O GIGANTE PIAIMÃ E O HIBRIDISMO CULTURAL EM MACUNAÍMA DE
MÁRIO DE ANDRADE
THE GIANT PIAIMÃ AND THE CULTURAL HYBRIDISM IN MACUNAÍMA
BY MÁRIO DE ANDRADE
Daiana Dall Igna Nunes 1
Universidade Federal da Fronteira Sul
Dr. Fernando de Moraes Gebra2
Universidade Federal da Fronteira Sul
RESUMO: O presente trabalho está vinculado ao projeto de monitoria em Literatura Brasileira
I e Literatura Brasileira II: Formação e Consolidação do Sistema Literário. Nessas disciplinas,
da maneira como são trabalhadas na UFFS/Chapecó, costuma-se fazer uma leitura de romances
da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX em chave alegórica, isto
é, segundo Antonio Candido (1993) uma leitura em que através das descrições da vida cotidiana
e de outros elementos das obras é possível perceber um outro plano de significado que está
implícito. A rapsódia Macunaíma (1928), de Mário de Andrade (1893-1945), é fruto de muitas
pesquisas folclóricas, mitológicas e antropológicas, sendo uma tentativa de procurar traços
identitários comuns na diversidade cultural brasileira mostrando que as lendas estão presentes
em todo o território brasileiro. As narrativas orais das diversas regiões brasileiras costumam
apresentar as mesmas estruturas narrativas e semelhantes papeis actanciais, porém, possuem
diferentes revestimentos figurativos. Essas lendas e mitos fundem-se com elementos culturais
oriundos da Europa, em sua maioria trazidos pelos colonizadores portugueses e pelos
imigrantes, passando, assim, a fazer parte da cultura brasileira e do imaginário popular. Em
Macunaíma, em particular no capitulo dedicado ao gigante Piaimã, é possível observar o
hibridismo nas culturas populares brasileiras, com a mistura de elementos culturais indígenas,
africanos, europeus e latino-americanos. Dito de outra forma, segundo Gilda de Mello e Souza
em seu ensaio O tupi e o alaúde, o gigante Piaimã, regatão peruano chamado Venceslau Pietro
Pietra, apresenta ambiguidades culturais, que serão discutidas no presente trabalho, a partir de
ensaios sobre a obra de Mário de Andrade e de cartas do autor. Além disso, verificaremos como
a simbologia do gigante no conto de fada ―João e o pé de feijão‖ se relaciona com a estrutura
narrativo-discursivo de Macunaíma, com base nos preceitos teóricos de Bruno Bettelheim e, por
fim, a partir do olhar de Macunaíma sobre a civilização, discutiremos o choque entre o primitivo
e o civilizado, pois, em um discurso paródico, é pelo olhar do suposto primitivo que a
civilização da Paulicéia é vista.
PALAVRAS-CHAVE: Hibridismo cultural. Folclore. Lendas
ABSTRACT: The following work is linked to the monitoring project in Brazilian Literature I
and Brazilian Literature II: Formation and Consolidation of the Literary System. In these
disciplines, the way they are worked in UFFS / Chapecó, it is customary to take a reading of
novels of the second half of the nineteenth century and the first half of the twentieth century in
1
Acadêmica da 6ª fase do curso de Letras, Português e Espanhol da Universidade Federal da Fronteira
Sul – UFFS, Campus de Chapecó SC. É bolsista voluntária do projeto de Monitoria em Literatura
Brasileira I e Literatura Brasileira II: Formação e Consolidação do Sistema Literário.
