Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Saúde Os media e a construção social da infertilidade e da procriação medicamente assistida em Portugal ♦ Amélia Augusto ∗ O conhecimento sobre a procriação medicamente assistida está disperso por uma série de canais difusores que o fazem chegar ao público, não estando, por isso, reservado aos meios convencionalmente designados para comunicar a ciência. As representações das tecnologias de reprodução estão presentes no cinema, na televisão, em revistas e em jornais. Estes produtos culturais reflectem e constróem imagens contemporâneas de infertilidade e reprodução. Conjuntamente, todas estas imagens contribuem para o conhecimento público sobre estas novas tecnologias e ajudam a construir o significado social de infertilidade. Como Foucault, Lyotard e outros teóricos discutiram, a actual produção de conhecimento neste nosso tempo já não pode ser entendida como função exclusiva da ciência. O encontro da ciência com as diferentes formas de cultura ocorre no âmbito dos múltiplos contextos da vida quotidiana, onde discursos tão variados como os da ciência, do jornalismo e mesmo da ficção se interpenetram cada vez mais. A ciência e o jornalismo são habitualmente entendidos como discursos institucionais, sendo caracterizados como pertencendo ao domínio do conhecimento “factual” e “objectivo”, o que os torna detentores de uma autoridade atribuída aos discursos “desinteressados” (Van Dyck, 1995). Mas, a verdade é que qualquer um destes discursos é uma produção social, e como tal, nenhum deles é neutro. As afirmações sobre tecnologias reprodutivas são por eles estrategicamente expressas, tendo, por isso, um papel importante na definição das condições para a produção de significado. O interesse dos media pela informação relativa à ciência parece ser insaciável. As histórias de descobertas e de sucessos científicos exercem sobre eles um fascínio que os leva a descrever os cientistas como heróis altruístas e desinteressados. A ciência é quase sempre representada como progressiva e benéfica, assumindo os media, frequentemente, um papel de publicidade institucional. Os media portugueses não fogem a esta tendência generalizada. Entre nós, o quadro de referência para a discussão da infertilidade é bipartido. Por um lado, o quadro do desespero, da angústia e do sofrimento que atinge, em muitos relatos, proporções de drama – “mulheres infelizes e destruídas” (Visão nº 460); “casais que vivem o calvário de tentativas falhadas” (Máxima, 05/2001); “drama actual, realidade dramática para muitos casais” (Jornal de Notícias, 08/02/1998); “infertilidade ou infelicidade?” (Máxima, 05/2001). Por outro, o quadro dos milagres, da esperança e da felicidade – “o que aconteceu connosco foi um milagre” (Mulher Moderna, nº 612); “o futuro é de esperança” (Bebé D’hoje, nº 49); “entre a fé e a ciência o milagre acontece” (Nova Gente, 02/2002); “Hoje assiste-se a um milagre biológico” (Jornal de Notícias 08/02/1998); “à 13ª tentativa deu-se o milagre” (Visão nº 460). A representação do desespero dos inférteis é enquadrada em termos de perda e esperança. A perda é descrita como sendo social e biológica, a esperança é descrita em termos de ciência e tecnologia médica. A representação de infertilidade nestes termos tem um forte efeito sobre o seu entendimento comum e sobre a urgência do seu “tratamento” via tecnologias de reprodução. “As representações populares de infertilidade associadas à imagem de casais destruídos, cujas vidas vazias aguardam uma fonte de felicidade milagrosa, contribuem para a ♦ A presente comunicação insere-se no âmbito mais alargado de uma dissertação de doutoramento, em curso, na área da sociologia da saúde, na qual se pretende mapear a realidade portuguesa da infertilidade e da procriação medicamente assistida, partindo da análise da sua construção social, configurando-as como fenómenos multidimensionais. ∗ Socióloga, docente no