Universidade Católica de Brasília PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DIREITO A JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO ADOLESCENTES INFRATORES Autor: Rosane Aráujo Falcão Orientadora: Arinda Fernandes BRASÍLIA-DF 2009 ROSANE ARAÚJO FALCÃO A JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO ADOLESCENTES INFRATORES Projeto de Monografia a ser apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientadora: Arinda Fernandes Brasília 2009 Trabalho de autoria de Rosane Araújo Falcão, intitulada A JUSTIÇA RESTAURATIVA APLICADA À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO ADOLESCENTES INFRATORES, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: ______________________________________ Prof. Dra. Arinda Fernandes Orientadora ______________________________________ Prof. Dr. Arnaldo Godoy Examinador ______________________________________ Prof. Dr. João Rezende Examinador Brasília 2009 Ao meu Deus e criador, pois sem ti eu nada seria e não estaria aqui para escrever uma história. À minha família, por todo amor e torcida. Vocês me trazem muitas alegrias, amo a todos! Aos amigos, pela paciência e auxílio. Aos meus professores, ao longo desses anos e em especial à professora Arinda. RESUMO Referência: FALCÃO, Rosane Araújo. A Justiça Restaurativa na resolução de conflitos envolvendo adolescentes infratores. 2009, 68 folhas. Monografia do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009. Abordagem concernente à aplicação da Justiça Restaurativa em casos de atos infracionais cometidos por adolescentes em acordo com as perspectivas do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como com a Constituição Federal e a possibilidade de resultados positivos no tocante à ressocialização desses adolescentes e afastamento de futuras práticas delituosas. Palavras-chave: Justiça. Justiça Restaurativa. Adolescentes Infratores. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 2 O MODELO ATUAL DA JUSTIÇA CRIMINAL E A NECESSIDADE DE UM MODELO ALTERNATIVO DE JUSTIÇA .......................................................................... 2.1 UM SISTEMA MULTI-PORTAS DE JUSTIÇA .............................................................. 3 JUSTIÇA RESTAURATIVA .............................................................................................. 3.1 O PAPEL DO MEDIADOR NOS CÍRCULOS RESTAURATIVOS................................ 3.3MODELO RESTAURATIVO- UMA RETOMADA ÀS PRÁTICAS ANCESTRAIS ..... 3.4 JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL ...................................................................... 3.4.1 Práticas restaurativas em São Paulo ............................................................................ 3.4.1.1 São Caetano do Sul ....................................................................................................... 3.4.1.2 Heliópolis e Guarulhos ................................................................................................. 3.4.2.1 Práticas restaurativas no Distrito Federal ............................................................... 3.4.3.1 Práticas restaurativas em Porto Alegre ................................................................... 3.4.4.1 Práticas restaurativas em Belo Horizonte ............................................................... 3.4.5.1 Práticas restaurativas em Recife .............................................................................. 3.5 A LEGISLACAO BRASILEIRA E A JUSTIÇA RESTAURATIVA.............................. 3.5.1 Lei dos Juizados Especiais (Lei no. 9.099/95) ............................................................. 3.5.2 Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei no. 2.848/1940) ............................................... 3.5.3 Lei Maria da Penha (Lei no. 11.340/06) ...................................................................... 3.5.4 Portaria Conjunta no. 15/2004 ..................................................................................... 3.5.5 Projeto de Lei no. 7.006/2006 ........................................................................................ 3.5.6 Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8.069/1990) ....................................... 3.5.7 Projeto de Lei no. 1.627/2007 ........................................................................................ 4 AS ETAPAS HISTÓRICAS DO TRATAMENTO DOS ADOLESCENTES INFRATORES ........................................................................................................................ 4.1 EVOLUÇÃO DO DIREITO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE NO BRASIL .......... 4.1.1 O Código de Menores de 1927 ...................................................................................... 4.1.2 O Código Penal Brasileiro ............................................................................................ 4.1.3 Código de Menores de 1979 .......................................................................................... 4.1.4 A Constituição Federal de 1988 ................................................................................... 4.1.5 O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8069/90) ...................................... 5 ADOLESCÊNCIA E O ATO INFRACIONAL ........................................................... 6 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E O ADOLESCENTE INFRATOR ........................ 6.1 QUANDO E COMO APLICAR AOS CONFLITOS COM ADOLESCENTES ........ 6.1.2 A utilização do instituto da remissão e o processo restaurativo .......................... 6.1.2.1 Remissões concedidas pelo Ministério Público ...................................................... 6.1.2.1 Remissões concedidas pelo Juiz da Infância e Juventude ...................................... 6.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA UM MODELO HUMANIZADO E MULTIDISCIPLINAR ............................................................................................................................................. 6.3 OS PRINCÍPIOS E VALORES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM ATENÇÃO À CONDIÇÃO DO ADOLESCENTE INFRATOR ............................................................. 6.3 UM CAMINHO PARA RESPONSABILIZAÇÃO .................................................... CONCLUSÃO .................................................................................................................. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 7 1 INTRODUÇÃO Este trabalho monográfico traz uma abordagem acerca de um novo modelo de justiça, a Justiça Restaurativa, com o enfoque na sua aplicação como meio de solucionar conflitos que envolvam adolescentes infratores penais. Por se tratar de tema recente no mundo jurídico, a aplicação da Justiça Restaurativa como modelo alternativo de promoção de justiça, causa debates e curiosidade entre estudiosos, operadores do direito e à comunidade em geral. Pois, considerando os problemas sociais de violência que impactam sobremaneira o Sistema de Justiça e a insatisfação das partes envolvidas em conflitos penais com o desfeche dos processos conduzidos pelo Estado a Justiça Restaurativa surge como uma janela num túnel escuro, por trazer uma proposta inovadora e cheia de esperança, que empodera as partes diretamente envolvidas com os crimes ou infrações penais, de forma que possam entre si, conduzir um processo de responsabilização e reparação mais eficazes. Foi por isso que o tema chamou minha atenção e instigou-me a melhor conhecê-lo. Considerando sua proposta renovadora, em complementação ao sistema convencional, decidi investigá-lo, focando sua aplicação aos adolescentes infratores. Considerar-se-á capitularmente o surgimento da Justiça Restaurativa, demandada pela ineficiência do modelo de Justiça convencional, seus aspectos, características e lugar na história da humanidade. Buscarei averiguar como ocorre o desenvolvimento do projeto de Justiça Restaurativa no Brasil, buscando embasamento legislativo em acordo com a Constituição Federal e outros diplomas legais, inclusive com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que dêem margem para a realização das práticas restaurativas com os adolescentes infratores. A intenção também é fazer um levantamento sobre a legislação brasileira a respeito da situação da criança e do adolescente infrator, pesquisa que remonta a visão e o tratamento que a sociedade brasileira dispensando a respeito dos seus jovens. Como o trabalho tem o foco no adolescente, caberá também uma análise dessa fase conflituosa da vida, que envolve novas e grandes descobertas, mas também dúvidas e incertezas, além disso, será tratado seu envolvimento com os chamados atos infracionais. O intuito final, contudo, é averiguar se com a Justiça Restaurativa é possível alcançar bons resultados nos processos de resolução dos conflitos infracionais envolvendo adolescentes, e se tais práticas restaurativas coadunam com os princípios constitucionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente em defesa da proteção integral dos adolescentes. 8 2 O MODELO ATUAL DA JUSTIÇA CRIMINAL E A NECESSIDADE DE UM MODELO ALTERNATIVO DE JUSTIÇA O escritor Kelsen1 comparava a justiça ao anseio humano eterno por felicidade, mas dizia que como cada indivíduo tem seu próprio entendimento do que seja felicidade, a justiça só poderia ser garantida por uma ordem social se considerada num sentido objetivo-coletivo e jamais subjetivo-individual. Dessa forma, o conceito de felicidade que é subjetivo deveria sofrer transformações, para então abarcar uma categoria social. E assim tem sido feito, os indivíduos confiam a satisfação de seus interesses particulares nas mãos de um “governo pela maioria, se necessário contra a minoria dos sujeitos governados.” Dessa forma, a justiça que garantia a felicidade individual de todos os indivíduos, passa a ser uma ordem social que protege os interesses reconhecidos pela maioria como dignos de guarida. A partir de então, dentro de uma sociedade, os indivíduos que de alguma forma envolvem-se em uma situação de conflito de relevância jurídica, submetem-se ao aparato da justiça proporcionado por essa ordem social, para que através de um processo legal com a aplicação da justiça, a situação de harmonia volte a reinar e mesmo que a justiça aplicada não agrade a todos, ela deve alcançar a satisfação do maior contingente de pessoas. Na esfera dos conflitos criminais, reina majoritariamente no Sistema de Justiça a aplicação do modelo de justiça retributiva2 como resposta monolítica às infrações. Esta dá ênfase à questão do respeito ao dever positivado, visto que a infração é uma violação da lei penal. Assim sendo, a não obediência ao direito penal vigente, acarreta um processo que poderá incidir na aplicação de uma pena, medida de segurança ou multa, de forma proporcional ao mal causado. Na justiça retributiva, o Estado defende o interesse público e a ordem social com seu foco na culpa do infrator. Mais precisamente, nos efeitos que a ministração da pena causa ao infrator e na sociedade em geral. Em suma, a justiça retributiva objetiva o impedimento de práticas delituosas e utiliza-se de dois parâmetros para concretizar esse fim, um é a intimidação e o outro é a punição. A pretensão punitiva do Estado espera que com a sanção imposta ao infrator, os outros indivíduos da sociedade se sintam coagidos psicologicamente, de forma a desestimulá-los ou 1 KELSEN, Hans. O que é justiça?: A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência; tradução Luís Carlos Borges – 3ª. ed. – São Paul: Martins Fontes, 2001. 2 A justiça retributiva é baseada na corrente doutrinária das teorias mistas (retributiva e utilitária), referentes à natureza e aos fins da pena. A lógica retributiva é baseada no princípio de que todo ato ofensivo ou violento deve ser retribuído com uma punição correspondente à intensidade da ofensa /violência. 9 afastá-los de qualquer intento criminal. Já, quanto ao delinqüente da lei, a pena servirá para amedrontá-lo a não reincidir na prática. Dessa forma é possível a garantia da paz social, através da obediência à lei penal. A punição criminal, materializada na pena3 e nas medidas de segurança4 é um mal tanto para o indivíduo, que a ela é submetido, quanto para a sociedade, que se vê privada de um indivíduo que lhe pertence (Mirabete apud. Jeremias Benthan, p. 244 e 245). O que vemos é que as práticas punitivas cumprem através do tempo e nas mais variadas culturas uma espécie de vingança pública, exercida pelo Estado em nome da sociedade, fundamentada na crença de que o sofrimento pode servir como estratégia pedagógica para a adequação de comportamentos. Tal “sofrimento” trata-se primordialmente da pena privativa de liberdade, tão duramente criticadas pela sua ineficácia em produzir os resultados objetivados, que seria a redução da violência e dos índices de reincidência, além de produzir efeitos colaterais indesejados como a estigmatização e exclusão social do infrator, a violação dos seus direitos humanos e comumente a prática de comportamentos cada vez mais violentos, após um período de encarceramento. Vivemos um tempo em que se acredita que severas penas são a única solução para o estado atual de insegurança. Mas ao nos depararmos com um sistema prisional inchado e falido, que não proporciona condições para integração social 5ou ressocialização do indivíduo infrator, vemos que o objetivo da justiça retributiva não tem sido alcançado e ainda sofremos com as mazelas da violência. Segundo considerações de Renato Campos De Vitto6, não há ainda como se comprovar que a pena privativa de liberdade seja eficaz. Não há dados seguros a sustentar a conclusão que o encarceramento implica redução das taxas de criminalidade ou reincidência, ao contrário, o caráter dissuasório da pena privativa de liberdade perde força quando se ultrapassa uma determinada taxa de encarceramento, em razão da banalização da medida. O quadro geral do sistema prisional brasileiro apresenta dados progressivos no que concerne à demanda de novas vagas e a construção de novos estabelecimentos prisionais. A população carcerária brasileira, conforme estatísticas conta com mais de 400.000 indivíduos, cumprindo pena em pouco mais de 1.000 estabelecimentos prisionais. Uma das grandes 3 Pena é a sanção penal aflitiva imposta pelo Estado, através da ação penal, ao autor de uma infração(penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico e cujo fim é evitar novos delitos. 4 Sanção penal que se assenta no fator periculosidade para sua aplicação. 5 Conforme o artigo 1º. da Lei de Execução Penal n.7.210/84 - A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado, bem como, não é efetiva em prevenir ou inibir práticas criminosas. 6 Slakmon, C, R, De Vitto, e R. Gomes Pinto, org, 2005. Justiça Restaurativa (Brasília- DF; Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, p. 41) 10 problemáticas do sistema prisional atual é como garantir o suprimento da demanda carcerária, não só para construção de novos presídios, mas na disponibilidade e treinamento de pessoal à prestação do serviço de administração inter muros. Como esta é uma conta muito onerosa ao Estado e que demanda muita energia, acaba que a finalidade honrosa da pena é deixada de lado, que seria buscar a reinserção social do infrator, mediante educação, profissionalização e oportunidade de trabalho digno, não só como fim de que este indenize os danos causados e ressarcir o Estado do custo de sua manutenção atrás das grades, mas principalmente no intuito de gerar condições a esse indivíduo, quando egresso, de se ressocializar. Isso sem se falar na desumanização da pena prisional, nos maus tratos que infringem os direitos humanos e nos faz concluir que direitos básicos e garantias não são alcançados pela pena. Dessa triste situação, o que principalmente levaremos em conta por sua relação estreita com a proposta deste trabalho, é o fato de que a população adulta encarcerada e muitos daqueles que estão do lado de fora, cometendo práticas delituosas, começaram a caminhada nessa vida tortuosa ainda em tenra idade. Não é dos dias atuais, ser esse um alerta para que a sociedade se mobilize para o enfrentamento do quadro de violência que arregimenta nossos jovens. O melhor seria, se o trabalho de combate envolvendo as várias camadas da sociedade fosse iniciado de forma consistente e se possível, antes mesmo que os primeiros sinais que apresentassem que uma criança ou adolescente pudessem vir a serem infratores no futuro. Paulo Afonso Garrido de Paula7 diz que a ação delitiva é causadora de um desvalor social que ofende a paz pretendida pela civilidade. Infelizmente, esse tipo de ação também é cometido por aqueles que contam com menos de 18 anos. Ou seja, aqueles indivíduos que por sua situação de desenvolvimento devem contar com a tutela familiar e social, são em muitas vezes os autores de ofensas penais contra aqueles que seriam seus protetores. Objetivamente essa ofensa pode partir de qualquer pessoa, inclusive de alguém de pouca idade. Assim, o ato infracional, legalmente definido como a conduta descrita como crime ou contravenção penal e atribuível à pessoa menor de 18 anos de idade, também importa desvalor social, de modo que na defesa da cidadania a coibição da criminalidade infanto-juvenil assume o caráter de providência indeclinável.8 E em busca de uma resposta à essa violência no meio infanto-juvenil, Garrido de Paula considera que esta “brota” da ausência de um Estado Social9 e coloca o Estado do Desvalor 7 DE PAULA, Paulo Afonso Garrido. “Ato Infracional e Natureza do Sistema de Responsabilização” In. Justiça, Adolescente e Ato Infracional: Educação e Responsabilização. São Paulo: Ilanud. 2006, p.25. 8 Ibidem. 9 Estado Social, ou Estado de Providência, pode ser definido como um modelo de Estado que tem por objetivo garantir condições mínimas de alimentação, saúde, habitação, educação, que devem ser assegurados a todos os cidadãos não como benesse estatal, mas como direito político inerente ao ser-cidadão. BOBBIO, Norberto, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Dicionário de Política, vol. I/II, 5 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 416, 2004. 