Capítulo 9 Variabilidade da Frequência Cardíaca em Crianças com Paralisia Cerebral Andréa Baraldi Cunha∗, Antonio Roberto Zamunér, Marlene Aparecida Moreno, Eloisa Tudella, Ester da Silva Resumo: Crianças com paralisia cerebral (PC) apresentam disfunções autonômicas. Isto torna relevante estudar o controle autonômico da frequência cardı́aca (FC) para compreender o comportamento do seu sistema neurocárdico. Os objetivos deste capı́tulo são: abordar os procedimentos de avaliação e análise linear da variabilidade frequência cardı́aca (VFC) no domı́nio da frequência, verificar a VFC em crianças com PC, e discutir a sua relação com o comprometimento motor. Os resultados mostram que as crianças com PC apresentam alterações nos ı́ndices de VFC quando comparadas com crianças com desenvolvimento motor adequado na mesma faixa etária, indicando desequilı́brio simpatovagal. Conclui-se que estas alterações estão relacionadas ao grau de comprometimento motor das crianças. Palavras-chave: Criança, Paralisia cerebral, Avaliação, Variabilidade da frequência cardı́aca. Abstract: Children with cerebral palsy (CP) present autonomic dysfunction. Thus, it is relevant to study the autonomic control of heart rate (HR) to understand the behavior of the neurocardiac system of this population. The purposes of this chapter are: to review the evaluation procedures and the linear analysis of the heart rate variability (HVR) in the frequency domain, to evaluate the HVR in children with CP, and to discuss the relation between HVR and motor impairment. Results show that children with CP present alterations in the HVR indices when compared to children with typical motor development at the same age. This indicates sympathovagal imbalance. We concluded that these alterations are related to the level of motor impairment in the children. Keywords: Child, Cerebral Palsy, Evaluation, Heart rate variability. ∗ Autor para contato: [email protected] Castilho-Weinert & Forti-Bellani (Eds.), Fisioterapia em Neuropediatria (2011) ISBN 978-85-64619-01-2 164 Cunha et al. 1. Introdução Crianças com Paralisia Cerebral (PC) apresentam alterações nas propriedades intrı́nsecas do sistema neuromuscular (Bax et al., 2005; Rosenbaum et al., 2007). Além destas alterações, também apresentam disfunção autonômica associada, incluindo alteração intestinal e vesical, hiperhidrose (Reid & Borzyskowski, 1993; Rose et al., 1993), baixa resistência cardiopulmonar (Gorter et al., 2009), maior gasto energético e altos valores de frequência cardı́aca (FC) nas atividades diárias (Bartonek et al., 2002; Duffy et al., 1996; Negri et al., 2010). As disfunções autonômicas estão relacionadas ao desequilı́brio entre os ramos eferente simpático e parassimpático do Sistema Nervoso Autonômico (SNA). Isto provavelmente se origina na perda da influência hemisférica na modulação autonômica, devido às lesões encefálicas destas crianças (Korpelainen et al., 1993; Linden & Berlit, 1995; Yang et al., 2002). A modulação da FC é dependente da integração dos componentes simpático e parassimpático, que determinam de maneira variável as oscilações de seus batimentos. As oscilações temporais entre duas contrações ventriculares consecutivas, correspondem aos intervalos R-R (iR-R) do Eletrocardiograma (ECG), designado como Variabilidade da Frequência Cardı́aca (VFC) (Longo et al., 1995). Os ajustes autonômicos do SNA são atribuı́dos à integridade do sistema neurocárdico (Zuttin et al., 2008) e as condições patológicas promovem alterações na modulação autonômica da FC e na dinâmica do sistema cardiovascular. A avaliação do controle autonômico da FC em crianças com PC tratase de um tema incipiente dentro da fisioterapia em neuropediatria. Porém, este tema é de grande relevância, pois possibilita um enfoque cardiovascular, que nem sempre é abordado nos programas de reabilitação. Deste modo, pretende-se incentivar a utilização da análise da VFC de crianças com PC na área da fisioterapia em neuropediatria. Diante do exposto, o presente capı́tulo teve como objetivos abordar os procedimentos de avaliação e análise linear da VFC no domı́nio da frequência, analisar a VFC em crianças com diagnóstico clı́nico de PC e discutir a sua relação com o comprometimento motor de acordo com o Gross Motor Function Classification System (GMFCS). 