IDEOLOGIA OU ECONOMIA POLÍTICA Samuel Pessoa Nas duas últimas colunas tratei das duas agendas de política econômica que estão conosco desde a redemocratização. A agenda mais recente, o ensaio nacional desenvolvimentista ou a “nova matriz econômica”, e a agenda estrutural, o contrato social da redemocratização. A nova matriz econômica constitui um conjunto de políticas cujo objetivo é colocar o Estado em posição central da determinação da natureza do processo de desenvolvimento econômico. Caracteriza-se por aceitar um pouco mais de inflação se for necessário para, mesmo com desequilíbrios, recolocar a economia na trajetória do crescimento. Também traz intenso ativismo sobre a taxa de câmbio e forte queda do superávit primário, além de, sempre é bom lembrar, grande perda de transparência da política fiscal em função de práticas contábeis pouco ortodoxas. Para além do front macroeconômico, a nova matriz econômica faz uso de um conjunto de ações microeconômicas para estimular o desenvolvimento dos setores considerados como os mais dinâmicos da economia. Faz parte desta agenda fechar a economia ao comércio internacional, carrear poupança por meio dos bancos públicos e desonerar a produção, sempre de forma muito discricionária, para alguns setores específicos. Uma questão importante para entendermos os movimentos futuros da política econômica é o de compreender as motivações da alteração do curso da política econômica em 2009. Com exceção de algum ativismo maior nas agências reguladoras, o primeiro governo Lula foi muito liberal no espaço econômico, de tal maneira que os 11 anos que compreendem a passagem dos ex-ministros Malan e Palocci à frente da Fazenda podem ser chamados de período “Malocci”. Consigo enxergar em princípio duas motivações para a alteração da agenda econômica: economia política e ideologia. No primeiro caso, é possível que grandes grupos organizados da sociedade tenham pressionado os formuladores a alterar o curso da política econômica na direção que atendesse aos seus interesses particulares. No segundo, é possível que o pensamento e as crenças sobre o funcionamento da economia e o processo de desenvolvimento dos formuladores de política econômica tenham motivado a alteração de rota. Creio que a força mais importante foram as ideias. Não houve entre 2006 e 2009 grande alteração na forma de funcionamento dos grupos de pressão. Eles estavam onde sempre estiveram e permanecem. A mudança foi no grupo que passou a formular a política econômica. O ministro Guido Mantega, após assumir a Fazenda, agiu com muita cautela e grande senso de oportunidade. Manteve até 2008 o mesmo regime de política econômica que herdara de Palocci. A crise foi a oportunidade para mudar a gestão da economia na direção da sua preferência e a do grupo de pessoas que passou a liderar a formulação da política econômica. Em um primeiro momento pareceu que a nova matriz econômica seria somente um pacote anticíclico, a meu ver exagerado, para lidar com a forte desaceleração da economia brasileira em 2009. O tempo e as escolhas a partir de 2010 mostraram que a alteração era estrutural. O diagnóstico de que a adoção da nova matriz econômica, ou ensaio nacional desenvolvimentista, teve motivação no âmbito das ideias e não da economia política sugere que, se houver transição política com a saída de Dilma do poder, há grande espaço para que retornemos ao regime anterior. Com manutenção de Dilma, não está claro o curso futuro da política econômica. Por um lado, ela comunga das mesmas idéias que justificaram a adoção da nova matriz econômica. Por outro lado os desequilíbrios macroeconômicos legados pela nova matriz são claríssimos. Somente para ficarmos em um único indicador, o superávit primário obtido com receitas recorrentes fechará 2014 provavelmente na casa de -1% do PIB, quando foi de 2,4% do PIB em 2011. Ou seja, alguma correção de rota terá que ocorrer. Não está claro qual.