C M Y CM MY CY CMY K ISBN 978-85-7817-272-5 9 788578 172725 Universidade do Sul de Santa Catarina História da Filosofia II Disciplina na modalidade a distância Palhoça UnisulVirtual 2011 Créditos Universidade do Sul de Santa Catarina | Campus UnisulVirtual | Educação Superior a Distância Avenida dos Lagos, 41 – Cidade Universitária Pedra Branca | Palhoça – SC | 88137-900 | Fone/fax: (48) 3279-1242 e 3279-1271 | E-mail: [email protected] | Site: www.unisul.br/unisulvirtual Reitor Ailton Nazareno Soares Vice-Reitor Sebastião Salésio Heerdt Chefe de Gabinete da Reitoria Willian Corrêa Máximo Pró-Reitor de Ensino e Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação Mauri Luiz Heerdt Pró-Reitora de Administração Acadêmica Miriam de Fátima Bora Rosa Pró-Reitor de Desenvolvimento e Inovação Institucional Valter Alves Schmitz Neto Diretora do Campus Universitário de Tubarão Milene Pacheco Kindermann Diretor do Campus Universitário da Grande Florianópolis Hércules Nunes de Araújo Secretária-Geral de Ensino Solange Antunes de Souza Diretora do Campus Universitário UnisulVirtual Jucimara Roesler Equipe UnisulVirtual Diretor Adjunto Moacir Heerdt Secretaria Executiva e Cerimonial Jackson Schuelter Wiggers (Coord.) Marcelo Fraiberg Machado Tenille Catarina Assessoria de Assuntos Internacionais Murilo Matos Mendonça Assessoria de Relação com Poder Público e Forças Armadas Adenir Siqueira Viana Walter Félix Cardoso Junior Assessoria DAD - Disciplinas a Distância Patrícia da Silva Meneghel (Coord.) Carlos Alberto Areias Cláudia Berh V. da Silva Conceição Aparecida Kindermann Luiz Fernando Meneghel Renata Souza de A. Subtil Assessoria de Inovação e Qualidade de EAD Denia Falcão de Bittencourt (Coord.) Andrea Ouriques Balbinot Carmen Maria Cipriani Pandini Assessoria de Tecnologia Osmar de Oliveira Braz Júnior (Coord.) Felipe Fernandes Felipe Jacson de Freitas Jefferson Amorin Oliveira Phelipe Luiz Winter da Silva Priscila da Silva Rodrigo Battistotti Pimpão Tamara Bruna Ferreira da Silva Coordenação Cursos Coordenadores de UNA Diva Marília Flemming Marciel Evangelista Catâneo Roberto Iunskovski Auxiliares de Coordenação Ana Denise Goularte de Souza Camile Martinelli Silveira Fabiana Lange Patricio Tânia Regina Goularte Waltemann Coordenadores Graduação Aloísio José Rodrigues Ana Luísa Mülbert Ana Paula R.Pacheco Artur Beck Neto Bernardino José da Silva Charles Odair Cesconetto da Silva Dilsa Mondardo Diva Marília Flemming Horácio Dutra Mello Itamar Pedro Bevilaqua Jairo Afonso Henkes Janaína Baeta Neves Jorge Alexandre Nogared Cardoso José Carlos da Silva Junior José Gabriel da Silva José Humberto Dias de Toledo Joseane Borges de Miranda Luiz G. Buchmann Figueiredo Marciel Evangelista Catâneo Maria Cristina Schweitzer Veit Maria da Graça Poyer Mauro Faccioni Filho Moacir Fogaça Nélio Herzmann Onei Tadeu Dutra Patrícia Fontanella Roberto Iunskovski Rose Clér Estivalete Beche Vice-Coordenadores Graduação Adriana Santos Rammê Bernardino José da Silva Catia Melissa Silveira Rodrigues Horácio Dutra Mello Jardel Mendes Vieira Joel Irineu Lohn José Carlos Noronha de Oliveira José Gabriel da Silva José Humberto Dias de Toledo Luciana Manfroi Rogério Santos da Costa Rosa Beatriz Madruga Pinheiro Sergio Sell Tatiana Lee Marques Valnei Carlos Denardin Sâmia Mônica Fortunato (Adjunta) Coordenadores Pós-Graduação Aloísio José Rodrigues Anelise Leal Vieira Cubas Bernardino José da Silva Carmen Maria Cipriani Pandini Daniela Ernani Monteiro Will Giovani de Paula Karla Leonora Dayse Nunes Letícia Cristina Bizarro Barbosa Luiz Otávio Botelho Lento Roberto Iunskovski Rodrigo Nunes Lunardelli Rogério Santos da Costa Thiago Coelho Soares Vera Rejane Niedersberg Schuhmacher Gerência Administração Acadêmica Angelita Marçal Flores (Gerente) Fernanda Farias Secretaria de Ensino a Distância Samara Josten Flores (Secretária de Ensino) Giane dos Passos (Secretária Acadêmica) Adenir Soares Júnior Alessandro Alves da Silva Andréa Luci Mandira Cristina Mara Schauffert Djeime Sammer Bortolotti Douglas Silveira Evilym Melo Livramento Fabiano Silva Michels Fabricio Botelho Espíndola Felipe Wronski Henrique Gisele Terezinha Cardoso Ferreira Indyanara Ramos Janaina Conceição Jorge Luiz Vilhar Malaquias Juliana Broering Martins Luana Borges da Silva Luana Tarsila Hellmann Luíza Koing Zumblick Maria José Rossetti Marilene de Fátima Capeleto Patricia A. Pereira de Carvalho Paulo Lisboa Cordeiro Paulo Mauricio Silveira Bubalo Rosângela Mara Siegel Simone Torres de Oliveira Vanessa Pereira Santos Metzker Vanilda Liordina Heerdt Gestão Documental Patrícia de Souza Amorim Poliana Simao Schenon Souza Preto Karine Augusta Zanoni Marcia Luz de Oliveira Mayara Pereira Rosa Luciana Tomadão Borguetti Gerência de Desenho e Desenvolvimento de Materiais Didáticos Assuntos Jurídicos Márcia Loch (Gerente) Bruno Lucion Roso Sheila Cristina Martins Desenho Educacional Marketing Estratégico Rafael Bavaresco Bongiolo Carolina Hoeller da Silva Boing Vanderlei Brasil Francielle Arruda Rampelotte Cristina Klipp de Oliveira (Coord. Grad./DAD) Roseli A. Rocha Moterle (Coord. Pós/Ext.) Aline Cassol Daga Aline Pimentel Carmelita Schulze Daniela Siqueira de Menezes Delma Cristiane Morari Eliete de Oliveira Costa Eloísa Machado Seemann Flavia Lumi Matuzawa Geovania Japiassu Martins Isabel Zoldan da Veiga Rambo João Marcos de Souza Alves Leandro Romanó Bamberg Lygia Pereira Lis Airê Fogolari Luiz Henrique Milani Queriquelli Marcelo Tavares de Souza Campos Mariana Aparecida dos Santos Marina Melhado Gomes da Silva Marina Cabeda Egger Moellwald Mirian Elizabet Hahmeyer Collares Elpo Pâmella Rocha Flores da Silva Rafael da Cunha Lara Roberta de Fátima Martins Roseli Aparecida Rocha Moterle Sabrina Bleicher Verônica Ribas Cúrcio Reconhecimento de Curso Acessibilidade Multimídia Lamuniê Souza (Coord.) Clair Maria Cardoso Daniel Lucas de Medeiros Jaliza Thizon de Bona Guilherme Henrique Koerich Josiane Leal Marília Locks Fernandes Gerência Administrativa e Financeira Renato André Luz (Gerente) Ana Luise Wehrle Anderson Zandré Prudêncio Daniel Contessa Lisboa Naiara Jeremias da Rocha Rafael Bourdot Back Thais Helena Bonetti Valmir Venício Inácio Gerência de Ensino, Pesquisa e Extensão Janaína Baeta Neves (Gerente) Aracelli Araldi Elaboração de Projeto Maria de Fátima Martins Extensão Maria Cristina Veit (Coord.) Pesquisa Daniela E. M. Will (Coord. PUIP, PUIC, PIBIC) Mauro Faccioni Filho (Coord. Nuvem) Pós-Graduação Anelise Leal Vieira Cubas (Coord.) Biblioteca Salete Cecília e Souza (Coord.) Paula Sanhudo da Silva Marília Ignacio de Espíndola Renan Felipe Cascaes Gestão Docente e Discente Enzo de Oliveira Moreira (Coord.) Capacitação e Assessoria ao Docente Alessandra de Oliveira (Assessoria) Adriana Silveira Alexandre Wagner da Rocha Elaine Cristiane Surian (Capacitação) Elizete De Marco Fabiana Pereira Iris de Souza Barros Juliana Cardoso Esmeraldino Maria Lina Moratelli Prado Simone Zigunovas Tutoria e Suporte Anderson da Silveira (Núcleo Comunicação) Claudia N. Nascimento (Núcleo Norte- Nordeste) Maria Eugênia F. Celeghin (Núcleo Pólos) Andreza Talles Cascais Daniela Cassol Peres Débora Cristina Silveira Ednéia Araujo Alberto (Núcleo Sudeste) Francine Cardoso da Silva Janaina Conceição (Núcleo Sul) Joice de Castro Peres Karla F. Wisniewski Desengrini Kelin Buss Liana Ferreira Luiz Antônio Pires Maria Aparecida Teixeira Mayara de Oliveira Bastos Michael Mattar Vanessa de Andrade Manoel (Coord.) Letícia Regiane Da Silva Tobal Mariella Gloria Rodrigues Vanesa Montagna Avaliação da aprendizagem Portal e Comunicação Catia Melissa Silveira Rodrigues Andreia Drewes Luiz Felipe Buchmann Figueiredo Rafael Pessi Gerência de Produção Arthur Emmanuel F. Silveira (Gerente) Francini Ferreira Dias Design Visual Pedro Paulo Alves Teixeira (Coord.) Alberto Regis Elias Alex Sandro Xavier Anne Cristyne Pereira Cristiano Neri Gonçalves Ribeiro Daiana Ferreira Cassanego Davi Pieper Diogo Rafael da Silva Edison Rodrigo Valim Fernanda Fernandes Frederico Trilha Jordana Paula Schulka Marcelo Neri da Silva Nelson Rosa Noemia Souza Mesquita Oberdan Porto Leal Piantino Sérgio Giron (Coord.) Dandara Lemos Reynaldo Cleber Magri Fernando Gustav Soares Lima Josué Lange Claudia Gabriela Dreher Jaqueline Cardozo Polla Nágila Cristina Hinckel Sabrina Paula Soares Scaranto Thayanny Aparecida B. da Conceição Conferência (e-OLA) Gerência de Logística Marcelo Bittencourt (Coord.) Jeferson Cassiano A. da Costa (Gerente) Logísitca de Materiais Carlos Eduardo D. da Silva (Coord.) Abraao do Nascimento Germano Bruna Maciel Fernando Sardão da Silva Fylippy Margino dos Santos Guilherme Lentz Marlon Eliseu Pereira Pablo Varela da Silveira Rubens Amorim Yslann David Melo Cordeiro Avaliações Presenciais Graciele M. Lindenmayr (Coord.) Ana Paula de Andrade Angelica Cristina Gollo Cristilaine Medeiros Daiana Cristina Bortolotti Delano Pinheiro Gomes Edson Martins Rosa Junior Fernando Steimbach Fernando Oliveira Santos Lisdeise Nunes Felipe Marcelo Ramos Marcio Ventura Osni Jose Seidler Junior Thais Bortolotti Gerência de Marketing Eliza B. Dallanhol Locks (Gerente) Relacionamento com o Mercado Alvaro José Souto Relacionamento com Polos Presenciais Alex Fabiano Wehrle (Coord.) Jeferson Pandolfo Carla Fabiana Feltrin Raimundo (Coord.) Bruno Augusto Zunino Gabriel Barbosa Produção Industrial Gerência Serviço de Atenção Integral ao Acadêmico Maria Isabel Aragon (Gerente) Ana Paula Batista Detóni André Luiz Portes Carolina Dias Damasceno Cleide Inácio Goulart Seeman Denise Fernandes Francielle Fernandes Holdrin Milet Brandão Jenniffer Camargo Jessica da Silva Bruchado Jonatas Collaço de Souza Juliana Cardoso da Silva Juliana Elen Tizian Kamilla Rosa Mariana Souza Marilene Fátima Capeleto Maurício dos Santos Augusto Maycon de Sousa Candido Monique Napoli Ribeiro Priscilla Geovana Pagani Sabrina Mari Kawano Gonçalves Scheila Cristina Martins Taize Muller Tatiane Crestani Trentin Carlos Euclides Marques Maria Juliani Nesi História da Filosofia II Livro didático Design instrucional Lucésia Pereira 1ª edição revista Palhoça UnisulVirtual 2011 Copyright © UnisulVirtual 2011 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição. Edição – Livro Didático Professores Conteudistas Carlos Euclides Marques Maria Juliani Nesi Design Instrucional Lucésia Pereira Assistente Acadêmico Aline Cassol Daga (1ª ed. rev.) ISBN ISBN 978-85-7817-272-5 Projeto Gráfico e Capa Equipe UnisulVirtual Diagramação Alice Demaria Silva Edison Valim Oberdan Piantino (1ª ed. rev.) Revisão Ortográfica Papyrus Textos Ltda. 109 M31 Marques, Carlos Euclides História da filosofia II : livro didático / Carlos Euclides Marques, Maria Juliani Nesi ; design instrucional Lucésia Pereira ; [assistente acadêmico Aline Cassol Daga]. – 1. ed. rev. – Palhoça : UnisulVirtual, 2011. 164 p. : il. ; 28 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7817-272-5 1. Filosofia – História. I. Nesi, Maria Juliani. II. Pereira, Lucésia. III. Daga, Aline Cassol. IV. Título. Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul Sumário Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Palavras dos professores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Plano de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 UNIDADE 1 - Caracterização do pensamento medieval . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 UNIDADE 2 - O desenvolvimento da Filosofia Patrística . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 UNIDADE 3 - O desenvolvimento da Escolástica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 UNIDADE 4 - A crise da Escolástica e o nascimento do pensamento moderno. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Para concluir o estudo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Referências. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 Sobre os professores conteuditas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 Respostas e comentários das atividades de autoavaliação. . . . . . . . . . . . . . 161 Biblioteca Virtual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 Apresentação Este livro didático corresponde à disciplina História da Filosofia II. O material foi elaborado visando a uma aprendizagem autônoma e aborda conteúdos especialmente selecionados e relacionados à sua área de formação. Ao adotar uma linguagem didática e dialógica, objetivamos facilitar seu estudo a distância, proporcionando condições favoráveis às múltiplas interações e a um aprendizado contextualizado e eficaz. Lembre-se que sua caminhada, nesta disciplina, será acompanhada e monitorada constantemente pelo Sistema Tutorial da UnisulVirtual, por isso a “distância” fica caracterizada somente na modalidade de ensino que você optou para sua formação, pois na relação de aprendizagem professores e instituição estarão sempre conectados com você. Então, sempre que sentir necessidade entre em contato; você tem à disposição diversas ferramentas e canais de acesso tais como: telefone, e-mail e o Espaço Unisul Virtual de Aprendizagem, que é o canal mais recomendado, pois tudo o que for enviado e recebido fica registrado para seu maior controle e comodidade. Nossa equipe técnica e pedagógica terá o maior prazer em lhe atender, pois sua aprendizagem é o nosso principal objetivo. Bom estudo e sucesso! Equipe UnisulVirtual. 7 Palavras dos professores Caro(a) aluno(a), Seja bem-vindo(a) à disciplina História da Filosofia II! É fundamental o estudo do pensamento filosófico e teológico da Idade Média para se compreender como a filosofia grega alcançou a Europa e se estendeu por todo o mundo ocidental. A interpretação comum da Idade Média como um período obscuro, no qual a produção filosófica e científica foi praticamente nula, é insuficiente diante da vastíssima obra deixada pelos pensadores da Patrística e da Escolástica. Por meio da atividade intelectual vigorosa desses sábios, chegou até nós a herança cultural do Ocidente. O conhecimento do pensamento cristão medieval é fundamental, também, para a compreensão de diversos aspectos da educação, da moral e da história dos povos que, de alguma forma, foram marcados pelo cristianismo. Assim, os conteúdos estudados na disciplina História da Filosofia II são importantes para você continuar seus estudos e compreender os filósofos dos períodos posteriores, bem como outras temáticas da Filosofia. Ingresse no conteúdo de História da Filosofia II e bons estudos! Professores Carlos Euclides Marques e Maria Juliani Nesi. Plano de estudo O plano de estudos visa a orientá-lo no desenvolvimento da disciplina. Ele possui elementos que o ajudarão a conhecer o contexto da disciplina e a organizar o seu tempo de estudos. O processo de ensino e aprendizagem na UnisulVirtual leva em conta instrumentos que se articulam e se complementam, portanto, a construção de competências se dá sobre a articulação de metodologias e por meio das diversas formas de ação/mediação. São elementos desse processo: o livro didático; o Espaço UnisulVirtual de Aprendizagem (EVA); as atividades de avaliação (a distância, presenciais e de autoavaliação); o Sistema Tutorial. Ementa História da Filosofia Medieval. Patrística, Escolástica e a desagregação da Escolástica. Projeto de Prática da Disciplina. Universidade do Sul de Santa Catarina Objetivos da disciplina Geral A disciplina pretende situar o aluno no contexto do pensamento medieval, patrístico e escolástico, especialmente de Santo Agostinho e Tomás de Aquino. Específicos: Relacionar as características sociais, políticas e econômicas da Idade Média e o pensamento filosófico daquele período. Compreender a influência do pensamento cristão na filosofia medieval. Identificar as características da Patrística e da Escolástica. Compreender a crise da Escolástica como um limiar do pensamento moderno. Carga Horária A carga horária total da disciplina é 60 horas-aula. Conteúdo programático/objetivos Os objetivos de cada unidade definem o conjunto de conhecimentos que você deverá deter para o desenvolvimento de habilidades e competências necessárias à sua formação. Neste sentido, veja a seguir as unidades que compõem o Livro Didático desta Disciplina, bem como os seus respectivos objetivos. Unidades de estudo: 4 12 História da Filosofia II Unidade 1 - Caracterização do pensamento medieval Nessa unidade, você vai estudar o surgimento da filosofia helênica, pensamento cristão no último período da filosofia grega. Conhecerá os fatores sociais, políticos e ideológicos que caracterizaram o surgimento do pensamento medieval, com suas fases e seus principais filósofos. Unidade 2 - O desenvolvimento da Filosofia Patrística Nesta unidade, você estudará a Patrística nos seus dois aspectos distintos: a corrente grega, que buscou a continuidade entre o mundo grego e o cristão; e a latina, que salientou o antagonismo entre a filosofia pagã e a teologia cristã. E se deterá um pouco mais no pensamento de Agostinho de Hipona, um dos representantes mais importantes da Patrística. Unidade 3 - O desenvolvimento da Escolástica Nesta unidade, você irá estudar o pensador que fez a passagem entre os padres latinos e o nascimento da Escolástica: Severino Boécio. Perceberá que dois grupos distintos de pensadores dedicaram-se especialmente à questão da prática da dialética na profissão da fé: os místicos e os dialéticos. E se deterá um pouco mais no pensamento de Tomás de Aquino, um dos representantes mais importantes da Escolástica. Unidade 4 - A crise da Escolástica e o nascimento do pensamento moderno Nesta última unidade, você estudará o destino da Escolástica após Tomás de Aquino; o impacto do Humanismo no pensamento cristão; e, por fim, a crise da Escolástica e o inevitável surgimento dos primeiros raios da ciência moderna. 13 Universidade do Sul de Santa Catarina Agenda de atividades/Cronograma Verifique com atenção o EVA, organize-se para acessar periodicamente a sala da disciplina. O sucesso nos seus estudos depende da priorização do tempo para a leitura, da realização de análises e sínteses do conteúdo e da interação com os seus colegas e professor. Não perca os prazos das atividades. Registre no espaço a seguir as datas com base no cronograma da disciplina disponibilizado no EVA. Use o quadro para agendar e programar as atividades relativas ao desenvolvimento da disciplina. Atividades obrigatórias Demais atividades (registro pessoal) 14 UNIDADE 1 Caracterização do pensamento medieval Objetivos de aprendizagem Analisar o surgimento do pensamento cristão a partir da filosofia grega clássica. Apontar os fatores que implicaram o surgimento do pensamento medieval. Caracterizar as fases do pensamento medieval, identificando seus filósofos mais expressivos. Seções de estudo Seção 1 A imagem da Idade Média Seção 2 O surgimento do pensamento cristão no contexto da filosofia helenística Seção 3 Fatores sociais e políticos que caracterizaram o surgimento do pensamento medieval Seção 4 As fases do pensamento medieval e seus principais filósofos 1 Universidade do Sul de Santa Catarina Para início de estudo Esta unidade inicia-se discutindo a imagem da Idade Média sob diferentes perspectivas, salientando as diversas interpretações -- às vezes opostas -- já efetuadas. Com isto, você observará que este longo período da história é, geralmente, mal entendido. Em seguida, são apresentadas as condições sociais, políticas, econômicas e ideológicas que levaram à consolidação da Filosofia Cristã a partir da expansão do Cristianismo e de sua relação com a tradição grega, tendo como um dos temas centrais o debate entre fé e razão e seus correlatos. Por fim, serão apresentados alguns aspectos históricos que são consensuais entre historiadores e filósofos, sintetizados em quadros cronológicos, além da indicação de alguns dos pensadores mais significativos da Idade Média. 16 História da Filosofia II Seção 1 – A imagem da Idade Média Para começar, efetue uma rápida pesquisa sobre a imagem que as pessoas comuns e/ou a mídia fazem da Idade Média. Pense nos filmes a que já assistiu e que tenham este período histórico como pano de fundo. Antes de continuar, anote os resultados no espaço Exposição e leia as anotações dos outros colegas. Lembre-se: você está desenvolvendo um estudo que depende, também, de seu empenho e autodisciplina. Assim sendo, procure não pular as etapas solicitadas, as pesquisas e os posicionamentos, antes de apresentar o conteúdo propriamente dito: estas incursões possibilitarão que você faça uma análise crítica da visão vigente sobre o assunto. Provavelmente, você encontrou, por um lado, opiniões e imagens pejorativas, negativas, que retratam a Idade Média como um ambiente obscuro, de perseguição, ignorância, superstição, pobreza. Certamente, leu o termo “idade das trevas”, fazendo alusão às fogueiras e queimas das bruxas e dos heréticos. É possível que, em algum texto, haja pensamentos ou teorias que estabeleçam relação com a filosofia, mas também pode ser que algum teórico tenha afirmado não ter havido filosofia nesse período, ou que esta se encontrava a serviço da religião. Ah, a religião! Muitas vezes, quando se fala em Idade Média, a Igreja -- está-se falando da cristã -- é retratada como a instituição dominadora do pensamento e da política medieval; a detentora de todo o poder; a perseguidora dos que se colocavam contrários aos seus dogmas, os chamados hereges, também mandados à fogueira; a que ostentava riqueza e detinha vastas áreas de terra (feudos). Não é difícil que, em sua pesquisa prévia, você tenha encontrado representações pejorativas dos monges da Igreja ou membros do clero, ostentando ricas roupas e demais adornos, gordos e comilões, verdadeiros glutões. Unidade 1 17 Universidade do Sul de Santa Catarina Por outro lado, você deve ter encontrado, também, imagens positivas sobre o período da Idade Média, as quais retratam uma época de homens nobres, defensores dos fracos e oprimidos, que se pautam pela honra, pela bravura e pela coragem. São os cavaleiros de armaduras e longas espadas, os reis Arthur, as Joana D’Arc, os cruzados, os “ladrões bonzinhos”, os abnegados bibliotecários dos mosteiros, as maravilhosas catedrais góticas -- suas colunas longilíneas e seus vitrais -- , as novas ferramentas e técnicas agrícolas, os trovadores, o canto chão ou canto gregoriano, as primeiras universidades. E quanto à filosofia? Na perspectiva da historiografia tradicional, a Idade Média situa-se entre a queda do Império Romano Ocidental (476) e a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453), podendo este período ser ainda maior, tendo em vista que alguns historiadores contemporâneos colocam o Renascimento (séculos XV e XVI) como uma das fases da Idade Média. Alguns podem afirmar que, nesse período, o legado da filosofia antiga foi mantido pelo árduo trabalho dos monges copistas, guardiões da cultura grega nos mosteiros, que a protegeram das invasões bárbaras e do analfabetismo da maior parte da população. E, de certa forma, a dialética platônica continuada, pelos debates das autoridades eclesiásticas que, entre outras questões, discutiram as “provas da existência de Deus”. O que você pensa sobre estas visões? Seriam verdadeiras, ou não? Não se pode dizer que sejam totalmente verdadeiras, ou totalmente falsas, mas se pode dizer que essas visões não dão conta do longo período de aproximadamente mil anos. É possível afirmar que a Idade Média é uma construção mítica, pode-se dizer, elaborada a partir do Renascimento, passando pelo século XVI, consolidada no século XVII, mantida no Iluminismo, no seu viés pejorativo; e reconstruída de forma romântica, por sua exaltação glorificante -- como um período heróico e onde se encontram as origens do ocidente moderno -- , no século XIX e início do século passado. 18 História da Filosofia II Observe que ambas as visões são resultantes de interesses diferenciados. No primeiro caso, a oposição entre um modo de vida, um sistema econômico-político e um dado estrato social -- característicos da medievalidade -- ; e outro, que, a partir do Renascimento, vai-se consolidando, caracterizando a modernidade. Aqui, fala-se da oposição entre senhores feudais, clero e nobres, estrato dominante da Idade Média, de um lado; e os novos ricos, os burgueses, estrato que, a partir do Renascimento, vai assumindo gradativamente seu status de classe dominante e, também, da oposição feudalismo x capitalismo. Modernidade que manifesta seus primeiros momentos de crise no século XIX, com o Romantismo, oposto ao excesso de crença na razão e na ciência -- alardeadas no Iluminismo -- , e que retoma a paixão pelas imagens naturalistas e o apego a elas. Figura 1.1 - Eugene Delacroix: O Massacre de Quíos, 1824 Fonte: The Massacre... (2006). Atribui-se ao italiano Francisco Petrarca (1304-1374) as primeiras referências pejorativas ao período anterior ao seu. Petrarca tratava aquilo que chamamos de Idade Média de tenebrae (tenebroso), conforme salienta Franco Jr. (2001, p. 11). Mesmo assim, de início, o termo médium aevum (idade média), também atribuído por alguns a Petrarca, refere-se a uma situação bastante específica da Itália do período renascentista. Unidade 1 19 Universidade do Sul de Santa Catarina Petrarca refere-se, entretanto, à situação bastante específica da Itália naquele momento. A sede da Igreja havia sido transferida do Vaticano para Avignon pelos franceses. Roma tornara-se uma cidade decadente cultural e economicamente, e os clássicos haviam sido esquecidos. Petrarca foi, por isso, um dos iniciadores do movimento que culmina no humanismo renascentista, procurando recuperar as glórias da Antigüidade greco-romana, e formulando um novo ideal de cultura. (MARCONDES, 1998, p. 103). Figura 1.2 - Petrarca Fonte: El Humanismo (2009). Há também a questão filológica, pois, ao tentar resgatar as origens do latim e seu desenvolvimento, os estudiosos dividiram-no em três fases: [...] a Idade Superior ou Alta Idade, onde predominava o latim clássico e que se estendeu desde as origens do Estado Romano até o reinado de Constantino; a Idade Média, abarcando o período compreendido entre Constantino e Carlos Magno; e, por fim, a Idade Inferior ou Ínfima, quando o latim apresentava-se corrompido e degenerado, desde Carlos Magno até o Renascimento. (INÁCIO; DE LUCAS, 1994, p. 8). Ao que parece, os humanistas renascentistas confundiram a segunda e terceira fase, apontando para um único e longo período de decadência. Tal caminho foi seguido pelos historiadores, que, como indicam vários estudiosos, visualizaram na Idade Média um período que intercala a civilização: iniciada na Antiguidade, um pouco obscurecida nestes mil anos medievos, e retomada a partir da Renascença. Visão que se generalizou do século XVII em diante. 20 Na mesma medida, o crescimento e consolidação da classe burguesa, sua contraposição às instituições medievais, como a Igreja Católica, e a acentuada concentração de terras -- resquícios do regime feudal -- nas mãos da Igreja Católica e da nobreza, fazem com que esta classe em ascensão fomente uma visão pejorativa dos séculos medievos. Também o crescimento do absolutismo contrapunha o aumento do poder dos reis com o pouco poder que tinham antes. Mais um fator a contribuir para a construção e difusão desta imagem pejorativa é o protestantismo, pois este via a Idade Média como o período de domínio da Igreja Católica e, em contrapartida a este domínio, pregava a retomada de um cristianismo originário, o dos primórdios. História da Filosofia II Como você pode constatar, motivos -- evidentemente em benefício próprio -- é que não faltavam para vilipendiar, falar mal dos tais “mil anos de trevas”. O outro ponto de vista -- que embora seja glorificador da Idade Média é tão problemático como o anterior -- , construído a partir do Romantismo nos séculos XIX e início do XX, nasce e desenvolve-se como resposta ao desejo napoleônico de unificar a Europa sob uma única direção, um único governo, e levou, conforme aponta Franco Jr. (2001, p. 12-13), ao anseio pela nacionalidade, retomando o ideal de identidade nacional da Revolução Francesa. Assim, cada região dominada ou ameaçada passa a valorizar suas especificidades, reforçando a questão da identidade nacional. Em parte, continua o historiador, tudo isto levou a uma contraposição dos ideais iluministas, particularmente quanto à validade do racionalismo. Neste sentido, a nostalgia em relação à Idade Média colocava-a como as origens das nacionalidades. Com isto, os ideais de equilíbrio e harmonia das artes da Renascença e do Classicismo (ver Figura 1.4) são contrapostos à paixão, à exuberância e à vitalidade da Idade Média. Figura 1.3 - Jan Gossaert: A adoração do rei, 1515 Fonte: Cânovas (2011). Unidade 1 21 Universidade do Sul de Santa Catarina São muitos os exemplos de obras do Romantismo ambientadas na Idade Média: Fausto, de Goethe, O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, para citar algumas das mais conhecidas (Cf. FRANCO JR., 2001, p. 12-3). O pensamento medieval estende sua influência por todos os séculos que o sucederam até hoje. Amalvi (apud LE GOFF; SCHMITT, 2002, p. 542-544) aponta, por exemplo, como as referências da Idade Média serviram aos interesses do nazismo, nas décadas de 20 a 40 do século XX, até o final da Segunda Grande Guerra; como Stalin, na iminência do embate com os alemães nazistas, exaltava o povo à guerra com imagens medievais; e como, mais recentemente, nas primeiras décadas do século passado, o cinema hollywoodiano teve o papel de propagar o mito da Idade Média, seja reproduzindo a visão pejorativa, seja a romântica, mas trazendo essas referências para a cultura de massa. Há hoje uma vasta pesquisa historiográfica tentando recuperar uma Idade Média registrada em documentos e vestígios, com diferentes matizes. Um bom exemplo deste contexto são os historiadores da Escola de Analles e seus herdeiros. Por meio desse trabalho, vemos aspectos historiográficos riquíssimos, que outrora foram desprezados: a história do cotidiano, a história das mulheres, a história da indumentária, a história dos hábitos alimentares. Tais tendências têm influenciado as produções cinematográficas a partir da década de 70 do século XX. Os cineastas, apesar de ainda apresentarem aspectos glorificantes e românticos, ou pessimistas, apresentam maior preocupação com a pesquisa de época, esmerando-se nos detalhes como a ambientação, o vestuário, os costumes. Também os romances de ficção vão nesta linha. Um bom exemplo é O nome da rosa, de Umberto Eco. No que se refere à música medieval, esta tem sido recuperada em pesquisas acadêmicas e, em espaços e eventos especiais, são executadas músicas da época, com seus instrumentos próprios. 