Critério de fixação de competência para exigência do ISSQN: Local da prestação do serviço ou do estabelecimento prestador? Luiz Gustavo Levate1 Resumo Uma das questões polêmicas do Direito Tributário está no fato de se definir a competência do município que deve cobrar o ISSQN: se do município onde se localiza o estabelecimento prestador ou se daquele onde ocorreu o fato gerador do tributo. A lei complementar nº 116/2003, que dispõe sobre conflito de competência em matéria tributária estabeleceu como regra geral que o referido imposto é devido ao município onde localizado o estabelecimento prestador. Palavras-chave: ISSQN; competência; princípio implícito da territorialidade das leis; lei complementar; força normativa da Constituição; estabelecimento prestador de serviço. INTRODUÇÃO Com a introdução no ordenamento jurídico nacional da Lei Complementar nº 116/2003 - que tem por função constitucional dispor sobre conflito de competência em matéria tributária (art. 146, I da Constituição Federal) -, a regra geral para determinação da competência para exigir o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) fica a cargo do Município onde se localiza o estabelecimento prestador. Isso pode significar a superação do entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que a 1 Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2002. Procurador do Município de Belo Horizonte desde 2005. competência seria sempre do Município onde ocorreu o fato imponível. Essa foi a súmula do parecer classificado (nº 9471/07) que emitimos na Procuradoria Geral do Município de Belo Horizonte no exercício de nossas funções como Procurador Municipal. A matéria é de extrema relevância tendo em vista as alterações promovidas pela Lei Complementar nº 116/2003, que derrogou o Decreto-Lei nº 406/68 que regulava a matéria e foi recepcionado pela atual Carta da República como norma de natureza complementar. O presente estudo pretende, sem esgotar o assunto, analisar a evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, pois a matéria permanece controvertida mesmo com a entrada em vigor da lei complementar federal, gerando insegurança jurídica tanto para os contribuintes quanto para os municípios. Para se realizar este estudo é necessário perpassar pelo instituto do “bloco de constitucionalidade”, analisar o princípio da territorialidade das leis em matéria tributária, a concepção de força normativa da constituição e sua superioridade no ordenamento jurídico, identificar a função da lei complementar, bem como entender a noção de estabelecimento prestador de serviço. O objetivo principal é verificar de quem é a competência para exigir o ISSQN: se do município onde se localiza o estabelecimento prestador ou se daquele onde ocorreu o fato gerador do tributo. 1. DO DECRETO-LEI 406/68 E O ENTENDIMENTO DO STJ SOBRE O TEMA A Constituição Federal, ao repartir a competência tributária dos entes federativos, dispõe relativamente aos municípios - “Art 156 - Compete aos Municípios instituir impostos sobre: III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.” A Constituição da República também estabelece, dentre as matérias tributárias que devam ser reguladas por lei complementar, o seguinte: Art. 146 - Cabe à lei complementar: I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; Disposição semelhante encontrava-se no § 1º do art. 18 da Constituição de 19672. A legislação que disciplinava as normas gerais do ISSQN era o Decreto-lei nº 406/68, até a entrada em vigor da Lei Complementar nº 116/03, que o derrogou. Dispunha seu artigo 12: Art. 12 - Considera-se local da prestação do serviço: a) o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador. b) no caso de construção civil, o local onde se efetuar a prestação. A norma recepcionada como lei complementar era clara ao distinguir quando o local da prestação de serviço era determinante para configurar o sujeito ativo da obrigação tributária. Apenas no caso de construção civil e exploração de rodovias o local da prestação de serviços determinava a pessoa jurídica de direito público interno competente para exigir o ISSQN. Nos demais tipos de prestação de serviços a competência seria do município onde estava estabelecido ou domiciliado o prestador dos serviços tributados. Ives Gandra Martins e Marilene Talarico Martins Rodrigues ensinam: Verifica-se, do art. 12 do DL 406/68, que o legislador complementar, em consonância com