UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE NILTON CARLOS DE ALMEIDA COUTINHO DESASTRES, CIDADANIA E O PAPEL DO ESTADO: AS RELAÇÕES ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES “NATURAIS” HIDROLÓGICOS São Paulo 2014 NILTON CARLOS DE ALMEIDA COUTINHO DESASTRES, CIDADANIA E O PAPEL DO ESTADO: AS RELAÇÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES “NATURAIS” HIDROLÓGICOS Tese apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito Político e Econômico Orientadora: Profa. Dra. Solange Teles da Silva São Paulo 2014 C871d Coutinho, Nilton Carlos de Almeida Desastres, cidadania e o papel do estado : as relações entre os direitos fundamentais e a proteção contra desastres “naturais” hidrológicos. / Nilton Carlos de Almeida Coutinho. – 2014. 288 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014. Orientador: Solange Teles da Silva Bibliografia: f. 250-278 1. Desastres 2. Direitos fundamentais 3. Cidadania I. Título CDDir 341.27 NILTON CARLOS DE ALMEIDA COUTINHO DESASTRES, CIDADANIA E O PAPEL DO ESTADO: AS RELAÇÕES ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES “NATURAIS” HIDROLÓGICOS Tese apresentada ao Curso de PósGraduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito Político e Econômico Aprovada em: 07/04/2014 BANCA EXAMINADORA Dra. SOLANGE TELES DA SILVA - orientadora Universidade Presbiteriana Mackenzie Dr. ALESSANDRO SERAFIM OCTAVIANI LUIS Universidade Presbiteriana Mackenzie Dra. INES VIRGINIA DO PRADO SOARES Universidade de São Paulo Dr. FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO Universidade Presbiteriana Mackenzie Dra. MARCIA DIEGUES LEUZINGER Centro Universitário de Brasília A meus pais, Mário e Anita, pela importância que têm em minha vida. A minha avó, Edith Gomes Coutinho, que com seus quase cem anos de vida, nunca se cansa de me ensinar coisas novas. AGRADECIMENTOS Foram quatro anos de estudos, pesquisa e dedicação, de tal forma que muitos agradecimentos devem ser feitos. Assim, agradeço: A Deus, por ter me dado forças para continuar em frente, rumo ao meu objetivo. Aos meus pais, Mário e Anita, que souberam compreender e me auxiliar nos momentos em que a solidão e a reclusão eram necessárias para a realização do trabalho. A todos os professores e funcionários da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), com especial menção a minha orientadora, Profa. Dra. Solange Teles da Silva, a qual procurou contribuir com seus conhecimentos para que a presente tese ganhasse corpo, forma e vigor, de modo a atingir o “estado da arte”. Foram várias reuniões realizadas com o objetivo de aprofundar o estudo realizado e ampliar as possibilidades de temas a serem discutidos nessa tese. À equipe da Secretaria Nacional de Defesa Civil, nas pessoas do dr. Rafael Schadeck e do sr. Wesley Felinto, bem como à equipe do CENAD e ao Cel. Alexandre Lucas Alves (Secretário Municipal de Defesa Civil de Belo Horizonte) pelos dados fornecidos a este pesquisador, os quais permitiram a realização da análise necessária para a elaboração da presente tese. Aos amigos da Procuradoria do Estado de São Paulo em Brasília, pelo incentivo, amizade e coleguismo que permitiram que os afastamentos para as aulas e reuniões ocorressem sem causar prejuízos ao trabalho. Neste aspecto, agradeço, também, ao Gabinete da PGE/SP, na pessoa do Dr. Elival da Silva Ramos, pela concessão da autorização para cursar o Programa de Doutoramento em Direito da UPM, bem como à equipe do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado (o que faço na pessoa da Dra. Mariangela Sarrubbo Fragatta) pelo auxílio técnico e material a este Procurador, de modo que a presente tese pudesse ser elaborada. Ao Instituto Mackpesquisa pela oportunidade de participar junto ao Projeto de Pesquisa “Direito e desenvolvimento sustentável: Políticas públicas no Brasil (19902010)”, bem como aos amigos do Grupo de Pesquisa “Direito e Desenvolvimento Sustentável”, da UPM, e “Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável”, do UNICEUB, que contribuíram com sugestões e livros para leitura, com destaque para as amigas Fernanda Salgueiro Borges e Márcia Franco. Por fim, aos amigos Gustavo Viegas Rodrigues, Flavia Brunner, Silvia Adriana Rodrigues e Renata Sobral que me auxiliaram na revisão do trabalho e literatura estrangeira. A todos, meus sinceros agradecimentos. RESUMO Os desastres hidrológicos, em razão dos prejuízos humanos e materiais, podem ser considerados um dos maiores problemas enfrentados pelas sociedades na atualidade, notadamente em razão de sua frequência e intensidade. Considerando os bens jurídicos lesados em razão da ocorrência desta modalidade de desastre, faz-se necessária uma reflexão sobre as possibilidades e limites dos instrumentos jurídicos e extrajurídicos capazes de propiciar a proteção da comunidade em face desses desastres. Pode-se afirmar que emerge e consagra-se um direito fundamental de proteção contra desastres, o qual exige uma atuação positiva por parte do Estado e de toda a sociedade na busca pela efetiva proteção, entre outros, do direito à vida digna. Nesta perspectiva, questões relacionadas ao crescimento das áreas de risco, desenvolvimento e resiliência das cidades, bem como referentes ao papel dos entes federados (e, em particular, dos Municípios) na proteção contra desastres, por meio da implementação e do incentivo a políticas públicas preventivas, foram discutidos com o objetivo de analisar as possibilidades de se assegurar a efetiva proteção deste direito fundamental. Sustentou-se na presente tese não apenas a emergência, mas, igualmente, a consagração do “Direito de proteção contra desastres”, direito fundamental do ser humano, que deve ser tutelado segundo os princípios e fundamentos que orientam a proteção dos direitos fundamentais. Para tanto, promoveu-se o estudo dos fatores que contribuem para a ocorrência de desastres e as classificações a eles inerentes, para, na sequência, analisar-se os desastres hidrológicos dentro da ótica dos direitos fundamentais, perquirindo-se acerca de suas características e direitos correlacionados, bem como das políticas públicas relacionadas à proteção contra tais desastres. Assim, o estudo concluiu pela constituição de um direito fundamental de proteção contra desastres, cuja efetivação reclama uma atuação proativa do Poder Público enquanto ente público, fiscalizando e fomentando políticas públicas protecionistas e planejando ações que mitiguem os riscos de desastres, especialmente nas áreas de risco. Do mesmo modo, o estudo concluiu pela necessidade de um maior envolvimento e engajamento popular, no sentido da promoção e efetivação de ações cidadãs e participativas, voltadas para a proteção de tal direito, em parceria com o Poder Público e demais atores envolvidos. ABSTRACT Hydrological disasters, because human and material losses, can be considered one of the greatest problems facing societies today, especially because of their frequency and intensity. Whereas the legal interests harmed because of the occurrence of this type of disaster, it is necessary to reflect on the possibilities and limits of legal and extra-legal instruments capable of providing protection of the community in the face of such disasters. It can be stated that emerges and establishes itself a fundamental right to protection against disasters, which requires positive action by the state and the whole society in the search for effective protection, among others, the right to dignity. In this perspective, growth-related risk areas, development of cities and resilience issues, as well as on the role of the federal (and, in particular, municipalities) in disaster protection entities, by implementing and encouraging preventive public policies were discussed with the aim of analyzing the possibilities to ensure the effective protection of this fundamental right. It has been argued in this thesis not only the emergence but also the dedication of the "Law of protection against disasters", fundamental human right that must be protected according to the principles and fundamentals that govern the protection of fundamental rights. For this, we promoted the study of factors that contribute to the occurrence of disasters and ratings attached to them, for, after analyzing up hydrological disasters from the viewpoint of fundamental rights, if inquiring about - their characteristics and rights correlated, as well as public policies related to protection against such disasters. Thus, the study concluded that establishment of a fundamental right to protection from disasters, whose accomplishment calls for a proactive role of the government as a public entity, supervising and promoting protectionist policies and planning actions to mitigate disaster risks, especially in the areas of risk. Similarly, the study identified a need for greater involvement and public engagement towards the promotion and enforcement of citizens and participatory activities, dedicated to the protection of this right, in partnership with government and other stakeholders. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadro 1 - Parâmetros de identificação da ocorrência de desastres ........................................... 40 Quadro 2 - Número de desastres ocorridos no Brasil entre 1991 e 2010 .................................... 60 Gráfico 1 - Evolução dos desastres ocorridos no Brasil entre 1991 e 2010 ................................ 61 Quadro 3 - Distribuição de afetados e mortos por tipo de desastre ............................................. 61 Quadro 4 - Distribuição dos danos humanos dentro do território brasileiro ............................... 73 Quadro 5 - Quantidade de mortos e afetados em decorrência de inundações e movimentos de massa entre 1991 e 2010 no Brasil ............................................................................................ 104 Quadro 6 - Recursos destinados diretamente a desastres .......................................................... 166 Gráfico 2 - Evolução do orçamento liquidado da Defesa Civil................................................. 167 Quadro 7 - Distribuição das vítimas de inundações bruscas e alagamento dentro do território brasileiro.................................................................................................................................... 279 Quadro 8 - Distribuição das vítimas de inundações graduais dentro do território brasileiro .... 279 Quadro 9 - Distribuição das vítimas de movimentos de massa dentro do território brasileiro . 280 Quadro 10 - Quadro resumo ...................................................................................................... 280 LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas CENAD Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres CEPED COBRADE Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres Codificação Brasileira de Desastres CODAR Codificação de Desastres, Ameaças e Riscos CONPDEC Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil CPDC CRED Cartão de Pagamento de Defesa Civil Centro de Investigação sobre a Epidemiologia dos Desastres EM-DAT FEMA FIDE Emergency Disaster Data Base Federal Emergency Management Agency - Agência Federal de Gestão de Emergências ficha de informação de desastre GEACAP Grupo Especial para Assuntos de Calamidades Públicas GEAR GEE Grupo Executivo de Áreas de Risco gases de efeito estufa IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change NOPRED Formulário de Notificação Preliminar de Desastres ONU PIB PMCMV Organização das Nações Unidas Produto Interno Bruto Programa Minha Casa, Minha Vida PNPDEC Política Nacional de Proteção e Defesa Civil PRRC Programa de reconstrução SINDEC SINPDEC Sistema Nacional de Defesa Civil Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UNISDR United Nations Office for Disaster Risk Reduction - Escritório da ONU para a Redução de Riscos de Desastres Zoneamento Ecológico Econômico ZEE SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 13 1. DA INTERAÇÃO DO SER HUMANO COM O MEIO AMBIENTE E O RISCO DE DESASTRES ........ 24 1.1. SOCIEDADE DE RISCO E VULNERABILIDADES DAS CIDADES DIANTE DOS EFEITOS DA MUDANÇA CLIMÁTICA ............................................................................................................ 26 1.2 Desastres: conceituação, contextualização e classificação............................................... 35 1.3 “Graus” de desastres e suas consequências ..................................................................... 46 1.3.1 Situação de emergência ............................................................................................. 50 1.3.2 Estado de calamidade pública .................................................................................... 53 1.3.3 Estado de defesa e estado de sítio ............................................................................. 55 1.4 Desastres “naturais” hidrológicos ..................................................................................... 58 1.5 O cidadão enquanto causador, colaborador e vítima dos desastres hidrológicos ........... 68 2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES ....................... 76 2.1 Direitos fundamentais: origem, evolução e características .............................................. 77 2.2 CIDADANIA, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS.................. 94 2.3 Da emergência do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental ............................................................................................................................................... 100 2.4 Da relação do direito de proteção contra desastres e outros direitos fundamentais .... 107 2.4.1 Direito à vida ............................................................................................................ 108 2.4.2 Direito à moradia ..................................................................................................... 108 2.4.3 Direito à saúde ......................................................................................................... 112 2.4.4. Direito à qualidade de vida ..................................................................................... 114 2.4.5 Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado .......................................... 116 2.4.6 Direito à assistência aos desamparados .................................................................. 118 2.5 Deveres do Estado na proteção dos direitos fundamentais ........................................... 119 3. POLÍTICAS PÚBLICAS, DESASTRES E DEFESA CIVIL: UM DESAFIO CONTÍNUO PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.............................................................................. 125 3.1 Repartição de competências e papel do Poder Público em sede de desastres .............. 127 3.2 Políticas públicas para desenvolvimento sustentável e proteção contra desastres....... 134 3.3 Organização do sistema nacional de Defesa Civil e medidas protetivas ........................ 141 3.3.1 Histórico e evolução do sistema nacional de Defesa Civil ....................................... 142 3.3.2 Fundo Especial para Calamidades Públicas .............................................................. 145 3.3.3 Política Nacional de Proteção e Defesa Civil ............................................................ 149 3.4 Momentos de ação em sede de desastres: uma relação temporal entre passado, presente e futuro .................................................................................................................. 152 3.4.1 Ações preventivas: direitos fundamentais e prevenção a desastres ....................... 152 3.4.2 A eclosão do desastre: medidas de urgência e gestão da crise ............................... 155 3.4.3 Depois do desastre: a necessidade de respostas ..................................................... 158 3.4.4 Momentos de ação e manutenção da dignidade da pessoa humana ..................... 162 3.5 Políticas públicas e aplicação de recursos em questões relacionadas a desastres......... 163 3.5.1 Gastos com prevenção e recuperação ..................................................................... 165 3.5.2 Licitação, aplicação de recursos e desastres ............................................................ 172 3.6 Políticas públicas, reserva do possível e mínimo existencial .......................................... 176 4. ALTERNATIVAS EM BUSCA DA EFETIVIDADE DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES ................................................................................................................................................... 183 4.1 Atores: revisitando seus papeis e responsabilidades na proteção contra desastres “naturais” hidrológicos.......................................................................................................... 183 4.1.1 O Poder Público e sua atuação na proteção dos direitos fundamentais ................. 184 4.1.2 O ser humano e a proteção contra desastres .......................................................... 188 4.1.3 Os demais atores: protagonistas ou coadjuvantes? ................................................ 190 4.1.4 Responsabilidades .................................................................................................... 192 4.1.5. União de esforços e divisão/Compartilhamento de responsabilidades ................. 195 4.2.1 Politicas públicas de ordenamento territorial e uso e ocupação do solo ................ 204 4.2.2 Poder de polícia e efetividade na proteção contra desastres.................................. 209 4.3 Estudo de caso: instrumentos utilizados pela Prefeitura de Belo Horizonte na proteção contra desastres .................................................................................................................... 211 4.4 Concretização do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental 220 4.5 A importância do planejamento e da prevenção para a proteção dos direitos fundamentais ........................................................................................................................ 226 4.6 Participação popular e efetividade dos direitos fundamentais ...................................... 231 CONCLUSÕES ............................................................................................................................. 243 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................. 250 ANEXOS Anexo I – Quadros .................................................................................................................... 279 Anexo II - CODIFICAÇÃO DE DESASTRES, AMEAÇAS E RISCOS – CODAR.............. 281 Anexo III - CLASSIFICAÇÃO E CODIFICAÇÃO BRASILEIRA DE DESASTRES (COBRADE) ............................................................................................................................ 287 13 INTRODUÇÃO O ser humano, ao longo de sua existência, interage com outros indivíduos e, para manutenção da vida e do desenvolvimento das sociedades, apropria-se e utiliza-se dos recursos naturais. Contudo, o modo como ele se apropria e utiliza os recursos naturais, ou, em outras palavras, o modo como ele intervém no meio ambiente acaba, não raras vezes, contribuindo para a eclosão de uma complexa gama de problemas ambientais, dentre os quais se destacam os efeitos ocasionados pela mudança climática1. A “sociedade de risco”2, oriunda dessa necessária intervenção humana junto ao meio ambiente, com o objetivo de propiciar o desenvolvimento da sociedade, tem contribuído para a ocorrência de desastres e catástrofes de todos os tipos. Associados à mudança climática, o aumento de eventos hidrológicos – como aumento do nível dos mares, as inundações e enchentes – têm colocado a humanidade em face da necessidade de não apenas mitigar os efeitos provocados pelo aumento das emissões dos gases de efeito estufa (GEE), mas, também, de adaptar-se. Assim, o aumento dos desastres decorrentes de eventos climáticos extremos e, em particular eventos relacionados com as águas – inundações, enchentes e alagamentos – conduz à necessidade de adoção e implementação de instrumentos para auxiliar no enfrentamento deste problema, de 1 A presente tese analisa as respostas jurídicas do direito brasileiro em relação ao aumento dos eventos climáticos extremos sob o prisma do direito de proteção contra os desastres, não sendo objeto dessa tese analisar as respostas jurídicas no âmbito do direito internacional. No que diz respeito ao regime internacional da mudança do clima, cf. - por exemplo - VIOLA, Eduardo Jose. The great emitters of carbon and the perspectives for an agreement on mitigation of global warming. In: DIAS, Pedro Leite da Silva; RIBEIRO, Wagner Costa; SANT’ANNA NETO, João Lima; ZULLO JÚNIOR, Jurandir (Org.). Public policy: mitigation and adaptation to climate change in South America. Sao Paulo: Editora da Universidade de Sao Paulo, Instituto de Estudos Avançados, 2010. VIOLA, Eduardo José; ABRANCHES, Sergio . Mudanças climáticas e governança na América Latina. In: CARDOSO, Fernando Henrique; FOXLEY, Alejandro (Org.). America Latina desafios da democracia e do desenvolvimento: governabilidade, globalizaçao e políticas econômicas para além da crise. São Paulo: Elsevier, 2009, v. 1. SILVA, Solante Teles da; CUREAU, Sandra; LEUZINGER, Márcia Diegues. Mudança do clima: desafios jurídicos, econômicos e scioambientais. São Paulo: Fiuza, 2010. 2 Adota-se na presente tese o conceito de sociedade de risco apresentado por Ulrich Beck, segundo o qual esta constitui-se como uma nova categoria social, na qual, em decorrência do capitalismo e do desenvolvimento tecnológico, os riscos passam a fazer parte do convívio social, passando a ser tolerados. Assim, o advento dessa nova modernidade opera mudanças na sociedade, na medida em que a produção social de riquezas vem acompanhada de uma produção social de riscos, aliada à instabilidade dos mercados frente às catástrofes ambientais e ao terrorismo. Segundo tal teoria, as ameaças e riscos decorrentes do desenvolvimento acabam gerando uma intensificação na comercialização e produção de tais riscos, tais como o aumento dos gastos públicos com a proteção do meio ambiente, etc. Para maiores detalhes, cf. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010. 14 modo a reduzir as perdas humanas e materiais, decorrentes de tais desastres em uma resposta de adaptação à mudança do clima. Na realidade, a multiplicação e intensificação da ocorrência desses eventos hidrológicos, verdadeiras tragédias humanas, atinge tanto países desenvolvidos como países emergentes, como é o caso do Brasil.3 Todavia, tais desastres não afetam toda a população mundial da mesma maneira, e, nem tampouco, no seio de um mesmo Estado, a população é afetada da mesma forma. No Brasil, observa-se que tais desastres têm afetado mais diretamente os moradores das áreas urbanas e, notadamente, populações mais vulneráveis que vivem em áreas de risco. A alta densidade demográfica e a ocupação desordenada em áreas de risco, acoplada a fatores climáticos, dentre outros, fazem com que a região sudeste figure como uma das regiões brasileiras na qual se observam os maiores índices de ocorrência de desastres hidrológicos.4 Considerando essa realidade e, o fato que o desenvolvimento da sociedade e as mudanças dela decorrentes trazem consequências na órbita do direito, é fundamental indagar-se sobre a necessária adaptação da sociedade aos efeitos da mudança do clima, o que, por conseguinte, exige respostas jurídicas adequadas. E, tanto essas respostas, como os mecanismos aptos ao enfrentamento de desastres, devem contar com a participação popular, visto que, sem essa participação, torna-se extremamente difícil a implementação de estratégias de mitigação dos efeitos dos desastres ou, ainda, de ações preventivas em matéria de gestão dos recursos hídricos, por exemplo. Assim, o incentivo à participação popular no processo de tomada de decisão possibilita o desenvolvimento de uma cultura de gestão democrática dos riscos, contribuindo para uma maior resiliência das cidades. Aqui, a atuação do Poder Público e a preparação contra desastres - com destaque para o ente público municipal, que é quem, em última 3 Embora o presente trabalho tenha realizado um estudo dessa temática sob o prisma do direito brasileiro, é possível observar a crescente preocupação com a questão dos desastres, notadamente no âmbito do direito internacional e do direito comparado. Cf., por exemplo: BERGH, R. Faure M. Compulsory insurance of loss to property caused by natural disasters: competition or solidarity? World Competition, v. 29, n. 1, 2006. VARLEY, Ann. Disasters and environment. England: John Willey & Sons LTd, 1994. MANYENA, S. The concept of resilience revisited. Disasters, v. 30, n. 4, dez. 2006. LAVIEILLE, JeanMarc; BÉTAILLE, Julien; PRIEUR, Michel. Les catastrophes écologiques et le droit. Belgique: Bruylant, 2012. 