Crônica O cotidiano através das palavras. Profa. Karla Faria A crônica jornalística traz para o jornal a leveza do gênero crônica que leva o leitor a refletir criticamente, descontraidamente sobre os fatos da vida contemporânea. Crônica O que dizem sobre a crônica? “A crônica é um passeio literário. Uma volta pela cidade, pelo pensamento, ao redor do quarto ou do próprio umbigo. È um gênero vira-latas: pode nascer de uma notícia engravidada por um conto, de um ensaio apaixonado por uma poesia ou ser filha de uma piada com pai desconhecido. Já disseram que a crônica é um gênero a é. É amicíssima da lentidão e do imprevisto. Nasce da desatenção do todo, do esbarrão no detalhe. Brota do olhar meio zarolho que não repara no Coliseu, mas no pipoqueiro da calçada em frente. Sabe aquela criança que as tias achavam meio boba, de boca aberta, olhando o vazio? Virou cronista. Não é exclusividade brasileira. Cronista era quem escrevia para El Rey contando o que seus súditos andavam fazendo lá onde Judas perdeu as botas (...)”. Antonio Prata. “A crônica é um gênero essencialmente literário e não jornalístico, é o pingente do jornal. Se o pingente é uma jóia ou não, depende do estilo do cronista. Crônica não é notícia, embora possa refletir sobre o noticiário. Pode também criar sua própria realidade e ser livremente ficcional. A crônica revela um único e soberano ponto de vista: a do cronista (...)”. João Paulo Cuenca. A crônica pode ser divida em: •Literária •Jornalística •Esportiva A CULPA É SEMPRE DO OUTRO de ZuenirVentura As reações ao choque de ordem promovido pela prefeitura são um prato cheio para quem gosta de observar o comportamento do carioca. Todo mundo é contra a desordem urbana, a indisciplina no trânsito, a bandalha e a bagunça em geral. E, em tese, a favor das medidas para combatê-las, mas desde que não me atinjam, contanto que comecem pelo outro. Este, sim, anda fora da lei, suja a rua, fura o sinal, é incivilizado. Por que começar logo por mim? Isso é perseguição. Há tanta coisa para moralizar antes! O morador da mansão construída irregularmente se revolta com o fiscal na hora da multa e pergunta por que ele não faz isso nas favelas, "onde tudo é ilegal"? Na favela, a dona da escandalosa construção sem licença de 22 quartos reage da mesma maneira à ordem de demolição: "Está fazendo comigo porque sou pobre. Quero ver fazer com os ricos." O cara que está no bar protesta contra a blitz: "Por que vocês não vão prender bandidos em vez de incomodar quem está tomando sua cerveja sossegado?" A dama que leva o cachorro para fazer cocô na calçada se irrita quando lhe chamam a atenção para a sujeira que ela não quer limpar: "Pior sujeira é essa aí", e aponta para o morador de rua dormindo no banco. A placa na Praia de Ipanema informa que a cada meia hora uma tonelada de lixo é deixada na areia. O grupo de jovens dourados a caminho do mar passa pelo aviso tomando refrigerante e logo em seguida joga a lata, adivinha onde? Devem achar que lata não é lixo. Recebi ontem do leitor Mauricio Faez a cópia de uma coluna que escrevi há dez anos com exemplos de maus modos do carioca. Ele sugeria a republicação por causa da atualidade das histórias. São casos de pequenos delitos: carros sobre as calçadas, avanço de sinais, desrespeito aos pedestres. Chamava a atenção principalmente a agressividade com que os infratores reagiam ao serem repreendidos, julgando-se acima da lei. Um motorista que quase atropelara alguém na faixa de segurança xinga a senhora que reclamou: "Sua recalcada. Vai ver que nem carro tem." O motociclista buzinando diante de um prédio e que, advertido, responde: "Ah, é? Agora é que você vai ver", e não tira a mão da buzina. O outro que ameaça passar por cima da velhinha: "Tá atrapalhando, Vovó. Por que não fica em casa?" Um senhor de 55 anos mandou um e-mail perguntando: "De que adiantam nossas belezas naturais se impera a cultura da bandalha?” A cena mais emblemática passou-se num cinema. Alguém fez "psiu" pedindo silêncio a um mal- educado espectador que falava alto demais durante a sessão. Em vez de se calar, ele se levantou furioso: "Eu falo como quiser, a boca é minha, os incomodados que se mudem." O Rio só será uma cidade civilizada quando essa prática se inverter. Não são os incomodados que devem se mudar, mas os que incomodam. O Globo, 01/04/2009. O jornalista Moacyr Scliar, da Folha de São Paulo, escreve suas crônicas a partir de uma reportagem publicada neste jornal. Veja um exemplo do dia 9/3/2009. A VIDA NA VAGA Moacyr Scliar Atualmente sai do escritório, come alguma coisa e vai direto para o carro, esperar a hora de