o art. 146, I, da CF/88, adotou como regra para a solução dos conflitos de competência tributária entre os Municípios o critério da localização do estabelecimento prestador dos serviços. Tanto é assim que, quando pretendeu o legislador complementar que se adotasse critério diverso dessa regra, o fez de forma expressa, nas alíneas ‘b’ e ‘c’ do art. 12 do DL 406/68. (...) Com efeito, poderia o legislador complementar fixar, como critério para a solução dos conflitos de competência, que o ISS seria devido ao Município em que se daria a efetiva prestação de serviços (onde ocorre o fato gerador), mas não o fez, preferindo adotar critério diverso, fazendo exceção apenas aos casos de construção civil e de manutenção e exploração de rodovias. Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, em diversas decisões (...), entendeu que o ISS incide no Município onde o serviço é prestado (onde ocorre o fato gerador) e não no local do estabelecimento prestador. (...) Com todo respeito que merece o STJ, esse entendimento feriu, expressamente, dispositivo literal de lei, no caso de lei complementar (DL 406/68). Por este entendimento, o art. 12 do DL 406/68 conformaria uma única hipótese: o ISS incide onde ocorre o fato gerador, incorporando as 3 (três) hipóteses em uma única. (...) A interpretação que o STJ deu ao art. 12 do DL 406/68, além de violar o princípio da legalidade, fez com que empresas prestadoras de serviços 2 § 1º Lei complementar estabelecerá normas gerais de direito tributário, disporá sobre os conflitos de competência nesta matéria entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e regulará as limitações constitucionais do poder de tributar. tivessem de recolher o ISS em cada um dos mais de 5.500 Municípios brasileiros, subordinando-se a suas legislações muitas vezes conflitantes, com obrigação de emitir Notas de Serviços, em locais onde não possuem estabelecimento, além de correrem o risco de lhes ser exigido ISS, também no Município onde possuem os seus estabelecimentos, ficando as empresas sujeitas à chamada ‘guerra fiscal’ entre os diversos Municípios, que certamente não foi o que pretendeu o legislador constituinte, nem o legislador complementar, para efeitos de exigência do ISS. (MARTINS, I. G. da Silva; RODRIGUES, M.T. M, 2003, p. 188 a 190). No entanto, o art. 12 do Decreto-Lei mencionado foi revogado pela Lei Complementar n. 116/2003, justamente em razão da intensa discussão travada perante o Judiciário brasileiro no tocante à definição acerca de qual o Município é o competente para a cobrança do imposto: onde a empresa tem seu estabelecimento ou o do local da prestação dos serviços. O STJ na época da vigência do DL 406/68 pacificou o entendimento de que o ISSQN sempre deveria ser cobrado pelo Município onde ocorreu o fato gerador, em razão do princípio constitucional implícito da territorialidade do poder de tributar. O Recurso Especial nº 41867/RS é emblemático: Tributário. ISS. Sua exigência pelo município em cujo território se verificou o fato gerador. Interpretação do art. 12 do decreto-lei n. 406/68. Embora a lei considere local da prestação de serviço, o do estabelecimento prestador (art. 12 do decreto-lei n. 406/68), ela pretende que o ISS pertença ao município em cujo território se realizou o fato gerador. É o local da prestação do serviço que indica o município competente para a imposição do tributo (ISS), para que se não vulnere o princípio constitucional implícito que atribui àquele (município) o poder de tributar as prestações ocorridas em seu território. A grande maioria dos julgados do STJ se fundava nos ensinamentos do professor Roque Carraza. Sustenta o doutrinador: (...) a matéria vem disciplinada no artigo 12: Considera-se local da prestação do serviço o do estabelecimento prestador ou, na falta de estabelecimento, o do domicílio do prestador. Este art. 12, creio eu, deve ser considerado com grandes cautelas justamente para que não se vulnere o princípio constitucional implícito que atribui ao Município competência para tributar as prestações ocorridas em seu território. Se o serviço é prestado no Município “A” nele é que deverá ser tributado pelo ISS, ainda que o estabelecimento prestador seja sediado no Município ‘B’. Do contrário, estaríamos admitindo que a lei do município ‘B’ pode ser dotada de extraterritorialidade, de modo a irradiar efeitos sobre um fato ocorrido no território do município onde ela não pode ter voga... Sempre o ISS é devido no município em cujo território a prestação de serviço se deu; isso a despeito do que dispõe o art. 12 do Decreto-lei 406 de 1968, que não se sobrepõe a nenhuma norma constitucional.