22 História da Filosofia II Não entraremos em maiores detalhes sobre a controvertida construção da imagem da Idade Média, contudo o Dicionário temático do ocidente medieval, de Le Goff e Schimitt, entre outras obras, pode constituir uma boa fonte de pesquisa para você se inteirar mais sobre a questão. Ao visualizar, aqui, o que foi produzido no âmbito filosófico, você estará desfazendo, de certo modo, algumas imagens sobre a Idade Média. Como vê, o que temos no geral é uma imagem de um tempo passado. Mas seria possível fugir disto? Como bem salientam alguns estudiosos, o passado é lido e revisto à luz do presente, ou seja, debruçamo-nos sobre aquilo que já passou, procurando responder a questões de nossa época. Assim, podemos comparar a nossa época, ou melhor, certos aspectos dela, com alguns ocorridos na Idade Média. Nossa época se vê assolada por velhas e novas doenças; também hoje, um império arroga-se o papel de salvador da humanidade em oposição a outras formas de viver, outros modos de ver e organizar o mundo; “guerras santas” entre cristãos e mulçumanos, também conhecidos como islâmicos; uma unidade global se propaga por meio das novas tecnologias, por vezes isolando indivíduos em suas celas computadorizadas, verdadeiras bibliotecas que mantêm, reconstroem ou deturpam o legado da humanidade. Talvez esteja aí uma das razões para se debruçar sobre o pensamento, a mentalidade medieval, uma mentalidade que começa antes daquilo que cronologicamente se define como Idade Média. Por sua grande importância ao longo da Idade Média, o Cristianismo, em seu embate inicial e seu processo de absorção da mentalidade antiga grega e romana, é fator preponderante para a consolidação de uma “nova” vertente filosófica: a filosofia cristã. A temática central desta filosofia será o embate entre razão e fé. Unidade 1 23 Universidade do Sul de Santa Catarina Seção 2 – O surgimento do pensamento cristão no contexto da filosofia helenística Como se sabe, é no contexto do Império Romano que surge o Cristianismo, ou seja, no final da Antiguidade, no período helenístico. Por tratar-se de religião, o Cristianismo tem por base a fé e, como toda religião, sustentaria-se suficientemente com isso. Então cabe questionar qual a necessidade de uma filosofia cristã? Ou, por que o cristianismo apropriou-se tanto da tradição pagã, particularmente da tradição grega? Em outra medida, seria importante questionar se também a filosofia antiga não terá sofrido mutações com o advento e expansão do Cristianismo. Figura 1.4 - Rafael Sanzio: Ressurreição de Cristo, 1502 Fonte: Tomás... (2010). De acordo com os relatos cristãos, o início do Cristianismo ocorreu com as pregações de Jesus de Nazaré pela Judéia, a qual, nesta época, era domínio do Império Romano. Este homem que se anunciava como filho de Deus pregava, entre outras coisas, o amor ao próximo, a benevolência e o desprezo aos valores mundanos 24 História da Filosofia II em troca de outra morada, a verdadeira, no reino dos céus. Dizia ter vindo ao mundo para salvar os homens de seus pecados. Desta forma, sua crucificação pode ser visualizada como o sofrimento do próprio Deus em favor dos seres humanos, para salvá-los. Com a morte de Jesus, seus discípulos tomaram para si a tarefa de difundir as ideias de seu mestre. Tal mensagem passou a cobrir, cada vez mais, espaços de outras culturas e tendo de se expressar em diversas línguas, entre elas o koiné, língua grega que dá unidade ao helenismo e a língua das Epistolas de São Paulo e do Evangelho de São João, e, posteriormente, o latim. O nome Cristo, de origem grega, que significa “ungido”, é um exemplo disto. Essa difusão resultou num confronto entre fé e razão, entre religião cristã e paganismo. E, como figura paradigmática deste dilema -- fé versus razão -- temos São Paulo, de quem trataremos mais à frente. Antes de prosseguir, é bom que se lembre ser o Cristianismo fruto de uma cisão do Judaísmo e que nossa cultura ocidental é a resultante do amálgama das tradições judaico-cristãs e gregas. Como o Judaísmo, o Cristianismo é uma religião monoteísta, desta forma ambas se contrapõem ao politeísmo da tradição mítica grega, e, talvez, o mais importante é que justamente no ambiente helenístico estão as bases políticas e culturais propiciadoras da aproximação da cultura judaica e grega. Saiba Mais “Aparentemente a primeira comunidade a se autodenominar cristã (christianoi) foi a de Antioquia, na Síria (primeira metade do séc. I), um importante centro helenístico. Normalmente, o termo utilizado por essas comunidades era “nazarenos” ou ”galileus”. No entanto, no Império Romano, não se distinguia claramente entre estes e os judeus, ambos praticantes de religiões monoteístas e resistindo à adoração dos deuses oficiais. As perseguições em grande parte deviam-se a isso.” (MARCONDES, 1998, nota 2, p. 282). Unidade 1 O termo pagão (e seus correlatos) refere-se àqueles que não foram batizados, ou seja, não passaram pelo ritual de inserção na comunidade cristã. Assim sendo, não deve ser tomado como sinônimo de ateu, embora, às vezes, alguns autores pareçam estabelecer sinonímia, de forma hiperbólica, entre estes termos: pagão e ateu. Arnald, ao ressaltar o caráter urbano da Igreja cristã, remete o sentido de pagão (pagani) àqueles que habitam os pagi, “aldeias” ou “regiões”. Sentido reforçado pelo fato de a cristianização estar ligada à escolarização, aspecto urbano, e não rural. (ARNALD apud LE GOFF; SCHMITT, 2002, p. 569-570). 25 Universidade do Sul de Santa Catarina No século I a.C., encontramos em Alexandria, cidade cosmopolita, um dos mais importantes centros culturais da tradição helenística, a convivência de várias culturas: a egípcia, dos povos originários desta região, com milênios de história; a grega, daqueles que fundaram a cidade; a romana ou latina, dos que recentemente haviam invadido, conquistado esta região; e, a judaica, de uma grande comunidade ali residente. Figura 1.5 - Farol de Alexandria Fonte: O Grande... ([20--?]). 26 A história do famoso Farol de Alexandria começa com a fundação da cidade de Alexandria pelo conquistador macedônico, Alexandre, o Grande, em 332 a.C. Alexandre fundou pelo menos 17 cidades chamadas Alexandria, em diferentes localizações do seu vasto domínio. A maioria delas desapareceu, mas Alexandria, no Egito, sobreviveu por séculos e continua nos dias atuais. Alexandre, o Grande escolheu a localização de sua nova cidade muito cuidadosamente. Em vez de construí-la no delta do rio Nilo, fez opção por um local 20 milhas para o oeste, onde o lodo e a lama carregados pelo rio não bloqueariam o porto da cidade. No sul da cidade, era o Lago Mareotis. Depois de construído um canal ligando o lago ao Nilo, a cidade passou a ter dois portos: um, para o tráfego no Rio Nilo; e o outro, para as trocas, no Mar Mediterrâneo. Ambos permaneceriam profundos e limpos. Alexandre morreu logo depois, em 323 a.C., e a cidade foi complementada por Ptolomeu Soter, o novo líder do Egito. Sob o comando de Ptolomeu, a cidade tornou-se rica e próspera. De qualquer modo, a cidade precisava de um símbolo e de um mecanismo para guiar os navios comerciais no movimentado porto. Ptolomeu autorizou a construção do Farol em 290 a.C., que, completado 20 anos depois, era a primeira e a mais alta construção existente com exceção da Grande Pirâmide. O designer do farol foi Sóstrates de Knidos. Orgulhoso de seu trabalho, ele desejava ter seu nome na fundação. Ptolomeu II, filho de Ptolomeu, recusou seu pedido, querendo que seu nome fosse o único a estar inscrito na construção. Homem inteligente, Sóstrates inscreveu o seguinte: “Sostrates filho de Dexifanes de Knidos em nome de todos os marinheiros para os deuses salvadores”, e então cobriu com um gesso. E, no gesso, ele escreveu o nome de Ptolomeu. Com o tempo, o gesso envelheceu e saiu, revelando a declaração de Sostrates. O farol foi construído sobre a lha de Pharos e logo adquiriu esse nome. Veja a figura 1.5. História da Filosofia II Estas comunidades conviviam em tolerância e integração, no típico espírito de sincretismo da tradição greco-romana, e não raro os seus membros falavam mais de um idioma. A comunidade judaica, próspera e educada, fala fluentemente o grego. A Septuaginta, tradução do hebraico para o grego do Pentateuco (os ‘livros da Lei’, os cinco livros iniciais do Antigo Testamento), havia sido feita em Alexandria, na época de Ptolomeu II Filadelfo (séc. III a.C.). (MARCONDES, 1998, p. 105). Filon de Alexandria ou Filon, o Judeu (23a.C.–50d.C.) foi um dos primeiros representantes da aproximação entre a tradição grega e a judaica. Como aponta Marcondes, ao fazer comentários ao Pentateuco, aproximando-o da tradição grega, aventa a hipóteses da influência do Antigo Testamento e da tradição de Moisés na tradição grega. Tal hipótese não encontra, porém, comprovação histórica. Filon de Alexandria aproxima, particularmente, a cosmologia platônica do Timeu à narrativa da criação do mundo no Gêneses. No Timeu, Platão apresenta um ente divino que, partindo das ideias, molda a matéria amorfa, organizando, assim, o cosmo, ou seja, tal ente engendra todas as coisas. Certamente, Filon de Alexandria não concebe deus aos moldes de Platão, mas considera que o ser divino (deus único) criou tudo a partir de ideias de sua própria mente. Eis as origens do que seguirá grande parte da tradição seguinte, pregando ser as ideias entidades mentais – primeiramente na mente de Deus, depois, na do ser humano – e não, como via Platão, entidades independentes. “O primeiro lugar de ordem e de honra entre os livros do Antigo Testamento ocupa-o aquele que os gregos chamaram Pentateuco, isto é, obra em cinco tomos. Para os hebreus é a ‘tora’, ou seja, a lei, nome tomado da matéria central. Também os hebreus o dividiram em os mesmos cinco livros que os gregos, distinguindo-os com a palavra inicial. Fonte: A Bíblia... (2000) Lembre-se: não podemos dizer, propriamente, que o deus platônico, o demiurgo, criou o mundo, já que a noção de criação implica partir do nada. Mas, para o grego, do nada, nada se cria. Reforçando, o demiurgo é um tipo de poeta, um construtor, que toma a matéria bruta e a molda, partindo dos modelos, das ideias. Filon de Alexandria recupera, também, a noção de lógos, interpretando-o como “[...] um princípio divino a partir do qual Deus opera no mundo.” (MARCONDES, 1998, p. 106). Como prova da influência desta posição no desenvolvimento da filosofia Unidade 1 27 Universidade do Sul de Santa Catarina cristã, diversos estudiosos apontam a passagem do Evangelho de São João: “No princípio era o Verbo (Lógos)” (1, 1). Assim, você pode entender por que, embora não sendo um cristão, Filon de Alexandria pôde ser um precursor da filosofia cristã. Entretanto, cabe lembrar que mesmo o judaísmo está sendo impregnado pela tradição grega. Tomemos, então, aquele que é considerado o marco do Cristianismo como religião independente: São Paulo. São Paulo [ou Saulo para os hebreus] de Tarso, o apóstolo dos gentios (~ 10 - 67). Apóstolo nascido em Tarso, cidade principal da Cilícia, conhecido como o grande apóstolo dos gentios. Descendia de uma família de hebreus da tribo de Benjamin, que haviam obtido a cidadania romana, de grandes posses e prestígio político. Seus pais, sendo como eram, fiéis à lei mosaica, mandaram-no logo para Jerusalém para ser educado lá. Fariseu fervoroso, recebeu na circuncisão o nome de Saulo e teve como preceptor um dos mais sábios e notáveis rabinos daquele tempo, o grande Gamaliel, neto do ainda mais famoso Hilel, de quem recebeu as lições sobre os ensinos do Antigo Testamento. [...] Apareceu no cenário da história cristã, como presidente da execução do diácono Estêvão (1), o protomártir do Cristianismo, a cujos pés as testemunhas depuseram suas vestimentas At 7. 58. Na Bíblia aparece então no 7º capítulo do livro Atos dos Apóstolos, guardando as vestes do diácono, que foi apedrejado, concordando, portanto, com a condenação. Depois disso, empreendeu forte perseguição aos cristãos. Na sua posição, odiava a nova seita, não só desprezando o crucificado Messias, como considerando os seus discípulos elementos perigosos tanto para a religião como para o Estado. Este seu ódio mortal contra os discípulos de Jesus durou até o momento da sua conversão, que aparece no 9º capítulo. Foi no caminho de Damasco que se deu a sua repentina conversão (30). Ele e seus companheiros viajavam pelos desertos da Galiléia e, quando, ao meio-dia, o sol ardente estava no seu zênite, At 26. 13, repentinamente uma luz vinda do céu, mais brilhante que a luz do sol, caiu sobre eles, derrubando-os. Todos se ergueram, mas ele continuou prostrado por terra. 28 História da Filosofia II Ouviu-se então uma voz que dizia em língua hebraica: “Saulo, Saulo, porque me persegues? Dura coisa é recalcitrares contra o aguilhão (2)”. Respondeu ele então: “Quem és tu, Senhor?” E veio a resposta: “Eu sou Jesus a quem tu persegues. Levanta-te e vai à cidade e aí se te dirá o que te convém fazer”. Os companheiros que o seguiam ouviam a voz sem nada ver, nem entender. Ofuscado pelo intenso clarão da luz, foi conduzido pela mão dos companheiros. Entrou em Damasco e hospedou-se na casa de Judas, onde permaneceu três dias sem ver, sem comer e nem beber, orando e meditando sobre a revelação divina. Guiado pelo Senhor, o judeu convertido Ananias foi visitá-lo e, ao se encontrar com o grande perseguidor, recebeu a confissão da sua nova fé. Certo de sua conversão, Ananias impôs-lhe as mãos, fê-lo recobrar a visão e o batizou. Batizado, foi para o deserto da Arábia, onde orou e fez penitência por três anos. A partir de então, com a juventude e a energia que o caracterizava, e para grande espanto dos judeus, começou a pregar nas sinagogas que Jesus era o Cristo, Filho de Deus vivo, 9 10-22. [...] Por ordem de Nero, desta vez não teve perdão e foi condenado à morte, mas, por ser um cidadão romano, não deveria ser crucificado e, sim, decapitado. Além de alguns discursos a ele atribuídos, mencionados nos Atos dos Apóstolos, deixou 14 cartas dirigidas a várias comunidades convertidas e a amigos. Nas cartas que escreveu às comunidades que fundou, mostrou-se o grande teólogo empenhado em elaborar uma síntese do mistério cristão que atravessasse os tempos. Esses documentos caracterizamse por conterem valiosas regras de vida completamente atemporais, que jamais perderão seu significado se praticadas para garantirem a harmonia em qualquer sociedade, em qualquer época. Em seus ensinamentos também se observa o esclarecimento da distinção entre judaísmo e cristianismo e a difusão deste último no mundo grego. É celebrado nos dias 25 de janeiro, tradicionalmente o dia da sua conversão, e 29 de junho, o dia de sua morte. Não era apóstolo oficialmente, mas foi considerado o apóstolo dos gentios por causa da sua grande obra missionária nos países gentílicos. Ele dizia de si mesmo: “Eu trabalhei mais que todos os apóstolos [...] e ai de mim se não evangelizar!”, mas também dizia: “Eu sou o menor dos apóstolos [...] não sou digno de ser assim chamado”. Unidade 1 29 Universidade do Sul de Santa Catarina (1) Santo Estevão, considerado o protomártir, nascido e morto em Jerusalém (35), judeu convertido, foi um dos sete diáconos eleitos pela comunidade cristã de Jerusalém para presidir ao serviço das mesas (At 6,5-11; 7,54-60). Despertando a antipatia dos judeus helenistas, enciumados do sucesso com que exercia o seu ministério, foi acusado de ter blasfemado contra Deus, a religião e o Templo. Conduzido ao Sinédrio, foi condenado à lapidação. Saulo, o futuro apóstolo Paulo, presenciou o martírio. As relíquias de Estevão, descobertas em Constantinopla (415), foram transportadas para Veneza (1110). (2) A frase “Dura coisa é recalcitrares contra o aguilhão” não quer dizer que ele agia contra a sua vontade, ou que já reconhecia a verdade do Cristianismo, e sim, quer dizer antes, que era insensatez resistir aos propósitos divinos. Veja a figura 1.6. Figura 1.6 - Representação de São Paulo Fonte: Paulo (2011). Você deve estar se questionando: “Por que foi dito anteriormente que São Paulo é uma figura paradigmática com relação ao embate entre fé e razão, entre tradição religiosa cristã e tradição pagã grega?” 30 História da Filosofia II É porque este apóstolo, em suas pregações, ora se aproveita da tradição local e de seu conhecimento da tradição helênica, ora se opõe categoricamente a essa tradição, particularmente quanto ao uso da razão para dar resposta aos problemas do mundo, dos seres humanos. Para ilustrar isto, os estudiosos se utilizam, geralmente, de duas passagens dos escritos de São Paulo. Figura 1.7 - Caravaggio: A conversão de São Paulo, 1601 Fonte: Secretaria Nacional da Pastoral da Cultura (2008). A primeira é uma passagem dos Atos dos apóstolos (17:23-24), no Novo Testamento, que, frente a “filósofos epicureus e estóicos”, diz: Atenienses, tudo indica que sois de uma religiosidade sem igual. [...] Encontrei inclusive um altar com a inscrição: ‘Ao Deus desconhecido’. Pois bem! Justamente aqui estou para vos anunciar este Deus que adorais sem o conhecer. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe [...] Unidade 1 31 Universidade do Sul de Santa Catarina A segunda encontra-se na Primeira carta aos Coríntios (1:20-25): Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação. Porque os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria. Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Como você percebeu, no primeiro caso, São Paulo parte de elementos da cultura grega. E, embora não tenha conquistado muitos adeptos à sua causa a partir do momento que começa a falar de um Deus único, que se transformou em homem, sofrendo para salvar a humanidade, deixa a mensagem que, aos poucos, vai convertendo um número maior de pessoas. Já, no segundo caso, São Paulo radicaliza, opondo-se à tradição filosófica. Neste caso, tal radicalização deve-se à impregnação muito acentuada de elementos helenísticos e do culto a certos sábios convertidos na comunidade cristã deixada por São Paulo em Corinto, cidade grega. Tal comunidade, segundo o apóstolo, vinha se esquecendo que a mensagem de Cristo não tinha dono e que a sabedoria está no próprio Cristo. Há outras passagens do apóstolo que debatem a imposição, ou não, dos costumes judaicos a outros povos convertidos. Nestas, fica marcada a visão do cristianismo como uma religião universal, não restrita a uma dada comunidade, como era comum em outras religiões. São Paulo defende a não-imposição de certos costumes judaicos aos novos convertidos. Eis mais um elemento comum entre o helenismo e o cristianismo: a universalidade. É esta marca de oposição entre fé e razão e a tentativa de conciliá-las que marcará a filosofia cristã e toda a Idade Média. 32 História da Filosofia II Figura 1.8 - Monge copista Fonte: Tomás... (2011). Com a expansão do Cristianismo e a conversão de pessoas de classes mais elevadas, há a necessidade de apresentar um discurso mais elaborado, sobretudo para converter as autoridades do Império que tanto perseguiam os cristãos nos primeiros séculos. Eis um dos papéis da filosofia tomada pelos filósofos cristãos. São Paulo e São Justino, por exemplo, são considerados pela tradição dois destes primeiros filósofos a buscar uma união intelectualizada da cultura pagã com o nascente cristianismo. Sabe-se pouco sobre São Justino, mas ele é uma figura importante por ser um dos primeiros a defender, após convertido, a necessidade de uma filosofia cristã, tendo o Cristianismo como a “verdadeira filosofia”. Os pensadores que seguem tal posicionamento são os apologetas, e levam esta denominação em função de fazerem apologia, ou seja, discursos em defesa do Cristianismo. Tal atitude é dominante no início da Patrística, a doutrina dos primeiros Padres (pais) da Igreja, como veremos mais adiante. Jean Pepin, que escreve o tópico Helenismo e Cristianismo, no volume 2 -- A filosofia medieval -- da obra História da filosofia, organizada por François Châtelet, faz uma esclarecedora reflexão sobre as aproximações entre a alegoria grega e a cristã. Resumindo a investigação do historiador da filosofia, pode-se Unidade 1 Nesta abordagem considere o sentido literal da palavra alegoria: do verbo alegoreô: allos - outro, agoréô tomar, apoderar-se de; logo, tomar outro. No caso das figuras de retórica, por meio de um enunciado dizer outro. 33 Universidade do Sul de Santa Catarina dizer que o uso do recurso alegórico é bem antigo, remetendo às primeiras interpretações dos textos homéricos, passando pela tradição pré-socrática, platônica e helenística. Tal procedimento, a leitura alegórica, seria uma resposta àqueles que viam nos escritos de Homero e Hesíodo contradições e equívocos quanto ao “ser” das divindades. Assim sendo, a uma interpretação literal, estes intérpretes alegoristas opunham um estrato simbólico, um outro dizer do texto literal. Pepin indica que a alegoria como método interpretativo, em sua base, não difere muito, seja na tradição grega ou cristã; seja ela, por parte dos cristãos, tomada do uso dos judeus alexandrinos -como Filon, o Judeu -- ou por contato direto com uma tradição mais antiga, particularmente o estoicismo. Embora não haja grandes disparidades no sentido geral, a interpretação alegórica cristã difere da grega antiga pelo menos num sentido: a grega toma o texto como uma narrativa fictícia que conduz a um ensinamento; a cristã toma o texto bíblico como uma narrativa histórica, verdadeira. Nas palavras de Pepin ao considerar a novidade, está explicada a diferença presente no Cristianismo: A novidade não parece menor se considerarmos, não mais o objeto ao qual se aplica a alegoria cristã e a representação que dele faz, mas o sentido que nele desco bre e o caminho que a conduz a esse resultado. De um conjunto de relatos tidos geralmente por imaginários, a alegoria helenística extraía um ensinamento intemporal que considerava sub specie aeternitatis, sem suspeitar da noção de um desenvolvimento irreversível. A alegoria cristã discerne, ao contrário, sob uma história verdadei ra, uma história mais verdadeira; substitui o didatismo pelo profetismo; a interpretação eternista, pela preocupa ção com o tempo histórico e o advento da salvação; já o Novo Testamento lê o Antigo antes no presente e no futuro do que no aoristo. É a dialética da “vetustidade” e da “novidade” que especifica a alegoria cristã. É preciso acrescentar que esta, para chegar a esse resultado sem precedente, teve que repensar em novas bases a relação do signo e do significado e, em particular, teve que transformar a noção clássica de imagem ou de símbolo na de “tipo” de pessoa e do papel de Jesus; eis por que o termo “tipologia”, embora carecendo de fiadores muito antigos, parece ser de fato preferível ao termo, mais geral, “alegoria”, para designar a prática propriamente cristã da exegese espiritual. (PEPIN, 1983, p. 53). 34 História da Filosofia II Na busca por uma unidade, temos nos séculos IV e V, particularmente, um período conhecido como Igreja Conciliar. Os concílios são reuniões de bispos e líderes religiosos para fixar a “legítima doutrina da Igreja”, passando, assim, a considerar heréticas as posições contrárias a estas doutrinas e, consequentemente, expulsão dos heréticos da Igreja. Como você pode perceber, o desenvolvimento do pensamento cristão resulta, inicialmente, de uma maior ou menor resistência a seu crescimento e da intolerância ou da tolerância dos governantes em relação a uma nova mentalidade. Fatores sociais e políticos podem reforçar o que já foi dito. Seção 3 – Fatores sociais e políticos que caracterizaram o surgimento do pensamento medieval Como já foi dito, é no contexto do helenismo, durante o domínio romano, que surge o Cristianismo e, da relação com este, em função de sua expansão, o Cristianismo constitui uma mentalidade, uma filosofia. Em parte, o Cristianismo responde a duas inquietações da época helenística: o medo da morte e dos castigos dos deuses. Ao primeiro, o Cristianismo responde com a vida após a morte. E, ao segundo, o Cristianismo prega uma imagem de um deus único e amoroso, do qual só o bem pode brotar. Contudo sua aceitação não foi imediata. Como você já estudou, a religião romana era de caráter politeísta e, com o contato com a cultura grega, absorve uma série de elementos destas. Por se apresentar como uma religião monoteísta e universal, o Cristianismo já se contrapõe de início à religiosidade romana. Mas sua maior ameaça à estrutura militar e escravista da Roma Imperial é o fato de condenar o militarismo e defender a igualdade entre os homens. Estas divergências levam a uma violenta perseguição aos cristãos. São conhecidas as narrativas de uso, por parte dos romanos, de cristãos nos espetáculos de arena, onde estes – os cristãos – eram jogados aos leões. Unidade 1 35 Universidade do Sul de Santa Catarina Entretanto, a resistência dos cristãos, produtora de mártires, é um dos fatores importantes de sua divulgação e expansão. E, conforme a crise do Império Romano ia-se agravando, muitos se converteram para a nova religião, particularmente cativos e pobres, pois estes visualizavam alento para suas vidas na nova fé. Aos poucos, o Cristianismo vai sendo aceito pelo Império Romano e, finalmente, em 313, com o Edito de Milão, promulgado pelo imperador Constantino, é dada a liberdade de culto aos cristãos. Inicialmente, a estrutura hierárquica do Cristianismo era mais diluída. Nas primeiras comunidades, os presbíteros (ou padres) eram responsáveis pela divulgação da doutrina, a organização das reuniões e pelo culto; os diáconos, pelas questões administrativas; e aos bispos cabia zelar pela preservação dos princípios cristãos. Do século IV em diante, o bispo de Roma passa a ter primazia em relação aos outros e, com Leão I, em 455, cria-se o mais alto posto eclesiástico: o de Papa. A partir daí, a Igreja vai tomando um caráter mais imperial, embora ainda conviva com uma postura mais apostólica. Como você pode perceber, estamos no final da Antiguidade e início daquilo que cronologicamente denomina-se Idade Média. Outro fator importante para caracterizar tal contexto são as invasões bárbaras. Mas quem são os bárbaros? Na realidade uma série de povos, predominantemente em estágio tribal, organizados numa economia de subsistência -alguns com atividades agrícolas e pastoris rudimentares -- , que estavam fora das fronteiras do Império Romano. Estes povos formaram pequenos reinos que não duram muito, configurando a fragmentação do Império Romano. Como foi visto, duas datas relacionadas ao Império Romano e aos povos bárbaros 36 História da Filosofia II são usadas para demarcar o começo e o fim da Idade Média. A primeira, a tomada de Roma pelos germanos: a derrubada do Império Romano do Ocidente, em 476. A segunda, o ataque a Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, e a sua conquista pelos turcos otomanos, em 1453. Neste contexto de fragmentação, cada vez mais a religião cristã apresenta-se como elemento agregador. Assim, a Igreja Cristã passa a ter não só uma função espiritual, mas, também, a função política. Por isto, muitos chefes dos reinos bárbaros se convertem a ela. Exemplar é a cerimônia de coroação do Imperador dos francos, Carlos Magno, pelo Papa Leão III, no ano 800. Tal fato pode ser considerado a primeira tentativa de recuperar a antiga unidade do Império Romano, formando o Sacro Império RomanoGermânico. Como diz Marcondes (1998, p. 115), há aí a reunião de três características básicas, que simbolizam esta nova realidade: l. a vinculação do novo império à tradição imperial romana, com a qual na realidade não possuía nenhum vínculo histórico ou cultural mais próximo, 2. a referência aos ‘germânicos’, isto é, aos povos bárbaros do norte que ocuparam aquela região e que agora se apresentavam como herdeiros dessa tradição, e 3. a denominação de ‘sacro’ que indica a influência e o papel da Igreja nesse processo. Mas aqui já estamos entrando no contexto do surgimento da Escolástica, tema que você estudará mais à frente. Unidade 1 37 Universidade do Sul de Santa Catarina Seção 4 – As fases do pensamento medieval e seus principais filósofos Primeiramente, cabe indicar que alguns autores consideram ser mais rigoroso considerar o período que vai do século XI ao XIV como o da Filosofia Medieval. Em parte, isso se deve ao fato de a Patrística, em sua origem, ainda estar muito ligada à mentalidade helenística e, um pouco mais adiante, a pouca sistematização da Filosofia Cristã. Ainda, há o fato de que é no período da Escolástica (aproximadamente entre os séculos XI e XIV) que a Filosofia Cristã é institucionalizada. Contudo, como salienta Mora (2001, p. 1094), em seu Dicionário de filosofia, pensar a Filosofia Medieval restrita aos séculos XI a XIV é uma formulação didática, pois há os que alargam tanto para séculos anteriores como para séculos posteriores. Para ambos os casos, Mora aponta contrassensos. Conforme seu interesse quanto a dados historiográficos, você pode consultar essa e outras obras do gênero. Posteriormente, compilaremos a divisão, também didática, feita por Marcondes, com os principais temas e autores deste período, desta mentalidade, ou filosofia. 38 Talvez seja mais interessante usar o termo Filosofia Cristã, como Boehner e Gilson em importante estudo intitulado História da Filosofia Cristã, ou ainda A filosofia na Idade Média (Gilson, 1995), título que se aproxima mais do que vamos fazer. Mesmo assim, aquilo que historiograficamente se denomina Idade Média, circunscreve um espaço temporal menor que aquele a ser apresentado. Outra questão é distinguir a cronologia dos fatos e acontecimentos, mais própria da historiografia, da história das ideias ou mentalidades, mais próxima da filosofia. Mesmo assim, para se ter uma ideia geral das condições políticas e sociais do contexto da Filosofia Cristã, ou melhor, da mentalidade medieval, tomaremos como ponto de partida os quadros sinópticos retirados do livro de história de Hilário Franco Jr. intitulado A Idade Média: nascimento do ocidente, fazendo alguns breves comentários. Veja Quadro 1.1. História da Filosofia II A formação das estruturas medievais Aspecto A crise do século III Demográfico Manifestação Recrudescimento de epidemias Econômico Migrações internas Recuo da mão-de-obra escrava As estruturas prémedievais Resultante Fixação da população no campo = colonato Colonato; tendência à auto-suficiência Intervenção estatal; corporações Dirigismo estatal = Edito do Máximo (301) Queda na produção Monetário Inflação Político Militarização do poder Divisão do Império = Tetrarquia (284) Anarquia militar Cristianização do poder = imperador convoca o primeiro Concílio Ecumênico (325) Institucional Militar Social Cultural Crescente autonomia das províncias Nova capital = Constantinopla (330) Pressão germânica Contratação de tribos bárbaras = germanização do exército romano Êxodo urbano Ruralização Hereditariedade das funções Enrijecimento das hierarquias sociais Fim do assistencialismo (pão e circo) Aumento das distâncias sociais Respeito excessivo às autoridades Esterilidade Simplificação dos padrões culturais Aumento da descrença Religioso Sucesso dos cultos orientais Psicológico Fatalismo, desânimo Cristianismo = permitido (313)/Oficializado (392) Cristianismo = esperança em outra vida Quadro 1.1 - A formação das estruturas medievais Fonte: Franco (2001, p.187). Unidade 1 39 Universidade do Sul de Santa Catarina Como você pode constatar, a ruralização -- em função disto, a simplificação dos padrões culturais -- ; o aumento das distâncias sociais; as invasões bárbaras, particularmente os germânicos e sua posterior “inclusão” no estrato do Império Romano, principalmente como soldados; e a permissão do culto cristão e sua posterior oficialização são fatos que prenunciam as estruturas da Idade Média: feudalismo e domínio da Igreja Cristã. O feudalismo é um sistema econômico, político e social fundamentado na propriedade sobre a terra. Esta pertence ao senhor feudal, que cede uma porção dessa terra ao vassalo em troca de serviços, ocasionando uma relação de dependência. O feudalismo inicia-se com o período das invasões bárbaras e a posterior queda do Império Romano do Ocidente (século V), que transformam toda a estrutura política e econômica da Europa Ocidental, descentralizando-a. Os povos “bárbaros”, ao ocuparem parte das terras da Europa Ocidental, contribuem com o processo de ruralização e o surgimento de diversos reinos, dentre os quais se destacou o reino dos Francos. Mas é no reino Carolíngeo que se solidificam as principais estruturas do feudalismo. Predominante durante toda a Idade Média, o feudalismo caracteriza-se pelas relações de vassalagem (dependência pessoal) e de autoridade e posse da terra. As vilas e o colonato tornam-se o centro da nova estrutura socioeconômica, que tem um sistema produtivo basicamente voltado para o suprimento das necessidades individuais dos feudos. Os feudos, por sua vez, constituíam a unidade territorial da economia feudal, caracterizando-se pela sua auto-suficiência econômica, produção predominantemente agropastoril e ausência quase total de comércio. Nos feudos, a produção de arte ocorre nos castelos. 