A DEI VERBUM,
SUA PREPARAÇÃO E REPERCUSSÃO
Pe. Paulus Seeanner, ORC1
Resumo
Cinquenta anos depois da abertura do Concílio Vaticano II devemos admitir que
conhecemos muito pouco os seus documentos. Este artigo quer contribuir para um
melhor conhecimento da Constituição dogmática sobre a Revelação divina Dei Verbum,
apresentando a preparação e a repercussão deste documento. A partir de algumas
afirmações do Papa Bento XVI na Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Palavra de
Deus na vida e na missão da Igreja Verbum Domini (30.9.2010) queremos encontrar a
afirmação central do documento Dei Verbum para ver como esta doutrina foi preparada
pelos documentos do magistério antes do Concílio. O artigo quer mostrar qual era a
preocupação do magistério acerca da Sagrada Escritura que se manifesta nos
documentos anteriores ao Concílio sobre a Bíblia, como esta preocupação foi acolhida
no Concílio, como a Constituição dogmática Dei Verbum respondeu a esta preocupação,
e como os documentos depois do Concílio foram marcados pelo seu ensinamento.
Palavras-Chave: Concílio Vaticano II. Constituição dogmática Dei Verbum. Doutrina
central da Dei Verbum.
Pode-se afirmar que, a partir do pontificado do Papa Leão XIII, houve
um crescendo de intervenções visando suscitar maior consciência da
importância da Palavra de Deus e dos estudos bíblicos na vida da
Igreja, que teve o seu ponto culminante no Concílio Vaticano II, de
modo especial com a promulgação da Constituição dogmática sobre a
Revelação divina Dei Verbum. Esta representa um marco miliário no
caminho da Igreja (VD 3).
É de conhecimento geral o grande impulso dado pela Constituição
dogmática Dei Verbum à redescoberta da Palavra de Deus na vida da
Igreja, à reflexão teológica sobre a Revelação divina e ao estudo da
Sagrada Escritura. E numerosas foram também as intervenções do
Magistério eclesial sobre estas matérias nos últimos quarenta anos
(VD 3).
1
Mestre em Teologia e professor da Faculdade Católica de Anápolis
INTRODUÇÃO
A constituição dogmática Dei Verbum se originou como sucessora de um
texto, que foi preparado por uma comissão teológica antes do Concílio com o título:
“Sobre as fontes da revelação”. Este esquema foi rejeitado do concílio em novembro de
1962. O Papa João XXIII pediu, por isso, a elaboração de um esquema “Sobre a
revelação divina”. O texto novo foi elaborado por uma comissão mista no início de
1963 e a comissão teológica fez ainda algumas modificações.
O novo texto foi apresentado ao concílio no final de setembro de 1964.
Como resultado da discussão foi feito mais um texto novo. Os padres do concílio
votaram sobre este texto em setembro de 1965. Foram exigidas mais algumas
mudanças. A votação final aconteceu no dia 18 de novembro de 1965.
A ESTRUTURA DA DEI VERBUM - DV
Introdução
Primeiro Capítulo: A Revelação em si mesma (2-6)
Segundo Capítulo: A transmissão da revelação divina (7-10)
Terceiro Capítulo: A Inspiração Divina da Sagrada Escritura e a sua
interpretação (11-13)
Quarto Capítulo: O Antigo Testamento (14-16)
Quinto Capítulo: O Novo Testamento (17-20)
Sexto Capítulo: A Sagrada Escritura na Vida da Igreja (21-26)
A Afirmação central da Dei Verbum
Para compreendermos a afirmação central da DV devemos compreender o
mistério da Sagrada Escritura, que podemos chamar a “Cristologia” da Sagrada
Escritura:
A Palavra de Deus exprime-se em palavras humanas graças à
obra do Espírito Santo. A missão do Filho e a do Espírito Santo
são inseparáveis e constituem uma única economia da salvação.
O mesmo Espírito, que atua na encarnação do Verbo no seio da
Virgem Maria, guia Jesus ao longo de toda a sua missão e é
prometido aos discípulos. O mesmo Espírito, que falou por meio
dos profetas, sustenta e inspira a Igreja no dever de anunciar a
Palavra de Deus e na pregação dos Apóstolos; e, enfim, é este
Espírito que inspira os autores das Sagradas Escrituras (VD 15).
Papa Bento XVI diz no documento Verbum Domini:
... na Igreja, veneramos extremamente as Sagradas Escrituras,
apesar da fé cristã não ser uma «religião do Livro»: o
cristianismo é a «religião da Palavra de Deus», não de «uma
palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo»2. Por
conseguinte a Sagrada Escritura deve ser proclamada, escutada,
lida, acolhida e vivida como Palavra de Deus, no sulco da
Tradição Apostólica de que é inseparável3 (VD 7).
A fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós. A
Palavra divina exprime-se verdadeiramente em palavras humanas (VD 11)."Devendo a
Sagrada Escritura ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita" 4, é
preciso que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se abeirem dela por aquilo
que realmente é: como Palavra de Deus que Se nos comunica através de palavras
humanas (cf. 1 Ts 2, 13). Trata-se de um dado constante e implícito na própria Bíblia:
“Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular, porque jamais uma
profecia foi proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo Espírito Santo é que os
homens santos falaram em nome de Deus” (2 Pd 1, 20-21). Aliás, é precisamente a fé da
Igreja que reconhece na Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo
Agostinho, “não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da
Igreja Católica”5 (VD 29).
“A tradição patrística e medieval, contemplando esta Cristologia da Palavra,
utilizou uma sugestiva expressão: O Verbo abreviou-Se6” (VD 12).