4 BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres. Comunicação de Riscos e de Desastres. Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010: volume Brasil. Florianópolis: CEPED, 2012. p. 20. 15 análise, está mais próximo da população - passam a ser vistas como pilares essenciais em sede de prevenção contra desastres, objetivando-se que os cidadãos encontrem-se melhor preparados para colaborar na prevenção e enfrentamento dos desastres “naturais”5 hidrológicos. Nesta perspectiva, é necessário que o Direito aponte respostas às peculiaridades inerentes aos desastres, de modo a eleger instrumentos que propiciem respostas rápidas e eficazes, protegendo o indivíduo – cidadão – e a comunidade – população – contra os riscos dos desastres hidrológicos. É certo que essa temática poderia ser analisada sob o prisma do direito internacional, destacando-se as questões relacionadas à assistência humanitária aos desastres6, os textos internacionais relacionados direta ou indiretamente à redução de desastres7 ou as perspectivas e avanços das negociações em matéria do regime internacional do clima8. Entretanto, ainda que seja possível realizar esse estudo 5 Na presente tese optou-se em utilizar a expressão “natural” entre aspas em razão de tais desastres (não obstante a classificação adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro) decorram de aspectos relacionados ao meio ambiente, mas, também, em razão da ação do ser humano em relação a este bem jurídico também contribuir para a eclosão desta espécie de desatre. 6 A proteção contra desastres também é discutida sob a ótica do Direito humanitário, no qual se encontra presente o auxílio de órgãos internacionais e a cooperação internacional em relação a determinado País. Neste aspecto, registre-se que, segundo o Princípio 25, dos Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos, cabe às autoridades nacionais o dever e a reponsabilidade primária de prestar a assistência humanitária aos deslocados internos. Já as organizações humanitárias internacionais e os outros atores têm o direito de oferecer os seus serviços em apoio aos deslocados internos. Tal proteção, contudo, refere-se especialmente em relação a ações de recuperação, ou seja: predominam ações a serem realizadas após a ocorrência de determinado desastre. 7 Dentre eles, destaque-se o Marco de Ação de Hyogo, o qual constitui-se como importante instrumento para a implementação da redução do risco de desastres, adotado por países membros nas Nações Unidas. Seu objetivo é aumentar a resiliência das nações e comunidades diante de desastres, concentrando esforços em medidas preventivas. Além dele, cite-se as resoluções 54/219 (de 22 de dezembro de 1999), 56/195 (de 21 de dezembro de 2001) 60/195 (de 22 de dezembro de 2005), 64/200 (de 21 de dezembro de 2009), 65/157 (de 20 de dezembro de 2010), 66/199 (de 22 de dezembro de 2011), 67/209 (de 21 de dezembro de 2012), bem como a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Agenda 21 (e o Programa para sua Implementação), a Declaração de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável, o Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (também chamado de Plano de Implementação de Joanesburgo), o documento final da reunião plenária de alto nível da Assembléia Geral sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio, além do documento final da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável Desenvolvimento (denominado "O futuro que queremos”), dentre outros. 8 VIOLA, Eduardo Jose. The great emitters of carbon and the perspectives for an agreement on mitigation of global warming. In: DIAS, Pedro Leite da Silva; RIBEIRO, Wagner Costa; SANT’ANNA NETO, João Lima; ZULLO JÚNIOR, Jurandir (Org.). Public policy: mitigation and adaptation to climate change in South America. Sao Paulo: Editora da Universidade de Sao Paulo, Instituto de Estudos Avançados, 2010. VIOLA, Eduardo José; ABRANCHES, Sergio. Mudanças climáticas e governança na América Latina. In: CARDOSO, Fernando Henrique; FOXLEY, Alejandro (Org.). America Latina desafios da democracia e do desenvolvimento: governabilidade, globalizaçao e políticas econômicas para além da crise. São Paulo: Elsevier, 2009, v. 1. SILVA, Solante Teles da; CUREAU, Sandra; LEUZINGER, 16 sob esse ângulo, ou, ainda, observar o crescente fenômeno da internacionalização do direito9, é fundamental estudar como o direito brasileiro aborda essa problemática e, assim, analisar os instrumentos de luta contra os eventos hidrológicos existentes e em qual esfera do Estado federado eles se encontram e como se articulam. Isso porque são poucos os estudos que aprofundam essa discussão no direito brasileiro10. Do mesmo modo, é preciso refletir acerca da natureza jurídica dos direitos tutelados na proteção contra desastres, podendo-se indagar acerca da emergência e consagração de um direito fundamental de proteção contra desastres, com características e contornos próprios, dentro de um Estado Democrático e de Direito. O Estado federal brasileiro tem, diante do aumento da frequência e da intensidade dos desastres hidrológicos, o desafio da antecipação e prevenção, mas, igualmente, o desafio de uma resposta durante a ocorrência do desastre e a posteriori. Há, portanto, a necessidade de uma adequação dos instrumentos jurídicos a serem utilizados na proteção contra desastres, de tal forma que estes atuem a posteriori da ocorrência de tais eventos, quantificando os danos e prejuízos sofridos pelas vítimas atingidas, identificando as causas que deram ensejo ao desastre e atribuindo as respectivas sanções aos responsáveis e, eventualmente, constatando a existência de excludentes de responsabilidades; mas, também, tem-se que os instrumentos jurídicos devem estar aptos a intervir a priori, de forma antecipada, em particular na modalidade da prevenção e planejamento, como meio eficaz para evitar a ocorrência de desastres e propiciar a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, fundamento central da teoria dos direitos fundamentais. A proteção contra desastres possui relação direta com a tutela dos direitos fundamentais, na medida em que, a ocorrência de um desastre “natural” de consequências calamitosas, não retira das pessoas atingidas a qualidade de “ser humano”, de tal forma que sua dignidade e seus direitos fundamentais devem ser Márcia Diegues. Mudança do clima: desafios jurídicos, econômicos e scioambientais. São Paulo: Fiuza, 2010. 9 Em relação a internacionalização do direito cf. VARELLA, Marcelo Dias. Internacionalização do direito: Direito internacional, globalização e complexidade. Brasília: CNPQ, 2013. Disponível em: <http://www.marcelodvarella.org/marcelodvarella.org/Teoria_do_Direito_Internacional_files/Internacion alizacao_do_direito_PDF_final%20%281%29_2.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2013. 10 PEITER, Claudia Maria. Desastres naturais: enchentes e inundações e o papel do estado e da sociedade na gestão de segurança pública. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Vale do Itajaí, 2012. CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013 17 protegidos e tutelados em todos os momentos, incluindo em situações de desastres. E, para a proteção de tais direitos é essencial avaliar-se o papel do Estado nesta seara, bem como a natureza jurídica dos bens afetados. O presente estudo concentra-se em questões relacionadas aos direitos fundamentais, políticas públicas a eles concernentes e alternativas em busca da efetividade de tal direito, no âmbito do Direito brasileiro. Tem, portanto, a preocupação em relação às medidas recuperativas, mas, também, medidas preventivas relacionadas aos desastres hidrológicos. Assim, a presente tese sustenta a existência de um “direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental do ser humano”, que deve ser tutelado segundo os princípios e fundamentos que orientam a proteção dos direitos fundamentais. Tem-se, assim, que o direito de proteção contra desastres, na atualidade, demanda uma proteção jurídica mais efetiva e eficaz por parte do Poder Público. Trata-se de uma exigência social decorrente do aumento crescente dos desastres hidrológicos e da necessidade de proteção dos grupos sociais mais suscetíveis à ocorrência desse tipo de evento. Assim, no Brasil, o direito de proteção contra desastres hidrológicos surge como uma nova espécie de direito fundamental e, para o seu adequado estudo enquanto direito fundamental, utilizou-se como matriz teórica a investigação crítica de FLORES o qual, na mesma linha que BOBBIO, defende a contínua evolução dos direitos fundamentais em decorrência das necessidades da sociedade. Assim, segundo o referido autor, tais direitos são “resultados sempre provisórios das lutas sociais pela dignidade”.11 Deste modo, o objetivo geral da presente tese é analisar a emergência e consagração do direito de proteção contra desastres, indagando-se se se trata de um direito fundamental e que, portanto, exige que Estado e sociedade adotem e implementem instrumentos que possibilitem o exercício dos direitos cidadãos em face de desastres “naturais”. Neste sentido, o direito de proteção contra desastres constitui-se como um direito fundamental do ser humano, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana e diretamente relacionado a outros direitos fundamentais, tais como o direito à vida, qualidade de vida, saúde, moradia, entre outros. Ademais, para a população que vive em áreas sujeitas à ocorrência de desastres hidrológicos (denominadas áreas de risco) a atuação estatal com vistas a sua proteção é um dever do 11 FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Trad. Carlos Roberto Diogo Garcia et al. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 37 18 qual o Poder Público não pode furtar-se. Assim, partindo do estudo em relação aos direitos fundamentais, sua natureza jurídica e características, a presente tese analisa o tratamento jurídico dado aos desastres naturais hidrológicos, que são os que causam maiores prejuízos humanos e materiais no território brasileiro,12 bem como o papel do Estado e da sociedade no que se refere ao exercício dos direitos de cidadania em face aos desastres “naturais” hidrológicos. Entre os objetivos específicos estão: a análise do direito de proteção contra desastres naturais hidrológicos sob o prisma da teoria dos direitos fundamentais, considerando as características inerentes a estes direitos; o estudo das políticas públicas adotadas para propiciar a defesa desse direito; bem como a análise das alternativas e propostas de ações e medidas jurídicas de natureza protetiva a serem adotadas em sede de proteção contra desastres. Nesse contexto, são apresentados instrumentos jurídicos que possam assegurar a concretização desses direitos em face da ocorrência de desastres, permitindo-se a proteção desse direito, segundo os princípios que regem os direitos fundamentais. Surge, assim, a necessidade de estímulo à adoção de medidas preventivas em sede de desastres “naturais” hidrológicos, em relação às medidas recuperativas, buscando-se alternativas que possam contribuir para a efetividade do direito de proteção contra desastres, dentro de um Estado Democrático e de Direito. Deste modo, para a realização desse estudo e atingimento dos objetivos propostos, realizou-se uma pesquisa documental e bibliográfica, como também uma pesquisa quantiqualitativa com base nos dados disponibilizados pelo Ministério da Integração Nacional (por meio da Secretaria Nacional de Defesa Civil) a fim de identificar quais os desastres de maior incidência no território brasileiro e os fatores que contribuíram para sua ocorrência. Após o levantamento de tais informações, passou-se a analisar os dados coletados, verificando em quais regiões ocorreram maior número de mortos e afetados. A utilização do número de mortos como parâmetro principal decorreu do fato do “direito à vida” ser o direito fundamental de maior relevância dentro do ordenamento jurídico e indispensável para o exercício de outros direitos. 12 Estudos realizados pelos órgãos de defesa civil demonstram que mais de 50% dos desastres ocorridos no Brasil decorrem de eventos hidrológicos, sendo certo que tal percentual é mantido em termos mundiais. Cf. infra informações detalhadas no capítulo 1, item 1.5. 19 Para que o indivíduo possua a condição de “ser humano” é essencial que o mesmo tenha acesso a uma vida digna, isto é, que tenha acesso a bens (materiais ou imateriais) imprescindíveis para a satisfação das necessidades vitais do indivíduo.13 Vinculou-se, então, a dignidade da pessoa humana a uma serie de direitos fundamentais, tais como o direito a vida e qualidade de vida, o direito a moradia, o direito à saúde, dentre outros, permitindo-se observar a emergência de um direito fundamental de proteção contra desastres (e, em especial, de proteção contra desastres hidrológicos). Aliás, segundo o posicionamento de FLORES, os direitos humanos (e, consequentemente, os direitos fundamentais) são o resultado de lutas e valores defendidos pela sociedade, encontrando-se em contínua evolução, constituindo-se como processos institucionais e sociais que possibilitam a abertura e a consolidações de espaços de luta pela dignidade humana. 14 A partir dessa análise, passou-se a indagar-se acerca do papel do Estado e da sociedade na efetivação do direito de proteção contra os desastres, enfatizando-se a importância das políticas públicas preventivas e da participação popular para a salvaguarda de tal direito, na medida em que as transformações geradas na sociedade contemporânea contribuíram para a ampliação do processo de participação popular nas esferas das decisões políticas. O aumento de tal participação ganha maior relevância dentro de um Estado Democrático e de Direito, no qual a participação do cidadão no processo de tomada de decisão constitui-se como fator importante para sua afirmação e manutenção. Aliás, registre-se que o Estado de direito constitui-se como uma forma de organização política na qual decisões relacionadas à coletividade devem ser tomadas por instituições democráticas, dotadas de competência e procedimentos devidamente delineados.15 Neste aspecto, o incentivo à participação popular por meio de mecanismos democráticos (tais como consultas e audiências públicas, debates, exercício do direito 13 CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; GRUBBA, Leilane Serratine. O embasamento dos direitos humanos e sua relação com os direitos fundamentais a partir do diálogo garantista com a teoria da reinvenção dos direitos humanos. In: Rev. direito GV vol.8 no.2 São Paulo July/Dec. 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322012000200013. Acesso em 10 de nov. 2013. 14 FLORES, op. cit., p. 34-35 15 HERMITTE, M-A. Os fundamentos jurídicos da sociedade do risco: uma análise de U. Beck. In: VARELLA, Marcelo Dias. Org. Governo dos Riscos. Brasília, 2005, p. 12. Disponível em: http://www.marcelodvarella.org/marcelodvarella.org/Riscos_files/Governo%20dos%20Riscos_2.pdf. Acesso em 20 nov. 2013 20 de manifestação do pensamento, etc.) traduz-se em um importante aliado na proteção dos direitos fundamentais, dentro do contexto de um Estado Democrático e de Direito. Tal participação na proteção contra desastres encontra-se intimamente vinculada à linha de pesquisa “cidadania modelando o Estado”, na medida em que a adequada utilização dos mecanismos participativos existentes e o engajamento da população nas ações voltadas para a proteção contra a ocorrência de “eventos naturais de efeitos calamitosos” provocam reflexos em relação às consequências e aos danos (humanos e materiais) decorrentes da eclosão de desastres hidrológicos, dentre outros. Acarreta, assim, reflexos no tocante à concretização dos direitos fundamentais, tal qual o direito de proteção contra os desastres. Assim, em razão da rapidez com que os desastres podem ocorrer, o envolvimento da população na proteção contra sua ocorrência pode contribuir significativamente para a redução do número de vítimas. Do mesmo modo, a participação popular, informando o Poder Público acerca dos riscos existentes possibilita uma melhor atuação preventiva por parte do ente público (e, em especial, do Município) antecipando-se ao desastre e evitando sua ocorrência. No que se refere aos aspectos jurídicos relacionados aos desastres hidrológicos, observa-se a existência de uma regulamentação inicial sobre o tema (tanto em nível constitucional, quanto infraconstitucional). Porém, não obstante tal regulamentação tenha como objetivo a proteção dos seres humanos contra a ocorrência de desastres, observa-se que a violação desse direito continua a atingir um grande número de pessoas no País. Tal constatação leva a uma reflexão acerca da proteção dos direitos fundamentais, cujo problema, na visão de BOBBIO, não residiria em justificá-los, mas, sim, em como protegê-los.16 Neste contexto, a proteção contra desastres demanda uma reflexão acerca de sua natureza jurídica de direito fundamental, bem como quais os mecanismos juridicamente aptos a dar-lhe concretude. Para tanto, faz-se necessário a realização de um cotejo analítico entre o direito de proteção contra desastres e algumas normas e princípios jurídicos pertencentes a outros ramos do direito, mas a ele relacionados. 16 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 24. 21 Desta forma, o primeiro capítulo trata da interação entre o ser humano e o meio ambiente e o risco de desastres, partindo da concepção de sociedade de risco e suas características a fim de destacar as vulnerabilidades das cidades e de seus cidadãos em face dos efeitos da mudança do clima. Questões relacionadas ao desenvolvimento das cidades brasileiras e seus reflexos no meio ambiente são abordadas, ressaltando-se o papel da atuação humana na mudança climática e no aumento do número de desastres hidrológicos ao longo dos anos. Esse capítulo objetiva, assim, realizar uma contextualização acerca dos diversos tipos de desastres existentes, destacando suas características e classificações, além de trazer dados oficiais acerca da evolução dos desastres no Brasil entre os anos de 1991 e 2010. Feita a análise de tais dados e concluindo-se pela predominância dos desastres hidrológicos no território brasileiro, passam os mesmos a ser objeto de estudo específico na presente tese. Uma vez apresentado o panorama existente em relação aos desastres no Brasil, no segundo capitulo são tecidas considerações acerca da teoria dos direitos fundamentais e sua relação com o direito de proteção contra desastres. Para tanto, o referido capítulo discorre acerca da origem e evolução da teoria dos direitos fundamentais, analisando suas características e os desdobramentos jurídicos decorrentes. Uma vez feita tal apresentação, o estudo passa se concentrar no “cerne” dos direitos fundamentais, consubstanciado no princípio da dignidade da pessoa humana, núcleo essencial de tais direitos. Assim, estabelecido o contexto dentro do qual o objeto de estudo será analisado, passa-se a tratar do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental, destacando sua inter-relação com outros direitos fundamentais, tais como o direito à vida, o direito à moradia, o direito à saúde, o direito à qualidade de vida, o direito ao meio ambiente e o direito à assistência aos desamparados. Uma vez feitas tais considerações, o papel do Estado na proteção dos direitos fundamentais passa a ser analisado em uma perspectiva teórica, enquanto ente constitucionalmente responsável pela tutela dos interesses da coletividade. Procurando propiciar um maior aprofundamento sobre o tema – e, considerando que a atuação estatal na proteção contra desastres, demanda a realização de políticas públicas específicas – o terceiro capítulo é voltado ao estudo das políticas públicas relacionadas à proteção contra desastres, com destaque para a Política Nacional de 22 Proteção e Defesa Civil e medidas protetivas relacionadas à resiliência da comunidade inserida em áreas de risco e suscetível a desastres hidrológicos. Assim, o referido capítulo analisa a importância de tais políticas públicas com vistas à realização do desenvolvimento sustentável e a proteção contra desastres. No âmbito do estudo de tais políticas públicas, a organização do sistema nacional de Defesa Civil, bem como as medidas protetivas por ele implementadas passam a ser objeto de reflexão e ponderação. Para tanto, questões atinentes ao histórico e à evolução do sistema nacional de Defesa Civil ao longo dos anos, bem como ao fundo especial para calamidades públicas e a lei de política nacional de proteção e civil passam a ser tratadas de forma mais específica. Explicitada a organização do sistema nacional de Defesa Civil, são tratados, especificamente, os diversos momentos de ação em sede de desastres como instrumentos eficazes na proteção contra desastres, analisando-se as medidas protetivas existentes dentro do referido sistema. Ainda com relação às políticas públicas implementadas na proteção contra desastres, são trazidos para a discussão dados acerca dos recursos financeiros disponíveis para a proteção desse direito fundamental e as formas como esses recursos são alocados e utilizados, tecendo-se críticas acerca da questão atinente à realização (ou não) de licitação em hipóteses relacionadas a desastres naturais hidrológicos. Ao final do capítulo são feitas considerações e reflexões acerca das limitações existentes em sede de políticas públicas de proteção contra desastres. Por fim, o quarto capítulo apresenta alternativas em busca da efetividade do direito de proteção contra desastres, com vistas à sua concretização enquanto direito fundamental. Para tanto, os papeis e responsabilidades dos diversos atores envolvidos passam a ser revistos dentro de uma ótica de direitos fundamentais, ressaltando a importância da união de esforços e divisão e compartilhamento de responsabilidades a fim de se obter uma adequada proteção do ser humano contra os desastres naturais hidrológicos. Aqui, defende-se a necessidade de uma maior transversalidade das políticas públicas relacionadas (direta ou indiretamente) com a proteção contra desastres hidrológicos, bem como uma mudança de paradigma, valorizando-se a atuação do Poder Público municipal na execução de medidas em proteção deste direito fundamental. Nessa esteira, as políticas públicas de ordenamento territorial e uso e ocupação do solo, 23 bem como o exercício do poder de polícia são trazidos como alternativas viáveis para a proteção contra desastres naturais hidrológicos, destacando-se as medidas e instrumentos previstos no Estatuto da Cidade17. De modo a corroborar a tese acerca da viabilidade de tais instrumentos como mecanismos de proteção do direito fundamental de proteção contra desastres, foram analisados os resultados positivos obtidos pela cidade de Belo Horizonte (capital do Estado de Minas Gerais, o qual teve o maior número de mortos em decorrência de desastres hidrológicos no período da pesquisa) na proteção contra desastres hidrológicos por meio de uma política pública preventiva e participativa. Essa análise permite uma melhor reflexão acerca da caracterização (ou não) do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental do ser humano, bem como possibilita a apresentação de sugestões de medidas jurídicas aptas à obtenção de uma adequada tutela jurídica desse direito, com vistas a sua efetiva concretização enquanto direito fundamental autônomo. Por fim, tendo em vista os diversos aspectos relacionados aos desastres “naturais” hidrológicos, o papel do Estado nessa proteção volta a ser ressaltado por meio do investimento em ações de planejamento e prevenção contra desastres, bem como pelo incentivo em ações que propiciem uma maior participação popular (tais como a gestão democrática e a educação ambiental), desenvolvendo-se o conceito de cidadania, e permitindo uma efetiva proteção destes direitos fundamentais. Assim, a proteção contra esse tipo de desastre no Brasil e, em especial, em áreas de risco, deve ser feita de modo contínuo, relacionando-a com a proteção ambiental, urbanística e administrativa, de modo a garantir-se, se de fato, a tutela da dignidade da pessoa humana. 17 Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 24 1. DA INTERAÇÃO DO SER HUMANO COM O MEIO AMBIENTE E O RISCO DE DESASTRES A interação do ser humano com o meio ambiente é um processo contínuo e que pode trazer como consequências, a depender da forma como ela ocorre, provocando, assim, a diminuição ou o aumento do risco de desastres. 