Departamento de Sociologia da UBI. 1 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Saúde formação, aceitação e difusão deste mito comum de benevolência das novas tecnologias reprodutivas (Franklin, 1990:204). A acreditar nas histórias difundidas nos media onde, não obstante os inúmeros obstáculos que têm de ser vencidos, os finais são sempre felizes, a tecnologia cumpre a promessa de ser mais eficiente que a própria natureza. Algumas afirmações parecem mesmo sustentar essa ideia: “filhos da ciência” (Jornal de Notícias, 08/02/1998); “no campo da fertilidade, a evolução da medicina tornou realidade o sonho de construir família. No passado, os casais com problemas de fertilidade conformavam-se” (Presidente do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia, em Máxima 05/2001); “os últimos avanços científicos permitem assegurar que a esterilidade está vencida. Técnicas revolucionárias dão nova esperança a casais inférteis. Tudo tem remédio.” (Netbebé); “o casal tem que ter consciência de que há infinitas possibilidades de ter um filho” (Máxima 05/2001). Os especialistas médicos que, convencionalmente, confinavam o seu discurso aos fóruns especificamente designados para o efeito, estão cada vez mais presentes nos vários media, sendo esta sua participação usualmente conotada com um posicionamento “objectivo” e “desinteressado”. De facto, os cientistas tornaram-se cada vez mais conscientes da importância da imagem pública. Aparentemente, começaram a reconhecer os media não especializados como uma importante área de divulgação do conhecimento. A imagem pública da ciência não só serve para influenciar as políticas (e o nível de financiamento que estas atribuem à investigação e à aplicação das tecnologias), como também reforça a posição social dos cientistas, além de influenciar a procura, a vários níveis, da ciência ou da tecnologia. Segundo Van Dyck (1995), este reconhecimento forçou-os a reconsiderar as suas próprias regras de discurso. A linguagem usada é mais simples, é comum o recuso a metáforas e analogias, evitam-se as explicações médicas e enfatizam-se as aplicações benéficas, em detrimento das teorias abstractas. Hoje, os relatos jornalísticos de ciência contêm mais provas “visíveis”, como sejam os gráficos de valores e as fotografias microscópicas. A ciência providencia-lhes imagens irresistíveis para ilustrar as suas histórias. São comuns as imagens de realidades microscópicas que a ciência tornou acessíveis – óvulos a serem fertilizados por meio das técnicas associadas à FIV, espermatozóides em movimento, etc. “Tanto as imagens como as tecnologias são produzidas no âmbito duma cultura capitalista de consumo: a medicina reprodutiva tornou-se uma ‘indústria de serviços’, oferecendo uma vasta gama de técnicas, opções, produtos e pericialidade” (Van Dyck, 1995:11). Nos variados relatos dos media repete-se a ideia de que estes “serviços” são oferecidos porque têm cada vez mais procura, na medida em que respondem a necessidades procriativas crescentes. No entanto, sabemos que o desenvolvimento da tecnologia não é um processo que se explica em si mesmo, sendo bastante mais ideológico do que técnico. A criação e a manutenção da necessidade é um processo intrincado, no qual é fundamental a construção de imagens e a narração de histórias que influenciem a produção de significado e a aceitação social. No entender de Maureen McNeil (1990), a criação da necessidade é normalmente baseada em projecções de medo e de esperança. No caso das novas tecnologias reprodutivas, parecem tratarse de sentimentos como angústia e desespero, por um lado, e esperança e felicidade, por outro, duas pedras de toque da maioria das histórias narradas pelos media – o antes e o depois da intervenção da tecnologia médica. Estas histórias confundem-se com a própria história da procriação medicamente assistida, já que, em grande medida, esta depende delas para justificar o tempo, o dinheiro