DEFICIÊNCIA DE GLICOSE-6-FOSFATO DESIDROGENASE – A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO. Glucose - 6 - Phosfate dehydrogenese defeciency - a case report Olga GOMES1;Maria do Castelo BILÉU 2;Lucia BORGES3 INTRODUÇÃO ABSTRACT A Glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD) é uma enzima citoplasmática cuja função primordial é assegurar o potencial “redox” da célula. Existe em todas as células do organismo humano e em todos os organismos da cadeia evolutiva, desde os protozoários às plantas e animais, o que pressupõe que a sua actividade seja factor biológico indispensável. A necessidade da actividade de G6PD no glóbulo vermelho para assegurar níveis suficientes de NADPH e glutatião reduzido fica provada pelo facto de indivíduos portadores de variantes com actividade reduzida sofrerem episódios de hemólise intravascular por acção de factores oxidantes (favas, fármacos e infecções) ou anemia hemolítica persistente. Os autores apresentam o caso de uma mulher previamente saudável com quadro de astenia, anorexia e cansaço 2 dias após ingestão de favas. Analiticamente é de salientar hemoglobina de 7.3 g/dL que recuperou espontaneamente. O diagnóstico molecular mostrou que a doente era portadora em heterozigotia da variante A- (A menos) da G6PD. Palavras-chave: Glucose-6-fosfato-desidrogenase, Favismo, Variante A-. Glucose-6-phosphate dehydrogenase (G6PD) is a cytoplasmic enzyme whose primary function is to ensure the cellular redox potential. It exists in all cells of the human body and in all organisms of the evolutionary chain, from protozoa to plants and animals, which implies that its activity is an indispensable biological factor. The need for activity of G6PD in the red blood cell to ensure sufficient levels of NADPH and reduced glutathione is proved by the fact that individuals bearing a reduced activity variant suffer episodes of intravascular hemolysis by the action of oxidizing factors (fava beans, drugs and infections) or persistent hemolytic anemia. The authors present the case of a previously healthy woman with asthenia, anorexia and fatigue two days after ingestion of fava beans. Analytically, the only relevant alteration was a hemoglobin of 7,3 g/dl which spontaneously recovered. Molecular diagnosis revealed the patient was a heterozygous carrier of A- (A minus) G6PD variant. Keywords: Glucose 6-phosphate dehydrogenase, Favism, A- Variant. CASO CLÍNICO Antecedentes pessoais de quadro depressivo desde há 2 anos. Fumadora de 20 UMA e abstinente há 2 anos, sem hábitos alcoólicos nem consumo de drogas recreativas. Antecedentes familiares irrelevantes, negando anemias de transmissão hereditária. É de salientar a existência de uma sobrinha de 23 anos, actualmente a residir no Brasil, com história de anemia não esclarecida. Medicada em ambulatório e de forma regular com Fluoxetina e Clonazepam. Objectivamente apresentava-se consciente, orientada e Doente do sexo feminino, 41 anos de idade, casada, natural do Brasil, residente em Aveiro há 7 anos, advogada. Recorreu ao Serviço de Urgência com sintomas de astenia, anorexia, cansaço para esforços mínimos e cefaleias halocraneanas com agravamento progressivo e instalação de icterícia e colúria, com três dias de evolução. Sem outras queixas, nomeadamente respiratórias ou urinárias. Negava consumo de qualquer fármaco e referia ingestão de favas dois dias antes do aparecimento dos sintomas. 