanto às críticas de que Rawls transformou a
filosofia política em política prática, quando às que de que a idéia de democracia, com
todos os seus pressupostos, superou a filosofia (no sentido de capacidade de formular
justificações). Outro tipo de interpretação à qual Weithman quer se opor é a que defende
que a única forma de se atingir o consenso sobreposto é através de argumentos políticos, e
não filosóficos, já que as formas de justificação se darão através da razão pública baseada
em valores políticos. Como veremos ao analisar as características mais específicas do
consenso sobreposto, essa de fato não parece ser a argumentação de Rawls.
2.2. Elementos fundamentais do liberalismo político
A mudança central que Rawls realiza, portanto, com a idéia de liberalismo político,
é a tentativa de demonstrar que uma sociedade bem-ordenada não pode ter por fundamento
crenças morais essenciais. Isso seria impossível nas sociedades democráticas atuais, onde o
que prevalece de modo geral é uma profunda divisão de concepções religiosas, filosóficas e
morais. Como já vimos, esse é um fato político, social e cultura que não pode ser negado.
Uma teoria política precisa levar realmente a sério essas condições — mais a sério do que
já se tenha tentado anteriormente em filosofia política. Para Rawls, é irrealista elaborar uma
67
teoria que seja “incoerente com a realização de seus princípios num cenário de alta
previsibilidade”.11
É importante constatar que Rawls mantém a estrutura geral de Teoria. Sua
inovadora idéia de posição original — com todas suas conseqüências, sobretudo a escolha
dos dois princípios de justiça — é mantida, pois Rawls continua insistindo no aspecto
liberal e igualitário dos dois princípios12.
Assim, o que vemos estruturado em Liberalismo são dois desafios: 1) manter as
idéias centrais de Teoria — que Rawls acredita ser a formulação mais adequada dos
princípios que devem estabelecer o funcionamento da estrutura básica de uma sociedade
democrática —, mas agora levando em conta o fato do pluralismo razoável; 2) elaborar
uma teoria política que seja plausível ao explicar como é possível que, através de um
consenso sobreposto, cidadãos com as mais diversas concepções morais, filosóficas e
religiosas possam chegar a um acordo sobre a mais justa concepção exclusivamente política
(portanto, nem moral, nem religiosa, nem filosófica) para um regime democráticoconstitucional, sem que suas concepções particulares sejam substituídas ou ganhem novos
fundamentos. Trata-se, em outras palavras, de garantir a existência de uma base de
justificação pública razoável sobre questões políticas fundamentais.
A questão que Rawls quer resolver é a junção desses dois desafios. Cito novamente
um trecho já reproduzido na Introdução, sobre o questionamento principal de Liberalismo:
“... como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e
justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas
religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. Em
11
Liberalismo, Introdução, p. 25
Após comentar sobre o aspecto igualitário da teoria da justiça, Rawls afirma: “Faço esse comentário
porque alguns pensaram que minha formulação das idéias do liberalismo político significava renunciar à
concepção igualitária de Teoria. Não me lembro de nenhuma revisão que implique tal mudança e penso que
essa conjectura não tem fundamento” (Liberalismo, I, §1, p. 49, nota 6).
12
68
outras palavras: como é possível que doutrinas abrangentes
profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas
endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a
estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de um
tal consenso sobreposto?”13
Uma exposição sobre a estrutura da obra pode ser feita destacando as três idéias que
o próprio Rawls considera como “centrais” para o liberalismo político, juntamente com
seus pressupostos e implicações. Primeiro, a idéia de um consenso sobreposto (2.3). Para
uma adequada compreensão dessa idéia é necessário destacar o que Rawls entende por
construtivismo político (2.3.1). Segundo, a idéia de prioridade do justo sobre o bem (2.4)
quando se trata de uma concepção política, o que também envolve a relação entre as
concepções de razoável e racional. Terceiro, a idéia de razão pública (2.5) e sua
importância para a democracia.
2.2.1. Concepção política de justiça
Porém, antes de passar a essas três idéias centrais, é preciso destacar alguns
conceitos e definições fundamentais para uma compreensão adequada do liberalismo
político rawlsiano. O primeiro deles é o significado do que é uma concepção política de
justiça — concepção, afinal, essencial para a argumentação de Liberalismo, sobretudo no
que se refere às diferenças deste livro em relação à Teoria.
Para Rawls, uma concepção política de justiça possui três características principais.
A primeira diz respeito ao objetivo. Trata-se de enfatizar mais uma vez que a concepção
política é voltada para a estrutura básica da sociedade, ou seja, para as principais
13
Liberalismo, Introdução, p. 25-6.
69
instituições políticas, sociais e econômicas de uma democracia constitucional moderna.
Evidentemente, aqui é preciso também considerar o modo pelo qual essas instituições
afetam o caráter e as atitudes dos cidadãos dessa sociedade.
A segunda característica de uma concepção política de justiça — e com isso se
estabelece a diferença em relação à Teoria — é a de que ela deve ser uma visão autosustentada, ou seja, não deve depender da justificação em relação a uma ou mais doutrinas
abrangentes, não deve ter compromisso mais amplo com qualquer outra doutrina. Como
veremos ao longo deste texto, tornar essas considerações plausíveis é o objetivo central de
Liberalismo:
“Usando uma expressão em voga, a concepção política é um módulo, uma
parte constitutiva essencial que se encaixa em várias doutrinas
abrangentes razoáveis subsistentes na sociedade regulada por ela,
podendo conquistar o apoio daquelas doutrinas. Isso significa que pode
ser apresentada sem que se afirme, saiba ou se arrisque uma conjectura a
respeito das doutrinas a que possa pertencer ou de qual delas poderá
conquistar apoio”.14
A terceira característica de uma concepção política de justiça “é que seu conteúdo é
expresso por meio de certas idéias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política
pública de uma sociedade democrática”.15 Notemos que, na definição de Rawls, ocorre
uma ampliação em relação à Teoria: a cultura pública não se resume mais somente ao que é
expresso pelos ideais da constituição democrática, mas agora ganha importância também a
interpretação das tradições públicas, textos e documentos históricos de conhecimento geral
e a “cultura de fundo” da sociedade civil, formada pelas diversas doutrinas abrangentes
professadas pelos cidadãos:
“É a cultura do social, não do político. É a cultura da vida cotidiana, de
suas diversas associações: igrejas e universidades, sociedades de eruditos
14
15
Liberalismo, I, §2, p. 55
Liberalismo, I, §2, p. 56.
70
e cientistas, clubes e times, para citar apenas algumas. Numa sociedade
democrática, há uma tradição de pensamento democrático cujo teor é, no
mínimo, familiar e inteligível ao senso comum16 civilizado dos cidadãos
em geral. As diversas instituições da sociedade, e as formas aceitas de
interpretá-las, são vistas como um fundo de idéias e princípios
implicitamente compartilhados”.17
Esse fundo de idéias e princípios implicitamente compartilhados — juntamente com
a idéia organizadora fundamental da justiça como eqüidade e da sociedade enquanto
sistema eqüitativo de cooperação no decorrer do tempo — deve conquistar um consenso
sobreposto.
2.2.2. Concepção política de pessoa
Se em Teoria Rawls não trata de doutrinas abrangentes, ou seja, das concepções
religiosas, morais e filosóficas professadas pelos cidadãos, em Liberalismo, como sabemos,
esse pluralismo será decisivo. Isso poderia significar que Rawls se voltaria para o cidadão
enquanto indivíduo, para uma análise das crenças individuais. No entanto, a posição de
Rawls é muito mais a de olhar o pluralismo simplesmente como um fato dado e irreversível
das sociedades democráticas contemporâneas. Sua análise não tem por objetivo os conflitos
e as características dessas diversas doutrinas ou seu significado histórico e moral — a não
ser, evidentemente, quando isso tem relação direta com seu objetivo central: saber como é
possível que cidadãos que professam as mais variadas doutrinas abrangentes possam chegar
a um acordo sobre princípios políticos fundamentais. Assim, podemos compreender, por
16
Para uma excelente análise da teoria da justiça como uma articulação e explicitação de noções
compartilhadas latentes no senso comum, ver a primeira parte do artigo: Perelman, Chaim, “Les conceptions
concrete et abstraite de la raison et de la justice” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 195-211.