Um conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em
palavras humanas é, sem dúvida, o de inspiração. Também aqui se pode sugerir uma
analogia: assim como o Verbo de Deus Se fez carne por obra do Espírito Santo no seio
da Virgem Maria, assim também a Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do
mesmo Espírito. A Sagrada Escritura é “Palavra de Deus enquanto foi escrita por
inspiração do Espírito de Deus”7. Deste modo se reconhece toda a importância do autor
humano que escreveu os textos inspirados e, ao mesmo tempo, do próprio Deus como
verdadeiro autor.
Daqui se vê com toda a clareza – lembraram os Padres sinodais – como o
2
S. Bernardo, Homilia super missus est, IV,11: PL 183, 86B.
Cf. DV 10.
4
DV 12.
5
Contra epistolam Manichaei quam vocant fundamenti, V,6: PL 42,176.
6
Cf. Origenes, Peri Archon, 1,2,8: SC 252,127-129.
7
DV 9.
3
tema da inspiração é decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua
correta hermenêutica8, que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi
escrita9. Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a
Escritura como objeto de curiosidade histórica e não como obra do Espírito Santo, na
qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua presença na história.
Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como ligado com o
tema da inspiração esteja também o tema da verdade das Escrituras10. Por isso, um
aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior
compreensão da verdade contida nos livros sagrados. Como indica a doutrina conciliar
sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: E assim, como tudo quanto
afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito
Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza,
fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse
consignada nas sagradas Letras. Por isso, “toda a Escritura é divinamente inspirada e
útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja
perfeito, experimentado em todas as boas obras (2 Tim 3,16-17)”11.
Não há dúvida de que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e
verdade como dois conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas
Escrituras. No entanto, deve-se reconhecer a necessidade atual de um condigno
aprofundamento destas realidades, para se responder melhor às exigências relativas à
interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza. Nesta perspectiva, desejo
vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a ciência
bíblica e para a vida espiritual dos fiéis (VD 19).
A partir destas afirmações chegamos à conclusão de que a afirmação central
da DV é a sua doutrina sobre a inspiração e a verdade bíblica: As coisas divinamente
reveladas, que se encerram por escrito e se manifestam na Sagrada Escritura, foram
consignadas sob inspiração do Espírito Santo. Pois a Santa Mãe Igreja, segundo a fé
apostólica, tem como sagrados e canônicos os livros completos tanto do Antigo como
do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, escritos sob a inspiração do
Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2 Tim 3,16; 2 Pd 1,19-21; 3,15-16), eles têm Deus como
autor e nesta sua qualidade foram confiados à Igreja.
8
Cf. Propositiones 5.12.
DV 12.
10
Cf. Propositiones 12.
11
Cf. DV 11.
9
Na redação dos livros sagrados Deus escolheu homens, dos quais se serviu
fazendo-os usar suas próprias faculdades e capacidades, a fim de que, agindo Ele
próprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo e só aquilo que
ele próprio quisesse.
Portanto, já que tudo o que os autores inspirados ou os hagiógrafos afirmam
deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da
Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista da
nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras. Por isso, toda a Escritura
divinamente inspirada é também útil para ensinar, para arguir, para corrigir, para instruir
na justiça: a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda obra boa (2
Tim 3,16-17) (DV 11).
Queremos agora ver, como estas palavras do Concílio foram preparados
pelos documentos do magistério sobre a Sagrada Escritura antes do Concílio, e qual era
a repercussão nos documentos sobre a Sagrada Escritura depois do Concílio Vaticano II.
Os Documentos mais importantes antes e depois da DV
Leão XIII, Providentissimus Deus, 18 nov 1893.
Bento XV, Spiritus Paraclitus, 15 set 1920.
Pio XII, Divino Afflante Spiritu, 30 set 1943.
O Catecismo da Igreja Católica, (51-133), 11 out 1992
P.C.B, A Interpretação da Bíblia na Igreja, 15 abr 1993.
P.C.B, O povo judaico e a sua Sagrada Escritura na Bíblia cristã, 24 maio
2001.
P.C.B, Bíblia e Moral, 11 maio 2008.
Bento XVI, Verbum Domini, 30 set 2010.
1. Preparação
Providentissimus DEUS:
“A Providentissimus Deus, quer sobretudo proteger a interpretação católica
da Bíblia contra os ataques da ciência racionalista”12.
“A Providentissimus Deus apareceu numa época marcada por polêmicas
12
A interpretação da Bíblia na Igreja, 3.
virulentas contra a fé da Igreja. A exegese liberal trazia a estas polêmicas um apoio
importante, porque utilizava todos os recursos das ciências, desde a crítica textual até à
geologia, passando pela filologia, pela crítica literária, pela história das religiões, pela
arqueologia e ainda por outras disciplinas”13.
“Contra as ofensivas da exegese liberal, que apresentava as suas alegações como
conclusões fundadas sobre aquisições da ciência, ter-se-ia podido reagir lançando
anátema sobre a utilização das ciências na interpretação da Bíblia, e ordenando aos
exegetas católicos que se limitassem a uma explicação „espiritual‟ dos textos”. A
Providentissimus Deus não envereda por este caminho. Pelo contrário, a Encíclica
convida insistentemente os exegetas católicos a adquirirem uma verdadeira competência
científica, de modo a superarem os seus adversários no terreno dos mesmos. O primeiro
meio de defesa, diz ela, “encontra-se no estudo das línguas antigas do Oriente, bem
como no exercício da crítica científica” (EB, 118). A Igreja não tem medo da crítica
científica. Ela só teme as opiniões preconcebidas, que têm a presunção de se fundar na
ciência mas que, na realidade, fazem sair sub-repticiamente a ciência do seu domínio14.
Por isso aqui não vale dizer que o Espírito Santo tenha tomado homens
como instrumentos para escrever, como se algum erro tivesse podido escapar não
certamente do autor principal, mas dos escritores inspirados.