[email protected]
2
Professor Doutor do Curso de Letras e do Mestrado em Estudos Linguísticos, da Universidade Federal
da Fronteira Sul, campus Chapecó-SC [email protected]
allegorical key, that means, according to Antonio Candido (1993), a reading through the
descriptions of everyday life and other elements of the works, it‘s possible to see another
meaning plan that is implied. Macunaíma (1928), rhapsody by Mário de Andrade (1893-1945),
is the result of many folkloric, mythological and anthropological researches, with an attempt to
find common identity features in Brazilian cultural diversity, showing that legends are present
throughout the Brazilian territory. Oral narratives of several Brazilian regions often have the
same narrative structures and similar actantial roles, however, they present different figurative
coatings. These legends and myths merge with cultural elements from Europe, mostly brought
by Portuguese settlers and the immigrants, becoming part of Brazilian culture and popular
imagination. In Macunaíma, particularly in the chapter devoted to giant Piaimã, it‘s possible to
see the hybridity in Brazilian popular culture, with the mixture of Indigenous, African,
European and Latin America cultural elements. In other words, according to Gilda de Mello e
Souza, in her essay O tupi e o alaúde, Piaimã giant, Peruvian merchant called Wenceslas Pietro
Pietra , presents cultural ambiguities , which are discussed in this work, by means of essays on
the work of Mário de Andrade and letters from the author . In addition, we find as the giant
symbolism in the fairy tale ―Jack and the beanstalk‖ and relates to the narrative- discursive
structure of Macunaíma, based on Bruno Bettelheim‘s theoretical precepts, and finally
considering Macunaíma‘s look upon civilization, we discuss the clash between the primitive
and the civilized , because, in a parodic discourse , is the look of the original alleged that the
civilization of Pauliceia is seen
KEY-WORDS: Cultural Hybridism. Folklore. Legends.
1. Introdução
O presente trabalho está vinculado ao projeto Monitoria de Literatura Brasileira I
e Monitoria Brasileira II: formação e consolidação do sistema literário. A monitoria esta
presente para auxiliar os discentes com dificuldades nas disciplinas de literatura
brasileira ofertadas pela UFFS/Chapecó no curso de Letras Português e Espanhol –
Licenciatura. A monitoria auxilia os estudantes tanto na compreensão das obras como
também na leitura dos ensaios críticos, auxilia na reformulação de trabalhos,
propiciando, assim, que alunos com dificuldade possam ter uma maior inserção nos
estudos literários. E tem também por objetivos: 1) Proporcionar ao monitor maior
contato com a disciplina e com os Estudos Literários; 2) Auxiliar as atividades do
professor e dos alunos, no que se refere à elaboração de dinâmicas e exercícios de
leitura das obras da disciplina; 3) Capacitar o monitor a reflexões entre o saber literário
e o saber pedagógico, estabelecendo diretrizes da Prática de Ensino (observação de
aulas e confecção e análise de materiais didáticos); 4) Permitir a interação entre o
monitor e os alunos da disciplina, de forma a contribuir com as práticas leitoras no
contexto acadêmico.
Os romances brasileiros, nas disciplinas supracitadas, são lidos em chave
alegórica, compreendida aqui como uma leitura que vai além da mimesis, e é realizada
por Antonio Candido no ensaio ―De cortiço a cortiço‖, sobre o livro O cortiço de
Aluísio de Azevedo, em que é feita uma leitura que vai além dos processos de escrita do
período naturalista. A obra vai além da simples observação da realidade, como
pretendiam os naturalistas, pois, com suas descrições da vida cotidiana, é possível
observar que existe outro plano de significado implícito no livro. É possível afirmar que
a obra pode ser lida como uma alegoria do Brasil, ―[...] com a sua mistura de raças, o
choque entre elas, a natureza fascinadora e difícil, o capitalista estrangeiro postado na
entrada, vigiando, extorquindo, mandando, desprezando‖ (1993, p. 137), mostrando
assim a mudança de uma sociedade escravocrata para uma sociedade capitalista.
A leitura da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, na disciplina de
Literatura Brasileira II, é feita também em chave alegórica, com respaldos no ensaio
―Ecos de Otelo em Dom Casmurro‖, de Maria Isaura Rodrigues Pinto. Em sua análise,
a autora afirma que a obra pode ser interpretada como uma alegoria de transição que
seria a passagem da Monarquia para a República através do discurso dos personagens
onde se pode entrever uma crítica machadiana a frivolidade da sociedade carioca na
época do segundo reinado. E através da intertextualidade com a obra Otelo, de Willian
Shakespeare, e a reescrita da obra na voz do personagem-narrador do livro, são uma
síntese do pensamento de determinadas classes sociais e uma interpretação alegórica
que conduz o leitor a uma reflexão critica do social.
