Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas Amauri Feres Saad Mestrando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado em São Paulo. Resumo: O presente trabalho aborda os parâmetros jurídicos para a precificação de contratações administrativas. Tendo em vista que a legislação determina apenas que as contratações administrativas obedecerão aos preços de mercado, procura-se identificar, com base no regime jurídico-administrativo, um complexo de princípios que sirva de baliza para a análise jurídica dos preços contratados pela Administração Pública (princípios da identidade, globalidade, uniformidade, primazia da realidade, intencionalidade e valor formal das contratações administrativas). Palavras-chave: Contratos administrativos. Preços de mercado. Orçamento. Licitação. Sumário: 1 Introdução – 2 Panorama da precificação das contratações administrativas na Lei nº 8.666/93 – 3 Das limitações ao valor das contratações administrativas nas leis orçamentárias – 3.1 Considerações gerais – 3.2 Da imposição das cotações referenciais de preços e do regime jurídico-administrativo – 3.2.1 Da aplicação concreta dos princípios relativos à precificação das contratações administrativas – 4 Das diferenças entre as formas de raciocínio acerca da precificação de obras públicas – 5 Conclusões – Referências 1 Introdução As contratações administrativas obedecem, como não poderia deixar de ser, entre outros, aos princípios vetores da moralidade e da impessoali dade, pertencentes, na expressão feliz de Almiro do Couto e Silva, à “mesma constelação de valores”1 que compõem, no Estado Democrático de Direito, o chamado princípio republicano. Impõese, na esteira de tais princípios, a busca do inte resse público, consubstanciado na contratação da melhor proposta, sem favorecer ou desconsiderar o cidadão-interessado, ao longo do procedimento, sem razão constitucionalmente apoiada que o justifique. Não é por outro motivo que a doutrina — a vozes uníssonas — asserta ser a licitação procedimento competitivo destinado a selecionar, segundo critérios isonômicos, preexis tentes e públicos, o licitante apto e que tenha apre sentado a proposta mais vantajosa à Administração Pública, como condição, de regra, para que esta contrate com terceiros.2 O procedimento licitatório, conforme salien ta Enrique Sayagués Laso, busca evitar a colusão de particulares entre si ou com agentes públicos na realização das contratações necessárias à exe cução dos cometimentos administrativos, haja vista que, com tal procedimento, se reduz drasti camente a margem de liberdade do administrador público no que tange à escolha do contratante privado.3 4 Mediante licitação, consoante o mestre uruguaio, se procura estimular a concorrência entre os particulares, com a consequente obtenção de propostas mais vantajosas aos cofres públicos. Além de se criar, tendo em vista que aos licitantes é lícito impugnar qualquer ato do procedimento (decorrência da natureza competitiva do proce di mento), um ambiente de permanente fiscali zação dos interessados, entre si e com relação aos atos da Administração.5 Ainda, o caráter público da licitação permite o escrutínio quer dos órgãos de controle externo (v.g., tribunais de contas, SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul – RPGE, Porto Alegre, v. 27, n. 57, p. 35, dez. 2004. Suplemento. 2 Cf., por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello, que pontifica: “Licitação, pois, é um procedimento competitivo — obrigatório como regra — pelo qual o Estado e demais entidades governamentais, para constituírem relações jurídicas as mais obsequiosas aos interesses a que devem servir, buscam selecionar sua contraparte mediante disputa constituída e desenvolvida isonomicamente entre os interessados, na conformidade de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados. Fácil é ver-se que a licitação não é um fim em si mesmo, mas um meio pelo qual se busca a obtenção do negócio mais conveniente para o atendimento dos interesses e necessidades públicas a serem supridos, tanto como assegurar, neste desiderato, pleno respeito ao princípio da isonomia, isto é: o dever de ensejar iguais oportunidades aos que pretendem e podem disputar o travamento das relações jurídicas em que o Poder Público esteja empenhado” (Pressupostos da licitação. In: VERRI JR., Armando; TAVOLARO, Luiz Antônio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Licitações e contratos administrativos: temas atuais e controvertidos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 123). 3 SAYAGUÉS LASO, Enrique. La licitación pública. Montevidéu: Editorial BDEF, 2005. p. 2. (Reedição da obra publicada em 1940). 4 Cf., a propósito, a lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “A escolha, salvo exceções legais, não deve ser feita livremente, como ocorre, na maior das vezes, nas aquisições e negócios dos particulares, mas através de competição dos interessados devidamente convocados. Isso com o objetivo de resguardo do interesse público, a fim de impedir abusos possíveis, por parte dos agentes públicos, que agem em nome e por conta da entidade pública, como pessoa jurídica, ser real, mas acidental, formado de relações de pessoas naturais, para alcançar dado fim em comum, cuja vontade se manifesta por intermédio de agentes públicos” (Da licitação. São Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 16-17). 5 SAYAGUÉS LASO. La licitación pública, p. 2. 1 artigos 64 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas ministério público), quer de qualquer cidadão (via direito de petição à Administração Pública e aos órgãos de controle, legitimação para ajuiza mento de ação popular etc.). Em decorrência do caráter competitivo das licitações públicas, poder-se-ia pretender exis tente uma presunção de vantajosidade das con tratações assim mediadas, mas não é o que ocorre. Particulares, ainda que em um ambiente supos tamente competitivo, podem concertar-se, combinar entre si (ou mesmo com a ajuda de agentes públicos) preços e condições das propostas, dis tribuindo entre si licitações e contratos administrativos. Ressalte-se que isto não é particularidade das contratações administrativas: nas relações entre pessoas privadas podem ocorrer também condutas destinadas à dominação ou manipulação de segmentos do mercado, verificando-se a chamada “cartelização” de setores da economia ou mesmo a formação de monopólios ou oligo pólios. Neste caso, incidem as regras de proteção à concorrência, que vedam condutas tendentes à manipulação ou domínio de mercados,6 partindose da premissa econômica de que o oligopólio e o monopólio são nocivos aos consumidores. No caso das contratações administrativas, incidem regras específicas — cuja finalidade informadora consiste justamente na garantia de que os preços contratados correspondam, efetivamente, às condições de mercado. Num caso, como visto, protege-se o consumidor privado. No outro, mutatis mutandis, pretende-se proteger a Administração Pública-consumidora de bens ou serviços produzidos ou prestados pelos particulares. A questão da precificação em contratos administrativos — e notadamente nos contratos de obras públicas, que apresentam a maior complexidade — surge assim como um tema central para a compreensão da legitimidade das contra tações públicas. Compreender o regime jurídico da precificação dos contratos administrativos (e em especial dos contratos de obras públicas) 6 possibilita ao analista (seja ele agente público, seja pessoa privada) identificar se o preço pago pelo serviço tomado, pelo bem fornecido ou pela obra executada é legítimo e encontra amparo no direito. Uma premissa deve ser fixada neste ponto, para que não haja controvérsias quanto à abrangência do presente trabalho: um preço praticado em um contrato administrativo somente é legítimo quando compatível com condições encontráveis no mercado por qualquer indivíduo, em circuns tâncias semelhantes. Esta premissa, conquanto óbvia, dado que o fato de a contratação ser administrativa (isto é, envolver em alguma intensidade a função administrativa, o interesse público primário que lhe subjaz) não tem o condão de afastar um outro aspecto, igualmente verdadeiro, que é o de que essa contratação se realiza no merca do, tendo no outro polo agentes econômicos, que atuam segundo a lógica econômica privada, com persecução de lucro. Ainda que assim não fosse, conforme se verificará em seguida, o próprio direito positivo trata de sufragar este entendi mento, na medida em que são encontradas várias referências normativas no sentido da necessidade de que as contratações administrativas se pro cessem segundo critérios e preços de mercado. Resulta claro que inúmeros questiona mentos são suscitados quando se estabelece que o preço adequado para um bem é aquele que cor responda às condições de mercado. O que significa, afinal, a locução preços de mercado? O direito positivo, que a ele faz referência em vários dispositivos legais, oferece algum critério seguro para a sua definição no caso das contratações administrativas? Quem é competente para estabelecer os preços de mercado em um contrato administrativo? A definição do justo preço em um contrato administrativo comporta algum tipo de discricionariedade ou, ao contrário, é vincu lada? Finalmente, quais são os limites da fiscali zação exercida pelos órgãos de controle relativamente a tais contratos? Veja-se o art. 20 da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, transcrito: “Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; IV – exercer de forma abusiva posição dominante. §1º A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II. §2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa. §3º A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) de mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.” Do mesmo modo, traga-se o que dispõe o art. 21, inc. XXIV, parágrafo único, da mesma lei, que estabelece como infração à ordem econômica “impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço de bem ou serviço”. Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 65 Amauri Feres Saad O presente trabalho pretende responder No que tange a imposição de preços máximos ou ao menos lançar as bases para a resolução das para as contratações administrativas, o art. 15 da questões acima propostas. Lei nº 8.666/93 determina, no caso de licitações para compras, que estas deverão “balizar-se pelos 2 Panorama da precificação das contratações administrativas na Lei nº 8.666/93 preços praticados no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública” (inc. V) e que o registro A Lei Federal nº 8.666, de 23 de junho de de preços “será precedido de ampla pesquisa de 1993 (Lei nº 8.666/93) é pródiga em disposições mercado” (§1º), sendo qualquer cidadão “parte acerca do preço nos contratos administrativos. legítima para impugnar preço constante do quadro Didaticamente, podem-se dividir tais disposições geral em razão de incompatibilidade desse com em duas categorias básicas: (i) as normas que pre- o preço vigente no mercado”. Do mesmo modo, tendem coibir a contratação a preços vis, ou, na para a realização de obras, o art. 40 determina terminologia legal, inexequíveis, impondo limites que os editais deverão conter obrigatoriamente mínimos para os preços; e (ii) as normas que cui- “o critério de aceitabilidade dos preços unitário dam justamente do seu oposto, a saber, dos preços e global, conforme o caso, permitida a fixação de máximos a serem obedecidos nas contratações preços máximos e vedados a fixação de preços administrativas. mínimos, critérios estatísticos ou faixas de varia A disciplina da exequibilidade dos pre- ção em relação a preços de referência, ressalvado ços contratados encontra sua matriz imediata no o disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 48” (inc. artigo 48 da Lei nº 8.666/93, que dispõe que deve- X). No art. 44, §3º, estabelece-se que não será rão ser desclassificadas as propostas “manifesta admitida “proposta que apresente preços global mente inexequíveis”, assim entendidas aquelas ou unitários simbólicos, irrisórios ou de valor que não tenham a sua viabilidade demonstrada zero, incompatíveis com os preços dos insumos (inciso II). Interessante notar que a lei remete o e salários de mercado, acrescidos dos respectivos juízo de exequibilidade à comparação com os encargos, ainda que o ato convocatório da licitação custos de mercado: somente será exequível o preço não tenha estabelecido limites mínimos, exceto que, comparado com o mercado, se mostre coe- quando se referirem a materiais e instalações de rente. Impõe, também, em privilégio da realidade, propriedade do próprio licitante, para os quais que os coeficientes de produtividade da proposta ele renuncie a parcela ou à totalidade da remune deverão ser compatíveis com a execução do objeto ração”. Por fim, o art. 48, inc. II, determina que contratual (cujas especificações deverão estar sufi deverão ser desclassificadas as propostas “com cientemente detalhadas no instrumento convoca- valor global superior ao limite estabelecido ou