Com efeito, ele mesmo assim os excitou e moveu a escrever com a sua
virtude sobrenatural, assim os assistiu enquanto escreviam de modo que todas aquelas
coisas e aquelas somente que ele queria, as concebessem retamente com a mente, e
tivessem a vontade de escrevê-las fielmente e as exprimissem de maneira apta com
infalível verdade: do contrário, não seria ele mesmo o autor de toda a Sagrada Escritura
(EB 125).
É totalmente ilícito, ou restringir a inspiração a algumas partes somente da
Sagrada Escritura, ou conceder que o mesmo autor sagrado tenha errado. Não se pode
tolerar a maneira de agir daqueles que, para desfazer-se das objeções (contra a verdade
da Escritura), não hesitam em afirmar que a inspiração divina se refere às coisas de fé e
moral, e nada mais ... A inspiração divina é incompatível com qualquer erro: por sua
essência, ela não só exclui todo erro, mas o exclui com a mesma necessidade com a qual
DEUS, suma Verdade, não é autor de erro algum. Esta é a fé antiga e o costume da
Igreja (EB 124).
13
14
A interpretação da Bíblia na Igreja, 3.
A interpretação da Bíblia na Igreja, 4.
Spiritus Paraclitus:
A Enciclica Spiritus Paraclitus de Bento XV, publicada em 1920, por
ocasião do XV centenário da morte de São Jerônimo, de conformidade com o antigo
doutor sublinha que o influxo inspirador, enquanto impede o escritor sagrado de ensinar
o erro, não cria obstáculo algum à expressão própria do seu gênio e da sua cultura. E,
quanto à natureza da inspiração, descreve-a do ponto de vista da dinâmica psicológica
do escritor, na linha da Providentissimus Deus:
Conferida a graça, Deus dá antecipadamente uma luz à mente do
escritor para propor aos homens a verdade como “da parte da pessoa
de Deus” (São Jerônimo); e, além disso, move a sua vontade e a
impele a escrever; e o assiste, por fim, de modo especial e contínuo,
até que tenha composto o livro (EB 448).
Ora, alguns modernos não se preocupam em nada com essas
prescrições e limites; distinguindo na Sagrada Escritura um duplo
elemento - um principal e religioso e outro secundário e profano -,
eles aceitam o fato que a inspiração se revele em todas as proposições
e também em todas as palavras da Bíblia, mas restringem-nas e as
limitam aos efeitos, a partir da imunidade dos erros e da absoluta
veracidade limitada ao elemento principal e religioso. Segundo eles,
Deus não se preocupa e não ensina pessoalmente na Escritura senão o
que diz respeito à religião; o restante comunicou por meio das ciências
e não tem outra serventia, para a doutrina revelada, do que servir de
invólucro exterior à verdade divina. Deus permite que isso seja assim,
confiando nas débeis faculdades do escritor. Por isso não há nada de
estranho se a Bíblia apresenta, nas questões físicas, históricas e em
outras com temáticas semelhantes, passagens frequentes que não é
possível conciliar com os atuais progressos das ciências. Alguns
sustentam que essas opiniões errôneas não contrastam com as
prescrições do nosso predecessor. Acaso não declarou ele que em
matéria de fenômenos naturais o autor sagrado falou segundo as
aparências exteriores, suscetíveis portanto de engano? (EB 454).
Divino Afflante Spiritu:
A Divino afflante Spiritu preocupa-se mais com defender a
interpretação católica contra os ataques que se opõem à utilização da
ciência, por parte dos exegetas, e que querem impor uma interpretação
não científica, chamada «espiritual» das Sagradas Escrituras15.
A Divino afflante Spiritu foi publicada pouco tempo depois de uma
polêmica muito diferente, surgida sobretudo na Itália, contra o estudo
científico da Bíblia. Um opúsculo anônimo tinha sido largamente
difundido, para prevenir contra o que ele descrevia como «um
15
A interpretação da Bíblia na Igreja, 3.
gravíssimo perigo para a Igreja e para as almas: o sistema críticocientífico no estudo e na interpretação da Sagrada Escritura, os seus
desvios funestos e as suas aberrações16.
Na Divino afflante Spiritu, Pio XII evitou deliberadamente enveredar
por este caminho. Pelo contrário, ele reivindicou a estreita união das
duas iniciativas, por um lado salientando o alcance teológico do
sentido literal, metodologicamente definido (EB, 251), por outro lado,
afirmando que, para poder ser reconhecido como sentido de um texto
bíblico, o sentido espiritual deve apresentar garantias de autenticidade.
Uma simples inspiração subjetiva não é suficiente. Deve-se poder
mostrar que se trata de um sentido querido por Deus mesmo, de um
significado espiritual «dado por Deus» ao texto inspirado (EB, 552553). A determinação do sentido espiritual é da competência, pois,
também ela, do domínio da ciência exegética17.
A relação estreita que une os textos bíblicos inspirados no mistério da
Encarnação foi expressa pela Encíclica Divino afflante Spiritu nos
termos seguintes: Como a Palavra substancial de Deus se fez
semelhante aos homens em tudo, exceto no pecado, assim também a
palavra de Deus, expressa em linguagem humana, se assemelhou em
tudo à linguagem humana, exceto no erro (EB, 559).
Retomada quase literalmente pela Constituição conciliar Dei Verbum
(n. 13), esta afirmação põe em destaque um paralelismo rico de
significado18.
Por conseguinte, as duas Encíclicas solicitam os exegetas católicos a
permanecerem em plena harmonia com o mistério da Encarnação,
mistério de união do divino e do humano, numa existência histórica
inteiramente determinada19.