2. Fundamentação Teórica 2.1 Paralisia cerebral O termo PC descreve um grupo de desordens do movimento e da postura atribuı́das ao distúrbio não progressivo que ocorre no encéfalo em desenvolvimento (Bax et al., 2005; Rosenbaum et al., 2007). O problema motor dos indivı́duos com PC se origina fundamentalmente da disfunção do Sistema Nervoso Central (SNC), que interfere diretamente no desenvolvimento do Variabilidade da frequência cardíaca em crianças com PC 165 controle postural contra a gravidade e impede o desenvolvimento motor normal (Howle, 2002). As desordens motoras da PC causam limitações das Atividades de Vida Diária (AVD’s) e são frequentemente acompanhadas por distúrbios da sensação, da percepção, da cognição, da comunicação, do comportamento e por alterações musculoesqueléticas secundárias (Bax et al., 2005; Rosenbaum et al., 2007). A classificação da PC pode ser baseada no comprometimento da distribuição topográfica, do tônus muscular e do nı́vel de funcionalidade. Quanto à distribuição topográfica, a PC pode ser classificada como: hemiplegia, diplegia e quadriplegia (Koman et al., 2004). Quanto ao tônus muscular: em espástica, discinética, atáxica e mista, sendo que a forma espástica é a mais frequente (75% dos casos) (Koman et al., 2004). Estudos evidenciam que a espasticidade acarreta em alterações nas propriedades intrı́nsecas da criança. Assim, há redução da força muscular, da velocidade do movimento e modificações adaptativas no comprimento muscular e na amplitude do movimento ativo (Siebes et al., 2002; Lieber et al., 2004). Estas crianças demonstram alto gasto energético na execução das AVD’s e são mais suscetı́veis à fadiga (Duffy et al., 1996; Durstine et al., 2000; Fernhall & Unnithan, 2002; Gracies, 2005). Para a classificação da PC quanto ao nı́vel de funcionalidade, o instrumento mais utilizado atualmente é o GMFCS. Esta escala é baseada no movimento auto-iniciado, com ênfase no sentar e no andar. Ela apresenta cinco nı́veis diferentes de função motora, de acordo com a limitação funcional e a necessidade de assistência externa. Crianças classificadas no nı́vel I do GMFCS (Figura 1(a)) apresentam baixa severidade, bom desempenho motor e limitações funcionais pouco pronunciadas. Crianças classificadas no nı́vel V (Figura 1(b)) apresentam múltiplas desordens, com restrições no controle voluntário dos movimentos e na habilidade de manter postura anti-gravitária do pescoço e do tronco (Palisano et al., 1997). As crianças dos nı́veis IV e V do GMFCS apresentam desempenho motor inferior em atividades nas posturas sentada e em pé (Ostenjo et al., 2003; Cunha et al., 2009) e em atividades funcionais de autocuidado e mobilidade (Mancini et al., 2002) quando comparadas com crianças com menor comprometimento motor. As crianças quadriplégicas destes nı́veis mostraram curso de comprometimento da função motora grossa menos favorável que as crianças dos nı́veis I a III. Tal comprometimento foi principalmente na mobilidade, que é devido: à maior espasticidade, ao pior controle motor seletivo, à fraqueza muscular e às limitações de amplitude de movimento dos membros inferiores (Ostenjo et al., 2004; Bjornson et al., 2007; Voorman et al., 2007). 