O DIREITO DE SUPERFÍCIE COMO INSTRUMENTO PARA IMPLEMENTAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA PARA IMPLEMETAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA* THE RIGHT OF SURFACE AS A TOOL FOR IMPLEMENTING THE SOCIAL FUNCTION OF URBAN PROPERTY FOR IMPLEMENTATION OF THE FUNDAMENTAL RIGHT TO HOUSING Maria Lirida Calou Araújo e Mendonça Marcio Rodrigues Melo RESUMO Este trabalho trata do direito de superfície, discutindo a relevância do instituto para a consecução da função social da propriedade urbana. Aborda a história do instituto jurídico propriedade e especificamente, apresentando o desenvolvimento histórico da propriedade no Brasil em razão da colonização portuguesa. Discute a função social da propriedade urbana nos termos da Constituição Federal de 1988, que serviu de parâmetro para elaboração do Estatuto da Cidade ( Lei Federal no 10.257, de 10.jul.2001) e do novo Código Civil, que reinseriram no ordenamento jurídico pátrio o direito de superfície. Analisa também o direito de superfície nos termos do Estatuto da Cidade e do Novo Código Civil, apresentando os pontos convergentes e divergentes do instituto nos dois diplomas legais. Constata o presente trabalho que o correto uso do instituto referido pode ser um instrumento eficaz para os gestores municipais aplicarem a função social à propriedade urbana, implementando, então, o direito constitucional a moradia. O enfoque metodológico desta pesquisa é de natureza qualitativa, com fins descritivos e do tipo bibliográfico. Como resultado, constata-se que a função social da propriedade urbana pode ser atingida mediante o uso adequado do direito de superfície. PALAVRAS-CHAVES: PROPRIEDADE. FUNÇÃO SOCIAL. DIREITO DE SUPERFÍCIE. DIREITO A MORADIA. ABSTRACT This work addresses the right surface, discussing the relevance of the Office to achieve the social function of urban property. Discusses the history of the institute legal ownership and specifically, the historical development of property in Brazil because of the Portuguese colonization. Discusses the social function of urban property in accordance with the Constitution of 1988, which served as a parameter for development of the City Statute (Federal Law no.10.257 of 10.jul.2001) and the new Civil Code, which re-legal mother the right to surface. Also examines the right of area under the Statute of the City and the New Civil Code, giving the converging and diverging points of the institute in two acts. This study finds that the correct usage of the Office that may * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009. 5938 be an effective tool for local managers to implement the social property urbana. O methodological focus of this research is a qualitative, with descriptive purposes and the type bibliography. As a result, it appears that the social function of urban property can be achieved through the appropriate use of the right surface KEYWORDS: PROPERTY. SOCIAL FUNCTION. RIGHT TO SURFACE. RIGHT TO HOUSING. INTRODUÇÃO A função social da propriedade, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, tornou-se parte integrante do conceito de propriedade, sendo assim, o caráter individualista e absoluto da propriedade, sem atender a função social, foi abolido pelo novo ordenamento jurídico. Neste contexto, o estudo da função social da propriedade estabelecida na Constituição Federal de 1988 torna-se imprescindível, visto que pelo princípio da função social da propriedade, depreende-se que somente será legítima a propriedade que atender aos fins coletivos. Considerando o processo de intensa urbanização ocorrido no Brasil, a partir da metade do século XX, na qual o êxodo rural e o desenvolvimento econômico do país são considerados os principais motivos do fenômeno citado, resultando no crescimento desordenado das cidades brasileiras, onde as condições de moradia são precárias. Verifica-se então, a dificuldade das metrópoles brasileiras em organizar os seus espaços urbanos, tendo em vista o aumento do contingente populacional e de demandas sociais exigidas pela coletividade do poder público. A regulamentação dos artigos 182 e 183 da Lei