2. Macunaíma e/ou Brasil
O material folclórico coletado por Mário de Andrade e utilizado em sua
rapsódia, segundo Florestan Fernandes em seu ensaio ―Mário de Andrade e o folclore
brasileiro‖ (1946) foi transposto para a obra não de uma única forma, mas pode ser
identificado em quatro modalidades principais: a) o aproveitamento dispersivo; b) a
intersecção de elementos folclóricos e popularescos, que é a mais característica em sua
obra e em Macunaíma essa técnica é muito bem desenvolvida; c) a assimilação de
formas, que exigiu um estudo especializado, perceptível na rapsódia pela relação entre o
português falado e o escrito; d) a estilização, em que ocorre o aproveitamento livre dos
materiais folclóricos. No estudo da obra de Mário de Andrade, Florestan Fernandes
aponta que,
Macunaíma é o mais autentico herói, criado nos moldes dos tipos heroicos
popularescos, em língua portuguesa. O seu estudo minucioso revela em
movimento não só as técnicas de transposição do folclórico ao plano erudito,
peculiares de Mário de Andrade, mas também a sua compreensão ampla do
folclore brasileiro, e das possibilidades de romance folclórico (1946, p.147).
Dessa forma é possível entrever que o herói de nossa gente representa o povo
brasileiro, um povo mestiço não só fisicamente, mas também em suas ideias, ou seja,
um povo híbrido física e culturalmente. Além disso, Macunaíma convida-nos a uma
leitura alegórica, uma vez que a personagem principal, com seus múltiplos caracteres,
pode ser lida como a diversidade cultural brasileira. De certa maneira, em ―Situação de
Macunaíma‖, sustenta Alfredo Bosi que ―o herói sem nenhum caráter‖, do subtítulo da
rapsódia, é mencionado no último capítulo como o ―herói de nossa gente‖, fazendo com
que o sintagma ―nossa gente‖ se homologue a ―sem nenhum caráter‖. Explica Bosi que,
além da preocupação de contar e cantar episódios de uma figura lendária que vai em
busca de um bem essencial e sofre várias mudanças ao longo do enredo, Mário de
Andrade apresenta também
[...] o desejo não menos imperioso de pensar o povo brasileiro, nossa gente,
percorrendo as trilhas cruzadas ou superpostas da sua existência selvagem,
colonial e moderna, à procura de uma identidade que, de tão plural que é,
beira a surpresa e a indeterminação; daí ser o herói sem nenhum caráter
(1988, p.128).
Através de sua pesquisa etnográfica, Mário de Andrade tinha por objetivo a
elaboração de um retrato do Brasil com intenção da inserção do Brasil na ordem
mundial, segundo afirma Eduardo Jardins de Moraes, no ensaio ―Mário de Andrade:
retrato do Brasil‖. Para isso, era necessário descrever uma entidade nacional para o
retrato do Brasil, buscando a unidade na diversidade das várias culturas que enformam o
Brasil. Na rapsódia Mário de Andrade busca esta unidade através do processo que ele
denominou ―desgeografização‖,
A ―desgeografização‖ é o processo pelo qual se descobre para além das
diferenças regionais (ou outras), que comporta a nação, uma unidade
subjacente relativa à sua identidade. A nacionalidade é uma realidade
unitária. (1990, p. 68-69).