2.2 Variabilidade da frequência cardíaca A regulação da frequência dos batimentos cardı́acos ocorre em decorrência do controle intrı́nseco, dos fatores humorais e da atuação do SNA por meio 166 Cunha et al. (a) (b) Figura 1. Ilustração representativa de crianças com PC dos nı́veis I (a) e V (b) do GMFCS na postura sentada. de seus eferentes simpático e parassimpático. O SNA promove ajustes rápidos no sistema cardiovascular durante diferentes estı́mulos (exercı́cio fı́sico, estresse mental e mudanças posturais), a fim de suprir a demanda dos sistemas orgânicos (Warwick & Williams, 1973; Hainsworth, 1998). O sistema nervoso parassimpático, representado pelo nervo vago, inerva o nodo sinoatrial, o nodo átrio-ventricular e o miocárdio atrial, e é responsável por reduzir a FC. O sistema nervoso simpático inerva todas as regiões do coração, ou seja, o nodo sinoatrial, o nodo átrio-ventricular e todo o miocárdio (átrios e ventrı́culos). Ele é responsável por aumentar a FC e a força de contração do miocárdio (Warwick & Williams, 1973; Hainsworth, 1998). Em repouso observa-se predomı́nio da modulação vagal sobre o coração. Esta reduz os valores da FC intrı́nseca de 110-120 para 60-80 batimentos por minuto (bpm). No entanto, valores de FC acima da FC intrı́nseca representam predomı́nio simpático (Hainsworth, 1998). A influência da estimulação ou da inibição das fibras nervosas simpáticas e parassimpáticas nas respostas da FC sobrepõe ao ritmo inerente do miocárdio. A interação complexa entre estas duas eferências resulta em oscilações da FC instantânea e dos iR-R do ECG, as quais se denomina de VFC (Longo et al., 1995; Novak et al., 1996; Grupi & Moraes, 2001). O reconhecimento de que a FC e a pressão arterial apresentam variações batimento a batimento vem de longa data. A constatação inicial Variabilidade da frequência cardíaca em crianças com PC 167 deste fenômeno foi feita por Stephens Hales em 1973, ao realizar a primeira medida quantitativa da pressão arterial. Isto forneceu bases para o aprofundamento dos estudos nesta área. Assim, sabe-se que as flutuações periódicas da FC constituem um indicador de um sistema cardiovascular saudável e que a análise da VFC representa um dos mais significativos indicadores quantitativos da resposta neuro-regulatória batimento a batimento (Hartikainen et al., 1998). Os ajustes do SNA são atribuı́dos à integridade do sistema neurocárdico e a posição corporal afeta o controle e reposta da FC (Zuttin et al., 2008). As condições patológicas promovem alterações na modulação autonômica da FC e na dinâmica do sistema cardiovascular. Isto compromete os ajustes rápidos e compensatórios da FC, determinados pela ação autonômica sobre o nodo sinusal para garantir a homeostase (Mitchell, 1990). Assim, alterações na modulação autonômica da FC e na dinâmica do sistema cardiovascular podem ser identificadas por meio do estudo da VFC nas posturas supina e ortostática (Acharya et al., 2005; Zamunér et al., 2011). 2.3 Análise da variabilidade da frequência cardícaca no domínio da frequência Existem diversos métodos para a análise da VFC e os que ocorrem no domı́nio do tempo são os mais difundidos. No entanto, estes não mostram especificidade e sensibilidade suficientes, uma vez que seu uso é relativamente limitado (Novak et al., 1996). Estes métodos descrevem o comportamento de um fenômeno ao longo do tempo, e avaliam basicamente a variabilidade estatı́stica por meio de médias e desvios-padrão. Os métodos de análise no domı́nio da frequência são os mais aceitos, pois a VFC envolve fenômenos periódicos que se relacionam com ajustes e adaptações fisiológicas às mudanças no meio interno, externo e na presença de doenças. Para isto se utilizam ferramentas matemáticas que possibilitam estudar as ondas a partir da análise espectral. Para a análise dos dados, inicialmente deve ser realizada uma inspeção visual da distribuição dos iRR (em milissegundos) obtidos durante a coleta, para observar ou eliminar os trechos que contenham interferências ou ruı́dos no sinal. Assim, selecionase um intervalo que apresente maior estabilidade do traçado dos iR-R do ECG e que contenha no mı́nimo 256 batimentos (Novak et al., 1996). Para os registros de longa duração, do tipo Holter de 24 horas, recomenda-se a avaliação a partir da análise no domı́nio da frequência, também denominada de análise espectral. Porém, alguns estudos afirmam que cinco minutos de registro, ou 256 pontos, proporcionam