(CARRAZA, 1989, p. 201) Nos termos da legislação anterior (Decreto-Lei n. 406/1968), o pagamento do ISS obedecia aos seguintes critérios: a regra geral (art. 12, alínea "a", primeira parte) era a de que o imposto deveria ser recolhido ao Município em que se encontrava o estabelecimento do prestador do serviço; a regra subsidiária (art. 12, alínea "a", segunda parte) dispunha que, na falta de um estabelecimento prestador, o ISS seria pago ao Município em que estivesse o domicílio do prestador; e, finalmente, a regra excepcional (art. 12, alínea "b") dizia que, no caso de construção civil e exploração de rodovias, o imposto era devido para o município do local onde estivesse a obra. O art. 3º da lei complementar 116/2003 tem disposição semelhante. No entanto, ao invés de duas exceções, listou vinte e duas exceções à regra geral de que a competência para exigir o ISS é do município onde se localiza o estabelecimento prestador. Tanto a norma anterior quanto a atual são claras ao pretender dispor sobre conflito de competência tributária. A Constituição Federal atribuiu à Lei complementar essa função. Ao eleger o município onde se localiza o estabelecimento prestador de serviços como o competente para exigir o ISSQN procurou a lei um critério seguro para determinar a competência tributária e evitar os ditos conflitos, principalmente entre os municípios. No tópico seguinte, nos propomos a analisar de forma crítica a adoção do princípio implícito da territorialidade como “ratio decidendi” do entendimento do STJ. 2. ADOÇÃO DO PRINCÍPIO IMPLÍCITO DA TERRITORIALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA – CRÍTICAS Como foi visto acima, o entendimento pacífico do STJ e de doutrina autorizada era no sentido de que o município competente para exigir o ISSQN seria, em qualquer caso, o do local da ocorrência do fato imponível. Essa tese apresenta como suporte teórico o princípio implícito da territorialidade das leis em matéria tributária. A adoção indiscriminada dos chamados princípios implícitos pode levar, em alguns casos, à mácula da supremacia da Constituição e de sua força normativa. Não podemos negar que, à falta de norma constitucional expressa, determinados princípios e teorias devem ser inferidos do sistema jurídico, até mesmo para lhe conferir coerência e aplicabilidade. Caso por todos conhecidos é o do princípio da proporcionalidade, deduzido da cláusula do devido processo legal (substantive due processo f law), inserta no inciso LIV, do art. 5º da Carta Magna.3 Entretanto, entendemos permitida a revelação dos chamados princípios implícitos apenas de maneira excepcional, ou seja, caso não haja norma constitucional expressa capaz de imprimir efetividade e harmonia ao arcabouço jurídico. E assim deve ser porque, no Brasil, o controle de constitucionalidade das leis possui como fundamento a supremacia da constituição, tendo como paradigma o denominado “bloco de constitucionalidade”.4 Somente normas constitucionais positivadas podem ser utilizadas como paradigma para a análise da constitucionalidade de leis ou atos normativos primários emanados do Estado. Como ensina Alexandre de Moraes, ao tratar do tema: O sistema constitucional brasileiro, ao consagrar a incondicional superioridade normativa da Constituição Federal, portanto, não adota a teoria alemã das normas constitucionais inconstitucionais (verfassungswidrige Verfassungsnormem), que possibilita a declaração de inconstitucionalidade de normas constitucionais positivadas por incompatíveis com os princípios constitucionais não escritos e os postulados de justiça (Grundentscheidungen.) (MORAES, 2003, p.610, grifos nossos). Destarte, seja qual for a corrente adotada a respeito da noção de bloco de constitucionalidade (estrita ou ampla, conferir nota de rodapé nº 6), somente de forma excepcionalíssima admitimos a adoção de princípios implícitos para servirem de parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis, e ainda com o escopo de dar coerência e completude ao ordenamento jurídico. Toda essa digressão é importante para refutarmos a posição do STJ e de parte da doutrina que, com base no referido princípio implícito da territorialidade das leis, entende que sempre será competente para exigir o ISS o município onde ocorra o fato 3 Não menos conhecida é a teoria dos poderes implícitos. Quando a Constituição imputa a alguma entidade, órgão, Poder ou agente uma determinada atribuição, função ou competência entende-se que também atribui àqueles personagens todos os meios necessários para se desincumbir de seu mister. 