tório). E, na falta de outros critérios, apostos no com preços manifestamente inexequíveis, assim ato convocatório, os parágrafos 1º e 2º do artigo 48 con si derados aqueles que não venham a ter estabelecem regra objetiva para a aferição da exe- demonstrada sua viabilidade através de docu quibilidade das propostas especificamente para o mentação que comprove que os custos dos insu caso das licitações de menor preço para serviços mos são coerentes com os de mercado e que os e obras de engenharia: serão inexequíveis aquelas coeficientes de produtividade são compatíveis cujos valores globais sejam inferiores a setenta por com a execução do objeto do contrato, condições cento do menor dos seguintes valores: (i) média estas necessariamente especificadas no ato con aritmética dos valores das propostas superiores vocatório da licitação”. a cinquenta por cento do valor orçado pela admi- No caso das obras contratadas com dis nistração, ou (ii) valor orçado pela administração. pensa ou inexigibilidade de licitação, prevalece, Os licitantes classificados de acordo com tais regras como não poderia deixar de ser, a exemplo do que e que tenham apresentado proposta com valor ocorre nas contratações mediadas por licitação, global inferior a 80% do menor valor descrito a obrigação de contratar a preços de mercado, acima deverão apresentar garantia adicional no como se depreende, em interpretação a contrario valor da diferença entre o dito menor valor e o da sensu, do inc. VII do art. 24 da Lei nº 8.666/93, que respectiva proposta. relaciona, como uma das hipóteses de dispensa artigos 66 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas de licitação, a ocorrência de situação em que “as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores aos praticados no mercado nacional”. E este atrelamento da contratação com dispensa de licitação aos preços de mercado ressume em várias das hipóteses do referido art. 24 da Lei nº 8.666/93, ex vi do inc. VIII do mesmo artigo, na hipótese de aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência da Lei “desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado”. Do mesmo modo, nos termos do inc. XXIII, “na contratação realizada por empresa pública ou sociedade de economia mista com suas subsidiárias e controladas, para a aquisição ou alienação de bens, prestação ou obtenção de serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado”. Deve-se ressaltar que o art. 24 da Lei nº 8.666/93 admite, inclusive, dispensa de licitação na hipótese de contratação a preços superiores aos de mercado, quando (inc. VI) “a União tiver que intervir no domínio econômico para regular preços ou normalizar o abastecimento”. Em tal situação, obviamente, o pressuposto para a atuação estatal será a existência de preços “desequi librados”, “excessivos”, acima do que seria espe rável numa situação de mercado. Importante destacar que a recente Medida Provisória nº 495, de 19 de julho de 2010, que alterou artigos da Lei nº 8.666/93, introduziu mudanças de relevo na disciplina dos preços aceitáveis em licitações. Ao alterar o próprio conceito da licitação, que antes era destinada à “seleção da proposta mais vantajosa para a administração” (art. 3º da lei) e passou a ser destinada também à “promoção do desenvolvimento nacional”, tal medida provisória — cuja constitucio nalidade é absolutamente discutível — introduziu a possibilidade do estabelecimento de uma margem de tolerância para a aceitabilidade de preços de até 25% para bens ou serviços produzidos no 7 País. Dito de outro modo: um licitante poderá oferecer em sua proposta produto (bem ou serviço) nacional (segundo os critérios fixados na sobredita medida provisória) com preço até 25% mais alto do que o de outra proposta que não atenda a tais critérios de nacionalização, sagrando-se ainda assim vencedor do certame. Naturalmente que se devem interpretar os enunciados da referida medida provisória cum grano salis. As normas construídas a partir de tais enunciados devem possuir sentido que não divirja de todo o sistema de direito administrativo e de seus princípios constitucionalmente consagrados, sob pena de invalidade. Tudo isto é óbvio, mas, por sua importância, deve ser reiterado. A regra geral, e que deve permear todo o nosso raciocínio no assunto da precificação de contratações públicas (em especial de obras de engenharia), é a de que devem ser considerados os preços de mercado como critério de legitimi dade de tais contratações. Esta conclusão funda-se em razões de pelo menos três ordens. A primeira é lógica: não se pode cogitar de contratações que não correspondam ao real valor dos objetos conteúdo de tais relações jurídicas. Não é preciso descer às minúcias da teoria econômica (em especial da sua vertente da teoria do valor)7 a fim de explicar os componentes da formação dos preços dos bens no mercado. O que é preciso ficar consignado é que a incidência das normas sobre precificação de obra pública pressupõe uma relação diádica de equivalência entre os preços contratados e os preços entendidos como de mercado. Trata-se de uma condição de concepção dos contratos administrativos, de um postulado de sua compreensão; não há pensá-los de forma diversa. A segunda ordem de razões é jurídica: caso não se obedecesse aos preços de mercado como padrão para as contratações administrativas, estarse-ia ou admitindo o enriquecimento sem causa da Administração Pública, com violação de princípios republicanos basilares, como os da pro priedade (art. 5º, caput, XXII, XXIX, e art. 170, II, CF), ou se estaria diante de enriqueci mento sem causa do particular, que seria remunerado Cf. CHAMBERLIN, E. H. The Theory of Monopolistic Competition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1933; NASH JR., John F. NonCooperative Games. Annals of Mathematics, 54(1951), 289-95; ROBINSON, J. The Economics of Imperfect Competition. London: Macmillan, 1933; GILIBERT, G. La teoria oggettiva dei prezzi. Economia Politica I, 1984; e GEHRKE, C. Dmitriev, Vladimir Karpovich. In: SCAZZIERI; KURZ; SALVADORI (Ed.). The Elgar Companion to Classical Economics A-K. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 1998. Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 67 Amauri Feres Saad de forma privilegiada, violando-se, deste lado, os princípios-vetores da isonomia e da moralidade administrativa (art. 37, caput, CF). Num sistema republicano, que é, como bem pontuou Geraldo Ataliba, marcado fortemente pelo respeito ao inte resse da coletividade, tais princípios não podem ser menoscabados.8 A terceira razão é de ordem prática: acaso a Administração pretendesse contratar por preços abaixo dos de mercado, fixando um tal padrão como limite de aceitabilidade de preços nos editais das licitações que realizasse, estas inevitavelmente resultariam desertas, pelo total desinteresse que suscitariam no mercado. Com efeito, a fim de que consiga ultimar as contratações necessárias à satisfação da utilidade pública, é fundamental que a remuneração oferecida pela Administração Pública seja condizente com o que se pratica nas relações entre particulares. Se um sujeito pode transacionar no ambiente privado por preço superior àquele que lhe oferece a Administração Pública, é irrazoável supor que ele prefira, nestas circunstâncias, contratar com o Poder Público. Em realidade, como se sabe, o que ocorre é justamente o contrário. 3 Das limitações ao valor das contratações administrativas nas leis orçamentárias 3.1 Considerações gerais Como visto acima, no sistema instituído pela legislação diretamente atinente às licitações públicas, não há exigências específicas quanto à metodologia de precificação de obras contratadas sob regime de dispensa de licitação, ex vi da Lei nº 8.666/93, exigindo-se somente que os preços globais contratados sejam compatíveis com os de mercado. Há, contudo, nas leis de diretrizes orçamentárias anuais editadas desde 1999, disposições impositivas de índices referenciais a serem utilizados como “teto” ou limite para obras finan ciadas por recursos federais. Nas Leis nº 9.811, de 28 de julho de 1999, nº 9.995, de 25 de julho de 2000, nº 10.266, de 24 de julho de 2001, válidas, respectivamente, para 8 os exercícios dos anos 2000, 2001 e 2002, adotou-se o índice de Custo Unitário Básico (CUB), acrescido de até 30% (trinta por cento) para cobrir custos não previstos. A partir de 25 de julho de 2002, com a edição da Lei nº 10.524, relativa ao exercício de 2003, foi adotado o Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (SINAPI), mantido pela Caixa Econômica Federal. Na Lei nº 12.017, de 12 de agosto de 2009, em seu art. 112, foi incluído, além do SINAPI, o Sistema de Custos de Obras Rodoviárias (SICRO) como cotação referencial para obras rodoviárias. Tal disciplina se mantém, com algumas alterações, na lei de diretrizes orçamentárias aplicável ao exercício de 2011. Com efeito, a Lei nº 12.301, de 09 de agosto de 2010, assim determina, em seu art. 127: Art. 127. O custo global de obras e serviços de engenharia contratados e executados com recursos dos orçamentos da União será obtido a partir de composições de custos unitários, previstas no pro jeto, menores ou iguais à mediana de seus correspondentes no Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil – SINAPI, mantido e divulgado, na internet, pela Caixa Econô mica Federal, e, no caso de obras e serviços rodo viários, à tabela do Sistema de Custos de Obras Rodoviá rias – SICRO, excetuados os itens caracterizados como montagem industrial ou que não possam ser considerados como de construção civil. §1º O disposto neste artigo não impede que a Administração Federal desenvolva sistemas de refe rência de preços, aplicáveis no caso de incompa tibilidade de adoção daqueles de que trata o caput, devendo sua necessidade ser demonstrada por justificação técnica elaborada pelo órgão mantenedor do novo sistema, o qual deve ser aprovado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e divulgado pela internet. §2º Nos casos de itens não constantes dos sistemas de referência mencionados neste artigo, o custo será apurado por meio de pesquisa de mercado e justificado pela Administração. §3º Na elaboração dos orçamentos de referência, serão adotadas variações locais dos custos, desde que constantes do sistema de referência utilizado. §4º Deverá constar do projeto básico a que se refere o art. 6º, inciso IX, da Lei nº 8.666, de 1993, inclusive de suas eventuais alterações, a anotação de responsabilidade técnica pelas planilhas orçamentárias, as quais deverão ser compatíveis com o projeto e os custos do sistema de referência, nos termos deste artigo. §5º Ressalvado o regime de empreitada por preço global de que trata o art. 6º, inciso VIII, alínea “a”, da Lei nº 8.666, de 1993: I – a diferença percentual entre o valor global do contrato e o obtido a partir dos custos unitários “Não teria sentido que os cidadãos se reunissem em república, erigissem um Estado, outorgassem a si mesmos uma Constituição, em termos republicanos, para consagrar instituições que tolerassem ou permitissem — seja de modo direto, seja indireto — a violação da igualdade fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional da ereção do regime. Que dessem ao Estado — que criaram em rigorosa isonomia cidadã — poderes para serem usados criando privilégios, engendrando desigualações, favorecendo grupos ou pessoas, atuando em detrimento de quem quer que seja. A res publica é de todos e para todos. Os poderes que de todos recebe devem traduzir-se em benefícios e encargos iguais para todos os cidadãos. De nada valeria a legalidade se não fosse marcada pela igualdade” (ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 160). artigos 68 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas do sistema de referência utilizado não poderá ser reduzida, em favor do contratado, em decorrência de aditamentos que modifiquem a planilha orçamentária; II – o licitante vencedor não está obrigado a adotar os custos unitários ofertados pelo licitante vencido; e III – somente em condições especiais, devidamente justificadas em relatório técnico circunstanciado, elaborado por profissional habilitado e aprovado pelo órgão gestor dos recursos ou seu mandatário, poderão os custos unitários do orçamento-base da licitação exceder o limite fixado no caput e §1º deste artigo, sem prejuízo da avaliação dos órgãos de controle interno e externo. (omissis). (grifos em negrito aditados) A primeira observação a ser feita com relação a tal dispositivo tem a ver com a sua natureza jurídica. Não se trata, aqui, de remontar à velha discussão entre a compreensão das leis orçamentárias como leis em sentido material ou leis em sentido formal. Tal distinção, sobre ser muito pouco produtiva do ponto de vista da apreensão do objeto (afinal não importam grandes diferenças no plano da validade ou eficácia de tais leis), já foi resolvida de forma mais ou menos pacífica pela doutrina, na medida em que se considere que as leis orçamentárias possuem imperatividade pelo simples fato de serem leis editadas segundo as competências e procedimento