tempo suficiente para se obter a estabilidade do sinal (Novak et al., 1996; Hartikainen et al., 1998). A análise espectral permite decompor a VFC de um determinado tempo em seus componentes oscilatórios fundamentais, definindo-os pela sua frequência e amplitude (Longo et al., 1995). Assim, a análise espectral 168 Cunha et al. envolve a decomposição de um sinal numa soma de ondas senoidais de diferentes amplitudes e frequências (Appel et al., 1989). A partir desta análise identifica-se e quantifica-se a frequência com que aparecem determinados elementos repetitivos nas variações da FC (Longo et al., 1995). Nesta análise, a série de iR-R sofre inicialmente um processamento matemático por meio de um microcomputador que resulta no tacograma (Figura 2). O tacograma expressa a variação da FC (iR-R) em função do tempo e contém um sinal quase periódico que oscila no tempo. Ele é então manipulado por vários algoritmos matemáticos, por meio de método não paramétrico como a transformada rápida de Fourier, ou método paramétrico como modelo auto-regressivo. Figura 2. Tacograma dos valores absolutos da FC (bpm) no software Polar Precision Performance durante 15 minutos. Os principais componentes, identificados a partir da análise espectral são mostrados na Tabela 1: Ultra Baixa Frequência (UBF), Muito Baixa Frequência (MBF), Baixa Frequência (BF) e Alta Frequência (AF) (Novak et al., 1996). A natureza da UBF e da MBF não está completamente esclarecida. Para obtê-las são necessários longos perı́odos de aquisição, com registros de vinte e quatro horas. Acredita-se que estas frequências de oscilações são mais lentas. Alguns autores relatam que elas sofrem influências de fatores ligados aos controles de termorregulação, do tônus vasomotor periférico (Akselrod et al., 1981, 1985; Appel et al., 1989), e do controle neuro-hormonal, ligado ao sistema renina-angiotensina-aldosterona (Akselrod et al., 1985; Pomeranz et al., 1985). Outros autores acreditam que a MBF seja dependente tanto da ação do simpático, como do parassimpático (Akselrod et al., 1981, 1985; Pomeranz et al., 1985; Appel et al., 1989; Hayano et al., 1991; Akselrod, 1995). A BF é dependente do reflexo barorreceptor. Esta faixa de frequência é utilizada principalmente como marcadora da modulação simpática sobre o sistema cardiovascular (Malliani et al., 1991; Longo et al., 1995; Novak 169 Variabilidade da frequência cardíaca em crianças com PC Tabela 1. Variáveis espectrais com valores correspondentes das faixas de frequência e significado fisiológico. Adaptado de Novak et al. (1996). Componente Espectral Espectro total Faixa espectral (Hz) Entre 0 e 0,4 Alta frequência Entre 0,15 e 0,4 Baixa frequência Entre 0,03 e 0,15 Relação baixa frequência e alta frequência Significado Representa a variabilidade total da frequência cardı́aca no perı́odo estudado. Representa a modulação vagal. Seu pico máximo varia com as incursões respiratórias. Encontra-se geralmente em 0,25 Hertz e corresponde a 15 incursões respiratórias por minuto, aproximadamente. Representa a modulação conjunta do simpático e parassimpático, com predominância do simpático. É modulada pelo barorreflexo e pelas oscilações cı́clicas da pressão arterial, com pico máximo em torno de 0,1 Hertz. Representa um ı́ndice do balanço simpato-vagal. et al., 1996). Porém, alguns autores afirmam que nesta faixa de frequência também há contribuição do componente parassimpático (Skyschally et al., 1996). A AF corresponde à modulação respiratória, pois coincide com a arritmia sinusal respiratória. Portanto, ela é indicativa da atuação vagal sobre o nó sino atrial (Akselrod et al., 1981; Pagani et al., 1986; Lombardi et al., 1987; Malliani et al., 1991; Novak et al., 1996). Os componentes de BF e AF podem ainda ser expressos em unidades normalizadas (un) conforme as Equações 1 e 2, onde: AF un e BF un são, respectivamente, os componentes de alta e baixa frequência em unidades normalizadas; AF é o componente de alta frequência em valor