40 História da Filosofia II Eram geralmente divididos em três áreas: o domínio, exclusivamente do senhor feudal e trabalhado pelo servo; a terra comum, matas e pastos, que podem ser utilizados tanto pelo senhor quanto pelos servos; e o manso servil, que, destinado aos servos, era dividido em áreas denominadas “glebas”, de onde metade de toda produção deveria ser destinada ao senhor feudal (talha -- um tipo de imposto). Os feudos podiam tanto ser enormes territórios com cidades inteiras dentro deles, ou apenas uma fazenda, variando muito de um para o outro. Na época do Reino Carolíngeo, feudo significava “benefício”, era o nome dado ao benefício que o suserano cedia ao vassalo e que, na maioria das vezes, era a posse de terras. Daí o porquê de “feudo” designar hoje a propriedade em si. Com uma estrutura social estática e hierarquizada, podemos identificar a vassalagem e a suserania como as principais relações da sociedade feudal. O senhor feudal ou suserano era quem tinha a posse das terras e as cedia aos vassalos, que deveriam trabalhar nelas para sustento próprio e, ainda, no que chamavam de corvéia, o trabalho gratuito para o senhor feudal durante três dias por semana. A sociedade era basicamente composta por duas camadas principais: os senhores e os servos. O clero, embora de muita importância na sociedade feudal, não constituía uma classe separada, uma vez que os componentes do clero, ou eram senhores (alto clero), ou eram servos (baixo clero). Entretanto, a relação de suserania é mais complexa, uma vez que as terras eram cedidas não aos camponeses, mas a outros senhores ou cavaleiros que assumiam um compromisso de fidelidade com o suserano. Este cedia terras em troca de mais poder e um aumento no contingente de seu exército. O que, na prática, não significava que ele possuía poder sobre os outros feudos, uma vez que o poder era descentralizado. Fonte: Feudalismo (2007). Unidade 1 41 Universidade do Sul de Santa Catarina Sinopse da civilização medieval Fase Primeira Idade Média Alta Idade Média Data princípios séc. IV – meados VIII meados séc. VIII – fins X início séc. XI – fins XIII início séc. XIV – meados XVI retração relativa recuperação acentuado incremento crise: fomes, peste negra Economia “escassez endêmica” agrícola, com tendência à autossuficiência crescimento agrícola, artesanal e comercial depressão generalizada Sociedade enrijecimento da hierarquia polarização: detentores de terra; despossuídos ordens: oretores, bellatores, laboratores passagem para uma sociedade estamental Política pluralidade dos reinos germânicos reunificação carolíngia universalismos, afirmação das particularismos e monarquias nacionalismos nacionais Igreja formação da hierarquia eclesiástica relativa dependência ao poder laico ensaio de uma teocracia papal dupla crise: nacionalismo e conciliarismo permanência de modalidades pagãs crescentes ritualismo, clericarismo e moralismo interiorização, laicização e evangelismo: humanização da Divindade insatisfação com as fórmulas anteriores: angústia coletiva síntese de elementos clássicos, cristãos, germânicos, célticos e orientais completa-se a síntese anterior românico e gótico preservação e cristianização de obras da Antiguidade redescoberta e conservação de obras clássicas canções de gesta; romances artúricos, lírica trovadoresca temas macabros; contos profanos Escolástica: harmonização de fé e razão rompe-se o equilíbrio, com crescentes críticas ao aristotelismo Demografia Religiosidade Arte Literatura Filosofia 42 Patrística: neoplatonismo cristão mesmos temas e reflexões anteriores Idade Média Central Baixa Idade Média gótico flamboyant História da Filosofia II Educação Ciência escolas eclesiásticas: as Sete Artes liberais e Teologia prossegue o monopólio clerical nascimento das universidades elitização e esclerosamento das universidades limitada pela visão simbólica do mundo bloqueada pelas condições sociais e culturais da época desenvolvida a partir de uma visão naturalista do mundo continua a utilizar a herança clássica, bizantina e muçulmana Quadro 1.2 - Sinopse da civilização medieval Fonte: Franco (2001, p. 198). Este quadro mais completo (também adaptado de FRANCO JR., p. 198), mostra como a Idade Média passa por diversos momentos em que, aos poucos, certas estruturas vão-se consolidando e se desintegrando. No quadro, constam certas terminologias específicas da cultura medieval. Para ampliar a sua compreensão sobre o conteúdo, destaque os termos cujo significado você desconhece e, em seguida, pesquise-os nas fontes de sua preferência. Publique os resultados de sua pesquisa na Ferramenta Exposição. Unidade 1 43 Universidade do Sul de Santa Catarina Finalmente, é possível afirmar que a grande questão que dominou a Idade Média foi a empreitada das autoridades da Igreja em tornar compatíveis o conhecimento racional dos gregos com os princípios da fé cristã. A dificuldade em converter a ciência e Filosofia gregas à fé cristã fez com que os primeiros padres da Igreja tornassem-se inimigos da cultura profana, desestimulassem a especulação filosófica e a experimentação empírica, isto é, a produção de conhecimentos, especialmente os referentes às ciências naturais (a criação e funcionamento do universo deveriam permanecer como mistérios). O principal objetivo era difundir a doutrina cristã, isto é, a fixação dos dogmas e da moral por meio de uma disciplina rígida e de um código de ética que definisse, de forma absoluta, o bem e o mal, o certo e o errado. Deveria haver, no entanto, uma forma de conciliar razão e fé, principalmente para que o Cristianismo fosse assimilado tanto pelos eruditos como pela massa de iletrados. Síntese Nesta unidade, você estudou as diferentes interpretações acerca do período histórico denominado Idade Média. Um período longo, que, geralmente, é tratado de forma pouco interessada, em virtude de ter sido ideologicamente dominado pelo pensamento religioso, o que poderia trazer o desaparecimento da filosofia, uma vez que esta se opõe, por princípio, à religião. No entanto, você verificou que a Idade Média pode ser conhecida como um período de profunda produção intelectual, ainda que seja na tentativa conciliatória entre fé e razão. A passagem da cultura grega para o Cristianismo não foi propriamente uma continuidade natural, mas exigiu grande esforço dos primeiros padres da Igreja. De qualquer forma, com a decadência do Império Romano, cada vez mais a segurança e a proteção oferecidas pela Igreja conquistavam adeptos, que 44 História da Filosofia II lhes doavam terras, esmolas e lhes pagavam altos tributos, em troca de proteção espiritual, fora o recolhimento das grandes obras filosóficas, científicas e artísticas promovida pelos padres, para o interior dos mosteiros. Foi assim que a Igreja tornou-se o monopólio do saber, neste período, uma vez que somente os monastérios mostraram-se instituições suficientemente sólidas para proteger, das invasões bárbaras, a cultura precedente e somente ali se aprendia a ler e a escrever. É preciso admitir, também, que, principalmente depois de se tornar a religião oficial do Império, aproximadamente no ano 312 de nossa era, o Cristianismo, passou a exercer um papel muito importante, pelo menos durante o tempo em que perdurou o modo feudal de produção e organização social, questionando a escravidão, pregando a igualdade e assumindo como meta principal a salvação dos homens no mundo de Deus. No entanto, o Cristianismo não é uma Filosofia, pois esta se apoia na razão. É uma Religião Revelada e tem como critério de verdade a própria palavra de Deus. Não se verifica, por exemplo, uma relação pedagógica entre Cristo e o próprio discípulo cristão, como a que houve entre Sócrates e seus discípulos. E, embora as autoridades cristãs medievais tenham buscado explicar os mistérios do Cristianismo como a santa trindade, a criação, a revelação, etc., apelando à estrutura do pensamento filosófico grego, a Filosofia sempre foi mais ameaçadora do que alentadora do pensamento cristão. De modo geral, o que foi trabalhado nesta unidade resume o contexto teológico, ideológico e filosófico deste período denominado Idade Média. Historiadores, filósofos e comentadores do Cristianismo nem sempre concordam com as delimitações históricas, e nem sempre têm interpretações convergentes sobre o pensamento e as intenções expressadas nas obras dos teóricos medievais. Mas é possível ter um conhecimento satisfatório dessas questões, trabalhando com as informações mais consensuais desta área. Unidade 1 45 Universidade do Sul de Santa Catarina Atividades de autoavaliação Após a leitura criteriosa desta unidade, responda às seguintes questões: 1) Com base na imagem apresentada a seguir, elabore um texto dissertativo, explicando como elas podem ser utilizadas para ilustrar algumas das ideias apresentadas nesta unidade. 2) Busque um exemplo de explicação religiosa (bíblica) para um fenômeno natural qualquer e argumente: a) em que esta explicação assemelha-se ao pensamento mitológico; b) em que esta explicação difere do pensamento filosófico. 46 História da Filosofia II Saiba mais Para aprimorar seus conhecimentos acerca do que foi tratado nesta unidade, consulte os seguintes materiais: Livros: BÍBLIA SAGRADA. 96. ed. São Paulo: AVE-MARIA, 1995. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. FRANCO JR., Hilário. A idade média: nascimento do ocidente. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001. GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995. JAEGER, Werner. Cristianismo primitivo y paideia grega. México: Fondo de Cultura Económico, 1965. Unidade 1 47 Universidade do Sul de Santa Catarina LE GOFF, Jacques; SCHIMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do ocidente medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2. v. MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos présocráticos a Wittengenstein. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1998. MORA, J. F. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 1994. 4. v. Filmes: O 13º Guerreiro. Diretor: John McTiernan. EUA, 1999. O Incrível Exército de Brancaleone. Diretor: Mario Monicelli. Itália, 1965. Cruzada. Diretor: Ridley Scott. EUA, 2005. El Cid. Diretor: Anthony Mann. EUA, 1961. O Leão no Inverno. Diretor: Anthony Harvey. EUA, 1968. O Leão no Inverno. Diretor: Andrei Konchalovsky. EUA, 2003. As Aventuras de Robin Hood. Diretor: Michael Curtiz. EUA, 1938. Robin Hood. Diretor: John Irvin. EUA, 1991. Robin e Marian. Diretor: Richard Lester. EUA, 1976. Em Nome de Deus. Diretor: Clive Donner. IugosláviaInglaterra, 1988. São Francisco de Assis. Diretor: Michael Curtiz. EUA, 1961. Irmão Sol, Irmã Lua. Diretor: Franco Zeffirelli. Itália, 1972. Francesco. Diretora: Liliana Cavani. Itália, 1989. 48 História da Filosofia II Coração Valente. Diretor: Mel Gibson. EUA, 1995. Os Viajantes do Tempo. Diretor: Jean-Marie Poiré. EUA, 2001. O Nome da Rosa. Diretor: Jean-Jacques Arnnaud. França-ItáliaAlemanha, 1986. Henrique V. Diretor: Kenneth Branagh. Reino Unido, 1989. Joana D’Arc. Diretor: Victor Fleming. EUA, 1948. Unidade 1 49 UNIDADE 2 O desenvolvimento da Filosofia Patrística Objetivos de aprendizagem Identificar a Patrística como um conjunto teórico fundamental para a constituição do pensamento medieval. Compreender as características específicas da Patrística Grega e da Patrística Latina, bem como seus principais pensadores. Seções de estudo Seção 1 Os três períodos da Patrística Seção 2 A Patrística grega e a continuidade entre o mundo grego e o cristão Seção 3 A Patrística latina e o antagonismo entre o mundo grego e o cristão 2 Universidade do Sul de Santa Catarina Para início de estudo Ao se iniciar o estudo do pensamento e do contexto dos primeiros padres e doutores do Cristianismo, é comum encontrar dois termos: Patrística e Patrologia. Ambos os termos derivam da designação “pais da Igreja”, estudo dos pais da Igreja; por terem sido eles os primeiros teóricos a estruturar a doutrina, a incentivar a fé e a pregar as verdades bíblicas reveladas por Cristo, ou pelo próprio Deus feito homem. Apesar de ambos os termos fazerem referência aos pais da Igreja, comumente se utiliza o termo Patrologia para designar o estudo da vida, da história e do contexto social desses homens, enquanto o termo Patrística refere-se ao estudo do seu pensamento e da sua obra. Então, a Patrística é o estudo do pensamento dos primeiros padres cristãos, porém o conjunto das obras que fazem parte da Patrística inclui autores cristãos, mas não padres, e até mesmo autores que beiram o paganismo – gnosticismo. Seção 1 – Os três períodos da Patrística Considerando-se todo o período de formação do Cristianismo, pode-se dizer que a Patrística corresponde, aproximadamente, ao período compreendido entre o séc. I e o séc. VII d.C. Em geral, os estudiosos identificam três fases da Patrística, embora com algumas diferenças quanto a seus limites e designações. Por exemplo, alguns, tomando por base o platonismo, identificam uma fase inicial do neoplatonismo cristão – com Orígenes; outra fase, que seria do platonismo propriamente dito – com Agostinho; e outra, que seria uma segunda fase do neoplatonismo, já no final da Patrística. Outros autores, tomando como base o Concílio Ecumênico de Nicéia (325 d.C.), dividem a Patrística em período anteniceno; período niceno e período pós-niceno. O Edito de Milão de 313 e o Concílio Ecumênico de Nicéia foram as duas grandes ações de Constantino para a consolidação do Cristianismo como religião oficial do Império Romano. O Concílio de Nicéia foi motivado por discussões dentro da própria Igreja. 52 História da Filosofia II O impasse teológico deu-se entre o bispo Alexandre, que afirmava a identidade entre Deus pai e Jesus filho, e o padre Ário, defensor de que “o Logos Encarnado era inferior a Deus Pai e que se o Pai gerou o Filho, então houve uma época em que o Filho não existia”. Diante do perigo iminente de cisão na Igreja, Constantino convocou um Concílio que se realizou na cidade de Nicéia da Bitínia, próxima de Constantinopla, em 325, e que concluiu com a redação do Credo de Nicéia: O Credo de Nicéia «Cremos em um só Deus, Pai Todo-Poderoso, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, unigênito do Pai, da substância do Pai; Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai; por quem foram criadas todas as coisas que estão no céu ou na terra. O qual por nós homens e para nossa salvação, desceu (do céu), se encarnou e se fez homem. Padeceu e ao terceiro dia ressuscitou e subiu ao céu. Ele virá novamente para julgar os vivos e os mortos. E (cremos) no Espírito Santo. E quem quer que diga que houve um tempo em que o Filho de Deus não existia, ou que antes que fosse gerado ele não existia, ou que ele foi criado daquilo que não existia, ou que ele é de uma substância ou essência diferente (do Pai), ou que ele é uma criatura, ou sujeito à mudança ou transformação, todos os que falem assim, são anatematizados pela Igreja Católica e Apostólica.» Fonte: Primeiro... [200-] Figura 2.1 - Imagem representativa do Concílio de Nicéia Fonte: Primeiro... [200-] Unidade 2 53 Universidade do Sul de Santa Catarina Porém, na abordagem deste livro, é considerada a divisão apresentada por Reale e Antiseri (1990, p. 400), que leva em conta todo o contexto desde o nascimento de Cristo até o início da Idade Média, e divide esse período em três fases. A primeira fase compreende as obras escritas durante o século I da era cristã, mais dedicadas à temática moral e à propagação do evangelho. Foi um período de formação das primeiras comunidades cristãs e das pregações pelos padres denominados apostólicos – por serem seguidores diretos dos apóstolos de Cristo. A temática dos padres apostólicos circula em torno dos ensinamentos dos apóstolos para o cultivo da vida cristã. Eram poesias, homilias e cartas que deveriam passar de comunidade em comunidade, propagando a palavra sagrada e as recomendações apostólicas. O que esses padres objetivavam não era a fundamentação e justificação do cristianismo, nem a elaboração de uma teologia ou de uma espécie de filosofia cristã, que foi o propósito da fase seguinte, dos padres Apologistas. Os Apostólicos fizeram a ligação entre o Novo Testamento e as apologias do século II. Acompanhe a citação que segue; ela foi tirada do texto História do Cristianismo VIII, de Maurício Junior (2001): A primeira coleção de escritos teológicos surgidos depois do Novo Testamento é composta de documentos agrupados sob o título de Padres Apostólicos. Foi o estudioso francês Jean Cotelier quem assim os classificou no séc. XVII. Inicialmente faziam parte dessa coleção: 54 História da Filosofia II a Epístola de Barnabé, a Carta de Clemente Romano, Cartas de Inácio de Antioquia, a Carta de Policarpo, e o Pastor de Hermas. Em 1765, foram incluídos na lista os fragmentos de Pápias e de Quadrato, e a Epístola a Diogneto. Mais tarde, em 1873, descobriu-se o Didaquê (2), concluindo-se com ele a coleção. São obras de estilo simples, interessadas em dar testemunho da vida cristã em face das perseguições a que era submetida a Igreja, com algumas indicações a respeito da estrutura eclesiástica incipiente. Entre os escritos cristãos desta época, está a “Didaquê” – a “Doutrina dos doze Apóstolos”, o que não significa que tenha sido escrita pelo punho dos doze Apóstolos de Cristo. Em geral, os estudiosos afirmam que se trata de uma obra de vários autores, que reúne as regras de convivência e de celebração escritas ou apenas praticadas pelos cristãos, provavelmente das comunidades originárias palestinas. A Didaquê mostra-nos o início da formação da tradição cristã como religião e, inclusive, como instituição ou organização política e hierárquica, e a necessidade de estabelecer o ritual. Revela, também, o contexto pagão em que viveram as primeiras comunidades cristãs, como é possível observar na seguinte instrução do Capítulo III da Didaquê (BETIATO, 2006): 4 - Meu filho, não sejas dado à adivinhação, pois ela conduz à idolatria. Abstém-te também da encantação (feitiçaria) e da astrologia e das purificações, nem procures ver ou ouvir (entender) estas coisas, pois tudo isto origina a idolatria. Unidade 2 55 Universidade do Sul de Santa Catarina E, pelo que parece, reflete o crescente distanciamento do Judaísmo. Embora seja recomendado que se louve ao pai, ao filho e ao espírito santo, Jesus é apresentado como servo, e não como unidade com Deus pai; o pão e o vinho ainda não são representações do “corpo e do sangue de Jesus seu único filho”, mas da “vinha de Davi” e do “conhecimento revelado”; por outro lado, já aparece a exigência do batismo, como é possível observar nas seguintes instruções do Capítulo IX da Didaquê (BETIATO, 2006): 1 - No que concerne à Eucaristia, celebrai-a da seguinte maneira: 2 - Primeiro sobre o cálice, dizendo: “Nós te bendizemos (agradecemos), nosso Pai, pela santa vinha de Davi, teu servo, que tu nos revelaste por Jesus, teu servo; a ti, a glória pelos séculos! Amém.” 3 - Sobre o pão a ser quebrado: “Nós te bendizemos (agradecemos), nosso Pai, pela vida e pelo conhecimento que nos revelaste por Jesus, teu servo; a ti, a glória pelos séculos! Amém.” 4 - Da mesma maneira como este pão quebrado primeiro fora semeado sobre as colinas e depois recolhido para tornar-se um, assim das extremidades da terra seja unida a ti tua igreja (assembléia) em teu reino; pois tua é a glória e o poder pelos séculos! Amém. 5 - Ninguém coma nem beba de vossa Eucaristia, se não estiver batizado em nome do Senhor. Pois a respeito dela disse o Senhor: não deis as coisas santas aos cães! Nesta fase, destacaram-se, também, Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Filon de Alexandria e Paulo de Tarso. Pode-se dizer que os dois últimos colocaram a pedra fundamental da “filosofia cristã”, com a explanação da identidade entre Logos, Verbo e Cristo, conforme você estudou na Unidade 1. Além disso, enfatizaram a distinção entre o Judaísmo e o evangelho cristão, e saíram a propagá-lo. 56 História da Filosofia II Paulo de Tarso, especialmente, empreendeu jornadas missionárias, percorrendo a Grécia, a Ásia Menor, a Itália, etc., convertendo principalmente judeus como ele próprio. É importante grifar que, por volta do ano 50, Figura 2.2 - Antigo símbolo cristão Fonte: Cristianismo ([200- ?]). começaram as perseguições aos cristãos, e as hostilidades vinham de toda parte: do povo comum, porque o politeísmo tradicional dava uma segurança maior ao homem em relação à imprevisibilidade dos fenômenos naturais, ao sucesso do cultivo da terra e à solução das situações cotidianas, já que, para cada elemento da natureza, havia uma divindade correspondente; de parte dos judeus, já que o Cristianismo era uma seita judaica que crescia e se afastava de suas raízes, o Velho Testamento; da população romana culta, que entendia o cristianismo como uma “superstição nova e maléfica”, que envolvia práticas de feitiçaria e que era própria da população; e, pelo império, acusados de ateísmo, por não reconhecer o absolutismo da majestade imperial. Tudo isso justificava a violenta perseguição do Estado aos cristãos. As perseguições contra os cristãos - Teresio Bosco Plínio não demorou em aplicar a interdição das hetérias num caso particular que lhe foi apresentado no outono de 112. A Bitínia estava cheia de cristãos: «É uma multidão de gente de todas as idades, de todas as condições, espalhada pelas cidades, nas aldeias e nos campos», escreve ao Imperador. Continua dizendo que recebeu denúncias dos construtores de amuletos religiosos, perturbados pelos cristãos que pregavam a inutilidade de tais bugigangas. Instituíra uma espécie de processo para conhecer bem os fatos, e tinha descoberto que eles costumavam «reunir-se num dia fixo, antes do levantarse do sol, cantar um hino a Cristo como a um deus, empenhar-se com juramento a não cometer crimes, a não cometer nem roubos, nem assaltos, nem adultérios, e a não faltar à palavra dada. Eles têm também o hábito de reunir-se para tomar a própria refeição que, apesar dos boatos, é alimento ordinário e inócuo». Os cristãos não tinham cessado as reuniões nem mesmo depois do edito do governador que insistia na interdição das hetérias. Continuando a carta (10,96), Plínio refere ao Imperador que nada vê de mal nisso tudo. A recusa, porém, de oferecer incenso e vinho diante das estátuas do Unidade 2 57 Universidade do Sul de Santa Catarina Imperador parece-lhe um ato sacrílego de desprezo. A obstinação dos cristãos parece-lhe «irracional e tola». Parece claro, da carta de Plínio, que caíram as absurdas acusações de infanticídio ritual e incesto. Permanecem a de «recusarem a oferecer culto ao Imperador» (portanto de lesa majestade), e da formação de hetérias. O Imperador responde: «Os cristãos não devem ser perseguidos por ofício. Sendo, porém, denunciados e reconhecidos culpados, é preciso condená-los». Em outras palavras: Trajano encoraja a fechar um olho sobre eles: são uma hetéria inócua como os barqueiros do Sena e os vendedores de vinho de Lion. Uma vez, porém, que estão praticando uma «superstição irracional, tola e fanática» (como é julgada por Plínio e outros intelectuais do tempo, como Epíteto, e continuam a recusar o culto ao imperador (e, portanto, consideram-se «estranhos» à vida civil), não se pode fazer de conta que não há nada. Quando denunciados, sejam condenados. Continua então (embora de forma menos rígida) o “Não é lícito ser cristão”. Vítimas desse período são seguramente o bispo Simeão de Jerusalém, crucificado quando tinha 20 anos de idade, e Inácio Bispo de Antioquia, levado a Roma como cidadão romano, e aí justiçado. A mesma política, em relação aos cristãos, é exercida pelos imperadores Adriano (117-138) e Antonino Pio (138-161). [...] Fonte: Bosco (200- ?]). A segunda fase, que se passa aproximadamente durante o séc. II, é dedicada às primeiras estruturações da doutrina com vistas à defesa do cristianismo contra o paganismo e o gnosticismo, pelos padres apologistas – assim denominados, justamente por fazerem a apologia dos ensinamentos evangélicos, para a qual utilizaram argumentos filosóficos. 58 História da Filosofia II Nesta fase, o Cristianismo foi fortemente atacado por sábios pagãos, que confrontavam a nova seita, na opinião deles, repleta de misticismo, com o vigor intelectual da tradição greco-romana. As apologias cristãs representavam um retrocesso ao mito e ao misticismo, banidos pela racionalidade filosófica séculos antes e que agora ameaçavam voltar. Figura 2.3 - Pentagrama, antigo símbolo pagão Fonte: Leitte (200- ?]). Um dos críticos cultos do Cristianismo foi Luciano de Samosata, escritor de estilo satírico cujo tema recorrente era a crítica aos cristãos, que ele fazia, em língua grega. Escreveu uma obra denominada “A morte do peregrino”, na qual ridiculariza os cristãos pela sua resignação estóica ao sofrimento e à perseguição, e pelo seu amor fraternal. Outro crítico foi Celso, cuja obra mais citada, “Discurso Verdadeiro”, foi dedicada à defesa da religião pagã e à crítica da visão messiânica, à moral e à fé cristã. Em resposta a Celso, no século seguinte, Orígenes escreve a obra “Contra Celso”, na qual critica os filósofos por alterarem seus argumentos e voltarem atrás constantemente em suas afirmações, o que mostra a inverdade de seu discurso. Contra o habilidoso discurso, o cristianismo apresenta evidências do criador e sua criação, contra a adoração de vários deuses. Celso defende o Deus único. Observe a citação que segue: Quanto mais eficaz e superior a todas essas fantasias é a persuasão, pelo que é visível, da boa ordem do mundo e a adoração do artífice único de um mundo que é uno, em harmonia com a realidade total; que, portanto, não pode ser obra de diversos demiurgos, nem ser mantido por diversas almas que movem a totalidade do céu. (ORÍGENES, 2004, p. 23). Unidade 2 59 Universidade do Sul de Santa Catarina No entanto, Orígenes utiliza uma série de recursos da filosofia grega, como será visto mais adiante, na seção sobre a Patrística Grega. De um modo ou de outro, os escritos dessa fase estavam concentrados, principalmente, na resposta às acusações de ateísmo, insubordinação, e à rejeição do conhecimento pagão. A esse respeito, Santidrián (1997, p. 36) afirma que: Os textos dos apologistas reúnem, assim, os argumentos e rumores que correm contra os cristãos e os rebatem contundentemente. Dirigem-se, sobretudo, contra três tipos de argumentos: a) contra a acusação de que os cristãos representavam um perigo para o Estado. Chamam a atenção sobre a maneira de viver dos cristãos: séria, austera, casta e honrada; cidadãos de Roma, como os outros; b) demonstram o absurdo e a imoralidade do paganismo e de suas divindades. Defendem a unidade de Deus, a divindade de Cristo e a ressurreição do corpo; e c) avançam mais, afirmando que a filosofia não foi capaz de encontrar a verdade, a não ser fragmentariamente. O cristianismo, ao contrário, possui toda a verdade, porque o Logos, que é a mesma razão divina, veio ao mundo por Cristo. Nesse tempo, quanto mais o cristianismo crescia, mais acirrado ficava o conflito com os seguidores do Império. Por um lado, era necessário obedecer ao Império e justificar essa obediência sem ser infiel às escrituras sagradas. Por outro lado, era preciso estruturar a doutrina, estabelecendo seus cânones e elaborando um discurso lógico, não apenas baseado na fé, para converter ao Cristianismo as pessoas mais importantes do Império, ilustradas pela ciência e pela filosofia helênico-romana. Além disso, era preciso combater o gnosticismo e outros heréticos. O gnosticismo ameaçava particularmente o pensamento filosóficoteológico, porque utilizava explanações no estilo platônico – “aliás, repelidas por Plotino, que escreveu um dos tratados de suas Eneadas ‘contra os gnósticos’ – com doutrinas cristãs e tradições judaicas e orientais”. (MORA, 1994, p. 319). 60 História da Filosofia II Figura 2.4 - O limiar entre o céu e a Terra Fonte: Universum... (2010). Há várias formas de gnosticismo, mas o que interessa neste contexto é aquele que se vinculou ao Cristianismo e tinha caráter aristocrático, dirigindo-se às camadas mais cultas da sociedade romana. Esse gnosticismo caracterizava-se por uma compreensão de Deus, desvinculada da razão e fundada na “iluminação direta”, ou na revelação; por misturar elementos orientais, místicos, helênicos e bíblicos; por rejeitar o Velho Testamento e deturpar o evangelho; e por explicar que “esse mundo, que é caracterizado pelo mal, não foi feito por Deus, mas sim por um demiurgo malvado”. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 406). Em certo aspecto, a Patrística começou a tomar corpo justamente porque foi atacada pelas contundentes críticas dos sábios pagãos, e as Apologias dos primeiros pensadores cristãos foram escritas em resposta a essas críticas. Havia um contexto de debate entre a cultura pagã tradicional e os defensores do Cristianismo – uma nova ideologia religiosa que exigia uma profunda reforma cultural – , em disputa do convencimento, ou conversão do Império Romano; disputa vencida pelo Cristianismo. Entre os pensadores mais importantes desta segunda fase da Patrística, estão Justino de Roma, Teófilo de Antioquia, Tertuliano de Cartago e Clemente de Alexandria. Unidade 2 61 Universidade do Sul de Santa Catarina Por fim, a terceira fase, quando propriamente se desenvolveu a Patrística, vai do séc. III ao séc. VIII, e é considerada a fase de consolidação do sistema doutrinário cristão, sob forte influência do platonismo e do estoicismo. É possível que, sem a incorporação de algumas bases gregas, os doutores da Igreja tivessem demorado mais para estabelecer e disseminar a doutrina, ou quem sabe, não tivessem logrado êxito nessa intenção. Porém esse foi um árduo trabalho, visto que, desde sua origem na Escola de Mileto, por volta do séc. VII a.C., até a Escola Neoplatônica de Atenas, posteriormente fechada por um Édito de Justiniano em 529 d.C., a tradição filosófica grega sempre esteve fundada na indagação racional, plenamente livre de limites externos, e cujas conclusões sustentavam organicidade própria e necessidade interna; enquanto que o pensamento cristão estava fundado nas verdades da fé e suas conclusões que, de certa forma, já estão reveladas nas escrituras sagradas. E, por mais brilhantes que fossem os escritos patrísticos, não se pode dizer que tenham sido fruto da pesquisa livre, tendo podido desenvolver-se a despeito da doutrina e de seus dogmas. Mesmo assim, muitos aspectos da filosofia grega, sobretudo as ideias platônicas, tornaram-se bases consistentes para a fundamentação da ontologia cristã, que defendia, justamente, a oposição entre o verdadeiro “ser” de Deus, que é uno, eterno, estável, pleno, e sua cópia, o “ser” do homem, que é dividido, finito, instável e incompleto. Respectivamente, no pensamento platônico, é o mundo arquetípico das ideias, da alma, em oposição ao mundo da matéria, das aparências, das opiniões, do corpo; e, respectivamente, no pensamento de Agostinho, é a “Cidade de Deus” e a “Cidade dos Homens”. A Patrística como um todo teve uma profunda influência do platonismo, especialmente da segunda investida neoplatônica de Plotino, no séc.III. 62 História da Filosofia II Nascido no Egito, aproximadamente em 205 d.C., Plotino estudou em Alexandria e foi um dos principais divulgadores das ideias platônicas. Para Plotino, a filosofia ultrapassava a discussão moral, epistemológica e a especulação abstrata, para propor uma explicação de como todos os seres são criados a partir do Uno – o Bem, indescritível e indefinível. Sendo indefinível, não se pode, também, compreendê-lo, pelo menos não com o estudo. Somente com a contemplação, com o arrebatamento, pode-se compreender o Uno. Esta ideia será lembrada, quando estudarmos Agostinho com seu Figura 2.5 - Plotino “Crer para compreender e compreender para crer”. Fonte: Plotino ([20-- ?]). Nesse sentido, pode-se dizer que o propósito fundamental de Plotino foi estabelecer uma relação mais direta entre o Uno criador e o múltiplo criado. Esta relação se estabelece, segundo ele, por meio da manifestação do princípio originário e ordenador do mundo, e da alma do mundo, na qual estão incluídos os homens. Plotino, assim como Platão, acredita que a alma humana está aprisionada ao corpo e seu propósito mais nobre é fazer a “ascese”. Porém, diferente de Platão, acredita que é possível realizar a reintegração da alma ao Uno, por meio da transcendência ou “união extática”, estando (a alma) ainda ligada ao corpo. O “êxtase” de Plotino não tinha o mesmo sentido de “graça divina”, como queriam alguns padres, mas era fruto do esforço voluntário da alma humana. Observe a citação que segue: são palavras de Plotino sobre a relação entre o Uno e o homem: Tu te acresces, portanto, a ti mesmo, depois de ter jogado fora o resto: depois de tal renúncia, o “Todo” se te faz presente; mas, se se faz presente para quem sabe renunciar, ele, no entanto, não aparece por nada para quem fica com as outras coisas; não creias que ele “vem para ficar a teu lado”, mas, quando ele não está junto de ti, foste tu quem foi embora. E, tendo ido embora, tu não foste embora d’Ele (pois Ele ainda está presente ali) nem foste para qualquer outro ponto, mas sim, mesmo permanecendo presente, te voltastes para a parte oposta (para o lado das coisas). (REALE; ANTISERI, 1990, p. 349). Unidade 2 63 Universidade do Sul de Santa Catarina De acordo com Reale e Antiseri (1990), Plotino foi a última grande voz da antiguidade greco-pagã. Um dos pensadores mais conhecidos desta longa fase é Agostinho de Hipona. Filho de pai pagão e de mãe cristã, Agostinho fez seus primeiros estudos clássicos em retórica e gramática, e, embora tenha sido fortemente influenciado pela mãe, viveu no paganismo até sua conversão no ano 387, como consta em suas “Confissões” (SANTIDRIÁN, 1997, p. 14). Este pensador será retomado mais adiante, na seção sobre a Patrística Latina. Depois de Agostinho, a Patrística manteve-se por mais dois séculos, porém não mais com o mesmo vigor. Houve uma espécie de esgotamento das questões filosófico-teológicas tratadas até aquele momento, e, como se não bastasse a apatia interna, havia o abalo social e político pela decadência do poderoso Império Romano diante da sua ingovernabilidade, da falência do Figura 2.6 - Imagem representativa de sistema escravista, do nascimento do São Bento de Núrcia poder feudal e das invasões bárbaras. Fonte: Fernandez (2011). Mesmo assim, pela crescente influência religiosa, e diante da fragmentação política da sociedade feudal, a Igreja passou a exercer importante papel de unificação da vida social. Vale lembrar que, principalmente em função da instabilidade político-social, muitos doutores cristãos do final desta terceira fase da Patrística dedicaram-se ao Monaquismo, em que se destaca São Bento, conhecido como “Pai dos Monges do Ocidente”, e cujas regras monásticas prevaleceram durante séculos. 