A DEI VERBUM, SUA PREPARAÇÃO E REPERCUSSÃO Pe. Paulus Seeanner, ORC1 Resumo Cinquenta anos depois da abertura do Concílio Vaticano II devemos admitir que conhecemos muito pouco os seus documentos. Este artigo quer contribuir para um melhor conhecimento da Constituição dogmática sobre a Revelação divina Dei Verbum, apresentando a preparação e a repercussão deste documento. A partir de algumas afirmações do Papa Bento XVI na Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja Verbum Domini (30.9.2010) queremos encontrar a afirmação central do documento Dei Verbum para ver como esta doutrina foi preparada pelos documentos do magistério antes do Concílio. O artigo quer mostrar qual era a preocupação do magistério acerca da Sagrada Escritura que se manifesta nos documentos anteriores ao Concílio sobre a Bíblia, como esta preocupação foi acolhida no Concílio, como a Constituição dogmática Dei Verbum respondeu a esta preocupação, e como os documentos depois do Concílio foram marcados pelo seu ensinamento. Palavras-Chave: Concílio Vaticano II. Constituição dogmática Dei Verbum. Doutrina central da Dei Verbum. Pode-se afirmar que, a partir do pontificado do Papa Leão XIII, houve um crescendo de intervenções visando suscitar maior consciência da importância da Palavra de Deus e dos estudos bíblicos na vida da Igreja, que teve o seu ponto culminante no Concílio Vaticano II, de modo especial com a promulgação da Constituição dogmática sobre a Revelação divina Dei Verbum. Esta representa um marco miliário no caminho da Igreja (VD 3). É de conhecimento geral o grande impulso dado pela Constituição dogmática Dei Verbum à redescoberta da Palavra de Deus na vida da Igreja, à reflexão teológica sobre a Revelação divina e ao estudo da Sagrada Escritura. E numerosas foram também as intervenções do Magistério eclesial sobre estas matérias nos últimos quarenta anos (VD 3). 1 Mestre em Teologia e professor da Faculdade Católica de Anápolis INTRODUÇÃO A constituição dogmática Dei Verbum se originou como sucessora de um texto, que foi preparado por uma comissão teológica antes do Concílio com o título: “Sobre as fontes da revelação”. Este esquema foi rejeitado do concílio em novembro de 1962. O Papa João XXIII pediu, por isso, a elaboração de um esquema “Sobre a revelação divina”. O texto novo foi elaborado por uma comissão mista no início de 1963 e a comissão teológica fez ainda algumas modificações. O novo texto foi apresentado ao concílio no final de setembro de 1964. Como resultado da discussão foi feito mais um texto novo. Os padres do concílio votaram sobre este texto em setembro de 1965. Foram exigidas mais algumas mudanças. A votação final aconteceu no dia 18 de novembro de 1965. A ESTRUTURA DA DEI VERBUM - DV Introdução Primeiro Capítulo: A Revelação em si mesma (2-6) Segundo Capítulo: A transmissão da revelação divina (7-10) Terceiro Capítulo: A Inspiração Divina da Sagrada Escritura e a sua interpretação (11-13) Quarto Capítulo: O Antigo Testamento (14-16) Quinto Capítulo: O Novo Testamento (17-20) Sexto Capítulo: A Sagrada Escritura na Vida da Igreja (21-26) A Afirmação central da Dei Verbum Para compreendermos a afirmação central da DV devemos compreender o mistério da Sagrada Escritura, que podemos chamar a “Cristologia” da Sagrada Escritura: A Palavra de Deus exprime-se em palavras humanas graças à obra do Espírito Santo. A missão do Filho e a do Espírito Santo são inseparáveis e constituem uma única economia da salvação. O mesmo Espírito, que atua na encarnação do Verbo no seio da Virgem Maria, guia Jesus ao longo de toda a sua missão e é prometido aos discípulos. O mesmo Espírito, que falou por meio dos profetas, sustenta e inspira a Igreja no dever de anunciar a Palavra de Deus e na pregação dos Apóstolos; e, enfim, é este Espírito que inspira os autores das Sagradas Escrituras (VD 15). Papa Bento XVI diz no documento Verbum Domini: ... na Igreja, veneramos extremamente as Sagradas Escrituras, apesar da fé cristã não ser uma «religião do Livro»: o cristianismo é a «religião da Palavra de Deus», não de «uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo»2. Por conseguinte a Sagrada Escritura deve ser proclamada, escutada, lida, acolhida e vivida como Palavra de Deus, no sulco da Tradição Apostólica de que é inseparável3 (VD 7). A fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós. A Palavra divina exprime-se verdadeiramente em palavras humanas (VD 11)."Devendo a Sagrada Escritura ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita" 4, é preciso que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo que realmente é: como Palavra de Deus que Se nos comunica através de palavras humanas (cf. 1 Ts 2, 13). Trata-se de um dado constante e implícito na própria Bíblia: “Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular, porque jamais uma profecia foi proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens santos falaram em nome de Deus” (2 Pd 1, 20-21). Aliás, é precisamente a fé da Igreja que reconhece na Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo Agostinho, “não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da Igreja Católica”5 (VD 29). “A tradição patrística e medieval, contemplando esta Cristologia da Palavra, utilizou uma sugestiva expressão: O Verbo abreviou-Se6” (VD 12). Um conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em palavras humanas é, sem dúvida, o de inspiração. Também aqui se pode sugerir uma analogia: assim como o Verbo de Deus Se fez carne por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, assim também a Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do mesmo Espírito. A Sagrada Escritura é “Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito de Deus”7. Deste modo se reconhece toda a importância do autor humano que escreveu os textos inspirados e, ao mesmo tempo, do próprio Deus como verdadeiro autor. Daqui se vê com toda a clareza – lembraram os Padres sinodais – como o 2 S. Bernardo, Homilia super missus est, IV,11: PL 183, 86B. Cf. DV 10. 