17
Liberalismo, I, §2, p. 56.
71
extensão, que a “idéia fundamental de pessoa” está ligada diretamente à idéia de “sociedade
enquanto sistema eqüitativo de cidadãos livres e iguais no decorrer do tempo”.
Mas, na verdade, a concepção de pessoa em Rawls evolui e é definida de modo
diferente ao longo de suas obras. No artigo “Constitutional Liberty and the concept of
justice” (1963), em uma breve passagem, a pessoa é definida como sujeito de direito, ou
seja, como pessoa jurídica:
“O termo ‘pessoa’ deve ser entendido de modo geral como um sujeito de
reivindicações. Em alguns casos, ele significa indivíduos humanos, mas,
em outros, se refere a nações, corporações, igrejas, times e assim por
diante. Embora haja uma certa prioridade para o caso de indivíduos
humanos, os princípios de justiça se aplicam para relações entre todos
esses tipos de pessoas, e a noção de uma pessoa deve ser interpretada de
acordo.”18
Em Teoria, essa concepção é abandonada e a pessoa passa a ser compreendida
como indivíduo humano ou, às vezes, como chefe de família (no sentido de representante
de interesses). Os indivíduos são considerados como portadores das mesmas capacidades
físicas e mentais e como possuidores de seus próprios planos de vida ou concepções do
bem — condições que necessariamente levarão ao conflito de opiniões sobre a divisão dos
benefícios da cooperação social. Já antecipando um aspecto importante de sua teoria,
Rawls também enfatiza que há uma “diversidade de crenças filosóficas e religiosas, e de
doutrinas políticas e sociais”. De qualquer forma, essa visão de pessoa ainda está ligada à
idéia fundamental de Teoria de se voltar para a resolução do problema da divisão dos
recursos naturais e sociais disponíveis.
Mas em 1980, em “Kantian Constructivism in Moral Theory”, Rawls já esboça uma
concepção de pessoa no sentido kantiano de sujeito moral livre, responsável e autônomo
que, a partir de então, será adotada ao longo de todas as obras seguintes:
18
Collected Papers, p. 75.
72
“No momento, entretanto, estou preocupado com as partes na posição
original apenas como agentes racionalmente autônomos de construção
que (como tais agentes) representam o aspecto da racionalidade que é
parte da concepção da pessoa moral afirmada pelos cidadãos em uma
sociedade bem-ordenada. A autonomia racional das partes na posição
original contrasta com a autonomia total dos cidadãos na sociedade.
Assim, a autonomia racional é aquela das partes como agentes de
construção: é uma noção relativamente estreita, e tem um paralelo vago
com a noção kantiana dos imperativos categóricos (ou com a noção de
racionalidade encontrada na economia neoclássica); a autonomia total é
aquela dos cidadãos na vida diária que pensam em si mesmos de um certo
modo e afirmam e agem de acordo com o primeiro princípio de justiça
que seria acordado.”19
Em Liberalismo, Rawls está interessado na pessoa enquanto alguém que pode ser
um cidadão, ou seja, um membro cooperativo da sociedade. Para isso, é necessário que as
pessoas possuam duas capacidades morais: 1) capacidade de ter senso de justiça; 2)
capacidade de ter uma concepção do bem:
“Senso de justiça é a capacidade de entender a concepção pública de
justiça que caracteriza os termos eqüitativos da cooperação social, de
aplicá-la e de agir de acordo com ela. Dada a natureza da concepção
política de especificar uma base pública de justificação, o senso de justiça
também expressa uma disposição, quando não o desejo, de agir em
relação a outros em termos que eles também possam endossar
publicamente. A capacidade de ter uma concepção do bem é a capacidade
de formar, revisar e procurar concretizar racionalmente uma concepção
de vantagem racional pessoal, ou bem”.20
Além dessas faculdades morais, as pessoas também devem ser reconhecidas como
tendo concepções do bem sobre aquilo que é importante na vida humana, ou seja, fins
últimos que queremos realizar. Trata-se, portanto, de um conjunto de características cujo
objetivo é somente apontar o que seria um cidadão de uma sociedade democrática. Isso fica
claro quando Rawls exclui casos eventuais, como, por exemplo, o de pessoas que, por
motivos como incapacidade física ou mental, não podem participar adequadamente da
19
20
Collected Papers, p. 308.
Liberalismo, I, §3, p. 62.
73
cooperação social, pois o que interessa na elaboração da teoria é somente um ideal de
cidadão que pode participar ativamente da vida social.
Nesse sentido, Rawls tenta se aproximar de uma concepção a mais “neutra” possível
de pessoa, o que percebemos se voltarmos a refletir sobre as condições da posição original
de escolha dos princípios de justiça: a idéia de véu de ignorância é elaborada simplesmente
como um artifício de representação e pretende não supor nenhuma concepção metafísica
particular de pessoa.21 A descrição das partes na posição original não é nem uma tentativa
de explicação da psicologia moral nem de como os cidadãos agem numa sociedade bemordenada.22
O objetivo de Rawls é mostrar que os cidadãos devem ser concebidos apenas como
livres. E são livres em três sentidos. Primeiro, “concebem a si mesmos e aos outros como
indivíduos que têm a faculdade moral de ter uma concepção do bem”.23 Isso implica a
independência entre a sua identidade pública, como cidadão, e suas crenças específicas
sobre o bem ao longo da vida. Ou seja, abandonar uma crença religiosa (apostasia), não
muda em nada o papel de uma pessoa enquanto cidadã, sua identidade pública ou
21
Acusação feita, por exemplo, por Michael Sandel em Liberalism and the Limits os Justice (Cambridge:
Cambridge University Press, 1982) e rebatida por Rawls.
22
Um importante nota de Rawls esclarece esse ponto: “Parte da dificuldade é que não há uma interpretação
aceita do que seja uma doutrina metafísica. Pode-se dizer, como Paul Hoffman me sugeriu, que desenvolver
uma concepção política de justiça sem pressupor, ou sem usar explicitamente, uma doutrina metafísica
específica como, por exemplo, uma concepção metafísica de pessoa, já é pressupor uma tese metafísica, qual
seja, que não se requer nenhuma doutrina metafísica para esse propósito. Também se pode dizer que nossa
concepção corrente das pessoas como unidades básicas de deliberação e responsabilidade pressupõe, ou
envolve de algum modo, certas teses metafísicas sobre a natureza das pessoas enquanto agentes morais ou
políticos. Seguindo o método de esquiva, não quero negar essas proposições. O que se deve dizer é o
seguinte: se examinarmos a apresentação da justiça como eqüidade e observarmos como é formulada, e
observarmos as idéias e concepções que usa, nenhuma doutrina metafísica particular sobre a natureza das
pessoas, distinta e contraposta a outras doutrinas metafísicas, aparece entre suas premissas, ou parece
exigida pela argumentação. Se há pressupostos metafísicos envolvidos, talvez sejam tão gerais que não se
distinguiriam entre as visões metafísicas — cartesiana, leibniziana ou kantiana; realista, idealista ou
materialista — que constituem o objeto tradicional da filosofia. Nesse caso, não pareceriam relevantes para
a estrutura e o conteúdo de uma concepção política de justiça” (Liberalismo, I, §5, p. 72, nota 31).
23
Liberalismo, I, §5, p. 73.
74
institucional. Essa mudança diz respeito somente à concepção particular do bem e,
portanto, essa pessoa não pode ser, de nenhuma forma, punida por essa mudança.
Segundo, os cidadãos são livres porque são “fontes auto-autenticadoras de
reivindicações válidas. Isto é, consideram-se no direito de fazer reivindicações a suas
instituições de modo a promover suas concepções do bem (desde que essas concepções
estejam incluídas no leque permitido pela concepção pública de justiça)”.24
Terceiro, os cidadãos são livres por serem capazes de assumir responsabilidades por
seus objetivos, o que influencia o modo como lidam com suas reivindicações.
Dadas essas características da concepção de pessoa relacionada ao papel do cidadão
na sociedade, fica mais fácil entender por que Rawls dá tanto destaque à diferença entre
sociedade democrática bem-ordenada, associação e comunidade (tipo especial de
associação, unida por uma doutrina abrangente, como uma igreja). A primeira diferença é
que uma sociedade democrática é um sistema social completo e fechado: é auto-suficiente e
tem espaço para todos os principais objetivos da vida humana, e, para fins metodológicos
(evitar casos específicos demais, de difícil solução, como a questão dos imigrantes), só se
entra nela pelo nascimento e só se sai com a morte. Essa característica permite diferenciar
uma sociedade bem-ordenada de uma associação porque nesta pode-se ingressar a qualquer
momento da vida. Na sociedade, não: nela nascemos e passamos toda a vida.