Maior, mediante Lei Federal 10.257, de 10.jul.2001, também denominada Estatuto da Cidade, apresenta mecanismos para melhor gestão dos municípios brasileiros. No que concerne a função da propriedade urbana, a citada lei reintroduziu o direito de superfície como instrumento importante para consecução da função social da propriedade urbana. Ressalta-se que o referido instituto também foi positivado no Código Civil de 2002, razão pela qual se deve analisar os pontos convergentes e divergentes do instituto em ambos os diplomas legais. Ademais, tratando-se o direito de superfície de uma exceção ao princípio da acessão, a compreensão do instituto torna-se relevante para a aplicação do mesmo com o objetivo de implementação da política urbana definida no plano diretor. Com a correta utilização do direito de superfície, os gestores municipais poderão inibir o uso de imóveis urbanos ociosos com fins especulativos, adequando assim, o uso da 5939 propriedade urbana ao plano diretor do município, desta forma, atendendo também aos fins sociais da propriedade. Diante desse quadro, indaga-se em relação a função social da propriedade urbana, existe a possibilidade de aplicação simultânea do Estatuto da Cidade e do Código Civil ou os referidos diplomas legais são excludentes. Este artigo tem o objetivo geral de analisar a utilização do direito de superfície como instrumento para consecução da função social da propriedade urbana, procurando demonstrar a aplicabilidade do instituto. A pesquisa é de natureza qualitativa, realizada na legislação e na doutrina, com fins descritivos. Quanto ao resultado, é pura ou destinada ao conhecimento, sem pretender transformar o objeto apreciado. Adota-se, portanto, o método qualitativo. Primeiramente, é feito um breve registro histórico da propriedade, abordando também o seu desenvolvimento no Brasil, seguindo-se a análise da função social da propriedade urbana na Constituição Federal de 1988. Depois são examinados o direito de superfície, a sua inserção no Estatuto da Cidade e no Código Civil. Prossegue-se com a análise do direito de superfície como instrumento para atingir a função social da propriedade urbana. 1. HISTÓRIA DA PROPRIEDADE A história do homem confunde-se com a da propriedade, tendo em vista que o referido instituto acompanha o homem desde as épocas mais remotas. Na obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Engels estudou a gênese da propriedade. No oriente antigo, especificamente entre os persas, a propriedade era familiar e tribal. O fenômeno da individualização da propriedade ocorreu entre os romanos e gregos, destacando-se no período romano, três espécies de propriedade: a quiritária, a pretoriana e do ius gentim, que apresentavam as seguintes características: Quiritária: o domínio da propriedade quiritária estava submetida a condições estritas de ordem nacional e de forma, ao fim e ao cabo, restrito. Pretoriana: desenvolveu-se pela jurisdição do pretor, que protegeria o adquirente de uma res mancipi contra a quem não a tinha transferido mediante o ato formal, hábil a operar a transferência reconhecida pela ius civile. Ius Gentium: desenvolve-se a partir das sucessivas reformas agrárias, onde se dividiu as terras do Estado Romano, ager publicus, com o objetivo de aplacar os ânimos dos plebeus, classe mais pobre. Conquanto os juristas elaboradores do código napoleônico tenham atribuído um caráter individual e absolutista a propriedade romana, aquela apresentava uma série de restrições, que visavam o aspecto social do uso da propriedade, conforme opina MALUF (1997, p. 11 apud IMBERT): 5940 Múltiplas restrições foram, com efeito, aduzidas ao exercício da propriedade; elas já existiam nos antigos textos jurídicos romanos, e o seu número foi aumentando até Justiniano [...]: o proprietário não pode construir em sua casa oficinas que libertem fumo ou que deixem correr água para os terrenos de um vizinho em quantidade anormal; a noção de expropriação por motivos de utilidade pública está bem estabelecida nas novelas de Justiniano; e até, por vezes, se as terras permaneciam incultas, os imperadores suprimiam pura e simplesmente o direito