18 Em função do aumento da demanda da sociedade em relação à produção e ao consumo, observa-se, nas últimas décadas, o aumento da atuação predatória do ser humano em face dos recursos naturais e matérias primas existentes em nosso planeta, o que vem contribuindo para a aceleração da mudança climática no planeta.19 Neste sentido, o quarto relatório do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática (IPCC) de 2007 concluiu que o aumento da temperatura média do planeta registrado desde meados do século XX é “muito provavelmente” uma consequência do aumento da emissão de gases de efeito estufa pelo ser humano.20 No mesmo sentido, o quinto relatório do IPCC de 2013 apresenta um cenário pessimista para o futuro.21 Neste contexto, tratando especificamente da questão atinente aos desastres, GOMES afirma que os desastres são uma constante da natureza e, por razões diversas, seus efeitos vêm adquirindo maiores proporções ao longo do tempo.22 18 O conceito de desastre encontra-se relacionado à ocorrência de danos humanos e materiais de grandes proporções, com comprometimento da capacidade de recuperação da comunidade, e será abordado de forma detalhada no item 1.3 da presente tese. 19 LEUZINGER, Marcia Dieguez. Meio ambiente, propriedade e repartição constitucional de competências. [Dissertação] (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 1999. p. 47. 20 Segundo o relatório de 2007 do IPCC, a tendência de aquecimento parece mais evidente do que nunca. A taxa anual de crescimento da concentração de dióxido de carbono foi maior nos últimos dez anos (1995-2005) do que foi desde o começo da medição continua e direta da atmosfera, apesar de existir variações de crescimento de um ano para outro. Segundo aponta o relatório, a principal fonte para o aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera desde o período pré-industrial é o resultado do uso de combustível fóssil. Para maiores detalhes, vide: Relatório do IPCC/ONU – Novos cenários climáticos. Disponível em: <http://www.ecolatina.com.br/pdf/IPCC-COMPLETO.pdf>. Acesso em: 13 set. 2013. 21 Neste sentido, o quinto relatório prevê um aumento no nível do mar e aumento da temperatura na superfície terrestre, com temperaturas extremas (quentes e frias), com ondas de calor com maior frequência e duração. Com relação às chuvas o relatório prevê que eventos de forte precipitação tornemse mais frequentes, principalmente em regiões úmidas de latitude central. Para maiores informações, vejase: IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change. CLIMATE CHANGE 2013. The Physical Science Basis. Summary for Policymakers. WMO UNEP. Disponível em: <http://www.climate2013.org/images/uploads/WGI_AR5_SPM_brochure.pdf>. Acesso em 14 dez. 2013. 22 GOMES, Carla Amado. Direito(s) das catástrofes naturais. Coimbra: Almedina, 2012. p. 9. 25 Ao mesmo tempo em que a mudança climática se intensifica, observa-se o aumento no número de desastres relacionados com o clima ocorridos em nosso planeta: eventos climáticos extremos têm ocorrido com maior frequência e intensidade, destacando-se os ciclones, secas, enchentes, ondas de calor, furacões, maremotos, tornados, tempestades tropicais, tufões, nevascas, chuvas de grazino, tempestades de areia, trombas d’água, temporais com raios e trovões, etc.23 Neste sentido, pesquisadores do Centro de Investigação sobre a Epidemiologia dos Desastres -(CRED) constataram um aumento em quase todos os desastres relacionados com o clima, incluindo os desastres hidrológicos (floods).24 Aliás, a maioria dos desastres que acometeram o mundo nos últimos anos foi resultado dessa relação predatória que o ser humano estabeleceu com meio ambiente em prol do desenvolvimento e que, inclusive, foi o foco de discussão da Primeira Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972.25 Deste modo, a classificação de tais desastres sobre a nomenclatura de “naturais” é passível de críticas. No Brasil também se observa o aumento do número de desastres, sendo certa a predominância daqueles relacionados a fenômenos climáticos e potencializados pela ação do ser humano.26 Sobre o tema, SALDIVA destaca que as tragédias causadas por enchentes e desmoronamentos têm sido banalizadas pelo Poder Público e têm se tornado cada vez mais frequentes.27 Dentre os efeitos da mudança climática, merece destaque, por exemplo, o aumento do nível dos mares, que provoca riscos diretos e indiretos para toda a coletividade e, em especial, riscos diretos para os cidadãos que vivem em cidades 23 GIDDENS, Anthony. A política da mudança climática. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zajhar, 2010. p. 219. 24 SHERBININ, Alex de; SCHILLER, Andrew; PULSIPHER, Alex. The vulnerability of global cities to climate hazards. Environment and urbanization, v. 19, n. 1, p. 40, 2007. Disponível em: <http://eau.sagepub.com/content/19/1/39.full.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2013. 25 BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres. Comunicação de Riscos e de Desastres. Promoção da cultura de riscos de desastres: relatório final. Florianópolis: CEPED, 2012. p 12. Disponível em: http://www.ceped.ufsc.br/sites/default/files/projetos/final_pcrd.pdf. 26 SANTOS, Rozely Ferreira dos (Org.). Vulnerabilidade ambiental: desastres naturais ou fenômenos induzidos? Brasília: MMA, 2007. p. 10. 27 SALDIVA, P. et al. (Org.). Meio ambiente e saúde, o desafio das metrópoles. São Paulo: Ex-libris, 2010. 26 litorâneas.28 Nesta perspectiva, a multiplicação e o aumento na intensidade dos fenômenos hidrológicos acaba causando desastres e trazendo prejuízos humanos e materiais, sendo fundamental analisar como o desenvolvimento das cidades pode trazer reflexos no meio ambiente, analisando-se os desdobramentos dessa interação com relação ao risco de desastres. 1.1. SOCIEDADE DE RISCO E VULNERABILIDADES DAS CIDADES DIANTE DOS EFEITOS DA MUDANÇA CLIMÁTICA A transição da sociedade industrial moderna para uma sociedade pós-industrial e posmoderna, de acordo com BECK, é caracterizada pela presença de aspectos negativos, consubstanciados nos riscos e ameaças ambientais.29 Desta transição surge a denominada sociedade de risco, a qual pode ser conceituada como aquela que, em função de seu permanente progresso econômico, encontra-se constantemente sujeita às consequências de uma catástrofe ambiental, sendo certo que a falta de mecanismos jurídicos de solução dos problemas dessa nova sociedade acaba contribuindo para o agravamento dos problemas decorrentes da evolução da sociedade industrial para a sociedade de risco.30 É nesta sociedade que o risco de desastres passa a ser elemento integrante do dia a dia da coletividade, criando campo fecundo para o desenvolvimento do direito dos desastres ou, consoante prefere-se dizer, do direito de proteção contra desastres. Neste aspecto, os desastres encontram-se inseridos em uma sociedade que tem como traço fundamental a autoprodução dos riscos, bem como a sua confrontação com os efeitos 28 KANASHIRO, Milena; CASTELNOU, Antonio Manuel Nunes. Sociedade de risco, urbanização de risco e estatuto da cidade. Terra e Cultura, ano 20, n. 38, p. 159. Disponível em: <http://web.unifil.br/docs/revista_eletronica/terra_ cultura/38/Terra%20e%20 Cultura_38-12.pdf>. Acesso em: 06 maio 2013. 29 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. 30 LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de direito ambiental no Brasil. In: KISHI, Sandra Akemi S; SILVA, Solange Teles da SOARES, Inês V. Prado (Org.). Desafios do direito ambiental no século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 611-12. 27 colaterais decorrentes da sociedade pós-industrial.31 Isso porque, a sociedade de riscos passa a conviver, cotidianamente, com a possibilidade de ocorrência de danos ou desastres. É um risco aceito pela coletividade em razão dos benefícios que a industrialização e o desenvolvimento podem trazer para a população, além da geração de emprego e renda decorrente desse crescimento.32 Por outro lado, para que esse desenvolvimento ocorra sem causar grandes prejuízos para o ser humano, é necessário estabelecer-se regras e princípios que orientem a forma como se dará tal desenvolvimento. Assim, é preciso que haja critérios de sustentabilidade social e ambiental e de viabilidade econômica que reflitam as preocupações com o bem-estar das gerações presentes e futuras.33 É certo que no Brasil, o próprio texto constitucional, além de inserir a proteção ambiental como um dos princípios da ordem econômica, também consagra como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro a promoção do bem de todos garantindo o desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza.34 Mas como assegurar o respeito a esses preceitos constitucionais sem esquecer-se de levar em conta as gerações presentes e futuras? Nesse contexto, faz-se necessário, em primeiro lugar, conhecer melhor esta sociedade de riscos, bem como os riscos aos quais se encontra exposta, considerando-se que, nessa sociedade, há a preocupação preponderante com o futuro.35 E, aliás, torna-se possível indagar se nessa sociedade de riscos há uma gestão democrática dos riscos e em que medida pode ela contribuir para a proteção contra desastres.36 Tal reflexão faz-se necessária, na medida em que os riscos não atingem todos os indivíduos de forma igualitária, fazendo com que camadas hipossuficientes da população sofram de forma mais intensa os efeitos decorrentes dessas alterações sociais. Neste sentido, FLORES preleciona: 31 CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 15. 32 Neste aspecto, tem-se que as catástrofes naturais deixaram de ser acontecimentos excepcionais para transformar-se em eventos tristemente habituais e especialmente penalizadores em Estados menos desenvolvidos. Para maiores detalhes, cf.: GOMES, op. cit., p. 7. 33 SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. p. 36. 34 Cf. item 3.2 infra 35 BECK, op. cit., 2010. p. 40. 36 Sobre “gestao democrática do risco” cf. item 4.6 28 A deterioração do meio ambiente, as injustiças propiciadas por um comércio e por um consumo indiscriminado e desigual, a continuidade de uma cultura de violência e guerras, a realidade das relações transculturais e das deficiências em matéira de saúde e de convivência individual e social que sofrem quatro quintos da hunidade obrigam-nos a pensar e, consequentemente, a apreentar os direitos desde uma perspectiva nova, integradora, crítica e contextualizada em práticas sociais emancipadoras. 37 Com relação aos desastres, GIDDENS esclarece que o aumento do ritmo de desenvolvimento industrial e tecnológico, bem como a constante intervenção do ser humano sobre a natureza têm aumentado os riscos relacionados a questões ambientais.38 Do mesmo modo, observa-se que o mundo não está preparado para o previsto aumento de inundações, secas, furacões, tempestades extremas e outros eventos climáticos que têm contribuído para a vulnerabilidade das cidades. Some-se a isso o fato de que o modo como as cidades se desenvolveram – sem planejamento e medidas preventivas – acabou contribuindo para a maior vulnerabilidade das mesmas aos desastres que envolvem eventos hidrológicos. Assim, a denominada “sociedade de riscos” ou “sociologia do risco,” proposta por BECK, configura-se como um modelo de sociedade que, ao mesmo tempo, procura desfrutar dos benefícios e possibilidades da ciência, mas, também, encontra-se obrigada a conviver e a gerenciar os riscos impostos por estes avanços. Necessário esclarecer a existência de diferença entre perigo e risco. Consoante ensinam CARVALHO e DAMACENA, o perigo pode ser conceituado como a possibilidade de que algo ocorra de forma indesejada e sem que haja controle pelo ser humano. No mesmo sentido tem-se que o Escritório das Nações Unidas para a Redução de Riscos de Desastres – United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNISDR) conceitua perigo como um fenômeno, substância, atividade humana ou condição que pode causar: perda de vidas, danos ou outros impactos na saúde, danos materiais, perda de meios de subsistência e serviços, social e econômica interrupção ou danos ambientais.39 Incluem-se, aqui, os fenômenos da natureza. Já o risco relaciona-se a situações nas quais existe um determinado grau de previsibilidade ou de probabilidade 37 FLORES, op. cit., p. 31 GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação São Paulo, 2004. p. 66. 39 RAWINJI, Fladwel. Claiming the human right to protection from disasters: the case for human rights-based disaster risk reduction, p. 3 Disponível em: <http://www.preventionweb.net/files/submissions/31225_righttodisasterprotection.pdf>. 38 29 de sua ocorrência.40 Conclui-se, assim, que o perigo surge sem que haja qualquer possibilidade de evitar seus efeitos, ao passo que o risco é determinado por uma decisão prévia em relação à determinada ação. No risco, os efeitos podem ser evitados ou contingenciados (minimizados), mas são aceitos por decisão do dos seres humanos. Logo, a prevenção possui papel importante em sede de riscos. Para BECK os perigos (diferentemente dos riscos) não resultam de decisões, ou mais precisamente, de decisões que se centram sobre vantagens e oportunidades tecnoeconômicas e aceitam ameaças como sendo simplesmente o lado obscuro do progresso. Assim, segundo entende o autor, a expansão e a mercantilização dos riscos são necessidades insaciáveis, na qual “a sociedade industrial produz as situações de ameaça e o potencial político da sociedade de risco”.41 Nesta mesma linha, TOMINAGA esclarece que o termo “perigo” refere-se à possibilidade de um processo ou fenômeno natural potencialmente danoso ocorrer num determinado local e num período de tempo especificado, ao passo em que o “risco” é a possibilidade de se ter consequências prejudiciais ou danosas em função de perigos naturais ou induzidos pelo ser humano.42 Ao analisar os impactos negativos causados ao meio ambiente e quem os suporta no contexto de desastres, merece destaque o processo de urbanização e a falta de uma politica habitacional, que acaba por expulsar a população carente para áreas de risco. Em realidade, o acelerado processo de urbanização no Brasil, fortemente alimentado pela maciça migração rural - urbana, tem sido, desde o seu início, não só acelerado, mas concentrador da população em cidades maiores.43 Aliás, entre o período de 1940 a 2010, a proporção da população brasileira vivendo nas cidades passou de 31% a 84%,44 podendo-se afirmar que o êxodo rural brasileiro foi um dos processos mais intensos de urbanização ocorridos no mundo durante o século XX.45 Sobre a evolução das 40 CARVALHO, Delton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A intensificação dos desastres naturais, as mudanças climáticas e o papel do direito ambiental. Revista de Informação Legislativa. Senado Federal, n. 193, jan./mar. 2012. p. 87 41 BECK, op. cit., 2010. p. 28. 42 TOMINAGA, Lídia Keiko. Análise e mapeamento de risco In: ______.; SANTORO, Jair; AMARAL, Rosangela do. Desastres naturais: conhecer para prevenir. São Paulo: Instituto Geológico, 2009. p. 151. 43 BRITO, Fausto; PINHO, Breno Aloísio T. Duarte de. A dinâmica do processo de urbanização no Brasil, 1940-2010. Belo Horizonte : UFMG/CEDEPLAR, 2012. p. 11. Disponível em: < http://cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20464.pdf.> Acesso em 10 dez. 2013. 44 Segundo dados do IBGE há, atualmente, cerca de 160 milhões de pessoas residindo em áreas urbanas. 45 MARICATO, Erminia. A cidade sustentável. In: CONGRESSO NACIONAL DE SINDICATOS DE ENGENHEIROS, 9., p. 13 Disponível em: <http://www.adital.com.br/arquivos/2012/02/pt%20a%20 cidade%20sustent%C3%A1vel%20-%20erminia%20maricato.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2013. 30 populações urbana e rural no Brasil, observe-se pela figura a seguir que, a partir de meados da década de 1960, iniciou-se um aumento expressivo da população urbana se comparado com a população rural, a qual passou a diminuir paulatinamente. Figura 1 - População Urbana e Rural do Brasil de 1940 a 2010 Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. www.sidra.ibge.gov.br. Acesso em 07/05/2011.46 E, no que tange a área habitacional, segundo asseveram ROGUET e CHOHFI, o Estado não interviu nessa seara até a década de 1930.47 Somente após esse período, em razão do intenso fluxo migratório para a área urbana, tornou-se imprescindível a atuação estatal no sentido de propiciar a obtenção de moradias para a população. Contudo, a política nacional de desenvolvimento urbano no Brasil foi estruturada por meio da montagem de um sistema de financiamento de habitação e saneamento. Segundo ROLNIK e KLINK o processo de urbanização no Brasil, não atendeu os objetivos de ampliar o direito à moradia digna e à cidade para toda a população, uma vez que não houve um suporte adequado e sustentável para a expansão da produção e do consumo nas cidades, cujo resultado obtido foi uma urbanização sem infraestrutura básica em razão da omissão do poder local em fiscalizar o mercado formal (o que permitiu o 46 Apud TELÓ, Fabricio; DAVID, Cesar De. O rural depois do êxodo: as implicações do despovoamento dos campos no distrito de Arroio do Só, município de Santa Maria/RS, Brasil. Mundo Agrário, v. 13, n. 25, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/ scielo.php?pid=S1515-59942012000200005 &script=sci_arttext>. Acesso em: 20 dez. 2012. 47 ROGUET, Patrícia; CHOHFI, Roberta Dib. Políticas públicas e moradia: rumo à concretização do direito à cidade? In: SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins (Org.). O direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013. p. 304. 31 estabelecimento de loteamentos sem infraestrutura), bem pela incapacidade do Poder Público em ofertar moradias e loteamentos adequados aos grupos de menor renda.48 Desse modo, esses grupos acabaram por se instalar em locais economicamente mais acessíveis, mas inadequados para a construção de aglomerados urbanos em razão de suas configurações geográficas. Assim, o processo de industrialização e o êxodo rural (com o consequente deslocamento da população para as cidades), desacompanhados de uma política pública protecionista e atuante, voltada para a criação de condições adequadas para a vida dessa população, aliada à falta de planejamento urbanístico, acabou contribuindo para o crescimento rápido e descontrolado das cidades.49 Essa intensa urbanização, bem como a falta de planejamento para ordenar as cidades, aliada à redução da vegetação50, colocam em xeque-mate as cidades brasileiras, como campo fértil para virem a sofrer com os efeitos da mudança do clima e em particular com a ocorrência de desastres a ele relacionados. O crescimento desordenado dessas cidades e regiões metropolitanas51 e a falta de planejamento acabam colaborando para a ocupação de áreas de risco (tais como zonas costeiras, margens de rios e 48 ROLNIK, Raquel; KLINK, Jeroen. Crescimento econômico e desenvolvimento urbano: por que nossas cidades continuam tão precárias? Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 89, mar. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S0101-33002011000100006&script=sci_arttext#back13>. Acesso em: 10 nov. 2013. 49 Consoante asseveram NAJAR e MARQUES, o crescimento descontrolado das cidades guarda relação com aspectos econômicos, de tal forma que a distribuição dos investimentos públicos acaba trazendo consequências na estrutura social corporificada no espaço, gerando uma “desigualdade espacial”. Para maiores detalhes, veja-se: NAJAR, Alberto Lopes; MARQUES Eduardo César. A sociologia urbana, os modelos de análise da metrópole e a saúde coletiva: uma contribuição para o caso brasileiro. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, jan. 2003. Disponível em: <http://www.scielosp.org/ scielo.php?pid=S1413-81232003000300005&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 dez. 2013. 50 A lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal; a exploração florestal, o suprimento de matériaprima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros para o alcance de seus objetivos, tendo como objetivo o desenvolvimento sustentável. Neste aspecto, a referida lei, ao tratar do Regime de Proteção das Áreas Verdes Urbanas concedeu ao poder público municipal os seguintes instrumentos para o estabelecimento de áreas verdes urbanas: I - o exercício do direito de preempção para aquisição de remanescentes florestais relevantes, conforme dispõe a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001; II - a transformação das Reservas Legais em áreas verdes nas expansões urbanas; III - o estabelecimento de exigência de áreas verdes nos loteamentos, empreendimentos comerciais e na implantação de infraestrutura; e IV - aplicação em áreas verdes de recursos oriundos da compensação ambiental. 51 Com relação às regiões metropolitanas é necessário mencionar que as periferias das metrópoles cresceram mais do que os núcleos centrais, o que implica um aumento relativo das regiões pobres. Consoante assevera MARICATO, enquanto os municípios centrais das regiões metropolitanas cresceram em média 3,1% entre 1991 e 1996, os municípios periféricos cresceram 14,7% no mesmo período. Fonte: MARICATO, Ermínia. Urbanismo na periferia do mundo globalizado: metrópoles brasileiras. In: São Paulo em Perspectiva. vol.14 nº. 4. São Paulo. Oct./Dec. 2000. Disponível em: <http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392000000400004>. Acesso em 10 dez. 2013 32 córregos, morros e outros ambientes vulneráveis), ocupação esta que é apontada entre as principais causas agravantes dos efeitos dos desastres naturais.52 Na realidade, a especulação imobiliária e a necessidade de moradia fazem com que os indivíduos instalem-se em áreas inadequadas para ali residirem, por serem locais mais acessíveis – tanto do ponto de vista econômico como locacional. Destaque-se, ainda, que dois terços da humanidade vivem na região litorânea53, ou seja, há parte considerável da população que vive em locais próximos à costa ou expostos a estes riscos e o crescimento dessa população tambem pode constituir um fator que leve mais pessoas a estarem sujeitas à ocorrência de eventos naturais.54 Fala-se, assim, em vulnerabilidade das comunidades instaladas em áreas de risco. A vulnerabilidade refere-se a determinadas a características ou circunstâncias de uma comunidade, que a tornam suscetível aos efeitos nocivos de um perigo.55 Assim, é possível afirmar que a vulnerabilidade deriva, fundamentalmente, da relação do ser humano com o meio-ambiente, considerando as estruturas sociais e econômicas presentes, ou seja: a vulnerabilidade é um conceito político-ecológico no qual se encontram presentes forças econômicas e políticas.56 Logo, a vulnerabilidade passa a ser vista um fenômeno econômico e social.57 Neste sentido, TOMINAGA conceitua a vulnerabilidade como sendo: Conjunto de processos e condições resultantes de fatores físicos, sociais, econômicos e ambientais, o qual aumenta a suscetibilidade de uma comunidade (elemento em risco) ao impacto dos perigos. A vulnerabilidade compreende tanto aspectos físicos (resistência de construções e proteções da infraestrutura) como fatores humanos, tais como, econômicos, sociais, 58 políticos, técnicos, culturais, educacionais e institucionais. 52 MARCELINO, E. V.; NUNES, L. H.; KOBIYAMA, M. Banco de dados de desastres naturais: análise de dados globais e regionais. Caminhos de Geografia, v.6, n.19, p. 130-49, 2006. 53 SILVA, Solange Teles da. Planejamento urbano na Zona Costeira. Disponível em: http://www. conpedi.org.br/manaus/arquivos/Anais/Solange%20Teles %20da%20Silva.pdf 54 SHERBININ, Alex de; SCHILLER, Andrew; PULSIPHER, Alex. The vulnerability of global cities to climate hazards. In: Environment and Urbanization. Vol 19(1), 2007, p. 40. Disponível em: http://eau.sagepub.com/content/19/1/39.full.pdf. Acesso em 10 dez. 2013 55 RAWINJI, op. cit., 2013. 56 OLIVER-SMITH, Anthony. Theorizing vulnerability in a globalized world: a political ecological perspective. In: BANKOFF, G.; FRERKS, G.; HILHORST, D. Mapping vulnerability: disasters, development & people. London: Earthscan, 2004. p. 1. 57 GIDDENS, op. cit., 2010. p. 203. 58 TOMINAGA, op. cit., p. 151. 