As raízes do liberalismo: liberdade e propriedade no pensamento
político do século XVII
Javier Amadeo1
I.
O pensamento político inglês do século XVII se constitui como um elemento
fundamental na transição para perspectivas políticas modernas, das quais uma de suas
marcas essenciais é o surgimento da consciência cívica. A essência desta alteração
encontra-se no desenvolvimento de uma consciência da dimensão pública na vida
social. A ideia de consciência cívica se refere à percepção de que existe uma ordem
pública, de que a ordem social é um espaço de problemas e propósitos compartilhados,
e na problematização desse reconhecimento como central na discussão política. O
desenvolvimento desta visão cívica expressa uma alteração radical em relação ao
pensamento político dominante. Implica não só um contexto político novo, mas
fundamentalmente uma reestruturação profunda nas concepções relativas à natureza e
ao propósito da autoridade política, uma redefinição total nos deveres e obrigações dos
cidadãos, e uma mudança radical no foco das lealdades e dos interesses2.
Sem dúvida o intenso conflito político, social e religioso pelo qual passou a
Inglaterra durante este século foi uma precondição indispensável na redefinição dos
problemas políticos da época. Um dos elementos centrais no surgimento dessa
consciência cívica na história inglesa radica na controvérsia constitucional nas décadas
que precederam a guerra civil. O ponto crucial foi uma dramática reestruturação da
visão política no meio de uma crise profunda, e o que emergiu deste prolongado debate
foi uma definição radicalmente nova dos direitos e deveres do cidadão, o que por sua
vez envolvia concepções novas de autoridade política legítima. A gravidade da crise
provocou uma profunda exploração e experimentação intelectual, dando lugar ao
surgimento de ideias e conceitos que se transformariam em dominantes no pensamento
e no discurso políticos modernos.
1
Licenciado em Ciência Política pela Universidade de Buenos Aires, Doutor em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo, pós-doutorado no Departamento de História da mesma instituição e Professor
do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
2
Cf. Hanson, 1970: 1.
Um dos problemas, e desafios, centrais para o estudioso é entender como surgiu
a consciência cívica em um ambiente intelectual dominado por conceitos jurídicos e
teológicos. A Inglaterra do período podia ser definida como um corpus misticum, isto é,
como uma comunidade de razão apta para reconhecer as leis racionais e uma
comunidade de experiência adequada para seguir um conjunto de costumes transmitidos
pela tradição; não era uma comunidade de ação em que os cidadãos participavam das
decisões do governo3. Foi a partir do colapso da autoridade política e da guerra civil que
diferentes elementos de tradições discursivas distintas puderam se desenvolver, dando
lugar ao surgimento da consciência cívica. Como afirma Pocock, a dissolução de facto
do governo neste processo foi central porque colocou a necessidade de pensar a forma
de governo que devia substituí-la, colocando uma série de problemas políticos, éticos,
religiosos e legais em relação às obrigações do súdito e em relação ao direito do
governo de exigir obediência. Neste momento de aguda crise política, e em meio a um
quadro conceitual complexo, as diferentes doutrinas tentaram refletir, principalmente
nas linguagens da lei, civil e também natural, sobre uma série de problemas teóricos em
relação a: direito, propriedade, revolução, natureza e conhecimento, e a relação entre
autoridade política e obrigação (Pocock, 1996a: xii). Desta forma, é possível sustentar
que a consciência cívica na Inglaterra revolucionária não se articulou a partir de uma
tradição de linguagem exclusivamente, e sim a partir de uma série de tradições
discursivas que fizeram eclosão com a dissolução do governo.
Um dos elementos centrais para entender as origens do liberalismo está
relacionado com as importantes mudanças ocorridas no século XVII nos modos de
apropriação e exploração da propriedade. Um dos temas centrais na história do
pensamento político é como estas mudanças se expressavam na consciência política do
período. Como afirma Pocock (2001c), autores importantes do período, século XVII,
fundaram suas explicações da crise política de metade do século XVII na percepção das
mudanças nas relações de propriedade. No entanto, afirmar que estavam ocorrendo
transformações nas relações de propriedade, continua o autor, parece ser insuficiente. O
problema teórico implica entender os complexos mecanismos pelos quais a consciência
política do período conseguiu captar esse tipo de transformação social, particularmente
porque esse tipo de transformação nunca havia sido observado anteriormente (Pocock,
2003c: 111).
3
Cf. Pocock, 2003a.
Com base nestas questões o texto busca entender as origens do liberalismo,
analisando as relações existentes entre liberdade e direitos políticos, e como estas se
relacionavam com as profundas mudanças nas formas de propriedade que estavam
ocorrendo no período.
II.