e todos os outros recursos de que necessita. O discurso dos media é usado por grupos de interesse particulares apostados na difusão e comercialização das tecnologias de reprodução, ao mesmo tempo que sublinha a sua necessidade ao enfatizar o largo número de casais inférteis que aguardam tratamento (Van Dyck, 1995). Em Portugal, é difícil encontrar artigo de revista, de jornal ou qualquer peça televisiva sobre infertilidade em que esta não seja referenciada como um fenómeno com proporções crescentes. O uso de estatísticas é cada vez mais frequente, e artigo que não as contemple parece carecer de sustentação. Trata-se, de facto, de um recurso cada vez mais frequente, que tem o intuito de tornar as informações mais objectivas, de dar aos relatos um cariz mais científico. O recurso às estatísticas e à “lógica” da prova médica ajuda a lançar uma interpretação específica 2 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Saúde de infertilidade que, normalmente, não é posta em causa pelo público. Um envolvimento mais activo e um exercício de comparação, facilmente lançam a dúvida sobre os números da infertilidade em Portugal, divulgados pelos vários media. Serão 15% os casais que têm problemas de fertilidade (Jornal de Notícias 25/07/1999)? Serão 18% (Mãe Ideal, nº1)?, Serão 10% (Máxima, 05/2001)? Em que acreditar? Que 1 em cada 6 (ABC Saúde), 1 em cada 7 (Jornal de Notícias, 25/07/1999) ou 1 em cada 10 (Bebé D’hoje, 11/2000) casais não conseguem ter filhos? Quantas pessoas serão afectadas pela infertilidade, em Portugal? Um milhão (ABC saúde)? Um milhão e meio (Correio da Manhã, 2/02/2002)? Meio milhão (Bebé D’hoje, 11/2000)? Os valores dizem respeito aos casais ou às pessoas individualmente? Quando são apresentados 250 mil (Máxima) ou 252 mil (ABC saúde) novos casos, por ano, não será importante referir se estes valores dizem respeito à realidade nacional? Ao contrário do que exige o rigor científico que parece estar subjacente à apresentação destes números, em nenhum dos artigos referenciados foram mencionadas as fontes das estatísticas usadas. Quem calcula estes valores? Quem fornece os dados para o seu cálculo? Os hospitais? As clínicas privadas? Qual o método usado? Com base em que definição de infertilidade? Ainda que a infertilidade pareça ser consensualmente definida como “a incapacidade de conceber após um ano de relações sexuais não protegidas” (Álvarez, 1996), definição da Sociedade Americana de Medicina da Reprodução e aceite pela comunidade médica alargada, a própria definição pode ter várias interpretações. Primeiro, o período de tempo considerado tem vindo a ser diminuído e não coincide com a versão da Organização Mundial de Saúde, que prevê um período de dois anos; segundo, vários investigadores chamaram a atenção para a ambiguidade de se falar em relações sexuais não protegidas associadas a um dado tempo. A variação de frequência e mesmo de timing das relações sexuais ao longo dos 12 ciclos menstruais é fundamental. As limitações na recolha, análise e avaliação destes dados são bem conhecidas, tanto pelos jornalistas, como pelos cientistas. Contudo, independentemente das disparidades claras entre os dados antes apresentados, todos eles pareciam servir o mesmo propósito – provar a extensão alargada do fenómeno infertilidade. Esta ideia atravessa transversalmente os media portugueses – “aumenta o número de casais portugueses inférteis” (Máxima, 06/2001); “infertilidade a crescer” (Medicina e Saúde, nº 37); “cada vez há mais casais que querem ter filhos e não conseguem” (Máxima 05/2001). Todos eles procuram legitimar as suas afirmações e estatísticas recorrendo às opiniões dos peritos – “é uma verdadeira doença que se encontra em ascensão de frequência” (Prof. Silva Carvalho, Faculdade de Medicina do Porto, em ABC, saúde); “há um crescente aumento da solicitação de serviços que apresentem uma solução para a infertilidade” (Pedro Sá e