A segunda diferença entre sociedade bem-ordenada e associação talvez explique
melhor por que Rawls elabora sua teoria estabelecendo uma distinção total entre doutrinas
abrangentes que constituem o pluralismo razoável e a concepção estritamente política de
justiça. Trata-se do fato de que uma sociedade bem-ordenada não tem fins últimos da
mesma forma que as pessoas ou as associações têm:
24
Liberalismo, I, §5, p. 76.
75
“Muitas sociedades do passado pensavam de outra forma: consideravam
como fins últimos a religião e a formação de impérios, a dominação e a
glória; e os direitos e status dos indivíduos e classes dependiam de seu
papel na realização desses fins. Nesse sentido, viam a si próprias como
associações.
Contrariamente a isso, uma sociedade democrática, com sua
concepção política de justiça, não pode de modo algum conceber-se como
uma associação. Não tem o direito, como as associações no interior da
sociedade geralmente têm, de oferecer termos diferenciados a seus
membros (nesse caso, àqueles nascidos nela), em função do valor de sua
contribuição potencial para a sociedade como um todo, ou aos fins
daqueles que já são membros dela. Se fazer isso é permissível no caso das
associações, isso ocorre porque, nesse caso, os membros futuros ou
possíveis já têm garantido o status de cidadãos livres e iguais, e as
instituições de justiça de base da sociedade asseguram que outras
alternativas estejam abertas para eles”.25
2.3. A idéia de um consenso sobreposto
Complementar à concepção de pessoa e seu papel numa sociedade bem-ordenada, a
distinção entre razoável e racional é fundamental para compreender a idéia de consenso
sobreposto e a sua exeqüibilidade — idéia que, como próprio Rawls afirma, é de inspiração
kantiana:
“A distinção entre o razoável e o racional remonta, creio eu, a Kant: é
expressa em sua distinção entre o imperativo categórico e o hipotético em
Foundations e em outros textos seus. O primeiro representa a razão
prática pura, o segundo representa a razão prática empírica. Para os
propósitos de uma concepção política de justiça, atribuo ao razoável um
sentido mais restrito e associo a ele, primeiro, a disposição de propor e
sujeitar-se a termos eqüitativos de cooperação e, segundo, à disposição de
reconhecer os limites do juízo e de aceitar suas conseqüências.”26
Nesta linha kantiana, Rawls dirá que as pessoas são razoáveis quando são capazes
de escolher e seguir normas que poderão contribuir para a cooperação social, ou seja, serão
25
26
Liberalismo, I, §7, p. 85-6.
Liberalismo, II, §1, p. 92, nota 1.
76
aceitas por todos. A reciprocidade, portanto, é um elemento fundamental do razoável.
Trata-se também, da idéia de uma concepção pública.
De modo distinto, a reciprocidade não está relacionada ao racional, que diz respeito
às ações dos agentes individualmente, na busca de seus interesses particulares e a todos os
aspectos dessa busca ou escolha de fins ou bens. Não é uma concepção pública, portanto.27
Assim, razoável e racional são duas idéias distintas e independentes e uma não pode
ser derivada da outra. Rawls nega sobretudo a derivação do razoável (princípios bem
definidos de justiça) a partir do racional (preferências e decisões dos agentes):28
“A justiça como eqüidade rejeita essa idéia. Não procura derivar o
razoável do racional. Na verdade, a tentativa de fazer isso pode indicar
que o razoável não é fundamental e necessita de uma base da qual o
racional não precisa na mesma medida. Dentro da idéia da cooperação
eqüitativa, o razoável e o racional são noções complementares. Ambos
são elementos dessa idéia fundamental, e cada um deles conecta-se com
uma faculdade moral distinta — respectivamente, com a capacidade de
ter um senso de justiça e com a capacidade de ter uma concepção do bem.
Ambos trabalham em conjunto para especificar a idéia de termos
eqüitativos de cooperação, levando-se em conta o tipo de cooperação
social em questão, a natureza das partes e a posição de cada uma em
relação à outra”.29
27
Para uma lista completa dos elementos básicos da concepção dos cidadãos como razoáveis e racionais, ver
Liberalismo, II, § 7, p. 126.
28
Nesse sentido, na posição inicial não ocorre uma derivação do razoável em relação ao racional: “Aqui
corrijo uma observação de Teoria, p. 16, segundo a qual a teoria da justiça é uma parte da teoria da decisão
racional. A partir do que acabamos de dizer, isso é simplesmente incorreto. O que deveria ter sido dito é que
a interpretação das partes, e de seu raciocínio, usa a teoria da decisão racional, embora apenas de forma
intuitiva. Essa teoria é, ela mesma, parte de uma concepção política de justiça, uma concepção que procura
apresentar uma definição dos princípios razoáveis de justiça. Não há a menor intenção de derivar esses
princípios do conceito de racionalidade como o único conceito normativo. Acredito que o texto de Teoria
como um todo está de acordo com essa interpretação” (Liberalismo, II, §1, p. 96, nota 7).
29
Liberalismo, II, §1, p. 95-6.
77
Portanto, embora distintas, o razoável e o racional são complementares: agentes
puramente razoáveis não teriam fins próprios, e agentes puramente racionais não teriam
senso de justiça, inviabilizando, portanto, a cooperação social.30
Dada a definição de razoável, é possível agora especificar o que são doutrinas
abrangentes razoáveis. Para Rawls, elas possuem três características: 1) ser um exercício da
razão teórica, ou seja, estar relacionada aos principais aspectos religiosos, filosóficos e
morais da vida humana; 2) ser também um exercício da razão prática porque seleciona
valores e tenta equilibrá-los quando em conflito; 3) ser baseada numa tradição de
pensamento e doutrina.31
Assim, a existência de um pluralismo de doutrinas razoáveis abrangentes é um fato
normal de um regime democrático. Melhor dizendo, é um fato normal do pensamento
humano que pode ser desenvolvido em regimes democráticos que procuram garantir
especialmente a liberdade de expressão. E essas diversas doutrinas são razoáveis na medida
em que conseguem coexistir umas com as outras, num ambiente de tolerância e liberdade
de pensamento. Cada cidadão, com sua doutrina razoável, sabe que os outros são livres
para terem suas próprias doutrinas e que, portanto, não há espaço para qualquer tipo de
coação por alguém adotar qualquer tipo de doutrina, desde que ela seja razoável.
30
Para um entendimento do que Rawls chama de “limites do juízo” (burdens of judgement), ou seja,
elementos que causam discordância entre as pessoas razoáveis, e que são de extrema importância para a idéia
democrática de tolerância, ver “Os limites do juízo” (Liberalismo, II, §2).
31
Como a intenção de Rawls é elaborar uma teoria ideal, ele evita uma definição demasiadamente fechada de
doutrina abrangente: “Essa definição de doutrinas abrangentes e razoáveis é deliberadamente vaga. Evitamos
excluir doutrinas como não-razoáveis, a não ser que tenhamos razões sólidas para tanto, fundadas em
aspectos claros do razoável propriamente dito. Caso contrário, nossa definição corre o risco de ser
arbitrária e exclusiva. O liberalismo político considera razoáveis muitas das doutrinas conhecidas e
tradicionais — religiosas, filosóficas e morais —, mesmo quando não as levamos seriamente em conta em
termos pessoais, por pensarmos que dão peso excessivo a alguns valores e não reconhecem a importância de
outros. Mas o liberalismo político não precisa de um critério mais rigoroso para seus propósitos”.
(Liberalismo, II, §3, p. 103-4). Por outro lado, sua visão é bastante clara quando se trata de limitar doutrinas
não-razoáveis: “A existência de doutrinas que negam uma ou mais liberdades democráticas é, por si, um fato
permanente da vida, ou assim parece. Isso nos impõe a tarefa prática de contê-las — como se contém uma
guerra ou uma doença —, para que não subvertam a justiça política”. (Liberalismo, II, §3, p. 108, nota 19).