É possível ver ao longo da rapsódia elementos das mais diversas regiões
brasileiras, misturando-se e aparecendo como se não existissem barreiras geográficas,
tornando o Brasil mais unitário. No capítulo intitulado ―Macumba‖, é possível perceber
a mistura de elementos do candomblé baiano, pajelança paraense e da macumba carioca,
e também pessoas das mais diversas classes sócias envolvidas nesses rituais, mostrando,
assim, que não existem barreiras nem geográficas e nem sociais. Na crônica de 22 de
dezembro 1928, que compõe O turista aprendiz, Mário de Andrade explica as
diferenças entre as manifestações da feitiçaria brasileira. A macumba seria a designação
dos rituais que vão do Rio de Janeiro à Bahia, enquanto a pajelança se refere à
ritualística do norte do Brasil. Para o cronista-aprendiz, a espacialização desses rituais
relaciona-se à influência predominantemente africana na macumba e ameríndia na
pajelança. Em regiões de Pernambuco ao Rio Grande do Norte, ―essas influências
raciais misturam‖ (1976, p.242). Logo, ―palavras, deuses, práticas se trançam‖ (1976,
p.242). Essa ―fusão de características regionais‖ permitiu a construção de ―um Brasil
só‖, percebido na figura de ―um herói só‖, a na configuração do ―símbolo‖, admitido
por Mário de Andrade depois de muitos negaceios ao longo da sua produção epistolar.
Na ―Carta pras icamiabas‖, o ―herói sem nenhum caráter‖ ou o ―herói de nossa
gente‖, escreve às suas súditas:
Porém, senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de
doenças e insectos por cuidar... Tudo vai num descalabro sem comedimento,
estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes (...), nos demos ao trabalho
de metrificar um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça:
POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA,
OS MALES DO BRASIL SÃO (2000, p.79).
Na segunda parte do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto, o narrador comenta ―Veio-lhe então à lembrança aquela frase de Saint-Hilaire:
se nós não expulsássemos as formigas, elas nos expulsariam‖ (2011, p.139). Claro está
que tanto em Macunaíma como em Triste fim de Policarpo Quaresma, as formigas
representam as ―desventuradas experiências junto à terra‖ (BOSI, s/d, p.98). Tanto a
obra de Lima Barreto, escrita em 1911, como a de Mário de Andrade, de 1928,
explicitam a urbanização no Rio e em São Paulo, permitindo uma leitura alegórica sobre
os ―males do Brasil‖. Na rapsódia de Mário, Macunaíma assim descreve a urbanização:
―[...] nos bairros miseráveis, surge anualmente uma incontável multidão de rapazes e
raparigas bulhentos, a que chamamos ‗italianinhos‘; destinados a alimentarem as
fábricas dos áureos potentados, e a servirem, escravos, o descanso aromático dos
Cresos‖ (2000, p.79).
É possível perceber, tanto na obra de Lima Barreto quanto na de Mário de
Andrade, que os males do Brasil vão além das saúvas, pragas que devoram as lavouras,
relacionando-se às pessoas que estão no poder e a forma de governo que sustentam. Nas
duas obras, são mencionadas as formigas saúvas como o grande mal do país, que podem
ser lidas como o governo e também a elite do Brasil, que só explora o povo e não lhe
retribui nada.
3. Mário de Andrade e mitologia.
Na rapsódia, estão presentes fortes caracteres mitológicos e um forte pensamento
mítico. O próprio herói da obra é visto como um arquétipo dos heróis míticos
decompostos e reconstruídos como aponta Anatol Rosenfeld: ―No fundo e em essência
o homem sempre repete as mesmas estruturas arquetípicas.‖ (1996, p. 88). Ao tratar
especificamente de Macunaíma, Rosenfeld afirma que nessa obra se manifestam ―as
estruturas arquetípicas dos deuses despedaçados, mas de novo recompostos‖ (1996,
p.91). No Roteiro de Macunaíma, Cavalcanti Proença sustenta a importância da ―morte
e ressurreição‖ como procedimento presente no capítulo ―Piaimã‖ (1977, p.153), que
também aparece no capítulo ―Tequeteque, Chupinzão e a injustiça dos homens‖, no qual
Macunaíma é enganado por um macaco e acaba por quebrar os próprios testículos. Após
a morte, segue a ressurreição, com nova intervenção de Maanape, que é referido em
toda rapsódia como feiticeiro. Assim esclarece Cavalcanti Proença:
O sopro como elemento criador ou anímico foi bem estudado por Von den
Steinen entre os nossos índios. A mitologia indígena está cheia de
ressurreições obtidas com o sopro de feiticeiros, baforadas de fumo ou ervas
mágicas (1977, p.193).