Melo, Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, em Correio da Manhã, 2/03/2001). Pelo facto de, aparentemente, ser cada vez maior o número de pessoas que, em Portugal, recorre à procriação medicamente assistida para ter filhos, tal não equivale a afirmar que há cada vez mais casais estéreis. O que parece ter aumentado é a procura de uma solução médica para a infertilidade. A tal realidade não será alheia a forte medicalização da sociedade portuguesa e a produção de imagens de infertilidade e de tecnologias médicas que acabam por influenciar o entendimento da nossa sociedade relativamente a este fenómeno. Ainda que as novas tecnologias de reprodução pareçam dar a cada mulher a possibilidade de conceber um filho, na prática, significam apenas tentativas de fertilização para algumas (e bebés para muito menos). Os serviços especializados em medicina da reprodução pertencentes ao S.N.S. têm listas de espera que rondam os 2, 3 anos. A zona Centro do país é a única onde a oferta de serviços públicos e privados na área da medicina de reprodução se equivale, com apenas um serviço em cada sector. Em Lisboa existem 7 clínicas privadas contra 2 alternativas oferecidas pelo público, existindo no Porto uma oferta de 3 centros em cada um dos sectores (Visão nº 460). O Estado não comparticipa os tratamentos de infertilidade. Os medicamentos a eles associados são bastante dispendiosos, não obstante serem comparticipados em cerca de 40%, pelo que o recurso às clínicas privadas é um recurso para muito poucos. No entanto, as clínicas privadas de medicina da reprodução parecem ser um negócio rentável, a 3 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Saúde julgar pelo número existente, prometendo maior rapidez no acesso aos tratamentos e taxas de sucesso risonhas. Os media mencionam, com bastante frequência, os preços praticados pelo privado relativamente aos vários tratamentos que oferecem, mas a julgar pela discrepância dos montantes parece estar longe de existir uma tabela consensual. Um tratamento que envolva Inseminação Artificial custa cerca de 400 euros, em que se recorra à FIV cerca de 2500 euros e com ICIS ronda, no mínimo, 3500 euros. E estes valores dizem apenas respeito a um ciclo de tratamento, sendo muito raros os casos em que apenas um ciclo de tratamento resulta numa gravidez. As taxas de sucesso que são difundidas variam muito, mas em todas elas a percentagem vai aumentando à medida que aumenta o número de tentativas. De novo, não fica claro com base em que dados são calculados estes valores, e também não sabemos quem os fornece. Alguns artigos apontam mesmo para disparidade das taxas de sucesso dos tratamentos, referindo que “variam muito dependendo do centro médico” (Bebé d’Hoje, nº 49). E, intencionalmente, ou não, há mesmo quem faça a apologia dos centros privados – “o risco de uma gravidez gemelar e a possibilidade de ter de desembolsar entre 70 a 700 contos numa clínica privada não são comparáveis à magia de se trazer um bebé ao mundo. Mas se só puder optar pelas intermináveis listas de espera dos hospitais, conte os minutos que lhe restam do relógio biológico e decida com objectividade, porque o destino pode pregar-lhe uma partida e em vez de um filho podem vir três” (Nova Gente, 20/2002). A mensagem que passa é que o privado é muito mais seguro que o público, onde não só as listas de espera, como também os riscos, são grandes. Além disso, juntam-se a todas as pressões sociais para a maternidade biológica, a pressão económica que a situação gera. Fica a ideia de que o casal não só deve procurar activamente uma solução médica para a sua infertilidade, como deve despender avultadas somas, de modo a poder “sentir a magia de trazer um bebé ao mundo” sem correr demasiados riscos. São usadas frases como: “estão dispostos a tudo para ter um filho. É bom recordar que para a maioria dos casais inférteis reproduzir-se custa um dinheirão, anos de tratamento e imensas frustrações. Mas