Como afirma Pocock (2001c), um dos elementos centrais da teoria política e da
história do pensamento político das últimas décadas relativo à crise política e social da
Inglaterra do século XVII foi ter avançado rumo a uma compreensão mais sofisticada
sobre os fenômenos do período, um dos componentes fundamentais foi uma
compreensão mais dialética da relação entre autoridade e liberdade, tanto na esfera
política quanto no pensamento político do período. A obra de J. H. Plumb (1967) sobre
o “desenvolvimento da estabilidade” e o “desenvolvimento da oligarquia” centrou sua
atenção no segundo período crítico de 1680-1720, rediscutindo assim a importância
central do primeiro período crítico de 1640-1660. Tanto o trabalho de Plumb como o
próprio trabalho de Pocock4 ressaltaram a importância do último período para o
surgimento de uma Inglaterra mercantilista e imperial. Estes trabalhos de busca das
origens dessa “nova” Inglaterra colocaram a necessidade de retornar ao primeiro
período de crise e examiná-lo tanto à luz da Restauração como da Revolução. No
entanto, uma analise do esgotamento do impulso revolucionário não implica negar o
caráter radical ou revolucionário dos eventos da década de 1640 (Pocock, 2001c: 101).
Por outra parte, a partir das pesquisas desenvolvidas nos anos recentes, não é
mais possível estudar o primeiro período de crise tendo em mente apenas Hobbes, ou o
segundo período, tendo em mente apenas Locke. O pensamento político do período foi
estrutura tanto por filósofos e autores como um pensamento sistemático como por
autores que escrevem no calor do momento e com objetivos específicos nesse
conturbado período histórico. Cada período, afirma o Pocock, “fornece uma textura
complexa, e muitas vezes contraditória, de pensamento, que tanto proporciona o
contexto para Hobbes ou Locke, quanto demonstra funcionar autonomamente”5. Desta
forma uma compreensão do primeiro período crítico deve, sem dúvida, levar em
consideração o surgimento do antinomianismo democrático, que pode ser chamado de
4
5
Fundamental para esta discussão, Poccok, 2003a.
Para uma crítica dessa abordagem ver entre outros Meiksins Wood, 2012.
radicalismo puritano6. Algumas interpretações procuraram interpretar o radicalismo
puritano do século XVII como parte da consciência de uma burguesia revolucionária.
Para Pocock, a presença do radicalismo puritano parece ser marcante e intenso de mais,
na experiência política e social do período, para ser reduzido a uma ideologia de
pequenos comerciantes e artesãos descontentes. Nos trabalhos mais antigos, como
Puritanism and Revolution e Intellectual Origins of the English Revolution, Christopher
Hill analisa os Independentes e os Levellers em tanto pioneiros de uma sociedade de
mercado, numa perspectiva próxima às interpretações clássicas de Macpherson sobre o
individualismo possessivo7. No entanto, como continua o autor, trabalhos posteriores de
Christopher Hill, particularmente The World Turned Upside Down, nos quais analisa o
milenarismo e antonomianismo de seitas como os Seekers e os Ranters, parecem
problematizar o cenário do período enfatizando a existência de seres errantes sem rumo
e comando, próximos da agricultura das sociedades pré-industriais, e problematizando,
portanto, o tema da burguesia nascente (Pocock, 2001c: 102-3).
Em segundo elemento mencionado por Pocock, refere-se ao deslocamento sobre
a compreensão do primeiro período crítico. Como afirma o autor, a ênfase especial
sobre a ideia de libertação, dada pela visão dos santos de sua própria e radical liberdade,
deve ser complementada pela ênfase na discussão da autoridade. A percepção dos
homens do século XVII era uma percepção de indivíduos com uma mentalidade em fase
de transição para concepções políticas moderna, para os quais autoridade e magistratura
ainda eram parte de uma ordem natural; o ponto de partida do pensamento político mais
radical foi o colapso de fato da autoridade política na Inglaterra entre 1642 e 1649. a
partir de essa leitura a Controvérsia do Compromisso (Engagement Controversy)
representou uma polêmica tão importante na Revolução Inglesa quanto os Debates de
Putney8. Os pensadores ingleses tentam responder, em alguns casos com extremo
radicalismo, à necessidade de reconstituir a autoridade dado que ela se desintegrou e
que a tradição e a invocação de Deus são insuficientes para determinar um fundamento
legítimo. Ao longo dos debates do período uma série de resposta forma formuladas
pelas diferentes tradições teóricas e políticas, desde o patriarcalismo de Sir Robert
Filmer que afirmava que o individuo não possuía liberdade natural até o
antinomianismo que defendia a noção que se a lei havia sido tirada dos homens, era
6
Ver o estudo clássico de Walzer, 1965 e os trabalhos de Pocock, particularmente Pocock, 2003a.
Cf. Macpheron, 1979.
8
Sobre os debates de Putney ver Woodhouse, 1974.
7
porque o espírito devia tomar seu lugar. Tanto Hobbes como Harrington também
responderam nas suas formulações à questão que havia na natureza humana que tornava
a autoridade possível. Como afirma Pocock: “Dizer que o individuo cuja espada
estivesse enraizada na propriedade ser veria livre da fortuna para se dedicar aos bens do
intelecto, e que poderia então se unir a outro individuo para constituir uma organismo
político, cuja alma seria a inteligência coletiva, era um outro modo, bem diferentes.