78
Essa concepção de convivência entre doutrinas razoáveis tem por objetivo criar a
possibilidade de existência de uma base pública de justificação, através da qual os
cidadãos, embora com suas concepções particulares, possam chegar a um acordo sobre
questões políticas fundamentais.
Portanto, outro fator essencial para garantir uma base pública de justificação é o que
Rawls chama de “condição de publicidade”, com seus três níveis. O primeiro diz respeito
ao momento em que “a sociedade é efetivamente regulada por princípios públicos de
justiça: os cidadãos aceitam e sabem que os outros também aceitam esses princípios, e
essa percepção, por sua vez, é publicamente reconhecida.”32 O nível seguinte diz respeito
às crenças gerais, são as visões públicas do que é uma sociedade bem-ordenada. E o
terceiro nível diz respeito à justificação plena da concepção pública de justiça, presente na
cultura pública, no sistema jurídico, nas instituições políticas e nas tradições históricas.
Assim, é importante que uma estrutura básica apoiada em sanções coercitivas
(Estado como detentor do monopólio da força) satisfaça as condições do que Rawls chama
de “publicidade plena”, já que as instituições da estrutura básica devem resistir ao exame
público e os cidadãos devem ter claro para si mesmos o que essas instituições exigem e o
que podem exigir delas — instituições essas que são, afinal, responsáveis por moldar as
concepções dos cidadãos sobre si mesmos, seu caráter e seus fins.
2.3.1. O construtivismo
O aspecto kantiano da obra de Rawls apresenta, além da distinção entre razoável e
racional, um outro elemento: a concepção de que os princípios de justiça política devem ser
32
Liberalismo, II, §4, p. 110.
79
o resultado de um procedimento de construção. Esse processo construtivista tem por
objetivo atingir uma concepção adequada de objetividade e é a estrutura que gera o
conteúdo (os princípios de justiça):
“Nesse procedimento, modelado de acordo com a posição original, os
agentes racionais, enquanto representantes dos cidadãos e sujeitos a
condições razoáveis, selecionam os princípios públicos de justiça que
devem regular a estrutura básica da sociedade. Esse procedimento, assim
conjeturamos, sintetiza todos os requisitos relevantes da razão prática e
mostra como os princípios de justiça resultam dos princípios da razão
prática conjugados às concepções de sociedade e pessoa, também elas
idéias da razão prática.”33
Fazendo uma distinção entre o construtivismo político e o realismo moral
representado pelo intuicionismo racional por um lado, e o construtivismo moral kantiano,
por outro lado,34 Rawls apresenta as quatro características principais do construtivismo
político. Primeiro, como já foi mencionado, o procedimento de construção é a estrutura que
elabora os princípios de justiça através da seleção feita pelas partes submetidas a condições
razoáveis.
Segundo, o procedimento de construção está baseado na razão prática, e não na
teórica, ou seja, está baseado na razão que — seguindo a definição de Kant — produz
objetos de acordo com a concepção desses objetos, como a concepção de um regime
constitucional justo como sendo o objetivo da atividade política; enquanto a razão teórica
está relacionada somente ao conhecimento dos objetos.
Terceiro, o construtivismo político recorre a uma concepção completa de pessoa e
de sociedade, de acordo com o já exposto, ou seja, as pessoas (com suas capacidades
33
34
Liberalismo, III, p. 134.
Cf. Liberalismo, III, §§ 1 e 2.
80
morais e concepções do bem) são vistas como membros de uma sociedade política que, por
sua vez, é vista como um sistema eqüitativo de cooperação social.
Por fim, em quarto lugar, o construtivismo não usa o conceito de verdade, mas sim
o de razoabilidade, de acordo com as características dessa concepção já vistas por nós.
Nesse sentido, o construtivismo político não gera nenhuma ordem de valores morais, pois
está preocupado somente com princípios de justiça. Essa e todas as demais características
estão relacionadas com a idéia de que os princípios de justiça devem estar de acordo com a
cooperação social baseada não em alguma verdade suprema ou autoridade externa, como,
por exemplo, a autoridade divina, mas em um acordo entre os próprios cidadãos sobre o
que promoverá o benefício mútuo. Em suma, é uma visão doutrinal autônoma porque não
depende de exigências morais — exteriores ou não (caso da heteronomia doutrinal).
Semelhantemente à concepção construtivista na matemática, o construtivismo político
adota a idéia de avaliação de todos os critérios relevantes para a escolha do raciocínio
correto, só assim é possível articular uma concepção política de justiça que possa ser
aceitável para todas as doutrinas abrangentes e razoáveis de uma sociedade.
2.3.2. As características do consenso sobreposto
Analisados todos esses elementos fundamentais, podemos passar agora para uma
caracterização mais detalhada da idéia de consenso sobreposto com o objetivo de seguir a
argumentação rawlsiana sobre a possibilidade de um tal consenso garantir a estabilidade e
unidade de uma sociedade democrática bem-ordenada — que não podem ser garantidas
através de uma doutrina abrangente. Trata-se, portanto, de saber como o liberalismo
político é possível, o que significa questionar como é possível que valores políticos possam
81
superar o conflito entre os valores não-políticos, e também o conflito desses valores com o
próprio valor político. O pressuposto de Rawls é que os cidadãos possuem a capacidade de
fazer uma distinção clara entre sua visão política e sua visão abrangente, cabendo a eles
próprios a tarefa de relacionar esses dois âmbitos. 35
Assim, uma sociedade será estável se cumprir duas condições, relacionadas,
respectivamente, com as duas questões principais do liberalismo político (estabelecer uma
concepção de justiça e lidar com o fato do pluralismo razoável):
“A estabilidade envolve duas questões: a primeira é saber se as pessoas
que crescem em meio a instituições justas (como a concepção política as
define) adquirem um senso de justiça suficiente, de modo a geralmente
agirem de acordo com essas instituições. A segunda é saber se, em vista
dos fatos gerais que caracterizam a cultura política e pública de uma
democracia — e, em particular, o fato do pluralismo razoável —, a
concepção política pode ser o foco de um consenso sobreposto.
Pressuponho que esse consenso consista em doutrinas abrangentes e
razoáveis que, em uma estrutura básica justa (como a concepção política
a define), provavelmente persistirão e conquistarão adeptos no decorrer
do tempo.
Ambas as questões requerem uma resposta em separado. A
primeira é respondida pela exposição da psicologia moral, de acordo com
a qual os cidadãos de uma sociedade bem-ordenada adquirem um senso
de justiça normalmente suficiente, de tal modo que agem de acordo com
seus arranjos justos. A segunda é respondida pela idéia de um consenso
sobreposto e pelo enfrentamento das várias dificuldades geradas por
ele.”36
Em ambos os casos, será preciso recorrer à idéia de psicologia moral, já que se trata
de conquistar o apoio de cada cidadão.
Uma das importantes características destacadas por Rawls para que se entenda
exatamente em que consiste um consenso sobreposto é diferenciá-lo de um modus vivendi,
35
Jeremy Waldron, no artigo “Disagreements about justice” (The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable
Pluralism, p. 78-91), defende a tese de que é preciso especificar melhor a distinção entre desacordo sobre o
bem e desacordo sobre a justiça, ou seja, sobre concepções de justiça. Waldron tenta mostrar que Rawls não
leva em consideração esse último desacordo de uma forma adequada com a política e o processo
constitucional de nossas sociedades.
36
Liberalismo, IV, §2, p. 187.
82
expressão utilizada para descrever um tratado entre dois Estados em conflito. O acordo só é
possível porque se chega a um equilíbrio de interesses que seja vantajoso para ambos. Essa
estabilidade será quebrada se um Estado, ou ambos, pressionarem no sentido de perseguir
seus interesses particulares. Portanto, o modus vivendi é uma situação de aparente
estabilidade, baseada em condições que não fornecem uma justificação satisfatória para a
tolerância. Como afirma Samuel Scheffler,
“... uma defesa da tolerância que se baseia inteiramente em fundamentos
pragmáticos parece incapaz de dar conta do apelo moral da idéia de
tolerância e, de qualquer forma, mantém a sua força apenas enquanto o
balanço necessário de poder na sociedade é preservado. Se um grupo
ganha força suficiente de modo que uma política de intolerância possa
parecer tentadora, o argumento pragmático não fornece razões para
resistir à tentação.”37
A função do consenso sobreposto é justamente diferenciar-se desse modus vivendi.
