Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
Amauri Feres Saad
Mestrando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado em
São Paulo.
Resumo: O presente trabalho aborda os parâmetros jurídicos para a precificação de contratações
administrativas. Tendo em vista que a legislação determina apenas que as contratações administrativas
obedecerão aos preços de mercado, procura-se identificar, com base no regime jurídico-administrativo,
um complexo de princípios que sirva de baliza para a análise jurídica dos preços contratados pela
Administração Pública (princípios da identidade, globalidade, uniformidade, primazia da realidade,
intencionalidade e valor formal das contratações administrativas).
Palavras-chave: Contratos administrativos. Preços de mercado. Orçamento. Licitação.
Sumário: 1 Introdução – 2 Panorama da precificação das contratações administrativas na Lei nº 8.666/93
– 3 Das limitações ao valor das contratações administrativas nas leis orçamentárias – 3.1 Considerações
gerais – 3.2 Da imposição das cotações referenciais de preços e do regime jurídico-administrativo –
3.2.1 Da aplicação concreta dos princípios relativos à precificação das contratações administrativas –
4 Das diferenças entre as formas de raciocínio acerca da precificação de obras públicas – 5 Conclusões
– Referências
1 Introdução
As contratações administrativas obedecem,
como não poderia deixar de ser, entre outros, aos
princípios vetores da moralidade e da impessoali­
dade, pertencentes, na expressão feliz de Almiro
do Couto e Silva, à “mesma constelação de valores”1 que compõem, no Estado Democrático de
Direito, o chamado princípio republicano. Impõese, na esteira de tais princípios, a busca do inte­
resse público, consubstanciado na contratação
da melhor proposta, sem favorecer ou desconsiderar o cidadão-interessado, ao longo do procedimento, sem razão constitucionalmente apoiada que o justifique. Não é por outro motivo que
a doutrina — a vozes uníssonas — asserta ser a
licitação procedimento competitivo destinado a
selecionar, segundo critérios isonômicos, preexis­
tentes e públicos, o licitante apto e que tenha apre­
sen­tado a proposta mais vantajosa à Administração
Pública, como condição, de regra, para que esta
contrate com terceiros.2
O procedimento licitatório, conforme salien­
ta Enrique Sayagués Laso, busca evitar a colu­são
de particulares entre si ou com agentes públicos
na realização das contratações necessárias à exe­
cução dos cometimentos administrativos, haja
vista que, com tal procedimento, se reduz drasti­
camente a margem de liberdade do administrador
público no que tange à escolha do contratante
privado.3 4 Mediante licitação, consoante o mestre
uruguaio, se procura estimular a concorrência
entre os particulares, com a consequente obtenção
de propostas mais vantajosas aos cofres públicos.
Além de se criar, tendo em vista que aos licitantes
é lícito impugnar qualquer ato do procedimento
(decorrência da natureza competitiva do proce­
di­
mento), um ambiente de permanente fiscali­
zação dos interessados, entre si e com relação aos
atos da Administração.5 Ainda, o caráter público
da licitação permite o escrutínio quer dos órgãos
de controle externo (v.g., tribunais de contas,
SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e o direito da Administração
Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº
9.784/99). Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul – RPGE, Porto Alegre, v. 27, n. 57, p. 35, dez. 2004. Suplemento.
2
Cf., por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello, que pontifica: “Licitação, pois, é um procedimento competitivo — obrigatório como regra —
pelo qual o Estado e demais entidades governamentais, para constituírem relações jurídicas as mais obsequiosas aos interesses a que devem
servir, buscam selecionar sua contraparte mediante disputa constituída e desenvolvida isonomicamente entre os interessados, na conformidade
de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados. Fácil é ver-se que a licitação não é um fim em si mesmo, mas um meio pelo qual
se busca a obtenção do negócio mais conveniente para o atendimento dos interesses e necessidades públicas a serem supridos, tanto como
assegurar, neste desiderato, pleno respeito ao princípio da isonomia, isto é: o dever de ensejar iguais oportunidades aos que pretendem e podem
disputar o travamento das relações jurídicas em que o Poder Público esteja empenhado” (Pressupostos da licitação. In: VERRI JR., Armando;
TAVOLARO, Luiz Antônio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Licitações e contratos administrativos: temas atuais e controvertidos. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 123).
3
SAYAGUÉS LASO, Enrique. La licitación pública. Montevidéu: Editorial BDEF, 2005. p. 2. (Reedição da obra publicada em 1940).
4
Cf., a propósito, a lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “A escolha, salvo exceções legais, não deve ser feita livremente, como ocorre, na
maior das vezes, nas aquisições e negócios dos particulares, mas através de competição dos interessados devidamente convocados. Isso com o
objetivo de resguardo do interesse público, a fim de impedir abusos possíveis, por parte dos agentes públicos, que agem em nome e por conta
da entidade pública, como pessoa jurídica, ser real, mas acidental, formado de relações de pessoas naturais, para alcançar dado fim em comum,
cuja vontade se manifesta por intermédio de agentes públicos” (Da licitação. São Paulo: José Bushatsky, 1980. p. 16-17).
5
SAYAGUÉS LASO. La licitación pública, p. 2.
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ministério público), quer de qualquer cidadão
(via direito de petição à Administração Pública e
aos órgãos de controle, legitimação para ajuiza­
mento de ação popular etc.).
Em decorrência do caráter competitivo das
licitações públicas, poder-se-ia pretender exis­
tente uma presunção de vantajosidade das con­
tratações assim mediadas, mas não é o que ocorre.
Particulares, ainda que em um ambiente supos­
tamente competitivo, podem concertar-se, combinar entre si (ou mesmo com a ajuda de agentes
públicos) preços e condições das propostas, dis­
tribuindo entre si licitações e contratos administrativos. Ressalte-se que isto não é particularidade
das contratações administrativas: nas relações
entre pessoas privadas podem ocorrer também
con­dutas destinadas à dominação ou manipulação de segmentos do mercado, verificando-se a
chamada “cartelização” de setores da economia
ou mesmo a formação de monopólios ou oligo­
pólios. Neste caso, incidem as regras de proteção
à concorrência, que vedam condutas tendentes à
manipulação ou domínio de mercados,6 partindose da premissa econômica de que o oligopólio e
o monopólio são nocivos aos consumidores. No
caso das contratações administrativas, incidem
regras específicas — cuja finalidade informadora
consiste justamente na garantia de que os preços
contratados correspondam, efetivamente, às condições de mercado. Num caso, como visto, protege-se o consumidor privado. No outro, mutatis
mutandis, pretende-se proteger a Administração
Pública-consumidora de bens ou serviços produzidos ou prestados pelos particulares.
A questão da precificação em contratos
administrativos — e notadamente nos contratos
de obras públicas, que apresentam a maior complexidade — surge assim como um tema central
para a compreensão da legitimidade das contra­
tações públicas. Compreender o regime jurídico da precificação dos contratos administrativos
(e em especial dos contratos de obras públicas)
6
possibilita ao analista (seja ele agente público, seja
pessoa privada) identificar se o preço pago pelo
serviço tomado, pelo bem fornecido ou pela obra
executada é legítimo e encontra amparo no direito.
Uma premissa deve ser fixada neste ponto,
para que não haja controvérsias quanto à abrangência do presente trabalho: um preço praticado
em um contrato administrativo somente é legítimo
quando compatível com condições encontráveis
no mercado por qualquer indivíduo, em circuns­
tâncias semelhantes. Esta premissa, conquanto
óbvia, dado que o fato de a contratação ser administrativa (isto é, envolver em alguma intensidade
a função administrativa, o interesse público primário que lhe subjaz) não tem o condão de afastar um outro aspecto, igualmente verdadeiro, que
é o de que essa contratação se realiza no merca­
do, tendo no outro polo agentes econômicos, que
atuam segundo a lógica econômica privada, com
persecução de lucro. Ainda que assim não fosse, conforme se verificará em seguida, o próprio
direito positivo trata de sufragar este entendi­
mento, na medida em que são encontradas várias
referências normativas no sentido da necessidade
de que as contratações administrativas se pro­
cessem segundo critérios e preços de mercado.
Resulta claro que inúmeros questiona­
mentos são suscitados quando se estabelece que
o preço adequado para um bem é aquele que
cor­
responda às condições de mercado. O que
signi­fica, afinal, a locução preços de mercado? O
direito positivo, que a ele faz referência em vários
dispositivos legais, oferece algum critério seguro para a sua definição no caso das contratações
administrativas? Quem é competente para estabelecer os preços de mercado em um contrato
administrativo? A definição do justo preço em
um contrato administrativo comporta algum tipo
de discricionariedade ou, ao contrário, é vincu­
lada? Finalmente, quais são os limites da fisca­li­
zação exercida pelos órgãos de controle relativamente a tais contratos?
Veja-se o art. 20 da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, transcrito: “Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente
de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam
alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens
ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; IV – exercer de forma abusiva posição dominante. §1º A conquista de mercado resultante
de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no
inciso II. §2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como
fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa. §3º A posição dominante a que
se refere o parágrafo anterior é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) de mercado relevante,
podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.” Do mesmo modo, traga-se o que dispõe o art. 21, inc.
XXIV, parágrafo único, da mesma lei, que estabelece como infração à ordem econômica “impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa
o preço de bem ou serviço”.
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Amauri Feres Saad
O presente trabalho pretende responder
No que tange a imposição de preços máximos
ou ao menos lançar as bases para a resolução das
para as contratações administrativas, o art. 15 da
questões acima propostas.
Lei nº 8.666/93 determina, no caso de licitações
para compras, que estas deverão “balizar-se pelos
2 Panorama da precificação das contratações
administrativas na Lei nº 8.666/93
preços praticados no âmbito dos órgãos e enti­dades
da Administração Pública” (inc. V) e que o registro
A Lei Federal nº 8.666, de 23 de junho de
de preços “será precedido de ampla pesquisa de
1993 (Lei nº 8.666/93) é pródiga em disposições
mercado” (§1º), sendo qualquer cidadão “parte
acerca do preço nos contratos administrativos.
legítima para impugnar preço constante do quadro
Didaticamente, podem-se dividir tais disposições
geral em razão de incompatibilidade desse com
em duas categorias básicas: (i) as normas que pre-
o preço vigente no mercado”. Do mesmo modo,
tendem coibir a contratação a preços vis, ou, na
para a realização de obras, o art. 40 determina
terminologia legal, inexequíveis, impondo limites
que os editais deverão conter obrigatoriamente
mínimos para os preços; e (ii) as normas que cui-
“o critério de aceitabilidade dos preços unitário
dam justamente do seu oposto, a saber, dos preços
e global, conforme o caso, permitida a fixação de
máximos a serem obedecidos nas contratações
preços máximos e vedados a fixação de preços
administrativas.
mínimos, critérios estatísticos ou faixas de varia­
A disciplina da exequibilidade dos pre-
ção em relação a preços de referência, ressalvado
ços contratados encontra sua matriz imediata no
o disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 48” (inc.
artigo 48 da Lei nº 8.666/93, que dispõe que deve-
X). No art. 44, §3º, estabelece-se que não será
rão ser desclassificadas as propostas “manifesta­
admitida “proposta que apresente preços global
mente inexequíveis”, assim entendidas aquelas
ou unitários simbólicos, irrisórios ou de valor
que não tenham a sua viabilidade demonstrada
zero, incompatíveis com os preços dos insumos
(inciso II). Interessante notar que a lei remete o
e salários de mercado, acrescidos dos respectivos
juízo de exequibilidade à comparação com os
encargos, ainda que o ato convocatório da licita­ção
custos de mercado: somente será exequível o preço
não tenha estabelecido limites mínimos, exceto
que, comparado com o mercado, se mostre coe-
quando se referirem a materiais e instalações de
rente. Impõe, também, em privilégio da realidade,
propriedade do próprio licitante, para os quais
que os coeficientes de produtividade da proposta
ele renuncie a parcela ou à totalidade da remune­
deverão ser compatíveis com a execução do objeto
ração”. Por fim, o art. 48, inc. II, determina que
contratual (cujas especificações deverão estar sufi­
deverão ser desclassificadas as propostas “com
cientemente detalhadas no instrumento convoca-
valor global superior ao limite estabelecido ou
tório). E, na falta de outros critérios, apostos no
com preços manifestamente inexequíveis, assim
ato convocatório, os parágrafos 1º e 2º do artigo 48
con­
si­
derados aqueles que não venham a ter
estabelecem regra objetiva para a aferição da exe-
demonstrada sua viabilidade através de docu­
quibilidade das propostas especificamente para o
mentação que comprove que os custos dos insu­
caso das licitações de menor preço para serviços
mos são coerentes com os de mercado e que os
e obras de engenharia: serão inexequíveis aquelas
coeficientes de produtividade são compatíveis
cujos valores globais sejam inferiores a setenta por
com a execução do objeto do contrato, condições
cento do menor dos seguintes valores: (i) média
estas necessariamente especificadas no ato con­
aritmética dos valores das propostas superiores
vocatório da licitação”.
a cinquenta por cento do valor orçado pela admi-
No caso das obras contratadas com dis­
nistração, ou (ii) valor orçado pela administração.
pensa ou inexigibilidade de licitação, prevalece,
Os licitantes classificados de acordo com tais regras
como não poderia deixar de ser, a exemplo do que
e que tenham apresentado proposta com valor
ocorre nas contratações mediadas por licitação,
global inferior a 80% do menor valor descrito
a obrigação de contratar a preços de mercado,
acima deverão apresentar garantia adicional no
como se depreende, em interpretação a contrario
valor da diferença entre o dito menor valor e o da
sensu, do inc. VII do art. 24 da Lei nº 8.666/93, que
respectiva proposta.
relaciona, como uma das hipóteses de dispensa
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de licitação, a ocorrência de situação em que
“as propostas apresentadas consignarem preços
manifestamente superiores aos praticados no
mercado nacional”.
