INTRODUÇÃO À ECLESIOLOGIA I - A MODO DE INTRODUÇÃO Entendemos por ECLESIOLOGIA tudo o que se refere à Ecclésia = Igreja de nosso Senhor Jesus Cristo, e dela “trata”: estudos, reflexões, tratados teológicos...; assim como às diferentes formas de ser, viver e se organizar como Igreja, através da história, buscando realizar sua própria vocação e missão. BREVE FUNDAMENTAÇÃO: A VERDADE SOBRE A IGREJA “Ide, pois fazer discípulos entre todas as nações, E batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19). A origem da Igreja Deus quis a Igreja desde toda a eternidade. Ela foi prefigurada e preparada pelas várias Alianças de Deus com a humanidade. Sua formação aconteceu progressivamente, como uma gestação. O Concílio Vaticano II fala de atos fundantes da Igreja que somos nós. Foram atos fundantes, por exemplo, a escolha dos Apóstolos e a instituição da Eucaristia. O povo de Israel era formado por doze tribos. Jesus, ao escolher doze Apóstolos, mostrou sua intenção de fundar a Igreja, o novo Israel, que fora anunciado pelos profetas. Na instituição da Eucaristia, o cordeiro pascal foi substituído pelo corpo de Jesus. O cálice da Antiga Aliança foi substituído pelo cálice da Nova Aliança, sangue de Jesus. Israel se tornou Povo de Deus através da Antiga Aliança, celebrada no monte Sinai; Jesus, ao instituir a Nova Aliança, estava fundando a Igreja – o Novo Israel. Mas foram atos fundantes da Igreja, sobretudo, a Páscoa da paixão, morte e ressurreição e o acontecimento de Pentecostes, quando a Igreja foi manifestada às nações pela efusão do Espírito Santo. Naquela manhã de Pentecostes, a Igreja recebeu a sua configuração definitiva, assumindo a missão de evangelizar todos os povos. A Igreja é comunidade onde Jesus ressuscitado está presente: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20b). A Igreja não foi fundada por iniciativa humana, mas divina. A Igreja é dom de Deus à humanidade. Jesus está presente nela. Quando a Palavra de Jesus é anunciada na assembléia, é ele mesmo que nos fala. Os Sacramentos que a Igreja celebra comunicam a força espiritual que provém do seu Mistério Pascal. A Eucaristia forma o “corpo” da Igreja. Quem se alimenta do corpo de Cristo torna-se um com ele. Quando a Igreja envia missionários ao mundo, é Jesus que continua a enviar seus discípulos. Por isso, a Igreja é, ao mesmo tempo, divina e humana. O que é, pois, a Igreja? A Igreja é uma realidade tão rica que não cabe nos limites de uma definição. Por isso dizemos que a Igreja é um Mistério. O Mistério da Igreja é sua relação com a Santíssima 3 Trindade e sua união íntima com o Cristo Ressuscitado. Dizer que a Igreja é Mistério não significa que seja um enigma complicado ou um problema indecifrável, mas uma realidade amorosa, que é maior do que a nossa compreensão, uma realidade que nos desfia e nos seduz. Nela nós mergulhamos cheios de respeito, alegria e encantamento. Usamos imagens para exprimir o ser e a missão da Igreja, porque elas são mais expressivas do que as definições. Quando o Novo Testamento denomina a Igreja templo de Deus ou templo do Espírito Santo (cf. 2Cor 6,16), esta expressão não designa o edifício, mas a comunidade reunida. A Assembléia reunida é o templo onde Deus habita. A Igreja também é chamada de Esposa de Cristo, pois ela forma com ele uma totalidade – “uma só carne” –, e está unida a ele pelo amor e a fidelidade (cf. 2Cor 11,2; Ef 5,26.31-32). A Igreja é também designada nossa Mãe e Mestra, porque nos comunica a vida divina através dos Sacramentos; ela nos ensina a Palavra de Cristo e nos educa como verdadeiros discípulos de Jesus. São Paulo usa três imagens complementares para falar da Igreja: Novo Israel (cf Rm 11,17-18), Corpo de Cristo (cf. 1Cor 12,13) e Templo do Espírito (cf 2Cor 6,16). Estas imagens mostram a dimensão trinitária da Igreja: a criação do Pai (Povo de Deus), através da obra redentora do Filho (Corpo de Cristo), na comunhão do Espírito Santo (Templo de Deus). O Concílio Vaticano II privilegiou a imagem da Igreja como Povo de Deus (cf. LG 9). A imagem de povo está ligada à igualdade fundamental entre os membros da Igreja. O Povo de Deus recorda que ela foi preparada desde a origem da história de Israel. É um povo sacerdotal, profético e real (cf. 1Pd 2,9-10). A Igreja é Corpo de Cristo (cf. 1Cor 