33 Tal vulnerabilidade, entretanto, não atinge a sociedade de forma igualitária. Cidades localizadas em países de alta renda, e algumas cidades localizadas em países de renda média, são resilientes à mudança climática, em razão de possuírem habitações de boa qualidade, infraestrutura e serviços para todos. Assim, Polícia, serviços armados, serviços de saúde e bombeiros fornecem um alerta inicial com detalhes de que ações devem ser tomadas e garantem respostas emergenciais rápidas, evitando perdas humanas.59 Com o conceito de vulnerabilidade, ficou claro que a capacidade de um sistema para atenuar tensões ou lidar com as consequências delas decorrentes, por meio de estratégias ou outros mecanismos, constitui-se como um fator determinante do sistema de resposta.60 Fala-se, assim, em sociedades resilientes. Do mesmo modo, observa-se que os níveis de risco estão aumentando em razão de fatores como as alterações climáticas, a pobreza, a falta de planejamento e gestão no ordenamento territorial e a degradação dos ecossistemas. Neste contexto, destacam-se os riscos a que estão submetidos os habitantes das grandes metrópoles em razão da possibilidade de ocorrência de inundações e deslizamentos causados pela impermeabilização excessiva das superfícies, bem como o de doenças provocadas pelas condições insalubres existentes.61 Também é preciso mencionar-se que a distribuição e o aumento do risco encontram-se ligados a um processo de desigualdade social ou de injustiça ambiental, havendo, ainda, uma força de “atração” sistemática entre a pobreza extrema e os riscos extremos. Isso porque os países em desenvolvimento possuem uma necessidade muito maior de expandir suas economias, havendo – para eles - um imperativo de desenvolvimento.62 Neste aspecto, BECK defende que tal atração decorre, dentre outros fatores, da vulnerabilidade de determinada comunidade, sendo certo que há uma tendência no sentido de que a distribuição dos riscos seja determinada pela classe 59 A adaptação às mudanças climáticas pode atender também às metas de desenvolvimento em cidades de países em desenvolvimento?. In: CIVIS, nº 2 - Outubro 2009, p. 4. Disponível em: http://citiesalliance.org/sites/citiesalliance.org/files/CIVIS_2_Portuguese.pdf. Acesso em 03.12.2013 60 SHERBININ, op. cit., 2013. 61 KANASHIRO, op. cit., 2013. p. 159 62 GIDDENS, op. cit., 2010, p. 90. 34 social.63 Neste aspecto, observa-se que indústrias com poder de gerar riscos costumam se estabelecer em países mais pobres (chamados de países subdesenvolvidos) nos quais encontra-se uma quantidade grande de pessoas desempregadas – criando uma força de atração sistemática entre a pobreza extrema e os riscos extremos - que favorece e facilita a instalação destas indústrias, sob o argumento de que, com isso, surgirão novas tecnologias novos empregos.64 Tal afirmação pode ser constatada quando se observam os locais vítimas de desastres “naturais” (em especial enchentes, inundações e deslizamentos). A grande maioria destes desastres ocorre em áreas de ocupação irregular, nas quais a população menos favorecida acaba edificando suas residências sem qualquer amparo técnico ou sem observância das normas legais referentes ao tema.65 Segundo pesquisa realizada pelo Centro Universitária de Estudos e Pesquisas sobre desastres, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a região sudeste brasileira é uma das que mais sofre com as adversidades atmosféricas, em razão de sua alta densidade demográfica, aliada à ocupação desordenada em áreas de risco, sendo certo que as principais ameaças relacionadas ao tempo e clima são chuvas intensas66, vendavais, granizos, geadas e friagens, secas, baixa umidade do ar e nevoeiros.67 Há, ainda, autores que utilizam a expressão “vulnerabilidade social” nas hipóteses em que os desastres relacionados a eventos extremos (tais como chuvas, tempestades, inundações) atingem grupos sociais mais vulneráveis.68 Isso porque os 63 BECK, op. cit., 2010. p.41. CENCI, Daniel Rubens; Kässmayer, Karin. O direito ambiental na sociedade de risco e o conceito de justiça ambiental. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/ 114445697/ Direito-Ambiental>. Acesso em: 31 out. 2013. 65 Segundo dados do Ministério da Integração Nacional os danos humanos decorrentes de enxurradas estão ligados, na maioria das vezes, às ocupações desordenadas nas margens dos rios ou outras áreas com alta suscetibilidade a esse tipo de desastre. Para maiores informações veja-se: BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Anuário brasileiro de desastres naturais – 2011. Brasília: CENAD, 2012. p. 49. 66 Observe-se que as chuvas intensas muitas vezes acabam deflagrando outros tipos de desastres, tais como hidrológicos (enxurradas, inundações graduais ou bruscas e alagamentos) ou geológicos (movimentos de massa e erosão). Neste sentido, veja-se: Ministério da Integração Nacional Secretaria Nacional de Defesa Civil. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Anuário brasileiro de desastres naturais: 2011. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Brasília: CENAD, 2012, p. 55 67 BRASIL. Atlas... op. cit., 2012, p. 20. 68 SIENA, Mariana. A dimensão de gênero da análise sociológica de desastres: conflitos entre desabrigadas e gestoras de abrigos temporários relacionados às chuvas. São Carlos:Universidade Federal de São Carlos, 2009. p. 29-30. 64 35 riscos ambientais não são equitativamente distribuídos, uma vez que fatores como pobreza e vulnerabilidade de determinadas populações e comunidades fazem com que tais pessoas se encontrem mais expostas a eles. Assim, a violação dos direitos fundamentais dessas pessoas acaba ocorrendo de forma mais intensa do que em populações menos vulneráveis.69 E, em razão de tal vulnerabilidade, torna-se necessário realizar estudos detalhados e específicos sobre tais eventos prejudiciais ao ser humano e a sociedade em geral, de modo a ter-se uma real dimensão dos prejuízos deles decorrentes, bem como das medidas que precisam ser adotadas para combatê-los.70 1.2 DESASTRES: CONCEITUAÇÃO, CONTEXTUALIZAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO A sociedade de risco convive, cotidianamente, com a possibilidade de ocorrência de danos de grandes proporções (comumente chamados de desastres, calamidades, tragédias, etc). Mas, em termos jurídicos, expressões como “calamidade”, “desastre”, “catástrofe” e “tragédia” podem ser utilizadas como sinônimas? Normalmente tais expressões são utilizadas como sinônimas, sendo mais comum a utilização da expressão “desastre” para referir-se a um evento que provoque prejuízos para a coletividade decorrentes de fatores tecnológicos ou naturais.71 Não obstante, alguns autores apresentam conceitos diversos para cada uma delas, o que permite delinear os seus contornos e buscar o o sentido jurídico de tais expressões. Por exemplo, POSNER 69 VERGANI, op. cit., p. 70. A pesquisa realizada pelo CEPED constatou que os registros de desastres na década de 2000 triplicaram em relação aos registros realizados na década de 1990. Para maiores informações veja-se: CEPED UFSC. Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010: volume Brasil. Florianópolis: CEPED UFSC, 2012, p. 93 71 Para o autor da presente tese a expressão tecnicamente mais adequada para o ordenamento jurídico brasileiro, é o vocábulo “calamidade”, haja vista sua expressa menção ao longo do texto constitucional, havendo, inclusive, a previsão de ações nas hipóteses de decretação de estado de calamidade pública. Contudo, por não haver diferença significativa entre as expressões apresentadas, optou-se por manter a expressão mais comumente utilizada em livros e artigos científicos brasileiros, qual seja: desastre. Neste sentido, cf.: SANTOS, op. cit., KOBIYAMA, Masato et al. Prevenção de desastres naturais: conceitos básicos. Curitiba: Organic Trading, 2006. CARVALHO, op. cit., 2013., etc. Observe-se, ainda, que o Brasil classificava os desastres segundo a Codificação de Desastres, Ameaças e Riscos (denominada CODAR), a qual foi posteriormente substituída pela Codificação Brasileira de Desastres (COBRADE). Assim, conclui-se que a expressão “desastre” é a que sedimentou-se dentro do contexto jurídico brasileiro. 70 36 define catástrofe como um acontecimento de pequena probabilidade de ocorrência, mas que, uma vez materializado, provoca danos tão significativos e súbitos que rompem com o fluxo de eventos precedentes.72 E, para outros: [...] calamidade é considerada um desastre coletivo que aflige todo um país, toda uma população. A tragédia, por sua vez, é definida como um evento funesto, terrível. Hecatombe significa massacre, morte de seres humanos. Catástrofe é definida como um evento desastroso, calamitoso, doloroso, que importa em prejuízo. Desastre, por fim, significa evento funesto, calamidade, 73 catástrofe. (MATTEDI apud FRANK; SEVEGNANI, 2009, p. 14). Nesta linha, a palavra “calamidade” pode ser conceituada como um “infortúnio público”, que pode ter como causa seja fato da natureza – como, por exemplo, inundação, seca prolongada ou peste, entre outros – seja em decorrência de ato do ser humano – tal qual a guerra – impossibilitando o funcionamento normal dos serviços ou, ainda, colocando em risco a vida humana.74 Já o termo “desastre” é entendido como uma séria ruptura do funcionamento de uma comunidade ou sociedade, ocasionando perdas humanas, materiais, econômicas e ambientais expressivas (widespread) que excedem a capacidade daquela comunidade ou sociedade em mitigar ou conter os danos causados (to cope) com a utilização dos próprios recursos.75 Aliás, característica comumente relacionada ao conceito de desastre refere-se à dimensão dos prejuízos causados em relação ao local atingido. Assim, o desastre natural estaria relacionado à impossibilidade de resposta por parte da comunidade local, sem auxílio externo. Desse modo, haveria uma grave perturbação do funcionamento de uma comunidade ou uma sociedade humana, causando danos generalizados ou prejuízos ambientais, que excedem sua capacidade de resposta, por meio de recursos próprios.76 Assim, os desastres são o resultado de eventos (naturais ou 72 POSNER, Richard. A. Catastrophe: risk and response. New York: Oxsford University Press: 2004. p. 6 73 SCHENKEL,op. cit., 2010. p. 48. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 92. 75 ISDR. International Strategy for Disaster Reduction. Living with risk: a global review of disaster reduction initiatives. Genebra: 2004. p. 32. Disponível em: <http://www.unisdr.org>. Acesso em: 13 ago.2012. 76 HUMAN RIGHTS AND NATURAL DISASTERS. Operational Guidelines and Field Manual on Human Rights Protection in Situations of Natural Disaster p. 24 Disponível em: http://www.refworld.org/pdfid/49a2b8f72.pdf.> Acesso em: 10 dez. .2013. 74 37 provocados pela humanidade) que atingem determinado ecossistema de forma adversa, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais. Logo, o desastre constitui-se como um evento que acarreta uma interrupção grave das funções de uma sociedade, causando perdas humanas, materiais e/ou ambientais significativas, excedendo a capacidade da sociedade afetada para se recuperar sem auxílio de outro ente. Interessante observar que, em países latinos, o termo “desastre” costuma ser substituído por “infortúnio” ou “calamidade”, parecendo inserir no conceito de desastre o elemento “sofrimento humano”. Tanto é assim que os desastres acabam sendo classificados segundo o número de mortos, afetados, desabrigados, feridos e outros critérios.77 O conceito de desastre, adotado pelo Escritório das Nações Unidas para a redução do Risco de Desastres - UNISDR78 - é o de que este constitui-se como um fenômeno natural que pode causar morte, lesões ou outros impactos à saúde, bem como danos materiais, transtornos sociais e econômicos ou danos ambientais. Assim, os desastres constituem-se como uma séria perturbação do funcionamento de uma comunidade ou sociedade, causando perdas humanas generalizadas e que excedem a capacidade de reação por meio de recursos próprios.79 Do conceito apresentado, observa-se que os desastres são eventos que causam grandes problemas para uma determinada localidade, envolvendo extensivas perdas e danos humanos, materiais, econômicos ou ambientais. Logo, originam-se da combinação de vários fatores, quais sejam: vulnerabilidade, capacidades, ameaças e riscos. Tais fatores trazem consequências dentro da órbita do direito, tornando-se necessária uma reflexão acerca das ações que podem ser tomadas em sede de prevenção e recuperação, bem como eventual responsabilização em face da ocorrência de eventos dessa natureza. 77 WIJKMAN, Andres; Lloyd Timberlake. Desastres naturales? Fuerza mayor u obra Del hombre. Instituto Internacional para el Medio Ambiente y el Desarrollo: Earthscan, 1985. p. 23. 78 The United Nation Office for Disaster Risk reduction 79 International Strategy for Disaster Recuction. Terminoly on Disaster Risck Reduction, 2009, p. 9. Disponível em: <http://www.unisdr.org/files/7817_UNISDRTerminologySpanish.pdf>. Acesso em: 18 dez. 2013. 38 Do exposto, tem-se que o conceito de desastre encontra-se intimamente relacionado à ocorrência de danos de grandes proporções. Assim, a primeira constatação a que se chega é a de que não é qualquer tipo de dano que dá causa a um desastre, mas, apenas, os danos de considerável magnitude. Há, assim, peculiaridades em relação ao dano (na ótica do direito dos desastres) e que o diferenciam de outros tipos de dano. Então, pergunta-se: o que deve ser entendido como dano, dentro da ótica do direito dos desastres? No Brasil, a instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional, conceitua dano como o “resultado das perdas humanas, materiais ou ambientais infligidas às pessoas, comunidades, instituições, instalações e aos ecossistemas, como consequência de um desastre.” Sobre o tema, GOMES elenca a magnitude das perdas como um aspecto relevante para a caracterização do desastre. Contudo, a mesma autora destaca que, apesar de tal quantificação ser relativa, há critérios de lesividade80 que auxiliam na caracterização de um evento catastrófico.81 Neste aspecto, o Relatório Estatístico Anual do EM-DAT (Emergency Disaster Data Base)82 elenca alguns critérios objetivos para que haja um dano de magnitude tal que possa o mesmo ser considerando um desastre. Assim, segundo o referido Relatório, havendo 10 (dez) ou mais óbitos, 100 (cem) ou mais pessoas afetadas, ou havendo a declaração de estado de emergência ou havendo pedido de auxílio internacional estará caracterizada a ocorrência de um desastre. A caracterização (ou não) de um evento como desastre é relevante para o Direito em razão das consequências jurídicas advindas do reconhecimento da situação de desastre. Assim, consoante será visto adiante,83 a ocorrência de um desastre, com a declaração de situação de emergência, estado de calamidade, pública, estado de defesa 80 Dentre os critérios de lesividade utilizados para a caracterização de uma catástrofe, a autora destaca a necessidade da presença cumulativa de: 10 ou mais mortes humanas, mínimo de 100 pessoas atingidas. Declaração de estado de emergência, existência de pedido de ajuda externa 81 GOMES, op. cit., p. 23. 82 O EM-DAT é um Banco de Dados Internacional de Desastres que fornece uma base objetiva para avaliação de vulnerabilidade e tomada racional de decisão em situações de desastre. Os dados nele constantes podem ajudar a identificar os tipos de políticas de desastres que são mais comuns em um determinado país, além de informar, historicamente, quais desastres significativos em relação a determinadas comunidades. O EM-DAT também fornece informações relacionadas ao número de pessoas mortas, feridas ou afetadas, etc. Para maiores informações veja-se: http://www.emdat.be/ 83 Para maiores detalhes vide itens 1.3 e 3.5 39 ou estado de sítio trazem consequências na esfera jurídica, limitando direitos e autorizando realização de obras e serviços sem a realização de procedimento licitatório. Outro aspecto que merece ser mencionado refere-se à diferença entre acidente e desastre. O acidente decorre do acaso (podendo advir de um fenômeno da natureza, etc.) ou da ação imprudente, negligente ou imperita do ser humano. Nesta hipótese fala-se em ação humana culposa. Note-se que, tratando-se de ação humana dolosa não há que se falar em acidente. O acidente decorre, necessariamente, de algo imprevisto (quer por ter se originado de um fenômeno da natureza, quer por ter sido causado em razão de uma conduta humana culposa, abrangendo as hipóteses de imprudência, negligência e imperícia). A imprudência configura-se pela ação humana descuidada, ligando-se a uma conduta positiva por parte do agente. Já a negligência refere-se a uma conduta humana omissa, ou seja: o agente deixa de praticar uma conduta que era devida, e por esta razão, não impede a ocorrência de determinado dano. Por fim, tem-se a denominada imperícia, a qual se refere a condutas praticadas por pessoas com conhecimento técnico sobre o tema, mas em razão deste conhecimento ser deficitário, danos e prejuízos passam a ser causados.84 Em sede de direito dos desastres, o Ministério da Integração Nacional entende que, “os acidentes são caracterizados quando os danos e prejuízos consequentes são de pouca importância para a coletividade como um todo, já que, na visão individual das vítimas, qualquer desastre é de extrema importância e gravidade”.85 Observe-se, entretanto, que o acidente, (a depender da sua extensão) pode ser qualificado como desastre. Logo, um acidente de grandes prejuízos pode configurar um desastre. Para classificar um evento danoso como desastre, alguns fatores costumam ser utilizados pela doutrina. Os primeiros fatores a serem considerados, referem-se à intensidade do evento e suas consequências para a população. Serão eles que definirão, a priori, se se trata de um desastre e qual a sua gradação. Neste aspecto, tem-se que, no 84 Sobre responsabilidade civil, veja-se: DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995. RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2013. STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 85 Secretaria de Defesa Civil. Política Nacional de Defesa Civil. Ministério da Integração Nacional: Brasília, 2000. Disponível em <http://www.disaster-info.net/PED-Sudamerica/leyes/leyes/suramerica/ brasil/ sistemnac/Poli tica_Nacional_Defensa_ Civil.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2013. 40 Brasil, os desastres naturais mais comuns são as enchentes, a seca, a erosão e os escorregamentos ou deslizamentos de terra.86 Conforme explica FARBER, o aumento na frequência e na intensidade dos desastres naturais depende de uma complexa rede de fatores inter-relacionados. Assim, as alterações climáticas, a degradação ambiental, o crescimento populacional, a desigualdade social e econômica e política governamental (entre outros fatores) contribuem para tal aumento. Estes fatores abrangem um espectro que pode ser calibrado de acordo com o grau de controle que os governos podem exercer.87 Há, também, a possibilidade de adotar determinados parâmetros para se identificar a ocorrência de desastres. Sobre o tema, BURTON88 identifica parâmetros, que entende estar diretamente vinculados a tais desastres, tal qual identificados no quadro a seguir: Quadro 1 - Parâmetros de identificação da ocorrência de desastres Parâmetro Magnitude do evento Frequência do evento Duração do evento Extensão areal do evento Velocidade de ataque do evento Dispersão espacial do evento Espaço de ocorrência temporal do evento Grau de Ocorrência Alta Frequente Longa Ampla Rápida Baixa Rara Curta Limitada Lenta Difusa Regular Concentrada Irregular Fonte: BURTON e al. (1978) Ainda com relação a caracterização dos desastres, KOBYAMA defende que estes, normalmente, são súbitos, inesperados e com uma gravidade e magnitude capaz de produzir danos e prejuízos diversos, resultando em mortos e feridos.89 A inserção deste requisito para a ocorrência de um desastre traz uma consequência direta, qual seja: a de que um fenômeno natural extremo (tal como um terremoto ou um ciclone) não será considerado desastre caso não resulte na morte de pessoas ou em danos significativos à 86 SANTOS, op. cit., 2007. p. 10. FARBER, Daniel. A et al. Disaster law and policy. [S.l.]: Aspen Publishers, 2006, p. 207. 88 BURTON, Ian; KATES, Robert W.; WHITE, Gilbert F. The environment as hazard. New York: Oxford Univ. Press, 1978. 89 KOBIYAMA, op. cit., p. 7. 87 41 propriedade.90 Assim, uma inundação, por exemplo, só se traduzirá em um desastre quando afetar diretamente ou indiretamente o ser humano e as atividades por ele desempenhadas em um lugar e um determinado tempo, provocando danos materiais e/ou humanos e vitimando pessoas.91 Traçadas as linhas caracterizadoras dos desastres, quais sejam: sua frequência e intensidade (magnitude) do evento, faz-se necessário analisar as diversas espécies de desastres, segundo o critério de classificação a ser utilizado. Dentro deste contexto, os desastres podem ser classificados segundo: a) sua origem ou causa; b) sua forma e evolução ou c) sua intensidade e resultados deles decorrentes. A primeira espécie de classificação a ser analisada (e que se constitui como a classificação comumente adotada pela Defesa Civil) refere-se à origem ou causa do desastre. Isso porque, com relação à origem, observa-se que os desastres podem advir da ação da natureza, da ação do ser humano, ou da ação de ambos, conjuntamente. Passase, assim, a falar-se em desastres naturais, humanos e mistos.92 Assim, o primeiro tipo de desastre em relação à origem são os naturais, causados por fenômenos e desequilíbrios da natureza, sem a intervenção humana. São desastres decorrentes “de fenômenos naturais, atribuíveis ao exterior do sistema social”. 93 Na literatura internacional,94 encontra-se conceito semelhante, no sentido de que um desastre natural é um ato da natureza de tal magnitude que dá origem a uma situação catastrófica que desorganiza a vida cotidiana dos cidadãos, deixando-os ao desamparo. Neste sentido, a conceituação adotada pela UNISDR (2009) considera desastre como uma grave perturbação do funcionamento de uma comunidade ou de uma sociedade envolvendo perdas humanas, materiais, econômicas ou ambientais de grande extensão, cujos impactos excedem a capacidade da comunidade ou da sociedade afetada de arcar 90 WIJKMAN, op. cit., p. 23. MASKREY, Andrew. Los desastres no sonnaturales. Colombia: LA RED: Red de Estudios Sociales em Prevención de Desastres en América Latina. ITDG: Intermediate Technology Development Group, 1993. p. 8-9. 92 A COBRADE – a qual substituiu a CODAR – não faz menção à categoria de desastres “mistos”, classificando os desastres em apenas duas categorias, quais sejam: naturais e tecnológicos 93 CARVALHO, op. cit., 2013. p. 15. 94 LAVIEILLE, op. cit., p. 95-7. 91 42 com seus próprios recursos.95 Um desastre natural é um importante evento adverso resultante de processos naturais da Terra; exemplos incluem inundações, erupções vulcânicas, terremotos, tsunamis e outros processos geológicos. Um desastre natural pode causar perda de vida ou danos à propriedade, e, normalmente, traz danos econômicos na sua esteira, cuja gravidade depende da população afetada e sua resiliência, ou capacidade de recuperação.96 Segundo BRAGA, a palavra desastre origina-se da expressão italiana disastro (dis + astro, "má estrela").97 Segundo a autora, o desastre refere-se a um evento marcado pela destruição, morte, dano físico e sofrimento humano que provoca alterações permanentes às sociedades humanas, ecossistemas e meio ambiente. Segundo ela, os desastres podem gerar uma série de danos às pessoas afetadas.98 Os desastres naturais são assim chamados em razão de se originarem de causas naturais relacionadas à dinâmica da Terra. Assim, os terremotos, maremotos, vulcanismos e tsunamis estariam relacionados à dinâmica interna da Terra (uma vez que se relacionam ao movimento das placas tectônicas), ao passo que as tempestades, tornados, enchentes, secas e ressacas estariam relacionados à dinâmica externa da Terra, também denominada de (dinâmica atmosférica).99 Os desastres naturais podem estar relacionados a diversas causas. CARVALHO e DAMACENA falam em desastres geofísicos, meteorológicos, hidrológicos, climatológicos e biológicos.100 A classificação e codificação brasileira de desastres COBRADE (que é o diploma normativo que, atualmente, classifica as diferentes modalidades de desastes) utiliza critérios semelhantes, classificando os desastres 95 TOMINAGA, Lídia Keiko; SANTORO, Jair; AMARAL, Rosangela do. Desastres naturais: conhecer para prevenir. São Paulo: Instituto Geológico, 2009. p 10-11. 96 BANKOFF, G.; FRERKS, G.; HILHORST, D. Mapping vulnerability: disasters, development & people. London: Earthscan, 2004. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Natural_disaster# cite_note-1>. Acesso em: 5 nov. 2013. 97 Como os desastres naturais estavam relacionados a meteoros, tempestades, chuvas, tornados, etc. a mitologia antiga entendia que, quando as estrelas se encontravam em uma ‘posição ruim’ um evento ruim poderia acontecer. 