4 DV 12. 5 Contra epistolam Manichaei quam vocant fundamenti, V,6: PL 42,176. 6 Cf. Origenes, Peri Archon, 1,2,8: SC 252,127-129. 7 DV 9. 3 tema da inspiração é decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua correta hermenêutica8, que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi escrita9. Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a Escritura como objeto de curiosidade histórica e não como obra do Espírito Santo, na qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua presença na história. Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como ligado com o tema da inspiração esteja também o tema da verdade das Escrituras10. Por isso, um aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior compreensão da verdade contida nos livros sagrados. Como indica a doutrina conciliar sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras. Por isso, “toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as boas obras (2 Tim 3,16-17)”11. Não há dúvida de que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e verdade como dois conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas Escrituras. No entanto, deve-se reconhecer a necessidade atual de um condigno aprofundamento destas realidades, para se responder melhor às exigências relativas à interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza. Nesta perspectiva, desejo vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a ciência bíblica e para a vida espiritual dos fiéis (VD 19). A partir destas afirmações chegamos à conclusão de que a afirmação central da DV é a sua doutrina sobre a inspiração e a verdade bíblica: As coisas divinamente reveladas, que se encerram por escrito e se manifestam na Sagrada Escritura, foram consignadas sob inspiração do Espírito Santo. Pois a Santa Mãe Igreja, segundo a fé apostólica, tem como sagrados e canônicos os livros completos tanto do Antigo como do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, escritos sob a inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2 Tim 3,16; 2 Pd 1,19-21; 3,15-16), eles têm Deus como autor e nesta sua qualidade foram confiados à Igreja. 8 Cf. Propositiones 5.12. DV 12. 10 Cf. Propositiones 12. 11 Cf. DV 11. 9 Na redação dos livros sagrados Deus escolheu homens, dos quais se serviu fazendo-os usar suas próprias faculdades e capacidades, a fim de que, agindo Ele próprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo e só aquilo que ele próprio quisesse. Portanto, já que tudo o que os autores inspirados ou os hagiógrafos afirmam deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras. Por isso, toda a Escritura divinamente inspirada é também útil para ensinar, para arguir, para corrigir, para instruir na justiça: a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda obra boa (2 Tim 3,16-17) (DV 11). Queremos agora ver, como estas palavras do Concílio foram preparados pelos documentos do magistério sobre a Sagrada Escritura antes do Concílio, e qual era a repercussão nos documentos sobre a Sagrada Escritura depois do Concílio Vaticano II. Os Documentos mais importantes antes e depois da DV Leão XIII, Providentissimus Deus, 18 nov 1893. Bento XV, Spiritus Paraclitus, 15 set 1920. Pio XII, Divino Afflante Spiritu, 30 set 1943. O Catecismo da Igreja Católica, (51-133), 11 out 1992 P.C.B, A Interpretação da Bíblia na Igreja, 15 abr 1993. P.C.B, O povo judaico e a sua Sagrada Escritura na Bíblia cristã, 24 maio 2001. P.C.B, Bíblia e Moral, 11 maio 2008. Bento XVI, Verbum Domini, 30 set 2010. 1. Preparação Providentissimus DEUS: “A Providentissimus Deus, quer sobretudo proteger a interpretação católica da Bíblia contra os ataques da ciência racionalista”12. “A Providentissimus Deus apareceu numa época marcada por polêmicas 12 A interpretação da Bíblia na Igreja, 3. virulentas contra a fé da Igreja. A exegese liberal trazia a estas polêmicas um apoio importante, porque utilizava todos os recursos das ciências, desde a crítica textual até à geologia, passando pela filologia, pela crítica literária, pela história das religiões, pela arqueologia e ainda por outras disciplinas”13. “Contra as ofensivas da exegese liberal, que apresentava as suas alegações como conclusões fundadas sobre aquisições da ciência, ter-se-ia podido reagir lançando anátema sobre a utilização das ciências na interpretação da Bíblia, e ordenando aos exegetas católicos que se limitassem a uma explicação „espiritual‟ dos textos”. A Providentissimus Deus não envereda por este caminho. Pelo contrário, a Encíclica convida insistentemente os exegetas católicos a adquirirem uma verdadeira competência científica, de modo a superarem os seus adversários no terreno dos mesmos. O primeiro meio de defesa, diz ela, “encontra-se no estudo das línguas antigas do Oriente, bem como no exercício da crítica científica” (EB, 118). A Igreja não tem medo da crítica científica. Ela só teme as opiniões preconcebidas, que têm a presunção de se fundar na ciência mas que, na realidade, fazem sair sub-repticiamente a ciência do seu domínio14. Por isso aqui não vale dizer que o Espírito Santo tenha tomado homens como instrumentos para escrever, como se algum erro tivesse podido escapar não certamente