E este atrelamento da contratação com dispensa de licitação aos preços de mercado ressume
em várias das hipóteses do referido art. 24 da Lei
nº 8.666/93, ex vi do inc. VIII do mesmo artigo,
na hipótese de aquisição, por pessoa jurídica de
direito público interno, de bens produzidos ou
serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que tenha sido
criado para esse fim específico em data anterior
à vigência da Lei “desde que o preço contratado
seja compatível com o praticado no mercado”.
Do mesmo modo, nos termos do inc. XXIII, “na
contratação realizada por empresa pública ou
sociedade de economia mista com suas subsidiárias e controladas, para a aquisição ou alienação
de bens, prestação ou obtenção de serviços, desde que o preço contratado seja compatível com o
praticado no mercado”.
Deve-se ressaltar que o art. 24 da Lei nº
8.666/93 admite, inclusive, dispensa de licitação
na hipótese de contratação a preços superiores
aos de mercado, quando (inc. VI) “a União tiver
que intervir no domínio econômico para regular
preços ou normalizar o abastecimento”. Em tal
situação, obviamente, o pressuposto para a atuação estatal será a existência de preços “desequi­
librados”, “excessivos”, acima do que seria espe­
rável numa situação de mercado.
Importante destacar que a recente Medida
Provisória nº 495, de 19 de julho de 2010, que
alterou artigos da Lei nº 8.666/93, introduziu
mudanças de relevo na disciplina dos preços
aceitáveis em licitações. Ao alterar o próprio
conceito da licitação, que antes era destinada à
“seleção da proposta mais vantajosa para a administração” (art. 3º da lei) e passou a ser destinada
também à “promoção do desenvolvimento nacional”, tal medida provisória — cuja constitucio­
nalidade é absolutamente discutível — introduziu
a possibilidade do estabelecimento de uma margem de tolerância para a aceitabilidade de preços
de até 25% para bens ou serviços produzidos no
7
País. Dito de outro modo: um licitante poderá
oferecer em sua proposta produto (bem ou serviço) nacional (segundo os critérios fixados na
sobredita medida provisória) com preço até 25%
mais alto do que o de outra proposta que não
atenda a tais critérios de nacionalização, sagrando-se ainda assim vencedor do certame.
Naturalmente que se devem interpretar os
enunciados da referida medida provisória cum
grano salis. As normas construídas a partir de
tais enunciados devem possuir sentido que não
divirja de todo o sistema de direito administrativo
e de seus princípios constitucionalmente consagrados, sob pena de invalidade. Tudo isto é óbvio,
mas, por sua importância, deve ser reiterado.
A regra geral, e que deve permear todo o
nosso raciocínio no assunto da precificação de
contratações públicas (em especial de obras de
engenharia), é a de que devem ser considerados
os preços de mercado como critério de legitimi­
dade de tais contratações. Esta conclusão funda-se
em razões de pelo menos três ordens.
A primeira é lógica: não se pode cogitar
de contratações que não correspondam ao real
valor dos objetos conteúdo de tais relações jurídicas. Não é preciso descer às minúcias da teoria
econômica (em especial da sua vertente da teoria
do valor)7 a fim de explicar os componentes da
formação dos preços dos bens no mercado. O
que é preciso ficar consignado é que a incidência das normas sobre precificação de obra pública
pressupõe uma relação diádica de equivalência
entre os preços contratados e os preços entendidos como de mercado. Trata-se de uma condição de concepção dos contratos administrativos,
de um postulado de sua compreensão; não há
pensá-los de forma diversa.
A segunda ordem de razões é jurídica: caso
não se obedecesse aos preços de mercado como
padrão para as contratações administrativas, estarse-ia ou admitindo o enriquecimento sem causa
da Administração Pública, com violação de princípios republicanos basilares, como os da pro­
prie­dade (art. 5º, caput, XXII, XXIX, e art. 170,
II, CF), ou se estaria diante de enriqueci­
mento
sem causa do particular, que seria remunerado
Cf. CHAMBERLIN, E. H. The Theory of Monopolistic Competition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1933; NASH JR., John F. NonCooperative Games. Annals of Mathematics, 54(1951), 289-95; ROBINSON, J. The Economics of Imperfect Competition. London: Macmillan,
1933; GILIBERT, G. La teoria oggettiva dei prezzi. Economia Politica I, 1984; e GEHRKE, C. Dmitriev, Vladimir Karpovich. In: SCAZZIERI; KURZ;
SALVADORI (Ed.). The Elgar Companion to Classical Economics A-K. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 1998.
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de forma privilegiada, violando-se, deste lado, os
princípios-vetores da isonomia e da moralidade
admi­nistrativa (art. 37, caput, CF). Num sistema
republicano, que é, como bem pontuou Geraldo
Ataliba, marcado fortemente pelo respeito ao inte­
resse da coletividade, tais princípios não podem
ser menoscabados.8
A terceira razão é de ordem prática: acaso
a Administração pretendesse contratar por preços
abaixo dos de mercado, fixando um tal padrão
como limite de aceitabilidade de preços nos editais das licitações que realizasse, estas inevitavelmente resultariam desertas, pelo total desinte­resse
que suscitariam no mercado. Com efeito, a fim de
que consiga ultimar as contratações necessárias
à satisfação da utilidade pública, é fundamental
que a remuneração oferecida pela Adminis­tração
Pública seja condizente com o que se pratica nas
relações entre particulares. Se um sujeito pode
transacionar no ambiente privado por preço superior àquele que lhe oferece a Administração
Pública, é irrazoável supor que ele prefira, nestas
circunstâncias, contratar com o Poder Público.
Em realidade, como se sabe, o que ocorre é justamente o contrário.
3 Das limitações ao valor das contratações
administrativas nas leis orçamentárias
3.1 Considerações gerais
Como visto acima, no sistema instituído
pela legislação diretamente atinente às licitações
públicas, não há exigências específicas quanto à
metodologia de precificação de obras contratadas
sob regime de dispensa de licitação, ex vi da Lei
nº 8.666/93, exigindo-se somente que os preços
globais contratados sejam compatíveis com os de
mercado.
Há, contudo, nas leis de diretrizes orçamentárias anuais editadas desde 1999, disposições
impositivas de índices referenciais a serem utilizados como “teto” ou limite para obras finan­
ciadas por recursos federais.
Nas Leis nº 9.811, de 28 de julho de 1999,
nº 9.995, de 25 de julho de 2000, nº 10.266, de 24
de julho de 2001, válidas, respectivamente, para
8
os exercícios dos anos 2000, 2001 e 2002, adotou-se o índice de Custo Unitário Básico (CUB),
acrescido de até 30% (trinta por cento) para cobrir
custos não previstos. A partir de 25 de julho de
2002, com a edição da Lei nº 10.524, relativa ao
exercício de 2003, foi adotado o Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção
Civil (SINAPI), mantido pela Caixa Econômica
Federal.
Na Lei nº 12.017, de 12 de agosto de 2009,
em seu art. 112, foi incluído, além do SINAPI, o
Sistema de Custos de Obras Rodoviárias (SICRO)
como cotação referencial para obras rodoviárias.
Tal disciplina se mantém, com algumas alterações, na lei de diretrizes orçamentárias aplicável
ao exercício de 2011. Com efeito, a Lei nº 12.301,
de 09 de agosto de 2010, assim determina, em
seu art. 127:
Art. 127. O custo global de obras e serviços de engenharia contratados e executados com recursos
dos orçamentos da União será obtido a partir de
composições de custos unitários, previstas no pro­
jeto, menores ou iguais à mediana de seus correspondentes no Sistema Nacional de Pesquisa de
Custos e Índices da Construção Civil – SINAPI,
man­tido e divulgado, na internet, pela Caixa Econô­
mica Federal, e, no caso de obras e serviços rodo­
viários, à tabela do Sistema de Custos de Obras
Rodoviá­
rias – SICRO, excetuados os itens caracterizados como montagem industrial ou que não
possam ser considerados como de construção civil.
§1º O disposto neste artigo não impede que a
Administração Federal desenvolva sistemas de refe­
rência de preços, aplicáveis no caso de incompa­
tibilidade de adoção daqueles de que trata o caput,
devendo sua necessidade ser demonstrada por justificação técnica elaborada pelo órgão mantenedor
do novo sistema, o qual deve ser aprovado pelo
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e
divulgado pela internet.
§2º Nos casos de itens não constantes dos sistemas
de referência mencionados neste artigo, o custo
será apurado por meio de pesquisa de mercado e
justificado pela Administração.
§3º Na elaboração dos orçamentos de referência,
serão adotadas variações locais dos custos, desde
que constantes do sistema de referência utilizado.
§4º Deverá constar do projeto básico a que se refere o art. 6º, inciso IX, da Lei nº 8.666, de 1993,
inclusive de suas eventuais alterações, a anotação
de responsabilidade técnica pelas planilhas orçamentárias, as quais deverão ser compatíveis com
o projeto e os custos do sistema de referência, nos
termos deste artigo.
§5º Ressalvado o regime de empreitada por preço
global de que trata o art. 6º, inciso VIII, alínea “a”,
da Lei nº 8.666, de 1993:
I – a diferença percentual entre o valor global do
contrato e o obtido a partir dos custos unitários
“Não teria sentido que os cidadãos se reunissem em república, erigissem um Estado, outorgassem a si mesmos uma Constituição, em termos
republicanos, para consagrar instituições que tolerassem ou permitissem — seja de modo direto, seja indireto — a violação da igualdade
fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional da ereção do regime. Que dessem ao Estado — que criaram em rigorosa isonomia
cidadã — poderes para serem usados criando privilégios, engendrando desigualações, favorecendo grupos ou pessoas, atuando em detrimento
de quem quer que seja. A res publica é de todos e para todos. Os poderes que de todos recebe devem traduzir-se em benefícios e encargos
iguais para todos os cidadãos. De nada valeria a legalidade se não fosse marcada pela igualdade” (ATALIBA, Geraldo. República e Constituição.
2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 160).
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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
do sistema de referência utilizado não poderá ser
reduzida, em favor do contratado, em decorrência
de aditamentos que modifiquem a planilha orçamentária;
II – o licitante vencedor não está obrigado a adotar
os custos unitários ofertados pelo licitante vencido;
e
III – somente em condições especiais, devidamente
justificadas em relatório técnico circunstanciado,
elaborado por profissional habilitado e aprovado
pelo órgão gestor dos recursos ou seu mandatário,
poderão os custos unitários do orçamento-base da
licitação exceder o limite fixado no caput e §1º deste artigo, sem prejuízo da avaliação dos órgãos de
controle interno e externo.
(omissis). (grifos em negrito aditados)
A primeira observação a ser feita com relação a tal dispositivo tem a ver com a sua natureza
jurídica. Não se trata, aqui, de remontar à velha
discussão entre a compreensão das leis orçamentárias como leis em sentido material ou leis em
sentido formal. Tal distinção, sobre ser muito
pouco produtiva do ponto de vista da apreensão
do objeto (afinal não importam grandes diferen­ças
no plano da validade ou eficácia de tais leis), já
foi resolvida de forma mais ou menos pacífica
pela doutrina, na medida em que se considere que
as leis orçamentárias possuem imperatividade
pelo simples fato de serem leis editadas segundo
as competências e procedimento constitucionalmente previstos.9
Isto posto, o que importa verificar, no to­
cante à implicação dos dispositivos da lei orça­
mentária sobre contratações administrativas, é,
em primeiro lugar, o seu campo de aplicação. Caso
se entenda que as disposições de uma lei orça­
mentária possuem como destinatário exclusivo o
administrador público, as consequências para as
contratações administrativas realizadas em desacordo com o seu conteúdo serão diversas daquelas
que adviriam da compreensão da lei orçamentária
como uma lei geral e abstrata, portadora de disposições de ordem pública, condicionadoras de atos
jurídicos envolvendo (pelo menos num dos polos)
particulares. Dito de outro modo: trata-se de saber
se eventual contratação realizada em desacordo
com tais disposições é válida ou inválida.