98 BRAGA, Luciana L. The importance of the concepts of disaster, catastrophe, violence, trauma and barbarism in defining posttraumatic stress disorder in clinical practice. Disponível em: <http://www. biomedcentral.com/1471-244X/8/68>. Acesso em: 5 maio 2013. 99 ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS, 16., Anais... Porto Alegre: AGB, 2010. Disponível em: http://www.agb.org.br/event download.php?id Trabalho=2377. Acesso em: 10 dez. 2013. 100 CARVALHO, Delton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 26. 43 naturais em desastres geológicos, desastres hidrológicos, desastres meteorológicos, desastres climatológicos e desastres biológicos.101 Assim, quando os desastres advém do impacto de corpos vindos do espaço, fala-se em causas de origem sideral. Do mesmo modo, os desastres naturais podem estar relacionados com fenômenos decorrentes da geodinâmica, tais como fenômenos meteorológicos, vendavais, chuvas, secas, geadas, etc. Tais desastres também podem estar relacionados à geodinâmica terrestre interna, que são aqueles relativos a fenômenos tectônicos, tais como os terremotos, tsunamis, escorregamentos de solo, dentre outros. Por fim, incluem-se entre os desastres naturais aqueles relacionados com os desequilíbrios na biocenose102, como as pragas animais e vegetais.103 O segundo tipo de desastre (em relação à sua origem) são os chamados desastres humanos ou antropogênicos, que são aqueles provocados pelas ações ou omissões relacionadas com as atividades humanas, ou seja: estão relacionados com a atuação do próprio ser humano, enquanto agente e autor. Segundo CARVALHO e DAMACENA, “os desastres antropogênicos são constituídos por desastres tecnológicos e sociopolíticos e decorrem de fatores humanos.”104 Tais desastres são subdivididos em desastres tecnológicos, sociais e biológicos. Os primeiros, decorrendo uso de tecnologias, destacando-se os relacionados aos meios de transporte, produtos perigosos, explosões, etc. Já os segundos são consequência de desequilíbrios socioeconômicos e políticos, tais como o desemprego, a marginalização social, a violência, etc. Por fim, os biológicos são aqueles que decorrem de epidemias, tais como: malária, cólera, sarampo, dengue, etc. 101 A classificação e codificação brasileira de desastres – COBRADE foi instituída por meio da Instrução Normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012 e elaborada a partir da classificação utilizada pelo Banco de Dados Internacional de Desastres (EM-DAT). 102 A biocenose é uma expressão similar à biota ou comunidade biológica. Trata-se termo criado para ressaltar a relação de vida em comum dos seres que habitam determinada região, ou, em outras palavras, refere-se ao conjunto de populações de vegetais e animais existentes em uma determinada área, convivendo num espaço comum e mantendo diversos graus de relacionamento entre si 103 LOPES, Daniela da Cunha et al. Construindo comunidades mais seguras: preparando para a ação cidadã em defesa civil. Florianópolis: UFSC/CEPED; [Brasília]: Secretaria Nacional de Defesa Civil, 2009. p. 34. Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=10434373ebdb-412d-8743-50a2fcc1441a&groupId=66920>. Acesso em: 03 dez. 2012. 104 CARVALHO, op. cit., 2013. p. 26. 44 A terceira espécie de classificação de desastres em relação sua origem ou causa refere-se aos desastres mistos, que são aqueles decorrentes da soma de fenômenos naturais com atividades humanas. Assim, a redução da camada de ozônio, o efeito estufa e a desertificação e salinização do solo são exemplos de desastres mistos, eis que, não obstante se constituam como fenômenos naturais, sua ocorrência possui íntima relação com a ação humana sobre o meio ambiente.105 Dessa forma, quando a ação ou omissão humana contribui para a ocorrência de um desastre natural, fala-se em desastre misto, que é aquele decorrente de uma sinergia de fatores naturais e antropogênicos”.106 Cite-se como agravantes humanas: a emissão de gases nocivos, que produzem chuvas ácidas; a retirada de mata ciliar e o assoreamento dos rios e a impermeabilização do solo, que contribuem para a ocorrência de inundações; e a ocupação desordenada sem áreas de riscos e encostas íngremes, que contribuem para a ocorrência de deslizamentos. Observe-se que, neste tipo de desastre, as ações e/ou omissões humanas contribuem para intensificar, complicar ou agravar os desastres naturais. Do mesmo modo, tais desastres são caracterizados quando a degradação ambiental praticada pela sociedade, cria condições para que fenômenos adversos naturais ocorram, provocando os desastres.107 Em termos normativos, tem-se que a CODAR (Codificação de Desastres, Ameaças e Riscos) fazia referência a estes três tipos de desastres: naturais, mistos e antropogênicos. Contudo, tal codificação foi substituída pela COBRADE, que, seguindo os padrões internacionais, estabelecidos pela ONU, classificou os desastres em apenas duas categorias, a saber: desastres naturais e desastres tecnológicos. Assim, os desastres hidrológicos (não obstante a possibilidade da ação humana contribuir significativamente para a ocorrência ou potencialização das consequências danosas) são atualmente classificados como desastres “naturais”.108 105 Esta espécie de desastre natural não foi adotada pela COBRADE – Codificação brasileira de desastres – que é a norma que atualmente regulamenta a classificação dos desastres naturais no Brasil. 106 CARVALHO, op. cit., 2013. p. 27. 107 VENDRUSCOLO, Simone. Interfaces entre a Política Nacional de Recursos Hídricos e a Política Nacional de Defesa Civil, com relação aos desastres hidrológicos. Dissertação (Pós-graduação) Engenharia Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. p. 18. 108 Assim, consoante já informado, optou-se, na presente tese por incluir a expressão “naturais” entre aspas, de modo a destacar que, apesar da sua classificação jurídica, é possível afirmar-se que, não raras vezes, a atuação do ser humano acaba contribuindo para a ocorrência de desastres dessa espécie. 45 Com relação à expressão “desastres naturais”, FARBER critica tal nomenclatura, na medida em que, para ele, quase todos os desastres apresentam alguma contribuição humana, por ação ou omissão. Assim, raros seriam os desastres genuinamente naturais.109 No mesmo sentido, GOMES assevera que raramente uma catástrofe natural origina-se, exclusivamente, de uma causa natural. Para ela a ação humana – por meio da não realização de ações preventivas, ou em razão da ineficiência de eventual plano de mitigação de efeitos – acaba potencializando os efeitos desse fenômeno. Desse modo, tem-se existir diversas causas que podem contribuir para a ocorrência de um desastre110 Logo, não obstante seja comum a utilização da expressão “desastre natural,” é necessário ter-se em mente a existência de ações humanas que contribuem ou intensificam os efeitos de tais desastres.111 Ainda com relação às causas dos desastres, pode-se falar em causas próximas e causas remotas. As causas próximas seriam aquelas direta e imediatamente relacionadas ao desastre. São as causas normalmente mencionadas nos noticiários sobre desastres em áreas urbanas. São manchetes do tipo “excesso de chuvas provoca enchente”, “chuvas causam deslizamentos”, “morro desaba em razão de chuvas e soterra casas”, etc. Nesta perspectiva, as chuvas seriam as causas imediatas (ou próximas) do desastre. Já as denominadas causas remotas são aquelas relacionadas às mudanças climáticas ocorridas nas últimas décadas e que vêm a causar desastres, tais como enchentes, inundações, desabamentos, etc. A segunda espécie de classificação de desastres é aquela que se baseia na evolução dos mesmos. Neste aspecto, os desastres podem ser classificados em súbitos, graduais e de somação de efeitos parciais. Segundo CASTRO,112 os desastres súbitos seriam aqueles caracterizados pela rápida velocidade com que o processo evolui. Já os desastres graduais seriam aqueles cuja evolução ocorre em etapas, ou seja: há um agravamento gradual e progressivo da situação vivenciada. É o caso das inundações graduais e das secas. Por fim, fala-se em “somação de efeitos parciais”, que se 109 FARBER, op. cit., 2006. p. 9. GOMES, op. cit., 2012. p. 17-18. 111 VERGANI, op. cit., p. 74. 112 CASTRO, op. cit., 1999. 110 46 caracteriza pela ocorrência de numerosos acidentes semelhantes, cujos impactos, quando somados, definem um desastre de grande proporção. Há, ainda, uma classificação dos desastres segundo a intensidade e os resultados que produzem. Nesta ótica, passa-se a falar em “graus” de desastres, os quais, dada sua relevância, serão objeto de análise no item abaixo. 1.3 “GRAUS” DE DESASTRES E SUAS CONSEQUÊNCIAS Uma das principais consequências decorrentes da globalização e do progresso tecnológico refere-se ao aumento dos riscos a que a população encontra-se sujeita.113 Esses riscos podem resultar danos de tal magnitude que poderão configurar um desastre. Segundo a Defesa Civil, os desastres podem ser classificados em quatro níveis (ou graus) de intensidade, mensurados com base em diversos fatores, tais como a magnitude do evento e a vulnerabilidade da comunidade afetada pelo referido evento. Observe-se que, no Brasil, a ocorrência e a intensidade dos desastres naturais dependem mais do grau de vulnerabilidade das comunidades afetadas do que da magnitude dos eventos adversos por elas enfrentadas, sendo certo que os desastres naturais mais frequentes são os decorrentes de inundações, alagamentos, enxurradas, deslizamentos, estiagens, secas e vendavais.114 No que se referente às enchentes e inundações, tem-se que o residir em áreas ambientalmente vulneráveis, em encostas, às margens de rios e córregos traduz-se em uma situação típica de locais com um crescimento desordenado e insustentável, que acaba aumentando o risco de desastres nestes locais115 Com relação à vulnerabilidade das comunidades, constata-se que esta encontrase intimamente associada ao seu grau de exposição aos riscos. Grosso modo, a vulnerabilidade constitui-se como a relação existente entre a magnitude da ameaça, caso 113 GIDDENS, op. cit., 2009. p. 276-7 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos. Plano plurianual 2012-2015. Brasília: MP, 2011. p. 211. 115 SANTA CATARINA, op. cit., 2012, p. 12. Disponível em: http://www.ceped.ufsc.br/sites/default/files/projetos/final_pcrd.pdf. Acesso em: 11 nov. 2013. 114 47 ela se concretize, e a intensidade do dano consequente.116 Assim, a depender do grau do desastre, podem surgir diversas situações. Entre elas ganham destaque no âmbito jurídico a situação de emergência, o estado de calamidade pública, o Estado de Defesa e o Estado de Sítio.117 Assim, em relação à intensidade, os desastres podem ser classificados em diferentes graus, a saber: Desastre de Nível I: faz referência aos acidentes de pequenas proporções com danos pouco importantes e prejuízos menores, superáveis pela comunidade atingida. Aqui, a situação de normalidade é restabelecida sem grandes dificuldades com os recursos do próprio Município.118 De início, registre-se que apesar de se denominar “desastre nível I” não se trata, a rigor, de um desastre, eis que lhe falta o requisito da magnitude, o qual o diferencia e lhe dá concretude. Aliás, consoante se observará ao longo desta tese, o desastre de nível II também não constitui, em regra, desastre para fins de obtenção de auxílios externos. Observe-se que o “desastre nível I” não caracteriza situação anormal, sendo facilmente suportado e superável pela comunidade, sendo certo que os danos e prejuízos causados são facilmente suportáveis e superáveis, além de serem de pequena relevância. Logo, sob a ótica do direito dos desastres, os acidentes são caracterizados pela ocorrência de danos e prejuízos de pequena importância para a coletividade como um todo.119 TOMINAGA menciona a utilização de um critério econômico para classificar os desastres em relação a sua intensidade. Para ela, os desastres de nível I seriam aqueles cujo prejuízo econômico é inferior a 5% (cinco por cento) do PIB municipal. 120 Desse 116 DÓRIA, Luiz Carlos Rodrigues. Problemática de defesa civil: abordagem preliminar. Brasília: Secretaria de defesa civil, 1994. p. 88. 117 Sobre situação de emergência, estado de calamidade, estado de defesa e estado de sitio cf. infra itens 1.3.1, 1.3.2 e 1.3.3, respectivamente. 118 BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de defesa Civil. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres. Comunicação de Riscos e de Desastres. Curso a distância. Florianópolis: CEPED, 2010. p. 28. Disponível em: <http://www.ceped.ufsc.br/sites/default/files/projetos/ pr_-_156_-_ead_comunicacao_-_livrotexto_final_ 101126.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013. 119 Ministério da Integração Nacional. Secretaria de Defesa Civil. Política Nacional de Defesa Civil: Brasília, 2000. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/PED-Sudamerica/leyes/leyes/suramerica/ brasil/sistemnac /Politica_Nacional_Defensa_Civil.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2013. 120 TOMINAGA, op. cit., 2009. p. 15. 48 modo, o desastre de nível I - por se traduzir em acidentes de pequenas proporções com danos pouco importantes e prejuízos menores, superáveis pela comunidade atingida não chega a gerar estado de crise, uma vez que a normalidade é restabelecida sem grandes dificuldades com os recursos do próprio Município. São, em resumo, situações nas quais há danos de pequena intensidade. O segundo nível de desastre descrito pelos órgãos de Defesa Civil, encontra-se assim conceituado: Desastre de Nível II: diz respeito aos acidentes de proporções medianas com danos de alguma importância e prejuízos significativos, mas superáveis por comunidades bem preparadas.121 Nesse tipo, a situação de normalidade é restabelecida com recursos locais a partir de uma mobilização especial. Os danos possuem considerável importância e observa-se a ocorrência de prejuízos significativos. São também chamados de médio porte, caracterizando-se pela ocorrência de danos e prejuízos que, embora importantes, podem ser recuperados com os recursos disponíveis na própria área sinistrada. 122 Tratase, em princípio, de situação anormal, mas suportável e superável pela comunidade. TOMINAGA explica que esse tipo de desastre causa prejuízos variáveis entre 5% e 10% do PIB municipal.123 Na hipótese de agravamento da situação, em razão da ocorrência de um desastre secundário, despreparo da administração local ou havendo um grau de vulnerabilidade do cenário haverá a caracterização de estado de emergência. Para a caracterização de situação de emergência ou de estado de calamidade pública foram estabelecidos alguns critérios objetivos para tal aferição. Assim, passa-se a falar em critérios preponderantes e critérios agravantes.124 Os primeiros são aqueles relacionados com a intensidade dos desastres, bem como fazendo-se a devida comparação entre a necessidade e a 121 BRASIL. Curso... op. cit., 2013. Ministério da Integração Nacional. Secretaria de Defesa Civil. Política Nacional de Defesa Civil: Brasília, 2000. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/PED-Sudamerica/leyes/leyes/suramerica/ brasil/sistemnac /Politica_Nacional_Defensa_Civil.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2013. 123 TOMINAGA, op. cit., 2009. p. 15. 124 BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Manual para a decretação de situação de emergência ou de estado de calamidade pública. Brasília, 2007. v. 2. p. 13. 122 49 disponibilidade de recursos para o restabelecimento da situação de normalidade. Nesta categoria incluem-se os danos humanos, materiais e ambientais, bem como os prejuízos econômicos e sociais. Há, também, os denominados critérios agravantes, que são aqueles relacionados ao padrão evolutivo dos desastres, à ocorrência de desastres secundários, ao nível de preparação e de eficiência da Defesa Civil local, e ao grau de vulnerabilidade do cenário do desastre e da comunidade local. Do exposto, tem-se que o desastre de nível II, em princípio, não dá azo à decretação da situação de emergência, eis que, apesar de traduzir-se em acidentes de proporções medianas, com danos de alguma importância e prejuízos significativos, podem ser superáveis por comunidades bem preparadas. Assim, apenas na hipótese da comunidade não possuir condições para superar tal situação com recursos próprios será possível a decretação da situação de emergência. O terceiro nível, por sua vez, é assim definido: Desastre de Nível III: neste nível os acidentes são de grandes proporções e os prejuízos são enormes. Para restabelecer a situação de normalidade, são utilizados recursos locais, reforçados por aportes estaduais e federais existentes no SINDEC. Este tipo de desastre caracteriza a ocorrência de situação de emergência. Os danos causados são importantes e os prejuízos vultosos. Pode ser suportável e superável, desde que a comunidade esteja preparada. Este nível de desastre compreende prejuízos entre 10% e 30% do PIB municipal.125 É possível, que a situação enfrentada pela comunidade se agrave em razão da ocorrência de desastres secundários, ou em razão do despreparo da administração local, ou, ainda, em razão do grau de vulnerabilidade do cenário ou do padrão evolutivo do desastre. Nestas hipóteses de agravamento dar-se-á origem ao estado de calamidade pública. 125 TOMINAGA, op. cit., 2009. p. 15. 50 Desastre de Nível IV: envolve acidente de proporções bastante graves com danos e prejuízos muito grandes, sem condições de serem superados sem ajuda de fora do Município atingido.126 Quando o desastre é dessa intensidade a situação só voltará a se normalizar, se houver uma ação articulada dos três níveis do SINDEC e eventual ajuda dos organismos internacionais. Tem-se aqui a caracterização do estado de calamidade pública, eis que os danos, bem como os prejuízos são vultosos, não sendo possível a sua superação sem ajuda externa. Nestas hipóteses os prejuízos costumam ser superiores a 30% do PIB municipal.127 A ocorrência de critérios agravantes pode dar ensejo à ocorrência de Estado de Defesa ou Estado de sítio, previstos nos artigos 136 e 137 da Constituição Federal, respectivamente. Assim, conforme se pode observar, os chamados “desastres de nível I” e, em princípio, os “desastres de nível II” podem ser superados pela comunidade local e pelo Município, não havendo necessidade de auxílio externo. Já nas hipóteses de agravamento desta situação, ou nas hipóteses de desastres de nível III e IV, haverá a necessidade de auxílio externo. Nestes casos haverá o surgimento da situação de emergência, estado de calamidade pública, estado de defesa ou estado de sítio, consoante será analisado a seguir: 1.3.1 Situação de emergência Tanto a situação de emergência quanto o estado de calamidade pública constituem-se como situações anormais, provocadas por desastres e que causam danos e prejuízos. Porém, apesar de possuírem características comuns, ambos não se confundem, diferenciando-se em função da dimensão dos danos provocados. 126 CEARÁ. Coordenadoria Estadual de Defesa Civil. Apostila de defesa civil para prevenção de riscos de desastres. Fortaleza: CEDEC, 2011. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/119778370/Acoes-deDefesa-Civil>. Acesso em: 11 nov. 2013. 127 TOMINAGA, op. cit., 2009. p. 15. 51 Segundo dispõe o decreto nº 7.257, a situação de emergência é uma situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder Público do ente atingido. Já na hipótese de Estado de calamidade pública existe um comprometimento substancial da capacidade de resposta do Poder Público do ente atingido. Nesta perspectiva, a situação de emergência constitui-se como uma situação anormal, provocada por desastres, mas com comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder Público.128 No mesmo sentido, a instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional, conceitua a situação de emergência como sendo uma “situação de alteração intensa e grave das condições de normalidade em um determinado Município, estado ou região, decretada em razão de desastre, comprometendo parcialmente sua capacidade de resposta”. Assim, conforme mencionado, para a caracterização da situação de emergência ou de estado de calamidade pública, faz-se necessário analisar os fatores preponderantes e os fatores agravantes. Os critérios preponderantes estão relacionados com a intensidade dos danos (humanos, materiais e ambientais) e a ponderação dos prejuízos (sociais e econômicos).129 Já os fatores agravantes são aqueles relacionados à ocorrência de desastres secundários, ao despreparo da administração local, ao grau de vulnerabilidade do cenário e da comunidade e ao padrão evolutivo do desastre. Importante observar que a declaração do estado de emergência costuma ser caracterizada como um dos fatores que permitem atribuir a um evento danoso a condição de desastre.130 Procurando estabelecer critérios mais objetivos em relação às hipóteses ensejadoras da caracterização de situação de emergência, a referida instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, explicitou que havendo, pelo menos, dois dos danos abaixo descritos (e que, no seu conjunto, importem em prejuízo econômico) e que, 128 CARVALHO, op. cit., 2012. p. 84. MINAS GERAIS. Coordenadoria Estadual de Defesa Civil. Critério par a decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública. Disponível em: http://www.defesacivil.mg.gov.br/ conteudo/arquivos/cce/criterios_decretacao.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2013. 130 CARVALHO, op. cit., 2013. p. 28. 129 52 comprovadamente, afetem a capacidade do Poder Público local de responder e gerenciar a crise instalada, estará caracterizada a situação de emergência. Com relação aos danos, a referida instrução elenca: a) danos humanos (de um a nove mortos ou até noventa e nove pessoas afetadas); b) danos materiais (de uma a nove instalações públicas de saúde, ensino ou prestadoras de outros serviços danificadas ou destruídas; ou de uma a nove unidades habitacionais danificadas ou destruídas; ou de uma a nove obras de infraestrutura danificadas ou destruídas; ou de uma a nove instalações públicas de uso comunitário danificadas ou destruídas); e c) danos ambientais.131 Esclareça-se, ainda, que a decretação de situação de emergência pressupõe a existência de tal situação anormal e é recomendada em duas hipóteses: A primeira hipótese ocorrerá quando o atendimento da situação anormal exigir que os procedimentos administrativos sejam simplificados e agilizados, para evitar prejuízos e o comprometimento da segurança de pessoas, obras, serviços e outros bens públicos e particulares. Tal simplificação resultará na dispensa de licitação de obras e serviços, nos termos do inciso IV do art. 24 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993. Já a segunda hipótese pressupõe a existência de recursos financeiros destinados às atividades de resposta aos desastres, os quais deverão estar previstos e disponíveis no orçamento. Nesta hipótese, os recursos financeiros poderão ser utilizados ou transferidos mediante convênio, sem que seja necessária a decretação de estado de calamidade pública. Assim, havendo o comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder Público do ente atingido estará caracterizada a ocorrência de situação de emergência; caso haja o comprometimento substancial dessa capacidade de resposta surgirá o denominado Estado de Calamidade Pública. 