11 Social como um dos resultados e fonte principal dessa transgressão. Ou seja, em se tratando principalmente dos menos favorecidos, o Estado não tem prestado uma assistência adequada, de forma que estes adolescentes e até mesmo crianças possam ser afastados futuramente do mundo da criminalidade que assola cada vez mais nossa sociedade. Como forma de combate aos atos infracionais, Garrido de Paula pondera que se depende de um conjunto de políticas que reduzam a potencialidade de causa e ataquem com maior eficácia seus efeitos. Reduzir a potencialidade de causa consiste no desenvolvimento de ações junto às comunidades, principalmente as desprovidas de recursos materiais, que é de onde vêm a massa de crianças, adolescentes e adultos em conflito com a lei. Para tanto, são necessárias políticas públicas, o empenho dessas comunidades e dos autores da infração, bem como da escola e do Judiciário. É dura a crítica ao modelo de justiça retributiva, cujo foco é o infrator e a aplicação da pena em si, não prestando o devido suporte às vítimas do crime ou à sociedade no enfrentamento da crescente criminalidade. Tal retributividade, é tão exacerbada que altera até o sentido das medidas socioeducativas aplicadas aos menores infratores. Muitos as vêem como brandas, porque na verdade não entendem seu caráter educativo, e acabam por colocálas no mesmo rol das penas infringidas aos adultos. E fazendo assim, comparando as medidas socioeducativas como se pertencessem à mesma classe das penas, hão sempre de achá-las condescendentes e incentivadoras dos atos infracionais. Isso, porque no íntimo anseiam por medidas de segregação mais longas ao menor infrator e cada vez mais cedo. Em entrevista, o promotor Marcelo Gonçalves Saliba10, ao responder se há vontade política de mudar o sistema penal, disse que: “Não vislumbro vontade política para implantar um sistema penal diferente do atual, nem mesmo vejo propostas legislativas neste sentido. As propostas atuais navegam num rumo de maior criminalização e maior punição, seguindo linhas traçadas por programas de Lei e Ordem ou Tolerância Zero. Parcela significativa da população acredita ser este o único meio para o controle das relações sociais e eliminação da criminalidade, e as novas leis penais apaziguam os ânimos da mídia e das classes populares sedentas por uma forte resposta estatal.” A justiça criminal atual, bem como o tratamento aplicado aos infratores juvenis, não tem tido a eficácia esperada ou soluções suficientes que promovam a redução do quadro de violência que se instaurou. Por isso, a sociedade acaba por requerer uma “maior criminalização e maior punição” aos causadores dessa situação, sejam eles adultos ou não. 10 SALIBA, Marcelo Gonçalves, O Sistema prisional continua a representar o interesse de classes dominantes,2009, Disponível em: http://www.jurua.com.br/entrevistas3.asp?id=79. Acesso em: 8 de agosto de 2009. 12 Pois assim acreditam, que os problemas da criminalidade e das infrações serão eliminados, mas será assim? Vemos clamores de ambos os lados, dos que acreditam na eficácia de um trabalho envolvendo toda sociedade e os que estão à margem dela, para através de práticas pacifistas e restaurativas equacionarem o caos da violência atacando suas causas, tratando de uma melhor forma seus efeitos e, do outro lado, temos o clamor da maioria da população desacreditada do papel ressocializante da pena e das medidas socioeducativas, que impulsionada pela forte mídia e grande parte da opinião pública, está sedenta por vingança pública urgente contra o estado de insegurança atual. O que se questiona é se seriam as políticas, tais quais a Tolerância Zero, um antídoto para todo o mal da violência? Quem sabe ainda, se a “segregação perpétua” dos infratores da lei penal, galgando quem sabe, para uma “pena capital em massa”, a resposta mais condizente para esta problemática? Com certeza a resposta é indubitavelmente negativa, pois para a aplicação de políticas tão drásticas contra a violência e criminalidade crescente, há de se ferir algum direito da sociedade como um todo e ainda sim, não serão capazes de dar uma sensação de justiça maior do que o sistema retributivo já alcançou até hoje. 2.1 UM SISTEMA MULTI-PORTAS DE JUSTIÇA De acordo com Reale11, a justiça é uma idéia sempre enquadrada em uma visão geral do universo e da vida, sujeita às mutações históricas, o que nos leva a estudá-la na concepção do processo histórico-cultural. É por esse dinamismo que a justiça está pautada em um processo constante de mudança, que idealmente deve estar atento às novas necessidades sociais e mais ainda, às necessidades que ainda não foram supridas na ministração do modelo de justiça já existente. Ante ao caos causado por tanta violência e a incapacidade do sistema atual de justiça em geri-los e resolvê-los, tornou-se necessário que debates fossem suscitados em busca um sistema flexível de justiça criminal, mais democrático e que convertesse o sistema monolítico atual, para um multi-portas, que considere a variedade de transgressões e de sujeitos envolvidos. Ou seja, é necessário que se releve que as transgressões penais não são iguais e que também as partes envolvidas num determinado caso podem se adequar respondendo 11 REALE, Miguel Problemática da Justiça – Texto básico da conferência de abertura do XVIII Seminário Roma – Brasília, 2001. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/revista/numero14/artigo11.pdf.> Acesso em: 03 de maio de 2009. 13 positiva e eficazmente dependendo do tipo de processo que seja utilizado para a resolução do conflito. Outra questão relevante é a que o procurador de justiça Afonso Armando Konzen faz: No lugar de o Estado chamar unicamente a si a responsabilidade de dizer o resultado, não seria melhor um sistema em que os direta e indiretamente interessados também pudessem envolver-se com a busca da solução?12 É daí então, que a Justiça Restaurativa emerge como uma dessas portas para a solução de conflitos, constituindo um novo paradigma, que complementa e pode vir a reformular o modelo de justiça convencional, intervindo de outra maneira no conflito, a fim de pacificar as relações sociais. A Justiça Restaurativa não foi projetada para eliminar a função estatal ou, tampouco para substituí-la. A inafastabilidade da atividade jurisdicional é princípio fundamental num Estado Democrático de Direito e somente com sua coexistência as garantias contra o poder punitivo serão mantidas. Justiça Restaurativa não há de significar uma “alternativa ao Direito”, mas uma forma alternativa do Direito realizar justiça.”13 A Organização das Nações Unidas – ONU, a par das necessidades do poder judiciário recomenda desde a década passada, o desenvolvimento de sistemas alternativos de resolução de conflitos. O Conselho Econômico e Social das Nações Unidas - ECOSOC, em sua Resolução no. 26, de 28 de julho de 199914, recomendou que os Estados considerassem no contexto de seus sistemas de Justiça, o desenvolvimento de procedimentos alternativos ao processo judicial tradicional e a formulação de políticas de mediação e de Justiça Restaurativa. Essas medidas visam o desenvolvimento de uma cultura favorável a sistemas alternativos de resolução de conflitos nas autoridades judiciais, sociais e outras responsáveis pelo cumprimento da lei e pelo atendimento e promoção dos direitos do cidadão. A aplicação da Justiça Restaurativa como um desses mecanismos alternativos de resolução de conflitos, proporciona a expectativa de que o Judiciário passe por um desafogamento processual, além disso, existe a esperança que aconteça a promoção de um maior acesso à justiça. Segundo Mauro Capeletti o acesso à justiça pode ser encarado como um requisito fundamental de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir o direito de todos e Carlos Eduardo de Vasconcelos pontuando as matérias que atualmente são englobadas pelo movimento em prol do efetivo acesso à justiça, cita entre outras, a adoção de medidas 12 KONZEN, Afonso Armando – Justiça Restaurativa e a cultura da não-violência, 2007, Disponível em http://www.mp.rs.gov.br/atuacaomp/not_artigos/id15014.htm, Acesso em 10/10/2009. 13 SILVA, Eliezer G.; SALIBA, Marcelo G. Justiça Restaurativa, Sistema Penal, Direito e Democracia – Intercessões Ético-Discursivas: Anais do XVII Congresso Nacional do COMPEDI, Brasília, 2008. 14 Esta Resolução foi intitulada de “ Desenvolvimento e Implementação de Medidas de Mediação e Justiça Restaurativa na Justiça Criminal.” 14 alternativas reparadoras no campo penal, com fundamento nos conceitos da Justiça Restaurativa.15 A Justiça Restaurativa também surge como uma resposta mais eficiente às pretensões judiciais das vítimas, dos infratores e da comunidade envolvidas ao crime. Isso porque apóia no princípio de uma redefinição de crime. O crime não é mais concebido como uma violação contra o Estado ou como uma transgressão a uma norma jurídica, mas como um evento causador de prejuízos e conseqüências. Uma tendência relativamente recente no decorrer da Justiça Restaurativa propõe reconstruir a noção de crime, especificando que o crime é mais que uma transgressão para uma norma jurídica. (JACCOUD, 2006, p. 170)16. Jaccoud, diz ainda que o crime define-se por duas dimensões que não se anulam, mas somam-se. A saber, o crime é por vezes uma transgressão a um código legal, mas antes disso, é um ato que acarreta conseqüências nas vida de diversas pessoas, principalmente na vítima e infrator e tais conseqüências devem ser de tratadas e reparadas. E nesse ponto, a Justiça Criminal atual também falha, por enfatizar a primeira dimensão do “crime” sem relevar tanto a outra face que é a mais humana, referente a dores, traumas, etc. 15 VASCONCELOS, Carlos Eduardo de, Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas -São Paulo: Método, 2008, p. 43 e 44. 16 Slakmon, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, org., 2005. Justiça Restaurativa (Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD). 15 3 JUSTIÇA RESTAURATIVA Aproveitando-nos da conceituação de Justiça Restaurativa dada por dois importantes estudiosos no assunto, temos que: “... a justiça restaurativa é um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de ‘partes interessadas principais’, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão”.17 Diferente dos procedimentos comuns em um processo judicial, na Justiça Restaurativa valoriza-se a escuta dos principais envolvidos no conflito, dando-lhes a oportunidade de gerir os conflitos criminais nos quais foram participantes, em busca de uma maior reparação. Pois conforme Renato Sócrates relata, a denominação Justiça Restaurativa é atribuída a Albert Eglash. Em 1977, este sustentou em um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, que havia três respostas ao crime, a saber, a retributiva, baseada na punição; a distributiva, focada na reeducação; e a restaurativa, cujo fundamento seria a reparação.18 Trata-se de um processo comunitário, além de jurídico, que se refere a procedimentos específicos, no qual, a palavra “justiça" remete a um valor e não a uma instituição. É um encontro entre as pessoas diretamente envolvidas em uma situação de violência ou conflito, seus familiares, seus amigos e a comunidade.19 O novo modelo de justiça é voltado para as relações prejudicadas por situações de violência. Valoriza a autonomia e o diálogo, criando oportunidades para que as pessoas envolvidas no conflito (infrator e vítima do fato, familiares e comunidade) possam conversar e entender a causa real do conflito, a fim de restaurar a harmonia e o equilíbrio entre todos. Segundo Neemias Moretti20, os diálogos entre os participantes dos círculos ou câmaras restaurativos são longos e raramente se chega a uma conclusão, contudo proporciona aos participantes escutar os diversos pontos de vista sobre um mesmo ato causador de desarmonia social, o que é muito válido. A Justiça Restaurativa promove a responsabilidade social, pois chama os indivíduos de uma comunidade para que assumam o papel de dialogar para pacificar seus próprios conflitos e em conseqüência quebrar um círculo de violência. 17 (McCOLD, Paul & WACHEL,Ted, Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça Restaurativa, 2003 Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 10-15 Agosto de 2003, Rio de Janeiro). 18 A construção da Justiça Restaurativa no Brasil - O impacto no sistema de Justiça criminal Renato Sócrates Gomes Pinto, acesso em 27/07/2009 disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9878, 2006 19 Conceito de Justiça Restaurativa do Manual de Práticas Restaurativas - Justiça Restaurativa. Projeto Justiça para o Século 21. 20 PRUDENTE, Neemias Moretti – Justiça Restaurativa em Debate, 2007 , Disponível em: http://www.ibjr.justicarestaurativa.nom.br/pdfs/des02052008/Justi%E7a_emdebate.pdf, Acesso em 30/09/2009. 16 O principal objetivo do procedimento restaurativo é o de conectar tanto vítima, infrator, familiares e demais pessoas afetadas ou interessadas, com o desenvolvimento de ações construtivas que beneficiem a todos. Sua abordagem tem o foco nas necessidades determinantes e emergentes do conflito, de forma a aproximar e co-responsabilizar todos os participantes, com um plano de ações que visa restaurar laços sociais, compensar danos e gerar compromissos futuros mais harmônicos. Focar as necessidades que emergiram de um conflito é o ponto de partida do trabalho desenvolvido por McCold e Wachtel21: “O postulado fundamental da Justiça Restaurativa é que o crime causa danos às pessoas e relacionamentos e que a justiça exige que o dano seja reduzido ao mínimo possível”. Dessa premissa os autores dizem que resultam as seguintes questões-chave: 1º. Quem foi prejudicado? 2º. Quais as suas necessidades? 3º. Como atender a essas necessidades? Na proposta de uma teoria para a Justiça Restaurativa, McCold e Wachtel (2003, ob. cit.) consideram 3 estruturas conceituais correlatas: 1) A Janela da Disciplina A abordagem restaurativa, com alto controle e alto apoio, confronta e desaprova as transgressões enquanto afirmando o valor intrínseco do transgressor. A essência da Justiça Restaurativa é a resolução de problemas de forma colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam, àqueles que foram prejudicados por um incidente, a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos ou evitar que aconteça de novo. A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal. (McCold & Wachtel, 2003) 2) O Papel das Partes Interessadas A segunda estrutura de nossa teoria de Justiça Restaurativa, o papel das partes interessadas, relaciona o dano causado pela transgressão às necessidades específicas de cada parte interessada resultantes da mesma, e às respostas restaurativas necessárias ao atendimento destas necessidades. Essa estrutura causal distingue os interesses das partes interessadas principais—aqueles mais afetados pela transgressão—dos afetados indiretamente. (McCold & Wachtel, 2003). 3) Tipologia das Práticas Restaurativas “A Justiça Restaurativa é um processo que envolve as partes interessadas principais na decisão de como reparar o dano causado por uma transgressão. As três partes interessadas principais na Justiça Restaurativa são as vítimas, os transgressores e suas comunidades de assistência, cujas necessidades são, respectivamente: obter a reparação, assumir a responsabilidade e conseguir a reconciliação. O grau de envolvimento das três numa troca emocional e decisões significativas determinará o grau em que qualquer forma de disciplina social poderá ser chamada apropriadamente de ‘restaurativa’. (McCold & Wachtel, 2003) 21 McCOLD, Paul & WACHEL,Ted. Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça Restaurativa, 2003 – Disponível em: http://www.iirp.org/library/paradigm_port.html. Acesso em: 20 de maio de 2009. 17 Por se tratar de um paradigma emergente, a Justiça Restaurativa ainda não tem um conceito sedimentado, apesar de, como já foi dito anteriormente, serem cada vez mais recorrentes as discussões e estudo acerca do tema. André Goma de Azevedo relata que: “Não há consenso quanto à conceituação da Justiça Restaurativa. Algumas definições baseiam-se em procedimentalizações dos encontros entre a vítima, o ofensor e alguns representantes da comunidade” 22 . O termo Justiça Restaurativa também não é único, pois há quem prefira denominar o novo modelo como justiça transformadora ou transformativa, justiça relacional, justiça restaurativa comunal, justiça recuperativa ou justiça participativa23. E quando se aborda os objetivos principais da Justiça Restaurativa, vemos que eles ainda não são concretos. Como pontua De Vitto24, tudo ficará mais claro em relação à Justiça Restaurativa quando: O ideal ressocializador deixará de ser um mito e um lema vazio de conteúdo quando, depois do oportuno debate científico, seja alcançado um elementar consenso em torno de três questões básicas: quais objetivos concretos podem ser perseguidos em relação a cada grupo ou subgrupo de infratores, quais os meios e técnicas de intervenção são válidos idôneos e eficazes em cada caso e quais os limites não devem ser superados jamais em qualquer tipo de intervenção. As explicações para as indefinições existentes, além de embasarem-se na tenra idade da retomada do modelo, que ainda está em construção, mas também, pode se traduzir no fato de que a Justiça Restaurativa tem se espalhado por todo mundo, e tem se moldado à organização e características de cada nação. Ao tratarmos dos valores da Justiça Restaurativa, tem-se de forma geral que é a participação, o respeito, a honestidade, a humildade, a interconexão, a responsabilidade, o empedramento e a esperança, os valores distinguem a Justiça Restaurativa de outras abordagens tradicionais de justiça que se traduzem na prática do Círculo Restaurativo.25 Sustenta-se que a voluntariedade é importantíssima no processo da Justiça Restaurativa, é como uma das condições primordiais a essa cooperação e participação nos círculos restaurativos, uma vez que ninguém é obrigado a participar, mas conscientizado que este processo ao final poderá gerar condições para uma restauração de danos e reconstrução dos relacionamentos e sentimentos. 22 Slakmon, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, org., 2005. Justiça Restaurativa (Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD), p.140. 23 JACCOUD, 2005 ob. cit, p. 163. 24 DE VITTO, 2005 apud Molina, 1996 ob. cit., p. 51. 25 É um encontro entre pessoas diretamente envolvidas em uma situação de violência ou conflito, seus familiares, seus amigos e a comunidade. Este encontro, orientado por um coordenador, segue um roteiro pré-determinado, proporcionando um espaço seguro e protegido onde as pessoas podem abordar o problema e construir soluções para o futuro. O procedimento como um todo se divide em três etapas: o pré-círculo (preparação para o encontro com os participantes); o círculo (realização do encontro propriamente dito) e o pós-círculo (acompanhamento). O Círculo não se destina a apontar culpados ou vítimas, nem a buscar o perdão e a reconciliação, mas a percepção de que nossas ações nos afetam e afetam aos outros, e que somos responsáveis por seus efeitos. 18 O modelo restaurativo baseia-se em valores, procedimentos e resultados definidos, mas pressupõe a concordância de ambas as partes (réu e vítima), concordância essa que pode ser revogada unilateralmente, sendo que os acordos devem ser razoáveis e as obrigações propostas devem atender ao princípio da proporcionalidade. A aceitação do programa não deve, em nenhuma hipótese, ser usada como indício ou prova no processo penal, seja o original seja em um outro.26 (SÓCRATES, Renato, 2005 p. 22). O processo restaurativo é também reservado, acontecendo em um ambiente tranquilo e seguro que gere confiança às partes para se abrirem, expondo seu ponto de vista sobre o ocorrido e propondo-se ao final um acordo que deverá ser cumprido. Como exposto acima, por Renato Sócrates, não constitui indício ou prova no processo penal comum, a simples aceitação ao programa. Bem como, em caso de desistência do processo restaurativo ou do não cumprimento do acordo, os participantes estão resguardados de que não será considerado no processo comum o que se passou nas câmaras ou círculos. 3.1 O PAPEL DO MEDIADOR NOS CÍRCULOS RESTAURATIVOS A condução do processo pelo mediador, facilitador ou coordenador intenciona oportunizar que o diálogo siga de forma espontânea, por isso é necessária uma maior sensibilidade desse profissional, que não está ali para julgar ou constranger os participantes, principalmente nos casos envolvendo participantes muito heterogêneos, seja financeiramente, intelectualmente ou em consideração a faixa etária. De acordo com o Manual de Mediação Judicial o mediador é: ...o terceiro neutro, que deve ter conhecimento técnico necessário par o bom desenvolvimento do processo; sua função é a de restabelecer a comunicação entre as partes, conduzindo as negociações, ou seja, “instruindo as partes quanto a maneira mais conveniente a portarem-se perante o curso do processo a fim de obterem a sua efetiva concretização”. O mediador deve garantir às partes que a discussão proporcione um acordo fiel ao direito da comunidade em que vivem, moral e justo.27 O envolvimento das partes nos círculos é imprescindível para chegada a bons resultados, e o papel do mediador é importante no programa para que as partes possam realmente entender o que vai acontecer ali e sentirem-se seguras para começar o dialogo. Há de se considerar que um mau profissional na posição de mediador pode atrapalhar ou invés de auxiliar as partes no alcance de objetivos positivos. O mediador tem papel reconhecido como auxiliar da Justiça, conforme artigo 7º. da Lei 9.099/95 e deve facilitar o entendimento entre os participantes em busca de soluções para o conflito, conduzindo de maneira técnica os processos. 