do autor principal, mas dos escritores inspirados. Com efeito, ele mesmo assim os excitou e moveu a escrever com a sua virtude sobrenatural, assim os assistiu enquanto escreviam de modo que todas aquelas coisas e aquelas somente que ele queria, as concebessem retamente com a mente, e tivessem a vontade de escrevê-las fielmente e as exprimissem de maneira apta com infalível verdade: do contrário, não seria ele mesmo o autor de toda a Sagrada Escritura (EB 125). É totalmente ilícito, ou restringir a inspiração a algumas partes somente da Sagrada Escritura, ou conceder que o mesmo autor sagrado tenha errado. Não se pode tolerar a maneira de agir daqueles que, para desfazer-se das objeções (contra a verdade da Escritura), não hesitam em afirmar que a inspiração divina se refere às coisas de fé e moral, e nada mais ... A inspiração divina é incompatível com qualquer erro: por sua essência, ela não só exclui todo erro, mas o exclui com a mesma necessidade com a qual DEUS, suma Verdade, não é autor de erro algum. Esta é a fé antiga e o costume da Igreja (EB 124). 13 14 A interpretação da Bíblia na Igreja, 3. A interpretação da Bíblia na Igreja, 4. Spiritus Paraclitus: A Enciclica Spiritus Paraclitus de Bento XV, publicada em 1920, por ocasião do XV centenário da morte de São Jerônimo, de conformidade com o antigo doutor sublinha que o influxo inspirador, enquanto impede o escritor sagrado de ensinar o erro, não cria obstáculo algum à expressão própria do seu gênio e da sua cultura. E, quanto à natureza da inspiração, descreve-a do ponto de vista da dinâmica psicológica do escritor, na linha da Providentissimus Deus: Conferida a graça, Deus dá antecipadamente uma luz à mente do escritor para propor aos homens a verdade como “da parte da pessoa de Deus” (São Jerônimo); e, além disso, move a sua vontade e a impele a escrever; e o assiste, por fim, de modo especial e contínuo, até que tenha composto o livro (EB 448). Ora, alguns modernos não se preocupam em nada com essas prescrições e limites; distinguindo na Sagrada Escritura um duplo elemento - um principal e religioso e outro secundário e profano -, eles aceitam o fato que a inspiração se revele em todas as proposições e também em todas as palavras da Bíblia, mas restringem-nas e as limitam aos efeitos, a partir da imunidade dos erros e da absoluta veracidade limitada ao elemento principal e religioso. Segundo eles, Deus não se preocupa e não ensina pessoalmente na Escritura senão o que diz respeito à religião; o restante comunicou por meio das ciências e não tem outra serventia, para a doutrina revelada, do que servir de invólucro exterior à verdade divina. Deus permite que isso seja assim, confiando nas débeis faculdades do escritor. Por isso não há nada de estranho se a Bíblia apresenta, nas questões físicas, históricas e em outras com temáticas semelhantes, passagens frequentes que não é possível conciliar com os atuais progressos das ciências. Alguns sustentam que essas opiniões errôneas não contrastam com as prescrições do nosso predecessor. Acaso não declarou ele que em matéria de fenômenos naturais o autor sagrado falou segundo as aparências exteriores, suscetíveis portanto de engano? (EB 454). Divino Afflante Spiritu: A Divino afflante Spiritu preocupa-se mais com defender a interpretação católica contra os ataques que se opõem à utilização da ciência, por parte dos exegetas, e que querem impor uma interpretação não científica, chamada «espiritual» das Sagradas Escrituras15. A Divino afflante Spiritu foi publicada pouco tempo depois de uma polêmica muito diferente, surgida sobretudo na Itália, contra o estudo científico da Bíblia. Um opúsculo anônimo tinha sido largamente difundido, para prevenir contra o que ele descrevia como «um 15 A interpretação da Bíblia na Igreja, 3. gravíssimo perigo para a Igreja e para as almas: o sistema críticocientífico no estudo e na interpretação da Sagrada Escritura, os seus desvios funestos e as suas aberrações16. Na Divino afflante Spiritu, Pio XII evitou deliberadamente enveredar por este caminho. Pelo contrário, ele reivindicou a estreita união das duas iniciativas, por um lado salientando o alcance teológico do sentido literal, metodologicamente definido (EB, 251), por outro lado, afirmando que, para poder ser reconhecido como sentido de um texto bíblico, o sentido espiritual deve apresentar garantias de autenticidade. Uma simples inspiração subjetiva não é suficiente. Deve-se poder mostrar que se trata de um sentido querido por Deus mesmo, de um significado espiritual «dado por Deus» ao texto inspirado (EB, 552553). A determinação do sentido espiritual é da competência, pois, também ela, do domínio da ciência exegética17. A relação estreita que une os textos bíblicos inspirados no mistério da Encarnação foi expressa pela Encíclica Divino afflante Spiritu nos termos seguintes: Como a Palavra substancial de Deus se fez semelhante aos homens em tudo, exceto no pecado, assim também a palavra de Deus, expressa em linguagem humana, se assemelhou em tudo à linguagem humana, exceto no erro (EB, 559). Retomada quase literalmente pela Constituição conciliar Dei Verbum (n. 13), esta afirmação põe em destaque um paralelismo rico de significado18. Por conseguinte, as duas Encíclicas solicitam os exegetas católicos a permanecerem em plena harmonia com o mistério da Encarnação, mistério de união do divino e do humano, numa existência histórica inteiramente determinada19. A Divino afflante Spiritu, como se sabe, recomendou particularmente aos exegetas o estudo dos gêneros literários utilizados nos Livros Sagrados, chegando a dizer que