Para isso, o objetivo é que o acordo sobre os princípios políticos fundamentais venha de
cada uma das próprias visões abrangentes. Esse fato, juntamente com a idéia de uma
concepção política independente e que não contraria nenhuma doutrina abrangente, faz
com que o consenso sobreposto seja mantido mesmo que alguma doutrina abrangente
ganhe mais força na sociedade, diferentemente do que ocorre com um simples modus
vivendi.
O mérito do consenso sobreposto seria, portanto, combinar as vantagens da situação
de equilíbrio de um modus vivendi (a estabilidade) com as de uma concepção pluralista de
valor,38 mas evitando as falhas de ambas (precariedade da estabilidade e falta de
fundamentação para a tolerância). Isso é feito através de uma combinação do
37
Scheffler, Samuel. “The Appeal of Political Liberalism”, The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable
Pluralism, p. 95.
38
Uma concepção pluralista de valor pode ser um nome dado às teorias que afirmam que o que tem valor para
as pessoas é algo irredutivelmente heterogêneo e, portanto, só resta tolerar os mais diversos modos de vida. É
um tipo de teoria que, portanto, não oferece fundamentos mais profundos para a idéia de tolerância.
83
reconhecimento do desacordo e da diversidade presentes na sociedade e da tentativa de
evitar o conflito com qualquer argumentação moral controversa. Rawls procura
fundamentar sua argumentação somente nas razões morais que os cidadãos possuem e que
sustentam a sociedade liberal.
Uma segunda característica importante do consenso sobreposto é que ele não
defende nem nega qualquer doutrina abrangente. A questão sobre a verdade das doutrinas
abrangentes não pode ser objeto do consenso sobreposto. Só dessa forma é possível fazer
com que todos os cidadãos aceitem uma concepção política de justiça e, a parir de suas
próprias visões filosóficas, religiosas e morais, apóiem essa concepção. Sem isso, as
controvérsias seriam inevitáveis, e o consenso, impossível.
Evidentemente, essa concepção de Rawls é o aspecto mais problemático e de difícil
aceitação de todo o seu liberalismo político. Rawls apresenta quatro exemplos de tipos de
situações que poderiam levar a um consenso sobreposto. O primeiro seria o caso de adeptos
de uma doutrina religiosa que aceitariam o consenso porque defendem a livre expressão da
fé, o que é garantido pelas liberdades fundamentais de um regime constitucional em uma
sociedade regida pelos dois princípios de justiça. O segundo exemplo seria o de defensores
de doutrinas liberais abrangentes como as de Kant e de Stuart Mill; essas pessoas
chegariam ao consenso porque ele não contraria nenhuma de suas visões abrangentes
particulares. Uma das insistências de Rawls, portanto, é em diferenciar seu liberalismo
político desses tipos de liberalismos abrangentes. O terceiro exemplo seria, na verdade, o
mais freqüente em sociedades capitalistas com uma certa tradição democrática: pessoas que
não necessariamente possuem uma visão abrangente unificada, somente crenças sobre
concepções de justiça, juntamente com outros valores não políticos. Para Rawls, neste caso
não seria difícil chegar a um consenso sobreposto. O quarto exemplo é o mais
84
problemático: que adeptos de teorias utilitaristas aceitariam o consenso sobreposto. Ora,
toda a argumentação de Rawls sobre os dois princípios de justiça tem por objetivo ser uma
alternativa à teoria utilitarista, como já vimos estar bastante claro sobretudo em Teoria.
Como, então, adeptos do utilitarismo poderiam endossar um consenso sobreposto sobre os
princípios da justiça como eqüidade? Claro que a resposta de Rawls, até mesmo já
antecipada em Teoria, é a de que em condições sociais normais até mesmo um utilitarista
concordaria que os princípios de justiça seriam uma aproximação mais adequada do
princípio da utilidade. Mas essa resposta é satisfatória? É satisfatória para esse e também
para os demais casos de doutrinas abrangentes? E até que ponto a aceitação do consenso
sobreposto não força em direção a um enfraquecimento das doutrinas abrangentes?
Talvez uma resposta não possa ser dada especificamente para essas questões, mas
sim uma resposta em direção à outra forma pela qual um consenso sobreposto pode ser
alcançado. E essa resposta está justamente no terceiro exemplo mencionado logo acima:
que o comum em sociedades liberais que já internalizaram seus valores fundamentais é que
os cidadãos não sejam adeptos de doutrinas abrangentes totalmente articuladas, e sim que
defendam valores e convicções que variam em graus de generalidade. Isso remeteria para a
idéia de que um consenso sobreposto precisa ser compreendido como consenso entre
cidadãos e não entre adeptos de determinadas teorias abrangentes. Essa interpretação
estaria de acordo com a concepção rawlsiana de cidadão e de pessoa e das visões que esses
cidadãos precisam ter sobre a sociedade onde vivem.
Outro aspecto controverso é até que ponto os cidadãos que aceitam um consenso
sobreposto o vêem como uma concepção de fato política, ou seja, uma concepção que
sustenta a si mesma — portanto, não derivada de nenhuma doutrina abrangente — e é a
85
formulação de idéias implícitas na cultura política pública de uma sociedade. Como Samuel
Scheffler explica, trata-se de uma questão de nível de exigência:
“... pareceria insensato fazer disso [aceitar o consenso sobreposto como
uma concepção política] um requisito para participar de um consenso
sobreposto. Pois em quanto mais coisas as pessoas tenham que acreditar
de forma a serem incluídas em tal consenso, mais difícil será para um
consenso ser realmente alcançado. Em outras palavras, se a participação
no consenso requer a afirmação não apenas de um conjunto particular de
princípios de justiça, mas também de certas “metateses” [metatheses]
sobre o status desses princípios, então, mantendo as outras coisas, se
esperaria que o consenso incluísse menos pessoas.”39
Podemos considerar que uma possível resposta para esse problema estaria na idéia
de razão pública e no modo pela qual ela funciona de modo a dar apoio a uma idéia de
consenso sobreposto que seja compreendido como exclusivamente político. Veremos logo
em seguida que a distinção feita por Rawls entre visão inclusiva e visão exclusiva de razão
pública pode ajudar a esclarecer esse ponto.
Por fim, Rawls apresenta uma exposição do modo pelo qual um consenso
sobreposto se forma. A idéia é baseada em parte numa concepção que toma a história como
exemplo: num primeiro estágio, há um consenso constitucional sobre os princípios liberais
de justiça, inicialmente aceitos apenas como um modus vivendi. Por serem princípios
adotados na constituição, de alguma forma os cidadãos alterarão suas doutrinas abrangentes
caso elas sejam contrárias a esses princípios liberais.
A partir de então, alguns passos são dados em direção ao consenso sobreposto.
Primeiramente, os grupos políticos, de uma forma ou de outra, são forçados a participar da
discussão pública. Já que inevitavelmente haverá confrontos com outros grupos que não
apóiam a mesma doutrina abrangente, isso implica que é necessário elevar a discussão para
39
Scheffler, Samuel. “The Appeal of Political Liberalism”, The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable
Pluralism, p. 103.
86
o âmbito de concepções políticas de justiça mais amplas que possam ser justificadas
publicamente. Logo em seguida, surgem reivindicações relacionadas à extensão do
consenso, já que é preciso garantir que haja um certo nível mínimo de bem-estar material e
social que torne os cidadãos capazes de participar da sociedade como iguais. A idéia geral
de Rawls é a de que, ao longo do tempo, a partir de um modus vivendi instável, passando
por um consenso constitucional em direção, finalmente, a um consenso sobreposto, os
cidadãos ganham confiança uns nos outros e em todo o processo. Nesse sentido, passam a
ter respeito pelos limites da razão pública. Só assim é possível garantir uma harmonia entre
a concepção política e as visões abrangentes, conjuntamente com o reconhecimento público
das principais virtudes e valores políticos.