64 História da Filosofia II Ao depararmos com o termo Monaquismo, de imediato nos surge a ideia de isolamento e de alheamento do mundo. Com efeito, o Monaquismo é um sistema de vida de consagração à causa divina, que tenta chegar a Deus passando pelo recolhimento e uma vida de dedicação e interiorização. A esta palavra associa-se uma outra - monge - que deriva do grego monos, (único, só). Etimologicamente, designa aquele que vive solitário, dedicando a sua vida ao serviço de Deus, dedicação essa assumida livremente e que pressupõe o cumprimento das normas estabelecidas numa regra, baseando-se sempre nos conceitos de castidade, pobreza e obediência. [...]. Desde os primórdios da Cristandade que os ideais livremente assumidos de virgindade e castidade em louvor do Reino de Deus foram motivo de admiração. Essa escolha era feita “por fiéis de ambos os sexos que abraçaram uma vida de plena imitação de Cristo e que, para além dos votos referidos, praticavam a oração e a mortificação paralelamente com obras de misericórdia”. Como causas deste procedimento, poderemos referir a “repugnância pela imoralidade reinante” e, sobretudo para as mulheres, o fato de esse tipo de vida lhes proporcionar certa emancipação, tendo em conta a servidão social que o matrimônio assumia na época. Fonte: Vargas (2003). Entre os escritores cristãos da terceira fase da Patrística, é possível citar os nomes Orígenes de Alexandria, Cipriano de Cartago, Gregório de Nissa, Jerônimo, Plutarco, Proclo, o mais conhecido deste grupo que é Agostinho de Hipona, os Padres Capadócios, Cirilo de Alexandria, Papa Gregório I, Boecio, João Damasceno, entre tantos outros que viveram e teorizaram nesses cinco séculos, entre o séc. III e o início da Idade Média. Unidade 2 65 Universidade do Sul de Santa Catarina Saiba mais sobre as Escolas Neoplatônicas, consultando a fonte bibliográfica citada no Saiba Mais. Também é importante lembrar o papel fundamental das grandes escolas neoplatônicas que, desde o período clássico e helênico, atuaram como centros de conhecimento artístico, filosófico e científico, às quais estavam ligados os pensadores que se envolveram com a questão do Cristianismo, seja criticando-o ou defendendo-o. Umas mais antigas que outras, umas mais voltadas ao conhecimento pagão, e outras voltadas ao desenvolvimento teórico doutrinário teológico, estas escolas fizeram parte da Patrística e da história do pensamento cristão. Reale e Antiseri (1990, p. 350) citam as Escolas Neoplatônicas. Estão na sequência: 66 primeira escola de Alexandria, fundada por Amônio Sacas, em 200 d.C., da qual Plotino foi aluno. Alexandria, cidade fundada em 331 a.C. por Alexandre, no Egito, já era um reconhecido centro cultural, abrigando a famosa biblioteca. Embora estivesse estreitamente ligada à tradição metafísica grega, acabou tornando-se um dos mais antigos centros de estudos do Cristianismo; a escola fundada por Plotino em Roma, no ano de 244, que, provavelmente, seguiu o traço metafísico e especulativo de seu mestre Amônio, mantinha distinção em relação à “religião positiva” e às “práticas mágicoteúrgicas”, isto é, dedicadas aos rituais e ao culto de Deus; escola da Síria, fundada por Jâmblico pouco depois do ano 300. Diferente da anterior, esta escola destacou-se por buscar a síntese entre o sistema filosófico e o religioso, não apenas cristão, como também o politeísta; escola de Pérgamo, fundada em 340 por Edésio, que fora discípulo de Jâmblico, mas que não fez desta uma expressiva escola nos moldes de seu mestre; escola de Atenas, fundada por Plutarco entre os séculos IV e V, e fechada pelo édito de Justiniano em 529. Pode-se dizer que foi o último reduto do helenismo a sobreviver no mundo cristão; História da Filosofia II segunda Escola de Alexandria, que, na verdade, é a primeira, porém renascida. Um de seus maiores pensadores foi Amônio (filho de Hermias) com sua obra dedicada ao comentário de Aristóteles. E importa grifar que os estudiosos dessa escola tendiam à erudição e estudavam Aristóteles como uma introdução ao pensamento de Platão; e as Escolas de Alexandria e Atenas passaram por dois momentos: o de sua fundação, e, depois de decaírem, o de seu ressurgimento, mantendo-se atuantes até o séc. VI, aproximadamente. Até aqui foi apresentada a divisão da Patrística numa perspectiva histórica, pelo critério cronológico, mas é possível estudá-la a partir de outros critérios. Os estudiosos também identificam duas linhas de pensamento distintas na Patrística, que agrupa os filósofos-teólogos deste período em função da forma de sua argumentação, do método e dos recursos verbais e conceituais que aplicaram em suas teorias. São elas: a Patrística Grega e a Patrística Latina. Assunto das próximas seções. Seção 2 – A Patrística grega e a continuidade entre o mundo grego e o cristão Os pensadores da Patrística grega, na sua maioria, tiveram formação na cultura helênica e viveram no paganismo até se converterem ao Cristianismo, por motivos diversos. Há que se considerar o contexto, a multiplicidade de sistemas filosóficos que já proliferavam desde o séc. I a.C. e o inevitável ceticismo que surgia a partir da conclusão de que nenhum dos sistemas existentes poderia levar o homem à felicidade. Isso pode ter feito os pensadores da época tornarem-se receptivos ao sagrado. No início, o Cristianismo não passava de mais uma das seitas orientais que invadiam o mundo helenizado; vinha pregando a liberdade, a igualdade entre os homens, a paz e a salvação e encontrou o sincretismo e as dissidências típicas desse período de transição. O sagrado, de cuja separação nascera a filosofia, volta, então, a orientar o pensamento vigente. Unidade 2 67 Universidade do Sul de Santa Catarina Figura 2.7 - Paulo e a cegueira de Barjesus, o mago Fonte: Pedreiro (2007). Especialmente a partir da conversão dos homens cultos e da necessidade de estruturar a doutrina cristã frente à cultura pagã, esses doutores pagãos convertidos lançaram mão da filosofia para elaborar o discurso doutrinário da nova religião. Aplicaram os esquemas conceituais, a dialética e a lógica do pensamento grego como instrumentos para dar organicidade interna e força à verdade cristã, que, até aquele momento, estava mais baseada no critério da “revelação” divina do que no critério da “elaboração” por meios humanos. Esses homens levaram para dentro de uma doutrina que estava nascendo no ocidente os modelos e os esquemas tradicionais da cultura pagã. Por esse motivo, afirma-se que a Patrística grega promove a continuidade entre a cultura pagã para a cristã. Doutores da Patrística Grega como Justino, Taciano, Antenágoras, entre outros, enxergavam uma continuidade entre a filosofia e o Novo Testamento. O esforço especulativo dos filósofos gregos na busca do bem supremo, da felicidade e do retorno à essência por meio do conhecimento científico-filosófico foi uma etapa necessária para tornar os homens capazes de receber a “boa nova”, a verdade revelada do Cristianismo. Desse entendimento decorre a convicção de que é possível conhecer a Deus a partir do conhecimento da obra de Deus, isto é, do conhecimento do mundo natural, exterior, por meio da razão humana. Há, então, uma sabedoria cristã. 68 História da Filosofia II A seguir, leia o fragmento do texto “Sobre a ressurreição dos mortos” de Antenágoras de Atenas, um dos maiores apologistas gregos do séc. II. Observe como parece que ele buscou inspiração na ironia socrática, para elaborar seu ensinamento: Com efeito, se se olha para a força demonstrativa e para a ordem natural, os raciocínios a respeito da verdade têm a primazia sobre os raciocínios em defesa da verdade; ao contrário, se olhamos, porém, a utilidade, os raciocínios em defesa da verdade são anteriores aos raciocínios a respeito da verdade. Assim é que o lavrador não pode convenientemente lançar as sementes na terra, se antes não arrancar todo o mato e o que pode prejudicar a boa semente; o médico também não pode aplicar medicamentos de saúde ao enfermo, se não limpa antes o mal interno ou não detém o mal que procura infiltrar-se; assim quem procura ensinar a verdade não poderá, por mais que fale dela, persuadir a ninguém, enquanto uma falsa opinião esteja agarrada à mente dos ouvintes e se oponha aos raciocínios. Nós também, visando justamente à utilidade, por vezes antepomos os raciocínios em defesa da verdade aos raciocínios a respeito da verdade. Fonte: Sobre... ([200- ?]). Você deve lembrar que Sócrates utilizava a ironia com seus discípulos, a fim de purgar as opiniões, ou falsas verdades, de modo que o aprendiz estivesse preparado para “dar à luz” novas e verdadeiras ideias. Segundo Étienne Gilson, Antenágoras busca justificar o estudo do conhecimento pagão e a aplicação da razão na justificação da crença. Observe: É preciso nos informarmos sobre Deus com “Deus”, isto é, na Revelação; mas, feito isso, podemos refletir sobre a verdade revelada e interpretá-la com auxílio da razão. É o que Antenágoras chama, no capítulo da “Súplica”, de “demonstração da fé. (GILSON, 2007, p. 18). A Patrística grega desenvolveu-se em torno de duas grandes escolas: de Alexandria e de Antioquia. Elas representavam duas linhas distintas de entendimento e interpretação das sagradas escrituras: enquanto a primeira fazia uma leitura mais alegórica da bíblia, a outra fazia uma leitura mais literal. Unidade 2 69 Universidade do Sul de Santa Catarina São vários os representantes da Patrística grega. Nesta oportunidade, vamos abordar apenas dois deles: Justino Mártir e Orígenes de Alexandria. O codinome “Mártir” não é apenas pelo fato de Justino ter sido preso e decapitado pelo governo de Roma, mas por ter estudado profundamente o estoicismo, admirado a vida austera dos cristãos, bem como seu martírio diante das perseguições e torturas, que suportavam com resignação. Veja a Figura 2.8. Figura 2.8 - Imagem de Justino Mártir (107 - 165). Fonte: Papa... (2007). Justino é um dos apologistas mais conhecidos. De suas obras, conservam-se três: “Diálogo com o judeu Trifão”, um diálogo em que ele próprio explica ao sábio judeu como a mensagem de Cristo é uma continuidade dos ensinamentos do Velho Testamento; “Apologia I”, dirigida ao Senado Romano e ao Imperador Antonino Pio; e a “Apologia II”, escrita por ocasião da morte de três cristãos que professaram sua fé. Nascido em uma família pagã, como a maioria de seus contemporâneos, Justino teve formação tradicional, até converterse ao Cristianismo. Estudando os profetas do Velho Testamento, a quem buscara especialmente para saber sobre a questão da imortalidade da alma, Justino chegou ao Cristianismo. Explicou a ligação da filosofia com o Cristianismo, por meio do argumento do Logos, buscado por filósofos gregos e revelado aos cristãos. Embora buscassem explicar o Logos, bem como a união com ele, com a palavra criadora, o artífice racional, esses filósofos não chegavam a um consenso e não conseguiam atingir a felicidade plena. Em função disso, Justino afirma que 70 História da Filosofia II os filósofos gregos aproximaram-se da verdade de Deus por meio das verdades especulativas intuídas. Porém, somente os cristãos conheciam o verbo-logos: “O Logos se fez carne e habitou entre nós” (Jô 1,14). Embora o apóstolo João fale do “Verbo que ilumina todo homem que vem ao mundo, foi no estoicismo que Justino aprendeu que o Lógos é a razão imanente do mundo, a lei que o rege e a força que o anima. Neste aspecto, o Lógos é chamado Logos spermatiks ou razão seminal. Cada homem tem seu lógos particular, participa do lógos total, animado, dirigido por ele. Assim, em Cristo-Logos, os cristãos têm a plenitude do conhecimento e da revelação (10,1); “A nossa doutrina supera todo ensinamento humano porque temos o Lógos em toda a sua inteireza em Cristo, que foi manifestado por nós, corpo, razão e alma. O Lógos é criador de sua própria humanidade. Cristo, Filho de Deus, é a Lei eterna e a nossa aliança para o mundo inteiro. O tema central de Justino é o plano criador e salvífico de Deus (a economia), manifestado e realizado por Cristo-Lógos. No interior deste plano divino, encontra seu lugar a sabedoria dos antigos filósofos. Sua premissa básica é que a razão humana (lógos) é uma participação do Lógos divino: em cada homem há “uma semente”, sperma do Lógos, resultante da ação do “Verbo que dá a semente” (7,3; 13,3). Fonte: Diocese de Anápolis (2011b). Observe na citação que segue, do Capítulo décimo da II Apologia de Justino, a interessante comparação que ele faz entre Cristo e Sócrates: Com efeito, tudo o que os filósofos e legisladores disseram e encontraram de bom, foi elaborado por eles pela investigação e intuição, conforme a parte do Verbo que lhes coube. 3Todavia, como eles não conheceram o Verbo inteiro, que é Cristo, eles freqüentemente se contradisseram uns aos outros. 4Aqueles que antes de Cristo tentaram investigar e demonstrar as coisas pela razão, conforme as forças humanas, foram levados aos tribunais como ímpios e amigos de novidades. 5Sócrates, que mais se empenhou nisso, foi acusado dos mesmos crimes que nós, pois diziam que ele introduzia novos demônios e que não reconhecia aqueles que a cidade considerava como deuses. 6O fato é que, expulsando Unidade 2 71 Universidade do Sul de Santa Catarina da república Homero e outros poetas, ele ensinou os homens a rejeitar os maus demônios, que cometeram as abominações de que falam os poetas, e, ao mesmo tempo, os exortava ao conhecimento de Deus, para eles desconhecido, por meio de investigação racional, dizendo: “Não é fácil encontrar o Pai e artífice do universo, nem, quando o tivermos encontrado, é seguro dizê-lo a todos.” 7Foi justamente o que o nosso Cristo fez por sua própria virtude. 8Com efeito, ninguém acreditou em Sócrates, até que ele deu a sua vida por essa doutrina; em Cristo, porém, que em parte foi conhecido por Sócrates, – pois ele era e é o Verbo que está em tudo, e foi quem predisse o futuro através dos profetas e, feito de nossa natureza, por si mesmo nos ensinou essas coisas – em Cristo acreditaram não só filósofos e homens cultos, mas também artesãos e pessoas totalmente ignorantes, que souberam desprezar a opinião, o medo e a morte; porque ele é a virtude do Pai inefável, e não um vaso de humana razão (JUSTINO, 1995). Segundo Justino, há “algo como uma semente do Verbo Divino” nos filósofos gregos, mas sem que seja alcançado inteiramente por eles. Prova disso é que há contradições entre esses pensadores pagãos, que se dividem e confundem em vários sistemas, enquanto, na verdade, sua filosofia é uma só. Porém, eles não sabem disso. Influenciado pela filosofia de Platão, que considerava um caminho para o conhecimento de Deus, Justino acreditava na possibilidade da alma reintegrar-se a Deus por meio do exercício filosófico. No entanto, nem tudo Justino conseguiu absorver de Platão. É o caso da questão da alma incorruptível e do corpo corruptível: esta era uma que não se explicava para ele: Tudo o que existe fora de Deus [...] é corruptível por sua natureza, pode desaparecer e não existir mais. Somente Deus é incriado e incorruptível – e exatamente por isso é que é Deus –, ao passo que tudo o que vem dele é criado e corruptível. Eis porque as almas morrem e são punidas; se elas não fossem corruptíveis, não pecariam. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 409). Justino explica que o corpo e a alma do homem não estão unidos para a eternidade, mas por circunstância criada pela vontade de Deus. Embora a natureza humana participe do Lógos por meio 72 História da Filosofia II da alma e do espírito que habita nela, ela não é idêntica ao verbo, mas é criada a partir dele. Porém, quando a alma se desliga do corpo, deixam de existir o corpo, a alma e o homem. Sobre este tema, Reale e Antiseri (1990, p. 408) citam uma passagem da segunda Apologia de Justino, que resume perfeitamente a sua posição de cristão em relação à filosofia: Eu sou cristão, glorio-me disso e, confesso, desejo fazerme reconhecer como tal. A doutrina de Platão não é incompatível com a de Cristo, mas não se casa perfeitamente com ela, não mais do que a dos outros, dos estóicos, dos poetas, e dos escritores. “Cada uma delas viu, do Verbo divino que estava disseminado pelo mundo, aquilo que estava em relação com a sua natureza, chegando desse modo a expressar uma verdade parcial.” Mas, à medida que se contradizem nos pontos fundamentais, mostram que não estão de posse de uma ciência infalível e de um conhecimento irrefutável. “Tudo aquilo que ensinaram com veracidade pertence a nós, cristãos.” Com efeito, depois de Deus nós adoramos e amamos o Logos, nascido de Deus, eterno e inefável, porque ele se fez homem por nós, para curar-nos dos nossos males tomando-os sobre si. Os escritores “puderam ver a verdade de modo obscuro graças à semente do Logos que neles foi depositada”. Mas uma coisa é possuir uma semente e uma semelhança proporcional às próprias faculdades e outra é o próprio Logos, cuja participação e imitação deriva da Graça que dele provém. Para Justino, os cristãos vivem conforme o Lógos, ainda mais inteiramente do que os filósofos gregos, já que a razão dos cristãos leva-os a um resultado definitivo. A “única filosofia segura e útil” é o Cristianismo, portanto os cristãos são filósofos por natureza, conclui Justino. Outro personagem de grande importância para a Patrística grega foi Orígenes de Alexandria. Nasceu em Alexandria, filho de pai cristão, que viu ser perseguido e morto. Orígenes, depois da morte do pai e ainda jovem, começou a se dedicar vigorosamente ao estudo e ao ensino, até ser preso e torturado até a morte, por ordem do Imperador Décio. Foi aluno de Clemente de Alexandria e, mais tarde, pelo que tudo indica, foi de Amônio Sacas. Em sua atividade de professor manteve a linha da Escola de Alexandria. Unidade 2 Sobre a linha da escola de Alexandria, destacamse os seguintes itens: a) primeiro, o aprendiz deveria dedicar-se ao exercício da dialética; b) em seguida, deveria dedicar-se ao estudo das ciências da natureza; c) depois, à ética e às virtudes morais (prudência, temperança, justiça e piedade); d) só então, o aprendiz poderia prosseguir e aprender a teologia e a metafísica. Fonte: Otero (2003). 73 Universidade do Sul de Santa Catarina Figura 2.9 - A tortura de Orígenes Fonte: Dicionário... ([20-- ?]). Segundo relatos, Orígenes é autor de uma extensa obra, que pode ser dividida em quatro blocos: obras bíblicas e exegéticas, entre elas uma edição da bíblia – Hexapla; obras teológicas, consideradas a primeira tentativa de sistematização teológica, entre as quais se destaca Sobre os Princípios, obras Apologéticas, das quais restou apenas o livro Contra Celsum; e, obras ascéticas, basicamente dedicadas aos temas da oração e do martírio. (SANTIDRIÁN, 1997, p. 432-433). Orígenes dedicou sua vida às suas convicções, de modo que seu testemunho e pensamento foram motivo de grande polêmica entre os doutores e padres da Igreja até o séc.V. O Concílio de Constantinopla em 553 rejeitou o conjunto do seu pensamento, sobretudo a doutrina da reencarnação, declarada herética pela assembléia dos bispos. Assim, a referência ao seu pensamento foi evitada por séculos na Igreja. A questão da reencarnação é uma das questões controversas. Há quem defenda que Orígenes referia-se à “transmigração” da alma humana por sucessivos mundos até seu reencontro final com Deus, e não propriamente em reencarnação, o que implicaria manutenção da identidade do sujeito através das sucessivas vidas e acúmulo de pecados -- karma. 74 História da Filosofia II Segundo Orígenes, conforme o tamanho do distanciamento que a alma estabeleceu de Deus, e conforme seu esforço em tornar a ligar-se a Deus, a alma volta a nascer até que esteja purificada o bastante para permanecer em seu estado originário. Ele acreditava que toda alma racional, por ter sido tocada pelo espírito divino, pode captar o significado do evangelho e vislumbrar a luz divina, mas não pode conhecer Deus n’Ele mesmo. Deus está fora do mundo criado e não pode ser captado pela alma que está inserida entre as coisas criadas e corruptíveis. Observe as palavras de Orígenes, na citação que segue: Em sua realidade, Deus é incompreensível e inescrutável. Com efeito, podemos pensar e compreender qualquer coisa de Deus, mas devemos crer que ele é amplamente superior àquilo que dele pensamos [...]. Por isso, sua natureza não pode ser compreendida pela capacidade da mente humana, mesmo que seja a mais pura e a mais límpida. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 413). Figura 2.10 - Orígenes de Alexandria (185-253) Fonte: Orígenes (2009). Então, como é possível conhecer algo de verdadeiro sobre Deus? Nessa questão, Orígenes segue as orientações de São Paulo, que apresentava a possibilidade do conhecimento humano em três níveis: sabedoria divina; conhecimento das coisas (gnosis); e fé. Todos os cristãos crêem, pois, nas mesmas coisas, mas não da mesma maneira. O homem se compõe de um corpo, de uma alma e de um espírito. Do mesmo modo, a Igreja se compõe de simples fiéis, que se atêm à fé nua e crua na verdade do sentido histórico das Escrituras; de cristãos mais perfeitos, que, graças à interpretação alegórica dos textos, atingem a “gnose”, isto é, no sentido bíblico da palavra “conhecer”, um conhecimento que seja uma união (Jô 14, 4; 17); enfim, cristãos mais perfeitos ainda, que alcançam o “sentido espiritual” das Escrituras e, por uma contemplação superior (theôria), já discernem na própria Lei divina a sombra da beatitude vindoura. (GILSON, 2007, p.51). Unidade 2 75 Universidade do Sul de Santa Catarina Orígenes afirmava que é possível fazer a ascese (e aqui nos lembra Platão) por meio de um processo gradativo que inicia com a dialética, passa ao conhecimento das coisas sensíveis, e às verdades intelectuais e morais. O problema, segundo ele, é que alguns homens se contentam com essa luz que ainda não é força maior (o que pode ser uma referência aos filósofos gregos). Somente os que são tocados pelo “calor divino” é que podem, realmente, vê-lo. É exatamente nisso que difere a gnose pagã do cristianismo que Orígenes chama de “verdadeira gnose”. E parece que nisso ele concorda com Clemente: não é possível ser verdadeiramente cristão sem o conhecimento; e não se pode ser verdadeiramente gnóstico sem a fé. Para Clemente de Alexandria, há três testamentos para o cristão: um Novo Testamento, o de Cristo, que os Apóstolos registraram, e dois Velhos Testamentos: o judaico e o grego. “A lei aos judeus; a filosofia aos gregos; a Lei, a filosofia e a fé aos cristãos”(GILSON, 2007, p. 45). Observe a seguinte paráfrase de uma passagem da obra Estrômates (VI, 15), de Clemente: O filósofo pagão é uma árvore bravia; consome pouco alimento mas não produz frutos. Sobrevindo um jardineiro que a enxerte com um ramo de oliveira, essa árvore precisará de mais alimento, mas dará azeite. Deus é esse jardineiro, que enxerta a fé na razão do homem. [...] Mas a melhor das enxertias se faz de borbulha. Retira-se um broto com seu fragmento de casca e substitui-se-o por um broto da árvore que se quer enxertar. É esse o enxerto que produz o gnóstico digno desse nome. O olho da fé substitui, por assim dizer, o da razão natural, e o filósofo passa a ver por ele. (GILSON, 2007, p. 49). 76 História da Filosofia II Orígenes é reconhecido, também, pelo uso do método alegórico na interpretação das Escrituras Sagradas, que ele afirmava conter sentidos extra-literais. Tal método fora aplicado anteriormente por Filon de Alexandria; era uma característica da Escola de Alexandria, e pode remontar à tradição grega de interpretação das narrativas míticas. E, como vimos anteriormente, Orígenes considera a interpretação alegórica das Escrituras uma condição de aperfeiçoamento do cristão. Outra questão importante do pensamento de Orígenes é sua doutrina da “Apocatástase”, isto é, a afirmação de que tudo o que veio de Deus, voltará a Ele, e o “fim será exatamente igual ao princípio”. Embora o “Gênesis” aponte um começo para o mundo em que vivemos, este mundo não é o primeiro nem será o último na criação divina, visto que ela é eterna. E, nessa sucessão de mundos, há certo progresso, no sentido do bem que extirpa o mal, da alma que busca o calor de Deus e de todos os seres que se dirigem naturalmente à sua origem primitiva. Sendo assim, há uma tendência natural a Deus, somente o livre arbítrio pode afastar o homem d’Ele. Segundo Orígenes: Devemos crer que toda essa nossa substância corpórea será retirada a tal condição quando toda coisa for reintegrada para ser uma coisa só e Deus for tudo em todos. Isso, porém, não acontecerá em um só momento, mas lenta e gradualmente, através de infinitos séculos, já que a correção e a purificação advirão pouco a pouco e singularmente: enquanto alguns com ritmo mais veloz se apressarão como primeiros na meta, outros os seguirão de perto e outros ainda ficarão muito para trás. E assim, através de inumeráveis ordens constituídas por aqueles que progridem e, inimigos que eram, se reconciliam com Deus, chega-se ao último inimigo, a morte, para que também ela seja destruída e não haja mais inimigo. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 416). Unidade 2 77 Universidade do Sul de Santa Catarina Com essa citação, é possível imaginar quanta polêmica Orígenes deve ter causado não apenas entre os doutores pagãos, mas também ente os padres da Igreja. Além disso, também é possível avaliar a influência que sua doutrina exerceu sobre as diversas seitas e religiões ocidentais até hoje. Depois de Orígenes, a Patrística grega continuou com Eusébio de Cesaréia, Atanásio de Alexandria, os Padres Capadócios, entre outros, até João Damasceno, no séc.VII, considerado o último representante da Patrística grega. Ademais, a partir do séc. IV, a Patrística latina se afirma cada vez mais entre os padres da Igreja. Veja a Figura 2.11. Padres Capadócios é o nome dado aos seguintes padres: Basílio Cesaréia; Gregório de Nissa, irmão de Basílio; e Gregório Nazianzeno. Segundo Werner Jaeger: Orígenes e Clemente haviam-se movido por esse caminho de altas reflexões, mas agora era preciso muito mais. Certamente, Orígenes havia dado sua teologia à religião cristã no espírito da tradição filosófica grega, mas aquilo que os Padres da Capadócia visavam em seu pensamento era uma civilização cristã total. E levavam para essa empresa a contribuição de uma vasta cultura, que é evidente em cada parte de seus escritos. [...] Graças à sua obra, o cristianismo ergue-se agora como o herdeiro de tudo o que parecia digno de sobreviver na tradição grega. Com isso, ele não apenas se fortalece e reforça sua posição no mundo civil, como também salva e dá nova vida a um patrimônio cultural que, em grande parte, sobretudo nas escolas retóricas da época, haviase tornado uma forma vazia e adulterada de uma tradição clássica já ossificada. Figura 2.11 - Padres Capadócios Fonte: San... (2007). 78 História da Filosofia II Seção 3 – A Patrística latina e o antagonismo entre o mundo grego e o cristão Denomina-se Patrística latina o pensamento filosófico-teológico que se desenvolveu entre o séc. IV e V, cujas características principais são: o latim como língua padrão e a negação da filosofia pagã como parte necessária da doutrina cristã. Mais influenciados pela Escola de Antioquia do que pela de Alexandria, os latinos rejeitavam a interpretação alegórica das escrituras e davam maior importância ao contexto histórico e cultural onde elas foram escritas. Em passagens bíblicas que causavam constrangimento por seu obscurantismo, por exemplo, os latinos utilizavam como explicação outras passagens bíblicas que fossem mais claras; em vez de recorrer à alegoria. E, assim, exceto no que se refere ao Velho Testamento, que precisava de certa manipulação, sobretudo para demonstrar que a vinda de Cristo já havia sido anunciada naquele documento. A palavra Apócrifo vem do grego Apokryphos e significa oculto ou não autêntico. Mas este termo é usado principalmente para designar os documentos do início da era Cristã, que abordam também a vida e os ensinamentos de Jesus, mas não foram inclusos na Bíblia Sagrada por serem considerados ilegítimos. A origem dos Livros Apócrifos (também chamados de Livros Gnósticos; do grego Gnosis, que significa Conhecimento) nos remete ao ano 367 d.C. Por ordem do Bispo Atanásio de Alexandria, que seguia a resolução do Concílio de Nicéia ocorrido em 325 d.C, foram destruídos inúmeros manuscritos dos primórdios do Cristianismo. Figura 2.12 - Figura 2.12 - Documento Apócrifo do início da era cristã Fonte: Os livros... ([200-?]). É válido lembrar que os padres latinos elaboraram suas doutrinas sob os auspícios dos primeiros Concílios Ecumênicos. Portanto, praticavam a exegese fechada, obedeciam aos cânones recém estabelecidos ou em vias de sê-lo. Unidade 2 79 Universidade do Sul de Santa Catarina Pode-se dizer que, inicialmente, antes de Agostinho, os padres da Patrística latina não absorveram significativamente a filosofia em suas doutrinas, e seus enfáticos discursos estiveram baseados apenas na fé fervorosa. Como exemplo de crítica à cultura pagã e às tentativas de conciliação entre fé e filosofia, pode-se citar a seguinte passagem de Minúcio Felix, autor do primeiro escrito apologético latino em favor dos cristãos: E note-se bem que os filósofos afirmam as mesmas coisas em que cremos “não porque nós tenhamos seguido os seus passos, mas porque eles se deixaram guiar por uma leve centelha, que os iluminou com as pregações dos profetas sobre a divindade, inserindo um fragmento de verdade em seus sonhos”. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 424). São vários os representantes da Patrística latina. Nesta oportunidade, vamos abordar apenas dois deles: Tertuliano de Cartago e Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho. Tertuliano, cujo nome completo é Quinto Septímio Florente Tertuliano, nasceu em Cartago, que era um importante centro cultural da África “latina” da época. Recebeu sólida formação em sua juventude e, aos vinte anos, dirigiu-se a Roma onde, segundo os historiadores, teria exercido a prática do Direito. Converteuse ao cristianismo quando já tinha por volta de trinta anos de idade, sendo ordenado sacerdote logo em seguida. Porém, aproximadamente vinte anos depois, Tertuliano abandonou o cristianismo, seguindo uma seita ascética denominada Montanismo e constituindo, posteriormente, sua própria seita, o “Tertulianismo”, que perdurou até o séc. V. O Montanismo foi considerado uma seita herética pela Igreja. O montanismo foi um movimento herético cristão iniciado por Montano por volta do ano 170. Também é denominado heresia dos frígios ou dos pepuzianos, para indicar a região de origem e o centro do movimento. As informações sobre tal movimento chegaram até nós, sobretudo mediante a vasta literatura antimontanista. Caracterizado por uma forte consciência entusiasta e extática (inspirada talvez em antigos cultos pagãos) e por um espiritualismo radical 80 História da Filosofia II de fundo escatológico, o montanismo proclamava o advento do Paráclito (ou seja, do Espírito Santo) para guiar a Igreja, à espera da iminente parusia perfeita do Cristo. Em decorrência de uma fervorosa ação apostólica, o montanismo teve ampla difusão, sobretudo, a princípio, entre as mulheres: Priscila, Quintila, Maximila são lembradas como profetisas. Também contou com adesões notáveis, como a de Tertuliano. Depois de tentativas iniciais de isolamento, passou a ser combatido como heresia nos séculos III e IV, devido, sobretudo, à sua total rejeição da eclesiologia tradicional. As várias comunidades montanistas diluíram-se pouco a pouco na ortodoxia. Fonte: Berean (2009). A obra de Tertuliano compreende três grupos: Apologéticas, cujo foco era a defesa do cristianismo. São livros desse grupo: Apologética, dirigida aos governantes das províncias do Império Romano, e De testimonio animae, onde ele fundamenta a fé no testemunho da alma, e não mais no conhecimento pagão; Dogmáticas, que eram dedicadas à refutação das heresias – entre outras, pode-se citar De praescriptione haereticorum, Adversus Valentinianos, dirigida contra os gnósticos, De baptismo, negando o batismo dos hereges, De carne Christi, em que afirma a realidade do Corpo de Cristo, e De resurrectione, em defesa da ressurreição da carne; e Prático-ascéticas, relativas à moral prática e à disciplina eclesiástica, como se pode ver pelos títulos de algumas obras: De patientia; De oratione; De paenitentia; De pudicitia; De exhortatione castitatis; De monogamia; De spectaculis; De idololatria; De corona; De cultu feminarum, etc. (SANTIDRIÁN, 1997, p. 539). Étienne Gilson (2007, p. 106) considera que suas obras mais importantes para a filosofia foram Apologética, Prescrição dos Heréticos e o tratado Da alma. Mas é consenso entre seus comentadores que os escritos de Tertuliano são os primeiros de relevância na tradição latino-cristã. Unidade 2 81 Universidade do Sul de Santa Catarina Seguindo o lema de “buscar o Senhor com simplicidade de coração”, Tertuliano atacou fortemente a filosofia, negando-a como suporte racional da doutrina cristã ou como estágio preparatório para a aceitação da verdade revelada. Pelo contrário, Tertuliano acusa a filosofia de corromper a alma pura e desviá-la do caminho verdadeiro. Tal posição pode ser ilustrada com um trecho de Tertuliano: Figura 2.13 - Representação de Tertuliano (160 – 240) Fonte: Oliveira (2010). — Com efeito, o que existe de comum entre Atenas e Jerusalém? Que acordo pode haver entre a Academia e Igreja? Que pode haver de comum entre hereges e cristãos? Nossa instrução vem do pórtico de Salomão e este nos ensinou que devemos buscar o Senhor com simplicidade de coração. Longe de vós qualquer tentativa de produzir um cristianismo mitigado com estoicismo, platonismo e dialética. Depois que possuímos a Cristo não nos interessa discutir sobre nenhuma curiosidade, nem nos interessa qualquer investigação depois que desfrutamos do Evangelho. Basta-nos a nossa fé, pois não pretendemos ir atrás de outras crenças. (BOEHNER; GILSON, 2003, p. 138). Note como Tertuliano estabelece pares de opostos: Atenas versus Jerusalém, academia versus igreja; hereges versus cristãos. A própria expressão “pórtico de Salomão” revela esta contraposição, pois pórtico é a denominação de um elemento da arquitetura grega e Salomão um dos grandes sábios da tradição judaico-cristã. O autor é contrário à tentativa de estabelecer pontes entre Cristianismo e filosofia grega, bastando a fé nas Sagradas Escrituras. Note que a simplicidade, no sentido de professar a fé ignorando a dialética e o conhecimento da natureza, que Tertuliano defende, vai de encontro com a posição de Orígenes, que considerava esta a característica da classe mais simples entre os cristãos. Enquanto Orígenes considera a filosofia um exercício fundamental para buscar a Deus pela ascese, Tertuliano considera que a filosofia corrompe a integridade da alma simples, esta sim, a mais preparada para receber a “palavra revelada”. É precisamente essa ação de ruptura dos padres deste período, com o pensamento pagão, que caracteriza a Patrística latina. 82 História da Filosofia II Na seguinte citação de Reale e Antiseri (1990, p. 426), é possível perceber a provocadora crítica que Tertuliano faz aos filósofos: No Testemunho da alma podemos ler: “Mas não me refiro àquela alma que se formou na escola, que se treinou na biblioteca, que se empanturrou na Academia e no Pórtico da Grécia e agora dá os seus arrotos culturais. Para responder, é a ti que chamo, alma simples, ainda no redil, não manipulada ainda e privada de cultura, assim como és naqueles que só têm a ti, alma íntegra que vens dos ajuntamentos, das ruas, da fiação.” Para Tertuliano basta a fé para fazer o cristão aceitar a verdade das escrituras sagradas, e, nesse sentido, valem as palavras de São Paulo: “Mas, ainda que nós, ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema” (GL, 1, 8). Maldito, excomungado. Pode-se dizer que o que Tertuliano fez foi retomar a questão fé incondicional que já havia sido professada pelos apóstolos. É célebre a seguinte passagem de sua obra De carne Christi, capítulo V: O filho de Deus foi crucificado, do que não me envergonho, porque há que se envergonhar. E que o filho de Deus tenha morrido, é de todo crível, porque é inepto. E que, sepultado, tenha ressuscitado, é certo, por ser impossível. (GILSON, 2007, p. 107). Tertuliano ficou conhecido como um exímio escritor e orador que defendia o cristianismo com um discurso contundente; e que o criticou, do mesmo modo e com igual ardor, quando seu materialismo e espírito inquieto o levaram ao montanismo. O “antifilosofismo” de Tertuliano não se vê em Agostinho de Hipona, que, depois da devida limpeza, retoma ideias fundamentais do sistema platônico. Considerado o mais importante representante da Patrística, Agostinho viveu num período em que o Império Romano já entrava em decadência e a Igreja representava um caminho sólido, nos aspectos ideológico, ontológico e político. Unidade 2 83 Universidade do Sul de Santa Catarina Religião herética, fundada no séc. III pelo persa Mani, cujas características principais são o racionalismo, o materialismo e o dualismo bem e mal nos princípios morais, ontológicos e cósmicos. Nascido no ano de 354, em Tagaste, norte da África, Agostinho recebeu os primeiros ensinamentos da vida cristã, de sua mãe, embora não tivesse sido ainda batizado. E não teria se destacado nos estudos se, aos dezenove anos de idade, não tivesse lido o diálogo Hortensius, obra de Cícero, que hoje está perdida. A partir daí, Agostinho tornou-se um “amante” da sabedoria e acabou ligando-se ao Maniqueísmo. Veja a Figura 2.14. Figura 2.14 - Aurélio Agostinho Fonte: Filosofia... ([200-?]). Agostinho aprofundou-se na busca da verdade e na explicação racional do mundo e da fé, mas se manteve insatisfeito com a perspectiva de alcançar a verdade última, por meio do racionalismo, como é possível conferir na citação que segue: Era entre estes companheiros que eu, ainda de tenra idade, estudava eloquência, na qual desejava salientar-me, com a intenção condenável e vã de saborear os prazeres da vaidade humana. Seguindo o programa do curso, cheguei ao livro de Cícero, cuja linguagem, mais do que o coração, quase todos louvam. Esse livro contém uma exortação ao estudo da filosofia. Chama-se Hortênsio. Ele mudou o alvo das minhas afeições e encaminhou para Vós, Senhor, as minhas preces, transformando as minhas aspirações e desejos. Imediatamente se tornaram vis, a meus olhos, as vãs esperanças. Já ambicionava, com incrível ardor do coração, a Sabedoria imortal. (S. AGOSTINHO, 1973, p. 59-60). Esse estado de espírito deixou-o receptivo para mais tarde conhecer as Enéadas, obra de Plotino pela qual Agostinho entrou em contato com o neoplatonismo, que passaria a ser a base de seu pensamento. Porém, mesmo seguindo as indicações da filosofia platônica acerca da purificação do corpo e o exercício da razão, Agostinho sentia o apelo da carne e a corrrupção da alma 84 História da Filosofia II pelas paixões. Nesse sentido, o platonismo não supria sua necessidade de plenitude espiritual. É possível conferir isso nas palavras de Agostinho, na seguinte passagem de Confissões I – Lágrimas do Pródigo: Quem me dera repousar em Vós! Quem me dera que viésseis ao meu coração e o inebriásseis com a vossa prensença, para me esquecer de meus males e me abraçar convosco, meu único bem! Que sois para mim? Compadecei-Vos, para que possa falar! Que sou eu aos vossos olhos para que me ordeneis que Vos ame, irando-Vos comigo e ameaçandome com tremendos castigos, se o não fizer? É acaso pequeno castigo não Vos amar? Ai de mim! Pelas vossas misericórdias, dizei, Senhor meu, o que sois para comigo? Dizei à minha alma: “Sou a tua salvação”. Falai assim para que eu ouça. Estão atentos, Senhor, os ouvidos do meu coração. Abri-os e dizei à minha alma: “Sou a tua salvação”. Correrei após esta palavra e alcançar-Vos-ei. Não me escondais o rosto. Que eu morra para o contemplar, a fim de não morrer eternamente! (AGOSTINHO, 1973, p. 27-28). A conversão de Agostinho ao cristianismo deu-se em 386, aos trinta e três anos de idade, quando ele entrou em contato com as Epístolas de São Paulo, que apontam Jesus Cristo como o único caminho pelo qual o homem pode viver livre do pecado, das paixões e da corrupção. Figura 2.15 - O batismo de Agostinho de Hipona Fonte: Colégio Santo Agostinho ([200-?]). Unidade 2 85 Universidade do Sul de Santa Catarina As questões em que Agostinho deteve-se giravam em torno do homem, que deve sempre buscar o bem. Neste aspecto, sua filosofia mostra claramente a influência de Platão, para quem Deus é o bem supremo. Tudo o que existe foi criado por Deus a partir do nada. Ao homem, superior às outras criaturas porque criado à imagem e semelhança de Deus, não é dado o direito de dominar os fenômenos da natureza, mas de compreendê-los como partes da criação de Deus. Do mesmo modo que incorporava a filosofia platônica, “cristianizando-a”, Agostinho rejeitava a especulação e as ciências físicas, que insistiam em prescrutar a natureza e o cosmo por meio da razão e da experiência, julgando poder conhecê-la, julgando poder encontrar a verdade última das coisas dirigindo-se a elas mesmas, como se não fossem, elas, obra e reflexo de Deus. A observação dos fenômenos naturais, que era de grande interesse da ciência greco-romana, agora era negada por Agostinho, por se constituirem eles num mistério divino, velado ao homem. Observe as palavras de Agostinho, na citação que segue: [...] quando então surge a pergunta do que devemos acreditar a respeito da Religião, não é necessário procurar entender a natureza das coisas, como faziam os que os gregos chamavam de physici; tampouco devemos ficar alarmados se o cristão desconhece a força e o número dos elementos, o movimento, a ordem e os eclipses dos corpos celestes, a forma dos Céus, as espécies e a natureza dos animais, das plantas, das pedras, das fontes, dos rios, das montanhas; (se desconhece) a cronologia e a agrimensura, os sinais que prenunciam as tempestades e mil outras coisas que esses filósofos têm descoberto ou pensam ter descoberto [...]. Basta ao cristão acreditar que a causa única de todas as criaturas, sejam elas terrestres ou celestes, visíveis ou invisíveis, é a bondade do Criador, Deus único e verdadeiro, e que nada existe, a não ser Ele, que não deve a Ele a sua existência. (AGOSTINHO apud KUHN, p. 130). Assim como para Platão e para todos os patrísticos que seguiram suas ideias, para Agostinho, o corpo é a prisão da alma e fonte do que julgamos ser o Mal. O homem degrada-se por perversão da sua vontade, podendo recuperar-se somente pela intervenção da graça divina. Deus é o poder absoluto que salva os homens 86 História da Filosofia II mediante a graça, possibilitando-lhes o conhecimento num ato de iluminação. Nesse caso, os sentidos funcionam como estimuladores da reflexão que gera os conhecimentos de ordem superior e que não são obtidos diretamente da realidade exterior. Os conhecimentos percebidos através da mente são os que se referem a juízos morais e relações matemáticas, enfim, aos que não podem ser obtidos diretamente pelos sentidos, pois, apesar de informarem a respeito dos aspectos materiais das coisas, não são capazes de nos fazer compreender a noção de número, justiça, virtude, etc., conhecimentos que somente podem ser alcançados através da inteligência iluminada por Deus. Platão, da mesma forma, diz serem ilusórias as imagens que os sentidos nos oferecem e que a verdade encontra-se no mundo das ideias, que corresponderia ao exterior da “caverna” (lembre-se da Alegoria da Caverna de Platão), banhado pela luz do Sol, do próprio Deus. Há, no entanto, uma diferença fundamental entre Platão e Agostinho, visto que o primeiro concebe as ideias como absolutas e exteriores à mente do criado-demiurgo, e o segundo as concebe como verdades ou verbo de Deus. Santo Agostinho também defendeu a existência de uma realidade melhor, que chamou de “Cidade de Deus”, perfeita, superior e de ordem espiritual. Na realidade, a igreja representa a Cidade de Deus, devendo todos os cidadãos e o Estado submeter-se a ela, pois seus chefes não estariam sujeitos ao erro. Esta é mais uma aproximação com o Mundo das Ideias de Platão. Veja a Figura 2.16. Figura 2.16 - A Cidade de Deus rodeada por demônios. Livro de Horas, I-X, Paris,c. 1474-1480 Fonte: Silveira (2010). Unidade 2 87 Universidade do Sul de Santa Catarina Agostinho defende que tudo o que ocorre no mundo deve ser aceito como bom e justo porque vem de Deus; o mal é decorrência da má aplicação do “livre arbítrio” dado ao homem pela infinita bondade de Deus. Sendo assim, o escravo deve aceitar sua condição de submissão ao senhor que, por sua vez, deve obedecer ao Estado e este à Igreja, numa hierarquia que vai do mais afastado ao mais próximo de Deus. Em Agostinho, a hierarquia que há no céu, há no universo físico e, também, na organização social. Para Agostinho, a fé principia o conhecimento, isto é, ela é uma forma de pensamento com aceitação. Com a máxima “Crê para compreender e compreenda para crer”, este filósofo teólogo concilia razão e fé. Nas Confissões, Livro VI, há uma reflexão belíssima a respeito da relação entre a verdade da fé e a verdade das letras. Observe os seguintes trechos citados: O desejo de saber o que havia de aceitar como verdadeiro roía tanto mais fortemente meu interior quanto mais me envergonhava de ter sido iludido e enganado durante tanto tempo com a promessa de certeza, e de ter, com erro e entusiasmo pueril, palrado tanto de inúmeras coisas incertas, como se fossem verdadeiras. Depois vi a razão por que eram falsas. [...] Cheio de gozo, ouvia muitas vezes a Ambrósio dizer nos sermões ao povo, como que a recomendar, diligentemente, esta verdade: “A letra mata e o espírito vivifica”. Removido assim o místico véu, desvendou-me espiritualmente passagens que, à letra, pareciam ensinar o erro. Ele nada dizia que me desagradasse (refere-se a Ambrósio)*, embora tivesse afirmações que eu ainda então ignorava se eram ou não verdadeiras. Abstinha o meu coração de qualquer afirmativa, com medo de cair no precipício. Mas esta suspensão matavame ainda mais, porque desejava estar tão certo do que não via, como de sete mais três serem dez. [...] Se acreditasse, poderia ter obtido a cura. Assim o olhar, já mais purificado, da minha inteligência, dirigir-se-ia, de algum modo, para a vossa verdade sempre constante e indefectível. 88 História da Filosofia II Costuma suceder a um doente que consultou um médico desprestigiado ter depois receio dum médico bom. Assim acontecia à saúde da minha alma, que não podia curar-se, senão crendo. Porque temia crer o que era falso, precisava deixar-se curar, resistindo às vossas mãos, ó Divino Médico, que fabricaste o remédio da fé e o derramaste em todas as enfermidades do mundo, dando-lhe, a ela, tão grande autoridade. *nota nossa (AGOSTINHO, 1973, p. 112-113). A fé não é obstáculo para a inteligência, mas, pelo contrário, a fé garante-nos a intuição dos princípios primeiros, dos fundamentos que nos ajudam a interpretar melhor o que nos é dado pela experiência e resolver os problemas que Deus permitiu que fossem objetos de nossas investigações. Agostinho deixou uma obra bastante vasta. Reconhecida como a principal obra da Patrística, é um esforço bem sucedido de conciliação entre o cristianismo e a filosofia platônica. Depois de Agostinho, durante os séculos vindouros e até mesmo hoje, as ideias de Santo Agostinho fazem-se presentes não somente na igreja, mas, também, entre filósofos e acadêmicos. Unidade 2 89 Universidade do Sul de Santa Catarina Síntese Nesta unidade, você pôde conferir a intensidade do pensamento e do testemunho deixado pelos primeiros padres da igreja. Verificou que é simplista resumir o período da Idade Média como a “idade das trevas” e identificar os pensadores deste período exclusivamente pelo aspecto da conciliação entre razão e fé. Em vez disso, você viu que o estudo das ideias filosóficoteológicas cristãs desse período pode ser realizado a partir de várias perspectivas e em vários níveis de profundidade. A esse estudo denomina-se Patrística. Considerando a perspectiva histórica, você estudou os primeiros doutores cristãos, cujo propósito principal era converter os Imperadores romanos ao cristianismo e rebater a filosofia pagã e as seitas heréticas, consolidando a doutrina cristã em religião. Esse intento foi alcançado com o Edito de Milão de 313 e o Concílio Ecumênico de Nicéia, no governo do imperador Constantino. Você estudou que grande parte desses pensadores cristãos teve formação na cultura helênico-romana. Este fato e a inegável grandeza dessa cultura levou muitos deles a estabelecer vínculos de continuidade e fundamentação entre a filosofia grega e o pensamento cristão. Após o Concílio de Nicéia, o pensamento que mais se destaca é o de Aurélio Agostinho, considerado o principal representante da Patrística, especialmente da corrente latina. Diferente dos primeiros doutores da igreja, Agostinho teve formação cristã por influência de sua mãe, mas se afastou do cristianismo durante a juventude. Seu retorno a ele ocorreu depois que encontrou nas palavras de Ambrósio a recomendação de entregar-se primeiramente à fé, a partir da qual vem o conhecimento iluminado de Deus. 90 História da Filosofia II Atividades de autoavaliação 1) Além da perseguição promovida pelo Império Romano, cite e comente mais duas (pelo menos) barreiras que os doutores cristãos tiveram de enfrentar nos primeiros séculos da era cristã. 2) Como foi visto nesta unidade, de todos os sistemas filosóficos gregos, o de Platão foi o mais influente nas obras dos doutores da Patrística. Elabore um texto dissertativo, relacionando pelo menos três pontos em que a filosofia de Platão coincide com as ideias dos primeiros padres da Igreja. Unidade 2 91 Universidade do Sul de Santa Catarina Saiba mais Você pode saber mais sobre o assunto estudado nesta unidade, consultando as seguintes referências: ABRAÃO, Bernadete Siqueira (Org). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2007. JUSTINO. Apologia I e II. Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995. ORÍGENES. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. SANTIDRIÁN, Pedro R. Breve dicionário de pensadores cristãos. São Paulo: Editora Santuário, 1997. VERGEZ, André; DENIS, Huisman. História dos filósofos ilustrada pelos textos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984. SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril, 1973. 92 UNIDADE 3 O desenvolvimento da Escolástica Objetivos de aprendizagem Caracterizar a Escolástica como um movimento de conservação da cultura clássica e de renovação do pensamento cristão. Identificar as fases da Escolástica e apontar as principais questões que animaram os debates durante a Idade Média. Analisar o pensamento de Tomás de Aquino, destacando seu esforço em conciliar fé e razão pela argumentação lógica. Seções de estudo Seção 1 Severino Boécio e o nascimento da Escolástica Seção 2 Místicos e dialéticos da Escolástica pré-tomista Seção 3 O Pensamento de São Tomás de Aquino 3 Universidade do Sul de Santa Catarina Para início de estudo Na unidade anterior, você estudou que a Patrística durou até o início da Idade Média, aproximadamente no século VII. Um século depois, nasce o movimento que os estudiosos chamaram de Escolástica. O período entre o fim da Patrística e o início da Escolástica é considerado o mais obscuro da Idade Média e foi marcado pela consciência dos pensadores deste período, da necessidade de forjar uma nova cultura sem, no entanto, deixar perder-se a velha cultura dos gregos. Assim, de fato, a Escolástica faz renascer muitos aspectos da filosofia grega, especialmente a lógica e a dialética. O período áureo da Escolástica ocorreu com Tomás de Aquino, cuja obra gira em torno da filosofia aristotélica. E o período de decadência foi marcado pela metafísica de Scoto, que, mais tarde, deu origem ao nominalismo e ao humanismo. O termo Escolástica designa o conhecimento elaborado e ensinado nas escolas medievais, sobretudo nas “palacianas”, que versava sobre a linguagem, a natureza, a filosofia e a teologia. Embora o ensino dessas áreas do conhecimento fosse bastante básico nos primeiros séculos, as escolas acabaram preservando a cultura clássica das invasões bárbaras, transcrevendo, traduzindo e conservando diversas obras antigas. Além disso, foram fundamentais para o nascimento das universidades nos séculos XII e XIII. 94 História da Filosofia II Seção 1 – Severino Boécio e o nascimento da Escolástica Assim como na Patrística, também na Escolástica os estudiosos divergem quanto ao tempo de duração deste período. Alguns consideram o período compreendido entre os séculos IX e XVI, outros atrasam as datas e consideram o período entre os séculos VIII e XIV. Quanto à identificação das fases da Escolástica, ocorre o mesmo: os estudiosos parecem concordar que ela seja dividida em fases específicas, mas nem sempre utilizam os mesmos critérios para estabelecer essas fases e nem sempre consideram o mesmo número de fases. A maioria dos estudiosos divide a Escolástica a partir de Tomás de Aquino; assim identificam três fases: pré-tomista, tomista e pós-tomista. Outros a dividem em quatro fases, incluindo parte do período de transição, e consideram, como ponto de partida, a organização das escolas medievais por Carlos Magno (742814). Estas quatro fases seriam as seguintes: pré-escolástica, alta escolástica, ápice da escolástica e crise da escolástica. Nesta unidade, será considerada a divisão em quatro fases, a fim de cobrir um período maior. Porém, é importante levar em conta outras formas de entendimento deste período e das fases que o compõem. Fase pré-escolástica – compreende o período histórico entre o séc. VIII e o séc. X, em que ocorreu a Renascença Carolíngia, isto é, o renascimento das artes e da literatura, sob o governo de Carlos Magno (747-814). Uma das suas principais ações nesse sentido foi a organização das “escolas”; cujos programas acabaram por manter a tradição das escolas antigas. É importante lembrar que durante a Idade Média, mesmo antes de Carlos Magno, já existiam escolas, geralmente vinculadas às ordens cristãs. No início, as escolas ensinavam basicamente a ler, escrever e fazer contas, e, de modo geral, tanto a igreja como os governantes não davam a devida importância a essas escolas, mas, aos poucos, Unidade 3 95 Universidade do Sul de Santa Catarina sobretudo depois da influência de Carlos Magno, todos passaram a prestar mais atenção a elas. Figura 3.1 - Papa Leão III coroando Carlos Magno Fonte: Rocha (2011). As artes liberais significam as ciências cultivadas pelos homens livres, em oposição às artes servis ou mecânicas, que significam os ofícios dos escravos e servos. As artes liberais eram subdivididas em: quadrivium, isto é, aritimética, geometria, astronomia, música; e trivium: gramática, retórica, dialética. Havia as escolas monacais ou monásticas, construídas ao lado dos mosteiros e abadias, reservadas aos futuros monges, aos copistas, tradutores e outros doutores da igreja. As escolas capitulares ou catedralícias, construídas junto às catedrais, e as escolas palacianas. Essas escolas tinham, a sua frente, os mestres-escola, ou escolásticos, quase sempre submetidos aos bispos ou abades. Porém, além da teologia e da exegese, especialmente ministradas aos que queriam seguir a vida religiosa, o currículo dessas escolas também incluía as artes liberais. Por muito tempo, chefes militares e dirigentes do governo iletrados tiveram que deixar, na mão das autoridades episcopais que dirigiam essas escolas, a organização e redação de sua literatura, burocracia administrativa e outros documentos oficiais. Até que as escolas palacianas, as quais eram mantidas pelos governantes, passaram a preparar o corpus do governo com base em uma educação laica. Pelo que tudo indica, somente no século XII, quando surgem as primeiras universidades, as autoridades eclesiásticas passaram a enxergar, nas escolas e universidades, a via de propagação e perpetuação do catolicismo no novo tempo em que viviam. 96 História da Filosofia II Figura 3.2 - Escola medieval Fonte: Na Idade... (2009). Entre os principais representantes dessa fase pré-escolástica está Alcuino de York (730-804), diretor da Escola Palatina de Carlos Magno, em 781, e João Escoto Eruígena, tradutor dos escritos de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, e considerado um dos primeiros escolásticos. Fase da alta escolástica – período compreendido entre o séc. XI e XII, caracterizado pelo início da crise do sistema feudal, pelo surgimento de uma espécie de pré-capitalismo (SEVCENKO, 1988), e pelo renascimento urbano das cidades européias, fatores que produziram uma significativa mudança política e social. Nesse contexto, há duas forças contrárias que agiram, respectivamente, no séc. XI e no séc. XII. Primeiro, há um enfraquecimento dessas escolas. Como afirma Verger: De Pedro Damião a São Bernardo, todos os autores do grande movimento de restauração monástica que se desenvolveu no Ocidente, no final do séc. XI, foram hostis, não, como foi dito abusivamente, à cultura, mas ao ensino escolar praticado então, baseado nas artes liberais e na leitura dos autores antigos. Sob sua influência, numerosos conventos fecharam sua escola “externa” e, diminuindo o número de seus oblatos, reduziram em seguida a importância de sua escola “interna”; a formação intelectual do monge encontrava novamente seus meios e suas finalidades tradicionais: o humilde trabalho do copista, a leitura e a meditação pessoal, sendo o conjunto apenas a preparação para a prece. (VERGER, 1990, p. 20). Unidade 3 97 Universidade do Sul de Santa Catarina Já no séc. XII, segundo alguns teóricos, ocorre mais um renascimento provocado pela retomada do estudo da língua grega e pelo trabalho de tradução dos pensadores bizantinos e muçulmanos, que acabou alcançando especialmente a Itália e a Espanha. Muitas dessas traduções não foram feitas diretamente do grego, mas a partir do siríaco e do árabe, e isto forçou esses tradutores a dominarem pelo menos três línguas. Acompanhe as seguintes palavras de Verger, sobre o trabalho desses tradutores: O esforço dos tradutores do século XII recaiu antes de tudo sobre a filosofia e a ciência gregas. Quase toda a obra de Aristóteles era conhecida no final do século XII (toda a Lógica, a Física, a Metafísica); faltava apenas, ao século XIII, descobrir a Retórica, a Ética, a Econômica e a Política; [...] descobriram-se os grandes sábios gregos (Euclides, Arquimedes, Ptolomeu); conheceramse melhor as obras de Hipócrates e Galeano. Além disso, o século XII traduziu em latim uma massa de tratados árabes que eram, eles mesmos, comentários de obras gregas: tratados de Matemática (como os de al-Khwrizmi, inventor da Álgebra), de Astronomia, de Ciências naturais, de Medicina (como os de al-Razi, chamado Rázi no Ocidente ou o Cânon de Ibn-Sîna, chamado Avicena), comentários de Aristóteles (como os de al-Fârâbi e de Avicena). (VERGER, 1990, p. 24-25). Esse renascimento da literatura e das artes reforçou o aumento do contingente de escritos que chegavam aos escolásticos e seus alunos. A cultura clássica guardada nas grandes bibliotecas cristãs ultrapassou os muros dos monastérios e abadias, alcançando as recém surgidas associações corporativas de professores e alunos, que se transformariam nas primeiras universidades. O ensino nas universidades não era, necessariamente, ligado à Igreja, e os alunos vinham de toda parte, independentemente do que seriam no futuro, se comerciantes ou monges, e de sua classe social, se nobres ou plebeus, desde que estivessem dispostos a aprender. A nobreza não era reconhecida pelo “berço”, mas pela cultura acumulada, o que representava uma perspectiva bem diferente da anterior, quanto à produção e propagação de 98 História da Filosofia II conhecimentos. Os escolásticos desse período dedicavam-se especialmente à lógica e à dialética, muitas vezes buscando a velha conciliação entre a razão e a fé. Entre os pensadores representantes desse período estão Berengário, Anselmo, Abelardo e Bernardo. Fase do ápice da Escolástica – durante o séc. XIII, foi finalizada a tradução da obra de Aristóteles e estudou-se profundamente a sua filosofia. A obra de Aristóteles já havia sido objeto de estudo de pensadores como Boécio, que traduziu partes da Lógica, e das escolas palacianas e monacais que atuaram até o séc. XIII. Mesmo assim, a questão que marca esta fase da Escolástica é a assimilação da filosofia aristotélica pela teologia cristã, em substituição à filosofia neoplatônica de Agostinho. Esse movimento não se deu sem resistência, sobretudo dos padres franciscanos, que buscaram retomar a filosofia platônica, “cristianizada” por Agostinho; mas, em seguida, com a obra de Tomás de Aquino, uma das figuras mais proeminentes da Escolástica, o aristotelismo foi incorporado à reflexão teológica. Fase da crise da Escolástica – vai do final do séc. XIII ao séc. XIV. Nessa fase, há uma retomada da questão entre a lógica e a fé, a filosofia de Aristóteles e o cristianismo. Um dos maiores representantes desse período é Escoto, que, como seus irmãos franciscanos, negou que a razão pudesse ser fundamento da fé. Segundo Escoto, enquanto a filosofia pertence ao domínio teórico, a religião é relativa à vida prática. Também Guilherme de Ockham representa essa fase da Escolástica, conforme você vai estudar na Unidade 4. Desde a morte de Agostinho, no séc. V, até a emissão das Cartas Capitulares, de Carlos Magno (séc. VIII), decorrem três séculos de grande alteração na configuração política do Ocidente. Por um lado, a queda do Império Romano, o crescimento dos Unidade 3 Figura 3.3 - Ancius Manlius Torquatus Severinus Boecius (470 – 525) Fonte: Biography... ([20--?]). 