a exegese católica deve adquirir a convicção de que esta parte da sua tarefa não pode ser negligenciada, sem grave dano para a exegese católica (EB, 560). ...Nenhum aspecto humano da linguagem pode ser negligenciado. Os progressos recentes das investigações linguísticas, literárias e hermenêuticas levaram a exegese bíblica a juntar, ao estudo dos gêneros literários, muitos outros pontos de vista (retórico, narrativo, estruturalista); outras ciências humanas, como a psicologia e a sociologia foram igualmente utilizadas. A tudo isto podem aplicar as recomendações dadas aos membros da Comissão Bíblica por Leão XIII: Que eles não considerem alheio ao seu campo nada do que a investigação industriosa dos modernos tiver encontrado de novo; pelo contrário, que eles tenham o espírito alerta para adotar sem demora o que cada momento traz de útil à exegese bíblica (EB, 140). O estudo dos condicionamentos humanos da palavra de Deus deve ser prosseguido 16 A interpretação da Bíblia na Igreja, 3. A interpretação da Bíblia na Igreja, 4. 18 A interpretação da Bíblia na Igreja, 6. 19 A interpretação da Bíblia na Igreja, 7. 17 com um interesse incessantemente renovado20. Contudo, este estudo não é suficiente. Para respeitar a coerência da fé da Igreja e da inspiração da Escritura, a exegese católica deve estar atenta a não se limitar aos aspectos humanos dos textos bíblicos. É preciso que também ajude o povo cristão a perceber mais nitidamente nestes textos a palavra de Deus, de maneira a acolherem-na melhor para viverem plenamente em comunhão com Deus. Para este fim, é evidentemente necessário que o próprio exegeta perceba nos textos a palavra divina, e isto só lhe é possível se o seu trabalho intelectual for alimentado por um impulso de vida espiritual. Faltando este fundamento, a investigação exegética permanece incompleta; perde de vista a sua finalidade principal e limita-se a tarefas secundárias. Pode mesmo tornar-se uma espécie de evasão. O estudo científico apenas dos aspectos humanos dos textos pode fazer esquecer que a palavra de Deus convida cada um a sair de si mesmo para viver na fé e na caridade. A encíclica Providentissimus Deus recordava, a este propósito, o caráter particular dos Livros Sagrados e a exigência que daí resulta para a sua interpretação: «Os Livros Sagrados - declarava ela - não podem ser comparados com os escritos ordinários mas, dado que foram ditados pelo próprio Espírito Santo e têm um conteúdo de extrema gravidade, misterioso e difícil sob muitos aspectos, precisamos sempre, para os compreender e os explicar, da vinda deste mesmo Espírito Santo, ou seja, da sua luz e da sua graça, que é evidentemente necessário pedir numa humilde oração e conservar mediante uma vida consagrada» (EB, 89). Numa fórmula mais breve, tomada de Santo Agostinho, a Divino afflante Spiritu exprimia a mesma exigência: Orent ut intellegant! (EB, 569)21. Partindo do fato de que o hagiógrafo na composição do livro sagrado é o organon ou o instrumento do Espírito Santo, mas instrumento vivo e dotado de inteligência, fazem observar precisamente que este instrumento, impelido pela moção divina, usa de tal forma as suas faculdades e as suas forças que todos facilmente podem verificar pelo livro, que é obra sua, a índole própria de cada um, os seus lineamentos, as suas singulares características» (EB 556). O primeiro e maior cuidado de Leão XIII foi expor a doutrina relativa à verdade dos Livros Sagrados e defendê-la dos ataques contrários. Por isso em graves termos declarou que não há erro absolutamente nenhum quando o hagiógrafo falando de coisas físicas "se atém ao que aparece aos sentidos" como escreveu o Angélico, exprimindo-se "ou de modo metafórico, ou segundo o modo comum de falar usado naqueles tempos e usado ainda hoje em muitos casos na conversação ordinária mesmo pelos maiores sábios." De fato "não era intenção dos escritores sagrados, ou melhor são palavras de santo Agostinho do Espírito Santo que por eles falava, ensinar aos homens essas coisas - isto é, a íntima constituição do mundo visível - que nada 20 21 A interpretação da Bíblia na Igreja, 8. A interpretação da Bíblia na Igreja, 9. importam para a salvação". Esse princípio "deverá aplicar-se às ciências afins, especialmente à história", isto é, refutando "de modo semelhante os sofismas dos adversários" e defendendo das suas objeções a verdade histórica da Sagrada Escritura. Nem pode ser taxado de erro o escritor sagrado, "se aos copistas escaparam algumas inexatidões na transcrição dos códices" ou "se é incerto o verdadeiro sentido de algum passo". Enfim é absolutamente vedado "coarctar a inspiração unicamente a algumas partes da Sagrada Escritura ou conceder que o próprio escritor sagrado errou", pois que a divina inspiração "de sua natureza não só exclui todo erro, mas exclui-o e repele-o com a mesma necessidade com que Deus, suma verdade, não pode ser autor de nenhum erro. Esta é a fé antiga e constante da Igreja". “Esta doutrina, pois, que nosso predecessor Leão XIII com tanta gravidade expôs, propo-mo-la nós também com nossa autoridade e a inculcamos, para que seja de todos escrupulosamente professada” (EB 539s). 