A Divino afflante Spiritu, como se sabe, recomendou particularmente
aos exegetas o estudo dos gêneros literários utilizados nos Livros
Sagrados, chegando a dizer que a exegese católica deve adquirir a
convicção de que esta parte da sua tarefa não pode ser negligenciada,
sem grave dano para a exegese católica (EB, 560). ...Nenhum aspecto
humano da linguagem pode ser negligenciado. Os progressos recentes
das investigações linguísticas, literárias e hermenêuticas levaram a
exegese bíblica a juntar, ao estudo dos gêneros literários, muitos
outros pontos de vista (retórico, narrativo, estruturalista); outras
ciências humanas, como a psicologia e a sociologia foram igualmente
utilizadas. A tudo isto podem aplicar as recomendações dadas aos
membros da Comissão Bíblica por Leão XIII: Que eles não
considerem alheio ao seu campo nada do que a investigação
industriosa dos modernos tiver encontrado de novo; pelo contrário,
que eles tenham o espírito alerta para adotar sem demora o que cada
momento traz de útil à exegese bíblica (EB, 140). O estudo dos
condicionamentos humanos da palavra de Deus deve ser prosseguido
16
A interpretação da Bíblia na Igreja, 3.
A interpretação da Bíblia na Igreja, 4.
18
A interpretação da Bíblia na Igreja, 6.
19
A interpretação da Bíblia na Igreja, 7.
17
com um interesse incessantemente renovado20.
Contudo, este estudo não é suficiente. Para respeitar a coerência da fé
da Igreja e da inspiração da Escritura, a exegese católica deve estar
atenta a não se limitar aos aspectos humanos dos textos bíblicos. É
preciso que também ajude o povo cristão a perceber mais nitidamente
nestes textos a palavra de Deus, de maneira a acolherem-na melhor
para viverem plenamente em comunhão com Deus. Para este fim, é
evidentemente necessário que o próprio exegeta perceba nos textos a
palavra divina, e isto só lhe é possível se o seu trabalho intelectual for
alimentado por um impulso de vida espiritual. Faltando este
fundamento, a investigação exegética permanece incompleta; perde de
vista a sua finalidade principal e limita-se a tarefas secundárias. Pode
mesmo tornar-se uma espécie de evasão. O estudo científico apenas
dos aspectos humanos dos textos pode fazer esquecer que a palavra de
Deus convida cada um a sair de si mesmo para viver na fé e na
caridade. A encíclica Providentissimus Deus recordava, a este
propósito, o caráter particular dos Livros Sagrados e a exigência que
daí resulta para a sua interpretação: «Os Livros Sagrados - declarava
ela - não podem ser comparados com os escritos ordinários mas, dado
que foram ditados pelo próprio Espírito Santo e têm um conteúdo de
extrema gravidade, misterioso e difícil sob muitos aspectos,
precisamos sempre, para os compreender e os explicar, da vinda deste
mesmo Espírito Santo, ou seja, da sua luz e da sua graça, que é
evidentemente necessário pedir numa humilde oração e conservar
mediante uma vida consagrada» (EB, 89). Numa fórmula mais breve,
tomada de Santo Agostinho, a Divino afflante Spiritu exprimia a
mesma exigência: Orent ut intellegant! (EB, 569)21.
Partindo do fato de que o hagiógrafo na composição do livro sagrado é
o organon ou o instrumento do Espírito Santo, mas instrumento vivo e
dotado de inteligência, fazem observar precisamente que este
instrumento, impelido pela moção divina, usa de tal forma as suas
faculdades e as suas forças que todos facilmente podem verificar pelo
livro, que é obra sua, a índole própria de cada um, os seus
lineamentos, as suas singulares características» (EB 556).
O primeiro e maior cuidado de Leão XIII foi expor a doutrina relativa à
verdade dos Livros Sagrados e defendê-la dos ataques contrários. Por isso em graves
termos declarou que não há erro absolutamente nenhum quando o hagiógrafo falando de
coisas físicas "se atém ao que aparece aos sentidos" como escreveu o Angélico,
exprimindo-se "ou de modo metafórico, ou segundo o modo comum de falar usado
naqueles tempos e usado ainda hoje em muitos casos na conversação ordinária mesmo
pelos maiores sábios." De fato "não era intenção dos escritores sagrados, ou melhor são palavras de santo Agostinho do Espírito Santo que por eles falava, ensinar aos
homens essas coisas - isto é, a íntima constituição do mundo visível - que nada
20
21
A interpretação da Bíblia na Igreja, 8.
A interpretação da Bíblia na Igreja, 9.
importam para a salvação". Esse princípio "deverá aplicar-se às ciências afins,
especialmente à história", isto é, refutando "de modo semelhante os sofismas dos
adversários" e defendendo das suas objeções a verdade histórica da Sagrada Escritura.
Nem pode ser taxado de erro o escritor sagrado, "se aos copistas escaparam algumas
inexatidões na transcrição dos códices" ou "se é incerto o verdadeiro sentido de algum
passo". Enfim é absolutamente vedado "coarctar a inspiração unicamente a algumas
partes da Sagrada Escritura ou conceder que o próprio escritor sagrado errou", pois que
a divina inspiração "de sua natureza não só exclui todo erro, mas exclui-o e repele-o
com a mesma necessidade com que Deus, suma verdade, não pode ser autor de nenhum
erro. Esta é a fé antiga e constante da Igreja".
“Esta doutrina, pois, que nosso predecessor Leão XIII com tanta gravidade
expôs, propo-mo-la nós também com nossa autoridade e a inculcamos, para que seja de
todos escrupulosamente professada” (EB 539s).
2. Repercussão
A interpretação da Bíblia na Igreja, 15 abr 1993.