nada importa se, no final, conseguirem o seu objectivo. Os filhos, já se sabe, não têm preço. O segredo é nunca desistir” (ABC saúde). Afirmações deste tipo, conjuntamente com histórias de torturas que culminam num final feliz, povoam os nossos media e criam a ideia de que todos os sacrifícios são exigidos aos casais na procura de uma gravidez, e que, mesmo que os desgastes físicos, psicológicos e financeiros sejam avassaladores, vale a pena, porque “o segredo é nunca desistir”. São poucas as narrativas sobre o processo, os tratamentos, os efeitos secundários das hormonas ou sobre os fracassos sucessivos. “A história de mulheres que se foram abaixo devido à sua culpa em falhar uma gravidez, a história de casais que não sobreviveram ao processo, ou a história da sua segurança financeira raramente são histórias de capa ou de primeira página” (Whiteford e González, 1995:35). Não obstante toda a atenção que os media têm proporcionado à infertilidade e à sua solução médica, ao que parece, muitos dos portugueses afectados por esta situação sentem falta de ajuda e informação. A Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR), reconhecendo esta lacuna, inaugurou, a 24 de Fevereiro de 2000, uma linha verde – Linha Infertilidade. Através desta linha, que pretendia ter um carácter meramente informativo, era enviada à pessoa que com ela contactava uma brochura intitulada “Concretizando um sonho”, com informação de carácter estritamente fisiológico sobre os ciclos reprodutivos e os problemas masculinos e/ou femininos que podiam estar na origem de uma situação de infertilidade. Nesta brochura eram, ainda, descritas as técnicas de reprodução que mais se adequavam a cada caso. O conselho geral e de fundo da SPMR vai no sentido de os casais procurarem ajuda médica que possa diagnosticar a causa e escolher a alternativa terapêutica mais adequada. Contudo, toda esta informação genérica que era proporcionada por meio da linha verde parecia não ser suficiente para responder às dúvidas das pessoas que a contactavam, já que acabou por ser desactivada menos de um ano depois de começar. Segundo o presidente da SPMR, “os utilizadores não pretendiam informação genérica sobre os assuntos ali tratados, mas sim uma consulta telefónica. Quem atendia as chamadas encontrava do outro lado questões 4 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Saúde demasiado complexas, de quem já vivia a infertilidade há vários anos e procurava neste serviço respostas concretas para as quais não tinha interlocutor” (Correio da Manhã, 2/02/2001). A informação de carácter fisiológico e a orientação médica preconizada talvez fossem muito pouco, ou mesmo desadequadas, para quem vive uma situação multidimensional e, nalguns casos, profundamente estigmatizante. Um acontecimento recente fez com que a procriação medicamente assistida voltasse a ter honras de primeira página e de abertura de telejornal. A gravidez de seis gémeos de uma madeirense foi apresentada por alguns media com um certo cunho de exotismo que, não raramente, marca estas situações. Em Portugal, até então, apenas eram conhecidas gravidezes de quadrigémeos. Numa primeira fase, alguma imprensa, reconheceu naquela mulher, ao não querer optar pela redução selectiva de fetos, capacidades muito acima das mulheres e mães “comuns”. Chamaram-lhe “supergrávida madeirense” (Mulher Moderna, nº 675), “supermamã” (Nova Gente, 02/2002), “super-mãe” (J.N. 12/02/2002), testemunharam “um instinto maternal do tamanho do mundo” (Nova Gente). Mas, depois, quando aconteceu o nascimento demasiado prematuro, às 23 semanas de gestação, o discurso sofreu uma inflexão, e um outro pouco comum e menos entusiasta surgiu. Esta não era uma daquelas histórias com um final feliz, e, à medida que os bebés iam sucumbindo à sua prematuridade, os meios de comunicação queriam saber o que correu mal, quais os limites e os riscos destes tratamentos. E os peritos foram de novo