2. Repercussão A interpretação da Bíblia na Igreja, 15 abr 1993. Este documento da Pontifícia Comissão Bíblica- P.C.B estuda os diferentes métodos de interpretação da Bíblia, cumprindo deste modo o que a Dei Verbum indicou: “Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras” (DV 12). Diz Papa João Paulo II no seu discurso sobre a interpretação da Bíblia na Igreja: A Divino afflante Spiritu, como se sabe, recomendou particularmente aos exegetas o estudo dos gêneros literários utilizados nos Livros Sagrados, chegando a dizer que a exegese católica deve “adquirir a convicção de que esta parte da sua tarefa não pode ser negligenciada, sem grave dano para a exegese católica” (EB, 560). Esta recomendação parte da solicitude por compreender o sentido dos textos com toda a exatidão e precisão possíveis e, portanto, no seu contexto cultural histórico. Uma idéia falsa de Deus e da Encarnação leva um certo número de cristãos a tomar uma orientação oposta. Eles têm a tendência a crer que, sendo Deus o Ser absoluto, cada uma das suas palavras tem um valor absoluto, independente de todos os condicionamentos da linguagem humana. Não há motivos, segundo eles, para estudar estes condicionamentos para fazer distinções que relativizariam o alcance das palavras. Mas isto é iludir-se e recusar, na realidade, os mistérios da inspiração da Sagrada Escritura e da Encarnação, aderindo a uma falsa noção do Absoluto. O Deus da Bíblia não é um Ser absoluto que, destruindo tudo aquilo que toca, suprimiria todas as diferenças e todas as nuances. Ele é, pelo contrário, o Deus criador, que criou a admirável variedade dos seres “cada um segundo a sua espécie”, como diz e repete a narração do Gênesis (cf. Gen, 1). Longe de destruir as diferenças, Deus respeita-as e valoriza-as (cf. 1 Cor 12,18.24.28). Quando se exprime em linguagem humana, Ele não dá a cada expressão um valor uniforme, mas utiliza-lhe as nuances possíveis com uma flexibilidade extrema, e aceita-lhe igualmente as limitações. É o que torna a tarefa dos exegetas tão complexa, tão necessária e tão apaixonante! Nenhum aspecto humano da linguagem pode ser negligenciado. Os progressos recentes das investigações linguísticas, literárias e hermenêuticas levaram a exegese bíblica a juntar, ao estudo dos gêneros literários, muitos outros pontos de vista (retórico, narrativo, estruturalista); outras ciências humanas, como a psicologia e a sociologia foram igualmente utilizadas. A tudo isto podem aplicar as recomendações dadas aos membros da Comissão Bíblica por Leão XIII: “Que eles não considerem alheio ao seu campo nada do que a investigação industriosa dos modernos tiver encontrado de novo; pelo contrário, que eles tenham o espírito alerta para adotar sem demora o que cada momento traz de útil à exegese bíblica (EB, 140). O estudo dos condicionamentos humanos da palavra de Deus deve ser prosseguido com um interesse incessantemente renovado”22. Entretanto, já que Deus na Sagrada Escritura falou através de homens e de modo humano, deve o intérprete da Sagrada Escritura, para bem entender o que Deus nos quis transmitir, investigar atentamente o que foi que os hagiógrafos de fato quiseram dar a entender e por suas palavras aprouve a Deus manifestar. Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, deve-se levar em conta, entre outras coisas, também os gêneros literários. Pois a verdade é apresentada e expressa de maneiras bem diferentes nos textos de um modo ou outro históricos, ou proféticos, ou poéticos, bem como em outras modalidades de expressão. Ora, é preciso que o intérprete pesquise o sentido que, em determinadas circunstâncias, o hagiógrafo, conforme a situação de seu tempo e de sua cultura, quis exprimir e exprimiu por meio 22 A interpretação da Bíblia na Igreja, 8. de gêneros literários então em uso. Pois, para corretamente entender aquilo que o autor sacro haja intencionado afirmar por escrito, é necessário levar devidamente em conta tanto as nossas maneiras comuns e espontâneas de pensar, falar e contar, as quais já eram correntes no tempo do hagiógrafo, como as que costumavam empregar-se no intercâmbio humano daquelas eras. Mas como a Sagrada Escritura deve ser também lida e interpretada naquele mesmo Espírito em que foi escrita, para bem captar o sentido dos textos sagrados, devese atender com não menor diligência ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, levada em conta a Tradição viva da Igreja toda e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar esforçadamente dentro destas diretrizes para mais aprofundadamente entender e expor o sentido da Sagrada Escritura, a fim de que, por seu trabalho de certo modo preparatório amadureça o julgamento da Igreja. Pois tudo o que concerne à maneira de interpretar a Escritura está sujeito em última instância ao juízo da Igreja, que exerce o mandato e ministério divino de guardar e interpretar a palavra de Deus23. O documento Verbum Domini afirma: Em primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefícios que a exegese histórico-crítica e os outros métodos de análise do texto, desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para a vida da Igreja24. Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a estes métodos é imprescindível e está ligada ao realismo da encarnação: “Esta necessidade é a consequência do princípio cristão formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbum caro factum est. O facto histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e, por isso, deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria25. Por isso, o estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado destes métodos de pesquisa (VD 32). O Magistério vivo da Igreja, ao qual compete “o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição”26, interveio com sapiente equilíbrio relativamente à justa posição a tomar face à introdução dos novos métodos de análise histórica. Refiro-me, de modo particular, às encíclicas Providentissimus Deus do Papa Leão XIII e Divino afflante Spiritu do Papa Pio XII. O meu venerável predecessor João Paulo II recordou a importância destes documentos para a exegese e a teologia, por ocasião da celebração do centenário e cinquentenário respectivamente da sua publicação27. A intervenção do Papa Leão XIII teve o mérito de proteger a interpretação católica da Bíblia dos ataques do racionalismo, sem contudo se refugiar num sentido espiritual separado 23 DV 12. A interpretação da Bíblia na Igreja, Ench. Vat. 13, 2846-3150. 