Ambas eram respostas à pergunta sobre como os homens desprovidos de tudo, exceto
da espada, poderiam restaurar o governo da razão e da autoridade”. Estas eram as
respostas oferecidas por Hobbes e Harrington, no entanto grande parte do complexo
debate do pensamento inglês do primeiro período crítico pode ser vinculada à
necessidade radical de restaurar a autoridade (Pocock, 2001c: 106-7).
Desta forma podemos ver que a questão da relação entre propriedade e
autoridade, como sustenta Pocock, aparece como uma das principais controversas na
Inglaterra de meados do século XVII; os teóricos e pensadores políticos do período
debateram acerca do significado da propriedade, analisando os vários modos históricos
pelos quais ela operava na sociedade. Essas discussões se baseavam na percepção de
mudanças profundas nas relações de propriedade e como consequência nas formas de
dominação política.
A palavra propriedade (property), no século XVII, tinha um significado amplo,
era tanto um termo econômico como um termo jurídico. Como afirma Pocock (2001c:
108), ela significava o que era próprio do individuo, “aquilo que ele propriamente tinha
o direito a reivindicar, e palavras como proprium e proprietas eram aplicadas tanto ao
direito quanto à coisa, e muitas outras coisas, como os médios de sustento ou de
produção”. Nos debates da Inglaterra revolucionária era frequente tanto a sua utilização
em sentido amplo, em termos jurídicos, como no sentido econômico produtivo.
Portanto, é necessária uma análise sobre as estratégias do debate da época e,
especialmente, sobre as estruturas da linguagem do período para entender como as
transformações nas relações de propriedade se expressavam no pensamento político da
época.
III.
Entender as origens do liberalismo implica necessariamente compreender as
importantes mudanças ocorridas no século XVII nos modos de apropriação e exploração
da propriedade. Um dos temas centrais na história do pensamento político moderno é
como estas mudanças se expressavam na consciência política do período.
Como afirma Pocock, alguns autores do período fundaram suas explicações da
crise política de metade do século XVII na percepção das mudanças nas relações de
propriedade. Porém afirmar que estavam ocorrendo mudanças nas relações de
propriedade, e sustentar que poucos autores perceberam isso; e que aqueles que não o
perceberam refletiam, no entanto, as mudanças ainda sem percebê-las parece ser
insuficiente e inexato. Os mecanismos, continua o autor, pelos quais a consciência
política do momento consegue captar esse tipo de mudança social parecem ser mais
complexos (Pocock, 2003c: 111).
No seu texto clássico A teoria política do individualismo possessivo,
Macpherson procura buscar as raízes do liberalismo na teoria e prática política na
Inglaterra do século XVII inglês. Segundo o argumento do autor foi no decorrer da
prolongada luta no Parlamento, da guerra civil, da experiência republicana, da
restauração monárquica e da revolução constitucional final que evoluíram todos os
princípios que viram a ser básicos para o liberalismo9.
Uma das hipóteses centrais do livro parte da ideia que o pensamento político do
século XVII tinha como um dos seus elementos reflexivos constitutivos a percepção da
propriedade como algo negociável no mercado. Este elemento central se expressa em
uma qualidade possessiva que se encontra na concepção do individuo como “sendo
essencialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades,
nada devendo à sociedade por ela”. As relações de propriedade tinha se tornado
fundamental para um número cada vez maior de indivíduos, e eram estas que
determinavam a liberdade real e a possibilidade de realização das potencialidades do
individuo. “Achava-se que o individuo é livre na medida em que é proprietário de sua
pessoa e suas capacidades. A essência humana é ser livre da dependência das vontades
alheias, e a liberdade existe como exercício da posse. A sociedade torna-se uma porção
de indivíduos livres e iguais, relacionados entre si como proprietários de suas próprias
capacidades. A sociedade consiste em relações de troca entre proprietários. A sociedade
política torna-se um artifício calculado para a proteção da propriedade e para a
manutenção de um ordeiro relacionamento de trocas” (Macpherson, 1979: 15).
9
Retomamos a sugestão de Pocock, no entanto nosso argumento é diferente neste ponto.
Nesta interpretação a liberdade existia fundamentalmente no exercício da posse;
e a sociedade se baseava numa relação entre indivíduos livres e iguais, relacionados
como proprietários. A sociedade política, por sua vez, tornava-se uma instituição
construída essencialmente para a proteção dessa propriedade e para a manutenção de
uma sociedade baseada na troca de mercadorias.
Macpherson construiu um modelo das consequências sociais e políticas de um
conjunto de pressupostos mercantilistas10 e, confrontou a presença de elementos deste
em vários pensadores do século XVII – Hobbes, Levellers, Harrignton e Locke –
concluindo que os elementos encontrados permitiam justificar a hipótese de que as
premissas mercantilistas eram um determinante constante do pensamento desse período.