Morte e ressurreição não se encontram somente na mitologia indígena, sendo
muito presente também nas mitologias europeia e egípcia, com revestimentos
figurativos diferentes, como acontece no mito de Osíris, que segundo consta no
Dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant,
Encerrado num cofre por inimigos invejosos e por seu irmão Set, lançado
depois nas águas do Nilo, ele será o objeto de uma procura, como o Graal na
Idade Média. Mutilado, despedaçado e ressuscitado pelo sopro de duas
desusas, Isís e Néftis, frequentemente representadas com grandes asas, ele
simboliza o drama da existência humana, destinada à morte, mas triunfando
periodicamente sobre a morte. (2012, p. 665).
É possível entrever também no mito greco-romano denominado ―O castigo de
Tântalo‖ descrito no livro As grandes histórias da mitologia greco-romana (2012, p.
31), de A.S. Franchini, semelhantes características de reconstrução e retorno a vida da
personagem Pélope, filho de Tântalo. Segundo o mito, Tântalo era filho de Zeus e para
tentar ganhar a imortalidade resolveu servir um banquete a seu pai e outros deuses.
Desesperado, sem saber o que servir, decidiu cozinhar o próprio filho, pediu ao
cozinheiro que o matasse, picasse e depois o cozinhasse bem, para então servir aos
deuses. Logo que a deusa Deméter provou um pedaço, constatou que era carne humana.
Tântalo foi repreendido pelos deuses e ganhou sua imortalidade, mas em Tártaro, onde
tinha muita sede e fome, pois cada vez que se aproximava da água ou da comida elas
desapareciam. Quanto a seu filho, Cloto, responsável por tecer o fio da vida tanto de
deuses quanto de humanos, ressuscitou Pélope.
Outro detalhe importante, nos dois mitos, é que ambos são restituídos à vida,
faltando-lhes um pedaço de seu corpo: Osíris tem o seu pênis comido por um peixe, e
Pélope teve o ombro comido substituído por um de marfim. Assim também ocorre com
o nosso herói Macunaíma em diferentes passagens do livro, a primeira vez que a
personagem morre e retorna a vida foi no seu encontro com o gigante Piaimã, que o
captura e leva para casa para servir de comida a ele e sua esposa Ceiuci,
O herói picado em vinte vezes trinta torresminhos bubuiava na polenta
fervendo. Maanape catou os pedacinhos e os ossos e estendeu tudo no
cimento pra refrescar. Quando esfriaram a sarará Cambgique derramou por
cima o sangue sugado. Então Maanape embrulhou todos os pedacinhos
sangrando em folha de bananeira [...] botou o cesto no de pé assoprou fumo
nele e Macunaíma veio saindo meio pamonha ainda, muito desmerecido, do
meio das folhas. (2000, p. 47).
No capitulo denominado ―Ursa Maior‖, o herói entra na lagoa e cai nos braços
de Uiara, que tenta devorá-lo. Ele tenta resistir a esse despedaçamento, lutando muito
com ela e com as piranhas, enfim consegue sair da água, mas ―com a vida dependurada
nos respiros fatigados‖ (2000, p. 156), isto é, faltavam-lhe pedaços,
Estava sangrando com mordidas pelo corpo todo, sem perna direita, sem os
dedões sem os cocos-da-Bahia sem orelhas sem nariz sem nenhum de seus
tesouros. [...] Macunaíma campeava campeava. Achou os dois brincos achou
os dedões s orelhas os nurquiiris o nariz, todos esses tesouros e prendeu todos
nos lugares deles com sapé e cola de peixe. Porém a perna e a muiraquitã não
achou não. Tinham sido engolidos pelo monstro Ururau que não morre com
timbó nem pau.. (2000, p. 156).
É possível perceber que todas essas personagens possuem diferentes
revestimentos figurativos, como já citado anteriormente, mas cumprem papeis
actanciais semelhantes, mesmo sendo de diferentes culturas e escritas em épocas
distintas . Conforme Rosenfeld, os mitos são estruturas arquetípicas e são parte de um
―eterno retorno‖, é um padrão fixo que a humanidade repete na sua caminhada circular
através dos milênios.‖ (1996, p. 89).