25 P.P. Bento XVI, 14.10.2008. Cf. Propositio 25. 26 DV 10. 27 P.P. João Paulo II, 23.4.1993, AAS 86 (1994), 232-243. 24 da história. Não desprezava a crítica científica; desconfiava-se somente “das opiniões preconcebidas que pretendem fundar-se sobre a ciência mas, na realidade, fazem astuciosamente sair a ciência do seu campo”28. Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se perante os ataques dos adeptos duma exegese chamada mística, que recusava qualquer abordagem científica. Com grande sensibilidade, a Encíclica Divino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de uma dicotomia entre a “exegese científica” para o uso apologético e a “interpretação espiritual reservada ao uso interno”, afirmando, pelo contrário, quer o “alcance teológico do sentido literal metodicamente definido”, quer a pertença da “determinação do sentido espiritual (…) ao campo da ciência exegética”29. De tal modo ambos os documentos recusam “a ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisa científica e a visão da fé, entre o sentido literal e o sentido espiritual”30. Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no documento de 1993 da Pontifícia Comissão Bíblica: “No seu trabalho de interpretação, os exegetas católicos jamais devem esquecer que interpretam a Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que distinguiram as fontes, definiram as formas ou explicaram os processos literários. O objetivo do seu trabalho só está alcançado quando tiverem esclarecido o significado do texto bíblico como Palavra atual de Deus31 (VD 33). A partir deste horizonte, podem-se apreciar melhor os grandes princípios da interpretação próprios da exegese católica expressos pelo Concílio Vaticano II, particularmente na Constituição dogmática Dei Verbum: “Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras”32. O Concílio, por um lado, sublinha, como elementos fundamentais para identificar o significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos gêneros literários e a contextualização; por outro, devendo a Escritura ser interpretada no mesmo Espírito em que foi escrita, a Constituição dogmática indica três critérios de base para se respeitar a dimensão divina da Bíblia: 1) interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto hoje chama-se exegese canônica; 2) ter presente a Tradição viva de toda a Igreja; 3) observar a analogia da fé. “Somente quando se observam os dois níveis metodológicos, histórico-crítico e teológico, é que se pode falar de uma exegese teológica, de uma exegese adequada a este Livro”33. Os Padres sinodais afirmaram, justamente, que o fruto positivo produzido pelo uso da investigação histórico-crítica moderna é inegável. Mas, enquanto a exegese acadêmica atual, mesmo católica, trabalha a alto nível no que se refere à metodologia 28 Ibid. AAS 86 (1994), 235. Ibid. AAS 86 (1994), 235. 30 Ibid. AAS 86 (1994), 236. 31 A interpretação da Bíblia na Igreja, Ench. Vat. 13, 3065. 32 DV 12. 33 P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 25. 29 histórico-crítica, incluindo as suas mais recentes integrações, é forçoso exigir um estudo análogo da dimensão teológica dos textos bíblicos, para que progrida o aprofundamento segundo os três elementos indicados pela Constituição dogmática Dei Verbum (VD 34). A consequência da ausência do segundo nível metodológico (uma hermenêutica da fé) é que se criou um fosso profundo entre exegese científica e lectio divina. E precisamente daqui nasce às vezes uma forma de perplexidade na própria preparação das homilias34. Além disso, há que assinalar que tal dualismo produz às vezes incerteza e pouca solidez no caminho de formação intelectual mesmo de alguns candidatos aos ministérios eclesiais35. Enfim, “onde a exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a alma da teologia e, vice-versa, onde a teologia não é essencialmente interpretação da Escritura na Igreja, esta teologia já não tem fundamento”36. Portanto, é necessário voltar decididamente a considerar com mais atenção as indicações dadas pela Constituição dogmática Dei Verbum a este propósito (VD 35). P.C.B, O povo judaico e a sua Sagrada Escritura na Bíblia cristã, 24 maio 2001. Este documento estuda a relação do Antigo e do Novo Testamento. Ele mostra que a interpretação cristã do Antigo Testamento, ainda que seja diferente da interpretação do judaismo, é uma interpretação possível e legítima dos textos. O próprio Jesus mostrou a plenitude do sentido das Escrituras, manifestando que existe uma continuidade, descontinuidade e um progresso entre o Novo e Antigo Testamento (cf. 64). Sem o Antigo Testamento o Novo Testamento seria um livro, que não pode ser decifrado como uma planta sem raízes condenado a secar (cf. 84). A economia do Antigo Testamento estava ordenada principalmente para preparar a vinda de Cristo, redentor de todos, e de seu Reino Messiânico, para anunciála profeticamente (cf. Lc 24,44; Jo 5,39; 1 Pe 1,10) e dá-la a conhecer através de várias figuras (cf. 1 Cor 10,11). Os livros do Antigo Testamento, em conformidade com a condição do gênero humano dos tempos anteriores à salvação realizada por Cristo, manifestam a todos o conhecimento de Deus e do homem e os modos pelos quais o justo e misterioso Deus trata com os homens. Estes livros, embora contenham também algumas coisas imperfeitas e transitórias manifestam, contudo, a verdadeira pedagogia divina. Por isto, devem ser devotamente recebidos pelos cristãos esses livros que exprimem um sentido vivo de Deus e contêm sublimes ensinamentos acerca de Deus e 34 P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 25. P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 27. 