Este documento da Pontifícia Comissão Bíblica- P.C.B estuda os diferentes
métodos de interpretação da Bíblia, cumprindo deste modo o que a Dei Verbum indicou:
“Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira
humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos,
deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que
aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras” (DV 12).
Diz Papa João Paulo II no seu discurso sobre a interpretação da Bíblia na
Igreja:
A Divino afflante Spiritu, como se sabe, recomendou particularmente
aos exegetas o estudo dos gêneros literários utilizados nos Livros
Sagrados, chegando a dizer que a exegese católica deve “adquirir a
convicção de que esta parte da sua tarefa não pode ser negligenciada,
sem grave dano para a exegese católica” (EB, 560).
Esta recomendação parte da solicitude por compreender o sentido dos textos
com toda a exatidão e precisão possíveis e, portanto, no seu contexto cultural histórico.
Uma idéia falsa de Deus e da Encarnação leva um certo número de cristãos a tomar uma
orientação oposta. Eles têm a tendência a crer que, sendo Deus o Ser absoluto, cada uma
das suas palavras tem um valor absoluto, independente de todos os condicionamentos da
linguagem humana. Não há motivos, segundo eles, para estudar estes condicionamentos
para fazer distinções que relativizariam o alcance das palavras. Mas isto é iludir-se e
recusar, na realidade, os mistérios da inspiração da Sagrada Escritura e da Encarnação,
aderindo a uma falsa noção do Absoluto. O Deus da Bíblia não é um Ser absoluto que,
destruindo tudo aquilo que toca, suprimiria todas as diferenças e todas as nuances. Ele é,
pelo contrário, o Deus criador, que criou a admirável variedade dos seres “cada um
segundo a sua espécie”, como diz e repete a narração do Gênesis (cf. Gen, 1). Longe de
destruir as diferenças, Deus respeita-as e valoriza-as (cf. 1 Cor 12,18.24.28). Quando se
exprime em linguagem humana, Ele não dá a cada expressão um valor uniforme, mas
utiliza-lhe as nuances possíveis com uma flexibilidade extrema, e aceita-lhe igualmente
as limitações. É o que torna a tarefa dos exegetas tão complexa, tão necessária e tão
apaixonante! Nenhum aspecto humano da linguagem pode ser negligenciado. Os
progressos recentes das investigações linguísticas, literárias e hermenêuticas levaram a
exegese bíblica a juntar, ao estudo dos gêneros literários, muitos outros pontos de vista
(retórico, narrativo, estruturalista); outras ciências humanas, como a psicologia e a
sociologia foram igualmente utilizadas. A tudo isto podem aplicar as recomendações
dadas aos membros da Comissão Bíblica por Leão XIII: “Que eles não considerem
alheio ao seu campo nada do que a investigação industriosa dos modernos tiver
encontrado de novo; pelo contrário, que eles tenham o espírito alerta para adotar sem
demora o que cada momento traz de útil à exegese bíblica (EB, 140). O estudo dos
condicionamentos humanos da palavra de Deus deve ser prosseguido com um interesse
incessantemente renovado”22.
Entretanto, já que Deus na Sagrada Escritura falou através de homens e de
modo humano, deve o intérprete da Sagrada Escritura, para bem entender o que Deus
nos quis transmitir, investigar atentamente o que foi que os hagiógrafos de fato
quiseram dar a entender e por suas palavras aprouve a Deus manifestar.
Para descobrir a intenção dos hagiógrafos, deve-se levar em conta, entre
outras coisas, também os gêneros literários. Pois a verdade é apresentada e expressa de
maneiras bem diferentes nos textos de um modo ou outro históricos, ou proféticos, ou
poéticos, bem como em outras modalidades de expressão. Ora, é preciso que o
intérprete pesquise o sentido que, em determinadas circunstâncias, o hagiógrafo,
conforme a situação de seu tempo e de sua cultura, quis exprimir e exprimiu por meio
22
A interpretação da Bíblia na Igreja, 8.
de gêneros literários então em uso. Pois, para corretamente entender aquilo que o autor
sacro haja intencionado afirmar por escrito, é necessário levar devidamente em conta
tanto as nossas maneiras comuns e espontâneas de pensar, falar e contar, as quais já
eram correntes no tempo do hagiógrafo, como as que costumavam empregar-se no
intercâmbio humano daquelas eras.
Mas como a Sagrada Escritura deve ser também lida e interpretada naquele
mesmo Espírito em que foi escrita, para bem captar o sentido dos textos sagrados, devese atender com não menor diligência ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, levada
em conta a Tradição viva da Igreja toda e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar
esforçadamente dentro destas diretrizes para mais aprofundadamente entender e expor o
sentido da Sagrada Escritura, a fim de que, por seu trabalho de certo modo preparatório
amadureça o julgamento da Igreja. Pois tudo o que concerne à maneira de interpretar a
Escritura está sujeito em última instância ao juízo da Igreja, que exerce o mandato e
ministério divino de guardar e interpretar a palavra de Deus23.
O documento Verbum Domini afirma:
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefícios que a exegese
histórico-crítica e os outros métodos de análise do texto,
desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para a vida da
Igreja24. Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a
estes métodos é imprescindível e está ligada ao realismo da
encarnação: “Esta necessidade é a consequência do princípio cristão
formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbum caro factum est. O
facto histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da
salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e, por isso,
deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria25.
Por isso, o estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado
destes métodos de pesquisa (VD 32).