de propriedade para as concederem ao primeiro ocupante, com a condição de as cultivar”. Na Idade média, a propriedade caracterizava-se pela inexistência do conceito unitário de propriedade, onde se consagrava uma superposição de direitos sobre o mesmo bem. No sistema medieval, os pequenos proprietários (vassalos) cediam a terra ao senhor, que lhes permitia o gozo e fruição da propriedade. A ascensão da classe burguesa ao poder, com o advento da Revolução Francesa, proporcionou a individualização e sacralização da propriedade, assim estabelecida na Declaração de 1789: “ A propriedade sendo um direito inviolável e sagrado, ninguém pode dela ser privado, a não ser quando o exigir evidentemente a necessidade pública, legalmente acertada e sob a condição de justa e prévia indenização”. Sob influência da codificação napoleônica e da escola pandectística alemã, as codificações, posteriores a Revolução Francesa, cunharam um modelo de propriedade individual e abstrato, tendo em vista os objetivos primordiais de uma sociedade capitalista: um instrumento ágil, conciso, funcional, caracterizado pela simplicidade e abstração. A partir das diferenças sociais criadas pelo modelo capitalista liberal, o caráter subjetivo da propriedade recebe contestações, sendo as críticas postas pelo francês Leon Duguit uma referência na concepção de uma função social da propriedade, ao considerar que a propriedade deveria ser vista nela, como função social, não havendo direito subjetivo do proprietário, que certamente, deveria ser considerado o detentor da riqueza, gerindo um bem socialmente útil. Então, o estado capitalista obrigou-se a flexibilizar o direito de propriedade com o objetivo de conter o avanço das idéias socialistas, subordinado assim, o exercício do direito de propriedade a sua função social. 1.1 Direito de propriedade no Brasil O Código Civil português de 1867 inovou ao consagrar em seu art. 2.167 a função social do direito real. A outorga concedida pelo Rei aos seus súditos mais fiéis de porções de terras comparáveis a países europeus, por meio de concessão de Capitanias Hereditárias, no Brasil do século XVI, representava o domínio das vastas terras, pela colonização portuguesa. Fracassado o sistema inicial, vigorou o sistema de sesmarias, o qual condicionava sua concessão ao aproveitamento útil e econômico que geralmente não era atingido. O sistema de posses foi introduzido no Brasil em 1850, pela Lei 601, Lei de Terras, cujo conteúdo permitiu concluir que a aplicação do sistema de sesmaria originou a formação da propriedade privada. A Lei de Terras visava à regularização do sistema distributivo 5941 de terras, tornando legal a apropriação originária, a ocupatio, condicionada à efetiva atividade exploratória do isolamento físico da demonstração do interesse pela gleba ocupada. Assevera VARELA (2005, p. 139): [...] Nessa condição de norma de transição, verdadeiro divisor de águas, a Lei 1850 procura, de uma lado, legitimar as apropriações anteriores, que revestem as formas de apossamento, das datas, das sesmarias – sendo o critério legal utilizado, precisamente, o do efetivo cultivo e morada sobre as terras, como adiante examinaremos. Ainda que o caráter absoluto da propriedade já estivesse sob contestação em diversos páises, o Código Civil Brasileiro de 1916 optou pelo modelo individual da propriedade nos termos do art. 524, que dispõe: “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua”. O civilismo tradicional, representado pela ideologia oitocentista, cunhou o instituto jurídico propriedade de forma absoluta, exclusiva, perpétua e ilimitada. Entretanto, o novo padrão de propriedade, instituído a partir da Constituição Federal de 1988, não retira o caráter individual da propriedade, apenas o relativiza em razão da função social. O novo Código Civil dispõe que "o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas" (Código Civil, art. 1.228, § 1º) e que "são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem" (§ 2º). Na opinião de MEZZI (2006, p. 386): Pelo reconhecimento da função social, fica claro que o absolutismo – como característica da propriedade – recebe tratamento diferenciado do que era previsto na codificação revogada. O absolutismo individual, que representava o arbítrio do proprietário de fazer do bem tudo aquilo que desejava e que já vinha recebendo mitigações, acaba por curvar-se ante a visão da utilização da propriedade sempre em consonância com a finalidade social. Portanto, o novo diploma legal adequa-se ao disposto no texto da Lei maior ao consagrar a função social da propriedade em seu texto. 