26 Ob. cit. AZEVEDO, André Gomma (org.).2009. Manual de Mediação Judicial (Brasília/DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD), p. 190. 27 19 Ainda não há uma lei que discipline a atuação deste profissional, contudo acredita-se que um procedimento como o da Justiça Restaurativa, além de confiar a efetividade de seus processos focando as necessidades das partes em conflito e nos valores sociais ligados ao debate, não pode descartar que a eficácia de suas práticas está relacionada também na qualidade da formação de seus mediadores. 3.1 O PAPEL DO MEDIADOR NOS CÍRCULOS RESTAURATIVOS Segundo Myléne Jaccoud, existem vestígios de práticas restauradoras, prevendo medidas de restituição em códigos antigos, como no Hammurabi e Lipit-Ishtar, Código Sumeriano e o Eshunna, dando a entender a antiguidade do modelo de resolução de conflitos através da negociação. Entre povos colonizados da África, da Nova-Zelândia, Austrália, América do Norte e do Sul e sociedades pré-estatais da Europa também adotavam práticas parecidas. Ou seja, a evolução da Justiça Restaurativa tem suas raízes do modelo restaurativo aplicado nas sociedades comunais (pré-estatais européias e coletividades nativas), que para defender seu modelo de organização social e coesão do grupo, aplicavam mecanismos aos conflitos para que não ocorresse a desestabilização social. Dupont-Bouchât28 expõe que a partir da centralização de poderes e o surgimento dos Estados, abandona-se a justiça negociada e gradativamente acontece o afastamento da vítima no processo criminal e com a quase extinção das formas de reintegração social nas práticas de justiça habitual. A partir da década de 70, o movimento da Justiça Restaurativa voltou à tona, mas tem comunidades que desde épocas remotas mantém em suas tradições práticas que envolvem a todos, em busca da solução dos conflitos que irremediavelmente sempre vem a acontecer. A justiça restaurativa aparece em inúmeras tradições e remonta às origens da civilização. Ela se chama restaurativa porque, nesses contextos históricos, representou uma forma de restaurar a integridade da comunidade depois de um ato traumático que lesa a confiança, o bem-estar e a ordem social. Por exemplo, no Havaí, quando ocorre um crime, os mais velhos reúnem em um círculo a vítima, o ofensor, suas respectivas famílias e amigos, dando início a um processo chamado ho o-pono-pono. O mesmo acontece na tradição dos maori da Nova Zelândia e entre comunidades dos nativos do norte do Canadá.29 Em 1990, houve um a ruptura entre os modelos de justiça retributivo e o restaurador, marcado pela publicação do livro Changing Lenses: A New Focus for Crimes and Justice de Howard Zehr30. 28 Jaccoud, 2005 apud Dupont-Bouchât, 1999. DISKIN, Lia - Vamos Ubuntar? Um convite para cultivar a paz – Brasília: UNESCO, Fundação Vale, Fundação Palas Athena, 2008, p. 77. 30 Howard Zehr é professor de Sociologia e Justiça Restaurativa no curso de graduação em Transformação de Conflitos da Eastern Mennonite University, em Harrisonburg, Virgínia – EUA e co-diretor do Center for Justice and Peacebuilding, é reconhecido mundialmente como um dos pioneiros da Justiça Restaurativa 29 20 Segundo Zehr, o crime é uma violação nas relações entre o infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação e do trauma causado e que deve ser restaurado. Incumbe, assim, à Justiça oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça, avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado. (SÓCRATES, Renato, 2005, p. 21) 31 No ano de 1993 Lode Walgrave apresentou um modelo que mostra que a justiça é marcada por três tipos principais de direito (Direito Penal, Reabilitador e Restaurador), e a partir de então, esse modelo serve como referência para definir a Justiça Restaurativa, separando-a de maneira clara das práticas comumente usada no nosso sistema penal. O direito restaurador adota os erros causados pela infração como posição de referência ou ponto de partida, enquanto o direito penal se apóia na infração, e o reabilitador sobre o indivíduo delinqüente. O direito reparador tem como objetivo anular os erros obrigando as pessoas responsáveis pelos danos a reparar os prejuízos causados; o direito penal visa restabelecer um equilíbrio moral causado por um mal; a aproximação reabilitadora procura adaptar o ofensor através de um tratamento. Só o direito restaurador concede às vítimas um lugar central, o direito punitivo e o reabilitador lhes oferecem apenas um lugar secundário. Os critérios utilizados para avaliar o alcance dos objetivos atribuídos a cada tipo de direito são muito diferentes. O penal está centrado na noção de “justa” pena (princípio de proporcionalidade), o reabilitador sobre a adaptação do indivíduo delinqüente, enquanto que o direito restaurativo encontra seus objetivos a partir da satisfação vivenciada pelos principais envolvidos pela infração. O contexto social no qual o direito penal evolui é um contexto no qual o estado é opressor; o direito reabilitador é marcado por um contexto onde o Estado é uma providência estatal; o direito reparador se expressa através de um contexto onde o Estado responsabiliza os principais envolvidos. (JACCOUD, 2005, p. 167-168) 32. Desde a década de 90 as práticas restaurativas tem se tornado uma tendência mundial e os debates não param. Tudo isso, em decorrência da esperança que o novo modelo traz para resolução de conflitos, com “novas lentes”, diferentes do sistema penal vigente. Foi nessa mesma época que o governo neozelandês decidiu tornar a aplicação da Justiça Restaurativa o modelo oficial de resolução de conflitos infracionais cometidos por crianças e adolescentes, foi um incentivo a mais para o crescimento das discussões acerca do tema. A Nova Zelândia para atender às necessidades de sua população aborígene, que muito criticava a aplicação da justiça convencional baseada na tradição britânica, aos atos infracionais de seus filhos, adotou um novo modelo, que conta com a participação da família na decisão dos conflitos penais envolvendo crianças e adolescentes. Para tanto as decisões dos familiares passaram a ser consideradas nas decisões oficiais. Por lá, o procedimento infracional só é aplicado se não houver outro meio alternativo de solucionar o caso, resguardado o interesse público em contrário. Também não devem ser 31 32 Ob. cit. Ob.cit. 21 instaurados os procedimentos infracionais para prover qualquer tipo de assistência ou serviços voltados ao bem-estar do adolescente, além disso, toda medida prevista para lidar com adolescentes deve ter por objetivo fortalecer a família e seu grupo familiar, promovendo habilidades neste grupo para que possa desenvolver seus próprios meios de lidar com as ofensas praticadas por seus adolescentes e toda medida deve levar em consideração os interesses das vítimas. Assim, quando há reconhecimento de responsabilidade pelo adolescente, este e a vítima, com a presença dos respectivos grupos familiares ou pessoas que lhes dêem suporte, tentam solucionar os conflitos gerados com a infração do menor. Foi também, a partir desta experiência que a Organização das Nações Unidas – ONU, através da Resolução 12/2002, citando sua Resolução anterior no. 26/1999, incentivou os Estados membros a apoiarem o desenvolvimento e implementação de pesquisa, capacitação e atividades para implementação de projetos de Justiça Restaurativa. Isto se deu em razão da percepção de que a abordagem da Justiça Restaurativa propicia uma oportunidade para as vítimas obterem reparação, se sentirem mais seguras e aptas a superar o problema, garantindo aos adolescentes, oportunidade para compreenderem as causas e as conseqüências de seu comportamento, assumindo responsabilidade de forma efetiva e que a comunidade possa compreender as causas subjacentes dos atos infracionais, visando promover o bem-estar desse adolescente e prevenir a criminalidade. Nessa mesma Resolução, a ONU tratou de temas como a Terminologia acerca da Justiça Restaurativa, a utilização de programas de Justiça Restaurativa, sua operação e seu desenvolvimento contínuo. Hoje em dia, as experiências, a práticas da Justiça Restaurativa e modelos similares acontecem em países como África do Sul, Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Escócia, Estados Unidos, Finlândia, França, Noruega, Nova Zelândia, e outros. 3.3 MODELO RESTAURATIVO- UMA RETOMADA ÀS PRÁTICAS ANCESTRAIS O novo paradigma restaurativo sofre contra resistências. Muitos operadores do direito desacreditam de sua eficácia e pregam que ele causa um desvio ao devido processo legal e que sua aplicação representaria um retrocesso à vingança privada33. 33 A vingança privada é uma das fases da vingança penal. Na denominada fase da vingança privada, cometido um crime, ocorria a reação da vítima, dos parentes e até do grupo social (tribo), que agiam sem proporção a ofensa, atingindo não só o ofensor, como todo o seu grupo. A inexistência de um limite (falta de proporcionalidade) no revide à agressão, bem como a vingança de sangue foi um dos períodos em que a vingança privada constituiu-se a mais freqüente forma de punição, adotada pelos povos primitivos. A vingança 22 Na verdade os defensores da Justiça Restaurativa como Zehr, argumentam que o fundamento aqui, é retornar às certas práticas comunitárias ancestrais, principalmente indígenas e aborígenes, de cunho mediatório e com características restaurativas. Vasconcelos ao tratar da evolução do conflito em sua obra Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas34, expõe que noventa por cento da história da humanidade foi vivenciada por nossos ancestrais, cujas relações humanas eram sem muita complexidade e fortemente horizontalizadas, sendo que seus conflitos eram mediados pela comunidade, através de lideranças comunitárias. Em pesquisas recentes, o antropólogo e mediador William Ury, demonstra que eram raros os atos de violência entre os povos antigos e que na verdade a guerra, que seria o ápice da violência é algo dos novos tempos. 35 A verdade antropológica é que as guerras têm suas raízes nos primórdios da civilização, quando os seres humanos estavam deixando de ser nômades e começaram a cultivar e a criar animais. Isso levou à concentração de população e à competição por terra e por comida. Em seguida, vieram as tensões populacionais e as guerras. De lá para cá, passaram-se 10.000 anos, o equivalente a apenas 1% de nossa existência. A guerra como um fenômeno social organizado, portanto, é muito recente.36 Como se vê, a medida que as relações foram se modernizando, também foram se tornando mais frias, violentas e os mecanismos de resolução dos conflitos foram se verticalizando. Com a Justiça Restaurativa nota-se uma retomada a um modelo com mediação comunitária, com vistas a proporcionar que pessoas tão diferentes como uma vítima e seu algoz, se enxerguem como participantes de um mesmo organismo comunitário. 3.4 JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL Conforme Joshua Wachtel, em meados dos anos 90, Dominic Barter37 desenvolveu um trabalho em uma favela no Rio de Janeiro, incluindo membros de gangues. Sua intenção era ajudá-los na aplicação de práticas não violentas no cotidiano. Ele dizia: “I saw violence as a monologue” e “All the state and gang responses to violence were more of the same. I wanted to create a dialogue.” privado constituía uma reação natural e instintiva, por isso, foi apenas uma realidade sociológica, não uma instituição jurídica. 34 VASCONCELOS, Carlos Eduardo, 2008, p. 22. 35 William Ury é especialista em técnicas de negociação e passou as últimas duas décadas mediando conflitos na Indonésia, Venezuela, África do Sul, Iugoslávia e Oriente Médio. 36 Entrevista William Ury, Revista Veja, 2006, no. 1971. – O inferno somos nós - Disponível em http://veja.abril.com.br/300806/entrevista.html, Acesso em 22/09/2009. 37 WACHTEL, Joshua, 2009 - Toward Peace and Justice in Brazil: Dominic Barter and Restourative Circles – Disponível em http://www.realjustice.org/library/brazil.html, Acesso em 04/09/2009. 23 Em 2005, o então ministro da justiça, após assistir a primeira apresentação no Brasil, sobre as práticas restaurativas, contratou Barter para ajudar nos projetos pilotos em São Paulo e Porto Alegre. Com isso, deu-se o marco inicial das praticas restaurativas no Brasil, por intermédio da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça que elaborou o projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro. Com o apoio do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento – PNUD surgiram 3 projetos-piloto, quais sejam: O projeto da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul, na 3ª. Vara do Juizado Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre no Rio Grande do Sul e no Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirante em Brasília-DF. Cada um destes projetos-piloto, implementados com base nos princípios da Justiça Restaurativa, ganharam contornos distintos, fazendo uso de Práticas Restaurativas nem sempre idênticas, em face das peculiaridades de cada Juízo, bem como da localidade que estava sendo implementado e, ainda, da circunstância de se tratar de “pilotos”, que buscam na experimentação, a construção do modelo regional e/ou nacional de Justiça Restaurativa mais adequado para as realidades brasileiras.38 Como se pode notar na fala de Mazda Ednir, o fato desses projetos serem diferentes entre si, pois além de localizados em regiões distintas, também tratam de relações de conflito em âmbitos diversos, sejam eles na escola, na comunidade ou já no judiciário, o que requer práticas restaurativas que respeitem as peculiaridades inerentes a cada um, o que será de grande valia na a criação de um modelo adequado ao nosso país. No Brasil, a Justiça Restaurativa está sendo aplicada como um recurso centrado na vítima que visa reparar o dano, de forma que o acesso se torne mais transparente e democrático, criando um espaço onde o envolvimento dos afetados e dos membros de sua comunidade no processo venha promover a paz e a tolerância e que haja a transformação do papel governamental e da comunidade. Além do trabalho dos projetos-pilotos, temos o desenvolvimento de práticas restaurativas também em Recife e Belo Horizonte e nas cidades paulistas de Guarulhos, Jundiaí, Heliópolis. Os projetos de trabalho para o alcance dessas perspectivas ocorrem, como já foi dito, em escolas, no Judiciário e na comunidade, utilizando para tanto conferências (câmaras restaurativas ou círculos) e a mediação. 3.4.1 Práticas restaurativas em São Paulo 38 Justiça e Educação em Heliópolis e Guarulhos: parceria para a cidadania/ Madza Ednir, organizadora. - São Paulo : CECIP, 2007) 24 3.4.1.1 São Caetano do Sul A Justiça Restaurativa e sua prática desenvolvida no Juizado da Infância e da Juventude de São Caetano do Sul/SP iniciou por meio de uma parceria entre o Sistema de Justiça e o de Educação, denominado “Justiça e Educação: parceria para cidadania. Por lá, os círculos restaurativos podem ser aplicados em qualquer estágio do processo convencional e sua atuação envolve ações preventivas a todas as fases do processo de apuração dos atos infracionais e de execução de medidas socioeducativas. Assim, quando esse tipo de conflito criminal chega à Justiça, através de uma audiência de oitiva informal, com participação do juiz, promotor, advogado e assistente social, verificase se há reconhecimento de responsabilidade e disposição por parte do menor, da vitima e seus familiares de participarem dos círculos restaurativos, se assim for, o processo convencional é suspenso para tomada de decisão sobre a melhor maneira de reparação dos danos e atendimento das necessidades de todos os afetados, sobretudo da vítima. Em se tratando dos casos mais graves, sobretudo aqueles em que não há relações contínuas de convivência, a resolução dos conflitos é realizada no fórum e com participação de técnicos especialmente capacitados. Em suporte a esta iniciativa, todo um conjunto de iniciativas para articulação da rede de atendimento secundária, uma Rede de Apoio, em torno da escola vem sendo realizado, sempre com um viés de promoção de um maior envolvimento da própria comunidade. Na vertente do projeto restaurativo desenvolvido nas comunidades, foram criados espaços comunitários para a resolução de conflitos, evitando-se sua caracterização como infracionais e seu envolvimento com o Sistema de Justiça. Baseado nas diretrizes das Nações Unidas, o projeto procurou expressar a criação de políticas e medidas progressistas de prevenção de conflitos de vizinhança, violência doméstica, brigas de adolescentes, conflitos entre pais e filhos, etc. O projeto restaurativo na comunidade foi chamado de “Restaurando justiça na família e na vizinhança”. Nesse intuito, o projeto visa identificar a raiz do problema de forma a permitir a aplicação de ações preventivas. O projeto acontece em parceria com a polícia, a guarda civil municipal, a Ordem dos advogados do Brasil e a Secretaria Municipal de Saúde, que identifica os casos de vítimas de violência atendidas em hospitais e as encaminha para participação nos círculos restaurativos e ao programa de visitas domiciliares Em São Caetano do Sul, ao se tratar dos problemas da delinqüência dos adolescentes dentro de sua própria comunidade, tem-se o objetivo de evitar a estigmatização do menor, buscando entender que o comportamento dos jovens que não se ajustam a valores e normas 25 gerais da sociedade, são com freqüência, parte de seu processo de amadurecimento, por isso a importância de promover essas ações comunitárias. O grande desafio é a reinserção desses adolescentes, principalmente no ambiente escolar, para isso foram capacitados educadores e pessoas da comunidade para atuarem como mediadores ou facilitadores dos círculos restaurativos pautados pelo diálogo, respeito, autonomia e horizontalidade. Essa parte do projeto visa, evitar suspensões ou transferências compulsórias e faz com que a comunidade se mobilize para ajudar o adolescente no enfrentamento das dificuldades vividas. E é aqui, que se pode notar uma terceira vertente do projeto de Justiça Restaurativa de São Caetano do Sul, o chamado Preventivo-Escolas, que conta com a participação de pais, alunos, professores e auxiliares de educação nos círculos restaurativos. O projeto de Justiça Restaurativa no Brasil, no âmbito escolar, começou a ser desenvolvido em 12 escolas de São Caetano do Sul em 2006. O novo mecanismo busca a solução pacífica dos conflitos que acabam gerando agressão física ou emocional, substituindo as punições tradicionais de advertência, castigo ou expulsão pelo diálogo, reflexão e análise das conseqüências. “Não se trata de passar a mão na cabeça de quem provocou um dano e nem de impunidade”. Nivaldo Leal dos Santos, coordenador do programa e gerente de Educação e Cidadania da Fundação para Desenvolvimento da Educação (FDE). Os bons frutos das práticas restaurativas são inegáveis, uma vez que “o sistema restaurativo tem-se revelado mais eficaz para lidar com os conflitos e violências, principalmente com o público jovem, por trabalhar as causas e as conseqüências.39 Em atendimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, políticas públicas universais devem ser criadas para proteger os direitos dos menores e para isso toda uma rede de atendimento ou apoio deve estar articulada. É por isso que como foi exposto acima, o Judiciário se une à escola e à comunidade na tentativa de prevenir ou pacificar conflitos envolvendo menores infratores. Como se vê, a aplicação da Justiça Restaurativa implica numa transformação institucional no âmbito da justiça e também da escola, em prol de uma maior participação dos próprios adolescentes na resolução dos conflitos. 