12,12-30). É uma realidade semelhante ao corpo humano, ou seja, tem uma cabeça e um conjunto organizado de membros; cada membro (órgão) desempenha sua atividade específica em vista do bem de todo o corpo. Entre os membros do corpo existe mútua dependência e todos são importantes. Vigora entre eles a comunhão: quando um membro passa bem, isso repercute em todos os membros. Quando outro passa mal, o sofrimento afeta todo o corpo. Os membros da Igreja, Corpo de Cristo, são todos os batizados. Jesus é a cabeça que continua presente e age no mundo através do corpo – a Igreja. A Igreja se organiza para cumprir sua missão de evangelizar. Ela é uma instituição que está a serviço da missão evangelizadora a ela confiada por Jesus; ela tem sua visibilidade na sociedade, com leis próprias, ministérios ordenados (bispos, padres, diáconos), ministérios não-ordenados, confiados aos cristãos leigos, a vida consagrada (religiosos e religiosas) e o laicato. Cada membro assume sua função e desempenha um serviço, sempre visando ao bem de todos. Quando um membro da Igreja peca, a comunidade fica enfraquecida. Quando um membro se santifica, todo o conjunto fica revigorado. É próprio do corpo ter uma cabeça. Segundo São Paulo, a cabeça da Igreja é Cristo (cf. Cl 1,18). É dele que provém a vida da graça para todos os membros da Igreja. A Igreja é Templo do Espírito Santo, que é a alma da Igreja. Como a alma no corpo humano, o Espírito Santo está presente em toda a Igreja e em cada um de seus membros. Como a alma confere vida e identidade ao corpo, assim o Espírito Santo dá vida e identidade à Igreja. A Igreja é, pois, a comunidade dos que crêem em Cristo; assistida pelo Espírito Santo, ela guarda a memória de Jesus Cristo, celebra e testemunha sua presença ao mundo. 4 A Igreja existe para ser missionária Evangelizar constitui a missão da Igreja, sua identidade e sua própria razão de ser. O Senhor Jesus dá aos seus discípulos a Igreja nascente, o mandato desta missão: “ Ide, pois, fazer discípulos entre todas as nações, e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho ordenado. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,19-20). Ela existe para anunciar e ensinar, para ser a testemunha da graça, reconciliar a humanidade com o Pai misericordioso e perpetuar o sacrifício de cristo na Santa Missa, memorial de sua morte e gloriosa ressurreição. A origem da missão da Igreja está na missão do Filho e do Espírito Santo, enviados pelo Pai ao mundo. A atividade missionária da Igreja iniciou-se na madrugada do domingo de Páscoa, quando Maria Madalena e outras mulheres foram ao túmulo de Jesus e o encontraram vazio. Logo ouviram a alegre notícia: “Nos vos assusteis! Procurais Jesus, o nazareno, aquele que foi crucificado? Ele ressuscitou! Não está aqui! Vede o lugar onde o pusseram! Mas ide, dizei a seus discípulos e a Pedro: ‘Ele vai à vossa frente para a Galiléia, Lá o vereis, como ele vos disse!’” (Mc 16,6b-7). Maria Madalena correu ao encontro dos discípulos e lhes anunciou a notícia da ressurreição de Jesus. Em Pentecostes, começou a missão que permanece até hoje. Após vinte séculos, existem ainda povos que não ouviram o anúncio de Jesus Cristo. Mesmo em nossas cidades existem pessoas, ambientes e culturas que não conhecem a Boa Nova. Através da ação da Igreja, a Palavra de deus se difunde no mundo. O Livro dos Atos dos Apóstolos narra a história das primeiras comunidades e a ação dos Apóstolos, principalmente dos apóstolos Pedro e Paulo. Nele se lê que a Palavra crescia e se multiplicava. Desejava, assim, anotar que cresciam e se multiplicavam os que ouviam a Palavra, acolhiam-na e se tornavam-se discípulos de Jesus, ou cristãos. Jesus é o missionário do Pai. A missão que ele confia aos seus discípulos é a sua mesma missão. É nele, pois, que o discípulo missionário tem a fonte permanente do seu ardor missionário e sabedoria profética para anunciar o Evangelho da vida. O encontro com Cristo Vivo, missionário do Pai, como experiência pessoal na comunidade de fé, alimeta o missionário e reaviva permanentemente o seu ardor. Foi o que aconteceu com a Samaritana (cf. Jo 4,1-26) e com os discípulos (cf. Jo 1,1951). A experiência do encontro com Cristo muda radicalmente a vida, como aconteceu com Zaqueu (cf. Lc 19,1-10) e Paulo (cf. At 9,1-22). É uma