constitucionalmente previstos.9 Isto posto, o que importa verificar, no to cante à implicação dos dispositivos da lei orça mentária sobre contratações administrativas, é, em primeiro lugar, o seu campo de aplicação. Caso se entenda que as disposições de uma lei orça mentária possuem como destinatário exclusivo o administrador público, as consequências para as contratações administrativas realizadas em desacordo com o seu conteúdo serão diversas daquelas que adviriam da compreensão da lei orçamentária como uma lei geral e abstrata, portadora de disposições de ordem pública, condicionadoras de atos jurídicos envolvendo (pelo menos num dos polos) particulares. Dito de outro modo: trata-se de saber se eventual contratação realizada em desacordo com tais disposições é válida ou inválida. A resposta a tais indagações já se adianta: os efeitos da lei de diretrizes orçamentárias não afetam os contratos administrativos no campo de sua validade ou eficácia. José Afonso da Silva, em monografia até hoje não superada em nosso direito financeiro, amparado na lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, diferencia entre normas de arbitragem e normas de impulsão.10 As primeiras seriam as normas postas pelo Poder Legislativo destinadas a pautar as condutas individuais, ao passo que as segundas seriam aquelas destinadas a disciplinar a direção da economia. Assim, a admitir-se tal dicotomia, as normas relativas ao orçamento não seriam normas de arbitragem, mas de impulsão, dado que destinadas à imposição dos limites de ação governamental, prevendo receitas e impondo programas de execução. José Afonso não apresenta em sua obra esta conclusão, mas tais limites por óbvio têm por destinatário o agente público, uma vez que é este por excelência o gestor dos recursos públicos. Deve-se, no entanto, destacar que o regime jurídico vigente à época em que tais considerações foram feitas (1973) era diverso do atual: vigia a constituição ditatorial de 1969, que previa a existência de duas leis orçamentárias vigentes simultaneamente — a lei orçamentária anual e a lei do orçamento plurianual de investimentos. A previsão de dois instrumentos: um compreendendo o planejamento de médio e longo prazos, personificado no orçamento plurianual, e outro compreendendo a execução orçamen tá ria do exercício subsequente, consubstanciada na lei orçamentária anual, devendo tais diplomas ser compatíveis entre si,11 de certa forma evitava as dificuldades do regime atual. Afinal, o campo material entre ambas as leis era diverso: uma regu lava o orçamento do próximo exercício; a outra regulava os exercícios seguintes, coorde nando o planejamento estatal (embora pudesse, em cada exercício, ser modificada pela lei orçamentária anual). Cf. VIDIGAL, Geraldo. Elementos do direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 232-252; BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971. p. 423-428; e SILVA, José Afonso da. Orçamento-programa no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 261-275. 10 SILVA. Orçamento-programa no Brasil, p. 261-275. 11 Cf. arts. 60, parágrafo único, e 62, §3º, da Constituição de 1969: “Art. 60. A despesa pública obedecerá à lei orçamentária anual, que não conterá dispositivo estranho à fixação da despesa e à previsão da receita. Não se incluem na proibição: (...) Parágrafo único. As despesas de capital obedecerão ainda a orçamentos plurianuais de investimento, na forma prevista em lei complementar.” e “ Art. 62. O orçamento anual compreenderá obrigatoriamente as despesas e receitas relativas a todos os Podêres, órgãos e fundos, tanto da administração direta quanto da indireta, excluídas apenas as entidades que não recebam subvenções ou transferências à conta do orçamento. (...) §3º Nenhum investimento, cuja execução ultrapasse um exercício financeiro, poderá ser iniciado sem prévia inclusão no orçamento plurianual de investimento ou sem prévia lei que o autorize e fixe o montante das dotações que anualmente constarão do orçamento, durante o prazo de sua execução. (...)”. 9 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 69 Amauri Feres Saad O regime orçamentário inaugurado pela disporá sobre as alterações na legislação tributária Constituição de 1988 previu além da lei orçamen e estabelecerá a política de aplicação das agências tária anual e da lei que veicula o plano plurianual financeiras oficiais de fomento” (art. 165, §2º). a chamada lei de diretrizes orçamentárias. Tendo isto em vista e considerando também o Ocorre que tanto a lei de diretrizes orça- disposto no art. 166, §3º, I, da Constituição Fede- mentárias, quanto o plano plurianual, e, ainda, ral (que determina a impossibilidade de discussão a lei orçamentária anual, são, do ponto de vista de emendas ao projeto da lei orçamentária anual estritamente formal, leis ordinárias. Este fato é da que sejam incompatíveis com a lei de diretrizes maior relevância, na medida em que os conflitos orçamentárias), deve-se concluir que a relação entre as disposições de tais leis — abstraindo- entre ambos os diplomas é de identidade. Mas se de qualquer critério material de resolução de se trata, considerando a cronologia do processo or- conflitos instituído por norma superior, consti- çamentário, de uma identidade nunca atualizável tucional ou complementar — se resolvem pelos (isto é, nunca aferível pela comparação de dois critérios clássicos: lei especial derroga lei geral objetos simultaneamente existentes), porquanto, e lei posterior revoga lei anterior. Então, é de se pelo simples fato de ambos os diplomas serem perguntar, em face do texto constitucional: há um leis infraconstitucionais, o conflito entre eles critério para a resolução de conflitos nas disposi- nunca será possível, em razão da incidência dos ções das leis orçamentárias? A resposta é positi- já referidos critérios do lex posterior derogat legi va, mas os critérios existentes não resolvem todos priori e lex specialis derogat legi generali. Quando os problemas possíveis. Senão vejamos. uma norma surgir, a outra já deixará o mundo A Constituição Federal determina que a jurídico no que com a primeira conflitar. Trata- lei orçamentária anual será compatível com o se, por tanto, de uma quase-identidade, de uma plano plurianual e as despesas nela contidas identidade em vir-a-ser. que excedam o período do exercício a que ela se Nessa ordem de ideias, imagine-se a edi- refira deverão constar do referido plano (é este o ção de lei de diretrizes orçamentária que estabe- sentido dos enunciados contidos nos arts. 165, leça obrigação, para a Administração Pública, de §5º, I e II, e §7º, e 166, §4º). contratar por um preço-limite de 100. Sem entrar No tocante à relação entre a lei que estabe- no mérito da correspondência ou não de tal lece o plano plurianual e a do orçamento anual, a preço-limite com o mercado (isto faremos em Constituição Federal estabelece que não é possível seguida), imagine-se que a administração contra- a realização de despesa cuja execução ultrapasse te por um preço de 110, tendo sido os recursos o exercício em curso sem que esta esteja também para tal contratação inscritos na lei orçamentária refletida no plano plurianual (art. 167, §1º) e não anual. A pergunta que se faz é: o fato de a lei se permite a aprovação de emendas ao projeto orçamentária anual consagrar recursos para pagar o de orçamento anual que sejam contraditórias com preço de 110 derroga a determinação de preço-te- o plano plurianual (art. 166, §3º, I). Interessante to de 100 constante da lei de diretrizes orçamen que esta vedação incide apenas no tocante às tárias? Pelo simples conflito material das hipó emendas ao projeto de orçamento anual e não teses de cada lei, a resposta deve ser afirmativa. ao próprio projeto. O que equivale a dizer que o Pontes de Miranda, comentando o relacio- Poder Executivo não conta com vedação constitu- namento dinâmico entre a lei orçamentária anual cional para elaborar o projeto de orçamento anual e leis posteriores, que alteravam as disposições da em desconformidade com o plano plurianual. primeira, assim se manifestava, com a agudeza A relação entre a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual é diversa. A função da lei de diretrizes orçamentárias consiste em estabelecer “as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, artigos 70 que lhe é peculiar: Nada mais absurdo do que se dizer que o fato de não se achar no orçamento a menção da despesa importa nulidade da lei, que a criou ou a aumentou. A lei — inclusive as chamadas resoluções, ou decretos legislativos — existe, vale e é eficaz a des peito do que se passou na lei orçamentária, que é como jarrão em que põem folhas e flores. A folha ou flor, de que o legislador do orçamento se olvidou, Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas ou, conscientemente, deixou de por, fica lá fora, existente como as outras folhas e flores.12 Nesse contexto, a lei de diretrizes orçamen tárias, tal como configurada no texto constitucional de 1988, seria um sem sentido constitucional? Nem tanto. Segundo nos parece, a função consti tucional da lei de diretrizes orçamentárias é per mitir (e mais do que isso, obrigar) a enunciação dos objetivos do Estado para o exercício subsequente, objetivos estes que se concretizarão por meio da execução da lei orçamentária anual. Trata-se, em suma, de uma exigência constituinte de que o tema orçamentário seja uma preocu pação constante dos governantes e dos parlamentares, com prazos fixos para o seu debate, e, por isto mesmo, um dos aspectos protagonistas da arena política. A elaboração dos três instrumentos orçamentários previstos pela Constituição Federal impõe necessariamente um mínimo de racionalidade e transparência na programação das atividades estatais. É este o sentido extraível do texto constitucional. O tema é tratado por Ricardo Lobo Torres, em trecho que se destaca abaixo: A lei de diretrizes orçamentárias tem, como o próprio orçamento anual, natureza formal. É simples orientação ou sinalização, de caráter anual, para a feitura do orçamento, devendo ser elaborada no primeiro semestre (art. 35, II, do Ato das Disposições Transitórias). Não cria direitos subjetivos para terceiros nem tem eficácia fora da relação entre os poderes do Estado. Da mesma forma que o pla no plurianual, não vincula o Congresso Nacional, quanto à elaboração da lei orçamentária, nem o obriga, se contiver dispositivos sobre alterações da lei tributária, a alterá-la efetivamente, nem o impede, no caso contrário, de instituir novas inci dências fiscais, que isso significaria o retorno da reserva de iniciativa das leis que criam tributos ao Poder Executivo e conflitaria com o princípio da anterioridade definido no art. 150, III. Não sendo lei material, não revoga nem retira a eficácia das leis tributárias ou das que concedem incentivos. A lei de diretrizes é, em suma, um plano prévio, fundado em considerações econômicas e sociais, para a ulterior elaboração da proposta orçamentária do Executivo, do Legislativo (arts. 51, IV e 52, XIII), do Judiciário (art. 99, §1º) e do Ministério Público (art. 127, §3º).13 (grifos em negrito aditados) Embora corretas as conclusões alcançadas, discordamos do posicionamento do autor, quando defende a classificação das leis orçamentárias como leis em sentido formal (e não em sentido material), donde decorreriam as limitações à impera tividade daquelas. É perfeitamente com pre ensível que defenda, garantisticamente, a impossibilidade de alterações de regras tributárias por meio da legislação orçamentária; mas as limi tações que aponta são derivadas das próprias garantias conferidas aos contribuintes pela Cons tituição Federal e não decorrentes da eventual natureza jurídica da legislação orçamentária. Saber se se trata de lei em sentido formal ou material é recorrer a uma construção desnecessária: as limitações da legislação orçamentária — que são, repita-se, leis, com a força imperativa própria de tais veículos — advêm da própria conformação jurídico-constitucional: a dinâmica de incidência e o emprego do mesmo veículo, a lei, para intro duzir tais normas, é o que acaba por condicionar a validade e a eficácia de tais leis. Ademais, a distinção entre leis em sentido formal e leis em sentido material, para ter qualquer operatividade jurídica (intrassistêmica) deveria vir contemplada no próprio texto constitucional, o que não ocorre, em absoluto, no nosso ordenamento. É por estas razões — ainda que sob um ângulo ligeiramente diverso — que Luis Solano Cabral de Moncada, o maior dos publicistas portugueses, leciona, a propósito do regime orça mentário de seu país (lições estas que aplicam-se com perfeição à hipótese brasileira): A capacidade (governamental) de propor alterações ao conteúdo orçamental nunca faria da lei orçamental fonte bastante da legalidade à face do princípio do Estado-de-Direito. A vinculatividade do orçamento e do plano que nele está incorporado para o executivo é muito mais de natureza política do que jurídica; basta uma maioria parlamentar de apoio ao governo para que vá por água abaixo a pretensa “legalidade” orçamental. A legalidade orçamental só quer dizer que a política financeira deve obedecer a uma norma jurídica que é o orçamento, mas esse não tem que ser necessariamente aquele que foi aprovado pelo parlamento, pois está sempre a tempo de ser alterado ou complementado.14 Sendo assim, pode-se fixar a premissa: a lei de diretrizes orçamentárias possui um caráter indicativo do orçamento a ser votado para o exercício seguinte, mas não vinculante. O Congresso Nacional pode, sempre que as circunstâncias o PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 (com a Emenda nº 1 de 1969). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 212. (t. III, arts. 32-117). 13 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 85-86. (O orçamento na Constituição, v. 5). 14 MONCADA, Luís Solano Cabral de. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Ed., 2002. p. 337. 12 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 71 Amauri Feres Saad exigirem, modificar aspectos da lei de diretrizes do Planejamento, passar a desenvolver cotação orçamentárias, quando da votação do projeto referencial própria. de orçamento anual, não estando condicionado No tocante aos referenciais de preços (sejam neste aspecto. Trazendo tal premissa para o pre- eles os do SINAPI, do SICRO ou outros impostos sente trabalho, verifica-se que, uma vez inserida legalmente), deve-se ressaltar que a sua aplicação determinada previsão de despesa no orçamento deve obedecer a princípios específicos, derivados anual, esta, do ponto de vista do direito financeiro, do regime jurídico-administrativo. legitima-se pelo simples fato de estar autorizada O primeiro deles é o da identidade. A utili pelo Legislativo. Constante da lei orçamentária, zação de tais cotações impõe-se somente àquelas não há cogitar-se determinada despesa estar em contratações que contenham correspondência conflito com a lei de diretrizes orçamentárias, ou identidade (considerados os bens e serviços uma vez que esta não mais estará vigente. empregados nas composições de custos unitários Ademais, sendo tais normas obrigatórias correspondentes) com relação aos itens cotados apenas aos agentes públicos ordenadores de des- pelas primeiras. E isto por uma razão lógica da pesas, acaso se verifique a realização de contrato maior simplicidade: somente se podem comparar em desconformidade com tais normas, tal con- aspectos quantitativos (preços) de entes entre si trato não será inválido em razão das limitações qualitativamente idênticos. Afinal, resultaria um orçamentárias, sendo plenamente resguardados cabal absurdo pretender, v.g., que a Administração os direitos patrimoniais daquele que, confiando fosse obrigada a adquirir um sofá pelo preço de em licitação realizada nos estritos termos da lega uma cadeira, somente porque, hipoteticamente, lidade, apresentou a proposta mais vantajosa e aquele não encontrasse previsão no SINAPI/ sagrou-se vencedor, sem ter dado causa a eventual SICRO e esta, sim, e se identificasse, como ele ilegalidade. A questão, aqui, deve resolver-se com mento aglutinador e justificador da aplicação do a responsabilização do agente público que deixou referencial, a característica de servirem, ambos, de observar o conteúdo da lei orçamentária anual de assento ao ser humano. (note-se que falamos em lei orçamentária anual, O exemplo pode parecer jocoso àqueles que ao invés de na lei de diretrizes orçamentárias) e não estão familiarizados com o padrão de audi não com a extinção unilateral de vínculo regu torias realizados por alguns órgãos de controle, larmente formado. mas é o que se verifica na prática: são consideradas É com base nas considerações preceden- nas comparações de preços itens de tais referen- tes — que identificam os limites de vigência da ciais muitas vezes completamente disparatados lei de diretrizes orçamentárias — que devem ser da realidade de determinada obra de engenharia. interpretados os dispositivos que impõem preços máximos para as contratações federais. Isto ocorre não somente às escâncaras (comparando-se laranjas com maçãs), mas amiúde de modo disfarçado: quando, por exemplo, se con- 3.2 Da imposição das cotações referenciais de preços e do regime jurídico-administrativo sideram produtividades absolutamente “ideais” para determinadas composições de preços, em Voltando à análise do artigo, acima trans- confronto com o possível para determinada obra. crito, da lei de diretrizes orçamentárias aprovada Apenas para que se tenha ideia, já pudemos obser- para o ano de 2011, verifica-se que tal dispositivo: var, em nosso quotidiano profissional, a utilização (i) impõe como limite de preços globais para as de coeficientes de produtividade para um item contratações de obras e serviços de engenharia relacionado ao transporte de materiais, quando financiados com recursos federais as cotações da análise de um determinado empreendimento constantes do SINAPI e, no caso de obras rodovi- por órgão de controle externo, que resultava, em árias, as constantes do SICRO; (ii) podendo, tais termos práticos, na suposição de que o descarre- limites, no entanto, ser afastados justificadamente gamento de materiais num determinado canteiro pela autoridade competente. Neste último caso, de obras deveria acontecer com a frequência de a Administração federal poderá elaborar pesqui- 1 (um) caminhão descarregado por minuto. Isto, sa de mercado ou, com autorização do Ministério que, mesmo intuitivamente, é um absurdo, teria artigos 72 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas de se verificar num canteiro localizado numa área urbana de grande metrópole, com condições logísticas e de interferências com serviços públicos e tráfego completamente diversas daquelas empregadas na confecção das cotações referenciais (em cujas composições de custos unitários se incluem determinados coeficientes de produtividade, considerados ideais em face da natureza de cada serviço, insumo ou equipamento utilizado). É óbvio que, neste caso, ao se adotar tal referencial o princípio da identidade não é observado. Mas o princípio da identidade na precificação de obras públicas não se resume somente na comparação pura e simples do objeto contratado (decomposto em composições de custos unitários envolvendo custos indiretos, mão de obra, equipamentos, insumos etc.). Há outra dimensão deste princípio que não pode ser menosprezada: tratase da análise do próprio contexto da contratação. Isto equivale a dizer que deverão ser considerados os elementos contextuais da contratação, como a divisão dos riscos entre as partes, a conjuntura econômica, o regime da contratação, a qualidade e detalhamento dos projetos, a própria reputação do ente contratante, entre outros. Os exemplos neste caso podem esclarecer mais que conceitos. Imagine-se a contratação por preço global para a construção de determinada obra, em que há apenas a disponibilização de projeto básico. O pro ponente privado não conhece com profun didade o perfil geológico do terreno, embora possa dele fazer uma ideia. Todavia, o próprio regime de contratação (preço global) transfere para o futuro contratado uma série de riscos (construti vos, de quantitativos, de interferências etc.) que em princípio não existiriam na contratação por preços unitários. Em resumo, a percepção do risco pelo proponente — derivada de sua experiência empresarial — pode ser de tal modo negativa que este decida embutir na sua estrutura de custos o montante que considera adequado para cobrir as contingências que entenda possam acometer o negócio. Decorrência disto, o seu preço será maior do que aquele formulado na ausência de tal percepção. Mas nem por isto deixará de ser um preço de mercado, na estrita acepção do termo. Do mesmo modo, imagine-se o Estado em que seja governador, no primeiro ano de mandato, 15 político conhecido por seu desrespeito aos contra tos firmados em suas administrações ou empresa estatal que seja notadamente uma inadimplente contumaz ou esteja em dificuldades financeiras. Qualquer proponente, em sã consciência, consi derando indutivamente a probabilidade (mais alta) de vir a ser penalizado por condutas ilícitas da outra parte ao longo da execução do contrato, incorporará, caso decida participar da licitação, em seu preço, alguma compensação pelo risco que espera correr. A percepção do risco e sua in fluência na formação dos preços privados (isto é, em situação de mercado) é absolutamente normal, não havendo como eliminá-la das contratações administrativas. Tais nuanças do comportamento dos agentes econômicos são mais comuns do que se pensa. Aliás, derivam também (e muitas vezes princi palmente) do próprio despreparo da Adminis tração Pública, que raramente propicia ambientes de confiança para a realização de suas contratações, com a consequente redução dos riscos assim ditos contextuais, porque circundantes do objeto da contratação. É rigorosamente por isto que o princípio da identidade, nesta dimensão, impõe ao analista a consideração de todas as circunstâncias capazes de influir da formação do preço praticado. Pretender ignorar tais aspectos é o mesmo que quebrar o espelho quando não se gosta da imagem refletida; as contratações administrativas terão preços tanto mais baixos quanto menores forem os riscos envolvidos na contra tação, quanto melhor preparados forem os administradores. O segundo princípio é o da globalidade da avaliação. Isto quer dizer que os preços unitários que compõem a planilha orçamentária de cada obra pública devem ser considerados em sua globalidade, como um todo. Ou seja: não basta que um ou alguns itens da planilha orçamentária apresentem preços superiores aos dos referenciais (SINAPI, SICRO ou qualquer outro considerado) empregados: a existência ou não de preços excessivos somente é aferível em termos globais. Ou seja, desde que realizada a imprescindível comparação entre os itens da planilha orçamentária que são inferiores aos dos referenciais com o preço daqueles que são superiores.15 É nesse sentido que, acertadamente, decidiu esta Corte de Contas, conforme se verifica Acórdão nº 170/2000, Plenário, Ministro Relator Guilherme Palmeira, julgado em 22.03.2000: “Em segundo lugar, considero necessário o recálculo dos débitos apurados pela equipe de Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 73 Amauri Feres Saad Muitas auditorias realizadas por órgãos de controle interno e externo se utilizam do método da curva ABC, segundo o qual são selecionados os itens financeiramente mais representativos da planilha orçamentária (normalmente representando 80% do valor global do contrato), realizando-se a comparação apenas relativamente a tais itens. Ainda que admitamos a razoabilidade de tal método, principalmente do ponto de vista da eficiência e celeridade dos trabalhos, deve-se ressaltar que é permitido às partes contratantes (Administração Pública ou particular) fazer prova contra os apontamentos de sobrepreço, mediante a avaliação dos itens que não foram considerados pela auditoria, caso isto repercuta de alguma forma nos resul tados alcançados.16 O terceiro princípio é o da uniformidade ou coerência da aplicação das cotações referenciais. Tal princípio consiste em que, uma vez escolhido um referencial, este deve ser utilizado preferencialmente sobre outros; somente nos casos de limitações ou omissões do mencionado referencial, é que se permite a utilização (subsidiária) de outras cotações referenciais. Isto porque cada cotação, oficial ou não, segue parâmetros próprios e muitas vezes diversos entre si, que resultarão em preços maiores ou menores para cada insumo ou item de serviço, muito embora possa acontecer que, considerados os preços de um grupo abrangente de itens, os seus resultados sejam equivalentes. A coerência de cada cotação — e portanto a sua utilidade para a orçamentação de obras públicas e para a avaliação jurídica de tal ação — reside não na sua capacidade imediata de identificar os preços mais baixos para cada insumo, mas sim na sua aptidão para refletir, com certo grau de confiabilidade, os valores médios encontrados no mercado, em determinadas circunstâncias dadas, para uma gama variada de itens. A realização de obras públicas envolve um enorme esforço empresarial, com a mobilização de grande quantidade de pessoas e a inversão de recursos vultosos. A sua orçamentação, portanto, não pode ser conduzida de forma irrefletida, como se se tratasse de verdadeira “caça ao preço mais baixo”, bastando para tanto a busca meticulosa dos itens mais convenientes nas tabelas disponíveis. O princípio da coerência ou da unifor midade da utilização das cotações referenciais veda tal prática: as cotações referenciais não estão à disposição do arbítrio do analista; seu emprego deve ser minimamente consistente. E por consistente designe-se também o ônus, que cabe inelutavelmente ao analista, de expor, didaticamente — e tornar acessíveis ao público — todas as premissas e métodos por ele utilizados na análise de determinada planilha con tratual de preços, bem como os respectivos cálculos. Impõem-no não somente o princípio da coerência da aplicação das cotações referenciais, mas também os princípios da motivação e da publicidade, regentes dos atos administrativos (Constituição Federal, art. 37, caput). A auditoria realizada sem que se respeitem tais diretrizes padecerá de vício insanável, se dela decorrerem efeitos que afetem o plexo de direitos e obrigações representado pela licitação ou pelo contrato. Muito menos se poderá decidir (e isto especialmente no caso dos órgãos de controle externo) no sentido da existência de sobrepreço, sem que o iter (cálculos, premissas e métodos) que levou a tal conclusão esteja plenamente disponível e demonstrado aos interessados. inspeção. Isso porque tais valores foram levantados unicamente entre os itens de serviço que apresentaram sobrepreço, desprezando-se aqueles com preços inferiores aos de mercado. O entendimento prevalecente nesta Corte é no sentido de que eventuais débitos decorrentes de superfaturamento devem ser apurados pela diferença entre o preço global efetivamente pago pelo objeto contratado, tomado em sua plenitude, e o preço do mesmo objeto normalmente praticado no mercado, e não em função de parcelas específicas do objeto (itens de serviço tomados isoladamente). Tal foi o entendimento esposado pelo TCU, por exemplo, na Decisão nº 469/1999 – Plenário (sessão de 29/07/1999, ata nº 32).” No mesmo sentido são o Acórdão nº 2885/2008 – Plenário – Sessão de 03.12.2008 – Ministro Relator Ubiratan Aguiar – Processo nº 008.795/2007-6; e o Acórdão nº 469/1999 – Plenário – Sessão de 28.07.1999 – Ministro Relator Adhemar Ghisi – Processo nº 001.025/1998-8. 