O Magistério vivo da Igreja, ao qual compete “o encargo de
interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida na
Tradição”26, interveio com sapiente equilíbrio relativamente à justa
posição a tomar face à introdução dos novos métodos de análise
histórica. Refiro-me, de modo particular, às encíclicas
Providentissimus Deus do Papa Leão XIII e Divino afflante Spiritu do
Papa Pio XII. O meu venerável predecessor João Paulo II recordou a
importância destes documentos para a exegese e a teologia, por
ocasião da celebração do centenário e cinquentenário respectivamente
da sua publicação27. A intervenção do Papa Leão XIII teve o mérito de
proteger a interpretação católica da Bíblia dos ataques do
racionalismo, sem contudo se refugiar num sentido espiritual separado
23
DV 12.
A interpretação da Bíblia na Igreja, Ench. Vat. 13, 2846-3150.
25
P.P. Bento XVI, 14.10.2008. Cf. Propositio 25.
26
DV 10.
27
P.P. João Paulo II, 23.4.1993, AAS 86 (1994), 232-243.
24
da história. Não desprezava a crítica científica; desconfiava-se
somente “das opiniões preconcebidas que pretendem fundar-se sobre a
ciência mas, na realidade, fazem astuciosamente sair a ciência do seu
campo”28. Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se perante os
ataques dos adeptos duma exegese chamada mística, que recusava
qualquer abordagem científica. Com grande sensibilidade, a Encíclica
Divino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de uma
dicotomia entre a “exegese científica” para o uso apologético e a
“interpretação espiritual reservada ao uso interno”, afirmando, pelo
contrário, quer o “alcance teológico do sentido literal metodicamente
definido”, quer a pertença da “determinação do sentido espiritual (…)
ao campo da ciência exegética”29. De tal modo ambos os documentos
recusam “a ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisa
científica e a visão da fé, entre o sentido literal e o sentido
espiritual”30. Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no
documento de 1993 da Pontifícia Comissão Bíblica: “No seu trabalho
de interpretação, os exegetas católicos jamais devem esquecer que
interpretam a Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que
distinguiram as fontes, definiram as formas ou explicaram os
processos literários. O objetivo do seu trabalho só está alcançado
quando tiverem esclarecido o significado do texto bíblico como
Palavra atual de Deus31 (VD 33).
A partir deste horizonte, podem-se apreciar melhor os grandes
princípios da interpretação próprios da exegese católica expressos pelo
Concílio Vaticano II, particularmente na Constituição dogmática Dei
Verbum: “Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio
dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura,
para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção
o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a
Deus manifestar por meio das suas palavras”32. O Concílio, por um
lado, sublinha, como elementos fundamentais para identificar o
significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos gêneros literários
e a contextualização; por outro, devendo a Escritura ser interpretada
no mesmo Espírito em que foi escrita, a Constituição dogmática indica
três critérios de base para se respeitar a dimensão divina da Bíblia: 1)
interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto
hoje chama-se exegese canônica; 2) ter presente a Tradição viva de
toda a Igreja; 3) observar a analogia da fé. “Somente quando se
observam os dois níveis metodológicos, histórico-crítico e teológico, é
que se pode falar de uma exegese teológica, de uma exegese adequada
a este Livro”33.
Os Padres sinodais afirmaram, justamente, que o fruto positivo produzido
pelo uso da investigação histórico-crítica moderna é inegável. Mas, enquanto a exegese
acadêmica atual, mesmo católica, trabalha a alto nível no que se refere à metodologia
28
Ibid. AAS 86 (1994), 235.
Ibid. AAS 86 (1994), 235.
30
Ibid. AAS 86 (1994), 236.
31
A interpretação da Bíblia na Igreja, Ench. Vat. 13, 3065.
32
DV 12.
33
P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 25.
29
histórico-crítica, incluindo as suas mais recentes integrações, é forçoso exigir um estudo
análogo da dimensão teológica dos textos bíblicos, para que progrida o aprofundamento
segundo os três elementos indicados pela Constituição dogmática Dei Verbum (VD 34).
A consequência da ausência do segundo nível metodológico (uma
hermenêutica da fé) é que se criou um fosso profundo entre exegese
científica e lectio divina. E precisamente daqui nasce às vezes uma
forma de perplexidade na própria preparação das homilias34. Além
disso, há que assinalar que tal dualismo produz às vezes incerteza e
pouca solidez no caminho de formação intelectual mesmo de alguns
candidatos aos ministérios eclesiais35. Enfim, “onde a exegese não é
teologia, a Escritura não pode ser a alma da teologia e, vice-versa,
onde a teologia não é essencialmente interpretação da Escritura na
Igreja, esta teologia já não tem fundamento”36. Portanto, é necessário
voltar decididamente a considerar com mais atenção as indicações
dadas pela Constituição dogmática Dei Verbum a este propósito (VD
35).
P.C.B, O povo judaico e a sua Sagrada Escritura na Bíblia cristã, 24
maio 2001.
Este documento estuda a relação do Antigo e do Novo Testamento. Ele
mostra que a interpretação cristã do Antigo Testamento, ainda que seja diferente da
interpretação do judaismo, é uma interpretação possível e legítima dos textos. O próprio
Jesus mostrou a plenitude do sentido das Escrituras, manifestando que existe uma
continuidade, descontinuidade e um progresso entre o Novo e Antigo Testamento (cf.
64). Sem o Antigo Testamento o Novo Testamento seria um livro, que não pode ser
decifrado como uma planta sem raízes condenado a secar (cf. 84).
A economia do Antigo Testamento estava ordenada principalmente para
preparar a vinda de Cristo, redentor de todos, e de seu Reino Messiânico, para anunciála profeticamente (cf. Lc 24,44; Jo 5,39; 1 Pe 1,10) e dá-la a conhecer através de várias
figuras (cf. 1 Cor 10,11). Os livros do Antigo Testamento, em conformidade com a
condição do gênero humano dos tempos anteriores à salvação realizada por Cristo,
manifestam a todos o conhecimento de Deus e do homem e os modos pelos quais o
justo e misterioso Deus trata com os homens. Estes livros, embora contenham também
algumas coisas imperfeitas e transitórias manifestam, contudo, a verdadeira pedagogia
divina. Por isto, devem ser devotamente recebidos pelos cristãos esses livros que
exprimem um sentido vivo de Deus e contêm sublimes ensinamentos acerca de Deus e
34
P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 25.