1. Interna Complementar de Medicina Interna do Hospital Infante D.Pedro, EPE (HIP) 2. Assistente Graduada de Medicina Interna do HIP 3. Assistente Graduada de Imunohemoterapia,Directora do Serviço de ImunoHemoterapia do HIP 31 REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2013; 32:31-35 colaborante, bom estado geral, eupneica, hemodinamicamente estável, icterícia marcada da pele e escleróticas, abdómen mole, depressível, indolor à palpação e sem hepatoesplenomegalia. Analiticamente, hemoglobina de 7,2 g/dL, bilirrubinémia total de 14,7 mg/dL com bilirrubinémia directa de 0,88 mg/ dL, LDH de 341 UI/dL. Bioquímica hepática, renal e tempos de coagulação sem alterações (Tabela 1). A ecografia abdominal revelou fígado e baço com estrutura e dimensões dentro dos parâmetros da normalidade, sem dilatação das vias biliares intra e extra-hepáticas. para um controlo de 8,3, confirmando o diagnóstico de Défice de G6PD. O diagnóstico molecular – recorrendo a estudos de 1) amplificação por PCR do exão 5 do gene G6PD e pesquisa da mutação 376A>G (126Asn>Met) e 2) amplificação dos exões 3 e 4 e pesquisa da mutação 202G>A (68Val>Met) [os indivíduos são classificados como A- quando apresentam as duas mutações 376A>G e 202G>A] –mostrou que a doente era portadora em heterozigotia da variante A(A menos) da G6PD, tendo sido o resultado de Act (% N) de 50,6%. DISCUSSÃO Tabela 1 – Exames laboratoriais efectuados A doente ficou internada na Sala de Observações, não tendo sido transfundida com concentrado de Glóbulos Vermelhos, por se encontrar assintomática e hemodinamicamente estável, tendo feito apenas terapêutica de suporte. Devido à suspeita de se tratar de anemia hemolítica por défice de G6PD, foi pedido o doseamento da actividade da G6PD, cujo resultado foi de 4,2 UI/gHb O défice de G6PD é provavelmente a mutação clinicamente significativa mais frequente a nível mundial, estimandose que existam mais de 400 milhões de pessoas afectadas1,2. A prevalência em Portugal é baixa (calculando-se ser de 0,51%)3. A descoberta desta mutação ocorreu nos anos 50, quando se estudava o fenómeno hemolítico decorrente da administração do antimalárico Primaquina. Inicialmente, foi encontrada em África, mas posteriormente pode ser observada em todo o mundo.2 A G6PD é uma enzima citoplasmática, existente em todas as células do organismo humano. A forma enzimaticamente activa da G6PD é um dímero ou um tetrâmero de uma só unidade polipeptídica. O seu papel fundamental é a geração de NADPH e, embora a G6PD ocorra em todas as células com actividade semelhante, ela desempenha um papel fundamental para assegurar a estabilidade e a viabilidade do glóbulo vermelho (GV). A sua função está relacionada com o glóbulo vermelho (GV), que realiza tarefas biológicas relativamente simples num ambiente hostil. Foi estimado que, durante o seu ciclo vital (120+/- 6 dias), cada GV percorre uma distância de cerca de 175 milhas, e é submetido a 1.7x105 ciclos circulatórios5. Para lutar contra os perigos internos (alta carga de oxigénio, produção constante de espécies oxidantes) e externos (alterações do Ph, turbulência, destruição por outras células), o GV possui um forte e simplificado metabolismo, adequado para cumprir as tarefas necessárias e para defender as suas propriedades funcionais de agressores físicos e químicos. A G6PD controla a oxidação celular.5,6 O principal papel da via Hexose–Monofosfato é a produção da forma reduzida de Fosfato Dinucleotídeo de Nicotinamida-Adenina (NADPH), o qual, por sua vez, está estreitamente relacionado com o metabolismo do Glutatião (GSH).5,6,7 32 REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2013; 32:31-35 O Glutatião é de importância chave em todas as células, para a preservação dos grupos sulfidril em numerosas proteínas, e para a prevenção de danos oxidativos em geral. Todavia, este papel é particularmente crucial nos GVs porque, sendo transportadores de oxigénio por excelência, têm literalmente incorporado um perigo de dano por radicais de oxigénio que são originados continuamente no decurso da formação de metahemoglobina. Os radicais de oxigénio, altamente reactivos, decompõem-se espontaneamente, ou são convertidos em peróxido de hidrogénio (H2O2). A destoxificação do H2O2 para H2O é efectivada pela Glutatião Peroxidase (GSHPX): uma molécula de Glutatião (GSH) é oxidada para GSSG, por cada molécula de H2O2 destoxificada. Assim, o Glutatião só pode desempenhar o seu papel funcional se for continuamente