A resposta a tais indagações já se adianta:
os efeitos da lei de diretrizes orçamentárias não
afetam os contratos administrativos no campo de
sua validade ou eficácia.
José Afonso da Silva, em monografia até
hoje não superada em nosso direito financeiro,
amparado na lição de Manoel Gonçalves Ferreira
Filho, diferencia entre normas de arbitragem e
normas de impulsão.10 As primeiras seriam as
normas postas pelo Poder Legislativo destinadas
a pautar as condutas individuais, ao passo que
as segundas seriam aquelas destinadas a disciplinar a direção da economia. Assim, a admitir-se tal
dicotomia, as normas relativas ao orçamento não
seriam normas de arbitragem, mas de impulsão,
dado que destinadas à imposição dos limites de
ação governamental, prevendo receitas e impondo programas de execução. José Afonso não apresenta em sua obra esta conclusão, mas tais limites
por óbvio têm por destinatário o agente público,
uma vez que é este por excelência o gestor dos
recursos públicos.
Deve-se, no entanto, destacar que o regime
jurídico vigente à época em que tais considerações foram feitas (1973) era diverso do atual: vigia
a constituição ditatorial de 1969, que previa a
existência de duas leis orçamentárias vigentes
simultaneamente — a lei orçamentária anual e a
lei do orçamento plurianual de investimentos.
A previsão de dois instrumentos: um compreendendo o planejamento de médio e longo
prazos, personificado no orçamento plurianual,
e outro compreendendo a execução orçamen­­
tá­
ria do exercício subsequente, consubstanciada na
lei orçamentária anual, devendo tais diplomas
ser compatíveis entre si,11 de certa forma evitava
as dificuldades do regime atual. Afinal, o campo
material entre ambas as leis era diverso: uma
regu­
lava o orçamento do próximo exercício; a
outra regulava os exercícios seguintes, coorde­
nando o planejamento estatal (embora pudesse,
em cada exercício, ser modificada pela lei orçamentária anual).
Cf. VIDIGAL, Geraldo. Elementos do direito financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. p. 232-252; BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução
à ciência das finanças. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971. p. 423-428; e SILVA, José Afonso da. Orçamento-programa no Brasil. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1973. p. 261-275.
10
SILVA. Orçamento-programa no Brasil, p. 261-275.
11
Cf. arts. 60, parágrafo único, e 62, §3º, da Constituição de 1969: “Art. 60. A despesa pública obedecerá à lei orçamentária anual, que não
conterá dispositivo estranho à fixação da despesa e à previsão da receita. Não se incluem na proibição: (...) Parágrafo único. As despesas de
capital obedecerão ainda a orçamentos plurianuais de investimento, na forma prevista em lei complementar.” e “ Art. 62. O orçamento anual
compreenderá obrigatoriamente as despesas e receitas relativas a todos os Podêres, órgãos e fundos, tanto da administração direta quanto da
indireta, excluídas apenas as entidades que não recebam subvenções ou transferências à conta do orçamento. (...) §3º Nenhum investimento,
cuja execução ultrapasse um exercício financeiro, poderá ser iniciado sem prévia inclusão no orçamento plurianual de investimento ou sem
prévia lei que o autorize e fixe o montante das dotações que anualmente constarão do orçamento, durante o prazo de sua execução. (...)”.
9
Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011
artigos
69
Amauri Feres Saad
O regime orçamentário inaugurado pela
disporá sobre as alterações na legislação tributária
Constituição de 1988 previu além da lei orça­men­
e estabelecerá a política de aplicação das agências
tária anual e da lei que veicula o plano plurianual
financeiras oficiais de fomento” (art. 165, §2º).
a chamada lei de diretrizes orçamentárias.
Tendo isto em vista e considerando também o
Ocorre que tanto a lei de diretrizes orça-
disposto no art. 166, §3º, I, da Constituição Fede-
mentárias, quanto o plano plurianual, e, ainda,
ral (que determina a impossibilidade de discus­são
a lei orçamentária anual, são, do ponto de vista
de emendas ao projeto da lei orçamentária anual
estritamente formal, leis ordinárias. Este fato é da
que sejam incompatíveis com a lei de diretrizes
maior relevância, na medida em que os conflitos
orçamentárias), deve-se concluir que a relação
entre as disposições de tais leis — abstraindo-
entre ambos os diplomas é de identidade. Mas
se de qualquer critério material de resolução de
se trata, considerando a cronologia do processo or-
conflitos instituído por norma superior, consti-
çamentário, de uma identidade nunca atuali­zável
tucional ou complementar — se resolvem pelos
(isto é, nunca aferível pela comparação de dois
critérios clássicos: lei especial derroga lei geral
objetos simultaneamente existentes), porquanto,
e lei posterior revoga lei anterior. Então, é de se
pelo simples fato de ambos os diplomas serem
perguntar, em face do texto constitucional: há um
leis infraconstitucionais, o conflito entre eles
critério para a resolução de conflitos nas disposi-
nunca será possível, em razão da incidência dos
ções das leis orçamentárias? A resposta é positi-
já referidos critérios do lex posterior derogat legi
va, mas os critérios existentes não resolvem todos
priori e lex specialis derogat legi generali. Quando
os problemas possíveis. Senão vejamos.
uma norma surgir, a outra já deixará o mundo
A Constituição Federal determina que a
jurídico no que com a primeira conflitar. Trata-
lei orçamentária anual será compatível com o
se, por­
tanto, de uma quase-identidade, de uma
plano plurianual e as despesas nela contidas
iden­tidade em vir-a-ser.
que excedam o período do exercício a que ela se
Nessa ordem de ideias, imagine-se a edi-
refira deverão constar do referido plano (é este o
ção de lei de diretrizes orçamentária que estabe-
sentido dos enunciados contidos nos arts. 165,
leça obrigação, para a Administração Pública, de
§5º, I e II, e §7º, e 166, §4º).
contratar por um preço-limite de 100. Sem entrar
No tocante à relação entre a lei que estabe-
no mérito da correspondência ou não de tal
lece o plano plurianual e a do orçamento anual, a
preço-limite com o mercado (isto faremos em
Constituição Federal estabelece que não é possível
seguida), imagine-se que a administração contra-
a realização de despesa cuja execução ultrapasse
te por um preço de 110, tendo sido os recursos
o exercício em curso sem que esta esteja também
para tal contratação inscritos na lei orçamen­tária
refletida no plano plurianual (art. 167, §1º) e não
anual. A pergunta que se faz é: o fato de a lei
se permite a aprovação de emendas ao projeto
orça­mentária anual consagrar recursos para pagar o
de orçamento anual que sejam contraditórias com
preço de 110 derroga a determinação de preço-te-
o plano plurianual (art. 166, §3º, I). Interes­sante
to de 100 constante da lei de diretrizes orçamen­
que esta vedação incide apenas no tocante às
tárias? Pelo simples conflito material das hipó­
emendas ao projeto de orçamento anual e não
teses de cada lei, a resposta deve ser afirmativa.
ao próprio projeto. O que equivale a dizer que o
Pontes de Miranda, comentando o relacio-
Poder Executivo não conta com vedação constitu-
namento dinâmico entre a lei orçamentária anual
cional para elaborar o projeto de orçamento anual
e leis posteriores, que alteravam as disposições da
em desconformidade com o plano plurianual.
primeira, assim se manifestava, com a agudeza
A relação entre a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual é diversa. A
função da lei de diretrizes orçamentárias consiste
em estabelecer “as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas
de capital para o exercício financeiro subsequente,
orientará a elaboração da lei orçamentária anual,
artigos
70
que lhe é peculiar:
Nada mais absurdo do que se dizer que o fato de
não se achar no orçamento a menção da despesa
importa nulidade da lei, que a criou ou a aumentou. A lei — inclusive as chamadas resoluções, ou
decretos legislativos — existe, vale e é eficaz a des­
peito do que se passou na lei orçamentária, que é
como jarrão em que põem folhas e flores. A folha ou
flor, de que o legislador do orçamento se olvidou,
Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011
Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
ou, conscientemente, deixou de por, fica lá fora,
existente como as outras folhas e flores.12
Nesse contexto, a lei de diretrizes orçamen­
tárias, tal como configurada no texto constitucional de 1988, seria um sem sentido constitucional?
Nem tanto. Segundo nos parece, a função consti­
tucional da lei de diretrizes orçamentárias é per­
mitir (e mais do que isso, obrigar) a enunciação
dos objetivos do Estado para o exercício subsequente, objetivos estes que se concretizarão por
meio da execução da lei orçamentária anual.
Trata-se, em suma, de uma exigência constituinte de que o tema orçamentário seja uma preo­cu­
pação constante dos governantes e dos parlamentares, com prazos fixos para o seu debate, e, por
isto mesmo, um dos aspectos protagonistas da
arena política. A elaboração dos três instrumentos
orçamentários previstos pela Constituição Federal
impõe necessariamente um mínimo de racionalidade e transparência na programação das atividades estatais. É este o sentido extraível do texto
constitucional.
O tema é tratado por Ricardo Lobo Torres,
em trecho que se destaca abaixo:
A lei de diretrizes orçamentárias tem, como o próprio orçamento anual, natureza formal. É simples
orientação ou sinalização, de caráter anual, para a
feitura do orçamento, devendo ser elaborada no primeiro semestre (art. 35, II, do Ato das Disposições
Transitórias). Não cria direitos subjetivos para
terceiros nem tem eficácia fora da relação entre
os poderes do Estado. Da mesma forma que o pla­
no plurianual, não vincula o Congresso Nacional,
quanto à elaboração da lei orçamentária, nem o
obriga, se contiver dispositivos sobre alterações
da lei tributária, a alterá-la efetivamente, nem o
impede, no caso contrário, de instituir novas inci­
dências fiscais, que isso significaria o retorno da
reserva de iniciativa das leis que criam tributos ao
Poder Executivo e conflitaria com o princípio da
anterioridade definido no art. 150, III. Não sendo
lei material, não revoga nem retira a eficácia das
leis tributárias ou das que concedem incentivos. A
lei de diretrizes é, em suma, um plano prévio, fundado em considerações econômicas e sociais, para
a ulterior elaboração da proposta orçamentária do
Executivo, do Legislativo (arts. 51, IV e 52, XIII), do
Judiciário (art. 99, §1º) e do Ministério Público (art.
127, §3º).13 (grifos em negrito aditados)
Embora corretas as conclusões alcançadas,
discordamos do posicionamento do autor, quando
defende a classificação das leis orçamentárias
como leis em sentido formal (e não em sentido
material), donde decorreriam as limitações à
impera­
tividade daquelas. É perfeitamente com­
pre­
ensível que defenda, garantisticamente, a
impossibilidade de alterações de regras tributárias
por meio da legislação orçamentária; mas as limi­
tações que aponta são derivadas das próprias
garantias conferidas aos contribuintes pela Cons­
tituição Federal e não decorrentes da eventual
natureza jurídica da legislação orçamentária. Saber
se se trata de lei em sentido formal ou material
é recorrer a uma construção desnecessária: as
limitações da legislação orçamentária — que são,
repita-se, leis, com a força imperativa própria de
tais veículos — advêm da própria conforma­ção
jurídico-constitucional: a dinâmica de incidência
e o emprego do mesmo veículo, a lei, para intro­
duzir tais normas, é o que acaba por condicionar
a validade e a eficácia de tais leis. Ademais, a
distinção entre leis em sentido formal e leis em
sentido material, para ter qualquer operatividade
jurídica (intrassistêmica) deveria vir contemplada
no próprio texto constitucional, o que não ocorre,
em absoluto, no nosso ordenamento.