39 Solução pacífica de conflitos de alunos em escolas estaduais ganha prêmio: Diário Oficial Poder Executivo Seção I , de 24 de dezembro de 2008, São Paulo, p 118. 26 O projeto de São Caetano do Sul tornou-se referência no Estado de São Paulo. Em três anos de projeto, mais de mil pessoas foram atendidas, com índices de acordo de 88% e, destes, 96% foram cumpridos. 3.4.1.2 Heliópolis e Guarulhos O projeto de Justiça Restaurativa de Heliópolis e Guarulhos é uma parceria entre a Fundação para o Desenvolvimento da Educação - FDE e as Varas Especiais da Infância e da Juventude da Capital (Região de Heliópolis) e a Vara da Infância e da Juventude de Guarulhos. Tal projeto foi pautado em 3 eixos. O eixo central do projeto é a aprendizagem de procedimentos restaurativos, o segundo eixo é o apoio às mudanças nas escolas, comunidade e no Fórum. O último e terceiro eixo é o fortalecimento da Rede de Atendimento para onde os participantes dos Procedimentos Restaurativos serão encaminhados. É diante de um quadro de violência instalada, que não poupa nem o ambiente escolar e como ineficiente é a resposta a essa violência, por não se considerar de onde ela vem, para então tratar a problemática em sua causa como meio de prevenção, é que a escola precisa tomar uma atitude para o cultivo da cultura da paz. A constatação de que os problemas que estão ligados à violência na sociedade e nas escolas têm um forte componente social e cultural, vêm gerando a mobilização de segmentos do Poder Público e dos agentes sociais, produzindo novas idéias e práticas para não apenas eliminar a violência quando ela ocorre, mas, principalmente, preveni- la.40 3.4.2.1 Práticas restaurativas no Distrito Federal No Distrito Federal, a experiência da Justiça Restaurativa acontece na cidade satélite do Núcleo Bandeirante, mais precisamente no Juizado Especial Criminal. Acontece uma triagem ainda na delegacia daqueles casos em que se poderão ser aplicada as práticas restaurativas. Em audiência preâmbular promotor e o juiz propõe a participação das partes envolvidas nos círculos restaurativos, que aconteceram em outro lugar e dia, sem a presença do magistrado ou do promotor. Se houver o aceite das partes, o processo é suspenso e é aguardado o relatório do trabalho. No caso se houver acordo, dentro dos limites legais este será homologado e consequentemente, arquiva-se o processo. 3.4.3.1 Práticas restaurativas em Porto Alegre Desde 2002 começaram a serem testadas práticas restaurativas em Porto Alegre e a partir de 2005 teve início o projeto “Justiça para o Século 21” com sua aplicação sistemática. 40 MADZA, Ednir, Organizadora - Justiça e educação em Heliópolis e Guarulhos: parceria para a cidadania. - São Paulo : CECIP, 2007, p. 10 27 O projeto conta com apoio voluntário de coordenadores e comunidade e da UNESCO Programa Criança Esperança, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD e Secretaria da Reforma do Judiciário. O seu objetivo de contribuir com outras políticas públicas para pacificação de violências envolvendo crianças e adolescentes, com a aplicação da Justiça Restaurativa que propõe humanizar e qualificar os serviços prestados pelo sistema de justiça e pela Rede de Atendimento da Infância e da Juventude. O projeto está sediado na 3ª. Vara do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre e através da sua Central de Práticas Restaurativas - CPR/JIJ é promovida a aplicação de práticas restaurativas nos processos judiciais relativos a atos infracionais praticados por menores de 18 anos. Os procedimentos restaurativos do projeto de Porto Alegre são realizados respeitando os princípios da Justiça Restaurativa de voluntariedade na participação, horizontalidade, admissão da autoria do cometimento do ato infracional pelo adolescente e na não revitimização. Os procedimentos dividem-se em três partes: pré-círculo (preparação do encontro); círculo (realização do encontro subdividido em três etapas: compreensão mútua, autoresponsabilização e acordo) e pós-círculo (acompanhamento do acordo). O procedimento é conduzido por um coordenador e tudo só acontece se o adolescente, a vítima e seus responsáveis concordarem em participar. O acontecimento das práticas em Porto Alegre pode ser antes da aceitação da representação pelo magistrado ou quando a sentença estiver sendo executada, ou seja, quando o adolescente estiver cumprindo a medida socioeducativa. O aval de qual seria o melhor momento para a participação desse jovem nos círculos é dado pela equipe multidisciplinar que o acompanha. Nesses poucos anos de práticas restaurativas no 3º. Juizado de Porto Alegre, mais de 2.583 pessoas foram atendidas. 3.4.4.1 Práticas restaurativas em Belo Horizonte Em Belo Horizonte foi idealizado um projeto chamado de Projeto Mediar no âmbito da Polícia Civil. A aplicação é na 5ª. Delegacia Distrital, abrangendo uma área com 14 bairros. O processo restaurativo é desenvolvido nos casos de pequenos conflitos e infrações penais, que tenham prejudicado o relacionamento entre as partes. Na busca pela redução e monitoramento desses conflitos, tal mediação policial envolve profissionais liberais e é 28 possível a participação da comunidade. A mediação é informal, mas os acordos são legitimados com a assinatura das partes e outros participantes. O foco do projeto é promover a reparação do dano e as partes envolvidas, podem a qualquer momento desistir ou até mesmo, concatenar a prática restaurativa com o processo legal. 3.4.5.1 Práticas restaurativas em Recife É de maneira informal que no 1º. Juizado Especial Criminal de Recife está se desenvolvendo a Justiça Restaurativa, através de uma equipe composta por seis mediadores utilizam-se de técnicas de mediação com abordagem restaurativa. Há uma parceria com as delegacias que averiguam os casos verificam a possibilidade da aplicação da prática encaminhando as partes para o núcleo. O projeto também é acompanhado e avaliado por uma equipe interdisciplinar. 3.5 A LEGISLACAO BRASILEIRA E A JUSTIÇA RESTAURATIVA A consideração e o tratamento dado pelo texto legislativo é imprescindível para aplicação das práticas restaurativas. De acordo com Pedro Scuro Neto41, um programa efetivo de Justiça Restaurativa requer que sejam estabelecidos, “por via legislativa, padrões e diretrizes legais para a implementação dos programas restaurativos, bem como para a qualificação, treinamento, avaliação e credenciamento de mediadores, administração dos programas, níveis de competência e padrões éticos, salvaguardas e garantias individuais”. O aparato legislativo no Brasil quanto à Justiça Restaurativa é mínimo, ainda não há dispositivos voltados para práticas totalmente restaurativas, com isso, para sua implementação tem-se valido da Lei dos Juizados Especiais no. 9099/95, do Código Penal, da Lei no. 11340/06, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Contudo, podemos contar com a previsão no preâmbulo da Constituição Federal de que na instituição do nosso Estado Democrático destinado entre outras coisas a assegurar o valor supremo da justiça, a nossa sociedade está comprometida também com a solução pacífica das suas controvérsias. Assim sendo, tem se subsídios na legislação maior que para a implementação de práticas restaurativas, que valorizam a resolução dos conflitos de forma pacífica. 3.5.1 Lei dos Juizados Especiais (Lei no. 9.099/95) 41 (2005, Damásio de Jesus apud Pedro Scuro Neto, 200..) JESUS, Damásio de. Justiça Restaurativa no Brasil. Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 16.11.2005 29 A Lei dos Juizados Especiais que rege os crimes e contravenções penais com pena não superior a 2 anos ou multa, no texto de seus artigos 72 a 76, da vazão à utilização do processo restaurativo, senão vejamos: Art. 72 – Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade. Art. 76 – Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas a ser especificada na proposta. 3.5.2 Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei no. 2.848/1940) O Código Penal, instituído pelo Decreto-Lei no. 2.848/1940 trata nos artigos 45 a 48 das penas alternativas, trazendo também uma brecha para a aplicação da Justiça Restaurativa: Art. 45. Na aplicação da substituição prevista no artigo anterior, proceder-se-á na forma deste e dos arts. 46, 47 e 48. § 1o A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. § 2o No caso do parágrafo anterior, se houver aceitação do beneficiário, a prestação pecuniária pode consistir em prestação de outra natureza. § 3o A perda de bens e valores pertencentes aos condenados dar-se-á, ressalvada a legislação especial, em favor do Fundo Penitenciário Nacional, e seu valor terá como teto - o que for maior - o montante do prejuízo causado ou do provento obtido pelo agente ou por terceiro, em conseqüência da prática do crime. Art. 46. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade. § 1o A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado. § 2o A prestação de serviço à comunidade dar-se-á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais. § 3o As tarefas a que se refere o § 1o serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho. § 4o Se a pena substituída for superior a um ano, é facultado ao condenado cumprir a pena substitutiva em menor tempo (art. 55), nunca inferior à metade da pena privativa de liberdade fixada. Art. 47 - As penas de interdição temporária de direitos são: I - proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo; II - proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público; III - suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo. IV - proibição de freqüentar determinados lugares. Art. 48 - A limitação de fim de semana consiste na obrigação de permanecer, aos sábados e domingos, por 5 (cinco) horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento adequado. Parágrafo único - Durante a permanência poderão ser ministrados ao condenado cursos e palestras ou atribuídas atividades educativas. 30 Os artigos 16, 33 § 4.º, art. 65, III, “b”, art. 78, § 2.º também do Código Penal, referentes à reparação de dano, conduzem à aplicação de práticas restaurativas. Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. Art. 33, § 4o O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais. Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: III - ter o agente: b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano; Art. 78, § 2° Se o condenado houver reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, e se as circunstâncias do art. 59 deste Código lhe forem inteiramente favoráveis, o juiz poderá substituir a exigência do parágrafo anterior pelas seguintes condições, aplicadas cumulativamente: a) proibição de freqüentar determinados lugares; b) proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz; c) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. A partir do momento em que as partes venham a participar voluntariamente dos círculos restaurativos e tracem conjuntamente um acordo com vistas à reparação do dano, as previsões legais dos artigos citados acima, podem ser aplicadas concomitantemente à critério do magistrado que homologará o acordo e assim a Justiça Restaurativa estará sendo aplicada. O sentido trazido pelos princípios e objetivos da Justiça Restaurativa com relação ao dano, não se limitam à devolução do bem furtado, por exemplo, mas mais que isso, significa a busca pela pacificação do conflito que surgiu da retirada do bem da posse da vítima. A Justiça Restaurativa é feita através do diálogo, da exposição do ponto de vista e dos sentimentos dos participantes com relação ao fato e, sobretudo, na oportunidade destes em conjunto, proporem a melhor e possível solução para minimizar os danos causados, que às vezes, mais do que material é na alma. 3.5.3 Lei Maria da Penha (Lei no. 11.340/06) No trabalho monográfico de Laiana Brasílico Lima42, busca-se verificar a possibilidade da aplicação da Justiça Restaurativa na Lei Maria da Penha no. 11.340/06 com embasamento em seu artigo 31: Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais 42 LIMA, Laiana Brasilino - Monografia: A aplicação da Justiça Restaurativa na Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06, 2008, p. 57) 31 aprofundada, o juiz poderá determinar a manifestação de profissional especializado, mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar. Segundo Laiana, ao prever a indicação de atendimento multidisciplinar, a Lei Maria da Penha, também abre espaço para adoção de práticas restaurativas nos conflitos entre casais, mesmo que explicitamente não se fale desse novo paradigma de justiça. 3.5.4 Portaria Conjunta no. 15/2004 Em se tratando 2004, o Presidente, o Vice-Presidente e o Corregedor do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios elaboraram um ato administrativo que criou uma comissão para estudar a adaptabilidade da Justiça Restaurativa à justiça do Distrito Federal e desenvolvimento de ações para implantação do projeto no Juizado Especial do Núcleo Bandeirantes, que corresponde a um dos 3 projetos-piloto. Esse ato administrativo foi a Portaria Conjunta no. 15 de 21/04/2004, um dos raros dispositivos na nossa legislação que trata diretamente do paradigma da Justiça Restaurativa. 3.5.5 Projeto de Lei no. 7.006/2006 O Deputado Geraldo Thadeu é autor do projeto que propõe alterações no Código Penal, no Decreto-Lei 3689/41 e na Lei dos Juizados Especiais no. 9099/95 para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de Justiça Criminal de forma complementar, nos casos de crimes e contravenções penais. O projeto explica em seu artigo 9º. que os procedimentos restaurativos deverão observar os princípio da voluntariedade, da dignidade da pessoa humana, da imparcialidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da cooperação, da informalidade, da confidencialidade, da interdisciplinariedade, da responsabilidade, do mútuo respeito e da boa-fé. Se aprovado o projeto de lei proporcionará as seguintes mudanças: Alterações no Código Penal: Art. 11 - É acrescentado ao artigo 107, do Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, o inciso X, com a seguinte redação: X – pelo cumprimento efetivo de acordo restaurativo. Art. 12 – É acrescentado ao artigo 117, do Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, o inciso VII, com a seguinte redação: VII – pela homologação do acordo restaurativo até o seu efetivo cumprimento. Alterações do Decreto-lei n. 3689/41: Art. 13 - É acrescentado ao artigo 10, do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, o parágrafo quarto, com a seguinte redação: § 4º - A autoridade policial poderá sugerir, no relatório do inquérito, o encaminhamento das partes ao procedimento restaurativo. Art. 14 - São acrescentados ao artigo 24, do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, os parágrafos terceiro e quarto, com a seguinte redação: 32 § 3º - Poderá o juiz, com a anuência do Ministério Público, encaminhar os autos de inquérito policial a núcleos de justiça restaurativa, quando vitima e infrator manifestarem, voluntariamente, a intenção de se submeterem ao procedimento restaurativo. § 4º – Poderá o Ministério Público deixar de propor ação penal enquanto estiver em curso procedimento restaurativo. Art. 15 - Fica introduzido o artigo 93 A no Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, com a seguinte redação: Art. 93 A - O curso da ação penal poderá ser também suspenso quando recomendável o uso de práticas restaurativas. Art. 16 - Fica introduzido o Capítulo VIII, com os artigos 556, 557, 558, 559, 560, 561 e 562, no Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, com a seguinte redação: CAPÍTULO VIII DOPROCESSO RESTAURATIVO Art. 556 - Nos casos em que a personalidade e os antecedentes do agente, bem como as circunstâncias e conseqüências do crime ou da contravenção penal, recomendarem o uso de práticas restaurativas, poderá o juiz, com a anuência do Ministério Público, encaminhar os autos a núcleos de justiça restaurativa, para propiciar às partes a faculdade de optarem, voluntariamente, pelo procedimento restaurativo. Art. 557 – Os núcleos de justiça restaurativa serão integrados por facilitadores, incumbindo-Ihes avaliar os casos, informar as partes de forma clara e precisa sobre o procedimento e utilizar as técnicas de mediação que forem necessárias para a resolução do conflito. Art. 558 - O procedimento restaurativo consiste no encontro entre a vítima e o autor do fato e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados, que participarão coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime ou contravenção, com auxílio de facilitadores. Art. 559 - Havendo acordo e deliberação sobre um plano restaurativo, incumbe aos facilitadores, juntamente com os participantes, reduzi-lo a termo, fazendo dele constar as responsabilidades assumidas e os programas restaurativos, tais como reparação, restituição e prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes, especialmente a reintegração da vítima e do autor do fato. Art. 560 – Enquanto não for homologado pelo juiz o acordo restaurativo, as partes poderão desistir do processo restaurativo. Em caso de desistência ou descumprimento do acordo, o juiz julgará insubsistente o procedimento restaurativo e o acordo dele resultante, retornando o processo ao seu curso original, na forma da lei processual. Art. 561 - O facilitador poderá determinar a imediata suspensão do procedimento restaurativo quando verificada a impossibilidade de prosseguimento. Art. 562 -O acordo restaurativo deverá necessariamente servir de base para a decisão judicial final. Parágrafo Único – Poderá o Juiz deixar de homologar acordo restaurativo firmado sem a observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ou que deixe de atender às necessidades individuais ou coletivas dos envolvidos. Art. 17 - Fica alterado o artigo 62 , da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, que passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 62 - O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando-se, sempre que possível, a conciliação, a transação e o uso de práticas restaurativas. Alterações na Lei 9099/95: Art. 18 – É acrescentado o parágrafo segundo ao artigo 69, da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, com a seguinte redação: 33 § 2º – A autoridade policial poderá sugerir, no termo circunstanciado, o encaminhamento dos autos para procedimento restaurativo. Art. 19 – É acrescentado o parágrafo sétimo ao artigo 76, da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, com o seguinte teor: § 7º – Em qualquer fase do procedimento de que trata esta Lei o Ministério Público poderá oficiar pelo encaminhamento das partes ao núcleo de justiça restaurativa. 