regenerado (de GSSG para GSH). Esta regeneração apenas pode ser efectuada no GV, através da Glutatião Redutase (GSSGR), pela NADPH sendo esta originada pela redução da NADP, através da G6PD e do shunt da Hexose– Monofosfato.6,8,9 Figura 1 – Via Hexose-Monofosfato7,8 Figura 2 – G6PD e o ciclo do Glutatião (GSH)6,9 33 REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2013; 32:31-35 O gene determinante da G6PD (Gd) está localizado no braço longo do cromossoma X, e está intimamente ligado aos genes que codificam o Factor VIII, e aos que codificam o pigmento da retina. A deficiência da enzima pode ocorrer por delecções ou mutações. A localização do gene Gd tem duas consequências importantes, uma vez que as mutações do Gd mostram o comportamento típico da herança ligada ao sexo e como resultado do fenómeno da inactivação do cromossoma X, as mulheres heterozigóticas, para dois diferentes alelos, exibem variedade nas células somáticas: se um dos alelos apresenta deficiência enzimática, existirão células G6PD+, e células G6PD- (as primeiras com actividade enzimática normal, e as últimas com actividade enzimática deficiente). Os homens podem ser normais (Gd+) ou hemizigóticos deficientes (Gd-), as mulheres podem ser normais (Gd+/Gd-), deficientes homozigóticas (Gd-/Gd-) ou deficientes heterozigóticas (Gd+/Gd-).6,7,8 Muitas variantes alélicas foram já descritas sendo que a sua manifestação clínica depende da variante em causa. As mais frequentes são as variantes Mediterrâneas (forma grave), as variantes Africanas A- (forma moderada) e as variantes Mahidol (forma moderada) e Canton (forma grave) no sudeste asiático. As formas raras e mais graves da deficiência da G6PD existem em associação com anemia hemolítica não-esferocítica crónica. A Organização Mundial de Saúde classificou as diferentes variantes da G6PD de acordo com a actividade enzimática e a severidade da hemólise. A classe IV e a classe V não têm significado clínico. A variante de Classe I caracteriza-se por uma actividade enzimática extremamente baixa (inferior a 10% do normal), levando a anemia hemolítica crónica. A variante de Classe II tem uma actividade enzimática baixa, mas apresentam hemólise intermitente. A variante de Classe III apresenta um défice moderado da enzima (10 a 60% do normal), com hemólise associada a infecções ou uso de drogas. A variante de Classe IV não apresenta deficiência enzimática e não se associa a patologia. A variante de Classe V tem actividade enzimática aumentada e não se encontra patologia associada. 8 O mecanismo de hemólise não é exactamente conhecido e é variável consoante o estímulo desencadeante. A infecção é o desencadeante mais comum de hemólise e afecta principalmente indivíduos com deficiência tipo A-. Os agentes mais frequentemente implicados são os coliformes, salmonelas, estreptococos beta-hemolíticos, Rickettsias, Vírus Influenza e, de um modo particularmente importante, as hepatites virais. Pensa-se que os eritrónios deficientes em G6PD sejam menos resistentes à hipertermia mantida e não suportem o aumento de oxidantes produzidos pelos granulócitos durante a fagocitose. A hemólise induzida por fármacos foi inicialmente associada ao anti-malárico Primaquina. O risco e a gravidade da hemólise correlacionam-se com a dose e a duração do tratamento, assim como com a presença adicional de stress oxidativo, como uma infecção. Tipicamente, a hemólise começa 2 ou 3 dias após o início da terapêutica, é predominantemente intra-vascular e pode associar-se a hemoglobinúria. A tabela 2 mostra os fármacos mais frequentemente associados a hemólise.5,8,9 Tabela 2 – Fármacos e químicos associados a hemólise na deficiência de G6PD Na hemólise induzida por cetoacidose diabética, pensa-se que a diminuição do pH, o aumento do piruvato e a hiperglicemia saturem a via das pentoses fosfato. O mecanismo é desconhecido, mas após a correcção da acidose a hemólise termina. Na hemólise induzida pela ingestão de favas (favismo), sabe-se que nem todas as variantes são afectadas pela ingestão de favas e o grau de hemólise é variável de uma exposição para outra. O favismo afecta, sobretudo, a variante Mediterrânica. Os indivíduos mais susceptíveis são os jovens e aqueles que concomitantemente estão infectados. 