16 Outra dimensão apresenta este princípio. Celso Antonio Bandeira de Mello, com a costumeira perspicácia, em estudo em que defende a possibilidade de contratação de licitante segundo colocado em contratação em que houve desistência do primeiro colocado, pelo mesmo preço global apresentado por este e com proposta com preços unitários diversos, acaba por sustentar (ainda que sem identificar este princípio de forma autônoma) a incidência do princípio da globalidade. Para o autor, “No caso vertente, a licitação foi julgada pelo critério (“tipo” na expressão da lei) do menor preço. Menor preço, como se sabe, é o menor preço global e não o menor preço cotado para tal ou qual item da planilha, nada importando quanto a isto que se trate de empreitada por preço unitário. Sejam quais forem os preços unitários propostos, o contratado terá de manter-se [na hipótese de convocação do segundo colocado para assumir a posição do primeiro] dentro do menor preço global dentre os oferecidos pelos licitantes — e, por isto mesmo, reputado merecedor da vitória no certame disputado. Ocorre que entre as ofertas dos vários licitantes para obras de engenharia de algum porte (excluída alguma fantástica e inacreditável coincidência) haverá não apenas diferença quanto ao preço global, final, a que aportem, mas também inevitáveis e irremovíveis diferenças reais quanto aos preços unitários” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Contrato de obra pública: convocação do segundo colocado: contrato pelo mesmo valor global com valores unitários distintos dos originários: viabilidade. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 35, p. 113-114, 2001). artigos 74 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas O quarto princípio — e talvez seja o mais importante — é o da primazia da realidade. Para a aplicação da regra contida nas leis orçamen tárias, é obrigatória a observância do seguinte: os referenciais impostos por lei (SINAPI, SICRO ou qualquer outro) só são válidos como critérios de limitação de preços se, e somente se, os custos unitários neles detalhados corresponderem “in concretu” aos preços de mercado ao tempo, região e escala considerados para a contratação e execu ção contratual, em condições de risco semelhantes. Em nome de tal pressuposto, que deriva, como é óbvio, do princípio da boa-fé nas contra tações públicas, no caso de divergência entre o va lor de um item (bem ou serviço) cotado no SINAPI ou SICRO e o seu valor de mercado, deve prevale cer este, sem que se apresente qualquer ilegalidade. Afinal, não é razoável supor que uma cotação referencial — que constitui uma abstração sobre uma dada realidade — não possa, eventualmente, seja por anomalias de mercado (que podem fazer a cotação de um bem subir ou cair brusca ou vertiginosamente), seja em razão de discrepâncias técnico-metodológicas na atualização ou aferição de preços (como sói acontecer com tais índices, conforme já foi admitido pelo Tribunal de Contas da União),17 seja, enfim, pelas peculiaridades de estrutura organizacional do particular contratado, apresentar divergências com relação a preços reais praticados em determinada região e época. Do mesmo modo, as peculiaridades de cada obra ou serviço devem ser levadas em conta quando da análise dos seus preços em comparação com os mencionados referenciais: fatores como condições geográficas, topográficas, geológicas, de produtividade, entre outros, devem ser considerados. Outro princípio aplicável ao caso é a da intencionalidade da conduta dos contraentes (ou culpabilidade). Com efeito, além do âmbito obje tivo da relação jurídica, é imperioso que o analista perquira este aspecto das partes contraentes, a fim de comprovar a presença de má-fé ou dolo capazes de macular a legitimidade dos preços contratados. A consideração deste aspecto deriva da necessidade de se separar as hipóteses de simples erro de avaliação, em que não há ilegalidade, daquelas em que se configura o ilícito, pois se verifica a fraude. Em tal raciocínio não há novidade alguma, pois, de há muito, a doutrina admite que a culpabilidade é pressuposto para a aplicação de decisões administrativas restritivas da esfera jurídica do particular.18 Por fim, cite-se um sexto princípio aplicável a esta dimensão da precificação das contrata ções administrativas, que vem a ser o princípio do valor formal das contratações administrativas. Este princípio, derivado dos princípios da pre sunção de legalidade dos atos administrativos, da segurança jurídica e da razoabilidade, significa, de forma sintética, que a presunção de legitimi dade das contratações administrativas somen te pode ser afastada se se verificar razão de fato consistente e grave para tanto. Reflete a máxima pontuada por Carlos Maximiliano, segundo a qual as normas devem ser interpretadas inteligentemente, devendo-se preferir “a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que tome aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo”.19 Incide da seguinte forma: caso, ao final da avaliação, se verifique nos preços contratados uma discrepância pequena, a maior, equivalente a percentual ínfimo do valor global da contra tação, em comparação com os preços tidos por de mercado, sem que haja concomitantemente qualquer indício de má-fé quer da Administração Pública, quer do particular contratado, é imperativo, por uma questão de razoabilidade, o respeito às condições efetivas da proposta vencedora. A engenharia de orçamentos, área do conhe cimento mais afim à matéria ora estudada, não é uma ciência exata, passível de verificabilidade nos termos destas. O direito positivo, lembre-se, em face dos dispositivos já colados no presente trabalho, adotou a locução “preço de mercado” para identificar o summum bonum na precificação de obras públicas, sem a decompor em pormenores. Este ideal nem sempre pode ser conhecido em sua plenitude ou em caráter insofismável, com Cf. Acórdão TCU nº 1736/2007, Plenário, Relator Ministro Ubiratan Aguiar, publicado no DOU, 31 ago. 2007. Cf. VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 55; OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 311-349; e, em posição um pouco atenuada, admitindo tão somente a ausência de voluntariedade como excludente da punibilidade, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 855-856. 19 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 135-136. 17 18 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 75 Amauri Feres Saad precisão matemática. Casos há em que se pode ter apenas uma ideia aproximada do que seria enquadrável na locução “preços de mercado” e, por conseguinte, o que nela não se enquadraria. Reconhecendo a falibilidade da orçamentação de obras de engenharia, o art. 3º da Resolução nº 361, de 10 de dezembro de 1991, do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA), em sua alínea “f”, define como uma das características do projeto básico “definir as quantidades e os custos de serviços e forneci mentos com precisão compatível com o tipo e porte da obra, de tal forma a ensejar a determinação do custo global da obra com precisão de mais ou menos 15% (quinze por cento)” (grifou-se). O próprio Tribunal de Contas da União já decidiu, em alguns casos, acertadamente, que discrepâncias de pequena monta entre os preços tidos por de mercado e os contratados não significam a ocorrência de “sobrepreço” ou “superfaturamento”,20 devendo por isto ser aceitos. Ao lado do princípio do valor formal das contratações administrativas, importante mencionar, também, o princípio da proteção ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, consagrado constitucionalmente (art. 37, inc. XXI). Por força desse princípio, que, por assim dizer, incide em bloco com o primeiro — por uma afinidade semântica — não se pode impor ao contratado a execução do contrato por preço abaixo do constante de sua proposta. Isto impõe, inevitavelmente, um maior ônus argumentativo quando se pretende sustar os efeitos de um contrato administrativo. A eventual desconformidade com os preços de mercado deve se constituir num argumento que possa suplantar os dois primeiros. 21 Este ônus — suportado pelo analista — é naturalmente uma imposição do Estado democrático de Direito instaurado pela Constituição Federal. Em diferente dimensão, o princípio do valor formal das contratações administrativas também deve ser considerado: muitas vezes, em auditorias, os órgãos de controle pretendem substituir opções técnicas realizadas em determinada contratação. Assim, substitui-se uma determinada técnica por outra, que o órgão de controle considera equivalente para o mesmo serviço ou um equipamento, realmente empregado na obra, ou ainda se pre tende eliminar horas de trabalho ou reduzir o número de profissionais que trabalhariam na obra, por se considerar que o mesmo trabalho poderia ser feito com menos profissionais ou menos horas de trabalho. A justificativa da totalidade dos casos (pois do contrário os órgãos de controle não se dariam ao trabalho de realizar esta verificação) é a de que a nova solução proposta pelos órgãos de controle é mais barata, e, portanto, o simples fato de ter-se adotado solução técnica diversa (com preços diversos) significaria o ocorrência de sobrepreço no contrato, cabendo, portanto, a glosa unilateral dos valores correspon dentes no contrato. Aqui, deve-se ressaltar que, pela incidência do princípio do valor formal dos contratos admi nistrativos, a mera comparação de técnicas, equipamentos ou profissionais não é suficiente para sustentar-se a existência de sobrepreço: cabe ao analista comprovar ou a total incompatibilidade das técnicas (aí se incluindo equipamentos e mão de obra) empregadas com o projeto ou a má-fé dos contratantes. Fora de tais hipóteses, impõe-se a manutenção das condições contratadas, haja vista Os termos “sobrepreço” e “superfaturamento” têm sido usados pelos órgãos de controle ora como sinônimos, no sentido simples de preço acima dos de mercado (vale dizer, das cotações referenciais), sem o requisito da intencionalidade, que defendemos acima; ora têm sido empregados em acepções diversas. Neste último caso, o termo “sobrepreço” referir-se-ia às hipóteses de dano potencial ao Erário (considerado assim o contrato apenas firmado com preços acima dos de mercado, mas ainda não executado, sem a ocorrência de pagamento efetivo do Poder Público ao particular); e o termo “superfaturamento” referir-se-ia ao sobrepreço atualizado, isto é, tornado existente, verificado na realidade. Para nós, a distinção é de pouca produtividade jurídico-metodológica e mais atrapalha que ajuda. Apenas para que se tenha ideia, tem-se verificado auditorias realizadas por tribunais de contas, em que se constatam, em tal ou qual contratação, quantitativos estimados a maior, o que é relativamente comum em projetos de engenharia. O preço global do contrato que contivesse tal erro, por considerar os preços unitários multiplicados pela sua quantidade, seria naturalmente superior àquele obtenível a partir da consideração das quantidades corretas. Ora, nestes casos, muitas vezes, órgãos de controle têm considerado haver sobrepreço, simplesmente deixando de analisar o regime da contratação. Explica-se: se se tratasse de contratação em regime de empreitada por preço global, na qual o preço final é, ao menos em tese, derivado da soma do preço unitário de todos os itens de planilha multiplicados pela sua quantidade, poder-se-ia entender que o potencial (sobrepreço) vai se tornar, com a execução do contrato, existente (superfaturamento). No caso de contratações em regime de empreitada por preço unitário, em que somente são medidos e pagos os serviços efetivamente executados, o eventual erro de estimativa de quantitativos (identificado inadvertidamente como sobrepreço) nunca seria verificável na realidade. Dito de outra forma: no caso tratado, o sobrepreço nunca se transformaria em superfaturamento, descabendo, portanto, inquinar os responsáveis de causadores de dano ao Erário. Por tais razões preferimos utilizar os termos como sinônimos (entendendo que a carga semântica do termo “superfaturamento” acaba sendo mais negativa, conotadora de corrupção, do que aquela presente no termo “sobrepreço”), tendo-se sempre o cuidado de somente empregá-las quando seja inexorável o dano ao Erário (ou seja: quando houver relação de causalidade entre a potência e a existência). 