É por estas razões — ainda que sob um
ângulo ligeiramente diverso — que Luis Solano
Cabral de Moncada, o maior dos publicistas portugueses, leciona, a propósito do regime orça­
mentário de seu país (lições estas que aplicam-se
com perfeição à hipótese brasileira):
A capacidade (governamental) de propor alterações ao conteúdo orçamental nunca faria da lei
orçamental fonte bastante da legalidade à face do
princípio do Estado-de-Direito. A vinculatividade
do orçamento e do plano que nele está incorporado
para o executivo é muito mais de natureza política
do que jurídica; basta uma maioria parlamentar de
apoio ao governo para que vá por água abaixo a pretensa “legalidade” orçamental. A legalidade orçamental só quer dizer que a política financeira deve
obedecer a uma norma jurídica que é o orçamento,
mas esse não tem que ser necessariamente aquele
que foi aprovado pelo parlamento, pois está sempre
a tempo de ser alterado ou complementado.14
Sendo assim, pode-se fixar a premissa: a
lei de diretrizes orçamentárias possui um caráter
indicativo do orçamento a ser votado para o exercício seguinte, mas não vinculante. O Congresso
Nacional pode, sempre que as circunstâncias o
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 (com a Emenda nº 1 de 1969). 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1973. p. 212. (t. III, arts. 32-117).
13
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 85-86. (O orçamento na
Constituição, v. 5).
14
MONCADA, Luís Solano Cabral de. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Ed., 2002. p. 337.
12
Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011
artigos
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Amauri Feres Saad
exigirem, modificar aspectos da lei de diretrizes
do Planejamento, passar a desenvolver cotação
orçamentárias, quando da votação do projeto
referencial própria.
de orçamento anual, não estando condicionado
No tocante aos referenciais de preços (sejam
neste aspecto. Trazendo tal premissa para o pre-
eles os do SINAPI, do SICRO ou outros impostos
sente trabalho, verifica-se que, uma vez inserida
legalmente), deve-se ressaltar que a sua aplicação
determinada previsão de despesa no orçamento
deve obedecer a princípios específicos, derivados
anual, esta, do ponto de vista do direito finan­ceiro,
do regime jurídico-administrativo.
legitima-se pelo simples fato de estar autorizada
O primeiro deles é o da identidade. A utili­
pelo Legislativo. Constante da lei orça­mentária,
zação de tais cotações impõe-se somente àquelas
não há cogitar-se determinada despesa estar em
contratações que contenham correspondência
conflito com a lei de diretrizes orçamentárias,
ou identidade (considerados os bens e serviços
uma vez que esta não mais estará vigente.
empregados nas composições de custos unitários
Ademais, sendo tais normas obrigatórias
correspondentes) com relação aos itens cotados
apenas aos agentes públicos ordenadores de des-
pelas primeiras. E isto por uma razão lógica da
pesas, acaso se verifique a realização de contrato
maior simplicidade: somente se podem compa­rar
em desconformidade com tais normas, tal con-
aspectos quantitativos (preços) de entes entre si
trato não será inválido em razão das limitações
qualitativamente idênticos. Afinal, resultaria um
orçamentárias, sendo plenamente resguardados
cabal absurdo pretender, v.g., que a Administração
os direitos patrimoniais daquele que, confiando
fosse obrigada a adquirir um sofá pelo preço de
em licitação realizada nos estritos termos da lega­
uma cadeira, somente porque, hipoteticamente,
lidade, apresentou a proposta mais vantajosa e
aquele não encontrasse previsão no SINAPI/
sagrou-se vencedor, sem ter dado causa a eventual
SICRO e esta, sim, e se identificasse, como ele­
ilegalidade. A questão, aqui, deve resolver-se com
mento aglutinador e justificador da aplicação do
a responsabilização do agente público que deixou
referencial, a característica de servirem, ambos,
de observar o conteúdo da lei orçamentária anual
de assento ao ser humano.
(note-se que falamos em lei orçamentária anual,
O exemplo pode parecer jocoso àqueles que
ao invés de na lei de diretrizes orçamentárias) e
não estão familiarizados com o padrão de audi­
não com a extinção unilateral de vínculo regu­
torias realizados por alguns órgãos de controle,
larmente formado.
mas é o que se verifica na prática: são consideradas
É com base nas considerações preceden-
nas comparações de preços itens de tais referen-
tes — que identificam os limites de vigência da
ciais muitas vezes completamente disparatados
lei de diretrizes orçamentárias — que devem ser
da realidade de determinada obra de engenharia.
interpretados os dispositivos que impõem preços
máximos para as contratações federais.
Isto ocorre não somente às escâncaras (comparando-se laranjas com maçãs), mas amiúde de
modo disfarçado: quando, por exemplo, se con-
3.2 Da imposição das cotações referenciais de
preços e do regime jurídico-administrativo
sideram produtividades absolutamente “ideais”
para determinadas composições de preços, em
Voltando à análise do artigo, acima trans-
confronto com o possível para determinada obra.
crito, da lei de diretrizes orçamentárias aprovada
Apenas para que se tenha ideia, já pudemos obser-
para o ano de 2011, verifica-se que tal disposi­tivo:
var, em nosso quotidiano profissional, a utiliza­ção
(i) impõe como limite de preços globais para as
de coeficientes de produtividade para um item
contratações de obras e serviços de engenharia
relacionado ao transporte de materiais, quando
financiados com recursos federais as cotações
da análise de um determinado empreendimento
constantes do SINAPI e, no caso de obras rodovi-
por órgão de controle externo, que resultava, em
árias, as constantes do SICRO; (ii) podendo, tais
termos práticos, na suposição de que o descarre-
limites, no entanto, ser afastados justificadamente
gamento de materiais num determinado canteiro
pela autoridade competente. Neste último caso,
de obras deveria acontecer com a frequência de
a Administração federal poderá elaborar pesqui-
1 (um) caminhão descarregado por minuto. Isto,
sa de mercado ou, com autorização do Ministério
que, mesmo intuitivamente, é um absurdo, teria
artigos
72
Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011
Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
de se verificar num canteiro localizado numa
área urbana de grande metrópole, com condições
logísticas e de interferências com serviços públicos e tráfego completamente diversas daquelas
empregadas na confecção das cotações referenciais (em cujas composições de custos unitários se
incluem determinados coeficientes de produtividade, considerados ideais em face da natureza de
cada serviço, insumo ou equipamento utilizado).
É óbvio que, neste caso, ao se adotar tal referencial
o princípio da identidade não é observado.
Mas o princípio da identidade na precificação de obras públicas não se resume somente na
comparação pura e simples do objeto contratado
(decomposto em composições de custos unitários
envolvendo custos indiretos, mão de obra, equipamentos, insumos etc.). Há outra dimensão deste
princípio que não pode ser menosprezada: tratase da análise do próprio contexto da contratação.
Isto equivale a dizer que deverão ser considerados
os elementos contextuais da contratação, como a
divisão dos riscos entre as partes, a conjuntura
econômica, o regime da contratação, a qualidade
e detalhamento dos projetos, a própria reputação
do ente contratante, entre outros. Os exemplos
neste caso podem esclarecer mais que conceitos.
Imagine-se a contratação por preço global para
a construção de determinada obra, em que há
apenas a disponibilização de projeto básico. O
pro­
ponente privado não conhece com profun­
didade o perfil geológico do terreno, embora possa dele fazer uma ideia. Todavia, o próprio regime de contratação (preço global) transfere para o
futuro contratado uma série de riscos (constru­ti­
vos, de quantitativos, de interferências etc.) que
em princípio não existiriam na contratação por
preços unitários. Em resumo, a percepção do risco
pelo proponente — derivada de sua experiência
empresarial — pode ser de tal modo negativa que
este decida embutir na sua estrutura de custos
o montante que considera adequado para cobrir
as contingências que entenda possam acometer
o negócio. Decorrência disto, o seu preço será
maior do que aquele formulado na ausência de tal
percepção. Mas nem por isto deixará de ser um
preço de mercado, na estrita acepção do termo.
Do mesmo modo, imagine-se o Estado em
que seja governador, no primeiro ano de mandato,
15
político conhecido por seu desrespeito aos con­tra­
tos firmados em suas administrações ou em­­presa
estatal que seja notadamente uma inadim­plente
contumaz ou esteja em dificuldades financeiras.
Qualquer proponente, em sã cons­­­ciência, consi­
derando indutivamente a probabilidade (mais
alta) de vir a ser penalizado por condutas ilí­citas
da outra parte ao longo da execução do contrato,
incorporará, caso decida participar da licitação,
em seu preço, alguma compensação pelo risco
que espera correr. A percepção do risco e sua in­
fluência na formação dos preços privados (isto é,
em situação de mercado) é absolutamente normal,
não havendo como eliminá-la das contratações
administrativas.
Tais nuanças do comportamento dos agentes
econômicos são mais comuns do que se pensa.
Aliás, derivam também (e muitas vezes princi­
palmente) do próprio despreparo da Adminis­
tração Pública, que raramente propicia ambientes
de confiança para a realização de suas contratações, com a consequente redução dos riscos assim
ditos contextuais, porque circundantes do objeto
da contratação. É rigorosamente por isto que o
princípio da identidade, nesta dimensão, impõe
ao analista a consideração de todas as circunstâncias capazes de influir da formação do preço praticado. Pretender ignorar tais aspectos é
o mesmo que quebrar o espelho quando não se
gosta da imagem refletida; as contratações administrativas terão preços tanto mais baixos quanto
menores forem os riscos envolvidos na contra­
tação, quanto melhor preparados forem os administradores.
O segundo princípio é o da globalidade
da avaliação. Isto quer dizer que os preços unitários que compõem a planilha orçamentária de
cada obra pública devem ser considerados em sua
globalidade, como um todo. Ou seja: não basta
que um ou alguns itens da planilha orçamentária
apresentem preços superiores aos dos referenciais
(SINAPI, SICRO ou qualquer outro considerado)
empregados: a existência ou não de preços excessivos somente é aferível em termos globais. Ou
seja, desde que realizada a imprescindível comparação entre os itens da planilha orçamentária
que são inferiores aos dos referenciais com o
preço daqueles que são superiores.15
É nesse sentido que, acertadamente, decidiu esta Corte de Contas, conforme se verifica Acórdão nº 170/2000, Plenário, Ministro Relator
Guilherme Palmeira, julgado em 22.03.2000: “Em segundo lugar, considero necessário o recálculo dos débitos apurados pela equipe de
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Amauri Feres Saad
Muitas auditorias realizadas por órgãos de
controle interno e externo se utilizam do método
da curva ABC, segundo o qual são selecionados os
itens financeiramente mais representativos da planilha orçamentária (normalmente represen­tando
80% do valor global do contrato), realizando-se
a comparação apenas relativamente a tais itens.
Ainda que admitamos a razoabilidade de tal método, principalmente do ponto de vista da eficiência
e celeridade dos trabalhos, deve-se ressaltar que
é permitido às partes contratantes (Administração
Pública ou particular) fazer prova contra os apontamentos de sobrepreço, mediante a avaliação dos
itens que não foram considerados pela auditoria,
caso isto repercuta de alguma forma nos resul­
tados alcançados.16
O terceiro princípio é o da uniformidade ou
coerência da aplicação das cotações referenciais.
Tal princípio consiste em que, uma vez esco­lhido
um referencial, este deve ser utilizado preferencialmente sobre outros; somente nos casos de
limitações ou omissões do mencionado referencial, é que se permite a utilização (subsidiária)
de outras cotações referenciais. Isto porque cada
cotação, oficial ou não, segue parâmetros próprios e muitas vezes diversos entre si, que resultarão em preços maiores ou menores para cada
insumo ou item de serviço, muito embora possa acontecer que, considerados os preços de um
grupo abrangente de itens, os seus resultados
sejam equi­valentes. A coerência de cada cotação
— e por­tanto a sua utilidade para a orçamentação
de obras públicas e para a avaliação jurídica de
tal ação — reside não na sua capacidade imediata de identificar os preços mais baixos para cada
insumo, mas sim na sua aptidão para refletir,
com certo grau de confiabilidade, os valores
médios encontrados no mercado, em determinadas circunstâncias dadas, para uma gama variada
de itens.
A realização de obras públicas envolve um
enorme esforço empresarial, com a mobilização
de grande quantidade de pessoas e a inversão de
recursos vultosos. A sua orçamentação, portanto, não pode ser conduzida de forma irrefletida,
como se se tratasse de verdadeira “caça ao preço
mais baixo”, bastando para tanto a busca meticulosa dos itens mais convenientes nas tabelas disponíveis. O princípio da coerência ou da unifor­
midade da utilização das cotações referenciais
veda tal prática: as cotações referenciais não estão
à disposição do arbítrio do analista; seu emprego
deve ser minimamente consistente.
E por consistente designe-se também o
ônus, que cabe inelutavelmente ao analista, de
expor, didaticamente — e tornar acessíveis ao
público — todas as premissas e métodos por ele
utilizados na análise de determinada planilha
con­­
tratual de preços, bem como os respectivos
cál­­culos. Impõem-no não somente o princípio da
coerência da aplicação das cotações referenciais,
mas também os princípios da motivação e da
publicidade, regentes dos atos administrativos
(Constituição Federal, art. 37, caput). A auditoria realizada sem que se respeitem tais diretrizes
padecerá de vício insanável, se dela decorrerem
efeitos que afetem o plexo de direitos e obrigações representado pela licitação ou pelo contrato.