2 FUNÇÃO SOCIAL INTERGRADA À ESTRUTURA E AO CONCEITO DE PROPRIEDADE Em razão das modificações das características da propriedade, muitos autores consideraram a função social da mesma como limitação de maior extensão sobre o referido instituto. Ocorre que o termo limitação advém de um conceito externo a propriedade, desta forma, incidindo sobre o conteúdo da mesma. 5942 Todavia prevalece o entendimento majoritário que a função social consubstancia parte integrante do conteúdo da propriedade, conforme aduz MARCOS ALCINO DE AZEVEDO TORRES (2008, p. 236): “Deve-se então, desde logo, buscar estabelecer uma premissa fundamental em tema de função social: ser ela parte integrante (essencial) da estrutura do conteúdo do direito de propriedade, influenciando na sua caracterização e no seu conceito”. Para se compreender a significação da integração da função social ao conteúdo da propriedade, vale a lição de PONTES DE MIRANDA (1970, p. 40) ao expor a teoria dos bens jurídicos da seguinte forma: “Chamam-se partes integrantes as partes concretas que entram na unidade que faz a coisa. Se não podem ser separadas, sem que, com isso, se deteriorem as outras, ou elas mesmas, ou sem que modifiquem em sua natureza aquelas, ou essas, dizem-se essenciais”. O constituinte da Lei Maior disciplinou que: “a propriedade atenderá a sua função social”, não especificando que cabe ao legislador infraconstitucional impor limites à propriedade. Também o § 2º do art. 182 estabelece: “ A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende...”. O art. 186 dispõe que: “A função social é cumprida quando...”. Os dispositivos mencionados evidenciam que a função social é intrínseca ao próprio instituto. Sendo intrínseco ao conceito de propriedade, a função social imprime um sentido impositivo ao legislador ordinário, uma vez que qualquer lei que ignore a função social da propriedade resta inconstitucional. Por sua vez, os limites impostos à propriedade apresentam conteúdo negativo, pois se aproximam do poder de polícia administrativa. Entre os doutrinadores que consideram que a função social integra a estrutura e o conceito de direito de propriedade, pode-se citar: Gustavo Tepedino, Francisco L. Loureiro, Melhim Chalu, Roger Raupp, José Diniz Moraes, Vladimir da R. França, Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira, Luciano de Sousa Gody e Luiz Edson Fachin. 3 A PROIPRIEDADE URBANA E A FUNÇÃO SOCIAL NOS TERMOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Na política urbana, a Constituição Federal de 1988 tentou corrigir um equívoco das constituições passadas, que não abordavam o urbanismo em seus textos. Por isso, o constituinte tratou de modo específico da propriedade urbana, tornando-se um marco no direito urbanístico brasileiro. A propriedade insere-se entre o rol de direitos fundamentais, estando disposta no art. 5o, inciso XXII da Lei Maior. As diretrizes constitucionais da propriedade estão dispostas também nos incisos XXIII (atendimento a função social), XXIV (prévia e justa indenização em caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública). No título VII “Da ordem econômica e Financeira”, o texto constitucional disciplina os princípios da atividade econômica e dentre eles traz a propriedade (art. 170, II) e a função social (art. 170, III). Desta forma, a propriedade individual, concebida exclusivamente para os interesses individuais e egoísticos do proprietário não é mais 5943 concebida diante da ordem jurídica vigente. Na lição do ministro Eros Roberto Grau (2008, p. 239): “A propriedade dotada de função social é justificada pelos seus fins, seus serviços, suas funções". Especificamente sobre a propriedade urbana, a Carta Magna