O mito indígena Guarani também nos traz a ideia do sopro da vida, assim como
acontece com Osíris, que ganha vida através de um sopro. Na cultura indígena, o deus
Iamandu ou Tupã, desce para a terra e cria tudo, então depois decide criar os humanos,
através de uma cerimonia bem elaborada, faz dois bonecos de argila, um homem e uma
mulher, e depois sopra vida neles, partindo em seguida e deixando eles com o espirito
de bem e do mal (TEIXEIRA, 2014).
Pensando na questão dos arquétipos relacionados aos mitos, o Dicionário de
Símbolos, já supracitado, aponta que
Os arquétipos manifestam-se como estruturas psíquicas quase universais,
inatas ou herdadas, como uma espécie de consciência coletiva, exprimem-se
através de símbolos específicos [...] Os mitos apresentam-se como
transposições dramatúrgicas desses arquétipos, esquemas e símbolos. [...] O
mito aparecerá como um teatro simbólico de lutas interiores e exteriores a
que o homem se entrega no caminho de sua evolução, na conquista de sua
personalidade. (2012, p. XIX).
Como é possível perceber, os mitos representam o papel de uma narrativa
exemplar, que através de sua simbologia pretende transformar o homem. O Dicionário
de símbolos ressalta também o caráter universal dos mitos presentes nas mais variadas
culturas e com características semelhantes, como podemos entrever nos mitos descritos
anteriormente. E, através da analise de uma das personagens, que é o objeto deste
estudo, podemos entrever uma confluência de mitos tornando essa personagem um
símbolo que pode ser lido de diferentes maneiras.
4. O gigante Piaimã
O gigante Piaimã, grande rival de nosso herói, é uma personagem tripartida,
possui característica híbrida que faz com que sua leitura seja uma contradição, como
aponta Gilda de Mello e Souza, em seu ensaio O tupi e o alaúde,
[...] Venceslau Pietro Pietra. O Gigante Piaimã e, eventualmente, o Currupira,
é designado ainda insistentemente como regatão peruano. Por conseguinte, é
italiano como o nome indica, indígena como indica seu cognome, o
casamento com a Caapora e a curiosa implantação dos pés, e sul-americano,
como a certa altura o seu criador nos informa (2003, p.35).
O gigante de nome Venceslau Pietro Pietra, segundo aponta seu sobrenome,
seria de uma possível origem italiana, e o seu cognome Gigante Piaimã mostra-nos duas
referencias, segundo Gilda de Mello e Souza: a primeira é de que a palavra gigante
desperta, no inconsciente coletivo dos brasileiros, associações com os contos de fadas
europeus, como exemplo o conto ―João e o pé de feijão‖. Segundo a análise de Bruno
Bettelheim, em seu livro A psicanálise dos contos de fadas, esse conto representa a
expulsão do filho do paraíso, para que este saia em busca do próprio sustento,
Isso é simbolizado pelo fato de a mãe enviar João ao mundo lá fora para
conseguir algo, o dinheiro que ele supostamente obterá pela vaca que
provenha o seu sustento. Mas a crença de João em suprimentos mágicos não
o preparou para enfrentar o mundo realisticamente. (2007, p. 260).
De forma correlata, Macunaíma, estando longe do Uraricoera, precisa buscar
seu próprio sustento na civilização e também a muiraquitã, elemento mágico que está
em poder do gigante, conferindo-lhe muitos benefícios, e reavido pelo nosso herói
através de várias tentativas que estruturam boa parte da rapsódia. A recuperação da
muiraquitã pode ser comparada ao roubo que João faz dos amuletos mágicos do gigante.
A simbologia do gigante no Dicionário de Símbolos (2012) aponta-nos o
seguinte: ―Para derrotá-los é preciso – e esta é uma das circunstâncias mais espantosas
da mitologia – que se conjuguem os golpes de um deus e de um homem... O mito do
gigante é um apelo ao heroísmo humano‖ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2012, p.