21 Cf. Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 941/2010, Plenário, rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti, julgado em 05.05.2010; Acórdão nº 36/2010, Plenário, rel. Min. Raimundo Carreiro, julgado em 23.01.2008; Acórdão nº 1621/2005, Plenário, rel. Min. Ubiratan Aguiar, julgado em 11.10.2005; e Acórdão nº 394/2003, Plenário, rel. Min. Guilherme Palmeira, julgado em 23.04.2003. 20 artigos 76 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas que elas refletem, de um lado, as opções discricionárias do administrador público na elaboração do projeto básico e do projeto executivo, e, de outro, a concordância do particular contratado com a técnica licitada. O que ora se afirma deriva do fato de que — embora, em tese, possa haver realmente técnicas equivalentes, capazes de produzir os mesmos resultados — não se pode ignorar que uma determinada técnica pode ser mais confiável que outra, por ser utilizada há mais tempo ou por produzir resultados mais consistentes ou de qualidade melhor. É perfeitamente normal que a empresa contratada possa estar capacitada para a execução de uma técnica e não de outra, ou que prefira, segundo sua expertise, esta em detrimento daquela. Tais fatores são mais palpáveis ainda quando, na licitação, se exija dos proponentes a apresentação de metodologia de execução, porquanto, neste caso, várias das opções técnicas ficarão, respeitados os projetos básico e executivo, a cargo do contratado privado. Em tais casos, com efeito, a análise deverá dotar-se de redobrados cuidados, sob pena de ferir o princípio de que ora se cuida. Do mesmo modo, há que se atentar para casos em que se pretende discutir a estrutura de custos diretos e indiretos, muitas vezes retirando deste último (o chamado BDI) rubricas que eram permitidas ou mesmo impostas pelo edital. É muito comum, no Tribunal de Contas da União pelo menos, o questionamento dos custos indiretos (BDIs) de determinados contratos, por se considerar que neles ou foram incluídos custos indevidos (como nos já famosos casos do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, que na visão do TCU são tributos personalíssimos e por isto não podem onerar o contrato)22 ou que neles encontram-se preços que deveriam pertencer à parcela de custos diretos.23 Não é objeto do presente estudo analisar a abrangência ou validade de tais orientações (mesmo porque a quantidade de problemas legais e constitucionais que as acometem seria suficiente para a elaboração não de um, mas de vários estudos); o que se deve reter, neste passo, é que a incidência do princípio do valor formal dos contratos administrativos impede que estes sejam invali dados (ainda que parcialmente), quer mediante a realocação dos preços (de indiretos para diretos ou vice-versa), quer mediante a sua glosa. Se a proposta foi apresentada de boa-fé nos termos do edital e aceita pela Administração Pública, aperfeiçoa-se a equação econômico-financeira, devendo o vínculo ser mantido e respeitado em sua integralidade até o término da avença. A partir de tal raciocínio, surge a pergunta: seria então a noção de sobrepreço (ou superfatu ramento), entendida como a diferença, a maior, verificada em determinado contrato, compara ti vamente com os preços de mercado, e decorrente de condutas fraudulentas das partes, verificável empiricamente pelo analista? É de se pensar que sim. Seguidos os princípios específicos acima refe ridos, que derivam dos princípios jurídicos da razoabilidade, segurança jurídica e daqueles outros consagrados no art. 37, caput, da Consti tuição Federal, poder-se-á atingir juridicamente situações de manifesta lesividade ao Poder Público, coibindo-se o locupletamento ilícito do particular contratado. 3.2.1 Da aplicação concreta dos princípios re lativos à precificação das contratações administrativas O Poder Judiciário, bem como alguns órgãos de controle (notadamente o Tribunal de Contas da União), têm decidido ainda de forma inconsistente e sem uma formulação teórica adequada sobre o tema. Não se verifica, com clareza, uma ordenação coerente das normas aplicáveis. Os princípios acima relacionados — ou seja, o regi me jurídico da precificação dos contratos adminis trativos — não são distinguidos com nitidez, embora se façam notar como fundamento ou ratio de decidir em alguns julgados. Por esta razão é que, não obstante não sejam enunciados expres samente, pode-se verificar a sua incidência (implícita) em casos específicos. O TCU, no Acórdão nº 1.736/2007, Plenário, relator o Ministro Ubiratan Aguiar, publicado no DOU, 31 ago. 2007, já teve a oportunidade de analisar em detalhes a composição do SINAPI, Este entendimento gerou a Súmula nº 254/2010 do TCU, que se transcreve: “O IRPJ – Imposto de Renda Pessoa Jurídica e a CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido não se consubstanciam em despesa indireta passível de inclusão na taxa de Bonificações e Despesas Indiretas – BDI do orçamento-base da licitação, haja vista a natureza direta e personalística desses tributos, que oneram pessoalmente o contratado”. 23 No âmbito do TCU, o precedente mais citado é o Acórdão nº 325/2007 (Sessão: 14.03.07, rel. Min. Guilherme Palmeira), em que se determinou que “os itens Administração Local, Instalação de Canteiro e Acampamento e Mobilização e Desmobilização, visando a maior transparência, devem constar na planilha orçamentária e não no LDI”. 22 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 77 Amauri Feres Saad constatando as principais impropriedades e limitações deste referencial: 84. Pesquisando as composições do Banco Nacional num relatório sintético de custos gerado por meio do SINAPI-SIPCI(9), foi possível encontrar incon sistências de diversos tipos, o que corrobora a neces sidade de aferições. Verificou-se, por exemplo, ocor rências de composições distintas cujas descrições remetem ao mesmo serviço, não sendo possível perceber algo que justificasse a necessidade de todas elas; composições de uso restrito a determinado pro jeto; e serviços agrupadores (títulos de grupos de composições) incoerentes com as composições que representam. Essas situações são ilustradas a seguir. (...) 98. Deve-se lembrar que na LDO/2006, art. 112, §2º, consta a exigência de que a Caixa providencie a ampliação do sistema, a fim de que outros tipos de obra sejam contemplados, “com base nas informações prestadas pelos órgãos públicos federais de cada setor”. Atualmente a medida tomada pelos gestores do SINAPI para atendimento ao dispositivo legal consiste em assinar convênios com órgãos setoriais da esfera federal para que eles forneçam suas composições de serviços, a exemplo do ajuste já celebrado com a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – INFRAERO (fl.11, Anexo 1). A solução adotada, portanto, inclui esses órgãos no grupo de entes conveniados, cujas composições são armazenadas em bancos próprios (BCs). Bancos desse tipo caracterizam-se por serem inacessíveis a outros usuários e não sofrerem qualquer ingerência da Caixa. 99. Inicialmente já se torna perceptível que a solu ção adotada é insuficiente por inadequação do tipo de relacionamento atribuído aos órgãos federais fornecedores de composições da forma disposta na LDO. Como seus bancos também devem servir de referência para a contratação de obras a serem pagas com recursos federais, eles precisam ser acessíveis a todos os usuários e conter informações confiáveis. Em outras palavras, os bancos de composições desses entes precisam ter caraterísticas semelhantes às do Banco Nacional da Caixa. Para solução dessa demanda, sugere-se a criação de um novo banco de dados, denominado SINAPI-Referencial, constituído pelas atuais informações do BN e as oriundas dos referidos órgãos setoriais federais, com as origens devidamente identificadas. (...) 111. Os custos dos insumos “representados” são atribuídos a partir dos valores obtidos para os “representativos”. Primeiramente, são distribuídos os insumos em grupos homogêneos (“famílias”) quanto à cadeia produtiva e à forma de comercialização (fl. 198, Anexo 1). Após, são definidos os itens representativos, como aqueles mais usuais ou de coleta mais fácil (fl. 198, Anexo 1). Para os itens “representativos” é feita a pesquisa de custos, enquanto que para os “representados” (não coletados) são atribuídos os custos a partir da multiplicação dos valores referentes aos respectivos “representa tivos” por “coeficientes de representatividade”, obtidos a partir de uma “coleta extensiva”. finan ceiramente relevantes, em diferentes obras padrão, será um instrumento para melhor selecionar o insumo a ser pesquisado, pois evitará soma tória de erros decorrentes do fator multiplicador e da coleta, para os itens mais significativos. (...) 160. Diante das situações discriminadas e outras encontradas, é necessária uma análise mais aprofundada dos resultados, para não permitir falhas na publicação dos custos referenciais, e das justificativas para as grandes diferenças demográficas quanto à evolução dos custos relativos e absolutos. (...) 173. Entretanto os critérios adotados por cada gestor não estão disponíveis para consulta, o que dificulta a avaliação que cada usuário do SINAPI deve fazer ao adotá-lo como referencial de preços. De fato, ao se discutir encargos sociais, devem ser consideradas particularidades regionais que podem afetar sua composição, como as convenções coletivas de trabalho. Porém, sendo essas informações usadas como referência oficial, torna-se desejável a existência de métodos objetivos de obtenção. 174. Verificou-se, porém, que a Caixa não possui normativo interno indicando modo de cálculo e itens que devem compor a taxa (fl. 201, Anexo 1). A falta de metodologia única e bem definida a ser aplicada em todo o país pode acentuar as diferen ças entre as taxas regionais devido a distorções de cálculo. (...) 3.1.12. Não há manuais com metodologia e con ceitos utilizados no SINAPI. 181. Em resposta à última pergunta da Requisição de Informação 763/2006-01 (fl. 24, Anexo 1), a Caixa informou que não dispõe de manual contendo critérios que possibilitam a elaboração de orçamen tos de referência, justificando a ausência por ser o SINAPI “destinado a arquitetos e engenheiros, que têm essa matéria contemplada em seus currículos escolares.” A empresa complementa comunicando que está “trabalhando em conjunto com a área de tecnologia da Caixa, na confecção do ‘manual do usuário’ do sistema, contendo todo o passo-a-passo para apoiar a sua navegação/utilização”. 182. Em que pese a importância de um “manual do usuário”, questão comentada noutro tópico deste relatório, ele não pode ser considerado substituto de documentação em que se encontram registrados os conceitos e a metodologia de obtenção dos dados do sistema. Mesmo engenheiros e arquitetos com práti ca em construção civil necessitam da especificação de todos os elementos de uma obra para que a con sigam executar corretamente. Da mesma forma, os operadores de um sistema de custos como o SINAPI precisam conhecer suas particularidades a fim de obterem exatamente os resultados desejados. 112. O agrupamento em “famílias” é feito com base na experiência e nos conhecimentos dos técnicos da Caixa, por critério subjetivo. Disso, observa-se a necessidade do aprimoramento desse critério, com a implementação de avaliação objetiva que o suporte. 183. Entende-se por “manual de metodologia e con ceitos” uma publicação que encerre informações sobre a estrutura do sistema, as definições dos termos utilizados, a sistemática para obtenção dos preços de insumos, inclusive explicitando as limitações e as considerações adotadas quando não se dispõem de valores em todas as unidades federativas, o caderno de encargos das composições, as especificações dos insumos, a discriminação e as considerações sobre componentes da taxa de encargos sociais, dentre outros tópicos que caracterizam plenamente os critérios aplicados na concepção do sistema. Os temas mencionados acima são exemplificativos, não constituindo uma lista exaustiva do conteúdo. 