Teoria Matemática das Eleições: Geometria e Paradoxos Métodos finitos em Matemática, disciplina do Mestrado em Ensino da Matemática do Departamento de Matemática Pura da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto 1 Haverá alguma dificuldade em VOTAR? O que pode correr mal quando votamos? Gaius Plinius Caecilius Secundus, Plínio o Jovem (61 ou 62 - 113) “Uma moção foi colocada perante o Senado sobre os escravos libertos do consul Afranius Dexter que foi encontrado morto, ou pelas suas próprias mãos, ou pela mão dos seus escravos, morto num acto criminoso, ou em obediência aos seus desejos.” “Uma pessoa (…) pensou que, depois do inquérito, deviam ser perdoados. Uma segunda pessoa pensou que deviam ser desterrados para uma ilha, uma terceira pessoa que deviam ser executados. A diversidade das propostas significa que tinham de ser votadas individualmente.” Suponhamos que a proporção das preferências era: Perdão - 40% Desterro - 35% Execução - 25% E se a votação fosse apenas entre Perdão e Desterro? Ou apenas entre Perdão e Execução? Ou apenas entre Desterro e Execução? Paradoxos O matemático francês Jean-Charles Borda (1733-1799) foi o primeiro a estudar sistematicamente o problema. O que descobriu surpreendeu os seus contemporâneos. Olhando para o sistema eleitoral como um método de agregar opiniões para encontrar uma escolha colectiva, notou que métodos diferentes conduzem a resultados diferentes. O paradoxo de Borda, como veio a ser conhecido, foi muito discutido na época, sem se encontrar uma solução satisfatória. O sistema usado nas democracias baseia-se no chamado voto plural, que é mais conhecido pela sigla “Um homem um voto”. Borda apresentou o problema à Academia Real Francesa em 16 de Junho de 1770. Colocou um exemplo em que 21 votantes escolhiam entre 3 candidatos. Considerou as preferências relativas de cada votante, isto é a forma como cada eleitor hierarquizava os candidatos. O que reparou foi que era possível eleger um candidato que a maioria dos eleitores colocava em último lugar. Bastava para isso que os votos dos outros dois estivessem suficientemente divididos. Analisemos o exemplo apresentado por Borda. Onde X Y significa que X é preferido a Y. Consideremos a seguinte tabela com as preferências dos 21 eleitores de Borda: Votos Preferência 7 A A B B C C C B A 6 C B A 1 7 Apenas uma pessoa coloca o candidato A em primeiro lugar, seguido do B e, depois, do C. Na segunda linha vemos que há 7 votantes que preferem o candidato A, que põem em segundo lugar o candidato C e em terceiro o B. Neste exemplo, o candidato mais votado segundo o sistema plural (um homem um voto) é A, com 8 votos a favor, contra 7 em B e 6 em C. No entanto, esse é o candidato mais detestado pela maioria do eleitorado, uma vez que 13 votantes em 21 o colocam em último lugar! Sistemas de votação Voto plural A ordenação das alternativas é feita contando, para cada uma, o número de boletins de voto em que esta ficou colocada em primeiro lugar. As alternativas são ordenadas por ordem crescente do correspondente número de votos obtidos. Sistema Sequencial aos Pares com Agenda Depois de acordada uma ordenação preliminar das alternativas, a que se chama uma agenda consideram-se os resultados de eleições de pares de alternativas, pela ordem dada na agenda, eliminando as derrotadas da agenda e prosseguindo até a agenda conter apenas um elemento. As alternativas são finalmente ordenadas por ordem inversa de eliminação da agenda. Sistemas de votação Sistema de Hare Elimina(m)-se, em eleições sucessivas, a(s) alternativa(s) com o menor número de primeiros lugares, sendo as alternativas ordenadas por ordem inversa de eliminação. Expresso, suplemento Economia Sábado, 11 de Maio de 2002 Sistemas de votação Contagem de Borda Atribui-se a cada posição do boletim de voto, um número de pontos: 0 para a última, 1 para a penúltima, …, n-1 para