470), o que nos leva a pensar na condição de Macunaíma frente à civilização, ou seja,
lado humano e lado mítico juntos para conseguir derrotar o gigante. Para Gilda de
Mello e Souza, na rapsódia, o gigante é derrotado porque nos contos e lendas é assim
que acontece, também afirmado por Mário de Andrade em uma de suas cartas sobre
Macunaíma. Segundo Mello e Souza, no plano alegórico, Macunaíma não conseguiu
derrotar o gigante, pois esse pode ser lido como representante da civilização, ou seja,
nosso herói não venceu a civilização, não conseguiu se adaptar a ela e nem tampouco,
depois de conhecê-la, conseguiu voltar ao estágio anterior, sendo impossível viver
novamente no Uraricoera.
A segunda referência aponta para a origem indígena do antagonista de
Macunaíma, reforçada pelo nome Piaimã, pelo casamento com a Caapora e também por
descrições de características físicas em que ele é apresentado com os pés virados para
trás e denominado comedor de gente, características essas ligadas ao Currupira, mito
indígena da entidade protetora da floresta,
Curupira, corpo de menino — de curu abreviação de curumi e pira corpo. O
Curupira é a mãe do mato, o gênio tutelar da floresta que se torna benéfico ou
maléfico para os frequentadores desta, segundo circunstâncias e o
comportamento dos próprios frequentadores. Figuram-no como um menino
de cabelos vermelhos, muito peludo por todo o corpo e com a particularidade
de ter os pés virados para trás e ser privado de órgãos sexuais. A mata, e
quantos nela habitam, está debaixo da sua vigilância. É por via disso que
antes das grandes trovoadas se ouve bater nos troncos das árvores e raízes das
sumaumeiras para certificar-se que podem resistir ao furacão e prevenir aos
moradores da mata do próximo perigo. Sob a sua guarda direta está a caça, e
é sempre propício ao caçador que se limita a matar conforme as próprias
necessidades (CASCUDO, 2012a, p.101).
No capítulo ―Piaimã‖ em que Macunaíma vai à procura do gigante na cidade, o o
―herói de nossa gente‖ depara-se também com a civilização e então podemos observar o
olhar do primitivo sobre o civilizado,
Macunaíma campeou campeou mas as estradas e terreiros estavam apinhados
de cunhãs tão branquinhas tão alvinhas [...] ―Mani! Mani! filhinhas da
mandioca...‖ perdido de gosto e tanta formosura [...] Brincou com elas na
rede estranha plantada no chão, numa maloca mais alta que a Paranaguara
[...] A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros
da bicharada lá em baixo nas ruas [...] E aquele diacho de sagui-açu que o
carregava pro alto do tapiri (2000, p. 42).
A personagem tenta através de mitos e de animais que lhe são conhecidos
explicar o que lhe é novo e que pertence ao mundo civilizado. Conforme Fernando de
Moraes Gebra, em estudo sobre O turista aprendiz, é importante considerar o contexto
urbano-industrial de São Paulo dos anos vinte, bem como o imaginário que se produz
como forma até mesmo de resistência à opressão resultante da vivência nesse espaço.
No espaço da cidade, Macunaíma não pode vencer a máquina e se tornar imperador das
filhas da mandioca, pois a máquina não é nenhum deus, nenhuma entidade mítica do
primitivo mundo amazônico observado por Mário de Andrade em sua viagem
etnográfica, com os povos tradicionais ainda não totalmente devastados pela civilização
da máquina.
Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos
filhos da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que
isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus e que com a
máquina ninguém não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não,
nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita
pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com
fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou?
nem o herói! (2000, p.42-3).
No projeto de Mário de Andrade, conforme Fernando de Moraes Gebra, no
referido artigo, a identidade cultural passa a ser poetizada no embate entre dois mundos,
considerando um argumento da antropologia evolucionista: o primitivo, marcado pelos
povos tradicionais e pelas narrativas orais; e o civilizado, pelo mundo da máquina e o
aceleramento da modernidade. A poetização da temática da identidade na obra ficcional
de Mário de Andrade ocorre de diversas maneiras nos muitos momentos de sua
produção artística (2011, p.3).