experiência única, muito bonita, que precisa ser comunicada, compartilhada. Na Eucaristia, nós nos encontramos com Cristo de modo muito especial. Se a missão não for alimentada pela Eucaristia, ela perde sua identidade. Torna-se proselitismo, propaganda, coisa de mercado. A Eucaristia é também o objetivo profundo da missão: fazer com que todos se tornem discípulos de Jesus, realizando o encontro pessoal com ele e vivendo unidos com ele. A missão é, para a Igreja, a causa das causas, o primeiro e mais importante serviço que ela presta ao ser humano. Nenhum membro da Igreja está dispensado da missão. Os pais, as famílias, os jovens, professores e operários, todos são missionários. Sobretudo as dioceses e as paróquias devem desenvolver uma ação planejada e preparar seus missionários com cuidado. Para atingir a todos, há que se criar comunidades de envio, de acolhida e de compromisso coma defesa da dignidade humana, a preservação da vida e a salvação de todos. 5 Maria, Mãe da Igreja A Igreja tem também uma Mãe: Maria, mãe do Filho de Deus encarnado. Ao tornar-se mãe de Cristo, ela tornou-se mãe de todos os membros do seu corpo, que é a Igreja. O discípulo que estava ao pé da Cruz e recebeu Maria como mãe representava todos os discípulos de Cristo (cf. Jo 19,25-27). Maria de Nazaré foi a mulher escolhida para ser mãe do Filho de Deus. Ela concebeu o Filho de Deus, Jesus Cristo, por obra e graça do Espírito Santo. Por isso podemos chamala Mãe de Deus. Ela foi escolhida gratuitamente para esta missão. Em previsão dos méritos de Jesus Cristo, Deus preservou-a do pecado desde sua concepção. Por isso, a Igreja a proclama Imaculada e cheia de graça, pois toda a sua vida correspondeu ao desígnio de Deus. Maria é chamada Virgem – a sempre Virgem Maria. Isto significa que Jesus foi concebido em seu seio apenas pelo poder do Espírito Santo. Jesus é filho do Pai Eterno segundo a natureza divina; e filho de Maria, segundo a natureza humana. Quando dizemos que Jesus nasceu da Virgem Maria, afirmamos que Jesus é o Filho de Deus e somente Deus é o Pai de Jesus. É isso que ensinam os Evangelhos (cf. Lc 1,26-35; Mt 1,18-21). A Igreja Católica afirma, na sua fé, que Maria, terminada a sua vida na terra, foi elevada em corpo e alma ao céu, onde ela já participa da plenitude da salvação, da qual nós participaremos no final dos tempos. Maria é a figura maternal da Igreja, discípula fiel e modelo de fé para nós. Por isso a veneramos com carinho filial, como a Mãe da Igreja. A Igreja se empenha pela construção da unidade A vontade de Deus é a unidade de toda a humanidade dispersa. Por isso, enviou seu Filho Amado, que às vésperas do sacrifício da cruz, pediu ao Pai pelos seus discípulos e por todos que acreditam nele, “para que sejam um” (Jo 17,21). Esta unidade é essencial para a Igreja. Deus quer a Igreja, porque ele quer a unidade. Acreditar em Cristo significa querer a unidade. Por isso, a Igreja Católica, à luz dos ensinamentos do Concílio Vaticano II, empenha-se pela construção da unidade, ou seja, pelo ecumenismo. E compreende que a tarefa de reconstruir a unidade da Igreja de Cristo pertence a todos os fiéis – pastores e rebanhos – convocados pelo Espírito de Deus a fazer o possível para que se recomponham os laços de união entre todos os cristãos e cresça a colaboração entre os discípulos de Cristo (cf. UUS 9; 102). II – NOSSO OBJETIVO DE ESTUDO Uma eclesiologia in médio Ecclesiae À presente Introdução à eclesiologia quer ser um esboço de aproximação de alguns aspectos mais importantes do mistério que é o sujeito histórico Igreja. Justamente porque a Igreja não se reduz a uma mera realidade histórica e sociológica, nem a uma mera comunidade espiritual e invisível, devemos abordar a eclesiologia situados “in médio Ecclesiae”. A Ecclesia ex hominibus – humana – e a Ecclesia ex Trinitate – divina –, com efeito só podem ser abordadas corretamente quando vistas como são: uma realidade única e complexa. Análoga ao mistério do Verbo encarnado, como nos lembra LG 8. Por isso 6 mesmo é descrita como sinal e “sacramento”, isto é, como aquela que torna visível, na história, uma realidade invisível: a íntima união com Deus e a unidade de todo o gênero humano revelada em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo (cf. LG 1). Tratar da Igreja