ouvidos, desta vez sobre o que ainda não conseguem controlar. Mais do que uma vez é usada a palavra “acidente” para explicar a hiperestimulação ovárica que esteve na origem da gravidez múltipla. Todavia, os médicos responsáveis pelo tratamento no Hospital Distrital do Funchal nunca prestaram declarações. A directora do serviço de obstetrícia e ginecologia disse não ter acompanhado o processo desde o início, mas acreditava que “os colegas não fizeram o tratamento levianamente. Foi um acidente” (D.N, 12/02/2002). A mesma especialista, referindo-se aos riscos inerentes ao tratamento, considera mesmo benéfico que estas questões sejam do conhecimento do público. Mas não o faz por achar uma boa forma de lançar o debate, de proceder a investigações, de responsabilizar os médicos, e sim , ao que parece, como forma de reforçar a autoridade médica – “ até é bom que a opinião pública tenha conhecimento deles [destes casos]. As pessoas devem saber que há muitos riscos nestas gravidezes por estimulação, para respeitar as indicações dos médicos” (D.N.12/02/2002). Contudo, outros especialistas receberam com desagrado esta notícia, e não apenas por simpatia para com a grávida. Além de estarem conscientes dos riscos para a mãe e para os fetos, estariam também conscientes do efeito negativo que o desfecho poderia causar na opinião pública. As suas declarações são uma condenação velada: “uma indução ovular tem estes riscos, sobretudo quando é usada de forma menos cuidadosa. Provocar uma gravidez de seis gémeos é dramático” (Mulher Moderna, nº 675); “Uma gravidez com mais de duas crianças, após um tratamento, é um insucesso. Não há aqui motivo algum de orgulho. As gravidezes múltiplas podem trazer problemas para a mãe e são um perigo acrescido para as crianças... está em causa a ciência e não a religião e a filosofia” (Visão nº 467); “deixo à reflexão de todos a necessidade de se repensarem os tratamentos de infertilidade e as gravidezes múltiplas”(D.N.12/02/2002). Os tratamentos de infertilidade continuam a estar associados às gravidezes múltiplas mais do que os especialistas da área gostariam de reconhecer. A procura de taxas de sucesso leva-os a correr riscos que têm repercussões graves para a mãe, para o casal, para os filhos e para a sociedade. “Com as técnicas de indução ovular espera-se que 20% das gravidezes sejam gémeos, 75% das quais bigemelares e as restantes 25% sejam casos de 3, 4, 5 ou mais gémeos” (chefe do serviço de obstetrícia e ginecologia da Maternidade Alfredo da Costa, em Mulher Moderna, nº 675). A informação sobre a taxa de gravidezes múltiplas em Portugal é escassa. Quando os media se ocupam desta questão, uma boa parte deles, usualmente, está mais interessada nos resultados exóticos – 6 gémeos! – e talvez isso justifique a informação contraditória que se seguiu a este caso: “ A julgar pelas estatísticas, Portugal poderá ter que especializar uma equipa que desenvolva esta técnica [redução selectiva de fetos]. A gravidez gemelar é cada 5 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Saúde vez mais frequente” (chefe do serviço de obstetrícia e ginecologia da Maternidade Alfredo da Costa, em Mulher Moderna, nº 675); “Em Portugal, são poucos os casos de gravidez múltipla” (directora do serviços de obstetrícia e ginecologia do Hospital Distrital do Funchal, em Diário de Notícias, 12/02/2002); “Portugal tem uma das maiores taxas europeias de gravidezes múltiplas, provocadas por tratamentos de infertilidade” (Visão nº 647). Ainda que a “prestação de serviços” associada aos tratamentos de infertilidade seja cada vez mais comum entre nós, os nossos recursos parecem ser claramente escassos para lidar com os frequentes resultados de gravidezes múltiplas. A redução selectiva de fetos, a decidir pelos pais, pode ser usada em casos em que os fetos ou a mãe correm riscos sérios de vida. Não é considerada uma técnica abortiva, dado que o intuito é viabilizar a sobrevivência