2.4. A prioridade do justo sobre o bem
Outro aspecto essencial para o liberalismo político é compreender os motivos e as
conseqüências da afirmação de que, na teoria da justiça como eqüidade, o justo tem
prioridade sobre o bem. Trata-se novamente de tornar claros os limites entre a concepção
política de justiça, restrita à estrutura básica da sociedade, e as diversas doutrinas
abrangentes — cada uma com significados próprios do que seja o bem — presentes na
sociedade:
“O significado específico da prioridade do justo é o de que as concepções
abrangentes do bem são aceitáveis, ou pode-se procurar realizá-las na
sociedade, apenas quando sua realização está em conformidade com a
concepção política de justiça.”40
40
Liberalismo, V, §1, p. 223, nota 2.
87
Rawls cita cinco idéias de bem que são encontradas na justiça como eqüidade: 1) o
bem como racionalidade; 2) os bens primários; 3) o bem enquanto parte de doutrinas
abrangentes; 4) as virtudes políticas; 5) o bem numa sociedade bem-ordenada. Apenas faço
alguns comentários sobre as idéias que ilustram de forma mais esclarecedora a distinção
entre a concepção política de justiça e as doutrinas abrangentes.
Uma importante idéia de bem que precisa ser levada em consideração é a de bens
primários, que são escolhidos através de um entendimento político sobre o que deveria ser
publicamente reconhecido como as necessidades básicas dos cidadãos. O objetivo é chegar
a uma lista de bens primários que garanta que os cidadãos possam realizar seus projetos
racionais, ou seja, suas idéias do que seja o bem racional (primeiro tipo de bem citado
acima).
Baseado em comparações interpessoais e levando em consideração o fato do
pluralismo razoável, Rawls propõe as seguintes categorias de bens primários:41
“a. os direitos e liberdades fundamentais, que também constituem uma
lista;
b. liberdade de movimento e livre escolha de ocupação num contexto de
oportunidades diversificadas;
c. poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas
instituições políticas e econômicas da estrutura básica;
d. renda e riqueza;
e. as bases sociais do auto-respeito.”42
Assim, essa idéia de bens razoáveis é uma concepção política que tem como
objetivo atender à idéia de bem como racionalidade. Os bens primários especificam as
necessidades dos cidadãos em relação às questões de justiça política.
41
Rawls chama atenção (Liberalismo, V, §3, p. 231-4) para as várias objeções levantadas sobre a questão dos
bens primários (idéia já exposta em Teoria). Essas objeções dizem respeito à adequação dos bens primários à
diversidade de capacidades morais, intelectuais, físicas (deficiências), à diversidade de concepções de bem, de
gosto, de preferência, etc. Refutando essas objeções, digamos assim, contingentes, fica claro que Rawls está
interessado somente numa formulação ideal da idéia dos bens primários.
42
Liberalismo, V, §3, p. 228.
88
Outro importante aspecto que precisa ser destacado são as observações de Rawls
sobre a questão da neutralidade:
“Historicamente, um tema comum do pensamento liberal é o de que o
Estado não deve favorecer nenhuma doutrina abrangente, nem a
concepção do bem associada a cada uma delas. Mas um tema igualmente
comum de crítica ao liberalismo é o de que este não consegue pôr essa
idéia em prática e, na verdade, tende arbitrariamente em favor de uma
forma ou outra de individualismo. Como observei no início, pode parecer
que a afirmação da prioridade do justo deixa a justiça como eqüidade
(enquanto uma forma de liberalismo político) vulnerável a uma objeção
semelhante.”43
Essa posição do liberalismo leva à necessidade de especificar em que sentidos a
teoria da justiça como eqüidade pode ser chamada de neutra. Rawls apresenta três sentidos
para o termo neutralidade: 1) neutralidade procedimental; 2) neutralidade de objetivos; 3)
neutralidade de influência. A neutralidade procedimental seria aquela pressuposta num
procedimento que não recorreria a qualquer valor moral. Rawls afirma que a justiça como
eqüidade não é neutra no sentido procedimental. Isso ocorre porque ela recorre, sim, a
princípios de justiça que são substantivos e a concepções determinadas de pessoa e de
sociedade.
Quanto à neutralidade de objetivos, Rawls enfatiza que a justiça como eqüidade só é
neutra em relação aos objetivos se isso significar não-interferência do Estado para
promover ou favorecer qualquer doutrina abrangente ou os que a seguem. Assim, não há
neutralidade de objetivo nem no sentido de promover qualquer doutrina abrangente
(somente as doutrinas que respeitam os princípios de justiça podem florescer), nem no
sentido de não exercer certa influência sobre doutrinas abrangentes que, afinal, devem
seguir os princípios da justiça:
43
Liberalismo, V, §5, p. 238.
89
“...podemos distinguir a neutralidade procedimental da neutralidade de
objetivo; mas esta última não deve ser confundida com neutralidade de
efeito ou de influência. Enquanto uma concepção política voltada para a
estrutura básica, a justiça como eqüidade, considerada em seu todo,
procura oferecer um terreno comum como objeto de um consenso
sobreposto. E também espera satisfazer a neutralidade de objetivo, a fim
de que as instituições básicas e a política pública não sejam planejadas
para favorecer qualquer doutrina abrangente específica. O liberalismo
político deixa de lado a neutralidade de efeito ou de influência como algo
impraticável, e, como essa idéia é sugerida muito fortemente pelo próprio
termo “neutralidade”, tem-se aí um motivo para evitá-lo.
Embora o liberalismo político procure um terreno comum e seja
neutro quanto ao objetivo, é importante enfatizar que, apesar disso, pode
afirmar a superioridade de certas formas de caráter moral e encorajar
certas virtudes morais. Assim sendo, a justiça como eqüidade inclui uma
definição de certas virtudes políticas — as virtudes da cooperação social
eqüitativa, tais como as virtudes da civilidade e da tolerância, da
razoabilidade e do senso de justiça. O ponto crucial é que admitir essas
virtudes no âmbito de uma concepção política não leva ao Estado
perfeccionista de uma doutrina abrangente.”44
A idéia de Rawls, portanto, é a de que o Estado deve procurar somente seguir os
princípios mais razoáveis para garantir a cooperação social entre cidadãos livres e iguais.
Isso pode influenciar certas doutrinas abrangentes? Sim, mas este fato, para Rawls, não
pode ser evitado. Resta saber, então, se essa influência inevitável sobre doutrinas
abrangentes e modos de vida ligados a elas é justa. Para Rawls, essa influência parece ser
justa, dado que os dois casos em que há conflitos são resultado de doutrinas abrangentes
que, devido a suas reivindicações, não podem encontrar espaço numa sociedade
democrática: 1) doutrinas abrangentes que não concordam com os princípios de justiça (a
favor da escravidão, por exemplo) e 2) doutrinas abrangentes que, embora permissíveis,
não conquistam adeptos justamente por pregar idéias como a de controle do Estado ou a
intolerância. Recorrendo a Isaiah Berlin,45 Rawls afirma que é impossível uma sociedade
44
45
Liberalismo, V, §5, p. 242.
Cf. Liberalismo, V, §6, p. 245, nota 32.
90
que comporte absolutamente todas as visões de mundo, pois isso levaria ao caos. Alguma
perda sempre haverá.
Por fim, a última idéia de bem — o bem da sociedade política — esclarece de que
modo Rawls lida com as críticas de que seu liberalismo político não consegue ultrapassar a
concepção liberal clássica de “sociedade de fins individuais” ou “sociedade privada”, na
qual o que importa é somente a busca individual dos interesses de cada cidadão, ou seja,
onde não haveria uma “ideal de comunidade”. Para Rawls, se por “ideal de comunidade” se
entender um ideal social determinado por uma doutrina abrangente, de fato não há espaço
para esse ideal na sociedade proposta pelo seu liberalismo político. A única unidade social
possível é aquela derivada de um consenso sobreposto relativo a uma concepção política de
justiça para um regime constitucional. Não seria possível desejar mais do que esse
consenso sobreposto a respeito das questões políticas fundamentais:46
“A partir dessas suposições, podemos dizer que a sociedade bemordenada da justiça como eqüidade é um bem em dois sentidos. O
primeiro é ser um bem para as pessoas individualmente, e por duas
razões. Uma delas é que o exercício das duas capacidades morais é
percebido como um bem. Trata-se de uma conseqüência da psicologia
moral utilizada pela justiça como eqüidade.
(...)