4 Torna-se relevante destacar, nesse ponto, por tal razão, o magistério de J. J. Gomes Canotilho (1998, p. 811/812, item n. 1), que bem expôs a necessidade de se proceder à determinação do parâmetro de controle da constitucionalidade, consideradas as posições doutrinárias que se digladiam em torno do tema: "Todos os actos normativos devem estar em conformidade com a Constituição (art. 3.º/3). Significa isto que os actos legislativos e restantes actos normativos devem estar subordinados, formal, procedimental e substancialmente, ao parâmetro constitucional. Mas qual é o estalão normativo de acordo com o qual se deve controlar a conformidade dos actos normativos? As respostas a este problema oscilam fundamentalmente entre duas posições: (1) o parâmetro constitucional equivale à constituição escrita ou leis com valor constitucional formal, e daí que a conformidade dos actos normativos só possa ser aferida, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, segundo as normas e princípios escritos da constituição (ou de outras leis formalmente constitucionais); (2) o parâmetro constitucional é a ordem constitucional global, e, por isso, o juízo de legitimidade constitucional dos actos normativos deve fazer-se não apenas segundo as normas e princípios escritos das leis constitucionais, mas também tendo em conta princípios não escritos integrantes da ordem constitucional global." gerador do tributo. Ora, se o princípio aqui analisado não pode sequer servir de paradigma para a realização de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do Poder Público também não pode ele se prestar a determinar a competência tributária, quanto mais havendo na Constituição norma constitucional expressa5 delegando tal atribuição à lei complementar federal (inciso I, do artigo 146 da CF). Não poderá o aludido princípio determinar que o ISS seja exigido sempre no local onde ocorrer o fato imponível. Há norma positivada, formal e materialmente constitucional, que complementa a Constituição da República, e afasta, legitimamente tendo em vista o Princípio da Presunção da Constitucionalidade das Leis - o princípio implícito da territorialidade das leis em matéria tributária. Demonstraremos que tanto o Decreto-lei 406/68 como a Lei complementar nº 116/2003 devem ser obedecidos em razão da força normativa da Constituição. 3. A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO A Constituição de um estado não deve ser encarada como uma pauta de valores despida de normatividade ou uma mera carta de recomendações. A Constituição é o fundamento do Estado e da sociedade, gozando de supremacia hierárquica dentro do ordenamento jurídico. Tem natureza jurídica de norma. É a lei maior a ser obedecida por todos em razão de “determinação” da norma fundamental pressuposta idealizada por Kelsen.6 O desrespeito a um mandamento constitucional leva a uma fragilização da força normativa da Constituição. Konrad Hesse foi quem melhor tratou do tema: Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concepção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente.Todos os interesses 5 Hugo de Brito Machado (2007, p. 360) ensinava: “O Superior Tribunal de Justiça, a pretexto de evitar práticas fraudulentas, tem decidido que é competente para a cobrança do ISS o Município onde ocorre a prestação do serviço, sendo irrelevante o local em que se encontra o estabelecimento prestador. Essa orientação jurisprudencial, todavia, nega vigência ao art. 12 do Decreto-lei 406/1968. Ou, mais exatamente, implica declaração implícita de sua inconstitucionalidade, pois o juiz não pode deixar de praticar uma lei que está em vigor a não ser que a considere inconstitucional.” 6 Kelsen, Hans ( 2003, p. 217). A norma fundamental pressuposta diz que todos devem obediência à Constituição, de forma a evitar uma busca “ad infinitum” pelo fundamento de que a Constituição é a lei maior de uma nação. momentâneos – ainda quando realizados – não logram compensar ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que a sua observância revela-se incômoda. Como anotado por Walter Burckhardt, aquilo que é identificado como vontade da Constituição ‘deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático’. Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, ‘malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado. (HESSE,1991, p. 21-22) A Constituição Federal, no inciso I de seu artigo 146, incumbiu à lei complementar dispor sobre conflito de competência em matéria tributária. Pois bem, o Congresso Nacional votou e o Presidente da República sancionou a lei complementar nº 116/2003, justamente para regulamentar a referida matéria. A lei complementar tem função integrativa de normas constitucionais de eficácia limitada. Para não descer a minúcias, a Constituição renuncia à regulamentação de determinadas matérias e confere a uma lei, que a “complementará”, a incumbência de fazê-lo. É o caso da lei complementar nº 116/2003, que integrou o inciso I, do artigo 146 da CF. Passamos a analisar a referida lei complementar. 4. A LEI COMPLEMENTAR Nº 116/2003 E O CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL De tudo que já foi visto neste estudo pode se chegar seguramente à conclusão de que há uma vontade constitucional a ser respeitada. Por determinação da Constituição, a lei complementar é que vai dispor sobre conflito de competência em matéria tributária. Trata-se de espécie normativa que não só retira seu fundamento formal e material de validade diretamente da Constituição, como também é norma integrativa da Lei Maior, que lhe dá completude, aplicabilidade e eficácia. Por esse motivo, deve ser respeitada a opção da lei complementar em fixar como regra para exigir o ISS o município onde se localiza o estabelecimento prestador do serviço; e, como exceção, o município onde ocorre a prestação do serviço. Apenas assim enxergamos que a força normativa da Constituição estará sendo preservada no trato da presente questão. A esse respeito, eis o escólio da tributarista Misabel Derzi: Na verdade, nem o artigo 12 do Decreto-lei n. 406/68 feria a Constituição, nem tampouco o faz a Lei Complementar n. 116/2003. O Município tem competência para tributar todos os serviços prestados em seu território, quer sejam nele executados, quer sejam executados em outros ou ainda fora do território nacional, no exterior. Basta, para isso, que o estabelecimento prestador esteja nele situado ou ocorra outro elemento de conexão com o seu território. Evidentemente, o conceito de local do estabelecimento prestador do serviço é vinculado ao território municipal sob o ângulo do contribuinte prestador, e está autorizado pela Constituição Federal. (....) A rigor, o imposto incide sobre a prestação de serviços (não importa o local de sua execução, pois até mesmo aqueles prestados fora do território nacional estão situados no âmbito de incidência da norma) desde que o estabelecimento prestador ou a pessoa jurídica prestadora se situem em Município brasileiro. Pensar de forma diferente seria considerar supérflua a norma constitucional que autoriza a lei complementar federal a excluir da incidência do ISS, ‘exportações de serviços para o exterior.’ (...) A Carta brasileira não se concilia com aquele único critério – aliás absoluto – adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, ou seja, não pode a competência municipal ser bitolada apenas pelo local onde se executar o serviço (DERZI, 2004, p. 71-77). E continua sua lição a tributarista mineira: A Carta Magna preferiu considerar os serviços sob o ângulo do prestador (não do usuário) no âmbito de incidência do ISS, fato igualmente indicativo de capacidade econômica. Em decorrência disso, a nossa ordem jurídica aponta, como contribuinte do imposto, o prestador de serviços (art. 10 do Decreto-lei n. 406/68) e a base de cálculo é o preço do serviço, tal como foi cobrado pelo prestador. Portanto, a hipótese de incidência, modelada na Constituição e desenhada nas leis, não é adquirir serviços, mas prestar serviços. Portanto, não agride a natureza do imposto municipal o fato de o legislador escolher como critério espacial da hipótese, exatamente, o local em que se situa o estabelecimento prestador, o qual, como veremos na expressão da Lei Complementar n. 116/2003, está subjetivado.