Como afirma Macpherson “Não se pode dizer que os conceitos do século XVII, de
liberdade, direitos, deveres e justiça sejam inteiramente derivados desse conceito de
posse, mas pode ser demonstrado que foram fortemente moldados por ele (...) as
suposições possessivas estão fortemente presentes, não só nas duas teorias sistemáticas
(as de Hobbes e as de Locke), mas também onde menos seria de se esperar: nas teorias
dos niveladores e nas de Harrington, com sua mentalidade aristocrática (...) essas
suposições que, de fato, correspondem substancialmente às relações reais de uma
sociedade de mercado, foram o que deu à teoria liberal sua forma no século XVII (...)”
(Macpherson, 1979: 15).
Como afirma Pocock, esta conclusão colocada por Macpherson não parece ser
dialética o bastante, parece como se o pensamento político do período expressasse de
forma precisa e sem mediações o que estava acontecendo; talvez seja necessário pensar
em uma forma mais complexa e sutil do funcionamento da consciência histórica. Uma
alternativa seria partir do pressuposto de que “existiam vários tipos de indivíduos
possessivos e de que havia um debate em andamento acerca dos vários modos de
propriedade e individualidade”; desta forma o resultado poderia ser uma descrição mais
dialética e menos reducionista do pensamento político do período. Em particular Pocock
coloca dúvidas com relação à interpretação de Harrington, porque neste autor era
possível perceber dois modelos de relação de propriedade, um definido pela presença do
domínio militar subordinado e outro por sua ausência, e o mercado não aparecia como
elemento central na diferenciação (Pocock, 2003c: 111-2).
10
Retomamos o argumento de Pocock (2003c: 111).
IV.
As interpretações dos pensadores clássicos variam de tempos em tempos,
dependendo sempre das necessidades do período presente. As interpretações sobre o
pensamento de John Locke são um exemplo particularmente claro deste processo
continuo de reinterpretação. De um período que identificava Locke como um pensador
burguês passou-se a uma fase que enfatizava o aspecto democrático radical das posições
defendidas pelo filósofo inglês. Como afirma Meiksins Wood (1992), a interpretação de
Locke como um pensador burguês implicava problemas de explicação importantes, no
entanto a reinterpretação de Locke como um democrata radical coloca problemas de
análise ainda mais complexos.
A interpretação de Locke mais formidável neste último sentido, notavelmente
bem documentada e extremamente sofisticada do ponto de vista das suas formulações,
foi formulada por Richard Ashcraft11 em Revolutionary Politics & Locke’s Two
Treatises of Government. Nesse texto Ashcraft procede a situar a Locke no contexto da
política radical dos Whigs dos anos de 1670 e 1680, das lutas sobre a tolerância
religiosa e da sucessão real, em particular da Crise da Exclusão (Exclusion Crisis)12. Os
argumentos de caráter contextual desenvolvidos por Ashcraft são complementados com
diversas interpretações textuais com relação às concepções de Locke sobre:
propriedade, consenso, representação, direito de resistência e lei natural.
11
Cf. Ashcraft, 1986.
A Crise da Exclusão, com motivo da Lei de Exclusão (Exclusion Bill), afetou Inglaterra de 1678 a
1681, sob o reinado de Carlos II e durante a Restauração. A Exclusion Bill era um projeto de lei que
buscava excluir da sucessão ao trono da Inglaterra e Irlanda ao irmão do rei, James (o futuro Jaime II de
Inglaterra) por causa do seu catolicismo. Os Tories eram contra esta medida, enquanto o “Country party”,
predecessor de whigs, era favorável. Em 1673, James recusou-se a prestar o juramento prescrito pelo Test
Act, tornando-se desta forma público seu catolicismo. Os protestantes ingleses temiam o exemplo francês
de um rei católico na cabeça de uma monarquia absoluta, e organizaram um movimento para evitar que o
mesmo acontecesse na Inglaterra, com o irmão do rei como protagonista. O 15 de Maio de 1679, o Conde
de Shaftesbury apresentou na Câmara Baixa o projeto de exclusão (Exclusion Bill), uma lei destinada à
exclusão de James da sucessão do trono. Uma minoria apoiou o pedido do filho ilegítimo de Carlos II, o
protestante James Scott, Duque de Monmouth. Os partidários da Corte fundaram o grupo tory, em tanto
que os Petitioners, que sustentaram ativamente o texto da lei, são a origem dos Whigs. Como tudo parecia
indicar que a lei seria provavelmente aprovada, o rei usando sua prerrogativa real dissolveu o Parlamento.
Os Whigs buscaram envolver o país em um movimento para manter vivos os receios do “complot
papista”. Apesar de duas tentativas falidas para restaurar o Parlamento e aprovar a Lei de Exclusão, a
Coroa conseguiu controlar as tentativas organizadas pelos Whigs. Em 1681, a causa tinha perdido todo o
apoio popular e o projeto de lei foi definitivamente abandonado.