Uma segunda razão para dizermos que a sociedade política é um bem
para os cidadãos é que lhes garante o bem da justiça e das bases sociais
de seu auto-respeito e do respeito mútuo. Assim sendo, ao assegurar
iguais direitos e liberdades fundamentais, igualdade eqüitativa de
oportunidades e assim por diante, a sociedade política garante os
elementos essenciais do reconhecimento público das pessoas como
cidadãos livres e iguais. Ao garantir essas coisas, a sociedade política
satisfaz as necessidades fundamentais dos cidadãos.”47
46
Para complementar as explicações sobre o bem da sociedade política, ver as importantes considerações
feitas por Rawls sobre o “republicanismo clássico” e o “humanismo cívico” em Liberalismo, V, §7, p. 253-5.
47
Liberalismo, V, §7, p. 251-2.
91
2.5. A idéia de razão pública
O último elemento a destacar no liberalismo político de Rawls é a importante idéia
de razão pública:
“A razão pública é característica de um povo democrático: é a razão de
seus cidadãos, daqueles que compartilham o status da cidadania igual. O
objeto dessa razão é o bem público: aquilo que a concepção política de
justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos
objetivos e fins a que devem servir. Portanto, a razão pública é pública
em três sentidos: enquanto a razão dos cidadãos como tais, é a razão do
público; seu objetivo é o bem do público e as questões de justiça
fundamental; e sua natureza e conceito são públicos, sendo determinados
pelos ideais e princípios expressos pela concepção de justiça política da
sociedade e conduzidos à vista de todos sobre essa base.”48
Para Rawls, portanto, a razão pública está restrita aos “elementos constitucionais
essenciais”49 e às questões de justiça básica, mas não a todas questões políticas, mesmo que
sejam questões políticas públicas. Obviamente, também não se aplica às deliberações
pessoais ou de grupos (igrejas, universidades, sociedades científicas, grupos profissionais
etc., que possuem razões não públicas50) sobre questões políticas. O objetivo é evitar
controvérsias, tanto que Rawls exclui até mesmo o segundo princípio de justiça —
igualdade eqüitativa de oportunidades e o princípio da diferença — dos elementos
constitucionais essenciais por ele não ser uma questão tão pacífica quanto o primeiro
princípio que garante as liberdades básicas.
48
Liberalismo, VI, p. 261-2.
Os elementos constitucionais essenciais são de dois tipos: “a. os princípios fundamentais que especificam a
estrutura geral do Estado e do processo político: as prerrogativas do legislativo, do executivo e do
judiciário; o alcance da regra da maioria; b. os direitos e liberdades fundamentais e iguais de cidadania que
as maiorias legislativas devem respeitar, tais como o direito ao voto e à participação na política, a liberdade
de consciência, a liberdade de pensamento e de associação, assim como as garantias do império da lei.”
(Liberalismo, VI, §5, p. 277).
50
Cf. Liberalismo, VI, §3, p. 269-72).
49
92
Com isso, Rawls quer deixar claro que os limites da razão pública devem ser
respeitados em qualquer discussão sobre questões políticas fundamentais, ou seja, não se
pode recorrer a uma concepção de verdade para resolver problemas políticos fundamentais.
Assim, os limites da razão pública são especificados precisamente: além de se voltar
exclusivamente para as questões políticas fundamentais, a razão pública deve se aplicar não
somente aos fóruns oficiais e àqueles que os ocupam, mas também aos cidadãos em geral.
Sem isso, a idéia de cooperação social ruiria e não haveria sentido em pensar os cidadãos
como detentores de igual poder político coercitivo:
“Enquanto razoáveis e racionais, e sabendo-se que endossam uma grande
diversidade de doutrinas religiosas e filosóficas razoáveis, os cidadãos
devem estar dispostos a explicar a base de suas ações uns para os outros
em termos que cada qual razoavelmente espera que outros possam
aceitar, por serem coerentes com a liberdade e igualdade dos cidadãos.
Procurar satisfazer essa condição é uma das tarefas que esse ideal de
política democrática exige de nós. Entender como se comportar enquanto
cidadão democrático inclui entender um ideal de razão pública.”51
Obviamente, Rawls não desconsidera os problemas mais comuns enfrentados pela
razão pública, mostrando, assim, que ela não é um conceito “engessado”. É preciso levar
em consideração que às vezes não será possível chegar a um acordo muito grande na razão
pública, mas isso não pode significar um motivo para abandoná-la. A idéia central de
Rawls, aqui, é que não é necessário que todos aceitem os mesmos princípios de justiça, mas
que as discussões sejam conduzidas em termos de idéias sobre a concepção política que
todos aceitam, ou seja, através da qual possam justificar seu voto uns aos outros através de
argumentos razoáveis. Nesse sentido, estabelece-se uma clara diferença entre o que a razão
pública e uma doutrina abrangente dariam como resposta para uma determinada questão
política. Apenas o que se espera é que a resposta da razão pública esteja no que Rawls
51
Liberalismo, VI, §2, p. 267.
93
chama de “margem de segurança permitida por cada uma das doutrinas abrangentes e
razoáveis que constituem um consenso sobreposto”.52 Evidentemente, essa margem tem
que ser compreendida no sentido de que é preciso que as doutrinas abrangentes estejam de
acordo com a concepção política que é, afinal, uma expressão razoável das idéias políticas
fundamentais estabelecidas por cidadãos livres e iguais.
Além disso, Rawls estabelece a distinção entre “visão exclusiva” e “visão inclusiva”
da razão pública. A primeira afirma que as razões de doutrinas abrangentes não devem ser
introduzidas na razão pública; a segunda afirma que é permitido aos cidadãos apresentar os
valores políticos de doutrinas abrangentes em fóruns públicos, desde que isso sirva pra
fortalecer o próprio ideal de razão pública. A opinião de Rawls sobre esse ponto mostra
como sua concepção de razão pública é “flexível”, como ele mesmo afirma:
“A questão é, nesse caso, saber se devemos entender o ideal de razão
pública de acordo com a visão exclusiva ou de acordo com a visão
inclusiva. A resposta depende de qual das duas visões incentiva mais os
cidadãos a respeitarem o ideal da razão pública, assegurando suas
condições sociais ao longo prazo numa sociedade bem-ordenada.
Aceitando-se isso, a visão inclusiva parece ser a melhor, pois em
condições políticas e sociais diferentes, com diferentes famílias de
doutrina e prática, o ideal deve certamente ser promovido e realizado de
formas diferentes, às vezes pelo que parece ser uma visão exclusiva,
outras vezes pelo que parece ser uma visão inclusiva. Aquelas condições
determinam, portanto, a melhor maneira de atingir o ideal, tanto a curto
quanto a longo prazo. A visão inclusiva admite essa variação e é mais
flexível, quando isso é necessário para promover o ideal de razão
pública.”53
Assim, a visão exclusiva seria mais adequada a uma sociedade bem-ordenada,
enquanto a inclusiva, a uma sociedade mais ou menos bem-ordenada. O exemplo que
Rawls dá é o do complexo conflito presente em várias discussões sobre o
52
53
Liberalismo, VI, §7, p. 297.
Liberalismo, VI, §8, p. 299.
94
multiculturalismo, a respeito da igualdade eqüitativa de oportunidades para a educação,
sobretudo em relação à intervenção do Estado em escolas que pertencem a igrejas. A
alternativa proposta é que os argumentos das doutrinas abrangentes sejam apresentados no
fórum público, de modo a mostrar a todos quais são os reais pressupostos da discussão e,
assim, mostrar que, embora conflitantes, as doutrinas abrangentes não estão em um mero
modus vivendi, ou seja, seus defensores querem respeitar um consenso sobreposto e realizar
a discussão em termos de razão pública.54
De modo semelhante, Rawls cita o exemplo dos protestos contra a escravidão antes
da Guerra Civil Americana. Vários dos abolicionistas defendiam o fim da escravidão com
argumentos religiosos, sobretudo o da igualdade entre os homens perante deus. Nesse caso,
os abolicionistas poderiam sem problemas apoiar os valores estritamente políticos da razão
pública — valores, portanto, não religiosos:55
“Isso aponta para o fato de que possivelmente, para que uma sociedade
bem-ordenada, na qual a discussão pública consiste principalmente no
apelo a valores políticos, venha a existir, as condições históricas prévias
podem exigir que razões abrangentes sejam invocadas para fortalecer
esses valores. Isso parece mais provável quando só há algumas poucas
doutrinas abrangentes que, apesar de serem objeto de uma crença
intensa, são similares em certos aspectos, e quando a diversidade das
visões características dos tempos recentes ainda não se desenvolveu. A
essas condições acrescente-se uma outra: a de que a idéia de razão
pública, com seu dever de civilidade, ainda não tenha se expressado na
cultura pública e permaneça desconhecida.”56
54
Para uma discussão bastante completa sobre razão pública, com uma visão crítica sobre a possibilidade de
acordo sobre os elementos constitucionais essenciais, sobre a natureza e o problema dos princípios essenciais
e sobre a dificuldade para estabelecer distinção entre elementos essenciais e não-essenciais, ver Greenawalt,
Kent. “On Public Reason”, em The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 247-267.