de alguns fetos (normalmente dois). No entanto, não há, em Portugal, uma equipa especializada para aplicar este procedimento, pelo que os pais são, nestes casos, aconselhados a deslocar-se ao estrangeiro (França ou Inglaterra), com os transtornos físicos, emocionais e financeiros adicionais a uma situação que é, já por si, preocupante. Usualmente, a Maternidade Alfredo da Costa é apontada como a instituição de saúde pública que reúne as melhores condições para lidar com situações associadas a gravidezes de risco, nomeadamente gravidezes múltiplas. Contudo, até mesmo aqui os recursos existentes não são suficientes, quando a situação envolve um elevado número de fetos demasiado prematuros. Faltam ecógrafos, cardiotocágrafos, espaços de trabalho, ventiladores e clínicos (chefe do serviço de obstetrícia e ginecologia da Maternidade Alfredo da Costa, em Mulher Moderna, nº 675). Nos últimos anos, a procriação medicamente assistida tem frequentemente sido representada nos media como a ponta do desenvolvimento científico e tecnológico. O grande impacto que as tecnologias a ela associadas têm tido nos meios de comunicação merece uma análise cuidada, já que levanta a questão das representações da tecnologia e envolve alguns aspectos fundamentais relacionados com a cultura e a tecnologia (Maureen McNeil, 1990). Termos como “bebé-proveta”, “milagre científico”, “revolução”, são bem representativos do significado social destas inovações. As revistas, os jornais, a TV, o cinema, a publicidade, entre tantos outros, aumentam o conhecimento da biomedicina, mas as histórias de sucesso que divulgam (e sobretudo o modo como o fazem) também reproduzem e legitimam a hegemonia biomédica (Whiteford e González, 1995). As representações populares de infertilidade contribuem para a formação e difusão da aceitação de “um mito comum de benevolência das novas tecnologias de reprodução” (Franklin, 1990). Mas, na verdade, nem os media, nem os cientistas, podem ser apontados como grandes conspiradores na criação deste mito. A razão desta explicação ser tão poderosa reside no facto de as suas assunções estarem profundamente enraizadas nas normas e nos valores sociais dominantes. De tal forma assim é que as explicações e as soluções parecem naturais. Contudo, seria ingenuidade pensar que as imagens contidas nos media e produzidas e divulgadas pela ciência médica apenas reflectem as normas dominantes. Simultaneamente, abrangem e moldam essas mesmas normas, normas pelas quais estão informadas. “O enquadramento das questões reprodutivas nos media afecta, quase imperceptivelmente, as condições para a produção de significado” (Van Dyck, 1995:196). Assim, ainda que os media tenham a virtude de levar a infertilidade e as novas tecnologias de reprodução para o debate público, o modo como enquadram e ordenam conhecimentos e o posicionamento que adoptam em relação a eles, levam-nos a construir significados que acabam por influenciar esse mesmo debate público. Referências bibliográficas Álvarez, Mayda (1996) Combatir la Infertilidad, Madrid, Aguilar Franklin, Sarah (1990) “Deconstructing desesperateness: the social construction of 6 Actas dos ateliers do Vº Congresso Português de Sociologia Sociedades Contemporâneas: Reflexividade e Acção Atelier: Saúde infertility in popular representations of new reproductive technologies”, in McNeil, Maureen; Varcoe, Ian; Yarley, Steven (eds.) The New Reproductive Technologies, New York, St. Martin’s Press McNeil, Maureen (1990) “Reproductive technologies: a new terrain for the sociology of Technology”, in McNeil, Maureen; Varcoe, Ian; Yarley, Steven (eds.) The New Reproductive Technologies, New York, St. Martin’s Press Van Dyck, José (1995) Manufacturing Babies and Public Consent. Debating the New Reproductive Technologies, New York University Press Whiteford, Linda e González, Lois (1995) “Sigma and the Hidden Burden of Infertility” Soc. Sci. Med., vol. 40, nº 1, pp. 27-36 7