99 Universidade do Sul de Santa Catarina muçulmanos que isolavam o Ocidente do resto do mundo, e as invasões bárbaras que resultavam na criação dos primeiros reinos bárbaros. Por outro lado, as tentativas de reunificação de governantes como Justiniano (responsável pelo fechamento da Escola de Atenas), e o esforço da Igreja em preservar a estabilidade do Estado. Os pensadores desse período pareciam saber que se tratava de um período de transição e reconheciam a necessidade de se forjar uma nova cultura, ao mesmo tempo que se preservava a cultura antiga. Muitos cumpriram exatamente esse papel, entre eles, é possível citar Boécio entre os séculos V e VI e Isidoro de Sevilha entre os séculos VI e VII. Severino Boécio nasceu em Roma, no seio de uma tradicional e conceituada família de condes e autoridades episcopais. Depois de adulto, atuou na política, junto ao rei Teodorico, até ser preso sob a acusação de conspiração. É considerado pelos estudiosos como o último dos padres latinos, e, ao mesmo tempo, o primeiro representante da Escolástica, devido à característica limítrofe de seu pensamento. Numa época de declínio do Império Romano, de retração da cultura grega clássica e de enfraquecimento dos centros de ensino, que renasceriam dois séculos mais tarde, Boécio demonstrava profundo conhecimento da língua grega e voltava-se para a filosofia. Em seus escritos, ele quase não se referia a Jesus Cristo, exceto nos Opúsculos Teológicos, cuja autoria duvidou-se durante séculos que fosse realmente de Boécio. A incerteza quanto à autoria desta obra foi polêmica para a Igreja, que ficava sem saber se o colocava no rol dos pensadores cristãos, ou fora dele. A dúvida permaneceu até o séc. XIX, quando foi descoberto um fragmento de obra de Cassiodoro, em que ele atribuía a Boécio a autoria de dois textos que fazem parte dos Opúsculos. 100 História da Filosofia II Seus estudos, traduções e comentários sobre a filosofia aristotélica, alimentaram os filósofos e teólogos dos séculos seguintes, especialmente os escolásticos. O objetivo inicial e declarado de Boécio era traduzir toda a obra de Aristóteles e de Platão, interpretando-as de forma complementar e conciliatória, feito que não conseguiu levar a cabo. Segundo Santidrián (1997, p. 90): Apenas parcialmente conseguiu realizar esse vasto projeto. Temos as traduções dos Analíticos I e II de Aristóteles, além de Tópicos, Elencos sofísticos e Da interpretação, com dois comentários. Possuímos a tradução das Categorias, com um comentário. Também temos sua tradução da Isagoge de Porfírio, com comentário e outros trabalhos da Lógica. Sobre Platão, que saibamos, não traduziu nem comentou nada. Durante a prisão, Boécio escreveu o último e um de seus principais textos, intitulado Da Consolação da Filosofia. Composta em prosa e verso, e bastante influenciada pelo neoplatonismo, diz-se que foi escrita entre as sessões de tortura que sofreu na prisão. Nessa obra composta por cinco livros, a Filosofia é apresentada de forma alegórica, como uma nobre dama que responde às angustiosas perguntas de Boécio sobre a vida e a verdadeira felicidade. Leia nas próprias palavras de Boécio: Enquanto no silêncio, me agitavam esses sombrios pensamentos e com aguçado estilo escrevia em brandas tabletas meu lamento lamurioso, pareceu-me que sobre minha cabeça se erguia a figura de uma mulher de rosto sereno e majestoso, de olhos de fogo, penetrantes como jamais vira em um ser humano, de rosada, cheia de vida, de inesgotável energia, apesar de que seus muitos anos podiam fazer crer que ela não pertencia a nossa geração. Seu porte, impreciso, nada mais me deu a entender. (BOÉCIO, 1955, p. 15, tradução da autora). Unidade 3 Tabletas: pedaços pequenos de argila suficientemente duros para serem manuseados e macios “brandas” o suficiente para que uma cânula possa desenhar as letras. Suporte para escrita utilizado desde a Mesopotâmia. 101 Universidade do Sul de Santa Catarina No primeiro livro, Boécio reconhece a Filosofia como aquela que o nutre desde sua juventude; e ela, por sua vez, consola Boécio em seu cárcere, e o faz lembrar que o mundo não é governado pelo acaso, mas pela razão divina. No segundo livro, a Filosofia recomenda-lhe conformar-se às vicissitudes da fortuna, já que fazem parte do destino humano. Neste ponto, Boécio alerta que, quanto mais bem afortunada é a vida do homem, menos ele consegue ver onde está a verdadeira felicidade que, por certo, não está nas riquezas e glórias terrenas. Essas fazem parte do “vir a ser perpétuo” do mundo físico, sendo que os senhores de hoje serão derrubados pelos miseráveis de hoje que, nesse curso, se tornarão senhores amanhã e, depois, novamente miseráveis: trata-se da “roda da fortuna”. O simbolismo da roda da fortuna na arte medieval pode ser explicado através da iluminura do Hortus Deliciarum, com seus quatro estágios simbolizados pelos quatro personagens em torno da Roda: regnabo (“eu devo reinar”: figura em cima, do lado esquerdo da Roda, com o braço direito erguido), regno (“eu reino”: figura em cima da roda, frequentemente coroada, para significar o reinado), reganvi (“eu reinei”: figura que está do lado direito da roda, caindo da graça), sum sine regno (“eu não tenho reino”: figura na base da roda que perdeu completamente os favores da Fortuna. Esta pessoa é, às vezes, completamente jogada da roda ou esmagada por esta, sem nenhuma chance de reinar de novo). [...] No entanto, a Filosofia repreende Boécio: Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela sempre tem os mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela permanece fiel em sua inconstância. Ela era a mesma quando te lisonjeava, ou quando fazia de ti seu joguete prometendo-te miragens [...] seus jogos são funestos [...] e é precisamente essa faculdade de passar de um extremo ao outro que caracteriza a Fortuna, que deve fazer com que a desprezemos, sem temê-la ou desejá-la. 102 História da Filosofia II A Filosofia, então, coloca-se no papel da Fortuna para que Boécio compreenda melhor sua sorte. Neste momento, o autor vale-se da metáfora da Roda para explicar o sentido do movimento da Fortuna: E quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos homens que pretende me obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com minha própria natureza! Minha natureza, o jogo interminável que jogo é este: virar a Roda [da Fortuna] incessantemente, ter prazer em fazer descer o que está no alto e erguer o que está embaixo. Sobe se tiveres vontade, mas com uma condição: que não consideres injusto descer, quando assim ditares as regras do jogo. Ignoravas mesmo a minha maneira de agir? Por esse motivo, a Fortuna propicia aos homens um jogo, um grande espetáculo. Pois esse é o sentido da vida, um teatro, o teatro da vida. Vive-se uma grande peça, em que se desenvolvem tumultuadas e violentas relações pessoais que perpassavam a prática social. Veja a Figura 3.4. Figura 3.4 - A roda da fortuna Fonte: Costa e Zierer ([2008?]). Quanto mais o homem embrutece e afasta-se de Deus, ficando à mercê de suas sensações, mais fica vulnerável à instabilidade da fortuna. Segundo a Filosofia, o homem goza a boa fortuna, ela lhe parece justa, mas não a má fortuna, que lhe parece a maior Unidade 3 103 Universidade do Sul de Santa Catarina das injustiças. Exceto se o homem acredita que a má fortuna é decorrência do pecado e da culpa. Porém, não é este o caso para Boécio, já que ele crê que a transitoriedade da fortuna advém de sua natureza temporal. Assim, recomenda a Filosofia que o homem busque a verdadeira felicidade e simplesmente aceite a fortuna. No terceiro livro, a Filosofia considera que Boécio já está preparado para receber o preceito fundamental que o conduzirá à felicidade verdadeira, que é o Bem supremo, ou seja, Deus. No quarto livro, Boécio pergunta à Filosofia de onde vem o mal? Pela resposta da Filosofia vê-se o esforço de Boécio em conciliar a existência do mal espalhado no mundo e a bondade divina criadora do mundo. No quinto livro, o problema discutido no livro anterior estende-se, e Boécio trata da relação do livre arbítrio com a providência divina, separando o que é do destino e o que é da providência divina; sendo que a providência contém o destino. Observe o comentário de Gilson sobre o significado que Boécio dá à Filosofia: Você pode saber mais sobre a subdivisão que Boécio faz da filosofia consultando o livro: GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2007. O autor do De Consolatione philosophiae não só legou à Idade Média a imagem alegórica da filosofia que vemos, até hoje, esculpida nas fachadas de certas catedrais, como deixou dela uma definição, ao mesmo tempo que uma classificação das ciências que ela domina. A filosofia é o amor à Sabedoria, pelo que não devemos entender a simples habilidade prática, nem mesmo o conhecimento especulativo abstrato, mas uma realidade. A Sabedoria é esse pensamento vivo, causa de todas as coisas, que subsiste a si mesma e só necessita de si para subsistir. Iluminando o pensamento do homem, a Sabedoria esclarece-o e atrai-o a si pelo amor. Assim, a filosofia, ou amor à Sabedoria, pode ser indiferentemente considerada como a busca da Sabedoria, a busca de Deus ou o amor a Deus. (GILSON, 2007, p. 161). Boécio tratou de diversos temas, e aqui trataremos a questão dos universais e do livre arbítrio. 104 História da Filosofia II Boécio abordou a questão dos universais na sua tradução comentada do Isagoge de Porfírio. Ele busca saber se os “gêneros e as espécies” subsistem independentemente do espírito, ou se estão ligados a ele por terem sido criados por ele. Seguindo Aristóteles, inicialmente, Boécio nega a existência incorpórea e apartada dos universais em relação às coisas concretas (como é o caso dos gêneros e das espécies). E sua explicação é plausível, pois, se os universais referem-se a grupos de indivíduos, então não podem existir na individualidade, que é uma condição de todo ser corpóreo. Embora cada indivíduo traga em si as características essenciais que o inserem em uma determinada espécie, também traz características particulares que o distinguem dos demais indivíduos da mesma espécie. Por exemplo, todo homem tem as características essenciais que o identificam como homem, e também tem características aparentes que são só dele. Nenhum homem individualmente traz em si todas as características aparentes possíveis da espécie humana – sendo baixo, alto, gordo, magro, negro, branco, forte, fraco, etc., ao mesmo tempo. Noutra forma de dizer, um indivíduo tem as características universais de sua espécie, mas não pode ser tomado, em sua individualidade, como modelo universal de sua espécie. Boécio conclui que os universais existem como simples noções do espírito. O problema recomeça quando Boécio considera que, se os universais são apenas noções do espírito sem realidade concreta, então eles não são nada. E como pode o pensamento pensar nada? Como de fato o pensamento pensa os universais, então eles têm que ser considerados realidade! Diante desse dilema, Boécio explica que os sentidos fornecem dados imprecisos e confusos dos seres do mundo, mas o espírito, que pode dissociar e recompor esses dados, analisa-os e distingue os aspectos universais que se encontram misturados Unidade 3 105 Universidade do Sul de Santa Catarina na corporeidade dos seres. Assim, o conceito universal de espécie humana decorre da abstração de características universais distribuídas nos indivíduos humanos concretos. É essa a solução do problema dos universais: subsistunt ergo circa sensibilia, intelliguntur autem preter corpora, eles subsistem em ligação com as coisas sensíveis, mas os conhecemos à parte dos corpos. (GILSON, 2007, p. 165). Diferentemente de Platão e Agostinho, Boécio não pensa que os sentidos corrompem a alma, afastando-a das ideias; ao contrário, os sentidos provocam o homem a buscar as ideias. Os comentadores de Boécio afirmam que, mesmo buscando a conciliação entre a tese platônica e a aristotélica, ele acaba demonstrando ter optado pela explicação de Aristóteles. Leia com atenção a seguinte passagem: Portanto, Boécio transmitiu à Idade Média mais que uma simples colocação do problema dos universais, e a solução que propunha para ele era, sim, a de Aristóteles, mas não a propunha sem reservas. Platão, acrescentava, “pensa que gêneros, espécies e outros universais não são apenas conhecidos à parte dos corpos, mas também que existem e subsistem fora deles, ao passo que Aristóteles pensa que os incorpóreos e os universais são, de fato, objetos de conhecimento, mas só subsistem nas coisas sensíveis. Qual dessas opiniões é verdadeira, não tenho a intenção de decidir, porque é de uma filosofia mais elevada. Assim, ativemo-nos a seguir a opinião de Aristóteles, não que a aprovemos mais, senão porque este livro está escrito tendo em vista as Categorias, cujo autor é Aristóteles”. (GILSON, 2007, p. 165). Outra questão tratada por Boécio é a do livre arbítrio: como conciliar a liberdade humana – livre arbítrio, com a previsão divina dos nossos atos. O livre arbítrio é uma dádiva de Deus que torna o homem um ser livre, isto é, pelo exercício da vontade, ele pode alterar o curso de sua vida, pode inclusive tornar-se ateu. 106 História da Filosofia II Nesta perspectiva, seria o homem tão livre que pudesse fugir aos olhos de Deus? Boécio diz que não, porque o tempo e o espaço do mundo concreto, o homem entre elas, está dentro da eternidade de Deus, que é onipresente e onisciente. Sendo uma dádiva divina, Deus prevê o livre arbítrio exatamente como a possibilidade de o homem ter “atos livres”. Boécio garante tanto a liberdade do homem, quanto a onisciência de Deus, afirmando que o devir perpétuo do homem está dentro da simultaneidade eterna de Deus, e isso não tira a liberdade do homem. Acompanhe a citação que segue: Portanto há um antes e um depois nos acontecimentos, mas não no conhecimento totalmente presente que Deus tem deles. Ele não “prevê”, mas “provê”: seu nome não é “previdência”, mas “providência”; portanto, ele vê eternamente o necessário e o livre como livre. Vejo que o sol nasce; o fato de vê-lo não é a causa do seu nascimento. Vejo que um homem caminha; isso não o obriga a caminhar. Do mesmo modo, a visão imóvel e permanente que Deus tem de nossos atos voluntários não compromete em nada sua liberdade. (GILSON, 2007, p. 170). A ordem das coisas concretas é fruto do pensamento divino, mas a lei e a ordem interior no curso das próprias coisas, esse é o destino. O destino é o suceder de causas e efeitos que provocam a evolução de todo ser criado de natureza mutável, dentro da imutabilidade divina. Nesse aspecto, o Deus cristão de Boécio diferencia-se das divindades gregas que não controlam o destino. Unidade 3 107 Universidade do Sul de Santa Catarina Seção 2 – Místicos e dialéticos da Escolástica prétomista Os escolásticos tiveram um interesse especial pela dialética e pela lógica aristotélica, mas o estudo dos assuntos que traziam à tona a filosofia e a ciência gregas sempre causava polêmica. E como é recorrente na história do pensamento cristão, esse interesse acirrou a disputa entre dois grupos opostos conhecidos: os que reconheciam a filosofia como um caminho para a fé, e a dialética como instrumento para explicar o mistério e argumentar contra os hereges; e os que consideravam a filosofia um conhecimento pagão, que promovia a vaidade do homem, levando-o a esquecer que as verdades alcançadas por ele eram, na realidade, oriundas de Deus, e não de sua razão e/ou experiência sensível. Portanto, a filosofia era antagônica à humildade e simplicidade da mensagem cristã. Estava posta a disputa entre místicos e dialéticos que marcou esse período da escolástica. De modo geral, os estudiosos reconhecem a dialética como a base em que foi forjado o método escolástico, que consiste na especulação e na forma lógica de exposição. As questões são enunciadas para serem analisadas e interpretadas, e, por meio da disputa discursiva, ser demonstrada a tese verdadeira. Alguns trabalhos de dialética apresentam uma notável utilização dos mecanismos lógicos e clareza na exposição dos argumentos. Características que, segundo seus opositores, levavam à preocupação excessiva com a forma e ao abandono do conteúdo, e à consequente racionalização da palavra sagrada – o que era absurdo, já que a palavra de Deus se basta. Vários pensadores ligaram-se ao grupo dos místicos: entre eles, Pedro Damião é um dos mais expressivos. 108 História da Filosofia II Pedro Damião nasceu na Itália, em uma família grande e muito pobre. Cedo, tornou-se órfão, mas, por intermédio de um irmão mais velho, iniciou os estudos, destacando-se por sua disciplina. Tornou-se professor mais adiante. Por volta dos 30 anos, no entanto, abandonou o magistério e ingressou na ordem religiosa Camaldulense, na qual permaneceu vivendo virtuosamente, até tornar-se Figura 3.5 - Pedro Damião (1007 – 1072) abade do mosteiro de Fonte Avellana. Fonte: São Pedro... ([200-?]). Mas Pedro Damião não aceitava a corrupção e o vício que, a seus olhos, invadira o clero, como era o caso da prática da simonia, ou venda dos cargos eclesiásticos. Veja a figura 3.5. No século XI, quando viveu Pedro Damião, a Igreja passava por um período de crise motivada, sobretudo, pela interferência dos governantes, na nomeação dos Prelados, o que levava aos cargos de poder da Igreja, homens não exatamente voltados para a glorificação de Deus, mas para os privilégios que poderiam alcançar com sua posição. Quanto mais aspirava ao silêncio e à meditação do claustro, mais Pedro Damião lançava-se a contendas externas. Assim, ele se tornou um combatente contra a imoralidade, pela defesa da integridade das lições de humildade e pobreza deixadas por Cristo. Sua militância no ambiente interno da Igreja, juntamente com a do Papa Gregório VII, resultou na reforma dos costumes eclesiásticos, ocorrida no séc. XI. O que realmente pretendia Pedro Damião era reforçar a necessidade do cristão viver de forma ascética, em vez de envolver a palavra sagrada na erudição ou de acumular riquezas e viver na ostentação. Numa época em que muitos aventuraram-se e perderam-se em habilidosos e capciosos debates acerca das questões que envolviam a palavra sagrada, Damião acabou voltando-se com grande força contra a filosofia, especialmente Unidade 3 109 Universidade do Sul de Santa Catarina contra a dialética. Para ele, não há explicação para o mistério dos milagres de Jesus Cristo, que desafiam a lógica e a física, já que os primeiros são coisas de Deus, e o resto é forjado pelo demônio. Observe a citação que segue: Quanto aos estudos profanos, o que Pedro Damião pensa deles é simples. A única coisa importante é alcançar a salvação; a maneira mais segura de se salvar é fazer-se monge; o problema reduz-se, pois, a saber se um monge necessita da filosofia. De modo algum. O que o homem deve saber para se salvar está contido nas Escrituras; o monge deverá conhecê-las, pois, e ater-se a elas. É preciso ouvir com que tom que nosso mestre monge diz essas coisas: “Platão escruta os segredos da misteriosa natureza, fixa os limites para as órbitas dos planetas e calcula a trajetória dos astros; rejeito-o com desprezo (respuo). Pitágoras divide em latitudes a esfera terrestre; faço pouco caso dele (parviplendo)[...] Euclides debruça-se sobre os problemas embrulhados de suas figuras geométricas; dispenso-o igualmente (aeque declino). Quanto a todos os retores com seus silogismos e suas cavilações sofisticas, eu os desqualifico como indignos de tratarem dessa questão.” Essas linhas do Dominus vobiscum mostram um santo que não se pode negar seja medieval, mas cuja santidade está nos antípodas do não menos medieval santo Alberto Magno. (GILSON, 2007, p. 285). Para Damião, é o caminho da simplicidade que leva para Deus, e não o da filosofia, já que não foram os filósofos que Jesus mandou percorrer a Terra para converter os pagãos, mas, sim, os homens simples, os pescadores. A respeito do poder de Deus acima de toda lei racional, incluindo a lógica aristotélica, ele escreveu a obra Da Divina Onipotência. Segundo alguns estudiosos, nessa obra, Damião utiliza sutilmente, e não abertamente, a própria filosofia para combater a filosofia. Tudo teria iniciado a partir de uma discussão de Damião com São Jerônimo, segundo o qual Deus era onipotente para alterar o que virá a ser e, até mesmo, o que é, mas não tem poder sobre o que foi. Para esta questão, o místico responde que, se fosse verdadeira a tese de Jerônimo, tanto Deus não poderia alterar o passado, quanto não poderia fazê-lo com o futuro, o que, por fim, colocaria em risco a fé em toda a obra divina. É a isso que podem levar as vãs discussões dos dialéticos. Ocorre que o tempo é 110 História da Filosofia II atributo do homem, e não de Deus, que é eterno e comporta o passado, o presente e o futuro do homem. Não introduzamos em Deus as regras do discurso, nem as leis da dialética, pois o silogismo não se adapta sem dificuldades ao mistério do poder divino; as necessidades lógicas de nossas conclusões não valem para Deus. Com efeito, Deus vive num eterno presente; portanto não está submetido às condições em que o problema se coloca, pois, para ele, não há passado nem presente. (GILSON, 2007, p.287). No grupo opositor aos místicos de Pedro Damião, estão os dialéticos, para quem a assimilação da dialética era fundamental para responder aos ataques dos heréticos. Entre os dialéticos, um dos principais é Anselmo de Aosta, ou de Cantuária. Nasceu na primeira cidade e morreu na segunda, e os estudiosos variam quanto à sua designação. Figura 3.6 - O bispo Anselmo de Aosta (1033–1109) Fonte: Diocese de Anápolis (2011a). Anselmo nasceu em Aosta del Piamonte, na Itália, de uma família abastada, que lhe oportunizou uma excelente educação clássica. Antes dos trinta anos, já havia ingressado na ordem beneditina, tornando-se monge contra a vontade do pai, que aspirava para o filho uma promissora carreira política. Unidade 3 111 Universidade do Sul de Santa Catarina A obra de Anselmo é marcada pela clareza e precisão das palavras, fruto da excelente educação clássica que recebeu durante a juventude. Fortemente marcado pelo pensamento neoplatônico de Agostinho, Anselmo é reconhecido pela sua argumentação ontológica. Um de seus principais escritos é o Monologium, feito sob encomenda dos monges de Bec, que desejavam um tratado sobre a existência de Deus, baseado exclusivamente na argumentação lógica e sem recorrer à palavra sagrada. Nesse tratado, Anselmo retoma o entendimento platônico de que as essências, ou conceitos universais das coisas concretas e plurais, existem fora das coisas e que Deus é ainda maior que as coisas e que as essências. Lembre-se da ideia platônica de que o Bem supremo, representado pelo sol, na parte externa da caverna de Platão, é a razão pela qual é possível contemplar as coisas iluminadas. Assim como as essências são mais perfeitas que as coisas, também há um princípio supremo das essências. Se, entre as coisas que existem, pode-se identificar maior e menor perfeição, é porque há um princípio único e perfeito, a partir do qual todas as coisas são, isto é, Deus. Um ser tão poderoso que não se pode conceber nenhum outro que seja maior que ele. Como é imperfeito, o homem não pode pensar o que é maior que ele mesmo. Portanto, a primeira conclusão de Anselmo é a de que o homem conhece a Deus pela fé, e não pelo entendimento. Porém, o homem pode pensar que há esse ser perfeito, isto é, ele existe em seu entendimento. Sendo assim, Anselmo conclui que Deus existe no entendimento do homem e fora dele. Porque falar da existência de Deus, o que é perfeitamente possível para o homem, não é o mesmo que falar da natureza de Deus, que ultrapassa as possibilidades humanas. Para Anselmo, a dialética não se prestava para o entendimento dos mistérios da fé, mas para demonstrar a necessidade da fé. Acompanhe a citação que segue: 112 História da Filosofia II Trata-se, portanto, da fé que procura a inteligência (fides quaerens intellectum) e, consequentemente, de uma contínua e sutil meditação racional sobre as razões da fé. Tanto quando Anselmo coloca entre parênteses as verdades que aceita pela fé para alcançá-las com a razão, como quando reflete sobre as verdades de fé, tanto em um como no outro caso a “razão move-se constantemente ao longo do traçado da fé”, pela explicitação de suas verdades. [...] As verdades de fé estão pressupostas (fides quae creditur) nos seus conteúdos, que não são fruto da investigação racional, mas a ela são oferecidos pela própria fé, que permanece como ponto de partida, uma espécie de pilastra, de toda a construção racional. A razão serve para desarticular as verdades da fé ou para iluminálas através de argumentações dialéticas. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 501). É possível dizer que Anselmo busca um meio termo entre os dialéticos radicais e os místicos radicais. Para os primeiros, a dialética não se limita à habilidade discursiva, ao controle da ordem e do nexo dos termos nas exposições e disputas argumentativas, mas serve como instrumento para distinguir o verdadeiro do falso e para avaliar a relação entre os termos e as coisas que eles representam, a fim de que se diga, na justa medida, o que são as coisas. Para os místicos, os dialéticos deixam-se envolver com a retórica e a dialética ao ponto de dar mais importância à eloquência e à sutileza do estilo, do que propriamente ao conteúdo teológico sobre o qual escrevem e discutem. Segundo o comentário de Etiènne Gilson, para os dialéticos radicais, a dialética torna-se um instrumento para a impertinência; eles levam sua paixão pela dialética ao ponto de “submeter até o dogma e a revelação às exigências da dedução silogística.” (GILSON, 2007, p. 291). Diferentemente desses dois grupos antagônicos, Anselmo busca o caminho do meio. Duas fontes de conhecimento estão à disposição do homem: a razão e a fé. Contra os dialéticos, santo Anselmo afirma que primeiro é preciso estabelecerse firmemente na fé, e recusa-se, por conseguinte, a submeter as Sagradas Escrituras à dialética. A fé é, para o homem, o dado de que este deve partir. O fato que o homem deve compreender e a realidade que sua razão pode interpretar lhe são fornecidos pela revelação; não Unidade 3 113 Universidade do Sul de Santa Catarina se pode compreender para crer, mas, ao contrário, crê-se para compreender: neque enim quaero intelligere ut credam, sed credo ut intelligam. Numa palavra, a inteligência pressupõe a fé. Mas, inversamente, santo Anselmo toma partido contra os adversários irredutíveis da dialética. Para aquele que primeiro estabeleceu-se firmemente na fé não há inconveniente algum em se esforçar por compreender racionalmente aquilo em que crê. Objetar a esse uso legítimo da razão com o argumento de que os Apóstolos e os Padres já disseram todo o necessário é esquecer, em primeiro lugar, que a verdade é demasiado vasta e profunda para que algum dia os mortais consigam esgotá-la, que os dias do homem estão contados, logo os Padres não puderam dizer tudo o que teriam dito caso tivessem vivido mais tempo e que Deus não cessou e nunca cessará de iluminar sua igreja; é esquecer, sobretudo, que, entre a fé e a visão beatífica a que todos aspiramos, há neste mundo um intermediário, que é a inteligência da fé. Compreender sua fé é aproximar-se da própria visão de Deus. A ordem a observar na busca da verdade é, pois, a seguinte: primeiro crer nos mistérios da fé antes de discuti-los pela razão; depois esforçar-se por compreender aquilo em que se crê. Não dar precedência à fé, como fazem os dialéticos, é presunção; não apelar em seguida para a razão, como nos proíbem os adversários [os místicos], é negligência. (GILSON, 2007, p. 292). Assim, Anselmo aparece como um grande conciliador entre fé e razão, e, embora seus comentadores afirmem que sua obra não é nem uma completa filosofia e nem uma teologia, consideram-no o primeiro escolástico digno deste título. 