P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 27.
36
P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 25.
35
uma salutar sabedoria concernente à vida do homem e admiráveis tesouros de preces,
nos quais enfim está latente o mistério de nossa salvação.
Deus, pois, inspirador e autor dos livros de ambos os Testamentos, de tal
modo dispôs sabiamente, que o Novo estivesse latente no Antigo e o Antigo no Novo se
aclarasse. Com efeito, embora Cristo tenha estabelecido uma Nova Aliança em seu
sangue (cf. Lc 22,20; 1 Cor 11,25), contudo, os livros todos do Antigo Testamento,
recebidos na pregação evangélica, obtêm e manifestam seu sentido completo no Novo
Testamento (cf. Mt 5,17; Lc 24,27; Rom 16,25-26; 2 Cor 3,14-16), e por sua vez o
iluminam e explicam (DV 15-16).
P.C.B, Bíblia e Moral, 11 maio 2008:
Este documento quer mostrar que para os cristãos a Sagrada Escritura é não
somente a fonte da revelação e o fundamento da fé, mas também um ponto
irrenunciável de referência para a moral. Os cristãos são convencidos que encontram na
Bíblia indicações e normas para o agir reto e, por conseguinte, o caminho para a
plenitude da vida.
O documento quer colocar a moral cristã debaixo do horizonte amplo da
antropologia e teologia bíblicas e dar respostas ou elementos de respostas para
problemas e situações morais difíceis.
A Sagrada Teologia apoia-se, como em perene fundamento, na
palavra escrita de Deus juntamente com a Sagrada Tradição, e nesta
mesma palavra se fortalece firmíssimamente e sempre se remoça
perscrutando à luz da fé toda a verdade encerrada no mistério de
Cristo. Ora, as Sagradas Escrituras contêm a palavra de Deus e,
porque inspiradas, são verdadeiramente palavras de Deus; por isto, o
estudo das Sagradas Páginas seja como que a alma da Sagrada
Teologia. Da mesma palavra da Sagrada Escritura também se nutre
salutarmente e santamente fortalece o ministério da palavra, a saber, a
pregação pastoral, a catequese e toda a instrução cristã, na qual deve
ter lugar de destaque a homilia litúrgica (DV 24).
“A escuta da Palavra de Deus leva-nos em primeiro lugar a prezar a
exigência de viver segundo esta lei “escrita no coração” (cf. Rm 2, 15; 7, 23)37 (VD 9).
Bento XVI, Verbum Domini, 30 set 2010:
Com este documento o Papa Bento XVI deseja “indicar algumas linhas
fundamentais para uma redescoberta, na vida da Igreja, da Palavra divina, fonte de
37
Bíblia e Moral, 11.5.2008, 13,32,109.
constante renovação, com a esperança de que a mesma se torne cada vez mais o coração
de toda a actividade eclesial” (VD 1).
Um conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em
palavras humanas é, sem dúvida, o de inspiração. Também aqui se pode sugerir uma
analogia: assim como o Verbo de Deus Se fez carne por obra do Espírito Santo no seio
da Virgem Maria, assim também a Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do
mesmo Espírito. A Sagrada Escritura é “Palavra de Deus enquanto foi escrita por
inspiração do Espírito de Deus”38. Deste modo se reconhece toda a importância do autor
humano que escreveu os textos inspirados e, ao mesmo tempo, do próprio Deus como
verdadeiro autor.
Daqui se vê com toda a clareza – lembraram os Padres sinodais – como o
tema da inspiração é decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua
correta hermenêutica39, que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi
escrita40. Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a
Escritura como objeto de curiosidade histórica e não como obra do Espírito Santo, na
qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua presença na história.
Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como ligado com o
tema da inspiração esteja também o tema da verdade das Escrituras41. Por isso, um
aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior
compreensão da verdade contida nos livros sagrados. Como indica a doutrina conciliar
sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: “E assim, como tudo quanto
afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito
Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza,
fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse
consignada nas sagradas Letras”. Por isso, “toda a Escritura é divinamente inspirada e
útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja
perfeito, experimentado em todas as boas obras (2 Tim 3,16-17)”42.
Não há dúvida que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e
verdade como dois conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas
Escrituras. No entanto, deve-se reconhecer a necessidade atual de um condigno
38
DV 21.
Cf. Propositiones 5.12.
40
Cf. DV 12.
41
Cf. Propositio 12.
42
DV 11.
39
aprofundamento destas realidades, para se responder melhor às exigências relativas à
interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza. Nesta perspectiva, desejo
vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a ciência
bíblica e para a vida espiritual dos fiéis (VD 19).
CONCLUSÃO
Os documentos tratados nos mostram a preocupação do Magistério de
explicar que a Sagrada Escritura é Palavra de DEUS expressa em palavras humanas.
Quanto mais compreendemos este mistério, que podemos chamar a Cristologia da
Sagrada Escritura, tanto mais compreenderemos o sentido verdadeiro da Bíblia. A
constituição dogmática Dei Verbum fez uma contribuição importantíssima para este
tema.
Peçamos a Maria, a Mãe do Verbo, introduzir-nos sempre mais nas escuta
fiel da Palavra de Deus.