Muito menos se poderá decidir (e isto especialmente no caso dos órgãos de controle externo)
no sentido da existência de sobrepreço, sem que
o iter (cálculos, premissas e métodos) que levou
a tal conclusão esteja plenamente disponível e
demonstrado aos interessados.
inspeção. Isso porque tais valores foram levantados unicamente entre os itens de serviço que apresentaram sobrepreço, desprezando-se
aqueles com preços inferiores aos de mercado. O entendimento prevalecente nesta Corte é no sentido de que eventuais débitos decorrentes
de superfaturamento devem ser apurados pela diferença entre o preço global efetivamente pago pelo objeto contratado, tomado em sua
plenitude, e o preço do mesmo objeto normalmente praticado no mercado, e não em função de parcelas específicas do objeto (itens de serviço
tomados isoladamente). Tal foi o entendimento esposado pelo TCU, por exemplo, na Decisão nº 469/1999 – Plenário (sessão de 29/07/1999, ata
nº 32).” No mesmo sentido são o Acórdão nº 2885/2008 – Plenário – Sessão de 03.12.2008 – Ministro Relator Ubiratan Aguiar – Processo nº
008.795/2007-6; e o Acórdão nº 469/1999 – Plenário – Sessão de 28.07.1999 – Ministro Relator Adhemar Ghisi – Processo nº 001.025/1998-8.
16
Outra dimensão apresenta este princípio. Celso Antonio Bandeira de Mello, com a costumeira perspicácia, em estudo em que defende a
possibilidade de contratação de licitante segundo colocado em contratação em que houve desistência do primeiro colocado, pelo mesmo
preço global apresentado por este e com proposta com preços unitários diversos, acaba por sustentar (ainda que sem identificar este princípio
de forma autônoma) a incidência do princípio da globalidade. Para o autor, “No caso vertente, a licitação foi julgada pelo critério (“tipo” na
expressão da lei) do menor preço. Menor preço, como se sabe, é o menor preço global e não o menor preço cotado para tal ou qual item da
planilha, nada importando quanto a isto que se trate de empreitada por preço unitário. Sejam quais forem os preços unitários propostos, o
contratado terá de manter-se [na hipótese de convocação do segundo colocado para assumir a posição do primeiro] dentro do menor preço
global dentre os oferecidos pelos licitantes — e, por isto mesmo, reputado merecedor da vitória no certame disputado. Ocorre que entre as
ofertas dos vários licitantes para obras de engenharia de algum porte (excluída alguma fantástica e inacreditável coincidência) haverá não
apenas diferença quanto ao preço global, final, a que aportem, mas também inevitáveis e irremovíveis diferenças reais quanto aos preços
unitários” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Contrato de obra pública: convocação do segundo colocado: contrato pelo mesmo valor
global com valores unitários distintos dos originários: viabilidade. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 35, p. 113-114, 2001).
artigos
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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
O quarto princípio — e talvez seja o mais
importante — é o da primazia da realidade. Para
a aplicação da regra contida nas leis orçamen­
tárias, é obrigatória a observância do seguinte:
os referenciais impostos por lei (SINAPI, SICRO
ou qualquer outro) só são válidos como critérios
de limitação de preços se, e somente se, os custos
unitários neles detalhados corresponderem “in
concretu” aos preços de mercado ao tempo, região
e escala considerados para a contratação e execu­
ção contratual, em condições de risco semelhantes.
Em nome de tal pressuposto, que deriva,
como é óbvio, do princípio da boa-fé nas contra­
tações públicas, no caso de divergência entre o va­
lor de um item (bem ou serviço) cotado no SINAPI
ou SICRO e o seu valor de mercado, deve prevale­
cer este, sem que se apresente qualquer ilegalidade.
Afinal, não é razoável supor que uma cotação referencial — que constitui uma abstração
sobre uma dada realidade — não possa, eventualmente, seja por anomalias de mercado (que podem
fazer a cotação de um bem subir ou cair brusca
ou vertiginosamente), seja em razão de discrepâncias técnico-metodológicas na atualização ou
aferição de preços (como sói acontecer com tais
índices, conforme já foi admitido pelo Tribunal
de Contas da União),17 seja, enfim, pelas peculiaridades de estrutura organizacional do particular
contratado, apresentar divergências com relação
a preços reais praticados em determinada região
e época. Do mesmo modo, as peculiaridades de
cada obra ou serviço devem ser levadas em conta
quando da análise dos seus preços em comparação com os mencionados referenciais: fatores
como condições geográficas, topográficas, geológicas, de produtividade, entre outros, devem ser
considerados.
Outro princípio aplicável ao caso é a da
intencionalidade da conduta dos contraentes
(ou culpabilidade). Com efeito, além do âmbito
obje­
tivo da relação jurídica, é imperioso que o
ana­lista perquira este aspecto das partes contraentes, a fim de comprovar a presença de má-fé
ou dolo capazes de macular a legitimidade dos
preços contratados. A consideração deste aspecto
deriva da necessidade de se separar as hipóteses
de simples erro de avaliação, em que não há ilegalidade, daquelas em que se configura o ilícito,
pois se verifica a fraude. Em tal raciocínio não há
novidade alguma, pois, de há muito, a doutrina
admite que a culpabilidade é pressuposto para a
aplicação de decisões administrativas restritivas
da esfera jurídica do particular.18
Por fim, cite-se um sexto princípio aplicável a esta dimensão da precificação das contrata­
ções administrativas, que vem a ser o princípio do
valor formal das contratações administrativas.
Este princípio, derivado dos princípios da pre­
sunção de legalidade dos atos administrativos, da
segurança jurídica e da razoabilidade, significa,
de forma sintética, que a presunção de legitimi­
dade das contratações administrativas somen­
te pode ser afastada se se verificar razão de fato
consistente e grave para tanto. Reflete a máxima
pontuada por Carlos Maximiliano, segundo a qual
as normas devem ser interpretadas inteligentemente, devendo-se preferir “a exegese de que
resulte eficiente a providência legal ou válido o
ato, à que tome aquela sem efeito, inócua, ou este,
juridicamente nulo”.19
Incide da seguinte forma: caso, ao final da
avaliação, se verifique nos preços contratados
uma discrepância pequena, a maior, equivalente
a percentual ínfimo do valor global da contra­
tação, em comparação com os preços tidos por
de mercado, sem que haja concomitantemente
qualquer indício de má-fé quer da Administração
Pública, quer do particular contratado, é imperativo, por uma questão de razoabilidade, o respeito
às condições efetivas da proposta vencedora.
A engenharia de orçamentos, área do conhe­
cimento mais afim à matéria ora estudada, não é
uma ciência exata, passível de verificabilidade
nos termos destas. O direito positivo, lembre-se,
em face dos dispositivos já colados no presente
trabalho, adotou a locução “preço de mercado”
para identificar o summum bonum na precificação de obras públicas, sem a decompor em pormenores. Este ideal nem sempre pode ser conhecido
em sua plenitude ou em caráter insofismável, com
Cf. Acórdão TCU nº 1736/2007, Plenário, Relator Ministro Ubiratan Aguiar, publicado no DOU, 31 ago. 2007.
Cf. VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 55; OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo
sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 311-349; e, em posição um pouco atenuada, admitindo tão somente a ausência de
voluntariedade como excludente da punibilidade, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 27. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010. p. 855-856.
19
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 135-136.
17
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precisão matemática. Casos há em que se pode
ter apenas uma ideia aproximada do que seria
enquadrável na locução “preços de mercado” e,
por conseguinte, o que nela não se enquadraria.
Reconhecendo a falibilidade da orçamentação de obras de engenharia, o art. 3º da Resolução
nº 361, de 10 de dezembro de 1991, do Conselho
Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia
(CONFEA), em sua alínea “f”, define como uma
das características do projeto básico “definir as
quantidades e os custos de serviços e forneci­
mentos com precisão compatível com o tipo e porte da obra, de tal forma a ensejar a determinação
do custo global da obra com precisão de mais ou
menos 15% (quinze por cento)” (grifou-se). O próprio Tribunal de Contas da União já decidiu, em
alguns casos, acertadamente, que discrepâncias
de pequena monta entre os preços tidos por de
mercado e os contratados não significam a ocorrência de “sobrepreço” ou “superfaturamento”,20
devendo por isto ser aceitos.
Ao lado do princípio do valor formal das
contratações administrativas, importante mencionar, também, o princípio da proteção ao equilíbrio
econômico-financeiro dos contratos administrativos, consagrado constitucionalmente (art. 37,
inc. XXI). Por força desse princípio, que, por assim dizer, incide em bloco com o primeiro — por
uma afinidade semântica — não se pode impor
ao contratado a execução do contrato por preço
abaixo do constante de sua proposta. Isto impõe,
inevitavelmente, um maior ônus argumentativo
quando se pretende sustar os efeitos de um contrato admi­nistrativo. A eventual desconformidade
com os preços de mercado deve se constituir num
argumento que possa suplantar os dois primeiros.
21
Este ônus — suportado pelo analista — é naturalmente uma imposição do Estado democrático de
Direito instaurado pela Constituição Federal.
Em diferente dimensão, o princípio do valor
formal das contratações administrativas também
deve ser considerado: muitas vezes, em auditorias,
os órgãos de controle pretendem substituir opções
técnicas realizadas em determinada contratação.
Assim, substitui-se uma determinada técnica por
outra, que o órgão de controle considera equivalente para o mesmo serviço ou um equipamento,
realmente empregado na obra, ou ainda se pre­
tende eliminar horas de trabalho ou reduzir o
número de profissionais que trabalhariam na
obra, por se considerar que o mesmo trabalho
poderia ser feito com menos profissionais ou
menos horas de trabalho. A justificativa da totalidade dos casos (pois do contrário os órgãos de
controle não se dariam ao trabalho de realizar esta
verificação) é a de que a nova solução proposta
pelos órgãos de controle é mais barata, e, portanto, o simples fato de ter-se adotado solução técnica diversa (com preços diversos) significaria o
ocorrência de sobrepreço no contrato, cabendo,
portanto, a glosa unilateral dos valores correspon­
dentes no contrato.
Aqui, deve-se ressaltar que, pela incidência
do princípio do valor formal dos contratos admi­
nistrativos, a mera comparação de técnicas, equipamentos ou profissionais não é suficiente para
sustentar-se a existência de sobrepreço: cabe ao
analista comprovar ou a total incompatibilidade
das técnicas (aí se incluindo equipamentos e mão
de obra) empregadas com o projeto ou a má-fé dos
contratantes. Fora de tais hipóteses, impõe-se a
manutenção das condições contratadas, haja vista
Os termos “sobrepreço” e “superfaturamento” têm sido usados pelos órgãos de controle ora como sinônimos, no sentido simples de preço
acima dos de mercado (vale dizer, das cotações referenciais), sem o requisito da intencionalidade, que defendemos acima; ora têm sido
empregados em acepções diversas. Neste último caso, o termo “sobrepreço” referir-se-ia às hipóteses de dano potencial ao Erário (considerado
assim o contrato apenas firmado com preços acima dos de mercado, mas ainda não executado, sem a ocorrência de pagamento efetivo do
Poder Público ao particular); e o termo “superfaturamento” referir-se-ia ao sobrepreço atualizado, isto é, tornado existente, verificado na
realidade. Para nós, a distinção é de pouca produtividade jurídico-metodológica e mais atrapalha que ajuda. Apenas para que se tenha ideia,
tem-se verificado auditorias realizadas por tribunais de contas, em que se constatam, em tal ou qual contratação, quantitativos estimados a
maior, o que é relativamente comum em projetos de engenharia. O preço global do contrato que contivesse tal erro, por considerar os preços
unitários multiplicados pela sua quantidade, seria naturalmente superior àquele obtenível a partir da consideração das quantidades corretas.
Ora, nestes casos, muitas vezes, órgãos de controle têm considerado haver sobrepreço, simplesmente deixando de analisar o regime da
contratação. Explica-se: se se tratasse de contratação em regime de empreitada por preço global, na qual o preço final é, ao menos em tese,
derivado da soma do preço unitário de todos os itens de planilha multiplicados pela sua quantidade, poder-se-ia entender que o potencial
(sobrepreço) vai se tornar, com a execução do contrato, existente (superfaturamento). No caso de contratações em regime de empreitada por
preço unitário, em que somente são medidos e pagos os serviços efetivamente executados, o eventual erro de estimativa de quantitativos
(identificado inadvertidamente como sobrepreço) nunca seria verificável na realidade. Dito de outra forma: no caso tratado, o sobrepreço
nunca se transformaria em superfaturamento, descabendo, portanto, inquinar os responsáveis de causadores de dano ao Erário. Por tais razões
preferimos utilizar os termos como sinônimos (entendendo que a carga semântica do termo “superfaturamento” acaba sendo mais negativa,
conotadora de corrupção, do que aquela presente no termo “sobrepreço”), tendo-se sempre o cuidado de somente empregá-las quando seja
inexorável o dano ao Erário (ou seja: quando houver relação de causalidade entre a potência e a existência).