131 Os danos ambientais mencionados na referida instrução normativa abrangem: I - poluição ou contaminação, recuperável em curto prazo, do ar, da água ou do solo, prejudicando a saúde e o abastecimento de 10% a 20% (dez a vinte por cento) da população de municípios com até dez mil habitantes e de 5% a 10% (cinco a dez por cento) da população de municípios com mais dez mil habitantes; II - Diminuição ou exaurimento sazonal e temporário da água, prejudicando o abastecimento de 10% a 20% (dez a vinte por cento) da população de municípios com até 10.000 (dez mil) habitantes e de 5% a 10% (cinco a dez por cento) da população de municípios com mais de 10.000 (dez mil) habitantes; III - Destruição de até 40% (quarenta por cento) de Parques, Áreas de Proteção Ambiental e Áreas de Preservação Permanente Nacionais, Estaduais ou Municipais 53 1.3.2 Estado de calamidade pública O Estado de calamidade pública constitui-se como situação anormal provocada por desastres que causa danos e prejuízos que comprometam substancialmente a capacidade de resposta do Poder Público do ente atingido.132 Caracteriza-se, portanto, pelo comprometimento substancial dessa capacidade de resposta do ente público. Assim, há, no estado de calamidade pública, o reconhecimento pelo Poder Público de situação anormal, provocada por desastres, causando sérios danos à comunidade afetada, inclusive à incolumidade ou à vida de seus integrantes.133 Logo, apesar de estarem diretamente relacionados, a situação de emergência e o estado de calamidade não se confundem, diferenciando-se em função da gravidade do dano sofrido, e, consequentemente, em razão da capacidade do ente lesado retornar ao status anterior. O termo calamidade pública foi utilizado pela primeira na Constituição Federal de 1891, a qual estabeleceu, em seu art. 5º, que incube a cada Estado prover, a expensas próprias, as necessidades de seu governo e administração, sendo certo que a União prestará socorro ao Estado que, em caso de calamidade pública, o solicitar. Assim, temse que, inicialmente, as competências administrativas relativas a situações de calamidade pública eram de incumbência dos Estados. A declaração de estado de calamidade pública, em função das necessidades de recursos, só se justifica quando presentes as seguintes condições: 1) a necessidade de recursos suplementares é muito grande; 2) grande parte desses recursos suplementares não se encontra imediatamente disponível nos escalões mais elevados do SINDEC; 3) não foram previstos nos orçamentos do Município, do Estado e da União recursos financeiros suficientes para as despesas previstas para o restabelecimento da situação de normalidade; 4) existem recursos financeiros disponíveis no FUNCAP ou, em última hipótese, é necessário que o Presidente da República encaminhe ao Congresso Nacional medida provisória, provendo recursos extraordinários. 132 133 CARVALHO, op. cit., 2013. p. 84. Decreto nº 5.376, de 17 de fevereiro de 2005 54 A instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional, utiliza uma classificação diferente, dividindo os desastres em dois níveis, quais sejam: desastres de nível I (desastres de média intensidade);134 e desastres de nível II (desastres de grande intensidade).135 Segundo a referida instrução normativa, a classificação quanto à intensidade obedece a critérios baseados na relação entre I - a necessidade de recursos para o restabelecimento da situação de normalidade; e II - a disponibilidade desses recursos na área afetada pelo desastre e nos diferentes níveis do SINDEC. Pela forma como os temas foram tratados pela referida portaria, observa-se que esta procurou tratar apenas das situações em que, efetivamente, há danos de considerável magnitude, não sendo possível ao Município afetado superar as dificuldades sem auxílio externo. A mesma instrução normativa esclarece que os desastres de nível I ensejam a decretação de situação de emergência, enquanto os desastres de nível II a de estado de calamidade pública. Esta classificação é importante pois é ela que determina quando haverá a necessidade de apoio externo a uma determinada comunidade ou local, estando diretamente relacionada à declaração de situação de emergência ou de estado de calamidade pública. Deste modo, tem-se que o estado de calamidade pública configura-se como uma “situação de alteração intensa e grave das condições de normalidade em um determinado Município, estado ou região, decretada em razão de desastre, comprometendo substancialmente sua capacidade de resposta”136 Por fim, destaque-se que, no que se refere ao apoio da União em relação a Estados, Distrito Federal e Municípios que se encontrem em situação de emergência ou estado de calamidade pública, este se dará de forma complementar, por meio dos mecanismos previstos na Lei 12.340/2010. Frise-se, ainda, que tal apoio será prestado 134 § 2º - São desastres de nível I aqueles em que os danos e prejuízos são suportáveis e superáveis pelos governos locais e a situação de normalidade pode ser restabelecida com os recursos mobilizados em nível local ou complementados com o aporte de recursos estaduais e federais; 135 § 3º - São desastres de nível II aqueles em que os danos e prejuízos não são superáveis e suportáveis pelos governos locais, mesmo quando bem preparados, e o restabelecimento da situação de normalidade depende da mobilização e da ação coordenada das três esferas de atuação do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e, em alguns casos, de ajuda internacional. 136 Instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional 55 aos entes cuja situação de emergência ou estado de calamidade pública tenham sido reconhecidas pelo Poder Executivo federal, após requerimento do Poder Executivo (estadual, distrital ou municipal) afetado pelo desastre.137 Assim, estabeleceu-se que o auxílio da União possui caráter meramente complementar, restringindo-se às hipóteses nas quais o ente afetado não tenha condições de superar a crise enfrentada. 1.3.3 Estado de defesa e estado de sítio As calamidades públicas de grandes proporções interferem no funcionamento das instituições políticas, administrativas e sociais, criando a necessidade da adoção de medidas extremas, com o objetivo de respeitar a ordem pública e garantir o império do Direito.138 Assim, o Estado de Defesa e o Estado de Sítio constituem-se como restrições excepcionais aos direitos fundamentais, admitidas pela Constituição Federal. São medidas excepcionais necessárias para a restauração da ordem em momentos de anormalidade, constituindo o chamado sistema constitucional das crises.139 Desse modo, a Constituição Federal de 1988 admite que, em hipóteses excepcionais e gravíssimas, haja a restrição ou a supressão temporária de direitos e garantias fundamentais. É o que se convencionou chamar de Estado de exceção, ou seja: é uma situação excepcional e oposta ao Estado de direito, na qual, em situações de emergência nacional, direitos e garantias constitucionais são suspensos a fim de se permitir a rápida proteção do Estado. Logo, o Estado de Defesa e o Estado de Sítio consistem em um conjunto de normas constitucionais que têm por objeto situações de crise e por finalidade a manutenção ou o restabelecimento da normalidade constitucional.140 Com base no estudo de Constituições de democracias modernas (tais como Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos, ROSSITER aponta quatro fatores de 137 Cf. Art. 3º da lei nº 12.340, de 1º de dezembro de 2010. ANTUNES, op. cit., 2012. p. 118-19. 139 FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Sistema constitucional das crises: restrições a direitos fundamentais. São Paulo: Método, 2012. p. 27. 140 BARILE, Paolo. Dirittidell’uomo e liberta fondamentali. Bologna: Il Molino, 1984. p. 450. 138 56 crise que podem justificar o Estado de exceção. São elas: a guerra (principalmente para repelir invasões), a rebelião, a depressão econômica, e os desastres naturais. Havendo a ocorrência de algum destes fatores surge uma situação excepcional, que autoriza o governante a adotar as medidas necessárias para que se retorne à normalidade.141 No Brasil, os fatores que autorizam o surgimento do Estado de Exceção são basicamente os mesmos, o qual pode culminar na decretação do Estado de Defesa ou do Estado de Sítio, variando conforme a situação vivenciada. O Estado de Defesa é uma modalidade mais branda de intervenção estatal (em comparação ao Estado de Sítio) e corresponde às antigas medidas de emergência do direito constitucional anterior,142 podendo ser decretado na hipótese do surgimento de grave e iminente instabilidade institucional ou da ocorrência de calamidades de grandes proporções na natureza em locais determinados. É decretado pelo Presidente da República, após a oitiva dos Conselhos da República e de Defesa Nacional e, após a decretação do estado de defesa ou de sua prorrogação, o Presidente da República deverá, dentro de vinte e quatro horas, submeter o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta, sendo certo que, rejeitado o decreto, cessará imediatamente o estado de defesa. Logo, é possível conceituar-se o Estado de Defesa constitui-se como uma situação emergencial ou de legalidade extraordinária, na qual o Presidente da República, (excepcionalmente, mas autorizado pela Constituição Federal) suspende determinadas garantias individuais asseguradas constitucionalmente, a fim de que a ordem - em conjunturas de crise institucional e nas guerras - possa ser restabelecida.143 Desse modo, o Estado de Defesa tem como objetivo preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades 141 ROSSITER, Clinton. Constitucional dictatorship: crisis government in the modern democracies. 3. ed. New Brunswick (EUA): Transaction Publishes, 2005. p. 293. 142 Neste sentido, veja-se Art 74, k da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de Novembro De 1937, in verbis: Compete privativamente ao Presidente da República... decretar o estado de emergência e o estado de guerra nos termos do art. 166. 143 COGO, Rodrigo. Medidas de exceção como instrumentos de governabilidade: breve análise da realidade constitucional brasileira. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura& artigo_id=9051>. Acesso em: 10 dez. 2013. 57 de grandes proporções na natureza. Assim, dentro dos objetivos almejados neste trabalho, tem-se que o Estado de Defesa deve ser decretado nas hipóteses de calamidades de grandes proporções na natureza, sendo certo que, nestas hipóteses, é permitida a ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes. Por fim, observe-se que o Estado de Defesa possui um limite temporal, tendo a duração máxima de trinta dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação.144 Já a decretação de Estado de Sítio deve ser solicitada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, o qual detém a competência para autorizá-lo a praticar tal ato. Igualmente, o Estado de Sítio exige a prévia oitiva dos Conselhos da República e de Defesa Nacional. O Estado de Sítio constitui-se como a mais drástica das medidas de restrição a direitos prevista no ordenamento jurídico brasileiro, razão pela qual o Estado de Sítio só pode ser decretado em situações excepcionais e em hipóteses específicas, quais sejam: comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa (art. 137, I), ou de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira (art. 137, II). É ele, sem dúvida, a última medida a ser adotada, sendo reservado para situações extremas e em hipóteses constitucionalmente previstas. Desse modo, o Estado de sítio acarreta a suspensão temporária e localizada de garantias constitucionais, demonstrando maior gravidade do que o Estado de defesa. Com relação à duração, tem-se que o estado de sítio, no caso do art. 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior; Já na hipótese do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira. Do mesmo modo, segundo dispõe a Constituição Federal, tem-se que, na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no artigo 137, I, da Constituição Federal, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: I - obrigação de permanência em localidade determinada; 144 Cf. art. 136, §2º da Constituição Federal 58 II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; IV - suspensão da liberdade de reunião; V - busca e apreensão em domicílio; VI - intervenção nas empresas de serviços públicos; VII - requisição de bens.145 Para evitar a ocorrência de abusos, a mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, designará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio. Logo que cesse o estado de defesa ou o estado de sítio, as medidas aplicadas em sua vigência serão relatadas pelo Presidente da República, em mensagem ao Congresso Nacional, com especificação e justificação das providências adotadas, com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas. Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes.146 Como se vê, tratam-se de situações excepcionais e que só deverão ser decretadas na hipótese de situações extremas, tendo em vista as limitações que tais medidas impõem aos demais direitos e garantias constitucionalmente protegidos. 1.4 DESASTRES “NATURAIS” HIDROLÓGICOS Conforme mencionado, os desastres naturais podem ser classificados em geológicos, hidrológicos, meteorológicos, climatológicos e biológicos.147 Dentre os desastres “naturais” merece destaque a categoria dos denominados desastres “naturais” hidrológicos, os quais constituem-se como a espécie a ser analisada de forma detalhada na presente tese. Tal escolha deve-se ao fato de que, considerando as interações do ser humano com o meio ambiente e as violações relacionadas aos direitos 145 Art. 139 da CF Art. 141 da CF 147 Para classificação completa vide BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Anuário brasileiro de desastres naturais: 2011. Brasília: CENAD, 2012. p. 72-8. 146 59 fundamentais, os desastres hidrológicos são os desastres de maior ocorrência. Segundo dados constantes na base de dados do Centro de Pesquisa em Epidemiologia e Desastres da Universidade Católica de Louvain, tem-se que - em termos mundiais - as inundações representam 50% dos desastres “naturais” relacionados à agua ocorridos no mundo nas últimas décadas. Em seguida, vêm as epidemias relacionadas à água as quais são responsáveis por 28% dos desastres ocorridos no mesmo período. A seca é o terceiro tipo de desastre natural relacionada à água mais recorrente nesse período, sendo responsável por 11% dos desastres. Na quarta posição seguem os deslizamentos e avalanches, responsáveis por 9% desastres naturais relacionados à agua. Por fim, a fome (quando relacionada à água) é considerada responsável por 2% dos desastres naturais ocorridos.148 Os efeitos da mudança climática ocorridos nas últimas décadas têm se intensificado e causado danos e prejuízos para um número cada vez maior de pessoas. Assim, risco de enchentes repentinas, alterações no fluxo dos rios, tempestades e erosões são alguns dos efeitos decorrentes da elevação da temperatura, na medida em que o ar mais quente contém uma proporção mais alta de umidade e pode causar mais chuvas.149 Nos Estados Unidos, por exemplo, especialistas destacaram que o direito é completamente despreparado para lidar com desastres. Neste aspecto, é necessário pesquisas multi e interdisciplinares com o objetivo de informar e melhorar a tomada de decisões em sede de desastres.150 Tal predominância dos desastres “naturais” hidrológicos também é observada no Brasil, acrescentando-se, igualmente, sua relevância em função da quantidade de perdas humanas decorrentes de tais desastres. Neste aspecto, os desastres naturais têm causado 148 Fonte: Executive Summary of the World Water Development report. CRED (Centre of Reservarch on the Epidemiology of Disasters). International Disaster Data base. Brussels, Université Catholique de Louvain. 149 GIDDENS, op. cit., 2010. p. 206-7. 150 FARBER, Daniel, no artigo “Disaster law and emerging issues in Brazil” afirma: “Hurricane Katrina sparked interest by U.S. legal scholars in disaster law. More than any other disaster in American history, Hurricane Katrina brought into sharp relief the limitations in the law’s capacity to anticipate and respond to catastrophic events”. Texto completo: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), 4(1): 2-15 60 maiores prejuízos em áreas urbanas densamente povoadas.151 Acrescente-se, ainda, que tais desastres podem advir de uma série de fatores, tais como a vulnerabilidade ambiental, aspectos econômicos, geográficos, sociais, etc.152 Segundo estatísticas do Ministério da Defesa Civil, historicamente, os desastres hidrológicos são responsáveis mais de 50% dos desastres ocorridos, sendo certo que as inundações ou enchentes são – de longe – as com maior incidência e número de mortos.153 Em estudo realizado com base nos dados existentes em arquivo junto à Secretaria Nacional de Defesa Civil, constatou-se um constante aumento no número de desastres ocorrido nas últimas décadas. Segundo informações constantes nos bancos de dados disponibilizados pelo Ministério da Integração Nacional, ocorreram, nas últimas duas décadas, 31.909 desastres, sendo certos que 8.671 (27%) ocorreram na década de 1990 e 23.238 (73%) na década de 2000. Neste sentido, vejam-se os dados e o gráfico respectivo:154 Quadro 2 - Número de desastres ocorridos no Brasil entre 1991 e 2010 ano 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 qtde. 713 688 1.471 365 1.081 547 878 1.405 810 713 ano 2002 2003 2005 2007 2008 2010 2001 2004 2006 2009 TOTAL 8.671 qtde. 2.198 2.196 2.060 2.505 2.646 1.626 2.077 2.105 3.211 2.614 23.238 Fonte: Ministério da Integração Nacional - Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010 Com base nos dados obtidos torna-se possível visualizar o seguinte gráfico evolutivo: 151 SEGUN, Elida. A lei de defesa civil: algumas considerações. In: FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Revista de Direitos Difusos, ano 12, v. 57-8, jan./dez. 2012. p. 69. 152 SANTOS, op. cit., p. 9-12. 153 Segundo dados do Ministério da Defesa Civil, dos 2.370 municípios afetados por desastres no ano de 2011 65,44% deles o foram por desastres hidrológicos. Para maiores detalhes, cf.: BRASIL. Anuário... op. cit., 2012. 154 BRASIL. Atlas... op. cit., 2012. 61 Gráfico 1 - Evolução dos desastres ocorridos no Brasil entre 1991 e 2010 3500 3000 2500 2000 1500 1000 500 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 0 Fonte: Ministério da Integração Nacional - Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010 O gráfico elaborado demonstra uma tendência de aumento dos desastres ao longo dos anos. Do mesmo modo, comparando-se os referidos dados com o número de mortos e pessoas afetadas em relação às diversas espécies de desastres, chega-se ao seguinte quadro: Quadro 3 - Distribuição de afetados e mortos por tipo de desastre tipo de desastre (1991-2010) % de afetados % de Mortos estiagem/seca 50,34% 10,38% inundação brusca e alagamento 29,56% 43,19% inundação gradual 10,36% 18,63% vendaval/ciclone 4,23% 6,30% movimento de massa 2,08% 20,40% granizo 1,31% 0,65% erosão (linear, marítima e fluvial) 1,83% 0,24% geada 0,12% 0,00% incêndio florestal 0,06% 0,00% tornado 0,06% 0,20% diversos 0,05% 0,01% 62 Total 100% 100% Fonte: Ministério da Integração Nacional - Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010 O quadro colacionado demonstra que não obstante a estiagem/seca seja o tipo de desastre mais comum no Brasil, os desastres hidrológicos são os responsáveis pela maioria das mortes decorrentes de desastres. Antes, porém, de se analisar os desastres hidrológicos em espécie faz-se necessário destacar que, não obstante a íntima relação existente entre os eventos hidrológicos e os deslizamentos, tem-se que estes são considerados desastres naturais geológicos, estando, portanto, fora do objeto de análise da presente tese. O mesmo se diga em relação às secas, as quais são classificadas como desastres climáticos. De qualquer modo, em que pese a classificação adotada pela Defesa Civil nacional, tona-se oportuno tecer alguns comentários acerca dos deslizamentos. Tais desastres constituem-se como processos decorrentes do movimento do solo em decorrência da ação direta da gravidade e que acabam deslocando rochas, vegetações e outros materiais. Segundo a metodologia utilizada pela Defesa Civil existem quatro tipos principais de deslizamentos de terra (também chamados de movimento de massa). São eles: os rastejos (que são movimentos lentos, cujo deslocamento é de poucos centímetros ao ano); os escorregamentos (também chamados de avalanches, desabamentos ou deslizamentos em sentido estrito) que são movimentos abruptos de parte das encostas em queda; as quedas ou tombamentos (que são os deslizamentos decorrentes de quedas de rochas e costumam ter como causa as chuvas, os terremotos ou erupções vulcânicas) e as corridas de massa ou movimentos de deslizamentos laterais.155 Outro aspecto relevante a este tipo de desastres refere-se ao seu considerável aumento nas últimas décadas, principalmente nos centros urbanos dos países denominados emergentes.156 Com relação ao aumento de ocorrências de desastres 155 DÓRIA, op. cit., p. 65-6. Segundo dados constantes do Atlas brasileiro de desastres 1991-2010, movimento de massa foi o tipo de desastre que teve maior aumento no período, com aumento de 21,7 vezes, em contraponto à média 156 63 relacionados à deslizamentos, tem-se que este deriva, em sua maioria, da ocupação inadequada de áreas de risco geológico potencial.157 Desse modo, tem-se que a ocupação de áreas íngremes por assentamentos precários, sem infraestrutura urbana (principalmente sistemas de drenagem), a execução de cortes e aterros instáveis (sem estruturas de contenção de taludes), os depósitos de lixo nas encostas e a fragilidade das construções, acabam potencializando o risco de deslizamentos nessas áreas, principalmente nos períodos de chuvas mais intensas e prolongadas.158 Contudo, segundo estudos realizados pela Secretaria de Planejamento e Investimentos estratégicos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, os bairros legalmente implantados também encontram-se sujeitos a desastres associados a deslizamentos, uma vez que não houve a devida incorporação (nos planos diretores, leis de uso e ocupação do solo ou ao processo de licenciamento dos novos parcelamentos urbanos) das questões atinentes às áreas de risco nos Municípios mais críticos. Assim, falta um melhor mapeamento da suscetibilidade geológica/geotécnica aos fenômenos de deslizamentos, inundações e enxurradas, bem como do mapeamento de riscos nas áreas ocupadas, da definição de diretrizes para a ocupação urbana segura e do monitoramento para reduzir a ocupação de áreas de maior fragilidade natural.159 Conforme mencionado, os movimentos de massa são classificados pela Defesa Civil como desastres geológicos. Contudo, não obstante possam decorrer de outras causas, tem-se que, em geral, os deslizamentos decorrem da infiltração das águas das chuvas que minam a resistência mecânica do solo, fazendo com que este se mova da área mais alta para a mais baixa, causando danos às populações instaladas nestas áreas. Os deslizamentos são, em geral, provocados pela erosão causada pelo movimento das águas dos rios, das massas glaciais ou das ondas oceânicas que também criam encostas geral que é de 6 vezes. Assim, das 454 ocorrências registradas no período, 4% ocorreram na década de 1990 e 96% na década de 2000, destacando-se um pico de ocorrência no ano 2010, com 131 registros 157 BRASIL. Plano... op. cit., 2011. p. 211. 158 Disponível em: http://www.integracao.gov.br/pt/resultado-da-busca1?p_auth=0yN04NuS&p_p_auth= 9AQOUz5g&p_p_id=20&p_p_lifecycle=1&p_p_state=exclusive&p_p_mode=view&p_p_col_id=colum n2&p_p_col_pos=1&p_p_col_count=2&_20_struts_action=%2Fdocument_library%2Fget_file&_20_gro upId=10157&_20_folderId=118188&_20_name=2534. Acesso em 10.08.2013 159 BRASIL. Plano... op. cit., 2011. p. 212. 64 muito inclinadas. São processos comuns em regiões montanhosas e serranas, com destaque para aqueles que possuem climas úmidos.160 Por tais razões, entendeu-se oportuno fazer menção a este tipo de desastre na presente tese. Ademais, registre-se que o aumento da ocorrência desse tipo de desastre decorre de uma série de fatores, tais como o aquecimento global, o aumento das chuvas, etc. Contudo, esses deslizamentos também são agravados em função da urbanização intensa e da construção de habitações em encostas acentuadas, alterando a paisagem urbana.161 Da análise dos dados disponibilizados pelo Ministério da Integração Nacional, depreende-se que o movimento de massas é uma espécie de desastre característica da região Sudeste, que registra mais de 82% das ocorrências identificadas como movimento de massa. Na análise dos danos humanos por região, verifica-se que 35% do total de mortes ocasionadas por todos os desastres durante as décadas de 1990 e 2000 ocorreram em função dos movimentos de massa na região Sudeste. Do mesmo modo, na região Sudeste estão também 90% dos afetados por esse tipo de desastre.162 Feitos tais esclarecimentos, passa-se a tratar dos desastres hidrológicos em espécie. A Constituição de 1967 foi a primeira a incluir em seu texto a defesa contra as inundações. Segundo estabeleceu o artigo 8º, XII da referida carta constitucional, é de competência da União “organizar a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente a seca e as inundações.” Tal redação foi mantida pela emenda constitucional de 1969. A Constituição de 1988, por sua vez, ampliou tal proteção, estabelecendo competir à União planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações. Ademais, observe-se que as secas inundações são, por expressa disposição constitucional, classificadas como 160 TOMINAGA, Lídia Keiko. Escorregamentos. In: TOMINAGA, Lídia Keiko; SANTORO, Jair; AMARAL, Rosangela do. Desastres naturais: conhecer para prevenir. São Paulo: Instituto Geológico, 2009. p. 27. 