significa, por sua vez, reconhecer tanto a convocação divina para a qual ela convida – sentido ativo da palavra grega ’ekklesía –, como a comunidade humana que ela gera – sentido passivo de ’ekklesía. Por isso o teólogo só pode se aproximar da eclesiologia in médio Ecclesiae assumindo ao mesmo tempo sua dimensão espiritual, sem cair no fundamentalismo, e sua historicidade, sem reduzi-la ao sociologismo. O in médio Ecclesiae teve tal importância na história da teologia que pode fazer-nos compreender o motivo por que praticamente até o nosso século (passado) não se teve, rigorosamente falando, um “tratado” sistemático-dogmático sobre a Igreja, não obstante as tentativas apologéticas iniciadas no século XIV e consolidadas com a Reforma protestante. Mas isso não significa que não existissem importantes reflexões eclesiológicas provenientes de outros campos (sacramentos, direito, apologética, história da Igreja...). Por isso pode-se afirmar que, na história da teologia, o tratado de eclesiologia, mais do que um texto, foi sempre o contexto espiritual, histórico, social, cultural, litúrgico, canônico..., contexto que se manifesta precisamente no in médio Ecclesiae. Estamos convencidos de que é somente a partir dessa perspectiva que se pode e se deve abordar a eclesiologia para superar o famoso e falso dilema: “Cristo sim, Igreja não”, novamente evidenciado por uma recente pesquisa a respeito da fé na Itália, em que dos 85% dos que ainda se reconhecem como professando a fé católica, apenas 21% afirmam que acreditam na Igreja. Justamente por isso ressaltou-se a importância de uma nova reflexão sobre a credibilidade da Igreja a partir de sua origem e fundação em Jesus Cristo. Em sua história, a teologia católica sempre fez questão de enfatizar a importância de tratar todos os pontos da fé cristã – Deus, Jesus Cristo, os sacramentos, a vida cristã... – a partir do princípio da tradição eclesial (cf. DV 7-10). A própria teologia do povo de Deus, tão prestigiada pelo Vaticano II (cf. LG 9-17), quando tomada na sua totalidade teológica que articula a dimensão humana – povo – e a dimensão divina – de Deus –, nos fornece o quadro seguro para situar a verdadeira eclesiologia a partir de e dentro do vital in médio Ecclesiae. É partindo desse espírito que esta Introdução à eclesiologia pode fazer com que nos aproximemos do “paradoxo e do mistério da Igreja” (H. de Lubac), contribuindo para que os cristãos de hoje, e com eles o mundo atual, se sintam novamente atraídos pela fecundidade inexaurível de uma “Igreja que é mãe”, e possam ficar fascinados pela renovada oferta de uma “Igreja que é fraternidade” (S. Cipriano). II - HISTÓRIA SOBRE O TRATADO DE ECLESIOLOGIA 1. O nascimento do Tratado “De Ecclesia” e os elementos iniciais: patrística, direito canônico e sumas teológicas Os estudos atuais sobre a história da eclesiologia estão de acordo em situar o verdadeiro nascimento do tratado “De Ecclesia” na obra de Tiago Viterbo, De regimine christiano, publicada em 1301-1302. Com efeito, trata-se de um opúsculo que já pode ser considerado um verdadeiro tratado sobre a Igreja, no qual encontramos doutrinas de origem agostiniana – por exemplo, a doutrina teocrática – e outras de matriz tomista – por 7 exemplo, a idéia do direito natural do Estado – combinadas num esforço conciliador que confere a essa obra um aspecto peculiar que permite classificá-la como uma obra de transição. Mas isso não significa que essa temática não estivesse presente antes disso, especialmente na eclesiologia patrística, nos primórdios da ciência canônica e nas “sumas medievais”. Damos a seguir os pontos mais relevantes dessas etapas. A eclesiologia patrística – Nos primeiros séculos, a eclesiologia era mais vida e consciência do que teologia sistemática. No centro dessa eclesiologia ante litteram está a realidade da comunhão entendida como vínculo entre bispos e fiéis, bispos e fiéis entre si, que se realiza e se manifesta de forma preeminente na celebração-comunhão eucarística. Essa comunhão era percebida como estrutura da Igreja e vivida muito intensamente na experiência cotidiana da Igreja, embora não fosse ainda objeto de reflexão sistemática. A eclesiologia nos primórdios da ciência canônica (séc. XII) – A ciência canônica aparece como disciplina própria no século XII, com