dispõe sobre a função social desta no capítulo específico da política urbana nos seguintes termos: Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. § 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro. § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. O planejamento, mediante o plano diretor, tornou-se indispensável nas grandes cidades, visto que para o cumprimento da função social da propriedade urbana deverá ser atendido às condições estabelecidas no citado plano. Do caput do artigo transcrito, constata-se que: I.Necessidade uma política de desenvolvimento urbano; II.O Poder Público municipal como agente executor desta política; III. O estabelecimento de diretrizes gerais através de lei; IV. A atribuição de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e 5944 V. De garantir o bem-estar dos habitantes. Conquanto muitos municípios tenham promovido a elaboração de seus planos diretores, observado o disposto na nova ordem constitucional, isto é, como instrumento básico de política de desenvolvimento e de expansão urbana, somente com a edição da Lei Federal n.10.257, o Estatuto da Cidade, que entrou em vigor no dia 10 de outubro de 2001, regulamentou as diretrizes gerais de que trata o caput do artigo 182 da Carta Magna. Na opinião LILIAN REGINA (2007, p. 49): “A política urbana recebeu tratamento constitucional, e a Lei Federal no 10.257/2001 – Estatuto da Cidade – estabeleceu suas diretrizes gerais. Entre os instrumentos postos pela Lei Federal no 10.257/2001 com o objetivo de cumprimento da função social da propriedade urbana, está o direito de superfície, que será examinado posteriormente. 4. DIREITO DE SUPERFÍCIE O direito de superfície surgiu com os romanos no período clássico, tendo sido consagrado no período de Justiniano. No Direito moderno, não foi recepcionado pelo Código Napoleônico, porém foi positivado na Alemanha (§§ 1012 e 1017, alterados pela Lei de 04/03/1919), Portugal (arts. 1524 e 1542 do CC. de 1967), Espanha (Dec. Legislativo nº 1/1992 que alterou a Lei do Solo de 1956 estabelecendo o artigo 287 nº 1) e na Suíça. No Brasil, inicialmente o direito de superfície foi recepcionado em razão do direito português Lei de 20/10/1823, vigorando até 1.864, quando revogado pela Lei 1237, de 24.set.1864. Existem doutrinadores que entendem que o instituto do direito de superfície ressurgiu no ordenamento jurídico pátrio na figura da concessão de uso art. 7º, do Dec. Lei nº 271, de 28.fev.1967 pelo qual: "É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito resolúvel, para fins específicos de urbanização, edificação, cultivo da terra ou outra utilização de interesse social." Pode-se conceituar o direito de superfície como o direito real sobre um terreno, conferido a uma pessoa (superficiário), com o objetivo de construir e/ou plantar, a título gratuito ou oneroso. Nas palavras de VENOSA (2006, p. 424): “Trata-se, como menciona a lei, de uma concessão que o proprietário faz a outrem, para que se utilize de sua propriedade, tanto para construir como plantar”. Verifica-se então, que o direito de superfície é uma exceção à regra de que o acessório segue o principal, conforme opina FIGUEIRA JÚNIOR(2008, p. 1471 apud RICARDO LIRA): “[...] para chegarmos aos contornos conceptuais do direito de superfície, devemos partir da noção de acessão. (..) Os fenômenos da edificação (inaedificatio) e da plantação (plantatio) são denominados pelo princípio superficies solo cedit, por força do qual tudo que se planta ou constrói em solo alheio é da propriedade do dono do solo. O direito de superfície é substancialmente uma suspensão ou interrupção da eficácia do princípio da acessão. 