161 ROSA FILHO, Artur; CORTEZ, Ana Tereza Cáceres. A problemática socioambiental da ocupação urbana em áreas de risco de deslizamento da “Suíça Brasileira”. Revista Brasileira de Geografia Física. Disponível em: <http://www.ufpe.br/ rbgfe/index.php/ revista/article/viewFile/76/76>. Acesso em: 10 dez. 2013. 162 BRASIL. Atlas... op. cit., 2012. 65 espécies de calamidade pública. Neste aspecto, observe-se, também, que a atual Constituição determinou que a proteção permanente contra as secas e inundações deve ser priorizada pela União. Tal inclusão demonstra a importância do combate à seca e às inundações para a manutenção da vida humana. As inundações podem ser classificadas em inundações graduais e inundações bruscas. Contudo, em razão das diferentes percepções e terminologias utilizadas, há uma dificuldade em padronizar as categorias e classificá-las.163 Acrescente-se, ainda, que, além dos problemas tipicamente conceituais e etimológicos, algumas características comportamentais são similares para ambas às inundações, ou seja, ocorrem tanto nas inundações graduais como nas bruscas.164 As inundações graduais encontram-se associadas ao aumento paulatino do nível das águas em um curso d’água estabelecido (tal como um rio, um córrego, ou um canal de drenagem ou um dique). Tal aumento geralmente é previsível e o escoamento do nível das águas também costuma ocorrer gradualmente. Normalmente, as inundações graduais são cíclicas e nitidamente sazonais.165 KOBYAMA faz, ainda, menção às denominadas inundações ribeirinhas, que seriam aquelas que ocorrem quando a precipitação é intensa e o solo não tem capacidade de infiltração, fazendo com que grande parte do volume acabe escoando para o sistema de drenagem, superando sua capacidade natural de escoamento, de tal forma que o excesso de volume que não consegue ser drenado acaba ocupando a várzea e inundando áreas próximas aos rios, de acordo com a topografia.166 As inundações bruscas também são chamadas de “enxurradas”. Aliás, a COBRADE e a CODAR incluíram expressamente a categoria “enxurrada” dentre as espécies de desastres hidrológicos. Desta forma, a enxurrada pode ser conceituada como 163 KOBIYAMA, op. cit., p. 47. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/lideres/portugues/cursobrasil08/documentos_e_artigos/ Prevencao%20desastres%20naturais.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2013. 164 Ao que parece, a classificação elaborada pela COBRADE procurou restringir a categoria “inundação” para as hipóteses de inundações graduais, reservando a expressão “enxurrada” para as hipóteses de “inundação brusca” 165 GOERL, Roberto Fabris; KOBIYAMA, M. Considerações sobre as inundações no Brasil. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE RECURSOS HÍDRICOS, 16., 2005, João Pessoa. Anais... João Pessoa, 2005. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/lideres/portugues/curso-brasil08/documentos_e_ artigos/Preven cao%20 desastres%20 naturais.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013 166 Ibidem 66 o escoamento superficial concentrado e com alta energia de transporte, ou, em outras palavras: a enxurrada refere-se aos escoamentos pluviais concentrados ao longo dos cursos d’água ou em vias públicas, caracterizados pelo grande poder de acumulação das águas superficiais e alto poder destrutivo e de arraste.167 Observa-se, assim, que as enxurradas são desastres associados a escoamento superficial de alta velocidade e energia, desencadeado por chuvas intensas e concentradas.168 Deste modo, as enxurradas surgem quando a água da chuva não escorre pelas canalizações, ficando em cima das ruas. Assim, as enxurradas, também denominadas de inundações bruscas (Flash flood) costumam ser causadas por chuvas excessivas em um curto período de tempo, geralmente concentradas em regiões de relevo acidentado, caracterizando-se por súbitas e violentas elevações dos caudais, os quais escoam-se de forma rápida e intensa, afetando uma área muito limitada, durando de algumas horas a poucos dias.169Assim, as inundações repentinas ou súbitas seriam aquelas que “ocorrem como resultado de intensas chuvas em pequeno intervalo de tempo”170. As enchentes não estão elencadas na COBRADE, sendo consideradas como sinônimas às inundações. De acordo com o Glossário de Termos Relacionados à Gestão de Recursos Hídricos, elaborado pelo IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas), enchente é o transbordamento das águas do leito natural de um córrego, rio, lagoa, mar, etc., provocado pela ocorrência de vazões relativamente grandes de escoamento superficial, ocasionados comumente por chuvas intensas e contínuas. 171 De acordo com o Ministério das Cidades/IPT 2007, as enchentes ou cheias são definidas pela elevação do nível d’água no canal de drenagem devido ao aumento da vazão, atingindo a cota máxima do canal, porém, sem extravasar. Dessa forma, é possível estabelecer uma diferença entre enchente e inundação, apesar da COBRADE não ter feito essa diferenciação. Assim, caso haja a elevação do leito de um rio até a altura de suas margens, sem chegar às áreas adjacentes ter-se-á uma enchente e, a partir 167 NOBRE, Carlos A.; YOUNG, Andrea F. Vulnerabilidades das megacidades brasileiras às mudanças climáticas: região metropolitana de São Paulo. Relatório final. Campinas: Unicamp, 2011. p. 141. 168 BRASIL. Anuário... op. cit., 2012. p. 47. 169 GOERL, op. cit., 2013. 170 DÓRIA, op. cit., p. 48. 171 Disponível em: http://defesacivil.to.gov.br/enchente/. Acesso em 10.12.2013 67 do momento em que as águas transbordarem, ocorrerá uma inundação. No mesmo sentido é a opinião de CARVALHO, para quem as enchentes ou cheias correspondem à elevação do nível de água em um canal de drenagem, em decorrência do aumento da vazão ou descarga.172 Importante frisar que a inundação também pode ser provocada de forma induzida pelo ser humano, por meio da construção de barragens e pela abertura ou rompimento de comportas de represas. Assim, a enchente (chamada por alguns de “cheia") se configuraria como uma situação natural de transbordamento de água do seu leito natural, provocada geralmente por chuvas intensas e contínuas173 Como se vê, apesar de muitas vezes serem tratadas como expressões sinônimas, observa-se a existência de uma diferença conceitual entre enchentes e inundações. Assim, as primeiras referem-se a ocorrências naturais e previsíveis que, em geral não afetam diretamente a população, tendo em vista sua ciclicidade. Já as inundações são provocadas (ou agravadas) pelas modificações implementadas no uso do solo, podendo provocar danos de grandes proporções. KOBYAMA também diferencia inundação de enchente. Segundo o autor, a inundação pode ser conceituada como o aumento do nível dos rios além da sua vazão normal, ocorrendo o transbordamento de suas águas sobre as áreas próximas a ele. Quando não ocorre o transbordamento, apesar do rio ficar praticamente cheio, tem-se uma “enchente”174Assim, as cheias ou enchentes estariam relacionadas a causas naturais, ao passo que o alagamento e a inundação decorrem da ação humana. Segundo PEITER, a inundação constitui-se como um processo de extravazamento das águas do canal de drenagem para as áreas marginais (planície de inundação, várzea ou leito maior do rio) quando a enchente atinge cota acima do nível máximo da calha principal do rio), ou, ainda, quando a enchente atinge cota acima do 172 CARVALHO, Celso Santos, MACEDO Eduardo Soares de; OGURA, Agostinho Tadashi (Org.). Mapeamento de risco em encostas e margens de rios. Brasília: Instituto de Pesquisas Tecnológicas, 2007. p.90-91. 173 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Enchente>. Acesso em: 07 set. 2013. 174 KOBIYAMA, Masato et al. Prevenção de desastres naturais: conceitos básicos. Curitiba: Organic Trading, 2006. p. 45-6. 68 nível máximo da calha principal do rio.175 Assim, como se vê, a referida autora trata tais expressões como sinônimas.176 Por fim, há, ainda, segundo a classificação adotada pela COBRADE, os desastres naturais hidrológicos decorrentes de alagamento. Neste aspecto, tem-se que a expressão “alagamento”, refere-se a um acúmulo momentâneo de águas em uma dada área decorrente de deficiência no sistema de drenagem. 177 Assim, este tipo de desastre é resultado da combinação de precipitações intensas com a superação da capacidade de escoamento de sistemas de drenagem urbana, gerando acúmulo de águas em infraestruturas urbanas.178 Os alagamentos são geralmente acumulações rasas de lâminas d’água que afetam as vias públicas, causando transtornos momentâneos para a circulação de pedestres e veículos. Segundo a COBRADE, os alagamentos são definidos como uma extrapolação da capacidade de escoamento dos sistemas de drenagem urbano que acabam causando um acumula de águas em ruas, calçadas e outras infraestruturas urbanas, em razão de precipitações intensas.179 Como se vê, várias são as espécies de desastres “naturais” hidrológicos que podem atingir o cidadão. Muitas vezes, entretanto, o cidadão pode ser o causador ou colaborador de um determinado desastre hidrológico. Tal análise passa a ser feita a seguir. 1.5 O CIDADÃO ENQUANTO CAUSADOR, COLABORADOR E VÍTIMA DOS DESASTRES HIDROLÓGICOS Conforme mencionado, os desastres podem advir de diversas causas. Segundo a COTAR, tem-se que, quando decorrem da ação da natureza sem a participação dos seres humanos, são chamados de desastres naturais. Quando decorrem da ação humana são 175 PEITER, Claudia Maria. Desastres naturais: enchentes e inundações e o papel do estado e da sociedade na gestão de segurança pública. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Vale do Itajaí, 2012. p. 54. 176 Para os fins objetivados neste estudo e, em sintonia com a nomenclatura utilizada pela COBRADE, a expressão enchente será utilizada como sinônima de inundação brusca, não obstante tenha-se consciência das diferenças apontadas por parte da doutrina. 177 PEITER, op. cit., p. 55. 178 BRASIL. Anuário..., op. cit., 2012. p. 45. 179 Ibidem, p. 73. 69 chamados de desastres antropogênicos e, finalmente, quando há participação da natureza e dos seres humanos são chamados de desastres mistos.180 Assim, a depender do tipo de desastre, o ser humano pode ser causador, colaborador ou, simplesmente, vítima dos desastres. Em vários casos a sociedade será, ao mesmo tempo, causadora e vítima dos desastres. Aliás, segundo SCHENKEL “o ser humano é o grande responsável pela ocorrência dos desastres, tornando-se vítima de si mesmo”.181 Com o crescimento da população, o desenvolvimento industrial, a necessidade de ampliação de áreas para construção de casas, empresas, áreas para agricultura e pecuária, etc. houve uma maior intervenção do ser humano no meio ambiente, o que contribuiu significativamente para o declínio das condições ambientais no planeta e, consequentemente, para o aumento dos desastres. Por outro lado, os seres humanos também sofrem os efeitos negativos da ocorrência de um desastre ou de sua iminência, sendo certo, que, tradicionalmente, os ônus ambientais do desenvolvimento são suportados por hipossuficientes econômicos, quais sejam: minorias e grupos vulneráveis.182 Nesta situação, há autores que chegam a falar em prevítimas dos desastres, que são aquelas pessoas que se encontram vivendo em áreas propensas a desastres, em condições de vida inadequadas e com déficit de alimentação, tornando-se, assim, mais vulneráveis aos desastres.183 Registre-se, entretanto, que os denominados desastres “naturais” hidrológicos não atingem apenas as pessoas de baixa renda econômica (apesar de serem as comumente mais atingidas pelos impactos decorrentes de um desastre dessa natureza). Com relação às pessoas que sofrem os efeitos decorrentes de um desastre hidrológico, a Defesa Civil utiliza diversas classificações. O termo mais amplo refere-se aos afetados, que seriam todas as pessoas que tenham sido atingidas ou prejudicadas em 180 Registre-se, entretanto, que a COBRADE simplificou tal classificação fazendo menção, apenas, a desastres naturais e tecnológicos. 181 SCHENKEL, op. cit., p. 45. 182 SÉGUIN, Elida. Justiça ambiental e o etnodesenvolvimento. Revista de Direito e Política, IBAP – Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, ano 9, v. 21, p. 32. 183 WIJKMAN, op. cit., p. 152. 70 decorrência de um desastre. Assim, abrange todas as vítimas dos desastres, incluindo os deslocados, desabrigados, feridos, etc.184 A proteção dos direitos fundamentais tem, como foco central, o ser humano. Desta forma, a manutenção de sua dignidade, bem como dos demais direitos fundamentais dela decorrentes (tais como o direito à vida, saúde, moradia, segurança, alimentação, etc.) precisam ser protegidos e tutelados pelo ordenamento jurídico. Assim, a análise das vítimas do desastre é importante não só pelos aspectos humanitários, mas, também, em razão dos bens jurídicos atingidos em razão da ocorrência de um desastre. Do mesmo modo, assevere-se que os danos humanos são considerados critérios preponderantes para a definição da intensidade dos desastres.185 Assim, fala-se em feridos graves, desaparecidos, deslocados, desabrigados e mortos. Em desastres de menor gravidade fala-se em enfermos, feridos leves e desalojados.186 Deste modo, quando uma pessoa ferida necessita de hospitalização, fala-se em pessoa gravemente ferida; reservando-se a expressão levemente ferida para aquela que, apesar de ter sido ferida em razão do desastre, não necessita de hospitalização. Há, também, os “deslocados”, que são constituidos pelas pessoas que migram da área afetada por determinado desastre, necessitando de medidas assistenciais e promocionais, com o objetivo de reduzir o fluxo migratório, incluindo-se, entre estas, a distribuição de cestas básicas de alimentos. Nesta categoria, incluem-se os chamados “retirantes”. Segundo estabelecem os Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos187, considera-se “deslocados internos” as pessoas, ou grupos de pessoas, forçadas ou obrigadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência 184 BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Manual de planejamento em defesa civil. Brasília, 1999. v. 1. p. 9-11. 185 Neste sentido, veja-se: Relatório Estatístico Anual do EM-DAT e instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional 186 BRASIL. Manual... op. cit., 2007. 187 Os Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos não se constituem como um instrumento legal vinculativo, buscando fundamento em princípios de direito internacional dos direitos humanos, direito humanitário internacional e, por analogia, o direito dos refugiados. Observe-se, entretanto, que a Assembleia Geral da ONU aprovou, em 3 de julho de 2012, a resolução 66/283 - concernente à situação dos deslocados internos e refugiados da Geórgia. Tal resolução reconheceu os Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos como a estrutura internacional fundamental para a proteção de pessoas deslocadas. 71 habituais, particularmente em consequência (dentre outros fatores) de calamidades humanas ou naturais, e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado. Assim, muito embora tais deslocamentos costumem decorrer de conflitos armados, situações de violência generalizada ou violações dos direitos humanos, os desastres naturais também podem dar ensejo a estes deslocamentos. Neste aspecto, registre-se – já no Princípio 1 – que os deslocados internos devem gozar, em pé de igualdade, dos mesmos direitos e liberdades que as demais pessoas no seu país. Assim, mesmo em situações de calamidade, os deslocados não devem ser discriminados, nem ter quaisquer dos seus direitos tolhidos em razão do fato ocorrido. Desta forma, deve o Poder Público garantir a proteção e a assistência humanitária aos deslocados internos que se encontrem na sua área de jurisdição, podendo estes solicitar e receber proteção e assistência humanitária destas autoridades (Princípio 3). Observando-se algumas leis locais, tem-se que o desabrigado seria a pessoa desalojada ou cuja habitação foi afetada por dano ou ameaça de dano e que necessita de abrigo pelo Sistema de Defesa Civil.188 Assim, da mesma forma, os “desabrigados” necessitam de abrigo temporário, consistente em instalações e recursos humanos, materiais e institucionais necessários ao alojamento dos mesmos. Neste aspecto, é importante que as áreas destinadas aos abrigos provisórios sejam definidas antes da ocorrência de um desastre, de modo que haja tempo para selecionar e preparar o local que servirá como abrigo. Tais áreas devem estar a salvo de inundações, situandose em locais de pequeno declive, de modo a facilitar a drenagem das águas pluviais. Do mesmo modo, devem ser realizadas as obras preparatórias necessárias para que o local possa abrigar a população eventualmente desabrigada, tais como abastecimento de água, sanitários, depósitos para lixo, etc.189 Para VALENCIO 188 Decreto nº 17.851, do município de campinas, de 23 de janeiro de 2013, o qual dispõe sobre o plano municipal integrado de gerenciamento de assistência humanitária para situações de desastres 189 Organização Mundial da Saúde. A atuação do pessoal local de saúde e da comunidade frente aos desastres naturais. Genebra, 1981, p. 21 72 O abrigo provisório é o último refúgio dos grupos que estão, mesmo antes do desastre, em extensa desfiliação social Sendo território coletivo e púbico, sob o controle do estado, o abrigo deverá ser o ambiente que, através dos procedimentos de atendimento das famílias nos direitos de repouso, vestuário, alimentação, higiene, atendimento de saúde, privacidade, além do fornecimento de um horizonte de reconstrução, apontaria a reversão da barbárie, ou seja, um ponto tal, que a decrepitude das relações sociopolíticas, com implicações territoriais, não poderia ultrapassar.190 Em um grau de vulnerabilidade menor tem-se os denominados desalojados. Nesta categoria incluem-se as pessoas cujas habitações foram danificadas ou destruídas mas que, não necessariamente, precisam de abrigo temporário. Assim, considera-se desalojada aquela pessoa que foi obrigada a abandonar temporária ou definitivamente sua habitação, em função de evacuações preventivas, destruição ou avaria grave, decorrentes do desastre, e que não necessariamente, necessita de abrigo provido pelo Sistema de Defesa Civil.191 Por fim, há de se mencionar os enfermos (que são as pessoas doentes, em consequência do desastre) e os desaparecidos, que seriam as pessoas que não tenham sido localizadas, bem como aquelas sem destino desconhecido, em circunstância de desastres.192 Como se vê, grande parte dos cidadãos atingidos diretamente por um desastre precisa de auxílio do Poder Público ou da comunidade para se reestruturar novamente. São pessoas que sofreram lesões físicas, emocionais e, também, patrimoniais que lhes dificultam o exercício dos seus direitos fundamentais e, consequentemente, da manutenção da dignidade da pessoa humana. Ademais, não é à toa que a Defesa Civil é conceituada como um conjunto de ações preventivas, de socorro, assistências e recuperativas destinadas a evitar ou minimizar os desastres, preservar o moral da população e restabelecer a normalidade social. A chamada “preservação da moral da população” encontra-se diretamente 190 VALÊNCIO, Norma. Desastre como reflexo da crueldade institucionalizada: o caso brasileiro. In: USSIER, Jorge Luiz; MALAQUIAS, Mário Augusto Vicente ((Org.). Temas de direito urbanístico 6. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2011. p. 322. 191 Decreto nº 17.851, do município de campinas, de 23 de janeiro de 2013, o qual dispõe sobre o plano municipal integrado de gerenciamento de assistência humanitária para situações de desastres 192 Decreto nº 17.851, do município de campinas, de 23 de janeiro de 2013, o qual dispõe sobre o plano municipal integrado de gerenciamento de assistência humanitária para situações de desastres 73 relacionada à proteção da dignidade da pessoa humana, uma vez que, apesar dos prejuízos sofridos, o indivíduo não deixa de ser cidadão, necessitando do auxílio do Poder Público e da coletividade para se restabelecer. Segundo dados do Ministério da Integração Nacional, as inundações bruscas e os alagamentos são os desastres naturais que mais causam danos humanos no Brasil. O estudo realizado no período de 1991 a 2010 traz a seguinte situação:193 Quadro 4 - Distribuição dos danos humanos dentro do território brasileiro danos humanos sudeste % Norte total % afetadas 20.254.061 21% 3.318.856 3% 45.827.366 48% 21.088.899 22% 5.731.157 6% 96.220.339 100% mortas 2.436 70% 115 3% 494 14% 434 12% 15 0% 3.494 100% enfermas 35.140 9% 159.714 40% 192.124 48% 9.040 2% 3.716 1% 399.734 100% 810 5% 4.350 25% 11.280 65% 949 5% 17 0% 17.406 100% feridas 17.424 25% 11.703 17% 27.539 39% 12.831 18% 944 1% 70.441 100% desaparecidas 252 4% 16 0% 5.096 90% 287 5% 1 0% 5.652 100% deslocadas 277.090 15% 50.645 3% 1.344.858 72% 181.300 10% 4.814 0% 1.858.707 100% desabrigadas 267.853 23% 114.681 10% 424.560 37% 319.788 28% 28.717 2% 1.155.599 100% desalojadas 988.444 31% 286.138 9% 876.491 28% 972.998 31% 44.902 1% 3.168.973 100% nordeste Sul centroeste Gravemente feridas levemente Fonte: Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010 Tais dados demonstram, ainda, que as regiões mais afetadas são a Sul e a Sudeste, sendo certo que mais de 70% das mortes relacionadas a inundações bruscas ocorreram nesta última. Já na região Norte observa-se um grande número de pessoas desalojadas em decorrência do deslocamento sazonal das populações ribeirinhas, durante o período das cheias dos rios da Bacia Amazônica. Por outro lado, tem-se que a Região Nordeste é a que registrou maior número de afetados. Segundo os dados obtidos, tem-se que as enfermidades detectadas aumentam à medida que a qualidade da água disponível ao consumo fica escassa, fazendo com que a população passe a consumir água sem tratamento adequado, o que promove os problemas de saúde e doenças hídricas na população. 193 BRASIL. Atlas... op. cit., 2012. 74 Os dados ainda demonstram que no período de 1991 a 2010 a região brasileira mais afetada foi a Nordeste, com 45.827.366 pessoas afetadas. A Região Sul é a segunda em número de atingidos, quais sejam: 21.088.899 pessoas afetadas, seguida da região Sudeste, com 20.254.061 pessoas afetadas. Os dados também demonstram os tipos de desastres com maiores impactos humanos (pessoas afetadas, mortas, enfermas, gravemente feridas, levemente feridas, desaparecidas, deslocadas, desabrigadas e desalojgadas).194 Dos dados coletados, conclui-se que em virtude da interação entre o ser humano e o meio ambiente (aliado uma série de fatores climatológicos, ambientais, urbanísticos, etc.) tem havido um aumento do número de desastres no planeta. Nesta perspectiva, os desastres hidrológicos constituem-se como a espécie de desastre que causa maior número de mortos no Brasil.195 Assim, tendo em vista os danos causados por tais espécies de desastres aos cidadãos (e, em especial, em razão do alto número de mortes decorrentes de desastres hidrológicos) surge a necessidade de analisar-se as possibilidades de atuação jurídica com vistas à proteção de tais indivíduos, dentro da teoria dos direitos fundamentais. Ademais, observe-se que essa população (também chamada de “minorias”) possui direitos que devem ser implementados, ainda que contra a vontade de supostas maiorias. Logo, deve-se criar regras que favoreçam essas minorias e, consequentemente, permitam-lhes o exercício de seus direitos fundamentais. Nesta perspectiva, as ações do Poder Público (abrangendo os poderes executivo, legislativo e judiciário) assumem um papel chave na implementação de políticas públicas voltadas para essa população.196 Isso porque, não obstante existam normas jurídicas tendentes à proteção dos direitos fundamentais do indivíduo, há de se perquirir acerca da liberdade fática (real) dessas “minorias” ou seja, na possibilidade fática de um indivíduo escolher entre duas 194 Para dados completos Cf. anexo 1 Segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Integração Nacional houve, no período de 1991 a 2010, 2.475 mortes decorrentes de desastres. Destas mortes, 43,19% decorreram de inundações bruscas, e 18,63% de inundações graduais, o que corresponde a 61,82% das mortes relacionadas a desastres no período. 196 PEREIRA, Francisco Antônio Rodrigues. Ativismo judicial e a ideia de atividade política do poder judiciário: perfil e limitações. (Dissertação) - Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008. p. 37. 195 75 alternativas permitidas.197Assim, conclui-se que “a liberdade fática deve ser garantida diretamente pelos direitos fundamentais.” 198 197 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 503. 