.
4. Considerações Finais
O objetivo deste trabalho foi mostrar, através da descrição e comparação de
mitos, que é possível perceber as ambiguidades estruturais que enformam a rapsódia
Macunaíma, de Mário de Andrade, na qual ocorre a fusão dos elementos culturais não
apenas de várias regiões do Brasil, mas também de aspectos da cultura europeia. A
estrutura profunda de Macunaíma dialoga com os mitos europeus e egípcios, como o de
Osíris, o de Tântalo e também o conto de fadas ―João e o pé de feijão‖. Para isso,
recorremos aos estudos de Antonio Candido sobre leitura em chave alegórica, assim
como a psicanálise através dos estudos de Bruno Bettelheim e também grandes
estudiosos da obra de Mário de Andrade como Gilda de Mello e Souza, Cavalcanti
Proença, Eduardo Jardim de Moraes, Florestan Fernandes, Alfredo Bosi, entre outros.
Em seu importante ensaio O tupi e o alaúde, Gilda de Mello e Souza toma como
base o ensaio ―Do cabotinismo‖, do próprio Mário de Andrade, para mostrar o que há
por detrás da máscara, daquilo que se apresenta no convívio social, isto é, o projeto
nacionalista de construir uma identidade brasileira a partir de elementos estrangeiros.
Todavia, os substratos da rapsódia, advindos de uma versão carnavalizada da Demanda
do Santo Graal, permanecem europeus. No inicio, a personagem possui poucos
elementos do civilizado quando o gigante e a velha gulosa tentam devorá-lo. Todavia,
quando Uiara atrai Macunaíma para a água e trava uma luta com ele, para tentar devorálo, o nosso herói já está hibrido com a cultura considerada civilizada, como propõe
Gilda de Mello e Souza,
Ora, tenho a convicção de que, ao elaborar Macunaíma, Mário de Andrade
transpôs para a literatura, de maneira intencional e crítica, o conflito que
observara com tanta acuidade na música entre a tradição europeia herdada de
Portugal e as manifestações locais, populares, indígenas ou africanas. Assim,
levando adiante a analogia que venho estabelecendo desde o início entre a
música popular e o processo de composição de Macunaíma, pretendo
demonstrar que, independentemente dos mascaramentos sucessivos que
emprestam à narrativa um aspecto selvagem, o seu núcleo central permanece
firmemente europeu (2003, p.60, grifos da autora).
Na rapsódia Macunaíma, é possível perceber os elementos das mais diversas
culturas existentes no Brasil, e a maneira como Mário de Andrade trabalha no decorrer
do livro mostra que esses elementos fazem parte do país como um todo, tentando,
assim, unificar o Brasil e mostrar também que as matrizes europeias fazem parte de
nossa cultura. Podemos ler Macunaíma como uma representação alegórica do Brasil,
que possui uma gama enorme de culturas, que se encontram muitas vezes e propiciam a
criação de outras, o Brasil como um ―herói sem nenhum caráter‖, ou seja, que possui
múltiplas identidades.
É possível perceber que Mário de Andrade sobre desgeografização, faz um
movimento na tentativa de justapor os vários elementos culturais brasileiros para poder
estabelecer uma unidade nacional, superando, assim, segundo Jardim de Moraes,
―visões parceladas da vida nacional substituindo-as por uma apreensão da realidade
como ‗entidade homogênea‘‖ (1990, p.91). A desgeografização permite entrever nas
personagens e também nos lugares em que a obra foi ambientada o hibridismo cultural.
Este hibridismo, como se vê no caso do gigante Piaimã, que foi objeto do nosso estudo,
está ligado a mitos indígenas e também universais, assim como a contos de fadas, esses
trazidos ao Brasil pelos colonizadores europeus.
5. Referências Bibliográficas
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http://www.institutoipro.org/?p=1367. Último acesso 26/11/2014.
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