6,7,8,9 34 REVISTA DE SAÚDE AMATO LUSITANO 2013; 32:31-35 No favismo, os compostos como a divicina e o isouramil, que estão presentes nas favas, provocam a oxidação irreversível do glutatião e grupos sulfidrilo presentes nas proteínas, levando a alterações electrolíticas que conduzem ao aumento da permeabilidade do eritrócito, e ao estabelecimento de pontes cruzadas entre a espectrina e a banda 3 presentes na membrana da hemoglobina, conduzindo à diminuição na deformabilidade eritrocitária. Esta alteração na deformabilidade da membrana actua como um sinal para que os eritrócitos alterados sejam removidos na circulação pelo sistema reticuloendotelial. Além disso, há aumento dos níveis de cálcio intra-eritrocitário pela degradação da ATPase com actividade de bomba de cálcio, levando a alterações no metabolismo do cálcio e consequente diminuição de potássio. Os eritrócitos deficientes em G6PD são também mais susceptíveis a vesiculação induzida pelo cálcio, levando a hemólise mediada pelo complemento. 6,7,8,9 Classicamente, o episódio hemolítico caracteriza-se por palidez, icterícia e hemoglobinúria, que surge 24 a 48 horas após a ingestão de favas. O diagnóstico biológico é feito com base na determinação da actividade da G6PD em eritrócitos desleucocitados e comparação com a actividade de outra enzima eritrocitária (piruvato cinase ou hexocinase). Preferencialmente o exame deve ser feito na ausência de hemólise, para evitar falsos diagnósticos devido a contagens elevadas de reticulócitos. As deficiências moleculares subjacentes incluem sobretudo mutações pontuais na sequência codificante, levando a substituições de aminoácidos. Não são conhecidas mutações que levem à perda de função do gene. A análise molecular permite a identificação das mutações causais e a escolha de uma estratégia terapêutica adequada com base na previsão da gravidade das manifestações clínicas. 7,8,9 CONCLUSÃO A deficiência de G6PD consiste na existência de um baixo nível dos valores desta enzima. É constatada nos portadores tendo por referência (controlo) os valores de um indivíduo são. A maioria das pessoas que têm deficiência de G6PD é assintomática, não apresentando anemia nem hemólise. O desenvolvimento de ambas resulta de agentes exógenos. É particularmente importante nos hemizigóticos e nas mulheres homozigóticas, podendo desencadear crises hemolíticas graves. Na maioria dos casos, o primeiro episódio de hemólise ocorre na infância, mas este pode ocorrer no estado adulto. No caso clínico apresentado (adulto), a doente era portadora em heterozigotia da variante A - (A menos) da G6PD, diagnóstico efectuado pela análise molecular, sendo este o método adequado. O doseamento da actividade da G6PD, cujo resultado foi de 4,2 UI/gHb para um controlo de 8,3, encontrando-se assim abaixo do valor normal, de acordo com a literatura. A ingestão de favas foi o factor desencadeante da crise hemolítica. O diagnóstico de suspeição, dado por uma história clínica bem realizada evita episódios transfusionais. BIBLIOGRAFIA 1. Beutler E, Kuhl W, Ramirez E, Lisker R. Some Mexican Glucose-6Phosphate Dehydrogenase Variants Revisited. Human Genetics, 1991; 86: 371-374. 2. Mehta A, Mason P J, Vulliamy T. Glucose-6-Phosphate Dehydrogenase Deficiency. Baillière’s Clinical Haematology, 2000, 13: 21-38. 3. Costa E, Cabeda J M, Abreu M E et al. Défice de Glucose-6-fososfato desidrogenase em duas crianças do sexo feminino. Acta Médica Portuguesa, 1999, 12: 283-286. 4. Jandl, J H. Body Hemolityc Anemias, in Blood: Text book of haematology, second edition, Little Brown Publ., Boston, 1996: 503-507. 5. 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