3.5.6 Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8.069/1990) Segundo entendimento de Brancher citado por Scuro43, “o Estatuto da Criança e do Adolescente ... contém dispositivos que tornam perfeitamente compatível o ordenamento jurídico brasileiro, na área da Justiça Penal Juvenil, com a recepção do modelo da Justiça Restaurativa.” De forma mais explicita, a aplicação das práticas restaurativas pode ser perfeitamente possível utilizando-se o que preceitua os artigos 126, 127, 181 e 186 que tratam do instituto da remissão, mecanismo de exclusão, suspensão ou extinção do processo referente à aplicação de medidas socioeducativas a adolescentes. 3.5.7 Projeto de Lei no. 1.627/2007 Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei no. 1.627 de 2007, de autoria da Deputada Rita Camata, que dispõe sobre os sistemas de atendimento socioeducativo, regulamenta a execução das medidas destinadas ao adolescente, em razão de ato infracional. É previsto em seu artigo 35, parágrafo II e III que a execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelo principio da excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meio de autocomposição de conflitos e ainda ostenta a prioridade às práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível atendam às necessidades das vítimas. Art. 35 A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto; II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos; III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível atendam às necessidades das vítimas; IV - proporcionalidade em relação à ofensa cometida; V - brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente; VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente; 43 BRANCHER, Leoberto Brancher - Justiça, Responsabilidade e coesão social – Reflexões sobre a implementação da Justiça Restaurativa, 2009, Disponível em http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1249, Acesso em 12/10/2009. 34 VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida; VIII - não-discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e IX - Fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo. No Relatório do referido Projeto de Lei, a Deputada convoca a participação e interação dos diversos atores sociais afetados direta ou indiretamente pelo ato infracional, uma vez que é o que o artigo 35 proposto para nova lei impõe uma maior responsabilização no tratamento ao adolescente infrator. 35 4 AS ETAPAS INFRATORES HISTÓRICAS DO TRATAMENTO DOS ADOLESCENTES Segundo Emilio García Méndez44, a responsabilidade penal dos menores de idade transitou em três grandes etapas. A primeira, até 1919, tem o caráter penal indiferenciado, pois era aplicado aos menores quase o mesmo tratamento que ao adulto. Entre 7 a 18 anos, respondia-se a uma pena penal atribuída aos adultos, reduzida em um terço. A segunda etapa é a de caráter tutelar, originou-se nos Estados Unidos no final do século XIX, com o Movimento dos Reformadores, como resposta à indignação da situação carcerária da época e ante o alojamento em conjunto de adultos e menores de idade. Os países da Europa foram influenciados pela experiência americana e até 1920, já haviam criado legislação especializada aos menores infratores. Logo em seguida, a especialização do direito e a administração da justiça aplicada aos menores chegam à América Latina. La separación de adultos y menores fue la bandera victoriosa de los Reformadores norteamericanos, en menor medida de sus seguidores europeos y hasta hace muy poco, mucho más una expresión de deseos de sus emuladores latinoamericanos. En este último caso -donde todavia hoy la colocación de menores de edad en las cárceles de adultos persiste como un problema no poco importante en muchos países de la región- sólo el desentenderse de las consecuencias reales de las decisiones de la administración de justicia, así como el predominio de los eufemismos, permitieron “resolver” esta situación manteniendo “limpia” la conciencia. (MÉNDEZ, 2006, p. 10) A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em 1989, foi caracterizada pela separação, participação e responsabilidade. A separação tem a ver com a distinção do plano normativo dos problemas de natureza social dos conflitos com a lei penal. O conceito de participação trazido pela Convenção, expresso em seu artigo 12, garante à criança, considerando sua idade e maturidade, a participação em processo judicial ou administrativo: 1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança. 2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional. 44 DE PAULA, Paulo Afonso Garrido. “Ato Infracional e Natureza do Sistema de Responsabilização” In. Justiça, Adolescente e Ato Infracional: Educação e Responsabilização. São Paulo: ILANUD. 2006. 590 p. 36 Emilio diz que pelo caráter progressivo do conceito de participação é exigível o desenvolvimento de um conceito de responsabilidade também: ... el concepto de responsabilidad, que a partir de determinado momento de madurez se convierte no sólo en responsabilidad social sino además y progresivamente en una responsabilidad de tipo específicamente penal, tal como lo establecen los arts. 37 y 40 de la CIDN. (Méndez, 2006, p.10) A etapa atual é a da responsabilidade penal dos adolescentes, que na América Latina, foi inaugurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente brasileiro, que inova, pelo menos na letra da lei, com a idéia desse conceito de responsabilidade penal e rompe com os modelos passados, o tutelar e o indiferenciado. ...el ECA contutuye una respusta adecuada, eficiente y concordante com los más altos stándares internacionales de respeto a los derechos humanos. El ECA satisface ele doble legítimo requisito de asegurar simultáneamente la seguridade coletiva de la sociedade com El respeto riguroso de las garantias de los indivíduos sim distinción de edad. La necesidade de leys reguladoras de las medidas sócioeducativas, el área más obscura de la administración de la justicia juvenil, no se justifica ni legitima por imperfecciones técnicas del ECA y si em cambio y sobre todo, para contrarrestar la sobrevivência de una cultura de la “protección” subjetivista y discrecional. El debate, ojalá com todo el mundo del derecho y no solo com los especialistas, continua abierto. (Méndez, 2006, p. 22 e 23). Méndez diz que se considerando as legislações passadas (Código de Menores de 1927 e de 1979) o Estatuto da Criança e do Adolescente traz inovações e adequações principalmente por enfatizar que estes são portadores de direitos e não mais só objetos da ação estatal contra as mazelas da pobreza e da insegurança social, o que é imprescindível para que os especialistas brasileiros no assunto possam continuar nessa discussão que arregimenta todo o mundo, de maneira mais tranqüila, pois pelo menos nossa legislação já apresenta um avanço na defesa e proteção infanto-juvenil, mais condizente com a realidade. 4.1 EVOLUÇÃO DO DIREITO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE NO BRASIL No Brasil imperial, a visão da sociedade colonial e escravagista era que o trabalho era destinado àqueles que não tinham valor na escala social, ou seja, os pobres negros e índios. Contudo, apesar de bastante árdua, a desconstrução do desvalor do trabalho, a desmistificação de que se tratava de algo ruim e pejorativo, teve que rapidamente acontecer, para se adaptar ao capitalismo que chegava. O advento do capitalismo e a necessidade da manutenção constante de uma mão-de-obra subordinada, interferiu nas concepções e valores de toda a sociedade. O trabalho passou a ser pregado pelo mundo, como algo positivo e enobrecedor e em contrapartida a vadiagem e ociosidade, principalmente dos jovens, passam a ser vista como uma ilegalidade. 37 A partir do século XIX a questão da violência juvenil começa a preocupar todas as nações e o Brasil, uma vez que o desenvolvimento das indústrias e a urbanização convocam todos ao trabalho, inclusive as donas-de-casa, que são obrigadas a deixar seus filhos em casa, o que para os estudiosos concorreu para a degradação dos valores de crianças e adolescentes e consequentemente sua iniciada pela criminalidade . No Brasil, com relação ao tratamento destinado aos “menores infratores”, houveram dois momentos dominados por doutrinas distintas, primeiro a Doutrina Penal do Menor e depois a Doutrina da Situação Irregular. A Doutrina Penal do Menor destinava aos “menores” um tratamento altamente influenciado pelo direito penal, é tanto que os códigos penais de 1830 e 1890 previam as medidas especiais para os infratores que não houvessem alcançado a maioridade. Tal doutrina influenciou a legislação e o tratamento dos infratores infanto-juvenil até 1979. Segundo exposto por Érika Piedade45, com o advento da Republica, nasce uma preocupação para com o “reordenamento político-social e com a infância”. Os especialistas da época pregavam a necessidade da criação de uma legislação específica para crianças e adolescentes. O início do século XX no Brasil foi marcado pelo surgimento de instituições estatais com intuito de abrigar aqueles menores carentes que viviam nas ruas e internar em reformatórios os que estavam em conflito com a lei. E em 1924 foi instalado no Rio de Janeiro o primeiro Juizado de Menores, o primeiro também na América Latina. Nessa época a criminalidade infanto-juvenil já demonstrava aumento nas estatísticas e colocava os “menores pivetes” como responsáveis por parte da insegurança social. A ciência já pregava a humanização da Justiça e medidas para se compreender a criminalidade infanto-juvenil. Ademais, considerava que o tratamento dos “menores” não deveria ser competência da justiça criminal. As medidas propugnadas nos Congressos do início do século defendiam em essência que o tratamento da criminalidade juvenil deveria dar-se à margem da justiça criminal, abrindo caminho para as políticas não-criminais intervencionistas (Rizzini, 1987: 82). Com isso a infância passa a ser tratada de duas maneiras: em defesa do menor abandonado e a defesa da sociedade contra o menor delinqüente. O Estado passa a intervir 45 SANTOS, E.P. .da S. (Des)construindo a ‘menoridade’: uma análise crítica sobre o papel da psicologia da Psicologia na produção da categoria “menor”. IN: GONÇALVES, H. S.; BRANDÃO, E. P. Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2004: p. 205- 248. 38 nos núcleos familiares de classes sociais baixas invocando mais ainda o valor do trabalho. Com a formação da mão-de-obra juvenil, intencionava-se resolver a demanda de trabalhadores da economia e solucionar o problema da ociosidade e vagabundagem. O valor do trabalho era um dos mais importantes deflagradores da corrente de ações voltadas para os menores e suas famílias, com o intuito de adestrá-los e transformálos em trabalhadores produtivos. Os muitos ex-escravos e seus descendentes que resistiam ao ingresso nas linhas de produção industriais e fabris, e preferiam viver às custas do trabalho temporário e informal ou da prática de pequenos delitos (Santos, 2000: 219). O alojamento dos “menores” em abrigos ou reformatórios era visto como solução à problemática da delinqüência que ameaçava a ordem pública e como solução para o abandono e a pobreza dos que estavam soltos nas ruas, sem qualquer figura familiar “... o recolhimento era feito nas Casas de Detenção e de Correção, misturando menores, loucos e criminosos; era de interesse público e social manter a exclusão, mas era necessário "humanizá-la" e higienizá-la.” 4.1.1 O Código de Menores de 1927 O primeiro Código de Menores Brasileiro data de 1927, conhecido como o Código Mello Matos, alicerçado nos conceitos de menor abandonado e menor delinquente. Sua destinação era apenas para aquelas crianças e adolescentes que estavam em situação irregular. Artigo 1º. - O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção contidas neste Codigo." (grafia original) Código de Menores - Decreto N. 17.943 A – de 12 de outubro de 1927 De 1930 a 1945, tendo como pano de fundo o Estado Novo de Getúlio Vargas, foi o período de políticas sociais paternalistas e assistencialistas. O ano de 1941, marca a criação do Serviço de Assistência ao Menor – SAM, órgão do Ministério da Justiça, que cuidava da internação para fins de correção e educação, construindo-se a classe do “menor”, caracterizada pela classe daqueles de infância e adolescência vividos na pobreza e considerados perigosos, distintos da infância e adolescência dos que tinham melhor condição de vida. Em poucos anos de funcionamento, o SAM era considerado pela opinião pública como repressivo e desumanizante. Na mesma época foram criadas a Legião Brasileira de Assistência - LBA, em prol da infância e da adolescência, a Casa do Pequeno Jornaleiro, Casa do Pequeno Lavrador, Casa do Pequeno Trabalhador e Casa das Meninas, todos com trabalhos voltados ao amparo daqueles em conflito com a lei ou que viviam na pobreza e orfandade. Tanto o Código, quanto as práticas dessa rede de assistência foram criticadas, por causa dos parâmetros de exclusão e repressão que se impunham aos menores em situação de risco. 39 Devido às criticas e com o passar dos anos, altera-se o tratamento dado a esses jovens, aplicando-se a internação em último caso, tentando-se reinvestir suas famílias de autoridade, primando-se por sua permanência no seio familiar. O Código dos Menores de 1927 também previa que o menor de 18 anos não poderia ser recolhido à prisão comum. Os menores de 14 anos fossem abandonados ou infratores eram recolhidos em casa de educação ou preservação, ou ficaria sob a guarda de pessoa idônea até os 21 anos ou ficariam com os pais ou tutor dependendo de sua periculosidade. 4.1.2 O Código Penal Brasileiro Com o advento do Código Penal em 1940, a inimputabilidade foi fixada até a idade 18 anos, o adolescente não poderia ser submetido a processo criminal até essa idade e uma legislação especial preveria o procedimento para tratar do menor. O legislador, já levava em consideração que estava tratando com um indivíduo com uma personalidade em desenvolvimento. Com o Golpe Militar, em nome da “segurança”, um conjunto de medidas contra condutas anti-sociais. Por exemplo, os grupos de menores circulando pelas ruas ensejavam medidas tais como seu recolhimento à Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM, criada em 1964, cuja missão, pelo menos na teoria, era substituir a repressão e a internação por educação. No mesmo período, foram construídas as FEBEMs, ramificações da FUNABEM, que eram grandes prédios localizados em diversos estados e municípios, que serviam à execução das medidas privativas de liberdade. Considerava-se que as famílias dessas crianças e adolescentes infratores eram incapazes de atender suas necessidades e que internados nas FEBEMs, eles estariam mais protegidos. O Decreto-Lei 1004/69, considerava a responsabilidade relativa dos maiores de 16 anos, que respondiam por penas reservadas aos imputáveis, mas com redução de 1/3 a metade, se considerada a capacidade do adolescente em compreender o ato ilícito. Porém, devido às inúmeras críticas, a Lei 6.016 de 1973, modificou o artigo do Código de 1969 e alterou a idade dos inimputáveis novamente para o limite de 18 anos. 4.1.3 Código de Menores de 1979 Em 1979 entrou em vigor o segundo Código de Menores do Brasil conhecido também como Código Alyrio Cavalliere, e com ele inaugurou-se também a Doutrina da Situação Irregular, abrangendo a situação dos abandonados e da delinqüência, tal como uma revisão do antigo Código, utilizando-se da mesma arbitrariedade, assistencialismo e repressão. O Código 40 de 1979 não se ocupou dos direitos das crianças e dos adolescentes e os ainda consideravam como objetos de controles sociais. Houve muita censura ao Código, desde sua promulgação e principalmente em meados da década de 80 com a abertura democrática. Nessa época não existia direito ao contraditório nos processos das crianças e adolescentes, ferindo-se a ampla defesa. Os movimentos sociais requeriam a reforma constitucional e aliançaram-se formando o Fórum dos Direitos das Crianças, onde as opiniões se dividiam entre os minoristas e o estatutistas. Os primeiros defendiam a manutenção do Código e da Doutrina da Situação Irregular, já o segundo grupo lutava por amplos direitos às crianças e aos adolescentes. Dentre as características da Doutrina da Situação Irregular vivenciada no Brasil, João Batista Costa Saraiva46 elenca as principais como: 1. As crianças e os adolescentes são considerados “incapazes”, objetos de proteção, da tutela do Estado e não sujeitos de direitos; 2. Estabelece-se uma nítida distinção ente crianças e os adolescentes das classes ricas e os que se encontram em situação considerada “irregular”, “em perigo moral ou material”; 3. Aparece a idéia de proteção da lei aos menores, vistos como “incapazes”, sendo que no mais das vezes esta proteção viola direitos; 4. O menor é considerado incapaz, por isso sua opinião é irrelevante; 5. O juiz de menores deve ocupar-se não só das questões jurisdicionais, mas também de questões relacionadas à falta de políticas públicas. Há uma centralização do atendimento; 6. Não se distinguem entre infratores e pessoas necessitadas de proteção, surgindo a categoria de “menor abandonado e delinqüente juvenil”. 7. As crianças e os adolescentes são privados de sua liberdade no sistema da FEBEM, por tempo indeterminado, sem nenhuma garantia processual . A Situação Irregular propunha um direito sobre crianças e adolescentes, como estes sendo objeto de proteção e não como sujeitos de direito. Por isso, durante sua influência, por exemplo, não cabia cobrar do Estado políticas sociais como a construção de escolas, pois não havia previsão legal no Código de Menor de 1979. 4.1.4 A Constituição Federal de 1988 A Carta Magna promulgada em 1988, após as manifestações em defesa da criança e do adolescente, inseriu no seu texto, no seu artigo 227, a consideração da criança e do adolescente como cidadãos e sujeitos de direitos sociais, políticos e jurídicos e rompeu de vez com a Doutrina da Situação Irregular, inaugurando a Doutrina da Proteção Integral pautada além da nova condição de sujeitos de direito, o reconhecimento da infância como fase primordial ao desenvolvimento e a prioridade absoluta às crianças e adolescentes. 46 41 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos: I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. § 2º - A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. § 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII; II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola; IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins. § 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. § 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros. § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. (Constituição Federal, 1988). § 7º - No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto no art. 204. Munir Cury47 diz que a Doutrina da Proteção Integral, é um conjunto de direitos que obriga a todos na sociedade de por um lado não desrespeitar os direitos previstos na Constituição e no ECA e mais ainda, agir em prol dessa parcela da população, que está em pleno desenvolvimento e necessita de que os adultos busquem fazer cada vez mais, algo positivo para eles. No artigo 228 da CF, tratou-se do limite etário da inimputabilidade do adolescente, permanecendo os mesmos parâmetros do Código anterior: “Art. 228. São penalmente 47 CURY, Munir. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Comentários Jurídicos e Sociais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. 42 inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.” (Constituição Federal. 