36 P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 25. 35 uma salutar sabedoria concernente à vida do homem e admiráveis tesouros de preces, nos quais enfim está latente o mistério de nossa salvação. Deus, pois, inspirador e autor dos livros de ambos os Testamentos, de tal modo dispôs sabiamente, que o Novo estivesse latente no Antigo e o Antigo no Novo se aclarasse. Com efeito, embora Cristo tenha estabelecido uma Nova Aliança em seu sangue (cf. Lc 22,20; 1 Cor 11,25), contudo, os livros todos do Antigo Testamento, recebidos na pregação evangélica, obtêm e manifestam seu sentido completo no Novo Testamento (cf. Mt 5,17; Lc 24,27; Rom 16,25-26; 2 Cor 3,14-16), e por sua vez o iluminam e explicam (DV 15-16). P.C.B, Bíblia e Moral, 11 maio 2008: Este documento quer mostrar que para os cristãos a Sagrada Escritura é não somente a fonte da revelação e o fundamento da fé, mas também um ponto irrenunciável de referência para a moral. Os cristãos são convencidos que encontram na Bíblia indicações e normas para o agir reto e, por conseguinte, o caminho para a plenitude da vida. O documento quer colocar a moral cristã debaixo do horizonte amplo da antropologia e teologia bíblicas e dar respostas ou elementos de respostas para problemas e situações morais difíceis. A Sagrada Teologia apoia-se, como em perene fundamento, na palavra escrita de Deus juntamente com a Sagrada Tradição, e nesta mesma palavra se fortalece firmíssimamente e sempre se remoça perscrutando à luz da fé toda a verdade encerrada no mistério de Cristo. Ora, as Sagradas Escrituras contêm a palavra de Deus e, porque inspiradas, são verdadeiramente palavras de Deus; por isto, o estudo das Sagradas Páginas seja como que a alma da Sagrada Teologia. Da mesma palavra da Sagrada Escritura também se nutre salutarmente e santamente fortalece o ministério da palavra, a saber, a pregação pastoral, a catequese e toda a instrução cristã, na qual deve ter lugar de destaque a homilia litúrgica (DV 24). “A escuta da Palavra de Deus leva-nos em primeiro lugar a prezar a exigência de viver segundo esta lei “escrita no coração” (cf. Rm 2, 15; 7, 23)37 (VD 9). Bento XVI, Verbum Domini, 30 set 2010: Com este documento o Papa Bento XVI deseja “indicar algumas linhas fundamentais para uma redescoberta, na vida da Igreja, da Palavra divina, fonte de 37 Bíblia e Moral, 11.5.2008, 13,32,109. constante renovação, com a esperança de que a mesma se torne cada vez mais o coração de toda a actividade eclesial” (VD 1). Um conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em palavras humanas é, sem dúvida, o de inspiração. Também aqui se pode sugerir uma analogia: assim como o Verbo de Deus Se fez carne por obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, assim também a Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do mesmo Espírito. A Sagrada Escritura é “Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito de Deus”38. Deste modo se reconhece toda a importância do autor humano que escreveu os textos inspirados e, ao mesmo tempo, do próprio Deus como verdadeiro autor. Daqui se vê com toda a clareza – lembraram os Padres sinodais – como o tema da inspiração é decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua correta hermenêutica39, que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi escrita40. Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a Escritura como objeto de curiosidade histórica e não como obra do Espírito Santo, na qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua presença na história. Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como ligado com o tema da inspiração esteja também o tema da verdade das Escrituras41. Por isso, um aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior compreensão da verdade contida nos livros sagrados. Como indica a doutrina conciliar sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: “E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras”. Por isso, “toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as boas obras (2 Tim 3,16-17)”42. Não há dúvida que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e verdade como dois conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas Escrituras. No entanto, deve-se reconhecer a necessidade atual de um condigno 38 DV 21. Cf. Propositiones 5.12. 40 Cf. DV 12. 41 Cf. Propositio 12. 42 DV 11. 