12
A influente interpretação de Ashcraft, precedida por outros trabalhos também de
enorme importância para a interpretação do pensamento de John Locke13, estabeleceu
como o parâmetro analítico central para entender o pensamento político de Locke, o
contexto das lutas políticas de 1670 e 1680. No entanto, como afirma Ellen Meiksins
Wood, é importante destacar duas questões. Em primeiro lugar, é muito problemático
avaliar o papel de alguém como Shaftesbury (mentor político de Locke) sem analisar as
condições do capitalismo agrário inglês do século XVII e as configurações das relações
de propriedade e das práticas econômicas com elas associadas14. Em segundo,
considerar as ideias políticas de Locke associadas com a política radical Whig do
período não implica necessariamente interpretar a teoria política lockeana como
democrática15.
O argumento contextual sustentado por Ashcraft se baseia numa análise
detalhada da participação de Shaftesbury e Locke nos conflitos políticos do período16.
Ainda que Ashcraft seja cuidadoso em não realizar afirmações excessivas sobre as
convicções políticas de Shaftesbury com base na sua aliança tática com os setores
politicamente mais radicalizados; os argumentos desenvolvidos ao longo do livro
concluem, ao menos no caso de Locke, que essa associação evidencia uma fundamental
concordância teórica com estes setores políticos.
Para Meiksins Wood, existe outra explicação contextual tão plausível como a
anterior, consistente com a história pessoal de Shaftesbury e com as ideias políticas de
Locke. Para a autora, ”os setores Whigs liderados por Shaftesbury foram uma força não
democrática na Inglaterra, não a primeira, em procurar uma aliança (que posteriormente
seria abandona ou traída) particularmente com os setores radicais de Londres com o
objetivo de mobilizar uma força popular contra a monarquia”17. Para a autora, um
padrão característico de mobilização e exploração dos setores populares pode ser
traçado desde a Guerra Civil, como uma de suas causas imediatas, através das crises dos
anos 1680 e posteriormente. De fato, como afirma a autora, é possível afirmar que
existiam razões estruturais profundas para este padrão de alianças recorrente na história
política inglesa. “A classe dominante inglesa era, em comparação com suas similares
13
Sem dúvida a obra pioneira neste processo de reinterpretação foi a Introdução escrita por Peter Laslett
para a já canônica Edição dos Dois Tratados sobre o Governo, realizada pela Cambridge University Press
em 1960. Ver também Dunn, 1969.
14
Este ponto sobre o capitalismo agrário será retomado mais a frente.
15
Cf. Meiksins Wood, 1992: 658-9
16
Ver especialmente o capítulo 4 da obra de Ashcraft, 1986.
17
Sobre as alianças entre as classes proprietárias e os setores políticos radicais na Inglaterra do período
ver a obra de Robert Brenner, 1992.
europeias, a aristocracia mais desmilitarizada no Estado mais centralizado de Europa,
sendo obrigada a buscar alternativas aos exércitos privados das aristocracias tradicionais
para apoiar suas rebeliões contra a monarquia” (Meiksins Wood, 1992: 659-660).
Outro ponto deve ser enfatizado sobre a questão política do período central para
o argumento Richard Ashcraft. O autor sugere que a teoria da propriedade de Locke
deve ser situada no contexto da estratégia política Whig durante a Crise da Exclusão.
No esforço de sustentar uma aliança entre a gentry de uma lado e os setores urbanos
radicalizados de outro, os Whigs estiveram obrigados tanto a satisfazer as aspirações
mais democráticas dos últimos ao tempo que censuravam as tendências “niveladoras”
com o objetivo de tranquilizar aos primeiros, e nesta tentativa de equilíbrio delicado, a
questão da propriedade naturalmente surgiu como fundamental18.
Ashcraft trata o capítulo de Locke sobre a propriedade no Segundo Tratado
como uma das críticas mais radicais da proprietária aristocrática:
(...) Locke’s chapter on property is one of the most radical critiques of the
landowning aristocracy produce during the last half of the seventeenth century.
A qualification of this statement, as we suggest earlier, is need in order to
distinguished between the aristocracy as such and those who were merely the
useless members of that class” (Ashcraft, 1986: 273).
No contexto das alianças políticas construídas pelos Whigs, esta crítica, baseada
na defesa de Locke da produção e do melhoramento (industry and improvement), podia
ser construída – no argumento de Ashcraft – como um apelo aos setores laboriosos da
nação: comerciantes, artesãos, pequenos lojistas, assim como os pequenos proprietários
e a gentry, opostos a uma aristocracia proprietária, ociosa e fútil:
“(…) the Whigs had to alienate the gentry from the landowning aristocracy and,
if possible, to show the benefits of an economic alliance of the gentry’s interests
with those of the merchants, tradesmen, and artisans in the cities and towns. This
the Whigs attempted to do by comprehending the labor employed to cultivate
enclose the idle, luxurious, and useless large landowners who allowed their
propriety to go to waste” (Ashcraft, 1986: 244).
18
Cf. Brenner, 1992.