a primeira. Os pontos “ganhos” por cada alternativa são totalizadas e as alternativas são ordenadas por ordem crescente de pontos obtidos. Problemas Analisemos um exemplo em onde quinze pessoas seleccionam a sua bebida preferida entre L (leite), C (cerveja), e V (vinho). As preferências dos eleitores são dadas pela tabela: Votos 6 5 4 Preferência L V C V V C C L L Então o resultado da maioria (onde cada pessoa vota na sua bebida favorita) é: L C V Aparentemente, o leite é a bebida escolhida! Será mesmo o leite a bebida preferida dos votantes? Se é, seria de esperar que os votantes preferissem o leite à cerveja. Mas como mostra a tabela seguinte, estes votantes preferem realmente a cerveja ao leite. Votos 6 5 4 Preferência L V C B V V B Leite Cerveja 6 0 L C 0 5 0 4 Total 6 9 Do mesmo modo, 9 votantes preferem o vinho ao leite e 10 preferem o vinho à cerveja. Isto cria uma contradição e uma potencial controvérsia entre os votantes, porque estas comparações entre pares sugerem que os eleitores preferem realmente o V C L , o resultado oposto ao da maioria. O que correu mal? Modernamente chama-se a isso a eleição de um perdedor de Condorcet, isto é, de um candidato que perde em comparações bilaterais com todos os outros. Aqui, o leite é preterido em relação à cerveja se apenas estas duas hipóteses se colocassem, era preterido de novo se só se colocasse a hipótese de escolha entre leite e vinho, mas era preferido se todas as hipóteses fossem colocadas em simultâneo. No exemplo de Borda, o candidato A perdia as eleições se apenas as disputasse com o candidato B, perdê-las-ia de novo se apenas se defrontasse com o candidato C, mas ganhá-las-ia se fosse às urnas contra os dois em simultâneo. Sistemas de votação Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat Marquês de Condorcet (1743-1794) Método de Condorcet Os resultados são decididos estritamente nos termos de uma comparação entre pares de candidatos. O vencedor de Condorcet é o candidato que vence todos os candidatos restantes em eleições um contra um. Sistema de votação (im)perfeito… Consideremos, novamente, o perfil envolvendo 15 eleitores e 3 alternativas. Votos 6 5 4 Procuremos as ordenações finais, para este perfil, usando cada um dos sistemas eleitorais acima descritos. Preferência L V C V V C C L L Contagem de Borda L V C 6 2 5 0 4 0 12 6 0 5 2 4 1 14 6 1 5 1 4 2 19 Plural Hare S. S. P. A. LVC S. S. P. A. VCL Borda Condorcet L C V L V V C L C V C C V V L C L L Conclusão… O resultado de uma eleição pode depender bastante do sistema eleitoral usado! Desafio Arranjar um processo, método ou algoritmo, um sistema eleitoral ou de votação, que decida, a partir do conjunto das listas de preferência, a que se chama o perfil eleitoral, uma ordenação das alternativas que reflicta o melhor possível as preferências dos eleitores Condições… Numa primeira análise, as seguintes condições parecem ser imprescindíveis para que um sistema de votação democrático traduza as preferências dos eleitores: Condição de Pareto (ou de unanimidade): Se a alternativa X ficou colocada acima da alternativa Y em todos os boletins de voto então na lista final deve ter-se X Y . Critério do Vencedor de Condorcet (CVC): Se existir um vencedor de Condorcet, este deve ser o vencedor da eleição. Monotonia: Se de uma eleição para outra, envolvendo os mesmos eleitores e os mesmos candidatos, a posição de um dos candidatos for alterada, em um ou mais boletins de voto, mas sempre a favor desse candidato, então a sua posição na ordenação final não deve ser inferior à posição em que ficou colocado na primeira eleição. Condições… Independência das Alternativas Irrelevantes (IAI): Se em duas eleições distintas, envolvendo os mesmos eleitores e os mesmos candidatos, a ordem relativa de dois dos candidatos não foi alterada em nenhum boletim de voto, então a ordem relativa desses mesmos candidatos no resultado