retornar ao trabalho. “Falta de vaga para o carro faz motorista "madrugar" na Berrini. Trabalhadores da região chegam até duas horas e meia antes do horário de entrada para encontrar lugar para estacionar na rua. Além de escassas, vagas de estacionamento são caras (até R$ 350); a região não tem metrô e conta com poucas linhas de ônibus. Às 7h já não há mais onde parar no meio-fio das ruas entre a Berrini e a marginal Pinheiros. Às 9h30, muitos estacionamentos, que não são nada baratos, estão lotados. Às 10h30, só sobram vagas a mais de quatro quarteirões da avenida e do lado oposto ao da marginal, onde, segundo frequentadores, é comum o furto de veículos. "É fácil ver gente dormindo aqui", afirma o produtor Mário Marcos.” Cotidiano, 2 de março de 2009 NO COMEÇO ele tinha de chegar de carro à Berrini duas horas e meia antes do horário de expediente para conseguir estacionar. Era um problema, sobretudo para quem, como ele, não gostava de acordar cedo; mas, lutador que era, não deixava se intimidar por aquilo. Chegava cedo, sim, e tratava de usar o tempo da melhor maneira possível: escutava rádio, lia jornal, e até escrevia -ficcionista frustrado tinha o projeto de um grande romance e, aos poucos, ia digitando no laptop uma e outra cena. Mas -e isso apesar da crise- a situação se agravou. Em breve, duas horas e meia de antecedência não eram suficientes. Ele aumentou-as para quatro horas. Agora dormia menos ainda, mas, em compensação, ficava cada vez mais atualizado com as notícias de rádio e de jornal. E, ah sim, o romance ia crescendo. A primeira parte já estava quase pronta, e ele começava a projetar as outras. Tinha de lutar contra o invencível sono, claro, mas a térmica com café (e ele esvaziava-a toda) ajudava um pouco. Contudo, mais e mais carros entravam na luta por uma vaga. Ele começou a chegar seis horas antes do expediente. Era ainda noite fechada quando estacionava, mas, de novo, isso não o perturbava; ao contrário, até gostava do silêncio que então reinava naquela artéria em outros horários tão movimentada. Isso também mudou a sua rotina familiar, claro; depois de jantar com a mulher e os dois filhos não ia para a cama: cochilava umas horas na poltrona e seguia para o carro. Passava mais tempo no veículo, mas isso só fazia aumentar seu universo cultural: além de rádio e jornais, lia revistas, livros diversos (estava pensando em fazer um mestrado) e, logicamente, trabalhava no seu romance, cada vez maior. E o problema do estacionamento sempre crescendo. Chegou um momento em que ele chegava em casa, jantava apressado, e, embarcando no carro, retornava para a Berrini. Por fim chegou à conclusão de que não valia mais a pena a volta ao lar. Atualmente sai do escritório, come alguma coisa numa lanchonete, e vai direto para o carro, esperar a hora de retornar ao trabalho. A mulher e os filhos é que vêm visitá-lo no veículo, que se transformou assim numa espécie de lar. Não, ele não se queixa. Vê algumas vantagens na nova situação. Não precisa dirigir mais, não se estressa no trânsito, não gasta combustível. É um homem cada vez mais culto, uma verdadeira enciclopédia ambulante (quando deambula, claro). E seu romance, que já está com mais de mil laudas, tem tudo para ser uma grande obra literária. O título, ainda provisório (muitas coisas em deambular nossa existência são provisórias). é "A vida na vaga". MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha. Folha de São Paulo, 9/3/09. Acessado em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0903200906.htm "Quando os tremas se acalmaram, ficou decidido que fugiriam para o Pólo Sul.Viveriam lá até que a Humanidade reconhecesse seu erro e eles fossem resgatados. HOLOCAUSTO DOS TREMAS de Claudio Paiva A reunião foi cercada de sigilo. Era preciso achar um lugar onde coubessem todos os tremas da língua portuguesa. O clima era de nervosismo. Estavam com os dias contados. Tinham que fazer alguma coisa, cavar trincheiras, resistir! O líder deu início à reunião. — Fiquem tranqüilos. — "Tranquilos" na tem mais trema. — Nada tem mais trema! — "Nada" nunca teve trema. Só levavam trema palavras com "u". (...) Diante da pancadaria que se seguiu ao xingamento, o líder comentou, resignado? — Espero que eles se apazigüem. — "Apaziquem" nunca teve trema. — Como não?! — Se a letra "u", antes de "e" ou "i", fosse tônica e pronunciada, usava-se acento agudo em vez de trema. "Apazigúem". Mas esse acento caiu também. — Que negócio complicado. — Por que vocês acham que estão acabando com a gente?Porque as regras nunca foram claras. — A única regra clara é que o trema não existe mais! — O que