(DERZI, 2004, p. 77) Com efeito, dispõe o art. 3º da referida lei complementar: Art. 3o O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local. Com a referida norma, o legislador veio confirmar sua opção pelo município onde se localiza o estabelecimento prestador do serviço como competente para exigir o ISS. Com a edição da Lei Complementar nº 116/2003, o legislador ampliou as hipóteses de exceção à regra de que o imposto deveria ser pago no local do estabelecimento do prestador do serviço. Destarte, não se pode utilizar como fundamento para determinar a competência tributária o princípio (implícito) da territorialidade das leis, já que a intenção da norma complementar à Constituição, ao revogar o art. 12 do Decreto-Lei 406/1968, foi aplicar a exceção - anteriormente dirigida apenas à construção civil e exploração de rodovias – às vinte e duas hipóteses previstas no art. 3º da Lei Complementar 116/2003, e não a todo e qualquer serviço, como entendia o Superior Tribunal de Justiça. O STJ desconsiderou a vontade da Constituição. Ela determina que a lei complementar decida sobre conflito de competência tributária entre os entes federativos. A lei complementar editada optou, como regra geral, pelo município onde se localiza o estabelecimento prestador para fixar a competência tributária. Não é recomendável que um princípio implícito afaste a força normativa da Constituição e uma opção legítima de lei integrativa daquela. A Constituição Federal, de forma expressa, franqueou à lei complementar a faculdade - igualmente legítima - de afastar a aplicação de um princípio implícito. E ela, por ser Lei maior, tem poder e força suficientes para legitimar tal afastamento. E não é só. O Código Tributário Nacional (que possui, outrossim, força de lei complementar), e tem como denominador comum com a LC nº 116/2003 a função precípua de “complementar” a Constituição e dispor sobre conflito de competência em matéria tributária, como a própria determina (art. 146 da CF, I) afasta, no mesmo sentido, a adoção do indigitado princípio. Calha transcrever o artigo 102 do Código Tributário Nacional, que dispõe: Art. 102. A legislação tributária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios vigora, no País, fora dos respectivos territórios, nos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que disponham esta ou outras leis de normas gerais expedidas pela União. A lei complementar federal tem vigência em todo o território nacional. Desse modo, não se trata simplesmente de atribuir à legislação dos municípios extraterritorialidade como quer o mestre Carraza e o Superior Tribunal de Justiça. É ela (a lei complementar nacional) que dispõe ser do município onde se localiza o estabelecimento prestador a competência para exigir o ISSQN, e não a lei de cada município da federação. É a lei complementar que dispõe sobre conflito de competência entre todas as entidades federativas. A sua vigência, repita-se, se espalha em todo o território nacional. A Lei Complementar nº 116/2003 tem como fundamento de validade a própria Constituição Federal. Ela é, ademais, compatível7 com o artigo 102 do CTN retro transcrito. Qualquer “extraterritorialidade” necessária à tributação do ISSQN pelo município onde se localiza o estabelecimento prestador estaria, deveras, legitimada pelo art. 102 do CTN, e “ad instar” do que ocorre com a LC nº 116/2003 o CTN tem vigência em todo o território nacional. Dessa forma, a vontade da lei deve ser acatada, ainda mais quando eleva em grau máximo a normatividade de norma de eficácia limitada da Constituição (art.146, I), já que esta deferiu à lei complementar a tarefa de dirimir conflito de competência tributária. Como ressalta Ives Gandra da Silva Martins, {...} a Lei Complementar 116/2003 adotou um sistema misto para a incidência do ISS, ora considerando devido o imposto no local do estabelecimento prestador, ou na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, ora considerando devido o imposto no local da prestação do serviço, do estabelecimento do tomador ou do intermediário, para as hipóteses expressamente previstas.