5945 O acórdão proferido pelo Tribunal do Rio Grande do Sul demonstra que a regra de acessão, do art. 59 do Código Civil não é absoluta nos seguintes termos: 4. TIPO DE PROCESSO: Apelação Cível NÚMERO: 583010699 - Não Possui Inteiro Teor Decisão: Acórdão RELATOR: Galeno Vellinho de Lacerda EMENTA: REGISTRO DE FORMAIS DE PARTILHA COM CONDOMINIO EM AREA DIVISIVEL E PROPRIEDADE EXCLUSIVA DE CONSTRUCOES A ALGUNS CONDOMINOS. POSSIBILIDADE, POIS A REGRA DA ACESSAO, DO ART-59 DO CC, NAO E ABSOLUTA, PERMITINDO CONVENCAO EM CONTRARIO, E O ART-632 DO CC ADMITE PROPRIEDADE EXCLUSIVA DE BENFEITORIA NO CONDOMINIO. DOUTRINA, TRADICAO E TENDENCIA DE NOSSO DIREITO A PROPOSITO DO TEMA. DIREITO DE SUPERFICIE. DUVIDA IMPROCEDENTE. Quando se constitui o direito de superfície há um direito de propriedade do solo, que necessariamente continua a pertencer ao proprietário, porém o superficiário terá a possibilidade de exercitar a faculdade de edificar ou plantar sobre o terreno com vistas a adquirir a propriedade superficiária, exercendo o direito de usar, gozar e desfrutar das edificações e plantações objeto da superfície. Em razão do fenômeno da acessão, tudo aquilo que acede permanentemente ao solo passa a ser da propriedade do dono do solo. Entretanto, existindo a determinação do direito de superfície, duas pessoas podem convencionar que a primeira possa construir sobre o terreno de propriedade da segunda, de tal forma que a edificação seja do domínio ela, permanecendo o lote ao patrimônio do cedente. Na legislação pátria, o direito de superfície encontra-se normatizado tanto no Estatuto da Cidade como no Código Civil de 2002, razão pelo qual será abordada a existência do instituto em diplomas legais diferentes. 5 O DIREITO REAL DE SUPERFÍCIE NO NOVO CÓDIGO CIVIL E NO ESTATUTO DA CIDADE O Código Civil de 2002 positivou o direito de superfície, que se encontrava também inserto no Estatuto da Cidade de 2001. O referido Estatuto tentou configura o direito de superfície como um novo instrumento de política urbana e habitação. Por sua vez, o artigo 1.225 do Código Civil dispõe expressamente como direito real, o direito de superfície. Com Título próprio no Livro III, do Direito das Coisas, na nova sistemática cível do ordenamento jurídico, a partir dos artigos 1.369 e seguintes daquele Código. Os dispositivos legais asseguram que o proprietário, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu 5946 terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente inscrita no Registro de Imóveis, podendo esta concessão ser gratuita ou onerosa. O direito de superfície, nas palavras de Maria Helena Diniz (2002, p. 399) é: “um direito real sobre coisa alheia, porque recai diretamente sobre bem pertencente a outrem, impondo restrições ao titular do domínio em benefício do usuário, durante todo o tempo de vigência do título constitutivo”. O direito de superfície poderá ser transferido por ato inter vivos ou causa mortis, sem que o proprietário do solo possa estipular o pagamento de qualquer quantia pela transferência, conforme aduz o art. 1372 do Código Civil. Por sua vez, em caso de alienação do imóvel ou da superfície, o superficiário, bem como o proprietário do solo, tem de respeitar o direito de preferência, reciprocamente nos termos do art. 1373 do Código Civil que dispõe: “ Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de preferência, em igualdade de condições”. O Estatuto da Cidade (Lei no 10.257, de 10.jul.2001) não trata o direito de superfície como direito real, existindo controvérsias doutrinárias sobre a aplicação simultânea ou não do Estatuto das Cidades ou do Código Civil em questões relacionadas ao direito de superfície. Em relação à controvérsia, opina SILVIO SAULO VENOSO ( 2006, p. 427): Se levarmos em conta a opinião aqui tantas vezes defendida de que o Estatuto da Cidade institui um microssistema, tal como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Inquilinato, portanto, sob essa óptica, o estatuto vigorará sobranceiro no seu alcance de atuação, em princípio, sobre as demais leis, ainda que posteriores. De qualquer forma, o Estatuto da Cidade direciona-se exclusivamente aos imóveis urbanos com política específica. Sendo assim, o Código Civil regula a exploração do solo mais restrita, somente para construção ou plantação, podendo o imóvel ser urbano ou rural e a cessão por prazo determinado apenas, enquanto que no Estatuto da Cidade a exploração do solo é mais ampla, desde que atendidas às regras de política urbana, caso em que o imóvel pode ser apenas o urbano e a cessão, por outro lado, tanto pode ser por prazo determinado quanto por prazo