21
Cf. Tribunal de Contas da União, Acórdão nº 941/2010, Plenário, rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti, julgado em 05.05.2010; Acórdão nº
36/2010, Plenário, rel. Min. Raimundo Carreiro, julgado em 23.01.2008; Acórdão nº 1621/2005, Plenário, rel. Min. Ubiratan Aguiar, julgado
em 11.10.2005; e Acórdão nº 394/2003, Plenário, rel. Min. Guilherme Palmeira, julgado em 23.04.2003.
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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
que elas refletem, de um lado, as opções discricionárias do administrador público na elaboração
do projeto básico e do projeto executivo, e, de
outro, a concordância do particular contratado
com a técnica licitada. O que ora se afirma deriva
do fato de que — embora, em tese, possa haver
realmente técnicas equivalentes, capazes de produzir os mesmos resultados — não se pode ignorar que uma determinada técnica pode ser mais
confiável que outra, por ser utilizada há mais
tempo ou por produzir resultados mais consis­ten­tes
ou de qualidade melhor. É perfeitamente normal
que a empresa contratada possa estar capa­citada
para a execução de uma técnica e não de outra,
ou que prefira, segundo sua expertise, esta em
detrimento daquela. Tais fatores são mais palpáveis
ainda quando, na licitação, se exija dos proponentes a apresentação de metodologia de execução,
porquanto, neste caso, várias das opções técnicas
ficarão, respeitados os projetos básico e executivo, a cargo do contratado privado. Em tais casos,
com efeito, a análise deverá dotar-se de redobrados cuidados, sob pena de ferir o princípio de
que ora se cuida.
Do mesmo modo, há que se atentar para
casos em que se pretende discutir a estrutura de
custos diretos e indiretos, muitas vezes retirando
deste último (o chamado BDI) rubricas que eram
permitidas ou mesmo impostas pelo edital. É
muito comum, no Tribunal de Contas da União
pelo menos, o questionamento dos custos indiretos (BDIs) de determinados contratos, por se
considerar que neles ou foram incluídos custos
indevidos (como nos já famosos casos do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido, que na visão do TCU são tributos
personalíssimos e por isto não podem onerar o
contrato)22 ou que neles encontram-se preços que
deveriam pertencer à parcela de custos diretos.23
Não é objeto do presente estudo analisar a abrangência ou validade de tais orientações (mesmo
porque a quantidade de problemas legais e constitucionais que as acometem seria suficiente para
a elaboração não de um, mas de vários estudos);
o que se deve reter, neste passo, é que a incidência do princípio do valor formal dos contratos
administrativos impede que estes sejam invali­
dados (ainda que parcialmente), quer mediante
a realocação dos preços (de indiretos para diretos ou vice-versa), quer mediante a sua glosa. Se
a proposta foi apresentada de boa-fé nos termos
do edital e aceita pela Administração Pública,
aperfeiçoa-se a equação econômico-financeira,
devendo o vínculo ser mantido e respeitado em
sua integralidade até o término da avença.
A partir de tal raciocínio, surge a pergunta:
seria então a noção de sobrepreço (ou superfatu­
ramento), entendida como a diferença, a maior,
verificada em determinado contrato, compara­
ti­
vamente com os preços de mercado, e decorrente
de condutas fraudulentas das partes, verificável
empiricamente pelo analista? É de se pensar que
sim. Seguidos os princípios específicos acima
refe­
ridos, que derivam dos princípios jurídicos
da razoabilidade, segurança jurídica e daqueles
outros consagrados no art. 37, caput, da Consti­
tuição Federal, poder-se-á atingir juridicamente
situações de manifesta lesividade ao Poder Público,
coibindo-se o locupletamento ilícito do particular
contratado.
3.2.1 Da aplicação concreta dos princípios re­
lativos à precificação das contratações
administrativas
O Poder Judiciário, bem como alguns órgãos
de controle (notadamente o Tribunal de Contas
da União), têm decidido ainda de forma inconsistente e sem uma formulação teórica adequada
sobre o tema. Não se verifica, com clareza, uma
ordenação coerente das normas aplicáveis. Os
princípios acima relacionados — ou seja, o regi­
me jurídico da precificação dos contratos adminis­
trativos — não são distinguidos com nitidez,
embora se façam notar como fundamento ou ratio
de decidir em alguns julgados. Por esta razão é
que, não obstante não sejam enunciados expres­
samente, pode-se verificar a sua incidência (implícita) em casos específicos.
O TCU, no Acórdão nº 1.736/2007, Plenário, relator o Ministro Ubiratan Aguiar, publicado no DOU, 31 ago. 2007, já teve a oportunidade
de analisar em detalhes a composição do SINAPI,
Este entendimento gerou a Súmula nº 254/2010 do TCU, que se transcreve: “O IRPJ – Imposto de Renda Pessoa Jurídica e a CSLL – Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido não se consubstanciam em despesa indireta passível de inclusão na taxa de Bonificações e Despesas Indiretas – BDI
do orçamento-base da licitação, haja vista a natureza direta e personalística desses tributos, que oneram pessoalmente o contratado”.
23
No âmbito do TCU, o precedente mais citado é o Acórdão nº 325/2007 (Sessão: 14.03.07, rel. Min. Guilherme Palmeira), em que se determinou
que “os itens Administração Local, Instalação de Canteiro e Acampamento e Mobilização e Desmobilização, visando a maior transparência,
devem constar na planilha orçamentária e não no LDI”.
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constatando as principais impropriedades e limitações deste referencial:
84. Pesquisando as composições do Banco Nacional
num relatório sintético de custos gerado por meio
do SINAPI-SIPCI(9), foi possível encontrar incon­
sistências de diversos tipos, o que corrobora a neces­
sidade de aferições. Verificou-se, por exemplo, ocor­
rências de composições distintas cujas descrições
remetem ao mesmo serviço, não sendo possível
perceber algo que justificasse a necessidade de todas
elas; composições de uso restrito a determinado pro­
jeto; e serviços agrupadores (títulos de grupos de
composições) incoerentes com as composições que
representam. Essas situações são ilustradas a seguir.
(...)
98. Deve-se lembrar que na LDO/2006, art. 112,
§2º, consta a exigência de que a Caixa providencie
a ampliação do sistema, a fim de que outros tipos
de obra sejam contemplados, “com base nas informações prestadas pelos órgãos públicos federais
de cada setor”. Atualmente a medida tomada pelos
gestores do SINAPI para atendimento ao dispositivo legal consiste em assinar convênios com órgãos
setoriais da esfera federal para que eles forneçam
suas composições de serviços, a exemplo do ajuste já celebrado com a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária – INFRAERO (fl.11, Anexo
1). A solução adotada, portanto, inclui esses órgãos
no grupo de entes conveniados, cujas composições
são armazenadas em bancos próprios (BCs). Bancos
desse tipo caracterizam-se por serem inacessíveis a
outros usuários e não sofrerem qualquer ingerência
da Caixa.
99. Inicialmente já se torna perceptível que a solu­
ção adotada é insuficiente por inadequação do tipo
de relacionamento atribuído aos órgãos federais
fornecedores de composições da forma disposta na
LDO. Como seus bancos também devem servir de
referência para a contratação de obras a serem pagas
com recursos federais, eles precisam ser acessíveis
a todos os usuários e conter informações confiá­veis.
Em outras palavras, os bancos de composições desses entes precisam ter caraterísticas semelhantes
às do Banco Nacional da Caixa. Para solução dessa
demanda, sugere-se a criação de um novo banco
de dados, denominado SINAPI-Referencial, constituído pelas atuais informações do BN e as oriundas
dos referidos órgãos setoriais federais, com as origens devidamente identificadas. (...)
111. Os custos dos insumos “representados” são
atribuídos a partir dos valores obtidos para os
“representativos”. Primeiramente, são distribuídos
os insumos em grupos homogêneos (“famílias”)
quanto à cadeia produtiva e à forma de comercialização (fl. 198, Anexo 1). Após, são definidos os
itens representativos, como aqueles mais usuais ou
de coleta mais fácil (fl. 198, Anexo 1). Para os itens
“representativos” é feita a pesquisa de custos, enquanto que para os “representados” (não coletados)
são atribuídos os custos a partir da multiplicação
dos valores referentes aos respectivos “representa­
tivos” por “coeficientes de representatividade”,
obtidos a partir de uma “coleta extensiva”.
finan­
ceiramente relevantes, em diferentes obras
padrão, será um instrumento para melhor selecionar o insumo a ser pesquisado, pois evitará soma­
tória de erros decorrentes do fator multiplicador e da
coleta, para os itens mais significativos. (...)
160. Diante das situações discriminadas e outras
encontradas, é necessária uma análise mais aprofundada dos resultados, para não permitir falhas
na publicação dos custos referenciais, e das justificativas para as grandes diferenças demográficas
quanto à evolução dos custos relativos e absolutos.
(...)
173. Entretanto os critérios adotados por cada gestor
não estão disponíveis para consulta, o que dificulta
a avaliação que cada usuário do SINAPI deve fazer
ao adotá-lo como referencial de preços. De fato, ao
se discutir encargos sociais, devem ser consideradas particularidades regionais que podem afetar
sua composição, como as convenções coletivas de
trabalho. Porém, sendo essas informações usadas
como referência oficial, torna-se desejável a existência de métodos objetivos de obtenção.
174. Verificou-se, porém, que a Caixa não possui
normativo interno indicando modo de cálculo e
itens que devem compor a taxa (fl. 201, Anexo 1).
A falta de metodologia única e bem definida a ser
aplicada em todo o país pode acentuar as diferen­
ças entre as taxas regionais devido a distorções de
cálculo. (...)
3.1.12. Não há manuais com metodologia e con­
ceitos utilizados no SINAPI.
181. Em resposta à última pergunta da Requisição
de Informação 763/2006-01 (fl. 24, Anexo 1), a
Caixa informou que não dispõe de manual contendo
cri­térios que possibilitam a elaboração de orçamen­
tos de referência, justificando a ausência por ser o
SINAPI “destinado a arquitetos e engenheiros, que
têm essa matéria contemplada em seus currículos
escolares.” A empresa complementa comunicando
que está “trabalhando em conjunto com a área de
tecnologia da Caixa, na confecção do ‘manual do
usuário’ do sistema, contendo todo o passo-a-passo
para apoiar a sua navegação/utilização”.
182. Em que pese a importância de um “manual do
usuário”, questão comentada noutro tópico deste
relatório, ele não pode ser considerado substituto de
documentação em que se encontram registrados os
conceitos e a metodologia de obtenção dos dados do
sistema. Mesmo engenheiros e arquitetos com práti­
ca em construção civil necessitam da especificação
de todos os elementos de uma obra para que a con­
sigam executar corretamente. Da mesma forma, os
operadores de um sistema de custos como o SINAPI
precisam conhecer suas particularidades a fim de
obterem exatamente os resultados desejados.
112. O agrupamento em “famílias” é feito com base
na experiência e nos conhecimentos dos técnicos
da Caixa, por critério subjetivo. Disso, observa-se
a necessidade do aprimoramento desse critério,
com a implementação de avaliação objetiva que o
suporte.
183. Entende-se por “manual de metodologia e
con­
ceitos” uma publicação que encerre informações sobre a estrutura do sistema, as definições dos
termos utilizados, a sistemática para obtenção dos
preços de insumos, inclusive explicitando as limitações e as considerações adotadas quando não se
dispõem de valores em todas as unidades federativas, o caderno de encargos das composições, as
especificações dos insumos, a discriminação e as
considerações sobre componentes da taxa de encargos sociais, dentre outros tópicos que caracterizam
plenamente os critérios aplicados na concepção do
sistema. Os temas mencionados acima são exemplificativos, não constituindo uma lista exaustiva do
conteúdo.
113. Ademais, na identificação do insumo representativo não se utiliza como critério prioritário a
significância do seu custo na obra (fls. 194 e 198,
Anexo 1). Nesse sentido, o estudo dos insumos
184. Uma documentação com essas características
é essencial para que o usuário do SINAPI tenha
condições de compreender claramente o resultado
que obtiver, ciente das considerações e limitações do
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Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
sistema. Isso aprimora a confiabilidade do SINAPI,
na medida em que minimiza a possibilidade de
erros decorrentes do desconhecimento de particu­
laridades dos dados. (...)