será de nós? Vamos esperar sentados por nossa liqüidação? — "Liquidação" na tem mais trema. — E tinha?! — Nesse caso o trema era facultativo. — Viram como era confuso? — Por que não pedimos apoio aos hífens? — Os hífens vão ser eliminados também?! — Alguns continuam, mas muitos serão abolidos. — Meu Deus! Como vai ser o mundo sem hífens? — Um contrassenso! — Esqueçam os hífens. Já temos problemas demais. — Precisamos arranjar um lugar onde possamos os esconder. Quem poderia nos acolher? — Os pinguins. São estúpidos demais para saber que não têm mais trema. Poderíamos viver com eles. Criaríamos um mundo onde tremas e pinguins viveriam em completa harmonia. Um "Shagri-lá" para todos nós. — As linguiças são mais estúpidas que os pingüins. Por que você não vai viver com as linguiças? Rolou outra pancadaria por causa do deboche. Quando os tremas se acalmaram, ficou decidido que fugiriam para o Pólo Sul. Viveriam lá até que a Humanidade reconhecesse seu erro e eles fossem resgatados. Mas, como os hífens, os tremas estavam divididos. — Eu ao vou agüentar o frio! — "Agüentar" não tem mais trema. — Nada tem mais trema! “Crônica de Cláudio Paiva. O Globo. Revista O Globo, 11/01/2009. "Cada vez que eu sento no computador e penso sobre o que escrever, sinto um cheiro de naftalina no ar. A última vez em que escrevi com o coração batendo mais forte foi no 11 de setembro." A DIFICULDADE DE SER ORIGINAL / de Martha Medeiros Pergunta recorrente para cronista: com tanta coisa acontecendo no mundo, deve ser fácil arranjar assunto para escrever, não? Pra mim não é. Recebemos uma overdose de informação, mas isso não significa que os acontecimentos sejam surpreendentes a ponto de fazer a festa dos colunistas. É leite tirado de pedra diariamente. Como ser original quando tudo se repete e repete e repete? Um pai rouba um avião e leva a filha de 5 anos junto, num ato insano e suicida, como de fato se consumou: caem num estacionamento de shopping e morrem. Qual foi a última vez que se ouviu falar de um homem que roubou um avião e caiu num estacionamento de shopping: Nunca. Mas atos insanos? Toda hora. Virou a especialidade do mundo. Dizer o que sobre essa tragédia, especificamente? Que é fruto de uma mente doentia, da falta de sentido da vida, da necessidade de espetacularizar a própria história? Chover no molhado. Crises econômicas: essa não é nem mesmo a oitava da sua vida, deve ser a décima terceira, e haverá outras. Conflitos religiosos? Três ou quatro por ano, dos graves. Garotos matando colegas de aula e depois se suicidando: já vimos esse filme mais vezes do que "Blade runner". Ídolos do esporte tentando demonstrar que ainda dão um caldo? São bravos e persistentes heróis do déjà vu. Casamentos e separações no mundo das celebridades?Meia dúzia por dia. Corruptos voltando ao poder? Nunca saem, apenas ficam reservados, como um molho a ser despejado por nossa goela abaixo. Tendência para o outono-inverno? Ora, moda é reciclagem por definição. Ídolos da música que se despedem da carreira e voltam? Eles sempre voltam, não se acostumam com a aposentadoria. Ameaças ambientais ao planeta? Quase um novidade. Quase, pois já se tem falado bastante a respeito. Me diga aí uma coisa impactante. Algo que realmente suspenda a sua respiração. O primeiro presidente negro dos Estados Unidos pode ser considerado um acontecimento histórico. Tanto que, desde o momento em que ele foi confirmado como candidato do Partido Democrata até o dia da sua eleição, não se falou em outra coisa: todos os jornais, tevês, sites, blogs, revistas, programas de rádio dissecaram o assunto. Depois, esfria. Como tudo. Cada vez que eu sento no computador e penso sobre o que escrever, sinto um cheiro de naftalina no ar. A última vez em que escrevi com o coração batendo mais forte, consciente de que estava testemunhando uma transformação mundial, algo que nunca mais seria esquecido, foi no dia 11 de setembro de 2001. Era uma terça-feira, e a minha coluna saía no dia seguinte em um jornal do Sul. Naquela tarde, eu escrevi com uma emoção e um estupor inédito. Menos mal que atentados terroristas dessa magnitude não aconteçam todos os dias, a exemplo de homens-bomba, que viraram rotina. É só um desabafo: hoje os absurdos se sucedem em escala industrial. Notícias boas ainda possuem algum frescor, mas quase mais nada merece um "Extra, extra!". As novidades, como certas espécies de mariposa, não sobrevivem nem mesmo por 24 horas. Nascem e morrem no mesmo dia. Por essas e outras é que persevero no trivial, que, contrariando sua natureza, passou a ser o inusitado. “Revista O Globo”, in O Globo, 22/03/2009.