Ashcraft caracteriza que os ataques de Locke estão apontados contra um setor da
aristocracia agrária, assinalando que se dirigem aos membros ociosos e fúteis dessa
classe:
Locke makes this point clear when he notes that it is not “the largeness of his
possession” in land, but rather the allowing of it or its products to perish
“uselessly” that is the critical standard to be applied to landlords and landownership. So long as a landowner “made use of” his land in such a way as to
benefit others, “he did no injury” to mankind through the mere “largeness” of his
possessions (Ashcraft, 1986: 273),
A análise de Ashcraft parece partir de uma dicotomia, mais o menos sistemática,
das classes agrárias inglesas entre: uma aristocracia ociosa e uma classe de pequenos
proprietários essencialmente produtiva, esta última constituindo uma base política
natural dos setores Whigs.
Para Ellen Meiksins Wood, esta representação da sociedade inglesa de fins do
século XVII, e das divisões sociais que os Whigs tentavam explorar, é enganosa. Esta
representação, continua a autora, parece se basear menos na evidência histórica que na
oposição tradicional entre uma aristocracia passiva e parasitária e uma burguesia
produtiva e progressista. Uma visão deste tipo não se ajusta às realidades do capitalismo
agrário inglês. A cultura do melhoramento (improvement) estava bem estabelecida entre
amplos setores da aristocracia agrária. De fato Shaftesbury, o modelo do aristocrata
Whig, era ele próprio um proprietário de terras deste tipo. Não existe evidencia que a
cultura da produtividade estive mais bem representada entre a pequena gentry que entre
a grande aristocracia, e as pressões dos arrendatários de aumentar sua produtividade
provinha geralmente dos próprios latifundiários. Partindo do contexto de um
capitalismo agrário em desenvolvimento na Inglaterra do período, sustenta Meiksins
Wood, é possível afirmar que “não há nada no capítulo de Locke sobre a propriedade no
Segundo Tratado, que não seja representativo dos interesses dos grandes proprietários
de terras como Shaftesbury e não há nada nele que evidencie uma defensa dos pequenos
proprietários e trabalhadores contra a aristocracia proprietária” (Meiksins Wood, 1992:
663).
Neal Wood, por sua vez, sustenta que é possível entender alguns dos elementos
centrais de pensamento político de Locke identificando duas categorias do seu
pensamento político e social: “aqueles elementos que por se próprios não sugerem uma
teoria incipiente de capitalismo agrário, porém que servem de fundamento para ela, e
aquelas noções que são essenciais para essa teoria”. No primeiro grupo, é possível
identificar a visão de Locke que todos os membros da sociedade devem ter direito a
vida, liberdade e possessões garantidas pela lei natural. No entanto, o direito de
propriedade da terra (e outros direitos), ainda que garantidos pela lei natural, não eram
incondicionais nem direitos absolutos. Ninguém podia ser privado da propriedade em
violação com o direito natural e sem o consentimento da comunidade (Wood, 1984:
113).
Locke, como afirma Wood, também expôs uma teoria da propriedade baseado
no trabalho e aprovou o uso do dinheiro como afirmando um consenso tácito para
propriedades desiguais e para a expansão das relações de intercâmbio. Esta segunda
categoria de ideais mostra que Locke era mais que o teórico de uma sociedade agrícola.
É possível analisar o pensamento de Locke como uma teoria “de um tipo especial de
sociedade agrícola emergindo na Inglaterra”. Nos seus escritos Locke elabora
teoricamente um novo tipo de sociedade agrícola na qual ainda existe um setor agrário
tradicional e a apresenta como uma teoria do conjunto. “A percepção de uma
transformação incipiente nas relações sociais de produção agrícola que estavam
acontecendo na Inglaterra do século XVII, quando combinado com o ideal humano de
um individuo de espírito prático, egoísta, autônomo, e calculador, permite descrever a
Locke como um teórico do capitalismo agrário em desenvolvimento e, num sentido
amplo, como um pioneiro do espírito do capitalismo” (Wood, 1984: 113-4).
É possível, também, avaliar as supostas implicações radical-democráticas das
formulações de Locke desde outra perspectiva, analisando a relação entre a teoria da
propriedade e da riqueza com a possível concentração de poder político nas mãos das
classes proprietárias.
Podemos analisar alguns dos argumentos possíveis com base nesta relação19.
Um primer argumento, formulado por Martin Hughes (1990: 437)20, não só sugere que
Locke contestava a concentração de poder político, como também associa essa objeção
com uma oposição à concentração de propriedade. Um segundo argumento formulado
19
20
Retomamos o argumento de Meiksins Wood, 1992: 677.
Ver também Tully, (1980).
por Ashcraft (1986), quem é mais cauto em relação a afirmar um possível igualitarismo
político e social nas formulações de Locke, afirma que a propriedade ou a falta de
propriedade não seriam para Locke fundamento para privar a um homem de sua
personalidade política ou de sua participação na sociedade política.
É possível afirmar, contra a posição de Hugues21, que para Locke algum grau de
concentração da propriedade não só era aceitável como também desejável. O argumento
de Locke sobre a propriedade e sobre o melhoramento (improvement) implicava
identificar a acumulação não com a cobiça, mas com o benefício da comunidade, na
medida em que a acumulação incrementava a produtividade e, com ela, a prosperidade
da sociedade como um todo.