(MARTINS, 2004, p. 190) Acontece que alguns Municípios, sobretudo os de menor porte, exigem o referido imposto indevidamente, pois, ao estabelecer a retenção do imposto com a substituição tributária, não levaram em consideração o “caput” do art. 3º e o art. 4º da LC nº 116/2003. É importante observar que nem todas as situações de prestação de serviços permitem que lei municipal estabeleça responsabilidade tributária de que o tomador de serviços retenha o tributo na fonte, mas apenas nos casos colhidos pelas exceções do caput do artigo 3º da lei complementar federal. A indigitada norma reafirmou a vontade da lei em acabar com o conflito de competência em matéria de ISSQN, elegendo vinte e duas exceções à regra geral da competência do Município onde se localiza o estabelecimento prestador para cobrar o ISSQN. Ao contrário da legislação anterior, que somente previa duas hipóteses de exceção à regra. Assim, optando a norma complementar, como regra geral, pelo município onde se localiza o estabelecimento prestador, torna-se necessária a caracterização do mesmo. 7 Não dissemos que a LC nº 116 retira seu fundamento de validade do artigo 102 do CTN, porque ambas as leis detêm o mesmo status hierárquico. Em Direito diz-se que uma norma é hierarquicamente inferior a uma outra quando aquela retira seu fundamento de validade desta. Não é o que ocorre no caso. 5. DA CARACTERIZAÇÃO DE “ESTABELECIMENTO” O "punctum saliens" do presente articulado diz respeito à competência do Ente municipal para a arrecadação do "Imposto Sobre Serviços" - ISS, ou seja, se no município da sede do estabelecimento prestador do serviço ou se no do local onde o serviço é prestado. Observa-se que a lei complementar n° 166/2003 optou, como regra geral, pelo Município onde se localiza o estabelecimento prestador. A referida Lei trouxe, em seu art. 4º, o conceito legal de estabelecimento: Art. 4o - Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas. É cediço e incontroverso que estabelecimento é unidade econômica. Estabelecimento não é a empresa: é o seu órgão. É um locus onde ela baseia sua ação. “Estabelecimento” é o complexo de meios, materiais ou imateriais, pelos quais o prestador do serviço explora determinada atividade. Acerca do referido conceito doutrina Bernardo Ribeiro de Moraes: Prestado o serviço, verifica-se o local de sua prestação através da existência ou não de um estabelecimento prestador. Não se trata de um estabelecimento qualquer do prestador, mas, sim, do estabelecimento prestador do serviço. (...) O essencial para a caracterização do estabelecimento é essa manifestação material e, que a pessoa se situa no espaço em que exista um centro de ocupação habitual. Sem essa manifestação do exercício de atividades ou esse núcleo de ocupações habituais, inexiste estabelecimento.(MORAES, 1978, p. 488) Alguns elementos são de grande valia para identificar um estabelecimento prestador, a exemplo da informação do local do estabelecimento (endereço), as repartições fazendárias consideradas domicílio fiscal da empresa para efeitos de outros tributos, estaduais e federais, bem como a inscrição municipal da sociedade empresária na Prefeitura. A existência de funcionários, máquinas, insumos e instrumentos indispensáveis à prestação do serviço, assim como a presença de uma estrutura gerencial e administrativa relacionada com o serviço ali executado. Portanto, identificada a existência de um estabelecimento empresarial e o serviço prestado não se enquadrar nas exceções do caput do artigo 3º da referida lei complementar, o imposto será devido ao município onde se localiza o estabelecimento prestador dos serviços. 6. DA COMPETÊNCIA PARA EXIGIR O ISSQN No decorrer do presente estudo, procuramos apresentar a evolução legislativa sobre o tema. Perpassamos por alguns conceitos como o de bloco de constitucionalidade, força normativa da constituição e estabelecimento empresarial. Demonstramos a função da lei complementar e o equívoco em se utilizar o princípio implícito da territorialidade das leis tributárias para identificar o município competente para exigir o ISSQN. Isso comprova que a lei complementar nº 116/2003 deve ser observada para se dirimir o conflito de competência tributária. O quadro delineado traz segurança jurídica ao contribuinte e à entidade tributante. Facilita a escrituração contábil e organização por parte das empresas, bem como a fiscalização, a administração e a arrecadação do imposto pelos municípios. Reduzem-se gastos de ambas as partes, seja para manter uma estrutura tributária, seja para evitar os dissabores de um processo administrativo e judicial. Evita a guerra fiscal, pois os municípios pequenos aplicam as alíquotas mínimas permitidas na tentativa de atrair as empresas. Impede a fraude e simulação nesses casos, porque as empresas constituem estabelecimentos fictícios nestes municípios, entretanto, seu estabelecimento “de fato” está em município distante e de maior porte. A