indeterminado (grifos nossos). Em posições semelhantes, tanto o Código Civil como o Estatuto das Cidades estabelecem que o acordo do direito de superfície seja realizado mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis, visto que esse requisito formal é inderrogável pela vontade das partes. O direito de superfície foi inserido no ordenamento, possuindo grande relevância, pois atua como uma das formas de se conseguir que a propriedade alcance sua função social. No direito brasileiro existe uma dupla modalidade superficiária, deduzindo que unicamente são de aplicação direta ao direito de superfície urbanística os preceitos do Estatuto da Cidade, e os do Código Civil somente se devem aplicar à superfície comum ou ordinária. Também poder-se-ia admitir certa intercomunicação entre ambas as regulamentações, de modo que a disciplina estabelecida no Código sirva, além de regular a superfície comum ou ordinária, como Direito supletivo do Estatuto da Cidade para completar a disciplina urbanística. 5947 Todavia, o mais adequado é pensar que ambas as regulamentações se integram em um todo orgânico, o ordenamento jurídico brasileiro, e, em conseqüência, deve proceder-se a uma interpretação sistemática, única, conjunta e integrada, de todo o complexo relativo ao tema. 6 DIREITO A MORADIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 O poder constituinte derivado reformador que elevou a moradia ao status de direito constitucional. A chamada competência reformadora exercida pelo Congresso Nacional ampliou o rol dos conhecidos direitos sociais, com a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que alterou a redação do art. 6º da Constituição Federal. O direito à moradia já encontrava previsão constitucional no artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal, como direito do trabalhador urbano e rural a um "salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim". Constitui, ainda, competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promover programas de construção de moradias e melhorias das condições habitacionais, nos termos do artigo 23, inciso IX, da Constituição Federal. Destarte, percebe-se que o direito à moradia é um direto essencial, já há muito tempo fazendo parte do texto constitucional, agora robustecido com sua expressa menção no elenco do artigo 6º; proporcionando, no mínimo, a facilitação da exigência de sua concretização. 7. DIREITO DE SUPERFÍCIE TRANSFORMAÇÃO DA PROPRIEDADE COMO INSTRUMENTO DE A Lei Federal n.10.257, denominada de Estatuto da Cidade, regulamentou as diretrizes gerais de que trata o caput do artigo 182 da Carta Magna, estabelecendo normas gerais de direito urbanístico, nos termos do artigo 24, I. O Estatuto, em seu capítulo I, apresenta seus princípios e diretrizes, e expressamente salienta, no parágrafo único do artigo primeiro, que as suas disposições são: “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. O direito real de superfície poderá se tornar um importante instrumento de transformação da propriedade. Cabe aos administradores públicos elaborarem e aplicarem planos de política urbana que coadunem na prática os interesses sociais e coletivos dispostos no Estatuto da Cidade, visto que o proprietário da área - cede o direito de construção sobre o seu terreno à determinada associação de moradores, aplicando o instituto do direito de superfície. 5948 Cabe aos governos municipais, de acordo com o art. 47, criarem benefícios e atrativos para as empresas participantes do projeto, (diferimento e isenção de tributos). Investimentos de infra-estrutura – pavimentação de ruas e transporte coletivo – visando o desenvolvimento da região. O direito de superfície pode apresentar-se como um direito social, que sendo aplicado, será de grande valia para inúmeras pessoas, principalmente a classe dos menos favorecidos. Por possibilitar a concessão temporária de um sujeito sobre propriedade de outro, facilita a construção de moradia em solo alheio, sem que seja abarcada pela acessão. Dessa forma, considera-se ser possível usar o instituto do direito de superfície como instrumento de transformação, uma vez que os municípios