Na Inglaterra do século XVII, a propriedade estava amplamente concentrada nas
mãos dos grandes proprietários, com terras trabalhadas por arrendatários. A estrutura
social formada por: proprietário de terra, arrendatário capitalista e trabalhador
assalariado “tinha criado a agricultura mais produtiva do período na Europa”. A
experiência inglesa, e contraste com a agricultura na França dominada pelo camponês,
parecia demonstrar a clara conexão entre: “produtividade, prosperidade nacional e
concentração de terras”. A teoria de Locke toma como dada esta estrutura social como
base da produção agraria e como fonte da prosperidade inglesa, e sua teoria da
propriedade, por conseguinte, afirma a conexão entre bem público e a concentração da
propriedade agrária (Meiksins, Wood, 1992: 678)22.
V.
Consideraremos o segundo tipo de argumento para discutir uma questão chave
na Inglaterra do período, a relação entre propriedade e direitos políticos.
Mesmo considerando o consentimento de Locke a diferencias importantes de
propriedade, surge a questão se a falta de propriedade constituiria o fundamento para
negar ao um homem seus direitos políticos. A sociedade civil na perspectiva lockeana
contem indivíduos pobres e indivíduos sem propriedade, um número substancial que
dependem do trabalho assalariado para sua subsistência. Esses indivíduos teriam
21
Cf. Hugues, 1990.
Sobre as relações sociais de produção na agricultura inglesa do período, e sua relação com a teoria da
propriedade de Locke, ver Wood, 1984.
22
qualquer direito político? Ou em outros termos o que significa ter direitos políticos,
possuir uma personalidade política e ser membro da sociedade política para Locke?23.
Martin Hugues (1990) coloca juntos uma série de direitos de diferente tipo:
direito de ser governado pela lei, direito de resistência e direito de voto. Por exemplo,
para afirmar sua reinvindicação sobre direito a voto, invoca o principio de Locke
segundo o qual devia haver uma lei para “o favorito na corte e o camponês no arado”24.
No entanto esta afirmação de Locke parece um compromisso com a ordem
constitucional, na qual todos, governantes e governados, estão subordinados à lei. A
defesa do governo constitucional não é incompatível com defesa de princípios
antidemocráticos e anti-igualitários, as proposições lockeanas são mais anti-absolutistas,
liberais nesse sentido, do que democráticas.
Analisemos as posições defendidas por Locke a partir do argumento contextual
sustentado por Ashcraft (1986). Nos célebres Debates de Putney25, o argumento
utilizado pelos líderes do Exército contra a proposta dos Levellers sobre um sufrágio
amplo era precisamente que os pobres já tinham conseguido suficiente sem a
necessidade do sufrágio, conseguindo o direito de estar submetidos a um governo
constitucional em vez de ao governo arbitrário de um homem.
Como afirma Meiksins Wood, é possível ver no Segundo Tratado de Locke uma
posição política de Locke na qual os direitos compartilhados por ricos e pobres se
limitam ao direito de viver juntamente sob um governo constitucional com uma justiça
em comum. De fato a posição de Cromwell, e dos líderes do Exército, é bastante
instrutiva por várias razões, ele possibilitou um socialmente inclusivo direito à
revolução na sua forma mais dramática, mobilizando um exército popular na forma do
Novo Exército Modelo, e ao mesmo tempo negando o direito a voto da grande maioria
dos soldados. É, portanto, possível afirmar que “o radicalismo de Shaftesbury e Locke
estive mais próximo das posições de Cromwell que de os Levellers” (Meiksins Wood,
1992: 686).
Um homem podia ter o direito a ser governado por uma autoridade
constitucional, e ainda ser representado (pelo menos de forma virtual, o conceito de
23
Cf. Meiksins Wood, 1992: 685.
Locke, 2001, § 142, Hugues, 1990: 435.
25
O Conselho Geral do Exército reuniu-se em Putney, em outubro de 1647, para discutir as demandas
apresentadas pelos agitadores. Os objetivos dos líderes do Exército – Fairfax, Cromwell e Ireton – eram
em aspectos vitais incompatíveis com aqueles dos porta-vozes Levellers em Putney, desta forma os
debates representaram uma disputa crucial de poder assim como um embate entorno de princípios
políticos. Um dos pontos centrais era a questão dos direitos políticos, e em decorrência a relação entre
estes e o direito de propriedade. Para uma análise detalhada dos debates de Putney ver: Woodhouse, 1974.
24
representação virtual utilizado nos debates do período é fundamental neste sentido) no
Parlamento sem ter necessariamente direito a voto26. Isto possivelmente é o que implica
para Locke ser membro da sociedade política. É certamente suficiente, na visão do
filósofo inglês, para dotar a um homem de personalidade política.