55
Evidentemente, esse exemplo trata de uma possibilidade, não de um fato histórico, mesmo porque, como o
próprio Rawls reconhece (Liberalismo, VI, §8, p. 302), normalmente as pessoas não fazem uma distinção
clara entre razões abrangentes e razões públicas.
56
Liberalismo, VI, §8, p. 303, nota 41.
95
CONCLUSÃO
Como conclusão, gostaria de destacar alguns tópicos tratados ao longo do texto com
o objetivo de deixar mais explícito meu percurso de análise da obra de Rawls, já que
procurei seguir o desenvolvimento e desdobramentos de seus textos desde 1951 até 1993.
Obviamente, essa escolha de percurso de análise voltada especificamente para alguns
tópicos e preocupada em encontrar linhas argumentativas ao longo dos textos implica
necessariamente uma limitação dos temas abordados. Como já mencionei, a obra de Rawls
tornou-se fundamental para qualquer discussão sobre filosofia política a partir dos anos
1970 até a atualidade. Conseqüentemente, são mais de 30 anos de comentários, artigos e
livros discutindo a obra do filósofo, implicações de sua teoria, sem contar as obras que
questionam sua visão, apontando ou não alternativas. Assim, dentro dos limites expositivos
de uma dissertação, procurei adotar alguns eixos de análise da obra de Rawls para mostrar
— como diz o subtítulo da dissertação — que a teoria rawlsiana evolui “em direção a um
liberalismo político para uma sociedade democrática bem-ordenada”.
O primeiro aspecto destacado — e que acaba perpassando toda a obra de Rawls — é
a evolução do seu procedimentalismo (1.1.1). Com o artigo “Outline of a Decision
Procedure for Ethics” (1951), Rawls apresenta um método de avaliar juízos e juízes morais
que pretende ser o mais imparcial possível. Como vimos, ao longo dos artigos seguintes
ocorrem restrições em dois sentidos: 1) um abandono das decisões morais em direção a
uma abordagem limitada somente aos princípios políticos e 2) uma restrição cada vez maior
em relação às condições de imparcialidade necessárias às partes contratantes. Como tentei
mostrar, esses dois tipos de restrições acabam por ser a origem da elaboração da original
teoria rawlsiana de contrato social, na qual as partes contratantes estão sob um véu de
96
ignorância que as priva de qualquer informação sobre sua condição particular dentro da
sociedade. Essa idéia — bastante criticada devido às implicações procedimentais e
metodológicas — permanecerá como o centro da teoria da justiça como eqüidade até os
últimos textos de Rawls.
O que muda, entretanto, é a ênfase no aspecto distributivo em Teoria para a ênfase
no aspecto de tolerância em Liberalismo. Na primeira obra, Rawls é bastante claro ao
especificar que está interessado em propor uma solução para o problema liberal clássico da
compatibilidade entre igualdade e liberdade. Isso está relacionado tanto com a distribuição
de direitos e liberdades fundamentais, quanto com a distribuição dos benefícios da
cooperação social relativos à renda, riquezas e oportunidades. Esse segundo aspecto
distributivo — relacionado ao segundo princípio de justiça —, como fica bastante
destacado, exerce um papel determinante no equilíbrio social.
Este, portanto, é o primeiro objetivo da teoria da justiça como eqüidade como um
todo: tratar da questão distributiva. Com a percepção de que a Terceira Parte de Teoria
apresentava inconsistências não em relação aos princípios de justiça que regulam a
estrutura básica da sociedade, mas em relação à aceitação desses princípios pelos
participantes do contrato social — sobretudo no que diz respeito às interferências dessas
concepções de justiça nos planos de vida individuais dos cidadãos —, Rawls passa a se
preocupar com o problema da diversidade de doutrinas morais, religiosas e filosóficas
presentes em qualquer sociedade democrática.
Assim, o segundo objetivo da teoria da justiça como eqüidade como um todo é tratar
da questão do pluralismo de visões de mundo dos cidadãos de sociedades democráticas.
Rawls tenta deixar essa dupla tarefa de sua teoria bem clara, o que torna difícil, mesmo para
os críticos que apresentam argumentos
mais contundentes, apontar para um
97
enfraquecimento da teoria rawlsiana logo que as modificações em Teoria começaram a
ocorrer. Os pressupostos fundamentais de Teoria continuam válidos em Liberalismo.
Portanto, o que pode ser criticado pelos defensores de fundamentos liberais mais restritos e
limitados (ou seja, menos sensíveis às reivindicações multiculturais, religiosas e étnicas) é a
adequação dos novos pressupostos da obra de 1993 com os da obra de 1971, mas não se
pode dizer que há um abandono dos fundamentos já expostos em Teoria.
Da mesma forma que os pressupostos fundamentais, o aspecto kantiano da teoria da
justiça também é mantido. No conhecido §40 de Teoria, Rawls esclarece que sua
interpretação de Kant está baseada sobretudo na idéia de autonomia. Isso fica ainda mais
claro em Liberalismo quando é desenvolvida a concepção política de pessoa (2.2.2). É,
preciso, pois, antes de qualquer julgamento precipitado, compreender em que sentido
ocorre a apropriação da teoria kantiana. Como Rawls afirma,
“É um erro, na minha opinião, enfatizar o lugar da generalidade e da
universalidade na ética de Kant. A afirmação de que os princípios morais
são gerais e universais mal constitui uma novidade em sua obra; e, como
vimos, essas condições de qualquer modo não nos levam muito longe. É
impossível construir uma teoria moral sobre uma base tão exígua, e
portanto restringir a discussão da doutrina de Kant a essas noções é
reduzi-la a trivialidades. A verdadeira força de sua visão reside noutros
pontos.”57
Assim, Rawls adota pressupostos kantianos quando afirma que os princípios devem
ser objeto de uma escolha racional, escolha essa feita por homens racionais iguais e livres,
agindo autonomamente — o que ele tenta estabelecer através das condições da posição
original, na qual a ignorância a respeito da posição social e das habilidades tem por
objetivo evitar qualquer tipo de heteronomia. O objetivo é levar realmente a sério a idéia de
que os cidadãos só serão livres e terão respeito uns pelos outros quando estabelecerem as
57
Teoria, IV, §40, p. 275.
98
suas próprias leis. Além disso, em Liberalismo fica ainda mais claro que a intenção de
Rawls é dar uma interpretação procedimental à idéia kantiana de autonomia.
Com essa apropriação de Kant, acredito que fica mais fácil compreender tanto a
continuidade e unidade da teoria da justiça como eqüidade, quanto as importantes
mudanças em relação ao papel da filosofia política que são conseqüência da obra de Rawls
— sobretudo a partir da adoção da teoria kantiana “dentro da estrutura de uma teoria
empírica.”58
Por fim, espero ter exposto satisfatoriamente as mudanças — ou redefinições —
realizadas por Rawls em sua teoria da justiça. Acredito que elas são importantes não
somente para a compreensão da obra de um dos mais importantes filósofos da segunda
metade do século passado, como também para ter uma visão mais clara do papel atual e
futuro da filosofia e do próprio pensamento político.
Creio que uma lição — entre muitas — que Rawls nos deixou é a de que talvez não
haja mais propósito em elaborar teorias filosóficas sobre o dever ser. Precisamos nos ater à
situação concreta de nossas sociedades para podermos avaliar adequadamente quais são os
problemas e suas possíveis soluções. O papel da filosofia política seria, então, o de
estabelecer critérios de avaliação para que, através de ações concretas, nos aproximemos
mais de ideais de justiça, eqüidade e igualdade.
58
Teoria, IV, §40, p. 281.
99
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