114 História da Filosofia II Seção 3 – O Pensamento de São Tomás de Aquino Tomás de Aquino nasceu no castelo de Roccasecca, na Sicília, estudou com os beneditinos e com vinte anos aproximadamente ingressou na ordem dos dominicanos. Muito afeito aos estudos, dedicou-se à teologia, estudou com Alberto Magno e, com trinta e quatro anos, obteve amento em teologia na universidade de Paris. A obra que ele deixou é extensa, e, entre os escritos mais conhecidos, estão: Suma Teológica, Súmula Contra os Gentios, Os Princípios, O Ente e a Essência, Questões sobre Figura 3.7 - São Tomás de Aquino a Alma. Pode-se dizer que o trabalho de Tomás de Aquino foi basicamente dedicado à organização do conhecimento teológico medieval. Veja figura 3.7. (1225-1274) Fonte: 28 de janeiro (2010). Além de Carlos Magno, também Platão e Aristóteles exerceram muita influência no pensamento de Tomás, apesar de dominar apenas o latim, o que ele remediou lendo as obras de tradutores pagãos. As questões tratadas por este escolástico não fugiram das questões fundamentais que envolveram os filósofos cristãos durante toda a Idade Média, sendo a principal delas, no aspecto filosófico, a da intervenção da razão para fundamentar verdades da fé. Tomás de Aquino acreditou ser possível, através de argumentos racionais, provar a existência de Deus. Inspirado pelo “motor primeiro” de Aristóteles, ele explica que todas as coisas do universo têm causa, isto é, não existe um efeito sem causa, nem uma coisa que seja causa de si mesma. Ao retroceder no encadeamento da história, encontra-se, finalmente, algo que, não tendo causa, é a causa de si e a primeira causa de todas as coisas do mundo: trata-se de Deus. Apesar de recorrer claramente à argumentação lógica, Tomás de Aquino prioriza a fé, quando afirma que alguns conhecimentos revelados são superiores aos alcançados com o simples Unidade 3 115 Universidade do Sul de Santa Catarina exercício racional. Mesmo não podendo ser demonstrados, são necessariamente verdadeiros, porque provêm da revelação divina. Observe a seguinte passagem do capítulo VIII da Súmula contra os Gentios: Todo efeito possui, a seu modo, certa semelhança com a sua causa, embora o efeito nem sempre atinja a semelhança perfeita com a causa agente. No que concerne ao conhecimento da verdade de fé – verdade que só conhecem à perfeição os que vêem a substância divina – , a razão humana se comporta de certa maneira, que é capaz de recolher a seu favor certas verossimilhanças. Indubitavelmente, estas não são suficientes para fazernos apreender esta verdade de maneira por assim dizer demonstrativa, ou como por si mesma. Todavia é útil que o espírito humano se exercite em tais razões, por mais fracas que sejam, desde que não imaginemos que as possamos compreender ou demonstrar. Com efeito, na área das realidades mais elevadas, já constitui uma alegria muito grande o fato de se poder apreender algo, embora com humildade e com fraqueza. (AQUINO, 1996, p. 145). Assim como Aristóteles, Tomás afirma que tudo o que existe é, simultaneamente, ato e potência: potência, na medida em que passa por um processo contínuo de transformação, podendo engendrar outras coisas; e ato, na medida em que tudo o que existe é alguma coisa, num determinado momento. Assim, por exemplo, uma semente de abacateiro é uma semente em ato, no momento presente, mas é também um abacateiro em potência, porque pode vir a ser um, no futuro. Esta transformação dá-se sempre para cumprir determinadas finalidades e nisso também ele segue Aristóteles, na ideia teleológica, segundo a qual tudo caminha para um fim preestabelecido ao nascimento, pela própria natureza das coisas. Tomás de Aquino compreende o universo como algo ordenado e hierarquizado, em que cada coisa tem uma função e determinado grau de perfeição. Não é por acaso que a semente transforma-se em planta e que esta se transforma em flores e frutos. Tudo o que existe é dirigido a este ser que ordena o universo, visando a um fim último: é Deus. 116 História da Filosofia II O homem, como os outros animais e as plantas, é constituído de corpo e alma. No homem, a alma responde pela razão; e o corpo, pelos sentidos. Destruído o corpo, desaparecem as faculdades sensitivas, permanecendo, no entanto, as que são inerentes à alma, já que ela é imortal. A alma desempenha uma função de grande importância: a obtenção do conhecimento, especialmente aquele que não depende dos órgãos dos sentidos. Outra conseqüência derivante da revelação sobrenatural consiste na eliminação deste vício que é a presunção humana, presunção que constitui a mãe de todos os erros. Certos homens, com efeito, confiam a tal ponto em suas capacidades, que timbram em medir a natureza inteira com o metro de sua inteligência, estimando verdadeiro tudo o que enxergam e falso o que não enxergam. A fim de que o espírito humano, liberto de tal presunção, pudesse conquistar a verdade com modéstia, era necessário que Deus propusesse à sua inteligência certas verdades totalmente inacessíveis à sua razão. (AQUINO, 1996, p. 139-140). Segundo Tomás de Aquino, existem outros conhecimentos além dos revelados. São os obtidos através dos sentidos e organizados pela razão. Num primeiro momento, os sentidos captam os dados do mundo exterior. Num segundo momento, a mente humana abstrai a essência destes dados e organiza os conceitos. Essa explicação foi dada por Boécio, conforme você viu na seção anterior, e não é por acaso, já que ele também dedicou-se ao estudo de Aristóteles. Para compreender se a verdade existe somente no intelecto, ou, antes, nas coisas, Tomás de Aquino faz uso de argumentos que apelam para a evidência de certas verdades. Acompanhe a passagem que segue. Ela faz parte da "Suma Teológica" de Tomás de Aquino (1996, p. 245-248): Unidade 3 117 Universidade do Sul de Santa Catarina Art. I - SE A VERDADE EXISTE SOMENTE NO INTELECTO, OU, ANTES, NAS COISAS O primeiro discute-se assim. – Parece que a verdade não está somente no intelecto, mas antes nas coisas. 1. – Pois Agostinho reprova esta definição de verdade: A verdade é aquilo que é visto; porque, então, as pedras, ocultas no mais profundo seio da terra, não seriam verdadeiras pedras, porque não se vêem. Também reprova esta outra: “A verdade é tal, que é vista pelo sujeito, se quiser e puder conhecê-la”; pois, se assim fosse, nenhuma verdade existiria, se ninguém pudesse conhecê-la. Donde se conclui que a verdade está nas coisas e no intelecto. 2. – Demais. – Tudo o que é verdadeiro o é pela verdade. Se, pois, a verdade existe somente no intelecto, nada será verdadeiro senão na medida em que for inteligido; erro dos antigos filósofos, como se vê em Aristóteles, dizendo ser verdadeiro tudo o que é visto. Donde se segue que os contraditórios são simultaneamente considerados verdadeiros por diversos. 3. – Demais. – A causa de ser uma coisa o que é, é essa coisa ainda em maior grau, como diz Aristóteles. Mas, conforme uma coisa é, ou não é, assim a opinião ou a oração é verdadeira, ou falsa, conforme o Filósofo. Logo, a verdade está mais nas coisas do que no intelecto. Mas, “em contrário”, diz o Filósofo: “O verdadeiro e o falso não estão nas coisas, mas no intelecto”. SOLUÇÃO Assim como o bem designa o termo para o qual tende o apetite, assim a verdade [designa] o termo para o qual tende o intelecto. Ora, a diferença entre o apetite e o intelecto, ou qualquer conhecimento, está em que o conhecimento supõe o objeto conhecido, no conhecente, ao passo que o apetite supõe que o apetente se inclina para a coisa mesma apetecida. E, assim, o termo do apetite, que é o bem, está na coisa apetecível, enquanto o termo do conhecimento, que é a verdade, está no próprio intelecto. Ora, o bem está na coisa, enquanto esta se ordena para o apetite; por isso, a noção da bondade deriva da coisa apetecível para o apetite, sendo, assim, a razão por que chamamos bom ao apetite do bem. Do mesmo modo, a verdade, estando no intelecto, enquanto este 118 História da Filosofia II se conforma com a coisa inteligida, necessariamente a noção da verdade deriva para essa coisa, de maneira que também esta se chama verdadeira, enquanto se ordena, de certo modo, para o intelecto. Ora, a coisa inteligida pode se ordenar para um certo intelecto, ou em si, ou por acidente. Em si, ordena-se para o intelecto do qual o seu ser depende; por acidente, a um intelecto do qual é cognoscível. Como se dissermos que a casa depende, em si, do intelecto do artífice; e, por acidente, é relativa a um intelecto do qual não depende. Ora, julgamos uma coisa fundada não no que nela existe por acidente, mas no que lhe pertence por essência. Por onde, uma coisa é considerada verdadeira, absolutamente falando, quando se ordena para o intelecto, do qual depende. Por isso, são chamadas verdadeiras as coisas artificiais, em ordem ao nosso intelecto; assim, é chamada verdadeira a casa resultante da semelhança da forma, existente na mente do artífice; e verdadeira a oração, enquanto procede do intelecto verdadeiro. Semelhantemente, as coisas naturais chamam-se verdadeiras, enquanto realizam a semelhança das espécies existentes na mente divina; assim, chamamos verdadeira à pedra que realiza a natureza própria da pedra, preexistente no conceito do intelecto divino. Por onde a verdade principalmente existe no intelecto e secundariamente nas coisas, enquanto estas dependem do intelecto, como do princípio. E, por onde, a verdade é conhecida de modos diversos. Assim, Agostinho diz: “A verdade é o meio pelo qual se manifesta aquilo que é”. E Hilário: “A verdade é declarativa e manifestativa do ser”. O que é próprio dela, enquanto existente no intelecto. Mas pertence à verdade da coisa em ordem ao intelecto, a seguinte definição de Agostinho, no mesmo lugar: “A verdade é a suma semelhança do princípio, a qual não tem nenhuma dessemelhança”. E esta definição de Anselmo: “A verdade é a retidão perceptível só da mente”; pois reto é o que concorda com o princípio. E uma outra, de Avicena: “A verdade de uma coisa é a propriedade do ser que lhe foi atribuído”. Quando, porém, dizemos que “a verdade é a adequação da coisa com o intelecto”, essa definição pode convir a um e outro modo. Unidade 3 119 Universidade do Sul de Santa Catarina DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Agostinho refere-se à verdade da coisa; e exclui dessa noção de verdade a comparação com o nosso intelecto. Pois de toda definição se exclui o que lhe é acidental. RESPOSTA À SEGUNDA Os antigos filósofos não diziam que as espécies das coisas naturais procediam de algum intelecto, mas que provinham do acaso. E, por considerarem que a verdade implica relação com o intelecto, viam-se forçados a constituir a verdade das coisas em dependência de nosso intelecto; donde as incongruências assinaladas pelo Filósofo [Aristóteles], no lugar citado. Mas tais incongruências desaparecem, se admitirmos que a verdade das coisas consiste na relação com o intelecto divino. RESPOSTA À TERCEIRA Embora a verdade de nosso intelecto seja causada pela realidade, não é necessário que a noção dela se encontre primeiramente na realidade. Assim como a noção de saúde não se encontra primeiro no remédio que no animal; pois é a virtude, e não a sanidade do remédio, a causa da saúde, que não é um agente unívoco. Semelhantemente, não é a verdade da coisa, mas o seu ser, que causa a verdade do intelecto. Por isso, o Filósofo diz, no lugar citado, que a opinião ou a oração é verdadeira porque a realidade existe, não porque seja verdadeira. Neste fragmento, que requer esforço do leitor para que seja compreendido, você pode ver o exercício realizado por Tomás de Aquino, em que ele aplica o procedimento dialético, o qual caracteriza o que se chama de método escolástico. Trata-se da apresentação de uma hipótese, uma ideia ou uma tese a respeito de um problema. A seguir, apresentação de uma ideia contrária à tese inicial (antítese). Finalmente, a elaboração de uma resposta ou solução para o problema proposto, o que corresponderia à síntese, para o filósofo moderno alemão Hegel. Nesta etapa de estudos, você entrou em contato com as ideias de vários pensadores que viveram entre os séculos VI e XIII, período que compreende uma das fases mais férteis da história do pensamento cristão: a fase em que se deu a Escolástica. Este 120 História da Filosofia II estudo servirá de base para você compreender os motivos pelos quais a Escolástica entrou em crise e deu lugar ao pensamento científico moderno. Então, que tal ir adiante? Síntese Nesta unidade, você estudou que um dos principais pensadores deste período foi Severino Boécio, o qual se dedicou especialmente ao estudo de Aristóteles e foi um personagem polêmico por não declarar sua fé tão insistentemente como gostariam as autoridades eclesiásticas da época. Você estudou, ainda, dois grupos de pensadores que se destacaram por defenderem posições contrárias em relação ao entendimento dos mistérios divinos: os dialéticos, que confiavam na argumentação lógica como via de entendimento do mistério, e os místicos, que defendiam que o mistério deve ser simplesmente aceito. Por fim, estudou o pensamento de Tomás de Aquino, grande dialético e um dos representantes mais importantes da Escolástica. Unidade 3 121 Universidade do Sul de Santa Catarina Atividades de autoavaliação Para praticar os conhecimentos apropriados nesta unidade, realize as atividades seguintes propostas. 1) Na Escolástica, uma das ideias que expressa o sentido do conhecimento verdadeiro, para os místicos em oposição aos dialéticos, propõe que o verdadeiro conhecimento obtém-se pela via da aceitação do mistério pela fé, e não de forma especulativa, pela via do discurso. Com base nestes dados, assinale a afirmação correta. (a) o conhecimento pode ser aceito pela via da argumentação hipotéticodedutiva da lógica aristotélica; (b) a prioridade para o cristão não é compreender o mistério da sagrada escritura, mas vivenciar a verdade divina com fé e humildade; (c) a verdade do conhecimento revelado depende da sua lógica interna ou da sua comprovação material, já que ela está baseada na autoridade de quem a revela; (d) a filosofia não pode ajudar na compreensão da fé porque se perde em palavras e torna a verdade revelada inacessível para os homens simples. 2) Com base na definição do termo Escolástica que você estudou no início desta unidade, responda se é possível chamar os professores atuais de mestres escolásticos e justifique sua resposta. 122 História da Filosofia II Saiba mais Você pode saber mais sobre o assunto estudado nesta unidade, consultando as seguintes referências: AQUINO, Tomás. Súmula teológica. São Paulo: Nova Cultural, 1996. ______. Súmula contra os gentios. São Paulo: Nova Cultural, 1996. BOÉCIO. La consolación de la filosofia. Traducción del latín por Pablo Masa. Buenos Aires: Aguilar, 1955. GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2007. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. Campinas: Atual, 1988. VERGER, Jacques. As universidades na Idade Média. São Paulo: Unesp, 1990. Unidade 3 123 UNIDADE 4 A crise da Escolástica e o nascimento do pensamento moderno Objetivos de aprendizagem Identificar o conjunto de condições indicadoras da crise da Escolástica e de elementos prenunciadores da mentalidade moderna. Compreender as características específicas das principais linhas de pensamento no final da Escolástica. Seções de estudo Seção 1 A Escolástica pós-tomista Seção 2 A Escolástica e o Humanismo Seção 3 A crise da Escolástica e o alvorecer da ciência moderna 4 Universidade do Sul de Santa Catarina Para iniciar o estudo Como já referido, ao iniciar-se o estudo do pensamento e do contexto dos primeiros padres e doutores do Cristianismo, é comum encontrar dois termos: Patrística e Patrologia. Ambos os termos derivam da designação “pais da Igreja”, estudo dos pais da Igreja; por terem sido eles os primeiros teóricos a estruturar a doutrina, a incentivar a fé e a pregar as verdades bíblicas reveladas por Cristo, ou pelo próprio Deus feito homem. Apesar de ambos os termos fazerem referência aos pais da Igreja, comumente utiliza-se o termo Patrologia para designar o estudo da vida, da história e do contexto social desses homens, enquanto o termo Patrística refere-se ao estudo do seu pensamento e da sua obra. Então, a Patrística é o estudo do pensamento dos primeiros padres cristãos, porém o conjunto das obras que fazem parte da Patrística inclui autores cristãos, mas não padres, e até mesmo autores que beiram o paganismo ou o agnosticismo. “AGNOSTICISMO (ingl. Agnosticism; franc. Agnosticisme; al. Agnosticismus). O termo foi cunhado pelo naturalista inglês Thomas Huxley em 1869 (Collected Essays, V, pág. 237 segs.) para indicar a atitude de quem se recusa a admitir soluções daqueles problemas que não podem ser tratados com os métodos da ciência positiva e, particularmente, dos problemas metafísicos e religiosos. O próprio Huxley declarou ter criado o termo ‘como antítese do gnóstico da história da Igreja, o qual pretendia saber muito bem a respeito de coisas que eu ignorava’. O termo foi retomado por Darwin, que se declarou agnóstico em uma carta de 1879. Desde então, o termo foi usado para designar a atitude dos cientistas de diretriz positivista em face do Absoluto, do Infinito, de Deus e dos problemas respectivos, atitude assinalada pela recusa de professar publicamente qualquer opinião sobre tais problemas. Assim, foi dita agnóstica a posição de Spencer que, na primeira parte dos Primeiros princípios (1862), entendeu demonstrar a inacessibilidade da realidade última, isto é, da força misteriosa que se manifesta em todos os fenômenos naturais. O fisiólogo alemão Du-Bois Raymond, em um escrito de 1880, enunciava Sete enigmas do mundo (a origem da matéria e da vida; a origem do movimento; 126 História da Filosofia II ‘o surgir da vida; a ordenação finalista da natureza; o surgir da sensibilidade e da consciência; o pensamento racional e a origem da linguagem; a liberdade do querer) em face dos quais ele julgava que o homem estivesse destinado a pronunciar um ignorabimus, já que a ciência não poderá nunca resolvê-los. No mesmo período, a palavra foi estendida para designar também a doutrina de Kant, enquanto esta reputa o nôumeno ou a coisa em si além dos limites do conhecimento humano (v. NÔUMENO). Mas essa extensão da palavra não pode dizer-se de todo legítima, dada a concepção kantiana de nôumeno como conceito-limite. Faz parte integrante da noção de A, a redução do objeto da religião a simples mistério a respeito do qual os símbolos que se usam para interpretá-lo permanecem de todo inadequados.” (ABBGNANO, 1962, p. 21). Seção 1 – A Escolática pós-tomista O século XIV não apresentou a mesma pujança do século anterior, quando, como você já viu, estruturas que apontam para o Renascimento dão seus primeiros passos. Um processo de crescimento, iniciado na passagem dos séculos XI ao início do XIV, entra em colapso no século XIV. Alguns dos fatores indicados pelos historiadores para esta crise são a Peste Negra, que reduz significativamente a população e, consequentemente, a mão-de-obra: em uma sociedade de base agrícola, mesmo que com vários avanços tecnológicos importantes para este sistema, mão-de-obra vasta é fundamental; a Guerra dos 100 anos, entre franceses e ingleses, mais um fato que reduz a população; e as revoltas populares, decorrentes, muitas vezes, dos fatores anteriores, pois, ao verem reduzir a sua parte na produção, os senhores feudais aumentam tributos, o que deixa as classes subalternas ainda mais atarefadas e empobrecidas. Como aponta Sevcenko (1988, p. 6.), tal crise tem sido denominada de Crise do Feudalismo. Tal denominação faz com que possamos estabelecer pontes com a própria crise da Escolástica. Unidade 4 127 Universidade do Sul de Santa Catarina Franco Alessio (apud LE GOFF; SCHMITT, 2002, p. 367-382) mostra a ligação entre as universidades e a Escolástica e, ainda, como é difícil pensar em uma unidade desta última, indicando, mesmo, que há mais de uma Escolástica. “A escolástica não é unitária, decompõe-se em quatro escolásticas distintas e independentes: filosófica, jurídica, médica e teológica. A escolástica é, pois, plural, e sua história é quádrupla.” (Idem, p. 370). Tal unidade poderia ser pensada mais a partir da Filosofia e, propriamente, de um procedimento metodológico baseado, sobretudo, na lógica aristotélica. Trata-se, como foi visto, do procedimento de análise textual. Se há uma unidade da escolástica, ela reside inteiramente no método, na invariabilidade das regras e das técnicas que observa o escolástico quando comenta os textos canônicos. Aqui, o aporte decisivo provém menos da doutrina (física, ética, metafísica, biológica) de Aristóteles do que de sua “lógica”. É do Organon que a escolástica retira a técnica lógico-lingüística que lhe permite organizar seu comentário. Técnica que permanece a mesma em teologia, em direito e em medicina, que é aprendida na faculdade de artes, mas impõe-se em todas as outras faculdades. Portanto é a maneira de proceder que fornece a unidade ideal da escolástica. Por sua vez, esse método não consiste somente numa técnica formal, mas comporta também um princípio diretor, o “princípio de autoridade”. Princípio que foi herdado pela escolástica de épocas muito antigas, que eram menos ricas em livros, e só a importância que esse princípio adquire para ela pode levar a crer que o tivesse formulado. Ele impõe uma submissão deferente a textos quase sacralizados, que garantem por si próprios que são portadores da verdade: reflete, no interior do saber, a visão tipicamente cristã segundo a qual a chave da salvação está contida no Livro que garante por si mesmo sua própria verdade. O saber profano aparece como encarnado, ele também, em livros que garantem por si mesmos sua própria verdade: a tradição que transmitem veicula saberes prestigiosos por si mesmos, que se impõem como valores. É precisamente isto que leva a fazer do escolástico essencialmente um comentador. (Idem, p. 371). 128 História da Filosofia II O que se pode observar é que a inserção de Aristóteles no ambiente cristão já prenuncia a crise desta mentalidade. O gosto pelas disputas salienta as divergências e o impasse entre a tradição e o novo (moderno). Mesmo o monumental trabalho de São Tomás de Aquino em conciliar cristianismo e aristotelismo não tem reconhecimento imediato. Conforme salientam Inácio e De Lucas (1994, p. 78-79.), franciscanos e teólogos tradicionais tomavam-no como revolucionário em demasia, reprovando-o por introduzir a sinistra figura de Aristóteles e seus comentadores, particularmente os de origem árabes -- representantes de uma cultura filosófico-religiosa, a islâmica, que, ao mesmo que se toma se quer expulsar, basta lembrar as Cruzadas -- ; outros, mais extremados, consideraram que São Tomás de Aquino ficou no meio do caminho, pois não abraçou plenamente o aristotelismo. Quando é reconhecido e passa a compor a ortodoxia da Igreja Cristã, o intento de São Tomás de Aquino torna-se um sistema rígido e mecânico. Assim, como dizem Inácio e De Lucas (1994, p. 79.), “[...] havia sido, em certa medida, amesquinhado em sua forma criadora e libertadora.” Chegando ao final do século XIII, além do tomismo, são a tradição agostiniana e o averroísmo latino que tentam orientar, como doutrinas, o pensamento medieval. Contudo, mesmo internamente a estas tradições, temos variados matizes, com suas questões e recursos a tão variadas autoridades, que, ao iniciar um debate, vemos insaciáveis querelas. Tal situação gera uma leva de pensadores “independentes”, que apresentam sistemas de ideias mais pessoais. Muitos destes, como você verá mais a frente, são de Oxford, e acentuam a tonalidade “empirista” assim como prenunciam o espírito científico da modernidade. Há, ainda, o aparecimento dos primeiros representantes do humanismo que marcará o pensamento renascentista. Antes de falar destes pensadores, vejamos o contexto em que se insere a crítica ao tomismo. Unidade 4 129 Universidade do Sul de Santa Catarina A crise da mentalidade cristã, conforme assinala Abraão (1999, p. 119-220), também é marcada por outras transformações que ocorreram no século XIV. A autonomia de certas cidades e o surgimento de monarquias que mais tarde se transformariam em Estados nacionais centralizados, fundaram os germes do Estado Moderno. O Sacro Império Romano-Germânico é enfraquecido pelos sucessivos conflitos com o papado. Este, por sua vez, passa a disputar a hegemonia com os monarcas e organiza-se como uma espécie de Estado monárquico supranacional. É desse período o cisma do Ocidente, onde o poder papal ficou dividido entre Avignon e Roma, aos quais se juntaria, depois, um terceiro. Para pôr fim neste cisma, é realizado o Concílio de Constança de 1414 até 1418. Todavia, se agora há apenas um pontífice, este passa a ter seu poder reduzido pelo concílio dos bispos. É deste período também o ingresso das ordens mendicantes, franciscanos e dominicanos, na universidade, que tinha como objetivo a manutenção da ortodoxia católica. Santo Tomás deve ser entendido a partir desse contexto. A doutrina desse dominicano desenvolver-se-á como um ataque aos averroístas. Todavia, o aristotelismo de Santo Tomás também seria motivo de crítica pelo franciscano São Boaventura (1221-1274). Ainda, pautando-se na fala de Abraão, cabe lembrar que as ordens mendicantes dos dominicanos e dos franciscanos ingressam nas universidades sob a autorização do papa, com o objetivo de retomada do controle, por parte do papado, protegendo a ortodoxia dos “dialéticos”. Tais ordens acabam, de formas diferentes, constituindo-se matizes da Escolástica como tão bem esclarece esta passagem de Alessio (apud LE GOFF; SCHMITT, 2002, p. 374-375): O mestre dominicano pertence a uma ordem originalmente constituída para pregar a ortodoxia em regiões heréticas: uma tal ordem dá aos monges armas doutrinais e os destina ao combate doutrinal contra o erro. O mestre dominicano é, portanto, escolástico por vocação, e seu estatuto de escolástico não modifica seu “estado” (habitus) de regular. Ao contrário, o encontro 130 História da Filosofia II entre o pensamento franciscano e a escolástica, quando ocorre, é quase a contragosto: enquanto tal, o saber (doutrina) mantém-se sempre como um luxo supérfluo, uma “ciência inflada” (scientia inflans). O franciscano não é espontaneamente um escolástico, e, na escolástica, seus valores são mais criticados e ameaçados do que reafirmados. Enquanto mestre, ele elabora uma doutrina que é mais do que uma escolástica, embora permanecendo o menos escolástica possível. Por outro lado, sendo mais sensível à persistência de certos costumes do que ao desvio doutrinário, ele exalta, sobretudo, os valores da alma cristã, contrapondo-os frontalmente aos costumes neopagãos que, a seus olhos, identificam-se com a recusa do sobrenatural que se insinua entre os escolásticos por causa dos mestres averroístas. Partindo de Ferrater Mora (2000, p. 327-329), temos que São Boaventura nasceu em Bagnoregio (Balneoregium), perto de Viterbo, na Toscana, de nome João Fidanza. Na ordem franciscana, ingressou em 1238, sendo nomeado, por volta de 1257, vigário geral. “Estudou em Paris sob o magistério de Alexandre de Hales e lecionou na mesma universidade, de 1248 a 1255. Em 1273, foi nomeado cardeal.” Seu pensamento é visto, predominantemente, como de base agostiniana, embora nem todos os seus comentadores concordem com isso. Sua preocupação central era mostrar como conduzir a alma a Deus, ou seja, procurava estabelecer um itinerário da alma a Deus. Entretanto, não retira de seu pensamento o falar sobre a filosofia e sua natureza. Para o franciscano, a diferença fundamental entre filosofia e teologia consiste no fato de a primeira começar do ponto em que, no máximo, a filosofia termina. Esta diferença, entretanto, não significa, necessariamente, incompatibilidade entre filosofia e teologia: diz, apenas, que se tratam de vias diferentes. Essa busca de conduzir a alma a Deus é dada pela iluminação divina, ou seja, a fé. Mas, e como fica a razão neste caminho? Unidade 4 131 Universidade do Sul de Santa Catarina A ela resta buscar, encontrar no mundo sensível -- mundo das criaturas de Deus -- os [...] vestígios, imagens, sinais ou signos das ideias perfeitas, que são o próprio conhecimento de Deus. Não se trata de conhecer o que as coisas são, mas apenas o que elas significam e representam, como imagem e semelhança dessa imensa sabedoria divina.” (ABRAÃO, 1999, p. 121). Gilson (1995, p. 548.) aponta três etapas do movimento de ascensão: vestígios de Deus no mundo sensível; busca da imagem de Deus em nossa alma; por fim, a superação das coisas criadas que “[...] nos introduz nas alegrias místicas do conhecimento e da adoração de Deus”. São Boaventura representa muito bem, como salienta Gilson (2003, p.443,), a síntese do homem e do espírito medieval, ardor místico e força especulativa, num complemento harmonioso entre “unção” e “especulação”. Outro representante franciscano que percorre um caminho diferente do de São Tomás de Aquino foi o catalão Raimundo Lúlio (c. 1233-1315). Suas ideias tiveram por objetivo converter os muçulmanos e, para isto, vive em terras conquistadas por árabes. Para tanto, não lhe é suficiente a verdade da fé, mas necessita dos meios racionais para demonstrá-la. Uma parte de sua atividade literária é orientada para esse fim, como fora o caso da Summa contra Gentiles de santo Tomás; mas o método de Lulo, consignado em sua Grande Arte, é bem diferente, constatando que a lógica aristotélica, excelente para demonstrar, é impotente para inventar, vangloria-se de constituir uma ars inveniendi pela combinação, variada ao infinito, dos diferentes conceitos; vai mesmo materializar esse método através de um verdadeiro jogo de figuras e símbolos cujo manejo deve conduzir todo homem -- e especialmente os muçulmanos -- às grandes verdades cristãs. Essa álgebra teológica iria despertar, nos séculos seguintes, ora zombaria, ora interesse. De resto, Raimundo Lulo, poeta e místico, adquiriu nesses dois domínios tít ulos de glória menos incertos. (PEPIN, 1983, p. 160-161). 132 História da Filosofia II Lúlio morreu martirizado pelos muçulmanos. Os tempos conturbados, a retomada de certos aspectos do platonismo e uma preocupação com a observação da natureza remetem a possíveis analogias como o humanismo renascentista. Eis o caminho a ser tomado na sequência. Seção 2 – A Escolástica e o Humanismo A retomada de Platão para se opor a certos aspectos do aristotelismo, mesmo que ainda de forma mitigada, anuncia uma estratégia utilizada pelo humanismo renascentista. Mas, antes de visualizarmos rapidamente de que forma podemos encontrar nos pensadores medievais do final da Escolástica aspectos que apontam para este humanismo, retomemos o que foi estudado em Antropologia Filosófica para localizar o humanismo. Segundo Sevcenko (1988, p. 14), os mais significativos pensadores renascentistas são denominados humanitas (humanistas). Eles realizavam o studia humanitatis, isto é, estudos humanísticos, o que equivalia à atualização, dinamização e revitalização dos estudos tradicionais que incluíam a “poesia, a filosofia, a história, a matemática e a eloquência, disciplina esta resultante da fusão entre retórica e a filosofia.” Estes pensadores estavam empenhados na reforma educacional e na aprendizagem das línguas clássicas. Os mesmos suscitaram os estudos a partir dos textos “originais”, geralmente em latim e grego, abdicando à autoridade dos sábios e dos manuais medievais ou dos exegetas da tradição teológica. Eles buscavam a reforma da tradição medieval e o exercício de um espírito livre que engendrasse as bases de uma nova mentalidade: a moderna. O humanismo representou o olhar do homem sobre ele mesmo, o estudo do que caracteriza sua própria humanidade. Unidade 4 133 Universidade do Sul de Santa Catarina Este olhar sobre si mesmo levou à preocupação com a instrução e formação das novas gerações, a fim de promover o aprimoramento desta humanidade -- propósito que era conflitante com as preocupações da Escolástica, pelo menos desta Escolástica dogmática, que, como foi visto anteriormente, virou mero recurso de uma ortodoxia. Lembre a reforma de Lutero, que, apesar de não incentivar o abandono da Igreja e de reforçar a obediência às autoridades de modo geral, investe contra os abusos das autoridades eclesiásticas e acaba enfraquecendo a Igreja que, por sua vez, reage com a Contra-Reforma. De qualquer modo, o humanismo forçou as autoridades eclesiásticas a renovar o ensino no sentido de absorver parcialmente a nova visão de mundo, em que a relação entre homem e natureza seria mediada pela razão. Na apresentação do pensamento de Bacon, Inácio e De Lucas parecem indicar a necessidade de reforma da Igreja e um espírito experimentalista. Veja o que dizem estas autoras: Para Bacon, a cidade terrestre deveria ser absorvida pe la Igreja, constituindo uma “República cristã” fundada, organizada e mantida por uma sabedoria espiritual distribuída pelos clérigos. Tal sabedoria era a teologia, à qual a filosofia deve estar inteiramente subordinada, da mesma forma que o direito civil deve subordinarse ao canônico. Para tanto era necessária uma reforma intelectual e moral, uma reforma de costumes dos clérigos, da organização eclesiástica e do ensino teológico. A doutrina de Bacon só pode ser compreendida no con texto de sua teoria da iluminação, que explica a unicidade da sabedoria e o privilégio atribuído aos cristãos, beneficiários da revelação divina; e de sua teoria da ciência, cujo autêntico valor acha-se em sua utilidade: a ciência é para a salvação. Sob a doutrina da iluminação, podemos já reconhecer em Bacon como ideal da ciência “o repouso do espírito ante a contemplação da verdade”. (INÁCIO; DE LUCAS, 1994, p. 63). No século XIV, vários pensadores se envolvem na luta contra o poder papal, entre eles Guilherme de Ockham. Para ele, “[...] um todo não é outra coisa senão os seus elementos. Como a relação não é uma coisa concreta, real, as relações que os membros de um corpo social contraem com seu rei ou entre si não convertem o seu conjunto em uma coisa numericamente una.” Assim, suas ideias políticas eram 134 História da Filosofia II uma reação contra o imperialismo papal, colocando no centro o problema dos direitos dos súditos frente aos governantes e afirmando o direito de uma minoria a reagir contra a coação. Figura 4.1 - Imagem de Guilherme de Ockham Fonte: Apresentação (2006). Na luta entre o Império e o Papado, Ockham tomou de cididamente a defesa do primeiro, negando que o poder do imperador derivasse em algum sentido do Papa, que a cerimônia da coroação contribuísse de alguma forma para a legitimidade de sua autoridade e que fosse necessária a confirmação pontifícia de uma eleição imperial. O poder do imperador derivava exclusivamente da eleição, ou seja, do consentimento do conjunto de seus súditos expresso pelo colégio de eleitores que falava em nome. O mesmo ocorria por sua vez com qualquer poder régio, inclusive o papa1. Fiel à “doutrina das duas espadas”, embora Ockham a compreendesse de um modo mais radical, o pensamento político ockhamista representava a supremacia do poder papal como verdadeira heresia dentro do cristianismo, uma inovação desastrosa que encheu a Europa de discórdias, destruiu a liberdade cristã e conduziu à invasão discricionária dos direitos dos governantes seculares. (Idem, p. 84). Para Ockham, conforme Inácio e De Lucas, Deus, por sua condição de transcendente, infinitamente remoto, incompreensível e inimaginável, não tem nada a fazer quanto aos acordos humanos. Sua posição lembra o relativismo sofístico, por indicar que, quanto às relações humanas, só temos convenções e mesmo a possibilidade de Unidade 4 135 Universidade do Sul de Santa Catarina dar conta do conhecimento, como retomaremos mais a frente, é mera suposição. Note que esta aproximação, este lembrar a sofística, pode ser mais um argumento para aproximar certos aspectos das ideias de Ockham do humanismo renascentista. Para Ockham, “[...] parte da teologia mais tradicional e conservadora não passava de ficção: Deus enganara os teólogos com um jogo de palavras cuja interpretação não era segura, pois os homens decidiram, eles mesmos, quando pensavam de outra maneira.” (Idem, p. 85). Ockham defende um humanismo individualista. Para ele, cada coisa é individual, sendo a totalidade a reunião destas individualidades. Partindo da noção de que Deus é livre, considera que o homem é livre e que cada singularidade confronta-se com a outra na convivência social. Estas ideias da autonomia do crente face à autoridade papal e seu humanismo individualista chegaram, por meio do neo-ockhanista Gabriel Biel, a Lutero. Note que ainda se trata de uma interpretação da passagem bíblica que diz ter sido o homem criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26-27). Tal passagem, ao ser colocada frente a outras que recomendam não fabricar e não adorar imagens do divino (Dt 5, 8; Ps 96. 