Graciano. Muitas questões relativas aos sacramentos, ao matrimônio e à ordem pertencem desde então ao direito canônico. Este, por sua vez, a partir da reforma gregoriana (último terço do século XI) e das disputas entre papado e os reis ou imperadores, começou a elaborar uma eclesiologia dos poderes, das prerrogativas e dos direitos da Igreja. Por isso, durante muitos séculos, para tratar de tais questões, os teólogos se documentaram com os canonistas, especialmente com as Decretais de Graciano, que lhes forneciam argumentos. A eclesiologia nas “sumas medievais” – Falta às sínteses ou sumas medievais um tratado especial de eclesiologia, tanto na corrente franciscana (Alexandre de Hales, Boaventura...) como na escola dominicana (Alberto Magno, Tomás de Aquino...). Qual seria o motivo de tal ausência? Observando bem aquela época histórica, podemos constatar que a realidade da Igreja penetrava de maneira espontânea a vida e a mensagem cristãs, de tal forma que não parecia ser necessária uma reflexão direta sobre si mesma, uma vez que toda a reflexão teológica se dava in médio Ecclesiae. O próprio Tomás de Aquino não explicitou esse tema, pois a Igreja estava presente e incluída em todas e em cada uma das partes de sua teologia como espaço e quadro vital. 2. Os tratados apologéticos desde o século XVI até o Vaticano I O problema da demonstração científica da verdade da Igreja católica, ou seja, a verificação de que o cristianismo romano está em continuidade total com as intenções e a obra de Jesus Cristo, fundador da Igreja, foi uma questão que se pôs desde o início, quando apareceram os primeiros cismas. Mas o capítulo da eclesiologia apologética clássica que se designa como demonstratio catholica é uma criação moderna: de fato, nem as heresias da antiguidade nem a separação entre o Oriente e o Ocidente cristãos ocorrida na Idade Média haviam provocado a crise religiosa que se verificou no século XVI, na qual se confrontaram diversas comunhões rivais que pretendiam ser as verdadeiras herdeiras de Cristo: catolicismo, anglicanismo e protestantismo de vários tipos. O tratado De vera Ecclesia, não obstante certas antecipações como a de Tiago de Viterbo, a que já nos referimos, só é elaborado no século XVI e se consolida, se desenvolve e se transforma incessantemente por diversos séculos até ser relançado no Concílio Vaticano I (em 1870). Três são as formas tradicionais dessa eclesiologia configurada em três vias: - A via histórica, que, por intermédio do examen dos documentos antigos, procura mostrar que a Igreja católica romana é a Igreja cristã de sempre, que aparece na história como uma sociedade uma, visível, permanente e hierarquicamente organizada. 8 - A via notarum, que se desenvolve seguindo este silogismo: Jesus Cristo dotou a sua Igreja de quatro notas distintivas: a unidade, a santidade, a catolicidade e a apostoliidade: ora, a Igreja católica romana é a única a possuir essas quatro notas, portanto, é a verdadeira Igreja de Cristo, ficando assim excluídas as demais confissões cristãs, como o luteranismo, o calvinismo, o anglicanismo e a ortodoxia, por não as possuírem. - A terceira, finalmente, é a via empírica, adotada pelo Concílio Vaticano I, graças ao seu promotor, o cardeal Dechamps, que segue um método mais simples: abandona toda e qualquer comparação entre a Igreja romana e a antiguidade, para evitar as dificuldades suscitadas pela interpretação dos documentos históricos, como também a verificação concreta das notas, e avalia a Igreja em si mesma como milagre moral,, que é como o sinal divino que confirma sua transcendência. Destas três vias, a via notarum foi a mais utilizada nos tratados eclesiológicos. 