113. Ademais, na identificação do insumo representativo não se utiliza como critério prioritário a significância do seu custo na obra (fls. 194 e 198, Anexo 1). Nesse sentido, o estudo dos insumos 184. Uma documentação com essas características é essencial para que o usuário do SINAPI tenha condições de compreender claramente o resultado que obtiver, ciente das considerações e limitações do artigos 78 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas sistema. Isso aprimora a confiabilidade do SINAPI, na medida em que minimiza a possibilidade de erros decorrentes do desconhecimento de particu laridades dos dados. (...) 3.2.1. Os atuais insumos e serviços constantes no SINAPI não alcançam plenamente obras rodo viárias, ferroviárias, hidroviárias, portuárias, aero por tuárias, barragens, irrigação, de edifícios públicos, de saneamento básico e de infra-estrutura energética. 200. Cabe ainda registrar a informação da GEPAD/ RJ na qual, em entrevista à equipe de auditoria (fls. 202 do Anexo 1), esclareceu que, respeitadas as ações em curso de ampliação da base de dados, o atual sistema abrange basicamente obras de drenagem, saneamento básico, habitação, infra-estrutura urbana e rural (vias), equipamentos comunitários e centros de lazer. 201. Apesar das ações empreendidas desde 2002 pela CAIXA, observa-se que o sistema permanece deficiente quanto aos tipos de empreendimentos atendidos. (...) 208. Das informações colhidas dos gestores e das evidentes limitações verificadas para execução de obras listadas pela Lei de Diretrizes, conclui-se que a atual base de dados de custos do BN do sistema SINAPI atende parcialmente os tipos de empreendimentos citados no §2º do Art. 112 da LDO/2006, uma vez que grande parte dos insumos e serviços que compõem essas obras ainda não se encontram nessa base. (...) 275. Com vistas a, principalmente, prevenir grandes variações, ao longo do tempo, nas relações de custos entre os insumos de uma mesma “família” — representados e representativos —, observou-se, ainda, a necessidade da formalização de norma tivo que contemple a periodicidade de realização da “coleta extensiva” que viabilize a atualização da citada correlação. 276. Já em relação a coleta e definição dos preços dos insumos por UF, verificou-se a necessidade de se buscar alternativas que eliminem a adoção de preços de insumos coletados noutra UF, ou, na impossibilidade, que se identifiquem custos, como fretes ou diferenças de impostos, que permitam a adequada utilização do preço coletado na UF des tino. Tal situação decorreu do fato de existirem, atu almente, preços de insumos de certa UF originados de outro centro de pesquisa ou de valores medianos nacional ou regional, sem consideração acerca de parcelas que necessariamente ajustariam o preço do local coletado ao da UF destino. 277. Ainda, com o intuito de tornar mais precisos os preços dos insumos definidos para cada UF aos valores medianos praticados no mercado, identificou-se a necessidade de se considerar, especifi camente em relação à parcela “materiais”, o fator “economia de escala”, sabidamente utilizado pelos fornecedores de serviços quando da aquisição de grande quantidade de materiais para execução das obras, assim como de se elaborar, em relação ao insumo “mão-de-obra”, normativo interno que vincule a determinação da taxa de encargos sociais a uma metodologia única para o país, na qual deverão estar estabelecidos e disponíveis aos usuários do sistema todos os componentes da taxa e os parâmetros considerados. 278. Ademais, constatou-se a necessidade de se melhorar a descrição apresentada para alguns insu mos, eximindo-se de associá-los à marca, modelo ou fabricante, em respeito ao inciso I do §7º do art. 15 da Lei 8.666/1993, e de se atender à variedade mínima de fabricantes por item pesquisado. (...) 283. Em relação aos tipos de empreendimentos atendidos, concluiu-se que o sistema necessita aumentar sua base de informações, uma vez que atualmente as informações de insumos e composi ções de serviços abrangem parcialmente os tipos de obras estabelecidos no §2º do art. 115 da LDO/2007, quais sejam, obras rodoviárias, ferroviárias, hidroviárias, portuárias, aeroportuárias, barragens, irrigação, de edifícios públicos administrativos, de saneamento básico e de infra-estrutura energética. Constatou-se, inclusive, inexistência de previsão para realização do pleito, assim como para a inserção no Banco Nacional de insumos e ou compo sições de serviços suficientes ao atendimento de tecnologias de construção incorporada pelo mercado em períodos mais recentes. (...) 291. Os atuais insumos e serviços constantes no SINAPI necessitam ser ampliados de forma a atender ao disposto na LDO, ou seja, possuir informações suficientes para os principais tipos de obras públicas, em especial as obras rodoviárias, fer roviárias, hidroviárias, portuárias, aeroportuárias e de edificações, saneamento, barragens, irrigação e linhas de transmissão. Dessa forma, para que essa demanda legal seja atendida tempestivamente, torna-se necessário que a Caixa juntamente com os órgãos setoriais que detêm tais informações, desde já providenciem plano de trabalho com definição de metas e cronogramas para extinção da pendência. 292. E, diferentemente do exigido no dispositivo legal, os custos de serviços ainda não estão disponi bilizados no SINAPI-WEB, com livre acesso na inter net, limitando-se a obtenção de tais informações aos órgãos com convênios para uso do sistema SINAPISIPCI, sendo necessário que a Caixa permita aos órgãos e às entidades públicas que executem obras com recursos dos orçamentos da União o uso dos dados sem restrição. (...) 294. Por fim, cabe registrar que, como todo sistema em desenvolvimento, o SINAPI necessita de aprimoramentos. Disso, se reconhece que, na eventua lidade de existir casos de inconsistência de informa ção nesse sistema, os gestores usuários dos dados poderão proceder aos ajustes devidos, desde que comprovadamente fundamentados em justificativas apropriadas”. (grifos aditados) Como se verifica no longo e necessário trecho do relatório do Ministro Ubiratan Aguiar, acima trans crito, o TCU, ao constatar que o referencial SINAPI, a despeito de sua previsão nas sucessivas leis de diretrizes orçamentárias, padece de inúme ras in consistências, tendo um espectro de aplicação mui to restrito, em contraste com a amplitude desejada por tais leis, além de não ter uma metodologia precisa e acessível àqueles que dele se devem utilizar, privilegiou, de fato, o princípio da primazia da realida de: só seria aplicável o referencial legal (à época apenas o SINAPI) caso este pudesse corresponder, com um mínimo de consistência aos preços de mercado verificados nas diversas regiões do País. Privilegiouse, também, na referida decisão, o princípio da coerência, na medida em que considerou inaplicá vel o referencial, a partir da constatação de suas inconsistências técnicas e da impossibilidade de acesso a todos os interessados à metodologia que preside a sua elaboração e emprego. O TCU, assim como fez quanto ao SINAPI, reconheceu as limitações do referencial do SICRO, elaborado pelo DNER/DNIT, em diversas oportunidades. Exemplificativamente, o tribunal afastou a aplicação do SICRO, que é referencial aplicado para obras rodoviárias, mesmo em se tratando de caso atinente a tal modalidade de obras: O SICRO é um sistema de custos implementado pelo DNER, tendo como objetivo a confecção de tabelas de referência de preços que, por sua própria Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 79 Amauri Feres Saad natureza, são desvinculadas dos projetos específicos das obras. Trata-se de um referencial, não se constituindo um instrumento único, inflexível. A estrutura básica das composições dos itens contidos no SICRO é, de certa forma, uniforme, como, por exemplo, os equipamentos, mão-de-obra, mate riais, transporte. De igual forma, na construção de uma rodovia, faz-se necessária a realização de alguns itens, tais como: terraplanagem, pavimen tação, drenagem, serviços de preservação ambiental, urbanização, materiais betuminosos, iluminação, obras complementares etc. Contudo, cada obra tem características próprias. Conseqüentemente, claro está que o preço também será diferente. De fato, esse raciocínio é primário, demais até. Porém, é necessário explicitá-lo para dar suporte ao meu entendimento sobre as questões aqui tratadas. Com efeito, comparar os preços desta rodovia com aqueles contidos no SICRO, sem levar em consi deração as características da obra, não é uma boa técnica auditorial. Não é um procedimento, tecnica mente correto, de se buscar evidências suficientes, competentes e pertinentes. (omissis) Ora, adotando-se os preços contidos no Sistema de Custo Rodoviário tem-se, aparentemente, um superfaturamento na construção dessa obra. No entanto, é preciso ressaltar que o SICRO é elabora do pelo próprio DNER, servindo apenas como um referencial. Não é uma tabela. Se o fosse, dever-se-ia partir da premissa de que todas as obras deveriam ser iguais, o que não é verdade. Assim, como os preços praticados pela empresa vencedora da licitação estão compatíveis com os próprios preços orçados pelo DNER, responsável pela elaboração do SICRO, e pelo DER/ES, fica afas tada a hipótese de sobrepreço e superfaturamento.24 (grifos aditados) Aliás, tamanha é a probalidade de imprecisão em resultados de cotações utilizando-se o SICRO, que o TCU, em prestígio aos princípios da identidade e da coerência na aplicação já decidiu pela adoção da média de preços de propostas em dada licitação como padrão de preços de mercado, em detrimento dos resultados obtidos utilizandose a tabela SICRO. Veja trecho de relatório e voto do Ministro Adylson Motta, in verbis: a) Relatório: A Equipe de Auditoria também analisou os preços globais e unitários em confronto com o subitem 8.1.1 da Decisão nº 1.640/2002 – TCU – Plenário, de acordo com o qual foi determinado ao DNIT o seguinte: ‘8.1.1. proceda à alteração do Edital nº 0003/02-00, elaborado com vistas à contratação das obras de duplicação e restauração da BR-101 Sul, no trecho entre o Município de Palhoça/SC e a divisa entre os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, fazendo constar daquela peça regra dispondo que, caso se faça necessária a celebração de termos aditivos aos contratos que vierem a ser celebrados, para inclusões ou alterações de quantitativos de itens 24 das obras, deverão ser observados os preços adota dos nas tabelas do Sistema de Custos Rodoviários - Sicro, em confronto com os preços de mercado, prevalecendo estes como parâmetro, no caso de distanciamento entre eles;’. A determinação acima teve como objetivo evitar que, nos aditivos, itens de serviço com preços muito acima do mercado tivessem seus quantita tivos aumentados possibilitando o já conhecido ‘jogo de preços’ ou ‘jogo de planilha’, que permitem que propostas inicialmente vantajosas tornem-se desvantajosas após os aditivos. Como já exposto acima, a licitação em questão teve uma competitividade tão acentuada que pode-se dizer, sem medo de errar, que as médias dos preços unitários propostos para cada um dos itens de serviço constantes das planilhas de cada lote refletem, da melhor maneira possível, a média do preço de mercado daquele item de serviço específico. Não existe forma melhor de se descobrir o preço médio de mercado de um item de serviço, para uma obra específica, em um momento específico, do que se calculando a média dos preços propostos por um número tão significativo de empresas. Tal aferição de preço é muito mais precisa do que a que o DNIT utiliza para o Sistema SICRO 2. As razões são as seguintes: a) o SICRO reflete uma pesquisa genérica em Santa Catarina, enquanto as propostas apresentadas refletem os exatos locais da obra que ora se analisa; b) o SICRO reflete alguns preços reajustados via índices, não se pesquisando todos os itens todos os meses, enquanto as propostas apresentadas refletem o preço exato no mês de Agosto de 2003 (como todas as empresas validaram suas propostas, pode-se dizer que os preços estão atualizados até Agosto de 2004, quando o primeiro reajuste ocorrerá, fato este que era do conhecimento de todas as proponentes); c) o SICRO reflete o serviço como executado de uma forma padronizada, que não leva em conta uma obra específica, enquanto as propostas apresentadas refletem exatamente os serviços que serão executados. Desta forma, pode-se dizer que o verdadeiro preço médio de mercado de cada item unitário de serviço é a média dos preços unitários propostos, e não o orçado pelo DNIT. b) Voto do Ministro Relator: Não obstante partir desse sólido fundamento, deduz, a nosso ver de maneira insuficiente, que, para a consecução do equilíbrio original de um contrato, é bastante que se leve em conta a diferença percentual entre o valor global da proposta e o constante do orçamento-base, sem prejuízo da necessária aferição da compatibilidade com preços de mercado. Ocorre que muitas vezes o orçamento-base não corresponde efetivamente à realidade do mercado local, como é claramente o caso ora examinado, à vista das enormes diferenças entre o que foi orçado com base no sistema SICRO 2 e o que foi efetivamente cotado pelas empresas licitantes. É justamente essa situação que se pretende ver solucionada. Caso se adotasse o método proposto pelo Revisor no caso concreto ora examinado, é muito provável que teríamos um desequilíbrio contratual, só que agora desfavorável à Administração, trazendo o nosso problema de volta ao ponto inicial e sem uma solução plausível. Os preços constantes no SICRO 2, por exemplo, são resultado de pesquisa Tribunal de Contas da União. Decisão nº 1.088/2001, Relator Ministro Iram Saraiva, publicada no DOU, 24 jan. 2002. artigos 80 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas feita em diversos locais e são atualizados por índi ces gerais criados para serem aplicados a todo o país, sem levar em conta as peculiaridades de cada mercado local, o que inevitavelmente ocasiona as distorções verificadas nos presentes autos. (grifos aditados) Também no caso acima abordado, o TCU empregou, na fundamentação de sua decisão, os princípios da identidade, da coerência e da pri mazia da realidade. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região já decidiu pela impossibilidade de glosas de paga mentos em contrato administrativo, cujo objeto já tinha sido executado, em razão do princípio da proteção ao equilíbrio econômico-financeiro, o que, em outras palavras, nada mais é do que afirmar o valor formal dos contratos administrativos: O objeto desta ação é justamente a decretação de nulidade parcial do contrato, para o fim de não ser paga a quantia de R$1.420.642,77 à empresa requerida, valor este correspondente aos 20% de desconto previsto na ordem de serviço nº 02/2006 do DNIT. Nesse diapasão, no caso de procedência da presente ação civil pública e julgamento nos termos do TCU no acórdão nº 2071/2007 (fls. 949/957), tem-se que a empresa ré Redram seria a única efetivamente atingida por esta demanda, já que estaria impedida de receber, também via comando judicial, todo o valor que fora contratado e gasto com a rea lização da obra concluída. Quanto à obrigatoriedade deste desconto, que veio por meio de uma instrução de serviço do próprio DNIT, considero não ser apta a justificar o não pagamento de valores contratados por diversas razões. Primeiro porque a própria instrução tinha previsão de exceção, podendo haver contratos com descontos menores de 20% sobre a tabela SICRO. Segundo porque foge completamente à estipulação contratual, que não dispunha a respeito de limitação de valores ou glosas. Terceiro porque o ato convocatório, datado de um dia antes da instrução de serviço nº 2, fazia referência expressa à apresentação de planilha de itens de serviços referentes à tabela SICRO de se tembro de 2005. Se houve ou não manobras por parte do DNIT para adequação da proposta apresentada pela construtora já anteriormente aceita, não são justificativas para prejudicar a empresa. Nos autos, bem como no processo administrativo que correu perante o TCU, não restou demonstrada a má-fé ou, ao menos, a culpa da empresa contratada. Muito pelo contrário, constata-se que as irregularidades apontadas, sendo que algumas delas verifiquei nem existir, ocorreram por violação de deveres por parte dos servidores públicos, não havendo evidências de que a empresa contratada tenha concorrido para as falhas. Ao que consta, a proposta apresentada pela cons trutora foi aceita. Quando intimada para diminuir o valor, informou a impossibilidade, mas, mesmo assim, a Administração aceitou e homologou sua proposta. Após, já estar caracterizado todo o vínculo obriga cional entre os requeridos, uma vez que assinado 25 o contrato e realizados todos os serviços, ou seja, prestada a obrigação por parte da contratada, servi ços que foram fruídos pela União e pela população, não há como decretar a nulidade do contrato, com o não pagamento de valores, sequer de devolução de valores já recebidos, sob pena de acobertar o enriquecimento ilícito. (...) Dessa forma, não há como, depois de realizada a obra, pretender a Administração não pagar aquilo que foi acordado, trazendo prejuízo, única e exclu sivamente para a empresa. Outrossim, o desconto de 20% ficou estabelecido por mera conveniência da Administração – DNIT, sem qualquer amparo legal ou mesmo pesquisa de mercado e estatísticas que demonstrassem que nos processos licitatórios as propostas vencedoras possuem, em razão da livre concorrência, valores em torno de 20% menores que aqueles praticados no mercado. De fato a livre concorrência acarreta a oferta de preços mais baixos, mas também há de se destacar, que para o caso, havia um valor de referência criado e já utilizado pela Administração – a SICRO – seja ela de qual Estado da federação fosse. (...) Por fim, destaco que o pedido feito nesta ação civil pública encontra impedimento na legislação. A Lei nº 8.666/93, que regula as licitações e os contratos administrativos, estabelece no seu art. 59, parágra fo único, que a nulidade do contrato administrativo não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa. Por tudo isso que foi analisado, entendo pelo improvimento da presente ação civil pública, devendo ser pago à empresa o valor que foi medido no total de R$8.743.376,78, uma vez que essa medição não foi contestada pelas partes, descontado o que já foi pago no valor de R$7.366.355,83 (conforme memorando nº 0412/2006 do DNIT, juntado às fls. 43/46). 2. Apelação a que se nega provimento.25 (grifos aditados) Outras decisões judiciais e de tribunais de contas (algumas inclusive referidas em tópico anterior), no mesmo sentido, podem ser relacio nadas, de modo a afirmar a incidência de um regime jurídico próprio para as contratações administrativas, conforme explicitado nos itens precedentes. 4 Das diferenças entre as formas de raciocínio acerca da precificação de obras públicas Ressume de todo o sistema legal regente das contratações públicas que a metodologia utilizada para precificação deve levar em conta os padrões de mercado, em função do que não pode a Administração descurar do fato de que os resultados obtidos são remissíveis, necessariamente, a TRF4, Apelação Cível nº 0004704-34.2006.404.7005/PR, 3ª Turma, Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Relator, julgado em 25.05.2010. Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 artigos 81 Amauri Feres Saad tais padrões. A este propósito, cabe trazer à colação a sensata lição de Gustavo Pimentel Pereira e Zilda Costa Santos, ambos os autores inspetores de obras públicas do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE/PE): preço que o agente detentor do bem (vendedor) aceite receber para entregá-lo ao primeiro. Rubens Nunes aborda, de modo didático, as diferenças entre as concepções objetivistas e sub jetivistas da teoria do valor, no âmbito econômico: As Administrações Públicas, em geral, apresentam unanimidade nos procedimentos utilizados para estimar o valor de uma obra; fazem uso de tabelas de preços de várias origens: Órgãos Públicos, Empresas privadas e Publicações especializadas. (omissis) Para o economista, o agente aceita ou recusa uma transação comparando o custo total da transação (por simplicidade, o preço pago) com o custo de não realizar a transação. Tomando como exemplo um consumidor, o custo de não realizar a transação seria o custo de ficar sem o bem ou serviço dese jado, ou de se contentar com um substituto, ou ainda o custo de seguir procurando outro ofer tante. O padrão empregado para a avaliação de uma transação é a situação do agente, avaliada por ele próprio, caso a transação não se efetivasse. A metodologia da forma apresentada é objeto de preocupação, pois faz com que as estimativas de preço, elaboradas pelos Órgãos Públicos, descon siderem que os processos de contratação dão-se dentro de um mercado da construção regido pelas leis da oferta e procura.26 (grifos aditados) O trecho acima transcrito ilustra bem o que se encontra por trás das divergências quanto à precificação de obras públicas. O raciocínio rea lizado para a avaliação do preço global de obras públicas pelos analistas envolve normalmente uma matriz analógica: adota-se tal ou qual cotação referencial, “a frio”, e se comparam os preços delas constantes com os preços da planilha orçamentária contratual. Parte-se do pressuposto de que, entre aquilo que é pago (prestação da Administração Pública) e aquilo que é recebido (prestação do contratante privado), existe uma relação de igualdade. Os preços de mercado (e, portanto, os preços “justos”) seriam aqueles que correspondessem ao valor da coisa posta em comércio. Trata-se de perspectiva centrada, portanto, no objeto e cujo maior defeito é justamente perder de vista os fatores determinantes da transação, a saber, os agentes econômicos (aquele que “vende” e aquele que “compra”) e a assimetria de informações de um com relação ao outro (e vice-versa). A outra perspectiva — que certamente oferece maiores dificuldades teóricas, mas que ao mesmo tempo oferece maior segurança para a averiguação de um preço como de mercado — centra-se não apenas no objeto transacionado, mas também na percepção dos agentes econô micos. Um preço de mercado, portanto, nesta óptica, seria aquele que um determinado agente está disposto a pagar por um bem (em sentido amplo), ao mesmo tempo em que seja também o 26 O agente do outro lado da transação faz uma conta semelhante e decide fazer ou não fazer a transação. O vendedor, por exemplo, compararia duas situações: ter mais dinheiro em caixa e menos estoque, ou menos dinheiro e mais estoque. A transação só ocorreria se, para os dois, comprador e vendedor, transacionar fosse preferível a não transacionar. Se o preço pedido pelo vendedor for “excessivo”, no sentido de que o consumidor prefira reter seu dinheiro, a transação não se dá. Da mesma forma, se o vendedor entender que o preço oferecido pelo bem é “aviltante”, não haverá transação, nem preço. Não se trata da troca de “equivalentes”. Assim, preço excessivo soa, para o ouvido do economista, quase como uma contradição nos termos. O senso comum, no entanto, parece assumir um padrão distinto para avaliar as transações. O que se dá equivale ao que se recebe. O dinheiro dado pelo comprador tem o mesmo valor do bem dado pelo vendedor. Trata-se de troca de equivalentes. O valor bem é percebido como uma propriedade material dos bens, objetiva, assim como a cor, a textura, o peso, etc.27 Para os operadores do Direito, o ângulo a ser privilegiado, neste exame, é naturalmente o normativo. Todavia, quando o próprio direito positivo disciplina este aspecto por meio de um termo vago, como o faz no caso das contratações administrativas, torna-se necessário um esforço argumentativo que possa conciliar a racionalidade dos agentes econômicos — e que não pode ser negada, pois integra a própria natureza da tran sação — com níveis mínimos de segurança jurídica, o que se dá por meio do respeito ao regime jurídico aplicável à matéria. 5 Conclusões Os princípios (identidade, globalidade, uni formidade, primazia da realidade, intencionalidade e valor formal das contratações administrativas), PEREIRA, Gustavo Pimentel; SANTOS, Zilda Costa. Avaliação de superfaturamento por intervalo de confiança da média: um equívoco. p. 1. Disponível em: <www.ibraop.org.br/site/media/sinaop/08_sinaop/avalia_confi_media.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2009. NUNES, Rubens. Lucro arbitrário e preço excessivo. CADE Informa, n. 4, mar. 2007. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/news/n004/artigo. htm>. Acesso em: 29 out. 2010. 27 artigos 82 Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011 Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas derivados todos do regime jurídico-administrativo, e que a nosso ver constituem o regime jurídico da precificação das contratações administrativas, são propostos para manter a racionalidade econômica e as exigências de segurança na aplicação do direito positivo num grau aceitável de consistência. A tensão entre os dois pontos de vista, conforme mencionado no tópico precedente, perma- necerá. Todavia, será transposta para um plano secundário quando da análise objetiva de cada situação fática, segundo o regime jurídico que lhe é próprio, o que de per se constitui uma vantagem metodológica inegável. São Paulo, fevereiro de 2011. Abstract: The present work approaches the legal parameters for the pricing of administrative contracts. Considering that applicable legislation only determines that administrative contracts shall obey market prices, this study aims to identify, on the basis of the legal-administrative regimen, a complex of principles that serves of guidance for the legal analysis of the prices contracted for the Public Administration (principles of the identity, integrality, uniformity, priority of the reality, intentionality and formal value of the administrative contracts). Key words: Administrative contracts. Market prices. Budget. Bidding process. Referências ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo san cionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971. PEREIRA, Gustavo Pimentel; SANTOS, Zilda Costa. Avaliação de superfaturamento por intervalo de confiança da média: um equívoco. p. 1. 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