1988). Segundo Gizella Werneck48, que com a promulgação da Constituição de 1988, foram lançadas as bases do Estatuto da Criança e do Adolescente que contou para sua redação com entidades da sociedade civil, como a Pastoral da Criança, grupos de juristas e técnicos de órgãos governamentais, como funcionários da FUNABEM. 4.1.5 O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8069/90) Em 1990, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8069/90), conforme Kayayan49, representante da UNICEF no Brasil, traz um novo modelo com enfoque na Doutrina da Proteção Integral, substituindo o modelo anterior da Situação Irregular. O novo enfoque é o defendido pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente desde 1989 e a legislação brasileira adequou-se a essa nova visão de promoção e em defesa aos direitos infanto-juvenil. Com relação ao Judiciário, Kayayan afirma que “hoje já podemos apontar juízes, promotores e advogados capazes de enfrentar o problema da delinquência juvenil com severidade e justiça sem, no entanto, abrir mão das garantias próprias do estado democrático de direito.” Isso porque, o ECA alterou sobremaneira as possibilidade de intervenção arbitrária do Estado sobre as crianças e adolescentes. Segundo Érika Piedade, uma das mudanças significativas trazidas pelo ECA foi a desconstrução da nomenclatura “menor infrator” destinada aos de classe social menos favorável e aquela do “adolescente infrator” que seria aquele jovem de classe social mais alta que cometeu um delito. Pois até então, acontecia uma criminalização dos jovens pobres e uma patologização dos comportamentos de delinqüência dos jovens ricos. O senso comum e a mídia perduram em fazer tais distinções, mas os teóricos, pelo menos na letra da lei, substituíram-nas pelas expressões “criança” e “adolescente” que são politicamente mais corretas. Érika Piedade, pontua como outros traços marcantes do ECA a conclamação de outros setores sociais e não só dos Juizados de Menores para se envolverem na problemática da inserção social das crianças e adolescentes, participantes como a família, a sociedade e o Estado. A criação de uma política de atendimento e a criação de um novo paradigma social ante ao cometimento dos atos infracionais, com base na Doutrina da Proteção Integral que 48 LORENZI, Graziela Werneck, Uma breve história dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil, 2007, Disponível em: http://www.promenino.org.br/Ferramentas/Conteudo/tabid/77/ConteudoId/70d9fa8f-1d6c-4d8dbb69-37d17278024b/Default.aspx, Acesso em: 15/10/2009. 49 KAYAYAN, Agop – O Brasil Pode – Disponível em: http://www.eca.org.br/eca.htm, Acesso em: 04/10/2009. 43 busca ressocializar através da educação e não da punição. Considerando a aplicação da medida de internação como excepcional e breve, respeitando a criança e o adolescente como um ser em desenvolvimento. O ECA apesar de concatenado com as legislações mais modernas não tem conseguido realizar no mundo real sua proposta original. Érika apud Bazílio argumenta que um dos motivos para isso, seria a fato de que o período da promulgação da Lei no. 8.069/90 foi marcado por uma exacerbada crítica aos movimentos dos direitos humanos e de uma crescente onda de insegurança manipulada pela mídia e parte da opinião pública, que consideram os movimentos que invocam a paz social e os direitos humanos como defensores da impunidade infanto-juvenil. Outra questão é que os fundos de apoio, citados no Estatuto, oriundos de doações ou de recursos vindos do orçamento dos entes da União estão vazios, pois houve alteração na política de financiamento público e do orçamento social, inclusive com relação à implementação das ações previstas no ECA, por conta da alterações no cenário político brasileiro com o neoliberalismo. Por último, questiona-se o “amadorismo no gerenciamento da coisa pública”, pois nem sempre o encarregado da gestão da política de atendimento às crianças e adolescentes, tem competência e conhecimento para tanto. Nosso Estatuto é formado de duas partes fundamentais, a chamada Parte Geral, concernente aos direitos das crianças e dos adolescentes e a segunda parte que dentre outros títulos tem um referente à política de atendimento que não tem saído do papel da lei, pois como se vê na fala dos autores no parágrafo acima, há um misto de interferência da mídia, com a falta de recursos públicos e por último, a incompetência no lidar, no bem administrar este mesmo recurso público. Dentre estes três apontamentos, cabe ressaltar o poder de persuasão da mídia e de determinados movimentos sociais e políticos, que incutem que a insegurança a respeito da delinqüência infantil advém da forma “impune” como o atual Estatuto trata dos infratores. Na verdade, a opinião pública não se imbuiu do sentimento de responsabilização quanto a essa situação tal qual convida a Constituição e o Estatuto a todos os cidadãos brasileiros. Para a sociedade em geral parece ser mais justo a aplicação de medidas mais severas aos adolescentes infratores, diga-se, sua segregação definitiva ou castigos intermináveis, em lugar de medidas de proteção ou socioeducativas, mesmo porque para a criação e sustentação de um sistema pedagógico para os autores de atos infracionais, prescinde medidas políticas para o alicerceamento de uma rede de apoio estruturada e que envolva a todos, porém parece não haver boa vontade para tanto. 44 Conforme Antonio Carlos Gomes da Costa em seu texto O Desafio da Implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, citado por Graziella Werneck, três são os passos para sua efetiva concretização: 1. Mudanças no panorama legal: os municípios e estados precisam se adaptar à nova realidade legal. Muitos deles ainda não contam, em suas leis municipais, com os conselhos e fundos para a infância. 2. Ordenamento e reordenamento institucional: colocar em prática as novas institucionalidades trazidas pelo ECA: conselhos dos direitos, conselhos tutelares, fundos, instituições que executam as medidas sócio-educativas e articulação das redes locais de proteção integral. 3. Melhoria nas formas de atenção direita: É preciso aqui “mudar a maneira de ver, entender e agir” dos profissionais que trabalham diretamente com as crianças e adolescentes”. Estes profissionais são historicamente marcados pelas práticas assistencialistas, corretivas e muitas vezes repressoras, presentes por longo tempo na historia das práticas sociais do Brasil. Dentre os três passos necessários, talvez o mais importante seja o terceiro que trata de uma mudança de ponto de vista por parte daqueles que trabalham diretamente com as crianças e adolescentes, uma vez que se não houver uma mudança de foco, as conquistas legislativas trazidas pelo ECA dificilmente virão para o campo da prática, o que significa uma estagnação e a mesmice de sempre. 45 5 ADOLESCÊNCIA E O ATO INFRACIONAL Primeiramente, a adolescência, segundo definição do dicionário Aurélio é a idade compreendida entre a puberdade e a idade adulta, sendo que a puberdade é o momento na vida de meninas e meninos em que as glândulas reprodutoras estão em pleno desenvolvimento o que causa alterações físicas, mas mais do que pilosidade, mudança de voz, a chegada da menstruação, a adolescência chega e traz consigo modificações psicológicas e sociais. Já o ato infracional, com base no artigo 103 do Estatuto da criança e do adolescente é toda conduta descrita como crime ou contravenção penal praticada por criança (até doze anos incompletos) ou adolescente (dos doze aos dezoito anos incompletos). O procedimento para a apuração do ato infracional cometido por um adolescente se inicia numa Delegacia, ante à autoridade policial e de preferência que seja em uma especializada no atendimento de crianças e adolescentes. Após encaminha-se o adolescente à presença do representante do Ministério Público e por fim à autoridade judiciária. Ademais, o processo terá tramite no Juizado da Infância e Juventude do local onde se ocorreram os fatos. Os atos infracionais que podem ser cometidos pelos adolescentes podem ser divididos em delitos praticados: contra a pessoa (homicídio, lesões corporais, ameaça, maus tratos, seqüestro, contra a honra e violação de domicílio); contra o patrimônio (furto, roubo, extorsão, receptação, dano e estelionato); contra os costumes (estupro e atentado violento ao pudor); contra a paz pública (bando ou quadrilha); contra a fé pública (falsificação de documento particular e falsificação ideológica); contra a Administração Pública (desacato e evasão por meio de violência contra a pessoa); Lei de Tóxicos (tráfico e/ou uso de entorpecentes); porte de armas; contravenções penais (porte de arma branca, vias de fato, direção perigosa) e Lei Ambiental (pesca com explosivo). Considera-se que os motivos que levam uma adolescente a entrar no mundo da criminalidade são diversos tais como a negligência familiar, social e omissão das políticas públicas. Muitas vezes, a violência juvenil representa um sintoma da desconsideração e o descumprimento aos direitos conferidos pelo Estatuto e pela Constituição Federal, que acaba por refletir nas escolhas erradas desses adolescentes. Outras vezes é pra chamar a atenção dos outros para seus próprios conflitos internos que o adolescente se envolve na criminalidade. Também, pelo fato de ser um ser em busca de sua identidade, nessa fase de buscas, o adolescente acaba muitas vezes, por confusões na maneira de agir. Pois, já está crescido para agir como uma criança, no entanto, jovem demasiadamente para ser chamado de adulto. É realmente uma fase de turbulências mil. 46 Para o Juiz Alexandre Morais da Rosa50, ao discorrer sobre os adolescentes expõe que nessa fase conflituosa da vida, a maneira como os estes se relacionam com seu entorno, depende muito da maneira como ele foi estruturado. “... a adolescência é o momento do reencontro sempre traumático com o real do sexo, do desligamento dos pais, do conflito de gerações...”. Sabe-se que nessa fase, o indivíduo pode passar por dificuldades como o baixo rendimento escolar, distúrbios de comportamento, drogas, ansiedade, conflitos familiares, até o cometimento de delitos, etc. Um ponto a ser considerado também, refere-se à inserção do adolescente na sociedade capitalista atual, onde impera a falta de limites para alcance de padrões de satisfação plena e felicidade eterna. Nesse contexto, muitos atos infracionais podem ser cometidos ante a pretensão de existir, de ser notado, de formar uma identidade nessa sociedade. Pode ser o sintoma de que ali, no ato, o sujeito procurar resistir ou se fazer ver. A questão se agrava, de fato, no Brasil, porque, à extragrande maioria, as condições mínimas de subsistência não existem e, o agir, muito mais tranqüilo para os adolescentes, é fomentado pelo laço social frágil, cada vez mais horizontalizado, no qual o Estado, que ainda exercia alguma função paterna, resta aniquilado pelo levante neoliberal. Para o enfrentamento do envolvimento dos adolescentes com a criminalidade, o juiz Alexandre diz que se deve acreditar em novas formas de engajamento ao laço social e deve-se “buscar entender este possível movimento agressivo como o sintoma de que algo não vai bem...”. Assim é que a (dita) agressividade não significa sempre a dita ‘delinqüência’, mas um momento da vida do sujeito. Sujeito este adolescente, protagonista de um momento de passagem, sem ritos sociais de apoio, lançado aos seus próprios mitos, na eterna tentação de existir, se constituir como sujeito, numa sociedade complexa. Kozen51, membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul, assevera que o fato dos adolescentes serem pessoas diferentes dos adultos e diferentes também entre si, então a “máxima do respeito à condição humana pelo respeito à diferença não se justifica mais, portanto, pela declaração de incapacidades, mas pelo reconhecimento de capacidades diferenciadas.” Assim, o adolescente tem que ser compreendido em sua alteridade52, pois se não estaremos negando sua condição de pessoa em desenvolvimento. 50 ROSA, Alexandre Morais da, Justiça Restaurativa e Ato Infracional: Práticas e Possibilidades, 2008, Disponível em: http://www.justica21.org.br/interno.php?ativo=BIBLIOTECA&sub_ativo= RESUMO&artigo=353, Acesso em 01/10/2009. 51 KONZEN, Armando Afonso, Justiça Restaurativa e Alteridade – Limites e frestas para os Porquês da Justiça Juvenil, Disponível em: http://www.justica21.org.br/interno.php?ativo=BIBLIOTECA&sub_ativo=RESUMO &artigo=351, Acesso em 01/10/2009. 52 Caráter ou qualidade do que é outro (Dicionário Aurélio). 47 O respeito a sua condição humana do adolescente infrator, também justifica a existência de um sistema de responsabilidade53, que por mais que seja diferente da responsabilidade penal do adulto, deve valorizar a capacidade do adolescente de responder por seus atos. “A premissa está em que o adolescente tem qualidades pessoais para compreender, assumir e atribuir sentidos. Possui determinação volitiva e capacidade de se comprometer, por exemplo, com a reparação ou com a mitigação do dano.” O juiz Alexandre critica a postura da Justiça Juvenil, alegando que o adolescente que ali chega é acolhido na condição de vítima e exclui-se sua responsabilidade. Diz ainda, que a Justiça ao não considerar o adolescente como sujeito de seu futuro e não lhe imputando responsabilidade pelo acontecido, acaba por aprovar o excesso cometido. Ou seja, para Alexandre a pura aplicação das medidas socioeducativas não incutem a esses adolescentes a realidade do mal causado por sua transgressão. Resta, pois, no limite do possível eticamente, contra o senso comum social, respeitar o sujeito e com ele, se houver demanda, construir um caminho, sempre impondo sua responsabilidade pelo ato e o relembrando, ou mesmo advertindo, de que existe algo de impossível, algo que se não pode gozar. Nem nós, nem eles. Afonso Konzen, também questiona, se a justiça juvenil poderia mudar suas práticas ante ao ato infracional, como por exemplo, com a utilização da resolução pacífica do conflito, mas responde em seguida, que para isso acontecer, torna-se necessário para que se desconstrua o entendimento que as medidas previstas ao adolescente infrator na verdade tem um cunho penal e não socioeducativas como se pretende. Critica ainda, que o jogo de palavras “ato infracional no lugar de crime, medida socioeducativa no lugar de pena, estabelecimento educacional em vez de estabelecimento penal, internação no lugar de reclusão”, não muda “o sentido de realidade para os destinatários”. Ou seja, para ele a Justiça Juvenil trata o adolescente infrator com a mesma retributividade com que trata um adulto e afirma que não há teoria pedagógica que se sustente na prática da restrição de liberdade. 53 Konzen diz que a palavra responsabilidade há de ser entendida como existência de condições subjetivas para responder. 48 6 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E O ADOLESCENTE INFRATOR Considerando o que já pontuamos anteriormente, quanto ao que é a Justiça Restaurativa e também a respeito do adolescente infrator, podemos dizer que os objetivos restaurativos se enquadram às necessidades para tentativa de ressocialização do segundo, sem que com isso se desobedeça ou venha a ferir ao disposto no Estatuto. Ao contrário, o sentido pedagógico que permeia os alicerces do ECA e o caráter de responsabilização que este tenta imbuir não só nesses adolescentes, mas também na sociedade e mais especificamente nas comunidades próximas andam em paralelo com a proposta do novo paradigma. 6.1 QUANDO E COMO APLICAR AOS CONFLITOS COM ADOLESCENTES O adolescente infrator tem seu ingresso no Judiciário de duas maneiras, através do flagrante delito ou por ordem expressa do Juiz da Vara da Infância e Juventude. Quem em primeiro lugar escuta este adolescente é o representante do Ministério Público, o promotor da infância e juventude que atua como um curador público em defesa dos interesses e direitos desse jovem. Pode em seguida, o adolescente ser conduzido diretamente ao magistrado para audiência ou anteriormente a esta, participar de entrevista com uma equipe técnica composta por psicólogos, assistente social e Comissário da Infância e Juventude. Da sentença do magistrado advêm as medidas socioeducativas previstas no artigo 112 do ECA (advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade, internação, além de qualquer medida de proteção previstas no artigo 101, como o encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade, orientação, apoio e acompanhamento temporários,matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental, inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente, requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial, inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos, abrigo em entidade, colocação em família substituta), evitando-se o máximo possível, impor a aplicação de medidas restritivas de liberdade, pois as medidas buscam um fim pedagógico e é fato comprovado que a colocação do adolescente nessas instituições não contribui em aprendizado algum. O processo restaurativo pode ser aplicado em qualquer momento a partir do ingresso desse adolescente ao Judiciário. Ou seja, pode ser antes que o processo comum se formalize, por decisão do promotor e do magistrado, mediante a verificação de que as práticas 49 restaurativas possam se adequar ao caso e com a anuência das partes. Pode ocorrer também, quando das audiências, se houver interesse e disponibilidade das partes. Contudo, cabe ressaltar que os círculos serão realizados sem a participação do juiz ou promotor, somente com as partes interessadas e mediador. A outra fase, em que pode se desenvolver o processo restaurativo é no pós sentença, durante o período de cumprimento da medida socioeducativa. Enfim, as possibilidades de quando se aplicar a Justiça Restaurativa no âmbito juvenil pode ser em qualquer momento, dependendo apenas da sensibilidade do magistrado e do promotor em entender ser plausível sua aplicação, ante uma predisposição dos envolvidos (vítima, adolescente infrator). Já tem ocorrido também o que se chama de encontros restaurativos, sem a participação direta da vítima, mas com cooperação das pessoas mais próximas a ela e que também sofreram as consequências do ato infracional, ou seja, as vítimas indiretas. Em Porto Alegre, tais encontros foram desenvolvidos, no intuito de ajustar o atendimento aos adolescentes que estejam cumprindo pena privativa de liberdade na FASE (antiga FEBEM) ou outro tipo de medida na Fundação de Assistência Social e Cidadania. Podendo desses encontros, dependendo do resultado e com anuência do magistrado, ser realizados os círculos restaurativos propriamente ditos. Uma ocasião diversa do âmbito Judiciário também há de ser citada: a implementação de práticas restaurativas nas Delegacias da Criança e do Adolescente. Apesar de ainda não ter sido testada no Brasil, mas que já faz parte da realidade de outros países, a utilização dos círculos restaurativos pode ser desenvolvida no ambiente policial, evitando-se novas demandas para a Justiça e eliminando muitas vezes, a escalada da violência, caracterizada por pequenos conflitos que são trazidos à autoridade policial, mas que não sendo trabalhados desencadeiam um dano maior ao final. Como por exemplo, os desentendimentos constantes de vizinhos, que levados à Delegacia não são tratados efetivamente e vêem a gerar um homicídio após novos confrontos. No projeto-piloto de Porto Alegre, apresentado anteriormente, os trabalhos da Justiça Restaurativa acontecem justamente com os adolescentes infratores e o momento para encaminhamento às praticas restaurativas pode ser durante o processo de conhecimento, na audiência inicial de apresentação, na audiência de instrução e também no processo de execução. Segundo o Juiz Leoberto, “Porto Alegre tem quatro juízes da infância, cada qual com sua percepção, disponibilidade e motivações próprias quanto à validade e utilização das 50 práticas restaurativas. A maior parte dos encaminhamentos tem ocorrido nos processos de conhecimento, provindos da audiência inicial de apresentação.” Proposta durante a audiência inicial, o magistrado suspende-a e faz o encaminhamento do jovem aos círculos restaurativos e conforme o juiz Leoberto Brancher o Acordo dali surgido poderá subsidiar ou ajustar a aplicação da medida para “sob a competência do juízo do processo de execução, serem melhor especificados os compromissos a serem abrangidos no cumprimento da medida”. Em sendo, na audiência de instrução que acontece semanas após o delito, o magistrado terá um subsídio maior, que é o fato de seu contato com a vítima não ser logo em seguida à violência, dando um tempo maior para a vítima estar emocionalmente menos abalada, o que será um momento mais oportuno para seu convite ao processo restaurativo. Nos processos de execução também acontece o encaminhamento de adolescentes para atendimento nesses círculos. A maioria é de adolescentes cumprindo medidas privativas de liberdade e a escolha dependerá da identificação de características que propiciem o procedimento, no momento da audiência de revisão medida, de seis em seis meses. Também, no 3º. Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, alguns poucos casos são encaminhados diretamente pelo representante do MP, o que poderá implicar ao final, na exclusão do processo, através do instituto da remissão. 6.1.2 A utilização do instituto da remissão e o processo restaurativo O instituto da remissão é para os estudiosos da Justiça Restaurativa um meio para a aplicação de suas práticas, entretanto tem que haver a participação do adolescente, seus familiares e da vítima, bem como de outros membros da comunidade, todos em busca de uma reparação do dano à vítima e responsabilização do adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê duas modalidades de utilização do instituto da remissão, conforme preceitua em seus artigos 126 e 127. Uma modalidade é atribuída ao Ministério Público e a outra é competência do magistrado. Trazendo um sentido mais amplo do significado para o instituto da remissão, o Juiz da Infância e Juventude João Batista Costa Saraiva54, diz que no texto das Regras Mínimas ou Regras de Beijing que influenciaram nosso Estatuto, foi traduzido para o português da versão em espanhol do documento. A versão em espanhol fala em instituto da “remisión”, porém o 54 SARAIVA, João Batista Costa – Reflexões sobre o Instituto da Remissão e o Estatuto da Criança e do Adolescente , Disponível em: http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/DOUTRINA/REFLEX%D5ES+SOBRE+O+INSTITUTO+DE+REMISS%C3 O+E+O+ESTATUTO+DA+CRIAN%C7A+E+DO+ADOLESCENTE.HTM, Acesso em 24/09/2009. 51 texto em inglês do documento, fala em instituto da “diversion” que em português seria traduzido como “encaminhamento diferente do original”, um significado além do simples perdão. Apesar das Regras de Beijing na versão portuguesa ter o sentido de perdão, não ficou prejudicada a possibilidade da aplicação das práticas restaurativas em conjunto com instituto da remissão, que no fim das contas não deixa de ser um encaminhamento diferente para o tratamento do conflito. O que se pretende verificar é como o instituto da remissão em sua compatibilidade com as práticas restaurativas vem sendo aplicado, seja na modalidade concedida pelo Ministério Público, através de seu promotor ou através da decisão de um magistrado e neste último caso com a cominação de uma medida, se necessário. 6.1.2.1 Remissões concedidas pelo Ministério Público O parquet pode abdicar de seu direito-dever de fazer representação do adolescente infrator e conceder-lhe a remissão, provocando com isso a exclusão do procedimento. Já no caso da remissão concedida pelo magistrado, acontece a suspensão ou extinção do procedimento que já teve inicio, tendo este a discricionariedade de aplicar conjuntamente uma medida socioeducativa ao infrator, com exceção da internação e da medida de semiliberdade. Controvérsias a parte, se seria o Ministério Público também competente para aplicar a remissão juntamente com a medida socioeducativa, a jurisprudência majoritária entende que este é defeso e que conforme a Súmula no. 108 do Supremo Tribunal de Justiça: “A aplicação de medidas sócio-educativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é da competência exclusiva do juiz.” O instituto da remissão do ECA está relacionado ao item 11 das Regras Mínimas de Beijing, adotado pelas Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores, disposto na Resolução no. 40/33 de 29 de novembro de 1985: 11. Recurso a meios extrajudiciais 11.1. Sempre que possível tentar-se-á tratar o caso dos delinquentes juvenis evitando o recurso a um processo judicial perante a autoridade competente referida na regra 14.1. infra. 11.2. A polícia, o Ministério Público e os outros organismos que se ocupem de casos de delinquência juvenil poderão lidar com eles discricionariamente, evitando o recurso ao formalismo processual penal estabelecido, antes fazendo-se em critérios fixados para esse efeito nos seus sistemas jurídicos e nas presentes regras. Contudo, a remissão aplicada pelo Ministério público em substituição a um processo judicial requer tratamento alternativo, de acordo com o item 11.4 das Regras de Beijing é recomendável serviços comunitários e outros tipos também, em especial, os que prevêem a restituição de bens às vítimas ou que permitem evitar que os adolescentes entrem no futuro, em conflito com a lei, através da vigilância e orientação temporárias. São as circunstâncias 52 especiais de cada caso que justificam o recurso a meios extrajudiciais, mesmo quando foram cometidas infrações mais graves. Em ocorrendo a remissão excludente do procedimento judicial, concedida pelo Ministério Público, podemos considerar que a utilização do procedimento restaurativo seja totalmente sustentável em sua substituição ao processo que poderia se formar, pois tratará do caso no âmbito da comunidade afetada, com fins de reparar o dano, de forma optativa ao adolescente e seus familiares e responsáveis, sujeitando a remessa do caso a um programa alternativo, enfim, atendendo-se às recomendações da Regras de Beijing no item 11. 6.1.2.1 Remissões concedidas pelo Juiz da Infância e Juventude Segundo o Juiz Leoberto Brancher de 70 a 80% dos atendimentos das infrações juvenis são de atos infracionais considerados leves, como furtos, posse de droga, lesão corporal e danos ou médios como porte de arma e roubo sem violência, o que possibilita o magistrado, dependendo da situação, propor o processo restaurativo e a remissão que suspenderá ou excluirá o processo no Judiciário. A concessão da remissão pelo juiz, atrelada a participação das partes interessadas num processo restaurativo, ocorre em qualquer momento durante o processo comum, diferente da concessão da remissão pelo Ministério Público que tem que ser proposta antes da formação do processo judicial. Com o envolvimento espontâneo das partes nas práticas restaurativas, tem-se que o Acordo produzido nos círculos será levado à homologação judicial, quando o magistrado terá a prerrogativa de recusar-se ou retificar a homologação deste. Nesse momento também, pode o juiz achando conveniente incluir à remissão e ao Acordo restaurativo, o cumprimento de outras medidas socioeducativas ou protetivas exceto as privativas de liberdade. A homologação do Acordo dá-lhe força de sentença formando o título executório para aparelhar a execução das medidas que tenham sido incluídas para cumprimento. Em se tratando da remissão suspensiva, caso o Acordo não venha ser cumprido pelo adolescente, o processo judicial pode ser retomado, propondo-se a troca da medida mais adequada para quem sabe, até a privativa de liberdade. Se o descumprimento partir dos pais desse adolescente, pode haver a aplicação de multas tal qual previsto no ECA. 6.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA UM MODELO HUMANIZADO E MULTIDISCIPLINAR Antes de tudo, a Justiça Restaurativa humaniza a resolução do conflito criminal e seu maior ganho está justamente no fato de que a vítima e ofensor podem aproveitar o momento e buscar se enxergarem como iguais, como homens e mulheres com suas dificuldades, conflitos 53 e também erros, mas que podem apesar disso alcançar uma superação e a cura, que irremediavelmente traz o respeito mútuo e a solidariezação. É fato também, que a vítima participante desse tipo de processo, pode bem aproveitálo e ser beneficiada com os encontros e com o cumprimento do Acordo, senão vejamos o depoimento de um participante do processo restaurativo. “Eu saí de lá, de certo ponto, emocionado, me tocou muito, por experiência própria. A gente vê uma pessoa que comete um ato delinqüente perante a lei, encarado como vagabundo, que não presta, não sei o quê, uma série de exemplos. E, a partir daquele momento, eu vi uma outra pessoa, um jovem que talvez passava por uma dificuldade, que cometeu, mas que estava arrependido e que teve a humildade de escutar, de falar, de expor a sua situação, que é muito constrangedora. Eu senti o Círculo Restaurativo (TODESCHINI e outros apud OLIVEIRA, 2007) 55. A humildade por parte do adolescente infrator, primeiramente em participar dos círculos, uma vez que lhe é explicado que ele vai discutir com as pessoas ofendidas e com seus próprios familiares acerca de seus atos, já é um grande passo a ser considerado. Requer que se tenha humildade, para reconhecer a culpa ante os que conhecemos, imagine ante aos que agredimos através de um ato infracional. As perspectivas básicas da Justiça Restaurativa é a reparação do dano, que consiste em ter o foco nas conseqüências da infração, nas necessidades das vítimas e nas formas de compensação das perdas; o envolvimento das partes interessadas, com o intuito de reunir as pessoas afetadas pela infração (ofensor, vítima, familiares, amigos, outras pessoas de seu relacionamento e membros da comunidade); e, a transformação das pessoas, comunidade e governo, na intenção de repensar os papéis e as responsabilidades das pessoas envolvidas, dos serviços e das autoridades diante dos conflitos, da violência e da criminalidade. Sabe-se, que se bem estruturado e com instrumentalizadores capacitados, as perspectivas de reparação do dano e o envolvimento das partes interessadas se faz de maneira mais eficaz. Segundo o Procurador Renato Sócrates, se não forem obedecidos os quesitos de muito bem informar os participantes de todo o processo, além do respeito à vontade da vítima e do infrator em estarem ali, a experiência ao invés de positiva pode ser drástica e causar danos maiores. A terceira perspectiva da Justiça Restaurativa concernente à transformação da comunidade e principalmente do governo é imprescindível para que os bons frutos da prática restaurativa gerem sementes férteis e que consigam resgatar entre outros, os adolescentes da marginalização contínua, evitando que estes virem na fase adulta, mais um número nos estabelecimentos, 55 TODESCHINI, Tânia Benedetto e outros. Central de Práticas Restaurativas do Juizado Regional da Infância e da juventude de Porto Alegre - CPR-JIJ: aplicação da Justiça Restaurativa em processos judiciais da Justiça Restaurativa em processos judiciais. Disponível na Internet ehttp://200.169.22.139/justica21orgbr/webcontrol/upl/bib_285.pdf?PHPSESSID=876b6aad87c1eba32d15f05b51 2d3325m:. Acesso em 20 de maio de 2009. 54 perpetuando o estado de violência em que vivemos, sem contudo, buscar-se a resolução efetiva do conflito. Sabemos que a prevenção sempre é a melhor saída, por isso as práticas restaurativas nas escolas, proporciona uma solução para as hostilidades entre os alunos e destes com os professores e os demais profissionais e servidores que ali trabalham, é uma forma de se conter a violência, enquanto os adolescentes ainda estão sob a tutela de alguém. Como vimos anteriormente, o projeto restaurativo já é aplicado em alguns estabelecimentos de ensino e é uma experiência preventiva. Abaixo, segue o depoimento das Diretorias de Ensino de Guarulhos e Heliópolis em São Paulo, que aplicam a Justiça Restaurativa56. A Justiça Restaurativa se faz importante nas escolas da Diretoria de Ensino da Região de Guarulhos-Norte, por uma questão de princípio. Ela reconhece que os conflitos fazem parte integrante da vida social, estimula as pessoas a assumirem responsabilidades e a desenvolverem a prática da não-violência. (Pelas Professoras Marivana S. Mascarenhas e Teresa de Souza Izidoro, Assistentes Técnico Pedagógicas-ATPs da Diretoria de Ensino da Região Guarulhos-Norte p. 105) A prática dos Círculos Restaurativos leva a uma reflexão tanto do agressor como do agredido, reparando os envolvidos a lidar com suas emoções e procurando meios mais saudáveis para resolver “problemas”, que até então pareciam tão complicados. Refletir antes de agir,conhecer a extensão de suas ações e possíveis prejuízos que podem causar no outro e em si mesmo, faz com que o jovem amadureça emocionalmente e prepare– se para lidar com os inevitáveis conflitos em sua vida cotidiana, dentro e fora do ambiente escolar, exercitando sua cidadania e aprendendo o convívio com o diferente. (Pela Professora Maria Isabel Faria, Dirigente da Diretoria de Ensino da Região Centro- Sul Heliópolis p. 105). Desenvolvendo-se as práticas restaurativas nos estabelecimentos educacionais, podese do problema da violência em um dos seus nascedouros. E ainda, aqueles adolescentes infratores que já passaram por um processo restaurativo, ante a obrigatoriedade de retornarem aos estudos, poderão continuar sendo acompanhados por profissionais especializados no mesmo processo. A de se apontar também, que os projetos comunitários com práticas restaurativos é outra vertente da Justiça Restaurativa e tais projetos tem a possibilidade de acompanhar de perto os núcleos familiares, principalmente desses adolescentes, inserindo-os em grupos de trabalhos restaurativos, como reuniões familiares, que possam fortalecer os laços entre estes indivíduos, ajudando-os na solução de seus conflitos em outros cenários da vida, capacitandoos para o enfrentamento das situações conflituosas externas. Em suma, há de haver um esforço conjunto alicerçado pelo Estado, para que o Judiciário, a escola, o sistema de saúde e a comunidade venham promover as práticas restaurativas. A Justiça Restaurativa é um modelo de justiça novo, porém promissor que se 56 Justiça e educação em Heliópolis e Guarulhos: parceria para a cidadania/ Madza Ednir, organizadora. São Paulo : CECIP, 2007. 55 estruturado para ser aplicado às políticas sociais de educação e segurança, estendendo aos comunitários, tem condições de nos trazer um sentimento de esperança, de que os adolescentes infratores podem ser beneficiados a ponto de serem resgatados da criminalidade. A proposta da Justiça Restauradora é profunda e positiva, mas é necessário todo um sistema de políticas de apoio pós-círculo. Pois como De Vitto assevera: Há que se reservar, ainda, especial atenção para as ações adotadas após a prática restaurativa, posto que o monitoramento do acordo e avaliação do seu cumprimento constituem etapas relevantíssimas na consecução dos objetivos do modelo. (De Vitto, 2005). A realização da Justiça Restaurativa vai além da atmosfera do Judiciário e quanto a isso, Renato Sócrates fala da condição a qual os operadores de direito tem que se adequar dando oportunidade às pessoas envolvidas no conflito e suas comunidades de se juntarem em prol de se alcançar justiça conforme sua conceituação e valores íntimos quanto ao que seja mais justo e eficaz, que harmonize a convivência. Além de abrir o mosteiro do Direito à interdisciplinaridade, e mais do que isso, à transdisplinaridade, o operador jurídico, tanto nos papéis de autoridade (delegado, promotor, juiz) ou como advogado (inclusive eventualmente atuando como mediador ou facilitador), terá que conciliar, ao trabalhar com justiça restaurativa, a tradicional perspectiva dogmático-jurídica, que traz de sua formação de bacharel em Direito, com uma nova atitude, aberta ao pluralismo jurídico, reconhecendo a legitimidade do senso jurídico comum das pessoas direta ou indiretamente envolvidas no conflito criminal e que participarão do diálogo e da construção da solução restaurativa, que trazem dos costumes do cotidiano da vida na comunidade – o direito achado na rua. 6.3 OS PRINCÍPIOS E VALORES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM ATENÇÃO À CONDIÇÃO DO ADOLESCENTE INFRATOR Na Justiça Restaurativa existe a consideração de princípios e valores diversos daqueles exaltados na Justiça comum, pois as características no proceder desse novo paradigma também são diversas, a despeito disso, Kozen diz que: O proceder segundo o ritual circularidade da Justiça Restaurativa tem como característica fundamental em relação ao proceder pela retributividade o desejo da instalação do ambiente em que os sujeitos em conflito são merecedores de um direito, o de exercer a palavra. Não a palavra na estrutura legal do interrogatório, nem na ordem do responda-o-que-perguntado dos depoimentos, formas de submissão típicas das relações de poder. Mas uma palavra posta na circularidade dos falantes. Antes do resultado, importa a forma de proceder. E esse proceder diferenciado, começa quando, diante de determinado caso, é identificada a possibilidade de bons resultados com as práticas restaurativas, em prol da restauração do dano e da responsabilização do infrator. 56 No livro Manual de Mediação Judicial, um dos princípios considerados para o processo de mediação é o empoderamento57, um poder dado às partes (vitima, menor infrator e comunidade) envolvendo-as em um processo de diálogo profundo, com o fim de se posicionar acerca do acontecido. É por isso, que estudiosos dizem que o profissional mediador não pode tomar posturas paternalistas na condução dos círculos envolvendo adolescentes e é imprescindível que isso não aconteça e que ele se mantenha imparcial, pois os participantes principais devem tomar posse desse poder, para que autocomponham seus conflitos. É tanto, que se espera uma maior habilidade das partes em comunicar-se após um processo como este. Ou seja, quando um mediador proporciona uma adequada autocomposição, as partes, inclusive o adolescente, pode vir a aprender a solucionar futuramente seus próprios conflitos em contextos diversos. A Carta de Araçatuba, escrita pelos integrantes do I Simpósio Brasileiro de Justiça e Restaurativa, realizado em 2005, trouxe 16 princípios das práticas da Justiça Restaurativa que se quer intencionava realizar no Brasil, abaixo segue disposto o princípio e a consideração quanto o processo restaurativo com o adolescente: 1. plena informação sobre as práticas restaurativas anteriormente à participação e os procedimentos em que se envolverão os participantes; ´ Por se tratar de um paradigma novo, este tem que ser transparente às partes. A equipe de atendimento, o Judiciário, o mediador devem esclarecer minuciosamente o que é o processo e como se dará a prática restaurativa. Em se tratando dos adolescentes, há de se requerer dos profissionais envolvidos no processo restaurativo, um trato diferenciado. 