práxis demonstra que a opção feita pelo legislador, tanto do ponto de vista jurídico, econômico quanto administrativo é a mais razoável, porque não deixa que outros municípios fiquem sem nenhum tipo de arrecadação. As hipóteses de exceção ao caput do artigo 3º dizem respeito a casos clássicos em que - independentemente de a empresa possuir sua sede em determinado município, muitas vezes de maior porte, - será necessário e indispensável constituir um estabelecimento no outro município onde pretende prestar o serviço. A lei complementar do ISSQN veio evitar os indigitados conflitos de competência entre os municípios, sem sacrificar a arrecadação de nenhum deles. À medida que a cidade vai crescendo e se desenvolvendo, sobretudo no terceiro setor (prestação de serviço), as empresas, em busca de consumidores e clientes, irão paulatinamente abrir estabelecimentos nesses locais. Na verdade, a regra estampada na lei complementar nº 166/2003 é residual, porquanto, na imensa maioria das vezes, o serviço é prestado no próprio município onde se localiza o estabelecimento prestador. O fato imponível ocorre no município em que está estabelecida a empresa. Assim, há uma coincidência entre o local da prestação e o local do estabelecimento. Em síntese, o serviço, como regra geral, é prestado no estabelecimento empresarial. A Lei complementar rege um número reduzido de situações se comparadas com o que ordinariamente acontece, ou seja, identidade entre o local da prestação do serviço (fato gerador do tributo) e o local onde se situa o estabelecimento prestador. Nem por isso se deve reduzir a importância da lei complementar que dirime, sem nenhuma pecha de inconstitucionalidade, os conflitos de competência nas situações denominadas residuais ou extraordinárias, com aparente dissociação entre o local da prestação e o local onde se fixa a unidade econômica da empresa. Nesses casos é que a norma terá verdadeira eficácia ou, em outras palavras, utilidade. CONCLUSÃO Destarte, pela técnica adotada pela Lei complementar nº 116/2003, expressando de forma mais enfática a “men legis”, para dirimir conflitos de competência tributária, vislumbram-se três critérios: a) o critério geral em razão do estabelecimento prestador de serviço; b) o critério subsidiário em razão do domicílio do prestador do serviço; c) o critério excepcional em razão do local da prestação do serviço. A referida norma dirime, em verdade, conflitos residuais de competência tributária, pois, na grande maioria das situações, há identidade entre o local da prestação ou execução do serviço e o local onde se encontra o estabelecimento prestador. Desse modo, não resta dúvida de que o ISSQN é devido, como regra geral, ao município onde se situa o estabelecimento prestador dos serviços. Logo, a regra de competência a ser observada é aquela estabelecida no artigo 3º da LC nº 116/2003. No entanto, a matéria ainda será objeto de apreciação definitiva pelo STF.8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRETO, Aires F.. ISS na Constituição e na Lei. 2. ed.. São Paulo: Dialética, 2005. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997. CARRAZA, Roque Antônio Imposto sobre serviços . Revista de Direito Tributário, São Paulo, Ano 89, nº 48, p. 201, mês abr-jun. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005. DERZI, Misabel Abreu Machado. O aspecto espacial do Imposto Municipal sobre Serviços de Qualquer Natureza. In: TORRES, Heleno T. (org.). Imposto sobre Serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/03 e na Constituição. São Paulo: Manole, 2004. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. 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Direito Constitucional. 13. ed., São Paulo: Atlas, 2003. MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e Prática do Imposto Sobre Serviços. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Tributário na Constituição e no STF. 12. ed. São Paulo: Impetus, 2007. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo Soares de. Impostos - Federais, Estaduais e Municipais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. TORRES, Heleno T. (org.). Imposto sobre Serviços – ISS na Lei Complementar n. 116/03 e na Constituição. São Paulo: Manole, 2004. Dedico este artigo aos amigos da Procuradoria Geral do Município de Belo Horizonte e aos amigos da Universidade Federal de Juiz de Fora, porque nunca podemos nos esquecer de onde viemos!