3. Perspectiva eclesiológica do Concílio Vaticano I A contribuição eclesiológica mais significativa desse concílio é sem dúvida aquilo que se refere à infalibilidade pontifícia na constituição dogmática Pastor Aeternus. Nela, o primado papal á vinculado à Igreja e tem como finalidade a preservação da unidade dessa mesma Igreja mediante a unidade do episcopado. O primado é primazia de jurisdição (DS 3053-3055), confiado a Pedro, como poder episcopal, ordinário e imediato, que se exercita sobre pastores e fiéis em matéria de fé e de costumes (DS 3061-3062). Essa infalibilidade é apresentada como fruto do carisma dado a Pedro e aos seus sucessores (DS 3071) e é assegurada ao papa enquanto sucessor de Pedro, em condições precisas e delimitadas na definição (DS 3074). Além da questão decisiva que se refere à infalibilidade, o Vaticano I elaborou um projeto de constituição dogmática intitulado De Ecclesia Christi, que, embora tenha sido amplamente discutido na sessão conciliar e retocado por meio de uma discussão posterior, não foi levado a termo, por causa da interrupção do concílio. Notemos que tanto o projeto de constituição, bem como sua segunda versão refeita pelo teólogo P. Kleutgen, dedicava diversos capítulos à Igreja antes de começar a tratar do papa, o que demonstra que a eclesiologia católica não se restringia ao pontífice. 4. Consolidação do tratado “De Ecclesia” do Vaticano I ao Vaticano II Entre os Concílios Vaticano I e Vaticano II dá-se uma clara consolidação do tratado De Ecclesia, com diferentes acentos, embora o apologético seja o permanente. Destarte surgem quatro formas princiais: - Na apologética-teológico-fundamental. A necessidade natural do homem de conhecer a verdade sobre si mesmo e sobre Deus encontra assim uma resposta. A Igreja satisfaz essa necessidade. É aqui que se situa a maior parte dos manuais desta etapa. - Na criteriologia teológica. A Igreja, a partir do seu magistério, é o meio do autêntico conhecimento teológico. - Na teologia dogmática. Começam a aparecer tratados sobre a Igreja de acentuado caráter dogmático. Eis alguns: Dogmática, obra de Scheeben, tradizida por Atzberger (1898-1903); a obra de D.A. Gréa (1820-1917); Schmaus (1958), etc... Convém sublinhar aqui a importância decisiva que tiveram duas Encíclicas papais dedicadas ao tema do Corpo Místico: a Satis cognitum de Leão XIII (1896, DS 3300-3310) e, especialmente, a Mystici 9 corporis de Pio XII (1943, DS 3800-3822), que suscitou o início de um desenvolvimento dogmático da Igreja, complementar à apologética, nos manuais. - Na experiência eclesial litúrgica, ecumênica, missionária e laical. É verdade que todas essas questões continuaram frequentemente à margem dos manuais sobre a Igreja, mas sua influência se fez notar por toda parte e suas grandes intuições e experiências (a Igreja como Povo de Deus, como Sacramento, sua Missão no mundo...) tiveram importância decisiva para a eclesiologia do Vaticano II e corroboraram a afirmação profética de R. Guardini em 1922: “A Igreja está viva nas almas”. 5. A perspectiva eclesiológica do Vaticano II Pela primeira vez na sua história secular, a Igreja deu uma definição de si mesma na constituição dogmática Lúmen gentium e em outras constituições, decretos ou declarações. Essa definição se caracteriza pela própria estrutura da LG, evidente sobretudo nos seus dois primeiros capítulos: cap. I: “O mistério da Igreja”; cap. II: “O povo de Deus”; cap. III: “A constituição hierárquica da Igreja e de modo especial do episcopado”; cap. IV: “Os leigos”; cap. V: “Vocação universal para a santidade na Igreja”; cap. VI: “Os religiosos”; cap. VII: “Índole escatológica da Igreja peregrina e sua união com a Igreja celeste”; cap. VIII: “A Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja”. Além disso, encontram-se muitos elementos de eclesiologia em outros documentos conciliares, como as outras três constituições: sobre a liturgia (Sacrosanctum Concilium), sobre a revelação (Dei Verbum), sobre a Igreja no mundo (Gaudium et spes); assim como nos decretos: sobre a atividade missionária na Igreja (Ad gentes), sobre o ministério dos bispos (Christus Dominus), sobre o ministério dos presbíteros (Presbyterorum ordinis), sobre o apostolado dos leigos (Apostolicam actuositatem), sobre o ecumenismo (Unitatis redintegratio). Em todos esses documentos observa-se uma mudança decisiva na perspectiva sobre a Igreja: privilegia-se o seu caráter de mistério e, portanto, de objeto de fé, e ela não mais é apresentada diretamente como motivo de credibilidade, como acontecia no Vaticano I. Passa-se, com efeito, de uma concepção que via a Igreja principalmente como societas, e que teve reflexos muito fortes no Vaticano I e nos tratados eclesiológicos subseqüentes, a uma concepção mais bíblica, com uma raiz litúrgica, atenta a uma visão missionária, ecumênica e histórica, em que a Igreja é descrita como sacramentum salutis (LG 1,9,48,59; SC 