Existia uma diferencia fundamental entre servidão e trabalho assalariado, que é
decisiva neste ponto da discussão. O servo está sujeito a uma dependência de caráter
pessoal, a uma subordinação pessoal que se expressa num status jurídico inferior. No
caso do trabalhador assalariado a relação é diferente. Como afirma Meiksins Wood, a
diferença entre um trabalhador assalariado e um servo é precisamente que, no caso do
último existe uma relação de desigualdade jurídica e dependência pessoal, que não
existe no caso do trabalhador. Proprietário e trabalhador assalariado, senhor e servidor,
como parte de um contrato, são iguais frente à lei, assim como juridicamente livres.
Ainda quando as condições do mercado foram desvantajosas para o trabalhador com a
consequência que sua liberdade de movimento era efetivamente negada, existia uma
igualdade e liberdade do ponto de vista jurídico. O trabalhador estava subordinado a
uma autoridade impessoal, constitucional, num sentido que o servo por definição não
estava. “A visão de Locke sobre senhor (master) e servidor (servant) não era
completamente inequívoca, porém Locke podia afirmar, com absoluta consistência e
sem realizar qualquer reivindicação sobre o direito a voto, que o trabalhador (homem
adulto) era livre e igual perante a lei, e desta forma possuída certos direitos
constitucionais e ainda uma personalidade política” (Meiksins Wood, 1992: 686-7).
O que significa, de acordo com as formulações de Locke, possuir personalidade
política, ou de para formulá-lo de maneira mais precisa: ser membro de uma sociedade
política? As referências de Locke não estabelecem uma relação direta entre ser membro
da sociedade política e direito de voto. Os homens são membros de uma sociedade
política quando:
“(...) estão unidos em um corpo político e têm uma lei estabelecida comum e
uma judicatura à qual apelar, com autoridade para decidir sobre as controvérsias
entre eles e punir os infratores, estão em sociedade civil uns com os outros”
(Locke, 2001, § 87).
26
Cf. Meiksins Wood, 1992: 686.
Como sustenta Meiksins Wood, a solução política encontrada por Locke
consiste em afirmar que os homens de mais baixa condição (meanest man), cuja
propriedade consista unicamente na vida e na liberdade, porém sem possessões, podem
ser membros da sociedade política e possuir uma personalidade política, ainda que não
tenha direito a voto, dado que são governados por uma autoridade constitucional sujeita
à regra da lei e não ao governo pessoal. Os argumentos desenvolvidos parecem colocar
a Locke como “um defensor do ‘governo constitucional’ ou ‘limitado’, um crente na
tradicional ‘constituição mista’, ainda que na sua forma mais ‘constitucional’ e
parlamentar. No espectro político de seu tempo e lugar, Locke pode sem dúvida ser
colocado entre os membros menos conservadores do partido Whig, no entanto isto de
forma alguma permite afirmar uma posição política democrática radical, mesmo pelos
padrões de aquele período” (Meiksins Wood, 1992: 689).
VI.
Para concluir, gostaríamos, brevemente, buscar retomar algumas das questões
colocadas no inicio do texto sobre as origens do liberalismo. Para Pocock, a ideia de
Macpherson que o pensamento político do século XVII tinha como um dos seus
elementos reflexivos constitutivos a percepção da propriedade como um bem
intercambiável no mercado parece explicar um grupo de fenômenos, no entanto não
responderia pelos fenômenos contrários. O pressuposto que coloca o surgimento do
homo economicus em algum momento do século XVII parece, continua o autor, levar
em conta apenas alguns fenômenos históricos. Para Pocock, “o ideal clássico
simplesmente não morreu, que ele foi retomado com a grande recuperação da
aristocracia que marca o final do século XVII e início do XVIII, resultando em que a
questão da propriedade foi discutida no contexto político da autoridade versus
liberdade. A propriedade era a base da personalidade” (Pocock, 2003c: 125).
Como afirma Pocock, no século XVIII tinha surgido um “indivíduo
historicamente problemático, que não podia nem retornar à antiga virtude nem
encontrava meios de substituí-la completamente”. Pocock pretende com isso questionar
não a realidade histórica do liberalismo e sim as interpretações liberais da história, no
qual o pensamento político de aproxima ou distancia de uma visão dominada por ideias
liberais. Para Pocock, o que aconteceu no século XVIII “não foi uma transformação
unidirecional do pensamento, no sentido de uma aceitação do homem ‘liberal’ ou
mercantil, mas um acerbo, consciente e ambivalente diálogo” (Pocock, 2003c: 125-6).
Concordamos com a posição de Pocock sobre que a transformação no
pensamento político não foi unidirecional, a questão parece ser mais complexa. Como
tem demonstrado vários autores, e o trabalho de Pocock neste sentido tem sido
fundamental27, o pensamento republicano continuou tendo uma presença importante nos
debates políticos do século XVIII, especialmente no mundo anglo-saxão. No entanto,
ter uma visão mais dialética do processo não deve implicar negar um processo de
transformação radical nas relações de propriedade, como temos analisado, no sentido do
surgimento de um novo tipo de relações de propriedade, que tem sido denominado
capitalismo agrário na Inglaterra do século XVII, e uma transformação igualmente
importante do pensamento político.
27
Ver Pocock, 2003.
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