7 e Jr 10, 11, entre outras) como também frente àquelas que dizem ser Deus incognoscível, produziram inúmeras disputas de ordem estético-religiosa ao longo do percurso da mentalidade cristã: a disputa entre iconoclastas (contrários ao uso de imagens na representação do divino) e filoclastas (favoráveis ao uso da imagem para a propagação da palavra de deus e dos atos santos), por exemplo. 136 História da Filosofia II Seção 3 – A crise da Escolástica e o alvorecer da ciência moderna Como foi apontado anteriormente, podemos encontrar, em Oxford, as origens do empirismo inglês. Evidentemente, não se trata do empirismo propriamente dito, mas de uma tendência à observação, ao mundo sensível. Para Inácio e De Lucas (1994, p. 58.), os franciscanos Robert Grossteste (c. 1175-1253) e seu discípulo Roger Bacon (1214-1294) apenas incorporam certos aspectos da nova filosofia, a de raiz aristotélica, “[...] à antiga tradição inglesa onde, desde Beda, o platonismo mesclava-se com um absorvente interesse pelo mundo sensível”. Talvez pelo afastamento do continente, tanto histórica como geograficamente, e das ideias por lá (pela Europa continental) estabelecidas, tenham estes pensadores construído formulações mais ousadas. Certamente, esses pensadores marcam ainda os diversos caminhos da Escolástica, antes da grande sistematização tomista: basta observar que alguns livros de História da Filosofia Medieval apresentam-nos antes de São Tomás de Aquino. Optou-se por colocá-los neste tópico, por apontarem, desde cedo, para o espírito científico, que, no Renascimento, junto como o humanismo, lançará, talvez, as últimas pás de cal na mentalidade medieval. Grosseteste, um erudito, profundo conhecedor do grego, toma a noção de luz divina e investe em pesquisas sobre a óptica, estendendo-as a toda a natureza e aplicando a matemática no lugar das deduções lógicas. Segundo Inácio e de Lucas (1994, p. 59), o franciscano parte de um princípio aristotélico, a saber, “um sentido a menos é uma ciência a menos”, para enfatizar a importância do mundo sensível para a aquisição do conhecimento. Seguindo, entretanto, uma linha platônica, considera que o pecado original obscureceu a alma humana, incapacitando-a Unidade 4 137 Universidade do Sul de Santa Catarina [...] de conhecer por uma simples iluminação vinda de Deus; sua ciência começa pelos sentidos, que lhe proporcionam a oportunidade de extrair de si mesma, por procedimentos adequados, seu conhecimento das coisas.” (Idem, p. 59) Tal iluminação é, também, o princípio fundamental para o desenvolvimento da arquitetura gótica, que tem em seus vitrais e em suas colunas cada vez mais pontiagudas os elementos mais característicos. As grandes catedrais, igrejas próprias dos bispos (cathedra = trono episcopal), do final do século XIII e início do século XIII, foram quase sempre concebidas numa escala tão imponente e arrojada que poucas, se algumas porventura houve, foram completadas exatamente como o projeto. Apesar disso, porém, e depois das numerosas alterações que sofreram com o tempo, continua sendo uma experiência inesquecível entrar nesses vastos interiores, cujas dimensões parecem apequenar tudo o que é tão-somente humano e trivial. É difícil imaginar a impressão que esses edifícios devem ter causado àqueles que só tinham conhecido as pesadas e sombrias estruturas do estilo romântico. Aquelas igrejas mais antigas, em sua força e poder, talvez transmitissem algo da “igreja militante” que oferecia abrigo e proteção contra as investidas do mal. As novas catedrais propiciavam aos fiéis o vislumbre de um mundo diferente. Eles teriam ouvido falar, em sermões e cânticos, da Jerusalém celestial com seus portões de pérolas, suas jóias de incalculável preço, suas ruas de ouro puro e cristal transparente (Apocalipse, XXI). Essa visão tinha descido agora do céu à Terra. As paredes das novas igrejas não eram frias nem assustavam. Eram formadas de vitrais polícromos que refulgiam como rubis e esmeraldas. Os pilares, nervuras e rendilhados despendiam cintilações douradas. Tudo o que era pesado, terreno ou trivial fora eliminado. Os fiéis que se entregavam à contemplação de tanta beleza podiam sentir que estavam mais próximos de entender os mistérios de um reino afastado do alcance da matéria.” (GOMBRICH, 1993, p. 140-141). 138 História da Filosofia II Perceba na explicação dada por Inácio e de Lucas (1994, p. 59) como não é difícil encontrar certos parentescos com aquilo que, de forma mais básica, é tomado como método científico: Seu contato com as obras de Aristóteles e com os escritos árabes estimulou-o a refletir sobre a natureza da pesquisa científica: a ciência começou com a experiência dos fenômenos pelo homem e sua finalidade era descobrir as razões para a experiência, encontrar suas causas. Tendo descoberto os “agentes causais”, estes deveriam ser organizados, separando-os em suas partes ou princípios componentes. A seguir, o Figura 4.2 - Perspectiva da nave central da fenômeno observado deveria ser reconstruído Catedral de Amiens segundo esses princípios, com base em uma Fonte: A estrutura... (2005). hipótese que deveria ela mesma ser testada pela observação. Se várias hipóteses se apresentassem como prováveis, dever-se-ia realizar experiências que demonstrassem com clareza qual delas era verdadeira. Era necessário ter sempre em mente dois princípios fundamentais: “as coisas de igual natureza produzem iguais operações segundo sua natureza” e “a natureza atua segundo o caminho mais curto possível”. E mais, como platônico, Grosseteste considerava de grande importância a matemática, dizendo mesmo que “todas as causas dos efeitos naturais devem ser expressas por meio de linhas, ângulos e figuras” (apud INÁCIO; DE LUCAS, p. 60). Tal enunciado está muito próximo do que mais tarde dirá Galileu (1564-1642): “A natureza é um livro escrito em linguagem geométrica; para compreendê-la é necessário apenas aprender a ler esta linguagem.” (apud MARCONDES, 1998 p. 152). O estudo da óptica compõe uma das partes centrais de suas investigações, compreendendo a natureza das lentes e a forma de utilizá-las. Estudou, também, o fenômeno do arco-íris, a reflexão e a refração da luz. Dos tratados árabes sobre óptica, soube extrair dados para uma cosmogonia original: um ponto de luz criado por Deus se teria difundido até formar uma esfera de raio finito; ao chegar Unidade 4 139 Universidade do Sul de Santa Catarina ao limite de seu poder de difusão a luz determinou então o firmamento, limite do mundo, que por sua vez reenv iou uma luz que engendrou as esferas celestes e a dos elementos. Assim, a luz -- substância física -- propagou-se a partir de sua fonte inicial, dando origem às três dimensões do espaço. (INÁCIO; DE LUCAS, p. 60). Cabe ainda reforçar que tal entendimento, embora aponte para a ciência experimental, não pode ser separado, ainda, de uma visão religiosa. Como indica Ferrater Mora (2000, p. 2544), tal luz não é apenas algo da ordem do mundo físico, ou seja, não tem apenas propriedades geométricas, trata-se de uma “claridade espiritual”, na ordem do conhecimento, propiciadora do conhecimento. “E, na ordem do divino, pode-se dizer, inclusive, como em Jó 1,1, que constitui a fonte da verdade.” (Idem). Mesmo assim, a passagem de uma formulação mítico-religiosa para uma científico-racional pode ser, muitos autores hoje defendem isto, vista como certa continuidade. Para reforçar tal afirmação, esses autores lembram que os pais de certas áreas da ciência moderna foram, na realidade, alquimistas. Um bom exemplo disto é o pai da farmacologia, Paracelso. Segundo Abraão (1999, p. 121), a expressão scientia experimentalis (ciência experimental) teria sido formulada pela primeira vez por Roger Bacon, discípulo de Grosseteste. Para Bacon, “[...] as provas da experiência constituem a melhor forma de conhecimento -- motivo pelo qual é considerado precursor da ciência moderna” (Idem). Bacon deu continuidade às pesquisas e às teses de seu mestre, como pode comprovar a citação abaixo: Se se examinarem letras ou pequenos objetos por meio de uma “lente” de vidro, de cristal ou de qualquer outra matéria transparente colocada por cima das letras, se essa lente tiver uma forma muito ligeiramente esférica, se a face convexa estiver virada para o lado do olho e o olho estiver diante do vazio, ver-se-ão então muito melhor as letras, que aparecerão maiores [...] [...] poderemos igualmente conseguir que o Sol, a Lua e as estrelas pareçam aproximar-se e descer até nós. (OPUS MAIUS apud INÁCIO; DE LUCAS, p. 61). 140 História da Filosofia II Indo mais além, descreveu, com minúcias, a anatomia do olho de diversos vertebrados, superando as descrições existentes em sua época. Diferentemente dos pensadores de Paris, Bacon não vê na dialética um papel predominante, mesmo que útil. Para ele, fazer ciência era “[...] examinar os fenômenos, captar sua lei numérica ou geométrica e, além disso, provocá-los ou fazêlos variar, servindo-se da habilidade manual e do engenho. Construiu, assim, uma metodologia da “ciência experimental”, termo que talvez tenha sido o primeiro a utilizar.” (INÁCIO; DE LUCAS, p. 62). Desta forma, ele sugere que o raciocínio não é suficiente, necessitando da “ciência experimental”. Contudo, esta ocupa “[...] o último lugar de uma lista que compreendia a física: geral, a perspectiva, a astronomia, a ciência dos pesos, a alquimia e a medicina. Não era encarada como um método geral, mas enquanto uma especialidade; seu objeto, porém, não era particular e sua função era prolongar e aperfeiçoar as demais ciências da natureza.” (Idem) Bacon apesar de ter sido condenado à prisão por exercitar sua scientia experimentalis, não considerava esta contrária à fé, entendendo que esta “[...] complementa, na esfera dos segredos das coisas materiais, os segredos das coisas espirituais revelados pela iluminação divina.” (ABRAÃO, 1999, p. 122). Como você pode perceber, Grosseteste e Bacon são bons exemplos de que a Idade Média não foi apenas o período de obscurantismo e misticismo, pelo contrário, apesar de tantas condições adversas também foi possível construir, com originalidade, uma física com método preciso, tenaz, com uma hipótese cosmológica fundamental. Viam a abstração silogística escolástica insuficiente para a compreensão das coisas. Mesmo sendo tributários do experimento e da razão, consideravam que a ciência ainda destinava-se ao serviço da fé, conforme salienta Abraão. Mas, sempre crescentemente, a unidade entre fé e razão vai sendo minada, aumentando a crise da Escolástica e a desconfiança na razão. Isto fica bem claro nas ideias de John Duns Scot e Guilherme de Ockham. Unidade 4 Duns Scot (ou Scotus, isto é, escocês) nasceu por volta de 1266 e morreu em 1308. O franciscano, que foi professor em Oxford e Paris, recebeu o título de doctor subtilis (doutor sutil). Tal título indica o difícil acesso a seu pensamento. 141 Universidade do Sul de Santa Catarina Como salientam Inácio e De Lucas (1994, p. 81), ao propor sua teoria do conhecimento, teve um importante papel no divórcio entre filosofia e teologia. Para ele, as discussões sobre o ser não podem partir do mundo sensível e depois abstraí-lo. Tal posicionamento é uma nítida crítica ao aristotelismo tomista, que procurou demonstrar a existência de Deus partindo dos sentidos, reduzindo, segundo Scot, Deus, meramente, à causa primeira. Considerar o ser como ser equivale a deduzir as propriedades que lhe são intrínsecas, sem nenhum recurso aos sentidos. Nessa análise, Duns Scot chega a uma série de pares dos modos do ser, que constituem a sua essência: finito e infinito, possível e necessário, e assim por diante. Examinando detidamente cada uma dessas propriedades, Duns Scot demonstra uma série de atributos de Deus – perfeição, inteligência, infinitude, causa primeira e final de todas as criaturas --, entre os quais a sua própria existência. Ele, no entanto, não considera essa uma demonstração no sentido rigoroso da palavra. Acredita que demonstrar é deduzir da causa o efeito, isto é, partir de Deus para o ser, e não o que a filosofia é capaz de fazer, partindo do efeito (ser) para chegar à causa (Deus). Além disso, essa “falsa” demonstração só se refere a Deus enquanto ser, não a Deus enquanto Deus. Isso significa que uma série de atributos que o cristianismo associa a Deus, como a providência e a misericórdia, é inacessível à razão, é indemonstrável. Do mesmo modo, é insondável a vontade divina, que, por um ato absolutamente livre, criou o mundo. Para Duns Scot, a supremacia dessa vontade é total. Deus não criou o mundo de maneira ordenada; se a ordem existe no mundo, é porque Deus o criou; Deus não fez as coisas boas e justas, mas elas são boas e justas porque são criaturas de Deus. Por tudo isso, qualquer demonstração da existência de Deus e de seus atributos é relativa e, no limite, vã. Nessa medida, é ilusória a tentativa de construir a teologia como ciência. Para Duns Scot, a teologia apenas estabelece as normas de conduta do fiel, e a razão deve abandonar a presunção de desvendar os mistérios de Deus, que são objeto da fé. (ABRAÃO, 1999, p. 122-123). Duns Scot também apresenta sua posição em relação a um debate célebre na Idade Média, a saber, a questão dos universais. 142 História da Filosofia II Você pode estar se perguntando: o que são os universais? De uma forma simples, pode-se dizer que eles correspondem àquilo que chamamos conceito. Assim, tal debate procura responder se os universais, os conceitos, são reais ou não, se são meras convenções ou essências supra-sensíveis; qual a relação entre esses e as coisas particulares. Para refrescar sua memória e apresentar resumidamente as diferentes possibilidades dos universais, leia o fragmento a seguir: Basicamente temos quatro grandes linhas de tratamento desse tema. As mais tradicionais são o realismo platônico e o realismo aristotélico, adotadas pelos seguidores desses filósofos. Segundo o realismo platônico, gêneros e espécies (tais como “animal mamífero” e “cavalo”) seriam formas ou ideias, portanto entidades dotadas de uma existência autônoma, pertencentes ao mundo das ideias e independentes tanto das coisas concretas (“este cavalo”) quanto de nossos pensamentos (“o conceito de cavalo”). Para o realismo aristotélico, posição adotada, por exemplo, por são Tomás de Aquino, gêneros e espécies existem nas coisas, como formas da substância individual, e podem ser conhecidos por nós através da abstração, em que destacamos do particular o universal, isto é, percebemos que este indivíduo é um cavalo, um animal mamífero, etc. O conceitualismo foi desenvolvido, sobretudo, por Pedro Abelardo (l079-1142), em sua Lógica para principiantes, onde sustenta que os universais são apenas conceitos, ou seja, predicados de sentenças que descrevem o objeto (‘’Isto é um cavalo’’), existindo, portanto, na mente como meio de unir ou relacionar objetos particulares dotados das mesmas características ou qualidades. (MARCONDES, 1998, p. 132). Há ainda a tese nominalista que considera, numa posição mais extremada, serem os universais, conceitos apenas emitidos como sons, não tendo nem existência real nem participação nas coisas. Mais a frente, o nominalismo será retomado quando da apresentação das ideias de Guilherme de Ockham (c. 1300-1350). Inácio e De Lucas (1994, p. 81-82) esclarecem resumidamente a posição de Duns Scot e suas implicações quanto a este tema. Unidade 4 143 Universidade do Sul de Santa Catarina À distinção real entre essência e existência atribuída por Tomás de Aquino, Duns Scot reafirmava o princípio tradicional da unidade do ser, utilizando-o, porém, para uma conclusão em tudo original: se é certo que a unidade acompanha o ser, então cada grau do ser possui também uma unidade real correspondente, existindo, portanto, em todo ser concreto e singular, uma multiplicidade de “aspectos reais” inseparados e inseparáveis, uma vez que compõem um único indivíduo. Por outro lado, a aplicação de semelhante tese à teoria do conhecimento tinha profundas implicações. O tomismo restringia a possibilidade de conhecimento ao domínio das essências universais que determinam todos os seres individuais, e admitia a abstração como único modo de conhecimento. Duns Scot, entretanto, ao afirmar que a essência contém tanto o universal quanto o individual e que, portanto, o real não poderia ser entendido nem como universalidade pura (pois se fragmenta em indivíduos), nem como pura individualidade (pois comporta ideias gerais), colocava ao lado do conhecimento abstrativo, o intuitivo. Desta maneira, enquanto a abstração permitiria à inteligência captar as essências universais, a intuição conduziria à apreensão do ser existente enquanto fenômeno singular, concreto e individual. Também nas relações entre fé e razão, Scot assumiu uma postura particular: afirmando a primazia da vontade sobre a inteligência, sustentava que as verdades da fé não poderiam ser compreendidas ou demonstradas pela razão, mas apoiavam-se exclusivamente na Revelação. Reclamava para a metafísica a função de verdadeira ciência do ser e de suas propriedades, responsável pela elaboração dos conceitos de que a teologia -- disciplina prática -- necessitava para expressar os conteúdos da fé. A teologia; por seu lado, não comportava qualquer fundamento racional e logo toda especulação sobre a essência de Deus deveria ser unicamente metafísica, o que liberava a filosofia das preocupações transcendentais. Assim, a filosofia estava definitivamente liberta da teologia, abrindo-se espaço para uma ciência que teria como objeto primeiro o particular e o imediato. Voltando à questão dos universais, focamos novamente em Guilherme de Ockham. Como nominalista, ele considerava que os universais não tinham existência e as palavras eram meras convenções, apenas signos (ou significações), ou seja, substitutos de algo, e só têm sentido entre si nas relações estabelecidas em uma proposição. 144 História da Filosofia II Mas, que garantia temos de que os signos ainda falem das coisas? No fundo, nenhuma, é mera suposição. Como salienta Abraão, para Ockham, estas relações entre signos e coisas são supostas pela ciência, “[...] quando, na realidade, apenas investigam por meio dos signos o que estes significam.” (ABRAÃO, 1999, p. 123-124). É visível que esta posição aponta, prenuncia o problema da indução -- um dos aspectos do pensamento de David Hume (1711-1776) -- ; a retomada da posição sofística e, consequentemente, o humanismo renascentista; e a impossibilidade de conhecer as coisas em si por parte do raciocínio lógico. O nominalismo de Ockham é, no entanto, mais sofisticado e elaborado do que o do séc. XII. Na verdade, Ockham defende um misto de nominalismo e conceitualismo, pois entende o universal como um termo que corresponde a um conceito por meio do qual nos referimos a essas qualidades ou características. O universal é assim a referência de um termo, e não uma entidade, mas tampouco é apenas uma palavra, já que existe o correlato mental, o conceito, por meio do qual a referência é feita. Sua posição foi muito influente no séc. XIV, dando origem a vários desdobramentos por seus seguidores. É em relação a essa questão que devemos entender a famosa fórmula conhecida como “lâmina (ou navalha) de Ockham”: entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem, isto é, não devemos multiplicar a existência dos entes além do necessário. Isto significa que não devemos supor a existência de entidades metafísicas como no realismo platônico, já que essas entidades não só não explicam adequadamente a natureza das coisas particulares, como carecem, elas próprias, de explicação. A “navalha de Ockham” é, portanto, um “princípio de economia”, segundo o qual nossa ontologia (teoria sobre o real) deve supor apenas a possibilidade de existência do mínimo necessário. Termos e conceitos são suficientes, assim, para dar conta do problema dos universais, não havendo a necessidade de supor a existência de entidades reais universais. (MARCONDES, 1998, p. 132). Unidade 4 145 Universidade do Sul de Santa Catarina Conclui-se que, para Ockham, [...] a verdade revelada, muito mais que a realidade das coisas do mundo sensível, é absolutamente inacessível à razão. Rebaixando o conhecimento racional, ele pretende reafirmar a supremacia radical da fé sobre a razão. (Ibid. p. 124). Como se pode ver, no ambiente conturbado dos últimos séculos da Idade Média, a retomada do platonismo, a separação entre poder terreno e poder divino, o experimentalismo, o humanismo individualista e o nominalismo já apontam para os movimentos do período seguinte, o Renascimento. Entretanto, a caracterização das ideias filosóficas e do contexto deste período vindouro são alguns dos elementos que marcarão, possivelmente, estudante do curso de Filosofia, sua próxima viagem, na busca por entender o nascimento da modernidade, com a disciplina História da Filosofia III. Síntese Nesta unidade, você pôde acompanhar o início da crise da Escolástica, com a reintrodução de elementos platônicos no contexto das universidades; também, como tal crise vai-se aprofundando, gerando debates sobre a separação entre o poder terreno e poder divino, entre a Igreja e os Estados nacionais, enfim, entre fé e razão. Juntando-se a tudo isso, uma maior preocupação com a observação da natureza, particularmente por parte de membros da universidade de Oxford, e a questão dos universais, com a posição nominalista, você pôde perceber um caminhar para a mentalidade moderna, caracterizada pelo livre pensar, pelo humanismo, pelo individualismo nascente e pela ciência experimental. 146 História da Filosofia II Atividades de autoavaliação 1) Elabore um texto dissertativo de vinte a trinta linhas, desenvolvendo uma reflexão que responda às seguintes questões: a) O que foi a questão dos universais? b) Qual a posição de Guilherme de Ockham frente a tal questão? c) Que implicações posteriores podemos tirar deste posicionamento? Procure elaborar a redação com suas palavras, evitando a mera cópia do texto, localizando seu leitor quanto às suas fontes de pesquisa, ao ambiente do debate e seu posicionamento. Unidade 4 147 Universidade do Sul de Santa Catarina 148 História da Filosofia II Saiba mais Você pode saber mais sobre o assunto estudado nesta unidade, consultando as seguintes referências: ABRAÃO, Bernadette Siqueira. História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. BOEHNER, Philotheus; GILSON, Étienne. História da filosofia cristã. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. CHÂTELET, François. História da filosofia: ideias, doutrinas. Vol. II - A filosofia medieval: do século I ao século XV. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. FERRATER MORA, J. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. 4. v. FRANCO JR., Hilário. A idade média: nascimento do ocidente. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001. GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995. GOMBRICH, E. H. A história da arte. 15. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1993. Unidade 4 149 Para concluir o estudo A disciplina História da Filosofia II, que você acabou de estudar, percorre o período entre o início da era cristã e o final do Renascimento, destacando a Idade Média, período de grande importância para a compreensão da história da filosofia no ocidente. A história do pensamento ocidental, estudado a partir do pensamento grego arcaico, faz sua passagem pelo pensamento cristão da Idade Média, antes de culminar com a crise renascentista e o nascimento do pensamento moderno. Nisso, também reside a importância dos pensadores medievais, na conservação e interpretação do conhecimento antigo, preservando-o das guerras, dos incêndios e, sobretudo, da intransigência de alguns governantes e do dogmatismo de alguns padres da Igreja. Eles se dedicaram aos estudos com tal entrega e tamanha intensidade, apesar dos inúmeros obstáculos que enfrentaram -- entre eles a perseguição, a tortura e a morte -- que não se pode ter parâmetro na atualidade. De igual grandeza é a obra que esses pensadores nos legaram. Sendo assim, o estudo do período e dos pensadores estudados nesse livro didático é fundamental para qualquer pessoa que deseje se aprofundar no estudo da filosofia. Além disso, sobretudo em função da Escolástica, a filosofia medieval estende sua influência, até hoje, ao pensamento contemporâneo. Referências A BÍBLIA - Livros do Antigo Testamento: O Pentateu. 2000. Disponível em: <http://www.fatheralexander.org/booklets/ portuguese/biblia_sept_2.htm#n4>. Acesso em: 27 jul. 2011. A ESTRUTURA arquitectónica das catedrais góticas: o exemplo de Amiens. Galaaz. 25 out. 2005. Disponível em: <http://galaaz. blogspot.com/2005/10/7-estrutura-arquitectnica-das.html. Acesso em: 29 jul. 2011. il. ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Mestre Jou, 2000. ABRAÃO, Bernadete Siqueira (Org). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999. APRESENTAÇÃO. Crítica. 15 jul. 2006. 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Ingressou na UNISUL em 2002, inicialmente no curso presencial de Filosofia, no qual, entre outras disciplinas, ministrou História da Filosofia Antiga, Medieval e Contemporânea, Estética e Filosofia na América Latina. Foi orientador de vários TCCs e de alguns trabalhos de Iniciação Científica pelo artigo 170. Publicou alguns artigos no campo da Crítica Literária e da relação Literatura e Filosofia. Atualmente, trabalha com a disciplina Filosofia I e está iniciando em EAD. Faz, também, um curso de Artes Plásticas na UDESC. Maria Juliani Nesi é graduada em Filosofia pela UFSC, especialista em Arte-educação pela UDESC e mestre em Engenharia de Produção/Mídia e Conhecimento pela UFSC. Foi professora de Filosofia nos cursos de Pedagogia, História, Geografia da UDESC, durante dez anos. Foi elaboradora e corretora do Vestibular Vocacionado para Pedagogia da UDESC, durante cinco anos. Além disso, foi roteirista de vídeos educativos de Filosofia e escritora de Livros Didáticos de Filosofia para o Curso de Pedagogia a Distância da UDESC, durante cinco anos. Respostas e comentários das atividades de autoavaliação Unidade 1 1) O desenvolvimento desta questão envolve, basicamente, a observação da imagem. Assim sendo, a redação deve levar em conta que a imagem do Papa abençoado - a figura de joelho - remete ao poder da Igreja Cristã, ao teocentrismo; as armas e algumas vestimentas dos nobres remetem às Cruzadas; detalhes ao fundo da arquitetura remetem ao estilo gótico, típico do período Escolástico. Partindo disso, o(a) estudante pode comentar algumas das características apresentadas na unidade 1 do livro. As possibilidades de resposta são grandes, mas deve ser observação a referência à imagem como ponto de partida. 2) As respostas dos itens a e b são de caráter pessoal. Unidade 2 1) Entre outros aspectos, é possível citar: a dificuldade do povo de aceitar o monoteísmo, enquanto a cultura tradicional helênico-romana era politeísta; o confronto da doutrina cristã baseada na fé com a filosofia pagã baseada na metafísica especulativa. 2) Dentre outros tópicos, é possível citar: a existência de um modo supra-sensível e divino do qual o mundo sensível é apenas uma cópia; a superioridade da alma sobre o corpo; a possibilidade da alma de contemplar a luz divina por meio da ascese. Universidade do Sul de Santa Catarina Unidade 3 1) Item b. 2 ) Você pode responder que, guardadas as devidas proporções, o estilo de vida dos escolásticos assemelhava-se mais a um sacerdócio do que a uma profissão no sentido atual, com salário, direitos trabalhistas e carga horária determinada; as universidades, em número absurdamente menor do que hoje, mantinham o clima de intensa atividade intelectual dos professores e dos alunos, o que não acontece hoje, pois a universidade, cada vez mais, atua como um mercado de conhecimentos; mas também há aspectos positivos, como a liberdade de pensamento dos professores atuais de que não gozavam os escolásticos, etc. Unidade 4 1) Na redação, você poderá começar dizendo que a questão dos universais trata da relação entre as palavras, conceitos gerais e os objetos aos quais eles (os universais) se referem; apontar as possibilidades de resposta a esta questão e centrar em como Ockham a trata, dizendo que Ockham considera que os universais são meras palavras, ou seja, convenções que nada têm a ver com os objetos que substituem. Por apontar algumas possíveis implicações desta posição: a quebra da relação entre conhecimento e iluminação interior; da noção de que os universais são inatos e dados por Deus; a libertação da filosofia da teologia. Tudo, sem esquecer-se de dar um título à redação e referenciar as fontes, quando necessário. Evidentemente, por se tratar de uma redação própria, há variantes, mas ao menos alguns dos aspectos apontados anteriormente devem aparecer na redação. 162 Biblioteca Virtual Veja a seguir os serviços oferecidos pela Biblioteca Virtual aos alunos a distância: Pesquisa a publicações on-line <www.unisul.br/textocompleto> Acesso a bases de dados assinadas <www.unisul.br/bdassinadas> Acesso a bases de dados gratuitas selecionadas <www.unisul.br/bdgratuitas > Acesso a jornais e revistas on-line <www.unisul.br/periodicos> Empréstimo de livros <www.unisul.br/emprestimos> Escaneamento de parte de obra* Acesse a página da Biblioteca Virtual da Unisul, disponível no EVA, e explore seus recursos digitais. Qualquer dúvida escreva para: [email protected] * Se você optar por escaneamento de parte do livro, será lhe enviado o sumário da obra para que você possa escolher quais capítulos deseja solicitar a reprodução. Lembrando que para não ferir a Lei dos direitos autorais (Lei 9610/98) pode-se reproduzir até 10% do total de páginas do livro. C M Y CM MY CY CMY K ISBN 978-85-7817-272-5 9 788578 172725