5,26; GS 42,45; AG 1,5) fórmula que é a base das afirmações do Vaticano II. Juntamente com essa reflexão, pouco a pouco se ressaltou que a visão eclesiológica do Vaticano II comporta um conceito renovado de communio (LG 4,8,13-15,18,21,24s; DV 10; GS 32; UR 2-4,14s., 17-19,22). Esta tem um significado básico de comunhão co m Deus, da qual se participa por meio da palavra e dos sacramentos, que leva à unidade dos cristãos entre si e que se realiza concretamente na comunhão das Igrejas locais em comunhão hierárquica com aquele que, como bispo de Roma, “preside na caridade” a Igreja católica (cf. LG 13). Com razão afirmou o sínodo extraordinário de 1985: “A eclesiologia de comunhão é a idéia central-fundamental nos documentos do concílio” (C.1, EV 9, 1800). 6. Visão geral da Constituição dogmática Lúmen Gentium do Concílio Vaticano II – (promulgada a 21 de novembro de 1964) I – O MISTÉRIO DA IGREJA 10 A Igreja de Cristo sacramento da unidade dos homens em Deus, é um Mistério sobrenatural: nela se atua um desígnio do Pai celeste, que é o de convocar os homens para uma grande comunidade de irmãos do Cristo Jesus. Prenunciada desde o princípio do mundo, ela foi concretizada pela ação redentora do Espírito Santo, desde Pentecostes. Sendo uma presença germinal do Reino de Deus no mundo e na História, constitui o Corpo Místico de Cristo, onde a humanidade é vivificada sobrenaturalmente. Ao mesmo tempo que realidade espiritual e mística, é também possuidora de uma estrutura visível e hierárquica, que subsiste na Igreja católica, apostólica, romana. Peregrinando na História até ao dia de sua consumação, é chamada a prolongar a imagem e a missão do Cristo Servidor e Redentor. II – O POVO DE DEUS Enquanto Povo de Deus no Cristo Jesus, a Igreja consta dos homens que crêem em Cristo e exprimem no Batismo sua adesão a ele. Todos os fiéis participam do sacerdócio, do profetismo e da realeza do Cristo Jesus. Destinando-se a abrigar o inteiro e variegado gênero humano, o Povo de Deus tem, plenamente incorporados a si, os fiéis católicos (e em desejo os catecúmenos) quando, além dos sinais da fé (e comunhão eclesiástica), possuem o Espírito Santo. Os cristãos não-católicos estão imperfeitamente incorporados, do ponto de vista dos sinais da fé. Os não-cristãos estão ordenados, por diversas razões, ao mesmo Povo de Deus. Sendo do desígnio divino que todos os homens se incorporem perfeitamente ao Povo de Deus em marcha, compete à Igreja Católica uma tarefa essencialmente missionária de atração dos homens à plenitude dos sinais da fé. III – CONSTITUIÇÃO HIERÁRQUICA DA IGREJA Cristo instituiu a Igreja visível ornada de ministérios. Instituiu sobretudo o Colégio Apostólico (sob Pedro), que se prolonga, de certo modo, no Colégio dos Bispos (sob o Papa). O Episcopado é conferido através de um sacramento, o qual não é outro senão a plenitude do sacramento da Ordem. O Colégio Episcopal, unido ao Papa, seu Chefe, goza, como ele sozinho, de um poder supremo e pleno sobre a Igreja, o qual é exercido principalmente nos Concílios Ecumênicos. Cada Bispo, singularmente, só preside a uma Igreja particular, mas deve ter solicitude pelos interesses de toda a Igreja. Em seu ministério, devem e podem os Bispos ensinar, santificar e pastorear. Cooperadores da Ordem episcopal são os Presbíteros, que embora não possuam o ápice do pontificado, participam da mesma dignidade sacerdotal. No grau inferior da Hierarquia estão os Diáconos, servem ao Povo de Deus na liturgia, na pregação e na ação caritativa. IV – OS LEIGOS Os fiéis que vivem no mundo, sem serem clérigos nem religiosos, são os leigos. Cabelhes realizar um apostolado não só de participação na evangelização dos homens, mas também de instauração cristã da vida temporal. Obedeçam e colaborem com os pastores, dentro da obra comum que empreendem. 