3.2.1. Os atuais insumos e serviços constantes
no SINAPI não alcançam plenamente obras rodo­
viá­rias, ferroviárias, hidroviárias, portuárias, aero­­
por­
tuárias, barragens, irrigação, de edifícios públicos, de saneamento básico e de infra-estrutura
energética.
200. Cabe ainda registrar a informação da GEPAD/
RJ na qual, em entrevista à equipe de auditoria
(fls. 202 do Anexo 1), esclareceu que, respeitadas
as ações em curso de ampliação da base de dados, o
atual sistema abrange basicamente obras de drenagem, saneamento básico, habitação, infra-estrutura
urbana e rural (vias), equipamentos comunitários e
centros de lazer.
201. Apesar das ações empreendidas desde 2002
pela CAIXA, observa-se que o sistema permanece
deficiente quanto aos tipos de empreendimentos
atendidos. (...)
208. Das informações colhidas dos gestores e das
evidentes limitações verificadas para execução de
obras listadas pela Lei de Diretrizes, conclui-se que
a atual base de dados de custos do BN do sistema
SINAPI atende parcialmente os tipos de empreendimentos citados no §2º do Art. 112 da LDO/2006,
uma vez que grande parte dos insumos e serviços
que compõem essas obras ainda não se encontram
nessa base. (...)
275. Com vistas a, principalmente, prevenir grandes variações, ao longo do tempo, nas relações de
custos entre os insumos de uma mesma “família”
— representados e representativos —, observou-se,
ainda, a necessidade da formalização de norma­
tivo que contemple a periodicidade de realização
da “coleta extensiva” que viabilize a atualização da
citada correlação.
276. Já em relação a coleta e definição dos preços
dos insumos por UF, verificou-se a necessidade
de se buscar alternativas que eliminem a adoção
de preços de insumos coletados noutra UF, ou, na
impossibilidade, que se identifiquem custos, como
fretes ou diferenças de impostos, que permitam a
adequada utilização do preço coletado na UF des­
tino. Tal situação decorreu do fato de existirem, atu­
almente, preços de insumos de certa UF originados
de outro centro de pesquisa ou de valores medianos
nacional ou regional, sem consideração acerca de
parcelas que necessariamente ajustariam o preço do
local coletado ao da UF destino.
277. Ainda, com o intuito de tornar mais precisos
os preços dos insumos definidos para cada UF aos
valores medianos praticados no mercado, identificou-se a necessidade de se considerar, especifi­
camente em relação à parcela “materiais”, o fator
“economia de escala”, sabidamente utilizado pelos
fornecedores de serviços quando da aquisição de
grande quantidade de materiais para execução das
obras, assim como de se elaborar, em relação ao
insumo “mão-de-obra”, normativo interno que vincule a determinação da taxa de encargos sociais a
uma metodologia única para o país, na qual deverão
estar estabelecidos e disponíveis aos usuários do
sistema todos os componentes da taxa e os parâmetros considerados.
278. Ademais, constatou-se a necessidade de se
melhorar a descrição apresentada para alguns insu­
mos, eximindo-se de associá-los à marca, modelo
ou fabricante, em respeito ao inciso I do §7º do art.
15 da Lei 8.666/1993, e de se atender à variedade
mínima de fabricantes por item pesquisado. (...)
283. Em relação aos tipos de empreendimentos
atendidos, concluiu-se que o sistema necessita
aumentar sua base de informações, uma vez que
atualmente as informações de insumos e composi­
ções de serviços abrangem parcialmente os tipos de
obras estabelecidos no §2º do art. 115 da LDO/2007,
quais sejam, obras rodoviárias, ferroviárias, hidroviárias, portuárias, aeroportuárias, barragens,
irriga­ção, de edifícios públicos administrativos, de
saneamento básico e de infra-estrutura energética.
Constatou-se, inclusive, inexistência de previsão
para realização do pleito, assim como para a inserção no Banco Nacional de insumos e ou compo­
sições de serviços suficientes ao atendimento de
tecnologias de construção incorporada pelo mercado em períodos mais recentes. (...)
291. Os atuais insumos e serviços constantes no
SINAPI necessitam ser ampliados de forma a
atender ao disposto na LDO, ou seja, possuir informações suficientes para os principais tipos de
obras públicas, em especial as obras rodoviárias,
fer­
roviárias, hidroviárias, portuárias, aeroportuárias e de edificações, saneamento, barragens, irrigação e linhas de transmissão. Dessa forma, para que
essa demanda legal seja atendida tempestivamente,
torna-se necessário que a Caixa juntamente com os
órgãos setoriais que detêm tais informações, desde
já providenciem plano de trabalho com definição de
metas e cronogramas para extinção da pendência.
292. E, diferentemente do exigido no dispositivo
legal, os custos de serviços ainda não estão disponi­
bilizados no SINAPI-WEB, com livre acesso na inter­
net, limitando-se a obtenção de tais informações aos
órgãos com convênios para uso do sistema SINAPISIPCI, sendo necessário que a Caixa permita aos
órgãos e às entidades públicas que executem obras
com recursos dos orçamentos da União o uso dos
dados sem restrição. (...)
294. Por fim, cabe registrar que, como todo sistema
em desenvolvimento, o SINAPI necessita de aprimoramentos. Disso, se reconhece que, na eventua­
lidade de existir casos de inconsistência de informa­
ção nesse sistema, os gestores usuários dos dados
poderão proceder aos ajustes devidos, desde que
comprovadamente fundamentados em justificativas
apropriadas”. (grifos aditados)
Como se verifica no longo e necessário trecho do
relatório do Ministro Ubiratan Aguiar, acima trans­
crito, o TCU, ao constatar que o referencial SINAPI,
a despeito de sua previsão nas sucessivas leis de
diretrizes orçamentárias, padece de inúme­
ras in­
consistências, tendo um espectro de aplicação mui­
to restrito, em contraste com a amplitude desejada
por tais leis, além de não ter uma metodologia pre­cisa
e acessível àqueles que dele se devem utilizar, privilegiou, de fato, o princípio da primazia da realida­
de: só seria aplicável o referencial legal (à época apenas o SINAPI) caso este pudesse corresponder, com
um mínimo de con­sistência aos preços de mercado
verificados nas diversas regiões do País. Privilegiouse, também, na referida decisão, o princípio da
coerên­­cia, na medida em que considerou inaplicá­
vel o referencial, a partir da constatação de suas
inconsistências técnicas e da impossibilidade de
acesso a todos os interessados à metodologia que
preside a sua elaboração e emprego.
O TCU, assim como fez quanto ao SINAPI, reconheceu as limitações do referencial do SICRO, elaborado pelo DNER/DNIT, em diversas opor­tunidades.
Exemplificativamente, o tribunal afastou a aplicação do SICRO, que é referencial aplicado para obras
rodoviárias, mesmo em se tratando de caso atinente
a tal modalidade de obras:
O SICRO é um sistema de custos implementado
pelo DNER, tendo como objetivo a confecção de tabelas de referência de preços que, por sua própria
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artigos
79
Amauri Feres Saad
natureza, são desvinculadas dos projetos específicos das obras. Trata-se de um referencial, não se
constituindo um instrumento único, inflexível.
A estrutura básica das composições dos itens contidos no SICRO é, de certa forma, uniforme, como,
por exemplo, os equipamentos, mão-de-obra, mate­
riais, transporte. De igual forma, na construção
de uma rodovia, faz-se necessária a realização de
alguns itens, tais como: terraplanagem, pavimen­
tação, drenagem, serviços de preservação ambiental, urbanização, materiais betuminosos, iluminação, obras complementares etc.
Contudo, cada obra tem características próprias.
Conseqüentemente, claro está que o preço também
será diferente.
De fato, esse raciocínio é primário, demais até.
Porém, é necessário explicitá-lo para dar suporte ao
meu entendimento sobre as questões aqui tratadas.
Com efeito, comparar os preços desta rodovia com
aqueles contidos no SICRO, sem levar em consi­
deração as características da obra, não é uma boa
técnica auditorial. Não é um procedimento, tecnica­
mente correto, de se buscar evidências suficientes,
competentes e pertinentes.
(omissis)
Ora, adotando-se os preços contidos no Sistema
de Custo Rodoviário tem-se, aparentemente, um
superfaturamento na construção dessa obra. No
entanto, é preciso ressaltar que o SICRO é elabora­
do pelo próprio DNER, servindo apenas como um
referencial. Não é uma tabela. Se o fosse, dever-se-ia
partir da premissa de que todas as obras deveriam
ser iguais, o que não é verdade.
Assim, como os preços praticados pela empresa
vencedora da licitação estão compatíveis com os
próprios preços orçados pelo DNER, responsável
pela elaboração do SICRO, e pelo DER/ES, fica afas­
tada a hipótese de sobrepreço e superfaturamento.24
(grifos aditados)
Aliás, tamanha é a probalidade de imprecisão em resultados de cotações utilizando-se o
SICRO, que o TCU, em prestígio aos princípios da
identidade e da coerência na aplicação já decidiu
pela adoção da média de preços de propostas em
dada licitação como padrão de preços de mercado,
em detrimento dos resultados obtidos utilizandose a tabela SICRO. Veja trecho de relatório e voto
do Ministro Adylson Motta, in verbis:
a) Relatório:
A Equipe de Auditoria também analisou os preços
globais e unitários em confronto com o subitem
8.1.1 da Decisão nº 1.640/2002 – TCU – Plenário,
de acordo com o qual foi determinado ao DNIT o
seguinte:
‘8.1.1. proceda à alteração do Edital nº 0003/02-00,
elaborado com vistas à contratação das obras de
duplicação e restauração da BR-101 Sul, no trecho
entre o Município de Palhoça/SC e a divisa entre
os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
fazendo constar daquela peça regra dispondo que,
caso se faça necessária a celebração de termos aditivos aos contratos que vierem a ser celebrados, para
inclusões ou alterações de quantitativos de itens
24
das obras, deverão ser observados os preços adota­
dos nas tabelas do Sistema de Custos Rodoviários
- Sicro, em confronto com os preços de mercado,
prevalecendo estes como parâmetro, no caso de
distanciamento entre eles;’.
A determinação acima teve como objetivo evitar que, nos aditivos, itens de serviço com preços
muito acima do mercado tivessem seus quantita­
tivos aumentados possibilitando o já conhecido
‘jogo de preços’ ou ‘jogo de planilha’, que permitem
que propostas inicialmente vantajosas tornem-se
desvantajosas após os aditivos.
Como já exposto acima, a licitação em questão teve
uma competitividade tão acentuada que pode-se
dizer, sem medo de errar, que as médias dos preços
unitários propostos para cada um dos itens de serviço constantes das planilhas de cada lote refletem,
da melhor maneira possível, a média do preço de
mercado daquele item de serviço específico.
Não existe forma melhor de se descobrir o preço
médio de mercado de um item de serviço, para uma
obra específica, em um momento específico, do que
se calculando a média dos preços propostos por um
número tão significativo de empresas. Tal aferição
de preço é muito mais precisa do que a que o DNIT
utiliza para o Sistema SICRO 2. As razões são as
seguintes:
a) o SICRO reflete uma pesquisa genérica em Santa
Catarina, enquanto as propostas apresentadas refletem os exatos locais da obra que ora se analisa;
b) o SICRO reflete alguns preços reajustados via
índices, não se pesquisando todos os itens todos
os meses, enquanto as propostas apresentadas refletem o preço exato no mês de Agosto de 2003
(como todas as empresas validaram suas propostas,
pode-se dizer que os preços estão atualizados até
Agosto de 2004, quando o primeiro reajuste ocorrerá, fato este que era do conhecimento de todas as
proponentes);
c) o SICRO reflete o serviço como executado de
uma forma padronizada, que não leva em conta
uma obra específica, enquanto as propostas apresentadas refletem exatamente os serviços que serão
executados.
Desta forma, pode-se dizer que o verdadeiro preço
médio de mercado de cada item unitário de serviço
é a média dos preços unitários propostos, e não o
orçado pelo DNIT.
b) Voto do Ministro Relator:
Não obstante partir desse sólido fundamento, deduz, a nosso ver de maneira insuficiente, que, para
a con­secução do equilíbrio original de um contrato,
é bastante que se leve em conta a diferença percentual entre o valor global da proposta e o constante do orçamento-base, sem prejuízo da necessária
aferição da compatibilidade com preços de mercado. Ocorre que muitas vezes o orçamento-base não
corresponde efetivamente à realidade do mercado
local, como é claramente o caso ora examinado, à
vista das enormes diferenças entre o que foi orçado
com base no sistema SICRO 2 e o que foi efetivamente cotado pelas empresas licitantes.