final deve ser a mesma. Simetrias: Igualdade (ou Anonimato): Permutar as listas de preferência, sem as alterar, não deve ter nenhum efeito no resultado da eleição. Neutralidade: Se todos os eleitores cometerem o erro de trocar as alternativas X e Y, então basta trocar X com Y no resultado final para corrigir o erro. Questão: Será que algum dos métodos satisfaz estas condições? Kenneth Arrow Em 1951, (prémio Nobel da Economia em 1972) provou o seguinte resultado: Teorema: Não existe nenhum sistema de votação que satisfaça simultaneamente as condições de Pareto, IAI e igualdade! Ideia da demonstração: As condições de Pareto e a da Independência de Alternativas Irrelevantes conduzem a uma DITADURA!!! Exemplos… O Sistema Sequential aos Pares com Agenda não satisfaz a condição de Pareto! Considere-se o seguinte perfil: 4 4 4 A C B B A D D B C C D A Com agenda: ABCD. Tem-se: ABCD ACD CD D D D é o vencedor apesar de todos os eleitores preferirem B a D ! C A B Exemplos… O Sistema de Hare não satisfaz a condição de Monotonia! Considere-se o seguinte par de eleições, em que na segunda delas 3 dos eleitores alteram os seus boletins de voto de B A C para A B C , uma mudança favorável a A, enquanto os outros eleitores não alteram as suas listas de preferências 1ª Eleição 2ª Eleição 12 9 7 3 15 9 7 A C B B A C B B A C A B A C C B A C C B A Exemplos… 1ª Eleição 2ª Eleição 12 9 7 3 15 9 7 A C B B A C B B A C A B A C C B A C C B A 1ª Volta 1ª Volta A: 12 A: 15 B: 10 B: 7 C: 9 C: 9 12 9 7 3 15 9 7 A A B B A C C B B A A C A A 2ª Volta 2ª Volta A: 21 A: 15 O candidato A, que ganhou a primeira eleição, perde a segunda quando só houve alterações a seu favor ! B: 10 B: 16 23 Exemplos… A contagem de Borda não satisfaz IAI! Considere-se o seguinte par de eleições, em que alguns dos eleitores (4) mudam a sua lista de preferências, mas ninguém altera a posição relativa de A versus B. 1ª Eleição 2ª Eleição 7 4 7 4 A C A B B B B C C A C A Resultados: Vê-se assim que a posição relativa de A e B é alterada de uma eleição para a outra. A A: 14 A: 14 B: 11 B: 15 C: 8 C: 4 B C B A C Sistema de votação (im)perfeito II Sistemas/Condições Pareto CVC Mono IAI Plural Sim Não Sim Não Borda Sim Não Sim Não Hare Sim Não Não Não Seq. Pares c/ agenda Não Não Sim Não 25 IAI não é realista… Teorema: Quando o número de candidatos (ou alternativas) é igual ou superior a 3, qualquer sistema que satisfaça as condições IAI e Pareto é um sistema que não admite empates. Demonstração: Suponhamos que tal não acontecia, ou seja que existia um perfil para o qual há duas alternativas, X e Y, que resultam empatadas: ... ... X ... ... Y ... ... Y X ... ... ... X=Y Na figura acima, a parte esquerda representa o perfil da eleição, ou seja o conjunto de todos os boletins de voto, havendo alguns onde a alternativa X está acima de Y e outros onde o contrário acontece, mas admite-se que uma dessas possibilidades não ocorra. 26 Seja Z uma terceira alternativa qualquer (cuja existencia é garantida por uma das hipóteses feitas). Uma vez que o sistema satisfaz IAI e a condição de Pareto, resulta que se, numa nova eleição, os eleitores com X > Y colocassem Z entre X e Y, enquanto que aqueles com X < Y colocassem Z acima de Y, ter-se-ia: ... ... ... X Z ... ... Z ... Y ... ... Y X ... ... ... X=Y,Z>Y e portanto Z > X 27 Agora, se todos os eleitores trocarem Y com Z, o que não altera as posições relativas de X vs. Y e de X vs. Z... ... ... ... X Y ... ... Y ... Z ... ... Z X ... ... ... Z > X , X=Y e portanto Z > Y… o que contradiz a hipótese de o sistema verificar a condição de Pareto. 28 O Critério de Condorcet não é inquestionável... Saari, dá um exemplo semelhante ao que se segue, mostrando que o vencedor de Condorcet não é invariante para a “adição de empates”. 