2.autonomia e voluntariedade para participação das práticas restaurativas, em todas as suas fases; Sabemos que é própria da idade juvenil a resistência em envolver-se em atividades com adultos, ainda mais em uma situação como essa, por isso é imprescindível que o adolescente escolha estar ali e uma vez ali estando, que ele se sinta a vontade de envolver-se no programa. Em consideração à condição da vítima e à condição do adolescente infrator é aplicado o princípio da voluntariedade no processo restaurativo, pois não é por força ou imposição a participação nem da vítima, nem do adolescente, há de ser por vontade única e exclusiva de cada um. 57 “Empoderamento” é a tradução do temo em inglês empowerment significa a busca pela restauração do sendo de valor e poder da parte para que esta esteja apta a melhor dirimir futuros conflitos. (AZEVEDO, André Goma /9org.). 2009. Manual de Mediação Judicial (Brasília/DF:Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, p. 56) 57 O aconselhável é que a vítima seja convidada após que já se tenha a participação do adolescente confirmada, para que não haja o chamam de revitimização. 3.respeito mútuo entre os participantes do encontro; O processo restaurativo, independente da faixa etária de seus participantes deve primar pelo respeito entre os participantes, considerando-o como uma peça chave durante todo o processo, para que se chegue a um objetivo comum. 4.co-responsabilidade ativa dos participantes; A participação no processo restaurativo, quando bem conduzido, gera o sentido de responsabilidade nas partes em conduzir a resolução do conflito, pontuando as regras no Acordo que será reduzido a termo pelo mediador. 5. atenção à pessoa que sofreu o dano e atendimento de suas necessidades, com consideração às possibilidades da pessoa que o causou; Um dos objetivos primordiais da Justiça Restaurativa é a reparação do dano àquele que foi agredido. O atendimento às suas necessidades vai além da imposição de uma penalização ao seu agressor. O dano pode ser material, mas muitas vezes atingiu mais fundo e é de cunho emocional e moral. Conforme o postulado dos estudiosos McCold e Wachtel, a vítima foi prejudicada e a Justiça Restaurativa busca entender e atender as necessidades advindas a partir de então. 6.envolvimento da comunidade pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação; O mais importante é a participação do adolescente infrator e da vítima para resolução do conflito, mas o trabalho de apoio da comunidade é importante para qualidade e eficácia do processo restaurativo. 7. atenção às diferenças sócio-econômicas e culturais entre os participantes; Por muitas vezes, as diferenças entre as partes de um conflito infracional, são de mundos diversos. Não é incomum ver-se um infrator desprovido financeiramente, sem acesso escolar ou fugido de um e provindo de um lar desestruturado agredir alguém de vida diversa ou mesmo um adolescente apesar de ter suporte familiar e financeiro se envolver na criminalidade por motivos banais. Não importa as diferenças entre as partes, o que importa é que caminhos de vida foram cruzados de forma violenta e não prevista e a Justiça Restaurativa no desenrolar de seu processo, tem que ter consideração a essas diferenças. 8. atenção às peculiaridades sócio-culturais locais e ao pluralismo cultural; A Justiça Restaurativa é realizada em muitos lugares no mundo e para sua implementação, as características culturais têm que ser consideradas, porque isso determinará a forma de trabalho dos mediadores, do Judiciário, do restante da comunidade e postos de 58 atendimento. O Brasil é um país de proporções continentais e sua diversidade populacional tem que ser levadas em conta para o sucesso da Justiça Restaurativa. 9.garantia do direito à dignidade dos participantes; Com a evolução trazida pela Constituição Federal, mesmo o adolescente infrator passa a ser sujeito de direito e tem resguardado no processo comum e, mais ainda, no processo restaurativo seu direito à dignidade. 10. promoção de relações equânimes e não hierárquicas; No processo desenrolado no ambiente judiciário, ante os representantes do Ministério Público e do magistrado, acabam por inibir e intimidar as partes, ante tanto formalismo. No processo restaurativo, a intenção é que se crie um ambiente seguro que proporcione aos participantes um relacionamento horizontalizado, onde as diferenças são deixadas de lado. 11.expressão participativa sob a égide do Estado Democrático de Direito; Os círculos restaurativos são baseados em diálogo, ali todos têm oportunidade de falar e com a presença de adolescentes infratores no processo, as coisas não são diferentes, justamente porque Justiça Restaurativa por proteger o princípio da horizontalidade, garante que todos se posicionem e participem como iguais e democraticamente, para civilizadamente se abrirem, trocarem as experiências anteriores e posteriores ao fato delituoso, no intuito de promover a resolução de forma pacífica e mais eficaz. 12. facilitação por pessoa devidamente capacitada em procedimentos restaurativos; É imprescindível a adequada capacitação do mediador, seja para bem esclarecer o processo aos participantes, ou para dar agilidade, dinamismo aos círculos, prezando por outros princípios aqui expostos, como o respeito. 13. observância do princípio da legalidade quanto ao direito material; No caso do tratamento dos adolescentes infratores utilizando-se a Justiça Restaurativa, é o respeito e consideração ao disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, além da Constituição Federal que torna possível a obediência a esse princípio. Cabe lembrar, que legislativamente falando, não há ainda previsão explicita para aplicação da Justiça Restaurativa. 14. direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informações referentes ao processo restaurativo; Há de se considerar que o processo restaurativo é profundo e complexo, pois envolve a exposição de sentimentos como o medo, traumas, erros, enfim de vidas. importância de correr em segredo, para não expor mais ainda os participantes. 15. integração com a rede de assistência social em todos os níveis da federação; Por isso, a 59 O trabalho da Justiça Restaurativa prescinde a essa integração, pois o processo restaurativo não acaba com realização dos círculos, se faz necessário o assessoramente de toda uma rede de assistência para a segunda parte do processo, que refere-se ao cumprimento do Acordo, que requer o apoio da escola, de psicólogos, movimentos comunitários, etc. 16. interação com o Sistema de Justiça. Muitos dos movimentos restaurativos tem o encaminhamento do Judiciário e o Acordo produzido nos círculos tem a análise e homologação do Judiciário. Mesmo porque é previsto que se o Acordo restaurativo não for cumprido, o tratamento do ato infracional volta a ser tratado pelo processo convencional, no Judiciário. 6.3 UM CAMINHO PARA RESPONSABILIZAÇÃO O juiz Leoberto acredita que a Justiça Restaurativa causa um encantamento que acaba por corresponder a um sonho anterior ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente de uma perspectiva pedagógica que promova a ressocialização dos adolescentes infratores. Ou seja, a prática restaurativa mediante o sentido de responsabilização que pode promover ao adolescente participante, corresponderá no final, ao aprendizado de um novo caminho que pode reinseri-lo na sociedade e afastá-lo da criminalidade. A proposta da Justiça Restaurativa é promover justiça através do que acordar as principais partes envolvidas no conflito delituoso. Sua aplicação não é prevista só para os casos que envolvam adultos, mas também naqueles envolvendo adolescentes que cometeram ato infracional. Os trabalhos com a Justiça Restaurativa no Brasil estão em estágios iniciais e sua aplicação aos adolescentes infratores é direcionada aos que cometeram atos infracionais menos graves, porém mediante a experiência em outros países, vê-se que é possível também sua aplicação em casos mais graves de violência, uma vez que o fator mais importante do que o grau do mal praticado é a manifestação positiva dos envolvidos em participar do processo, esse é o real termômetro de que é possível a utilização de um método alternativo na pacificação do conflito. Tem se notado que os mais jovens respondem positivamente aos processos restaurativos, é tanto que muitos já foram atendidos nos projetos desenvolvidos no Brasil e com alto índice de cumprimento aos acordos. Para muitos adolescentes participantes dos círculos, essa pode ser a primeira vez que alguém estará disposto a ouvi-lo e com um interesse ímpar no intuito de entender o porquê de seu ato de violência e mais, qual seu posicionamento diante das consequências geradas e quais poderão ser suas perspectivas e ações para reparar o esse dano. 60 Primeiro, ao escutar o ponto de vista da vítima, bem como seus sentimentos e a respeito do dano lhe gerado, e em segundo, sendo aberto espaço ao infrator, para que possa se retratar, propondo algumas ações, que no final serão reduzidas a termo, o adolescente tem uma oportunidade maior de entender o real sentido de uma responsabilização. A Justiça Restaurativa oportuniza ao adolescente infrator, olhar nos olhos de suas vítimas e muitas vezes até mesmo, se reconhecer em sua história de vida, sentir um pouco de sua dor e medo em conseqüência da violência. Enfim, o adolescente através do depoimento e diálogo com a vítima, tem uma oportunidade nua e crua, de se colocar no lugar dos seu ofendido e da comunidade e se sentir como parte desse grande organismo. Por se tratar de indivíduos que ainda estão em formação, acredita-se que os adolescentes têm a capacidade de aproveitar a experiência com eficácia, o que gera uma esperança maior de sua recuperação. A participação em um círculo restaurativo, encarando sua vítima, sendo confrontado em seus atos e cooperando no Acordo em prol de uma reparação, dá condições ao adolescente de amadurecer e refletir sobre sua situação de vida e sua situação na sociedade. Para o Juiz Leoberto “só se aprendem os valores que se vivenciam, promover práticas restaurativas implica promover vivências que proporcionem aos sujeitos a constituição de registros internos fundados em valores humanos.” Para ele nos círculos restaurativos proporcionam a aprendizagem de valores como que mobilizam: solidariedade, tolerância, respeito, acolhimento, empatia, perdão. E isso, vivenciado na infância e juventude é melhor assimilado e levado para as outras situações de conflito que ainda virão. Leoberto aponta ainda, a Justiça Restaurativa como parâmetro adequado à avaliação se o adolescente está apto a ser liberado do cumprimento da medida privativa de liberdade e da liberdade assistida. Há de se lembrar, que ambas as medidas não tem tempo determinado para cumprimento, mas a falta de requisitos objetivos de avaliação para a liberação desses jovens pode ser suprimida pelo indicativo da responsabilização do adolescente por seus atos e conseqüência. Com a definição da responsabilização como indicativo de avaliação, pode-se desenvolver outras abordagens restaurativas dentro do ambiente institucional, além dos círculos, tal como, quando houver incidentes disciplinares, atividades reflexivas com participação de vítimas, etc. Primando-se pelo “diálogo, confrontação com os fatos, à busca do amadurecimento de uma reflexão crítica a respeito da situação infracional.” Assim, considerando-se os valores e perspectivas da Justiça Restaurativa, pode-se afirmar que ela é oportuna e favorável na transformação de mentalidade do adolescente infrator, pois seus procedimentos tem maiores possibilidades para geração de um senso de 61 responsabilização, que como já foi discutido anteriormente, é uma das perspectivas pedagógicas do ECA. 62 CONCLUSÃO Considerando tudo o que foi exposto, podemos concluir que a sociedade brasileira tem clamado por modificações no Sistema de Justiça. De modo, que haja mais acesso à justiça e um sentido maior de segurança e participação, em suma, o desejo é que os meios utilizados pelo Judiciário sejam mais justos e efetivos, uma vez que vivemos tempos de medo e violência, que se espalha no meio das famílias, nas nossas escolas e nas ruas, arregimentando cada vez mais os mais jovens. Pela falta de condições do Estado-juiz em deter tanta violência, com um modelo de processos moroso, que não atende às pretensões de justiça dos demandantes e ainda, baseado em um sistema penal e socioeducativo que não ressocializa ou responsabiliza adequadamente, abre-se uma porta ao surgimento de modelos de justiça alternativos, como o Justiça Restaurativa, que tem perspectivas de reparar o dano, reconstruir relacionamentos e promover a transformação da comunidade e de outros segmentos políticos e sociais, através de um processo que complementa e pode aperfeiçoar o Sistema de Justiça atual. Modelo esse, pautado em práticas humanas antiquíssimas, anteriores ao sistema retributivo atual e que trabalha a resolução dos conflitos através da tomada de decisões das partes diretamente interessadas, de uma forma pacífica ou não-violenta. A Justiça Restaurativa no Brasil não é só um projeto no papel, mas já está em fase embrionária, maturando-se ante aos esforços das equipes que compõe os três projetos-pilotos que desenvolvem o trabalho na prática, sendo um em São Caetano do Sul, Núcleo Bandeirante e Porto Alegre. A boa idéia se espalha e já se tem outras cidades engajadas que criaram seu postos para também atender às lides com um olhar restaurativo. Pelo que foi pesquisado, a legislação brasileira ainda não tem diploma com cunho inteiramente restaurativo e como assevera o autor Pedro Scuro Neto58, é por via legislativa que a nova matéria deve ser disciplinada. Contudo existem alguns preceitos legais em que se pode vislumbrar a adequação para aplicação das práticas restaurativas, tais como na Lei no. 9099/95, a Lei Maria da Penha (Lei no. 11.340/06), o Código Penal (Decreto-Lei no. 2.848/40), os Projetos de Lei no. 7.006/06 e no. 1.627/07 e o Estatuo da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), além de uma Portaria Conjunta de no.15/04, ato administrativo que tratou da implantação das práticas restaurativas no Distrito Federal, no Juizado Especial do Núcleo Bandeirante. 58 (2005, Damásio de Jesus apud Pedro Scuro Neto) 63 Em se especificando a aplicação das práticas restaurativas nos conflitos envolvendo o adolescentes infratores, fez-se primeiramente necessário o levantamento histórico da evolução legislativa e da concepção social quanto ao adolescente infrator, quando pode-se levantar no Capítulo 4, através dos estudos do jurista argentino Emílio García Méndez, as etapas da responsabilidade penal dos adolescentes, quais sejam: a etapa de caráter indiferenciado, a tutelar e a caracterizada pela separação, participação e responsabilidade, que foi trazida ao contexto da Justiça Juvenil da América Latina, por sua previsão no Estatuto da Criança e do Adolescente. Antes de se tecer os comentários às inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, coube um levantamento na história do Brasil, a respeito da evolução do direito da infância e juventude no Brasil desde o advento do Capitalismo, que trouxe transformações profundas nas concepções sociais, como por exemplo, a questão de que diante da demanda de trabalho nas fábricas e industrias, não se concebia que crianças e adolescentes permanecessem ociosas ou abandonadas nas ruas. Por outro lado, tem-se que a entrada da mulher mãe e donade-casa no mercado de trabalho emergente, influenciava negativamente na formação das novas gerações que se viam largadas. Até 1979, a forma de combate ao abandono e à marginalidade dos mais jovens foi baseada na Doutrina Penal, aplicando-se medidas de restrição de liberdade análogas às dos adultos. Colocando os internados em instituições reformatórias que ao invés de proteger, ajudavam na perpetuação da condição do adolescente na criminalidade. Contudo aos poucos foi-se partindo para a criação de políticas não-criminais, com intenções de se evitar o mínimo possível a segregação dos jovens, mas tudo de forma bem lenta e enquanto isso a criminalidade infanto-juvenil só aumentava. Com a entrada em vigor do Código dos Menores em 1979, adotou-se a Doutrina da Situação Irregular, considerando-se em separado a situação dos “delinquentes” da dos “abandonados”. Mas continuava-se a desconsiderar qualquer capacidade dos adolescentes infratores, pois diziam ser eles objetos de proteção, uma proteção que significava na maioria das vezes, seu afastamento da sociedade, nas famosas FEBEMs, criadas na década de 60. Foi através da abertura democrática trazida pela Constituição de 1988 e com o Estatuto que se consolida nova fase na concepção e tratamento aos adolescentes infratores, pois estes passam a ser sujeitos de direito. O enfoque passa a ser na Doutrina da Proteção Integral, defendido pelas legislações mais modernas do mundo, que tem o objetivo de ressocializar através da educação ao invés da punição. 64 Acompanhando a nova tendência de proteção e direitos, a Lei do Estatuto da Criança e do Adolescente foi promulgada em 1990 e em seu texto demonstra a desconstrução da nomenclatura “menor” utilizado anteriormente para definir crianças e adolescentes desamparados e infratores. Bem como, conclama os adolescentes infratores e a sociedade para se responsabilizar com a questão do cometimento dos atos infracionais, prevendo também a criação de uma política de atendimento. Em se tratando o ato infracional, que é a conduta do adolescente descrita como crime ou contravenção penal, considerou-se capitularmente o que pode influenciá-lo ao cometimento de tais práticas e chega-se à conclusão que diversos são os motivos e acentua-se que por ser esta fase, uma das ou a mais conflituosa da vida humana, onde profundas transformações ocorrem ao mesmo tempo, isso pode vir a dificultar o relacionamento do adolescente com o meio, na busca da construção de sua própria identidade. E como foi colocado pelo Procurador Konzen, o adolescente deve ser tratado considerando-se sua capacidades diferentes inerentes à pessoa em desenvolvimento. Contudo, em consideração ao respeito a condição humana, o adolescente tem que responder por seus atos, mas claro que de forma diferente de um adulto. Por fim conclui-se que a Justiça Restaurativa, em seus princípios, valores e perspectivas pode ser aplicada ao adolescente infrator, não ferindo a legislação atual brasileira e os propósitos da política de tratamento desse infrator. Ante ao estudo, mostrou-se possível a aplicação da Justiça Restaurativa nas mais diversas fases do processo comum e até mesmo quando este for excluído ou suspenso pela concessão do instituto da remissão por parte do magistrado, ou mesmo, através da aplicação também da remissão, mas por parte do Ministério Público, que excluirá o procedimento, antes da formação do processo comum. Mais que possível e legal, a aplicação da Justiça Restaurativa aos conflitos envolvendo os adolescentes infratores, ao concorrer para o envolvimento da vítima, comunidade, familiares e com o suporte do Judiciário, das Delegacias, escolas e de outras redes de atendimento, pode gerar resultados positivos, oportuniza uma responsabilização intíma do adolescente, o que poderá resgatá-lo em definitivo de uma vida marginal. 65 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SLAKMON, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, org., 2005. Justiça Restaurativa (BrasíliaDF: Ministério da Justiça e Programas das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. 477 p. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência; tradução Luís Carlos Borges – 3ª. ed. – São Paul: Martins Fontes, 2001. 404 p. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 16ª. ED. São Paulo: Atlas, 2000. 453 p. BOBBIO, Norberto, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Dicionário de Política, vol. I/II, 5 ed. 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