11 V – A VOCAÇÃO UNIVERSAL À SANTIDADE Todos na Igreja são chamados à santidade, a qual, porém, há de se desenvolver segundo modalidades diferentes, conforme os diferentes carismas, encargos, estados de vida. – A santidade consiste essencialmente na perfeição da caridade e tem à disposição muitos meios sobrenaturais, na Igreja. VI – OS RELIGIOSOS Os cristãos que abraçam estavelmente os conselhos evangélicos da castidade, pobreza e obediência, chamam-se religiosos. Querem colher abundantes frutos da graça batismal e devotar-se ao bem da Igreja. Sua existência é feita para manifestar de modo especial a figura de Cristo e a ação do Espírito Santo, e para preludiar uma visão da escatologia. VII – ÍNDOLE ESCATOLÓGICA DA IGREJA PEREGRINANTE E SUA UNIÃO COM A IGREJA CELESTE A Igreja, na terra, está ainda em caminho, não atingiu sua perfeição. Desde já, porém, comunga com os fiéis da Igreja celeste, aos quais venera como exemplares e amigos; e também com os defuntos que morreram em Cristo, e ainda necessitam de sufrágios. VIII – A BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA, MÃE DE DEUS, NO MISTÉRIO DE CRISTO E DA IGREJA \A Virgem Maria está no âmago do Mistério de Cristo e da Igreja, pois Deus quis que Cristo, Cabeça da Igreja, nascesse de suas entranhas. Prenunciada no Antigo Testamento, a Virgem é apresentada, no Novo, como aquela que aceitou ser cooperadora do desígnio divino da Redenção, e como a perene associada de todo o itinerário de Jesus Cristo. Por isso é venerada como a Mãe dos fiéis, na ordem da graça, experimentando a Igreja sua contínua intercessão materna. Maria deve ser dita ainda, por todo o mistério que nela se realizou, e por sua vida evangélica, o tipo da Igreja e o exemplar dos fiéis. A Maria se deve um culto especial, embora essencialmente distinto da adoração que se presta a Deus e a Cristo. Nela a Igreja vê sempre seu ideal de esperança e conforto. III - A IGREJA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS O termo grego ’ekklesía, do qual deriva o termo ecclesia, de que provém igreja, na Septuaginta traduz sempre a expressão qahal, que significa “aviso de convocação” e “assembléia reunida”. Esse termo foi introduzido na época do Deuteronômio, por volta do século VII a.C., com uma fórmula significativa: “O dia da assembléia”(Dt 4,10; 9,10; 18,16), que Moisés pronuncia como lembrança do dia em que o Senhor lhe ordenara que convocasse o povo em assembléia (qahal = ’ekklesía) para a celebração da aliança. Essa assembléia, além disso, aparece com o determinativo Kuríou (Dt 23,1-8). É nessa linha que se encontra no discurso de Estevão em At 7,38 para indicar a assembléia do Sinai. No Novo Testamento, a freqüência do termo igreja se tornará progressiva, pelo uso evangélico 12 exclusivo presente em Mt 16,18; 18,17, até às mais de cem vezes – 144 exatamente – em que é utilizada no restante do Novo Testamento. Ora, o termo grego ’ekklesía pode ser entendido tanto em sentido ativo como em sentido passivo, como prova a sua dupla tradução: de um lado, a igreja como convocação e, de outro, como congregação. Ambas as definições se encontram amplamente na patrística, e Santo Isidoro de Sevilha as tornou clássicas no Ocidente com esta formulação: Ecclesia convocans et congregans – convocação divina –, Ecclesia convocata et congregata – comunidade dos convocados (Etym. 8,1); S. Beda, jogando com o seu duplo significado, diz: “A Igreja gera constantemente a Igreja” (Expl. Ap I,2) e S. Cipriano distingue entre a Igreja “mãe” e a Igreja “fraternidade” (Ep. 46,2). Ambas as dimensões se complementam para descrever aquilo que a Igreja é como “uma realidade complexa e análoga ao mistério do Verbo encarnado” (cf. LG 8). A Ecclesia de Trinitate (cf. LG 4), cuja missão ministerial tem origem na mesma Trindade, é ao mesmo tempo e sob outro aspecto Ecclesia ex hominibus, como “Igreja terrena” que entra na história dos homens (cf. LG 8,9). A Igreja, nessa perspectiva, é ao mesmo tempo um ovil e um rebanho, é mãe e povo, é materno e fraternidade reunida. Parafraseando diversas citações patrísticas, pode-se falar, no primeiro sentido, da Ecclesia mater congregans; no segundo, da Ecclesia fraternitas congregata. O Vaticano II dá uma resposta à pergunta sobre se existe uma definição de Igreja quando, no cap. I da LG, afirma que ela é um mistério. Com efeito, mais do que definida, a Igreja pode ser apenas descrita, como lembrou o sínodo de 1985, depois de haver enunciado a importância da Igreja sacramento e comunhão: “O Concílio descreveu de diversos modos a Igreja como povo de Deus, corpo de Cristo, esposa de Cristo, templo do Espírito Santo, família de Deus. Essas descrições se completam mutuamente e devem ser compreendidas à luz do mistério de Cristo e da Igreja em Cristo” (II. 3, EV 9, 1790). 13