31 22 10 10 10 A B A B C B A C A C C B C A é o vencedor de Condorcet (58.5%) + Perfil empatado 31 32 10 10 A B A C B B A C B A C C B A B é o vencedor de Condorcet (50.6%) Isto mostra que a condição CVC não é tão indiscutivelmente razoável quanto possa parecer numa primeira análise... 29 Geometria, Eleições e Paradoxos 30 31 32 Teoria Matemática das Eleições Aos métodos que atribuem um número de pontos aos candidatos ordenados pela ordem de preferência do eleitor, chamamos métodos eleitorais posicionais. Quando normalizados para atribuir um único ponto ao candidato mais preferido de um eleitor, o ponto atribuído define um vector de voto w 1, , 0 . Teoria Matemática das Eleições Consideremos o seguinte exemplo: Teoria Matemática das Eleições Perfis dos eleitores: C 3 4 5 2 1 A 6 B Teoria Matemática das Eleições Teoria Matemática das Eleições Resultados de eleições entre pares Teoria Matemática das Eleições Resultados de eleições entre pares - Paradoxos Teoria Matemática das Eleições Resultados de eleições entre pares - Paradoxos Suponhamos que só um eleitor numa população grande (n eleitores) tem tipo 3: Teoria Matemática das Eleições Probabilidades - Paradoxos Caso discreto: Teoria Matemática das Eleições Probabilidades - Paradoxos Caso discreto: Teoria Matemática das Eleições Probabilidades - Paradoxos Caso discreto: Teoria Matemática das Eleições Probabilidades - Paradoxos Resultados Posicionais: Os registos de w para todos os candidatos são: Teoria Matemática das Eleições Probabilidades - Paradoxos Resultados Posicionais: Os resultados para todos os pares de candidatos são: Teoria Matemática das Eleições Paradoxos Resultados Posicionais: Apesar do método plural e da eleição um contra um identificarem o mesmo candidato como sendo o melhor classificado e deste facto parecer abonar a favor do método uninominal, não devemos esquecer que o ranking de um perfil por unanimidade também assemelha-se bastante importante, devendo assim esperar que os resultados da eleição favoreçam os três tipos particulares representados no perfil. Teoria Matemática das Eleições “Nas questões matemáticas não se compreende a incerteza nem a dúvida, assim como tão pouco se podem estabelecer distinções entre verdades médias e verdades de grau superior.” Hilbert Lewis Carrol (1876) • (as eleições) “são mais um jogo de habilidade que um teste real aos desejos dos eleitores.” • “na minha opinião é preferível que as eleições sejam decididas de acordo com os desejos da maioria do que os daqueles que têm mais habilidade no jogo, por isso penso ser desejável que todos devam saber as regras pelas quais este jogo se pode ganhar.” Referências Bibliográficas ASSUNÇÃO, J. B. 2002 O Plebescito Francês. Caderno Economia do Semanário Expresso de 11 de Maio de 2002 BUESCU, J. 2001 O Mistério do Bilhete de identidade e Outras Histórias, crónicas as Fronteiras das Ciências. Gradiva. Lisboa CONDORCET, J.-M. 1785 Éssai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix. Paris CONDORCET, J.-M. 1789 Sur la forme des élections. Paris Referências Bibliográficas CRATO, N. 2002 Paradoxos eleitorais. Revista do Semanário Expresso do dia 13 de Fevereiro de 2002 GEANAKOPLOS, J 2001 Three Brief Proofs of ARROW’S IMPOSSIBILITY THEOREM. Cowles Foundation Discussion Paper No. 1123RRR. Cowles Foundation For Research In Economics. Yale University MACHIAVELO, A. 2004 Sistemas de votação, www.fc.up.pt\cmup\home\machia\SistemasVot.html Página acedida em 18 de Janeiro de 2004 SAARI, D. 1991 A Fourth Grade Experience. CiteSeer (?) Referências Bibliográficas SAARI, D. 1995 SAARI, D. 1997 Basic Geometry of Voting. Springer-Verlag Are Individual Rights Possible?. Mathematics Magazine; Vol. 70, No. 2; 83-92 SAARI, D. 1997 The Symmetry and Complexity of Elections. Complexity 2; 13-21 SAARI, D. & VALOGNES, F. 1998 Geometry, Voting, and Paradoxes. Mathematics Magazine; Vol. 71, No. 4; 243-259 SAARI, D. 2001 ChaoticElections!A Mathematician Looks at Voting. 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