poderiam aplicá-lo para fins de melhor utilização da propriedade urbana, que não exerça a função social, desta forma contribuindo para redução da carência de moradia existente nas metrópoles brasileiras. CONCLUSÃO A história do homem confunde-se com a da propriedade, tendo em vista que o referido instituto acompanha o homem desde as épocas mais remotas. No Brasil colonial, as terras pertenciam ao Rei. A Lei 601, Lei de Terras, tornou-se um marco na tentativa de regularização das terras existentes no Brasil. O civilismo tradicional, representado pela ideologia oitocentista, cunhou o instituto jurídico propriedade de forma absoluta, exclusiva, perpétua e ilimitada. Entretanto, o novo padrão de propriedade, instituído a partir da Constituição Federal de 1988, não retira o caráter individual da propriedade, apenas o relativiza em razão da função social. Na Lei Maior, a função está disciplinada nos seguintes termos: “a propriedade atenderá a sua função social”, não especificando que cabe ao legislador infraconstitucional impor limites à propriedade. Também o § 2º do art. 182 estabelece: “ A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende...”. O art. 186 dispõe que: “A função social é cumprida quando...”. Os dispositivos mencionados evidenciam que a função social é intrínseca ao próprio instituto. Sendo intrínseco ao conceito de propriedade, a função social imprime um sentido impositivo ao legislador ordinário, uma vez que qualquer lei que ignore a função social da propriedade resta inconstitucional. Por sua vez, os limites impostos à propriedade apresentam conteúdo negativo, pois se aproximam do poder de polícia administrativa. Na política urbana, a Constituição Federal de 1988 tentou corrigir um equívoco das constituições passadas, que não abordavam o urbanismo em seus textos. Por isso, o constituinte tratou de modo específico da propriedade urbana, sendo que o planejamento urbano, mediante o plano diretor, tornou-se indispensável nas cidades com população maior que vinte mil habitantes, visto que para o cumprimento da função social da propriedade urbana deverá ser atendido às condições estabelecidas no citado plano. O processo de intensa urbanização ocorrido no Brasil, a partir da metade do século XX, na qual o êxodo rural e o desenvolvimento econômico do país são considerados os 5949 principais motivos do fenômeno citado, resultando no crescimento desordenado das cidades brasileiras, onde as condições de moradia são precárias. O instituto do direito de superfície, apresentado como direito real imobiliário, no atual Código Civil, e reinserido no Estatuto da Cidade, trouxe novas perspectivas de reformulação da propriedade imobiliária, uma vez que se pode conceder a propriedade superficiária distintamente da propriedade do solo, específica do concedente, constituindo-se, nestes moldes, incentivo à construção civil, com ensejo à mitigação do grave problema da crise habitacional no país, bem como a oportunidade de criação de novos empregos. A dinamização do domínio, mediante a constituição do direito de superfície, mostra-se conveniente para um melhor proveito do solo improdutivo ou inculto, e, no plano jurídico, elide constituições de concessões do solo, que não estavam amparadas pela norma jurídica, resolvendo-se os casos por perdas e danos. O direito de superfície pode apresentar-se como um direito social, que sendo aplicado, será de grande valia para inúmeras pessoas, principalmente a classe menos favorecida. Por possibilitar a concessão temporária de um sujeito sobre propriedade de outro, facilita a construção de moradia em solo alheio, sem que seja abarcada pela acessão. O direito de superfície torna-se instrumento importante para atender a função social da propriedade, tanto quando disposto no Código Civil quanto no Estatuto da Cidade, com mecanismos em que permitem a utilização, por exemplo, do solo ou de prédios inacabados, a fim de promover o almejado bem estar social. REFERÊNCIAS DINIZ, Maria Helena. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1977. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. 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