39 aprofundamento destas realidades, para se responder melhor às exigências relativas à interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza. Nesta perspectiva, desejo vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a ciência bíblica e para a vida espiritual dos fiéis (VD 19). CONCLUSÃO Os documentos tratados nos mostram a preocupação do Magistério de explicar que a Sagrada Escritura é Palavra de DEUS expressa em palavras humanas. Quanto mais compreendemos este mistério, que podemos chamar a Cristologia da Sagrada Escritura, tanto mais compreenderemos o sentido verdadeiro da Bíblia. A constituição dogmática Dei Verbum fez uma contribuição importantíssima para este tema. Peçamos a Maria, a Mãe do Verbo, introduzir-nos sempre mais nas escuta fiel da Palavra de Deus. Os Padres sinodais declararam que o objetivo fundamental da XII Assembleia foi “renovar a fé da Igreja na Palavra de Deus”; por isso é necessário olhar para uma pessoa em Quem a reciprocidade entre Palavra de Deus e fé foi perfeita, ou seja, para a Virgem Maria, “que, com o seu sim à Palavra da Aliança e à sua missão, realiza perfeitamente a vocação divina da humanidade”43. A realidade humana, criada por meio do Verbo, encontra a sua figura perfeita precisamente na fé obediente de Maria. Desde a Anunciação ao Pentecostes, vemo-La como mulher totalmente disponível à vontade de Deus. É a Imaculada Conceição, Aquela que é “cheia de graça” de Deus (cf. L c 1, 28), incondicionalmente dócil à Palavra divina (cf. L c 1, 38). A sua fé obediente face à iniciativa de Deus plasma cada instante da sua vida. Virgem à escuta, vive em plena sintonia com a Palavra divina; conserva no seu coração os acontecimentos do seu Filho, compondo-os por assim dizer num único mosaico (cf. L c 2, 19.51)44. No nosso tempo, é preciso que os fiéis sejam ajudados a descobrir melhor a ligação entre Maria de Nazaré e a escuta fiel da Palavra divina. Exorto também os estudiosos a aprofundarem ainda mais a relação entre mariologia e teologia da Palavra. Daí poderá vir grande benefício tanto para a vida espiritual como para os estudos 43 44 Propositio 55. Cf. Bento XVI, Sacramentum caritatis (22 de fevereiro de 2007), 33. teológicos e bíblicos. De fato, quando a inteligência da fé olha um tema à luz de Maria, coloca-se no centro mais íntimo da verdade cristã. Na realidade, a encarnação do Verbo não pode ser pensada prescindindo da liberdade desta jovem mulher que, com o seu assentimento, coopera de modo decisivo para a entrada do Eterno no tempo. Ela é a figura da Igreja à escuta da Palavra de Deus que nela Se fez carne. Maria é também símbolo da abertura a Deus e aos outros; escuta ativa, que interioriza, assimila, na qual a Palavra se torna forma de vida. Nesta ocasião, desejo chamar a atenção para a familiaridade de Maria com a Palavra de Deus. Isto transparece com particular vigor no Magnificat. Aqui, em certa medida, vê-se como Ela Se identifica com a Palavra, e nela entra; neste maravilhoso cântico de fé, a Virgem exalta o Senhor com a sua própria Palavra: “O Magnificat – um retrato, por assim dizer, da sua alma – é inteiramente tecido de fios da Sagrada Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus. Desta maneira se manifesta que Ela Se sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus, dela sai e a ela volta com naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se Palavra d‟Ela, e a sua palavra nasce da Palavra de Deus. Além disso, fica assim patente que os seus pensamentos estão em sintonia com os de Deus, que o d‟Ela é um querer juntamente com Deus. Vivendo intimamente permeada pela Palavra de Deus, Ela pôde tornar-Se mãe da Palavra encarnada45. Além disso, a referência à Mãe de Deus mostra-nos como o agir de Deus no mundo envolve sempre a nossa liberdade, porque, na fé, a Palavra divina transformanos. Também a nossa ação apostólica e pastoral não poderá jamais ser eficaz, se não aprendermos de Maria a deixar-nos plasmar pela ação de Deus em nós: A atenção devota e amorosa à figura de Maria, como modelo e arquétipo da fé da Igreja, é de importância capital para efetuar também nos nossos dias uma mudança concreta de paradigma na relação da Igreja com a Palavra, tanto na atitude de escuta orante como na generosidade do compromisso em prol da missão e do anúncio46. Contemplando na Mãe de Deus uma vida modelada totalmente pela Palavra, descobrimo-nos também nós chamados a entrar no mistério da fé, pela qual Cristo vem habitar na nossa vida. Como nos recorda Santo Ambrósio, cada cristão que crê, em certo sentido, concebe e gera em si mesmo o Verbo de Deus: se há uma só Mãe de Cristo 45 46 Bento XVI, DEUS caritas est (25 de dezembro de 2005), 41. Propositio 55. segundo a carne, segundo a fé, porém, Cristo é o fruto de todos47. Portanto, o que aconteceu em Maria pode voltar a acontecer em cada um de nós diariamente na escuta da Palavra e na celebração dos Sacramentos (VD 27-28). ABSTRACT Fifty years after the opening of the Second Vatican Council, we must admit that we know very little about the conciliar documents. This article wants to contribute towards a better understanding of the dogmatic Constitution on Divine Revelation Dei Verbum, presenting the preparation and the repercussions of this document. Using some of the affirmations of the Apostolic Exhortation of Pope Benedict XVI on the Word of God in the life and mission of the Church, Verbum Domini (September 30, 2010) we wish to find the central message of the document Dei Verbum of the Council. In order to see how this document was prepared by the documents of the Magisterium before the Council, this article wants to show what was the preoccupation of the Magisterium concerning Sacred Scripture which was manifest in the documents on the Bible before the Council, how this preoccupation was accepted by the Council, how the dogmatic Constitution Dei Verbum responded to this preoccupation, and how the post-conciliar documents were influenced by the teaching of the Council. Key Words: Vatican Council II, dogmatic Constitution Dei Verbum, central doctrine of Dei Verbum. Abreviações: VD = Verbum Domini. DV = Dei Verbum. PL = Migne, Patrologia Latina. EB = Enchiridion Biblicum. Ench. Vat. = Enchiridion Vaticanum. P.C.B. = Pontifícia Comissão Bíblica. SC = Escritores Cristãos. AAS = Acta Apostolicae Sedis. 47 Cf. Expositio Evangelii secundum Lucam 2,19: PL 15, 1559-1560.