Os Padres sinodais declararam que o objetivo fundamental da XII
Assembleia foi “renovar a fé da Igreja na Palavra de Deus”; por isso é necessário olhar
para uma pessoa em Quem a reciprocidade entre Palavra de Deus e fé foi perfeita, ou
seja, para a Virgem Maria, “que, com o seu sim à Palavra da Aliança e à sua missão,
realiza perfeitamente a vocação divina da humanidade”43. A realidade humana, criada
por meio do Verbo, encontra a sua figura perfeita precisamente na fé obediente de
Maria. Desde a Anunciação ao Pentecostes, vemo-La como mulher totalmente
disponível à vontade de Deus. É a Imaculada Conceição, Aquela que é “cheia de graça”
de Deus (cf. L c 1, 28), incondicionalmente dócil à Palavra divina (cf. L c 1, 38). A sua fé
obediente face à iniciativa de Deus plasma cada instante da sua vida. Virgem à escuta,
vive em plena sintonia com a Palavra divina; conserva no seu coração os
acontecimentos do seu Filho, compondo-os por assim dizer num único mosaico (cf. L c
2, 19.51)44.
No nosso tempo, é preciso que os fiéis sejam ajudados a descobrir melhor a
ligação entre Maria de Nazaré e a escuta fiel da Palavra divina. Exorto também os
estudiosos a aprofundarem ainda mais a relação entre mariologia e teologia da Palavra.
Daí poderá vir grande benefício tanto para a vida espiritual como para os estudos
43
44
Propositio 55.
Cf. Bento XVI, Sacramentum caritatis (22 de fevereiro de 2007), 33.
teológicos e bíblicos. De fato, quando a inteligência da fé olha um tema à luz de Maria,
coloca-se no centro mais íntimo da verdade cristã. Na realidade, a encarnação do Verbo
não pode ser pensada prescindindo da liberdade desta jovem mulher que, com o seu
assentimento, coopera de modo decisivo para a entrada do Eterno no tempo. Ela é a
figura da Igreja à escuta da Palavra de Deus que nela Se fez carne. Maria é também
símbolo da abertura a Deus e aos outros; escuta ativa, que interioriza, assimila, na qual a
Palavra se torna forma de vida.
Nesta ocasião, desejo chamar a atenção para a familiaridade de Maria com a
Palavra de Deus. Isto transparece com particular vigor no Magnificat. Aqui, em certa
medida, vê-se como Ela Se identifica com a Palavra, e nela entra; neste maravilhoso
cântico de fé, a Virgem exalta o Senhor com a sua própria Palavra: “O Magnificat – um
retrato, por assim dizer, da sua alma – é inteiramente tecido de fios da Sagrada
Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus. Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus, dela sai e a ela volta com
naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se Palavra d‟Ela, e a sua
palavra nasce da Palavra de Deus. Além disso, fica assim patente que os seus
pensamentos estão em sintonia com os de Deus, que o d‟Ela é um querer juntamente
com Deus. Vivendo intimamente permeada pela Palavra de Deus, Ela pôde tornar-Se
mãe da Palavra encarnada45.
Além disso, a referência à Mãe de Deus mostra-nos como o agir de Deus no
mundo envolve sempre a nossa liberdade, porque, na fé, a Palavra divina transformanos. Também a nossa ação apostólica e pastoral não poderá jamais ser eficaz, se não
aprendermos de Maria a deixar-nos plasmar pela ação de Deus em nós: A atenção
devota e amorosa à figura de Maria, como modelo e arquétipo da fé da Igreja, é de
importância capital para efetuar também nos nossos dias uma mudança concreta de
paradigma na relação da Igreja com a Palavra, tanto na atitude de escuta orante como na
generosidade do compromisso em prol da missão e do anúncio46.
Contemplando na Mãe de Deus uma vida modelada totalmente pela Palavra,
descobrimo-nos também nós chamados a entrar no mistério da fé, pela qual Cristo vem
habitar na nossa vida. Como nos recorda Santo Ambrósio, cada cristão que crê, em certo
sentido, concebe e gera em si mesmo o Verbo de Deus: se há uma só Mãe de Cristo
45
46
Bento XVI, DEUS caritas est (25 de dezembro de 2005), 41.
Propositio 55.
segundo a carne, segundo a fé, porém, Cristo é o fruto de todos47. Portanto, o que
aconteceu em Maria pode voltar a acontecer em cada um de nós diariamente na escuta
da Palavra e na celebração dos Sacramentos (VD 27-28).
ABSTRACT
Fifty years after the opening of the Second Vatican Council, we must admit that we
know very little about the conciliar documents. This article wants to contribute towards
a better understanding of the dogmatic Constitution on Divine Revelation Dei Verbum,
presenting the preparation and the repercussions of this document. Using some of the
affirmations of the Apostolic Exhortation of Pope Benedict XVI on the Word of God in
the life and mission of the Church, Verbum Domini (September 30, 2010) we wish to
find the central message of the document Dei Verbum of the Council. In order to see
how this document was prepared by the documents of the Magisterium before the
Council, this article wants to show what was the preoccupation of the Magisterium
concerning Sacred Scripture which was manifest in the documents on the Bible before
the Council, how this preoccupation was accepted by the Council, how the dogmatic
Constitution Dei Verbum responded to this preoccupation, and how the post-conciliar
documents were influenced by the teaching of the Council.
Key Words: Vatican Council II, dogmatic Constitution Dei Verbum, central doctrine of
Dei Verbum.
Abreviações:
VD = Verbum Domini.
DV = Dei Verbum.
PL = Migne, Patrologia Latina.
EB = Enchiridion Biblicum.
Ench. Vat. = Enchiridion Vaticanum.
P.C.B. = Pontifícia Comissão Bíblica.
SC = Escritores Cristãos.
AAS = Acta Apostolicae Sedis.
47
Cf. Expositio Evangelii secundum Lucam 2,19: PL 15, 1559-1560.
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a dei verbum, sua preparação e repercussão