É justamente essa situação que se pretende ver solucionada. Caso se adotasse o método proposto pelo
Revisor no caso concreto ora examinado, é muito
provável que teríamos um desequilíbrio contratual, só que agora desfavorável à Administração, trazendo o nosso problema de volta ao ponto inicial
e sem uma solução plausível. Os preços constantes
no SICRO 2, por exemplo, são resultado de pesquisa
Tribunal de Contas da União. Decisão nº 1.088/2001, Relator Ministro Iram Saraiva, publicada no DOU, 24 jan. 2002.
artigos
80
Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011
Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
feita em diversos locais e são atualizados por índi­
ces gerais criados para serem aplicados a todo o
país, sem levar em conta as peculiaridades de cada
mercado local, o que inevitavelmente ocasiona as
distorções verificadas nos presentes autos. (grifos
aditados)
Também no caso acima abordado, o TCU
empregou, na fundamentação de sua decisão, os
princípios da identidade, da coerência e da pri­
mazia da realidade.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região já
decidiu pela impossibilidade de glosas de paga­
mentos em contrato administrativo, cujo objeto
já tinha sido executado, em razão do princípio da
proteção ao equilíbrio econômico-financeiro, o
que, em outras palavras, nada mais é do que afirmar o valor formal dos contratos administrativos:
O objeto desta ação é justamente a decretação de
nulidade parcial do contrato, para o fim de não ser
paga a quantia de R$1.420.642,77 à empresa requerida, valor este correspondente aos 20% de desconto previsto na ordem de serviço nº 02/2006 do
DNIT. Nesse diapasão, no caso de procedência da
presente ação civil pública e julgamento nos ter­mos
do TCU no acórdão nº 2071/2007 (fls. 949/957),
tem-se que a empresa ré Redram seria a única efetivamente atingida por esta demanda, já que estaria
impedida de receber, também via comando judicial,
todo o valor que fora contratado e gasto com a rea­
lização da obra concluída.
Quanto à obrigatoriedade deste desconto, que veio
por meio de uma instrução de serviço do próprio
DNIT, considero não ser apta a justificar o não pagamento de valores contratados por diversas razões.
Primeiro porque a própria instrução tinha previsão
de exceção, podendo haver contratos com des­contos
menores de 20% sobre a tabela SICRO. Segundo
porque foge completamente à estipulação contratual,
que não dispunha a respeito de limitação de valores
ou glosas. Terceiro porque o ato convocatório, datado
de um dia antes da instrução de serviço nº 2, fazia
referência expressa à apresentação de planilha de
itens de serviços referentes à tabela SICRO de se­
tembro de 2005.
Se houve ou não manobras por parte do DNIT para
adequação da proposta apresentada pela construtora já anteriormente aceita, não são justificativas
para prejudicar a empresa. Nos autos, bem como no
processo administrativo que correu perante o TCU,
não restou demonstrada a má-fé ou, ao menos, a
culpa da empresa contratada. Muito pelo contrário,
constata-se que as irregularidades apontadas, sendo
que algumas delas verifiquei nem existir, ocorre­ram
por violação de deveres por parte dos servidores
públicos, não havendo evidências de que a empresa
contratada tenha concorrido para as falhas.
Ao que consta, a proposta apresentada pela cons­
trutora foi aceita. Quando intimada para diminuir
o valor, informou a impossibilidade, mas, mesmo
assim, a Administração aceitou e homologou sua
proposta.
Após, já estar caracterizado todo o vínculo obriga­
cional entre os requeridos, uma vez que assinado
25
o contrato e realizados todos os serviços, ou seja,
prestada a obrigação por parte da contratada, servi­
ços que foram fruídos pela União e pela população,
não há como decretar a nulidade do contrato, com
o não pagamento de valores, sequer de devolução
de valores já recebidos, sob pena de acobertar o
enriquecimento ilícito.
(...)
Dessa forma, não há como, depois de realizada a
obra, pretender a Administração não pagar aquilo
que foi acordado, trazendo prejuízo, única e exclu­
sivamente para a empresa.
Outrossim, o desconto de 20% ficou estabelecido
por mera conveniência da Administração – DNIT,
sem qualquer amparo legal ou mesmo pesquisa
de mercado e estatísticas que demonstrassem que
nos processos licitatórios as propostas vencedoras
possuem, em razão da livre concorrência, valores
em torno de 20% menores que aqueles praticados
no mercado. De fato a livre concorrência acarreta a
oferta de preços mais baixos, mas também há de se
destacar, que para o caso, havia um valor de referência criado e já utilizado pela Administração – a
SICRO – seja ela de qual Estado da federação fosse.
(...)
Por fim, destaco que o pedido feito nesta ação civil
pública encontra impedimento na legislação. A Lei
nº 8.666/93, que regula as licitações e os contratos
administrativos, estabelece no seu art. 59, parágra­
fo único, que a nulidade do contrato administrativo
não exonera a Administração do dever de indenizar
o contratado pelo que este houver executado até a
data em que ela for declarada e por outros prejuízos
regularmente comprovados, contanto que não lhe
seja imputável, promovendo-se a responsabilidade
de quem lhe deu causa.
Por tudo isso que foi analisado, entendo pelo improvimento da presente ação civil pública, devendo
ser pago à empresa o valor que foi medido no total
de R$8.743.376,78, uma vez que essa medição não
foi contestada pelas partes, descontado o que já foi
pago no valor de R$7.366.355,83 (conforme memorando nº 0412/2006 do DNIT, juntado às fls. 43/46).
2. Apelação a que se nega provimento.25 (grifos
aditados)
Outras decisões judiciais e de tribunais de
contas (algumas inclusive referidas em tópico
anterior), no mesmo sentido, podem ser relacio­
nadas, de modo a afirmar a incidência de um
regime jurídico próprio para as contratações
administrativas, conforme explicitado nos itens
precedentes.
4 Das diferenças entre as formas de raciocínio
acerca da precificação de obras públicas
Ressume de todo o sistema legal regente das
contratações públicas que a metodologia utilizada para precificação deve levar em conta os padrões de mercado, em função do que não pode a
Administração descurar do fato de que os resultados obtidos são remissíveis, necessariamente, a
TRF4, Apelação Cível nº 0004704-34.2006.404.7005/PR, 3ª Turma, Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz Relator, julgado em
25.05.2010.
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artigos
81
Amauri Feres Saad
tais padrões. A este propósito, cabe trazer à colação a sensata lição de Gustavo Pimentel Pereira e
Zilda Costa Santos, ambos os autores inspetores
de obras públicas do Tribunal de Contas do Estado
de Pernambuco (TCE/PE):
preço que o agente detentor do bem (vendedor)
aceite receber para entregá-lo ao primeiro.
Rubens Nunes aborda, de modo didático, as
diferenças entre as concepções objetivistas e sub­
jetivistas da teoria do valor, no âmbito econômico:
As Administrações Públicas, em geral, apresentam
unanimidade nos procedimentos utilizados para
estimar o valor de uma obra; fazem uso de tabelas de
preços de várias origens: Órgãos Públicos, Empresas
privadas e Publicações especializadas. (omissis)
Para o economista, o agente aceita ou recusa uma
transação comparando o custo total da transação
(por simplicidade, o preço pago) com o custo de
não realizar a transação. Tomando como exemplo
um consumidor, o custo de não realizar a transação
seria o custo de ficar sem o bem ou serviço dese­
jado, ou de se contentar com um substituto, ou
ainda o custo de seguir procurando outro ofer­
tante. O padrão empregado para a avaliação de uma
transação é a situação do agente, avaliada por ele
próprio, caso a transação não se efetivasse.
A metodologia da forma apresentada é objeto de
preocupação, pois faz com que as estimativas de
preço, elaboradas pelos Órgãos Públicos, descon­
siderem que os processos de contratação dão-se
dentro de um mercado da construção regido pelas
leis da oferta e procura.26 (grifos aditados)
O trecho acima transcrito ilustra bem o que
se encontra por trás das divergências quanto à
precificação de obras públicas. O raciocínio rea­
lizado para a avaliação do preço global de obras
públicas pelos analistas envolve normalmente
uma matriz analógica: adota-se tal ou qual cotação referencial, “a frio”, e se comparam os preços
delas constantes com os preços da planilha orçamentária contratual.
Parte-se do pressuposto de que, entre aquilo
que é pago (prestação da Administração Pública)
e aquilo que é recebido (prestação do contra­tante
privado), existe uma relação de igualdade. Os
preços de mercado (e, portanto, os preços “justos”)
seriam aqueles que correspondessem ao valor da
coisa posta em comércio. Trata-se de perspectiva
centrada, portanto, no objeto e cujo maior defeito
é justamente perder de vista os fatores determinantes da transação, a saber, os agentes econômicos (aquele que “vende” e aquele que “compra”)
e a assimetria de informações de um com relação
ao outro (e vice-versa).
A outra perspectiva — que certamente
oferece maiores dificuldades teóricas, mas que
ao mesmo tempo oferece maior segurança para a
averiguação de um preço como de mercado —
centra-se não apenas no objeto transacionado,
mas também na percepção dos agentes econô­
micos. Um preço de mercado, portanto, nesta
óptica, seria aquele que um determinado agente
está disposto a pagar por um bem (em sentido
amplo), ao mesmo tempo em que seja também o
26
O agente do outro lado da transação faz uma conta
semelhante e decide fazer ou não fazer a transação.
O vendedor, por exemplo, compararia duas situações: ter mais dinheiro em caixa e menos estoque,
ou menos dinheiro e mais estoque. A transação só
ocorreria se, para os dois, comprador e vendedor,
transacionar fosse preferível a não transacionar.
Se o preço pedido pelo vendedor for “excessivo”,
no sentido de que o consumidor prefira reter seu
dinheiro, a transação não se dá. Da mesma forma,
se o vendedor entender que o preço oferecido pelo
bem é “aviltante”, não haverá transação, nem preço. Não se trata da troca de “equivalentes”. Assim,
preço excessivo soa, para o ouvido do economista,
quase como uma contradição nos termos.
O senso comum, no entanto, parece assumir um
padrão distinto para avaliar as transações. O que se
dá equivale ao que se recebe. O dinheiro dado pelo
comprador tem o mesmo valor do bem dado pelo
vendedor. Trata-se de troca de equivalentes. O valor
bem é percebido como uma propriedade material
dos bens, objetiva, assim como a cor, a textura, o
peso, etc.27
Para os operadores do Direito, o ângulo
a ser privilegiado, neste exame, é naturalmente
o nor­mativo. Todavia, quando o próprio direito
posi­tivo disciplina este aspecto por meio de um
termo vago, como o faz no caso das contratações
administrativas, torna-se necessário um esforço
argumentativo que possa conciliar a racionalidade dos agentes econômicos — e que não pode ser
negada, pois integra a própria natureza da tran­
sação — com níveis mínimos de segurança jurídica, o que se dá por meio do respeito ao regime
jurídico aplicável à matéria.
5 Conclusões
Os princípios (identidade, globalidade, uni­
for­­­­­midade, primazia da realidade, intenciona­lidade
e valor formal das contratações administrativas),
PEREIRA, Gustavo Pimentel; SANTOS, Zilda Costa. Avaliação de superfaturamento por intervalo de confiança da média: um equívoco. p. 1.
Disponível em: <www.ibraop.org.br/site/media/sinaop/08_sinaop/avalia_confi_media.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2009.
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27
artigos
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Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011
Notas sobre o regime jurídico da precificação de obras públicas
derivados todos do regime jurídico-administrativo,
e que a nosso ver constituem o regime jurídico da
precificação das contratações administrativas, são
propostos para manter a racionalidade econômica
e as exigências de segurança na aplicação do direito
positivo num grau aceitável de consistência.
A tensão entre os dois pontos de vista, conforme mencionado no tópico precedente, perma-
necerá. Todavia, será transposta para um plano
secundário quando da análise objetiva de cada
situação fática, segundo o regime jurídico que lhe
é próprio, o que de per se constitui uma vantagem
metodológica inegável.
São Paulo, fevereiro de 2011.
Abstract: The present work approaches the legal parameters for the pricing of administrative contracts.
Considering that applicable legislation only determines that administrative contracts shall obey
market prices, this study aims to identify, on the basis of the legal-administrative regimen, a complex
of principles that serves of guidance for the legal analysis of the prices contracted for the Public
Administration (principles of the identity, integrality, uniformity, priority of the reality, intentionality
and formal value of the administrative contracts).
Key words: Administrative contracts. Market prices. Budget. Bidding process.
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Belo Horizonte, ano 10, n. 111, p. 64-83, mar. 2011.
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