absoluto, BF é o componente de baixa frequência em valores absolutos, e MBF é o componente de muito baixa frequência (Novak et al., 1996). AF un = AF (ms2 ) × 100 P otencia T otal(ms2 ) − M BF (1) BF un = BF (ms2 ) × 100 P otencia T otal(ms2 ) − M BF (2) 170 Cunha et al. 3. Metodologia 3.1 Procedimentos para a avaliação da VFC em crianças com PC A literatura relata que a VFC é dependente da idade, devido às alterações relacionadas à mediação parassimpática e simpática da FC que ocorrem ao longo do desenvolvimento. Isto resulta em uma grande variação do seu comportamento em cada década de vida (Finley & Nugent, 1995). Assim, em pesquisas é importante que as crianças não apresentem discrepância em relação à idade e também em relação ao gênero. Estas variáveis devem ser cuidadosamente observadas para manter a homogeneidade dos grupos. Nos dias anteriores aos testes, as crianças e seus responsáveis devem receber orientações relevantes, tais como: evitar o consumo de bebidas estimulantes (café, chá preto e refrigerante), não realizar atividade fı́sica, fazer refeições leves e ter repouso noturno. Todas as crianças devem ser familiarizadas com os procedimentos experimentais a fim de minimizar a influência de fatores como a ansiedade nas variáveis estudadas. Uma forma de avaliar o ajuste autonômico cardiovascular é promover a captação da FC e dos iR-R batimento a batimento nas posturas supina e ortostática. Para isto, pode-se utilizar a manobra postural ativa, uma variante da manobra postural passiva (tilt table test). Esta manobra é efetiva para avaliar a resposta cardı́aca simpática, juntamente com a liberação vagal. Além da estimulação reflexa provocada sobre os barorreceptores, envolve a contração dos músculos dos membros inferiores (Smitt et al., 1999). Para a coleta de dados, as crianças devem ser orientadas a permanecer em silêncio, evitar movimentos bruscos, não dormir e manter a respiração espontânea. A última é registrada pelo avaliador minuto a minuto. Ressalta-se ainda a importância das coletas da FC serem realizadas no mesmo perı́odo do dia, para reduzir possı́veis influências das variações circadianas. A coleta dos dados deve ser iniciada com a criança em decúbito dorsal sobre uma maca (Figura 3(a)). Para a postura ortostática, a coleta deve ser realizada com a criança em pé e apoiada na maca. Para crianças que não conseguem ficar em pé somente com apoio na maca, um apoio adicional em tronco superior ou inferior pode ser fornecido (Figura 3(b)). O tempo de coleta da FC e dos iR-R deve ser de 15 minutos na postura supina e 15 minutos na postura ortostática. 4. Resultados e Discussão Os resultados deste estudo foram organizados com base na discussão das relações entre a PC, o comprometimento motor e a VFC. Além disto, buscouse uma reflexão sobre como a VFC implica nas ações do fisioterapeuta. 171 Variabilidade da frequência cardíaca em crianças com PC (a) (b) Figura 3. Captação em supino (a) e em ortostatismo (b), de uma criança com PC nı́vel IV do GMFCS. 4.1 Paralisia cerebral e variabilidade da frequência cardíaca Estudos mostram que crianças com PC apresentam maior FC em repouso e durante a prática de atividades fı́sicas quando comparadas com crianças com desenvolvimento motor tı́pico (Duffy et al., 1996; Bartonek et al., 2002). A análise da VFC no domı́nio da frequência demonstra que as crianças com desenvolvimento tı́pico possuem valores de AF un superiores e de BF un inferiores aos das crianças com PC, em supino (Park et al., 2002; Negri et al., 2010; Zamunér et al., 2011). Estes achados podem estar relacionados a alterações de tônus e movimentos involuntários, que resultam em maior gasto energético. Na postura ortostática, crianças com desenvolvimento tı́pico apresentam redução do valor de AF un, e aumento do valor de BF un (Park et al., 2002; Yang et al., 2002; Zamunér et al., 2011). Isto indica diminuição da VFC quando se muda de supino para em pé. Entende-se que estas crianças apresentam os ajustes esperados na modulação autonômica da FC durante a mudança postural. Porém, esta resposta não foi observada na PC (Park et al., 2002; Yang et al., 2002; Zamunér et al., 2011). Autores afirmam que na PC, além da perda das influências hemisféricas sobre a modulação autonômica decorrente das lesões encefálicas (Korpelainen et al., 172 Cunha et al. 1993; Linden & Berlit, 1995; Yang et al., 2002), há diminuição do reservatório adaptativo da modulação autonômica cardı́aca. Algumas funções autonômicas cardı́acas, como a retirada vagal e a ativação simpática, talvez não sejam suficientes para superar o estresse ortostático (Park et al., 2002; Yang et al., 2002; Zamunér et al., 2011). 4.2 Variabilidade da frequência cardíaca e o comprometimento motor Outro aspecto importante acerca do assunto é que maiores valores de FC são atribuı́dos a um maior comprometimento motor, como o das crianças com PC classificadas nos nı́veis IV e V do GMFCS. Este fato sugere que crianças com maiores alterações neuromotoras e que não deambulam apresentam redução do condicionamento cardiovascular quando comparadas com crianças que deambulam, classificadas nos nı́veis I ao III do GMFCS (Dirienzo et al., 2007). Zamunér et al. (2011) observaram correlação entre a classificação do GMFCS e as variáveis AF un, BF un e razão BF/AF (Figura 4(a-c)). O estudo demonstrou que quanto maior o comprometimento motor da criança, menor a VFC. Assim, crianças com limitações funcionais mais severas apresentam menor mobilidade, maior gasto energético e menor resistência cardiopulmonar. Acredita-se que estes fatores causem menor contribuição da modulação autonômica parassimpática nos ajustes autonômicos da FC. Figura 4. Valores de correlação entre o GMFCS e os ı́ndices espectrais BF un (a), AF un (b) e razão BF/AF (c). Adaptado de Zamunér et al. (2011). Variabilidade da frequência cardíaca em crianças com PC 173 4.3 Implicações para a fisioterapia A fisioterapia em neuropediatria busca fundamentação cientı́fica para nortear a prática clı́nica e subsidiar a escolha das intervenções, bem como realizar uma abordagem mais abrangente e global do paciente. A relação do controle autonômico cardı́aco com o comprometimento motor remete à importância do tratamento fisioterapêutico ser também direcionado à melhora do sistema cardiovascular. Desta forma, deve-se buscar minimizar o predomı́nio da modulação autonômica simpática e consequentemente sua sobrecarga ao sistema cardiovascular. 5. Considerações Finais As crianças com PC apresentam maiores valores de FC, dos ı́ndices BF un e BF/AF e menores valores de AF un em repouso, quando comparadas com crianças com desenvolvimento motor tı́pico na mesma faixa etária. É possı́vel concluir que as crianças com PC apresentam alterações nos ajustes autonômicos posturais e que, quanto maior o comprometimento motor, menor a capacidade do sistema neurocárdico em realizar ajustes autonômicos. Entende-se que é bastante importante incentivar o uso da análise da VFC na clı́nica fisioterapêutica em neurologia infantil. Esta técnica pode ser utilizada para avaliar e reavaliar a modulação autonômica da FC antes e após as intervenções. Também se sugere a realização de mais estudos com diferentes perfis funcionais de pacientes. 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Eloisa Tudella é Educadora Fı́sica (PUCCamp, 1976), Fisioterapeuta (PUCCamp, 1977), Mestre em Educação Fı́sica (UGF, 1989), Doutor em Psicologia – Psicologia Experimental (USP, 1996) e tem pós-doutorado (Universidade de Samamanca, Espanha, 2009). Atualmente é professora associada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Departamento de Fisioterapia. Marlene Aparecida Moreno é Fisioterapeuta (UNIMEP, 1993), Mestre em Biologia e Patologia (UNICAMP, 2000) e Doutor em Fisioterapia (UFSCar, 2007) e tem pós-doutorado em Biodinâmica do Movimento e Esporte (UNICAMP, 2011). Atualmente é docente do curso de graduação e pós-graduação em Fisioterapia da Universidade Metodista de Piracicaba UNIMEP.