198 Ibidem, p. 505. 76 2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES A teoria dos direitos fundamentais pode ser analisada a partir de prismas diversos - histórico, filosófico, sociológico ou jurídico. ALEXY explica, então, essa teoria a partir de três de seus atributos: o de uma teoria de direitos fundamentais da Constituição alemã, o de uma teoria jurídica e o de uma teoria geral. 199 Considerandose, notadamente a abordagem desenvolvida pelo autor de uma teoria jurídica e de uma teoria geral, o presente capítulo analisa determinados direitos fundamentais positivados na Constituição de 1988 e busca contemplar não apenas “uma teoria ideal dos direitos fundamentais” 200, mas aproximá-la da realidade. Nesse sentido, a proteção aos direitos fundamentais deve ser compreendida abrangendo, não apenas a vida e a saúde, mas “tudo aquilo que seja digno de proteção a partir do ponto de vista dos direitos fundamentais.”201 Na realidade, os direitos fundamentais compreendem pressupostos éticos e componentes jurídicos, ao conectar assim ideias que sustentam a dignidade humana e seus objetivos com o direito que transforma essas ideias e seus objetivos em normas fundamentais da ordem jurídica. E, é justamente nesse sentido que se pode afirmar que os direitos fundamentais incluem, em uma sociedade de risco, a proteção contra desastres, uma vez que a eclosão de um desastre “natural” hidrológico afeta a dignidade da pessoa humana, na medida em que acarreta-lhe danos à saúde, moradia e qualidade de vida. Igualmente, tais desastres comprometem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, além de violar o direito à vida, tendo em vista que os desastres hidrológicos são a espécie de desastre que causa maior número de mortes.202 Os desastres, tendo em vista as consequências danosas causadas à sociedade, exigem uma atuação efetiva do Poder Público e da sociedade com o propósito de 199 ALEXY, op. cit., 2012. p. 31. Ibidem, p. 39. 201 Ibidem, p. 450. 202 De todas as mortes ocorridas no território brasileiro em decorrência de desastres naturais no período de 1991 a 2010, 43,19% decorreram de inundações bruscas, 20,40% de movimento de massa, 18,63% de inundação gradual, 6,30% de vendaval e ciclone, 06,65% de granizo, 0,20% de tornado e 0,24% de erosão 200 77 minimizar suas consequências e, até mesmo, de evitá-lo, quando possível. Assim, dentro do contexto de uma sociedade de risco, inserida em um Estado Democrático e de Direito, torna-se possível defender a emergência de um direito fundamental de proteção contra desastres, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e decorrente da ampliação do papel do Estado na proteção dos Direitos fundamentais. Tal proteção fundamenta-se, também em uma série de outros direitos fundamentais constitucionalmente previstos, tais como o direito à vida, moradia, saúde e qualidade de vida, entre outros. Proteger o cidadão, garantindo o exercício da sua cidadania, bem como propiciando o desenvolvimento sustentável, são medidas que devem ser seguidas por todo Estado que tenha entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e entre seus objetivos a promoção do bem de todos, como estabelece o texto constitucional brasileiro de 1988.203 2.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS: ORIGEM, EVOLUÇÃO E CARACTERÍSTICAS Discorrendo sobre a temática dos direitos humanos, FLORES ensina que os mesmos referem-se a dinâmicas sociais que objetivam a construção de condições materiais e imateriais necessárias para a obtenção de determinados bens. Assim, para ele, ao lutar pelo acesso a determinados bens, os atores sociais colocam em funcionamento determinadas práticas sociais que visam propiciar ao ser humano os meios e instrumentos (políticos, sociais, econômicos culturais ou jurídicos) que possibilitem a construção das condições materiais e imateriais necessárias para viver com dignidade.204 Logo, tais direitos originam-se das lutas sociais em busca do acesso igualitário aos bens entendidos como “fundamentais” ou “essenciais” para a existência de uma vida digna. Para BOBBIO, os “direitos do homem” traduzem-se em um termo de difícil conceituação, face sua amplitude terminológica. Trata-se, segundo ele, de direitos que pertencem (ou deveriam pertencer) a todos os indivíduos. São direitos cujo reconhecimento é condição imprescindível para o aperfeiçoamento da pessoa 203 204 Vide art. 1º, III e art. 3º, IV da CF FLORES, op. cit., p. 37 78 humana.205 Para PANSIERI, os direitos fundamentais referem-se a normas definidoras de direitos inerentes à pessoa humana.206 Na visão de FERRAJOLI, os direitos fundamentais são todos aqueles direitos subjetivos atribuídos universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, entendendo-se como direito subjetivo207 toda expectativa positiva (de prestações) ou negativa (e não causar danos) adstrita a um sujeito por meio de uma norma jurídica.208 Nesta linha, é possível afirmar-se que os direitos fundamentais são direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico e por meio dos quais outorga-se aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face do Poder Público e dos demais indivíduos. São, nos dizeres de MENDES, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva.209 Em relação à terminologia, os direitos fundamentais podem ter, conforme destaca JAMPAULO, diferentes denominações: direitos individuais, liberdades públicas, ou direitos do homem e do cidadão.210 No que diz respeito a essa discussão, SARLET211 destaca que, ao menos na ótica semântica, o termo “direitos fundamentais” é o gênero, o qual engloba as demais variações utilizadas em todo o texto constitucional brasileiro, a saber: direitos do homem, direitos humanos, direitos subjetivos públicos, liberdades públicas, direitos individuais, direitos humanos fundamentais, direitos individuais, liberdades fundamentais, direitos de cidadania, direitos da personalidade dentre tantos outros. Sobre o tema, há autores que entendem que os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal são, em princípio, os mesmos 205 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 17. PANSIERI. Do conteúdo à fundamentalidade do direito à moradia In: OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues de, et al. Constituição e estado social: os obstáculos à concretização da constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 121-2. 207 Na visão de FERRAJOLI (2001, p. 57), o direito subjetivo é uma expectativa para a qual corresponde uma obrigação. Assim, uma expectativa positiva corresponde a uma obrigação positiva de prestação, ao passo que uma expectativa negativa corresponde a uma obrigação negativa, no sentido de não lesionar. 208 FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 2001. p. 19. 209 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p . 2. 210 JAMPAULO JÚNIOR, João. Qualidade de vida, direito fundamental. Uma questão urbana: a função social da cidade. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007. p. 180. 211 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 28. 206 79 direitos da personalidade, não havendo diferenças significativas entre tais direitos.212 No mesmo sentido, o posicionamento de BITTAR213que considera direitos das personalidades os mesmos direitos, mas sob o ângulo das relações entre particulares. CARVALHO entende que “os direitos da personalidade são entendidos como os direitos essenciais da pessoa, formando o núcleo da personalidade. São direitos próprios da pessoa em si, existentes por natureza, a partir do ente humano...”214 Ademais, ROCHA entende que “os direitos fundamentais são assim denominados por serem conferidos pela Constituição e por terem função fundamentadora e legitimadora do sistema jurídico-político do chamado Estado de Direito.”215 Desta forma, a organização do Estado deve respeitar os direitos garantidos pelo ordenamento jurídico. É certo que, esses posicionamentos têm como base perspectivas teóricas distintas. Neste aspecto, há quem utilize o termo “direitos humanos” em âmbito internacional, reservando a expressão “direitos fundamentais” para referir-se a tais direitos em nível constitucional ou interno.216 A partir de uma perspectiva jurídicohistórica, os direitos fundamentais podem ser analisados enquanto direitos humanos positivados nas Constituições, explícita ou implicitamente. Sobre o tema, tonar-se importante destacar que a constitucionalização dos direitos humanos (sob a denominação de direitos fundamentais) é produto das lutas sociais, traduzindo-se em uma massa densa e variável de interesses que se amoldam e conformam, consoante as mudanças sociais.217 Deste modo, adotou-se na presente tese a perspectiva de análise dos direitos humanos enquanto direitos fundamentais da pessoa humana considerada tanto no seu aspecto individual como comunitário. Tais direitos fazem parte da própria essência (corporal, espiritual e social) da pessoa e devem ser reconhecidos e respeitados por todos os indivíduos e pelo Estado. Do mesmo modo, tem-se que tais direitos encontram212 Neste sentido: SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Novo Código Civil: tutela da dignidade da pessoa humana no casamento. Revista do Advogado, ano 22, n. 68, p. 122, dez. 2002. 213 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 23. 214 CARVALHO. op. cit., p. 29. 215 ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 137. 216 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322012000200013&script=sci_arttext. Acesso em 8 dez. 2013. 217 DIAS, Daniella S. . Desenvolvimento urbano: princípios constitucionais. Curitiba: Juruá, 2002. p. 22. 80 se em constante evolução, ou seja: o rol de direitos fundamentais modifica-se em razão de condições históricas ou transformações na sociedade, visando a manutenção da dignidade da pessoa humana. Aliás, segundo BOBBIO, “não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas”.218 Neste aspecto, tem-se que “perceber os direitos humanos como o resultado de lutas implica sabê-los transitórios, contextuais e complexos.”219 Com relação ao rol de direitos que devem ser entendidos como “direitos fundamentais” ou “direitos humanos”, há de se fazer uma breve digressão histórica, de modo a observar sua evolução em torno de diferentes “gerações” ou “dimensões” de direitos220 reconhecidas ao longo dos anos, uma vez que, com a evolução da sociedade, novos direitos passaram a ser reconhecidos e protegidos. Aliás, há que se ter em mente que o desenvolvimento do Estado encontra-se diretamente relacionado com o desenvolvimento do indivíduo, de seu cidadão, de seus direitos fundamentais.221 Neste aspecto, FLORES, ao tratar dos direitos humanos, analisa-os sob um enfoque universalista, conceituando-os como direitos afirmados politicamente a partir de lutas sociais.222 Assim, observa-se a existência de diversas “gerações” ou “dimensões” de direitos fundamentais, havendo, inclusive, autores que defendem (além da existência dos direitos de primeira, segunda e terceira dimensão) a existência de direitos de quarta 218 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 19. CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart ; GRUBBA, Leilane Serratine. O embasamento dos direitos humanos e sua relação com os direitos fundamentais a partir do diálogo garantista com a teoria da reinvenção dos direitos humanos. In: Rev. direito GV vol.8 no.2 São Paulo July/Dec. 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322012000200013>. Acesso em 10 de nov. 2013. 220 Com relação à nomenclatura, tem-se que a doutrina não é unânime sobre os termos a serem utilizados. Para alguns, novas gerações de direitos fundamentais surgiriam com o desenvolvimento da sociedade e do direito. Para outros, haveria, apenas, uma análise dos direitos fundamentais sob óticas diferentes, passando-se, então, a falar-se em “dimensões” dos direitos fundamentais. Defendendo a utilização de segundo termo, SARLET (SARLET, op. cit., 2012. p. 45) entende que o reconhecimento progressivo de novos Direitos Fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade (e não de alternância) razão pela qual a expressão “gerações” de direito levaria à falsa impressão de que haveria a substituição gradativa de uma geração por outra. Desta forma, adotar-se-á, na presente tese, a terminologia “dimensões” de direitos fundamentais. Registgre-se, porém, que tanto para os que utilizama a expressão “gerações” quanto para os que utilizam a expressão “dimensões” observa-se ter havido uma significativa evolução no conteúdo desses direitos ao longo do tempo. 221 TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2011. p. 63. 222 FLORES, op. cit., p. 37 219 81 e de quinta dimensão.223 Deste modo, para o desenvolvimento da presente tese (e caracterização da proteção contra desastres enquanto direito fundamental do ser humano) será - inicialmente - realizada uma breve exposição acerca das diferentes dimensões dos direitos fundamentais e sua evolução histórica para, na sequência, situarse a proteção contra desastres dentro das referidas dimensões e as características inerentes a esta espécie de direito. Os direitos fundamentais de primeira dimensão são aqueles que relacionados a direitos do próprio indivíduo como tal, ou seja: direitos que limitam a atuação do Estado na liberdade individual. São, conforme diz BONAVIDES, “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”224, sendo também chamados de direitos civis e políticos, os quais englobam os direitos à vida, à liberdade, a propriedade, à igualdade formal, os direitos de participação política e algumas garantias processuais. Aqui, encontram-se os direitos subjetivos dos cidadãos que exigem uma postura negativa, não interventiva por parte do Estado. Os direitos humanos de primeira dimensão consistem em “direitos de liberdade, isto é, direitos cujo exercício pelo cidadão requer que o Estado e os concidadãos se abstenham de turbar.”225Assim, neste primeiro momento, os direitos fundamentais estabelecem limites de atuação ao Estado.226 Com o tempo, percebe-se que a simples existência de direitos negativos não era suficiente para garantir a igualdade material entre as pessoas. Assim, torna-se necessária a criação de direitos que possam resgatar o indivíduo da situação de massificação, automatização, espoliação e coisificação imposta pelo capitalismo.227 Emerge a necessidade de uma ação positiva por parte do Estado, afirmando-se os direitos fundamentais de segunda dimensão, também chamados de direitos sociais e que se constituem como uma série de direitos prestacionais, ou seja: impelem o Estado a 223 Neste sentido, veja-se: BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. Direitos Fundamentais & Justiça, n. 3, abr./jun., 2008, p. 91. Disponível em: <http://www.dfj.inf.br/ Arquivos/PDF_ Livre/3_Doutrina_5.pdf>. Acesso em: 5 fev. 2013. 224 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 563-564 225 BUCCI, Maria Paula Dallari. (Org.). Politicas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 3. 226 LEUZINGER, op. cit., 1999. p. 56. 227 LOPES, Othon de Azevedo. A dignidade da pessoa humana como princípio jurídico fundamental. In: SILVA, Alexandre Vitorino da et al. Estudos de direito público: direitos fundamentais e estado democrático de direito. Porto Alegre: Síntese, 2003. p. 198-9. 82 programar políticas públicas com vistas ao bem-estar social da população, exigindo-se, portanto, uma postura mais ativa por parte do ente estatal. Para FERRAJOLI os direitos sociais consistiriam em direitos positivos, ou seja, em expectativas de prestações por parte dos outros.228 Segundo LEUZINGER: Com o florescer da ideologia antiliberal, que dominou em grande parte o século XX, em contraposição às enormes injustiças geradas pelo abstencionismo do Estado Liberal, nasceram os chamados direitos fundamentais de segunda geração – direitos de igualdade-, decorrentes da transformação do Estado de Direito em Estado Social de Direito, tendentes à afirmação dos chamados direitos sociais e à realização de objetivos de justiça social.229 Neste contexto, ganham especial proteção jurídica os direitos sociais, os quais se caracterizam como direitos a prestações sociais estatais, como o direito à saúde, o direito à moradia, entre outros. Para ALEXY, os “direitos a prestação em sentido estrito” constituem-se como direitos do indivíduo, em face do Estado, a algo que o indivíduo, “se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia também obter de particulares”.230 Tratam-se, portanto, de direitos que dependem de providências positivas do Poder Público, caracterizandose, assim, como prestações positivas impostas às autoridades públicas.231 Assim, diferentemente dos direitos de primeira dimensão, tem-se, aqui, uma exigência em face do Estado, no sentido de que este assegure o exercício de determinados direitos por meio da implementação de políticas públicas, impondo-se ao Estado uma obrigação de fazer, que acaba correspondendo à concretização dos direitos à saúde, educação, trabalho, habitação, assistência social e demais direitos sociais. Nesta vertente, os direitos sociais representam uma mudança de paradigma no direito, modificando a postura abstencionista do Estado e atribuindo-lhe um enfoque prestacional, característico das obrigações de fazer.232 Desse modo, tais direitos devem ser observados e respeitados em um Estado Social de Direito a fim de garantir a 228 FERRAJOLI, op. cit., p. 294. LEUZINGER, op. cit., p. 57. 230 ALEXY, op. cit., 2012. p. 499. 231 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 151. 232 BUCCI, op. cit., 2006. p. 2-3. 229 83 melhoria das condições de vida dos membros da sociedade e, em especial, dos notadamente hipossuficientes, visando à concretização de uma igualdade material. Em outras palavras: os direitos sociais são direitos-meio, ou seja: direitos que tem como principal função assegurar a todas as pessoas condições de gozar os direitos individuais de primeira dimensão.233 Por fim, ALEXY esclarece que todos os direitos a prestações em sentido estrito seriam direitos fundamentais sociais, tendo em vista as características que lhes são peculiares.234 Do mesmo modo, com o desenvolvimento da sociedade, houve um aumento no rol de direitos a serem tutelados. Neste contexto, os direitos fundamentais de terceira dimensão surgem como direitos de fraternidade ou solidariedade, objetivando tutelar a qualidade de vida e a solidariedade entre os homens. Tais direitos abrangeriam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos, pertencentes a grupos determinados.235 Neste sentido, registre-se que os direitos difusos são direitos que pertencem a grandes grupos ou parcelas de grupos, constituindo-se como prerrogativas jurídicas coletivas; assim, não se traduzem em direitos individuais ou personalíssimos, mas, sim, como direitos de comunidades e coletividades, que podem ser postulados por entidades que as representam ou por órgãos públicos que tutelem o bem comum.236 Desse modo, os direitos de terceira dimensão passam a se caracterizar em função da sua transindividualidade, ou seja: caracterizam-se como direitos de titularidade coletiva ou difusa, abrangendo a preservação ambiental e cultural, os direitos dos consumidores e das minorias étnicas e sociais, e consubstanciando-se como direitos difusos, sendo possível mencionar-se, ainda, o direito à paz, o direito ao desenvolvimento, o direito ao meio ambiente e o direito ao patrimônio comum da humanidade.237 Assim, a Constituição brasileira, além de reconhecer a existência dos 233 BUCCI, op. cit., 2006. p. 3. ALEXY, op. cit., 2012. p. 499. 235 VIGLIAR, José Marcelo. Ação civil pública. São Paulo: Atlas, 1997. p. 42. 236 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito ao meio ambiente e participação popular. Brasília: Edições IBAMA, Coleção meio ambiente, 1998. p. 31. 237 LEUZINGER, Marcia Dieguez. Natureza e cultura: direito ao meio ambiente equilibrado e direitos culturais diante da criação de unidades de conservação de proteção integral e domínio público habitadas por populações tradicionais. Tese (Doutorado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2007. p. 35. 234 84 interesses difusos e coletivos, estabeleceu um “sistema de garantia” de tais interesses, definindo titulares para sua proteção e instrumentos jurídicos correlatos.238 Em relação aos direitos fundamentais de quarta e quinta dimensão, destaque-se que, por exemplo, BOBBIO, os relaciona aqueles direitos associados à engenharia genética,239 enquanto que BONAVIDES afirma que tais direitos são considerados como necessários à concretização da sociedade aberta ao futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, associando-os assim ao direito à democracia, à informação e à pluralidade. 240 Já os direitos fundamentais de quinta dimensão seriam os direitos relacionados à paz, destacando BONAVIDES que a paz passa a ser reconhecida como condição indispensável ao progresso de todas as nações, constituindo-se em um direito natural dos povos.241 Refletindo-se acerca das diversas dimensões apresentadas, constata-se que um mesmo direito fundamental pode – a depender da situação fática existente – ser classificado sob “gerações” ou “dimensões” diversas. Nesta perspectiva, o direito proteção contra desastres (analisado de forma ampla, e abrangendo as diversas modalidades de desastres possíveis)242 pode ser tutelado enquanto direito fundamental de: primeira dimensão (quando não há a necessidade de intervenção do Poder Público); segunda dimensão (quando a proteção refere-se todo o corpo social); terceira (quando se relaciona a determinados grupos de indivíduos); quarta (quando sua ocorrência pode agredir o patrimônio genético da espécie humana, comprometendo sua existência);243 e quinta dimensão (quando a ocorrência de um desastre pode afetar o direito à convivência pacífica entre os seres humanos.). 238 SMANIO, Gianpaolo Poggio. A tutela constitucional dos interesses difusos. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 21, jan./jun. 2005. p.133. 239 BOBBIO, op. cit., 240 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. p.525. 241 BONAVIDES, op. cit., 2008, p. 83-91. Disponível em: <http://www.dfj.inf.br/ Arquivos/ PDF_Livre/3_Doutrina_5.pdf>. Acesso em: 05 out. 2013. 242 Conforme apresentado há, além dos desastres naturais (que abrangem os desastres geológicos, hidrológicos, meteorológicos, climatológicos e biológicos) e os desastres tecnológicos (que abrangem os desastres relacionados a substâncias radioativas, produtos perigosos, incêndios urbanos, obras civis e transporte de passageiros e cargas). Para maiores detalhes vejam-se as tabelas da CODAR e da COBRADE, anexas à presente tese. 243 Cite-se os desastres radioativos, as mutações genéticas e outros desastres que possam causar alterações no genoma humano 85 Por esta razão, há autores que criticam esta divisão. Neste sentido, observa-se que, no âmbito da teoria crítica dos direitos humanos, de Joaquín Flores244, não há relevância na divisão dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, nem, tão pouco, em atribuir-lhes graus de importância, haja vista que a luta por dignidade possui caráter global e universal, não sendo possível compartimentalizar ou dividir os direitos relacionados à manutenção dessa dignidade.245 A subdivisão dos direitos fundamentais em gerações (ou dimensões) vem apenas reforçar a ideia de que o conteúdo jurídico da dignidade humana (e consequentemente, o rol dos direitos fundamentais) tende a se ampliar ao longo dos anos, na medida em que a sociedade evolui e novos direitos são reconhecidos e agregados ao rol dos direitos fundamentais.246 Contudo, o surgimento e a ampliação de novos direitos visa, apenas, ampliar a proteção conferida ao ser humano em sua essência e dignidade. Ademais, com base no disposto no artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal, tem-se que direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Logo, trata-se de rol meramente exemplificativo, sendo possível concluir-se pela aceitação da existência de direitos fundamentais fora do Título II e, inclusive, fora do corpo da Constituição Federal.247 Dentro deste cenário jurídico, torna-se possível afirmar que a proteção contra desastres encontra-se contemplada no texto constitucional implicitamente (por força do disposto no citado parágrafo segundo do artigo 5º) e, no tocante aos desastres hidrológicos, houve expressa menção no texto constitucional acerca da importância de sua proteção. Tal proteção em nível constitucional é relevante em razão dos desdobramentos que o reconhecimento do atributo de direito “fundamental” acarreta em relação à proteção contra desastres hidrológicos. Os direitos fundamentais (também chamados de direitos da personalidade, direitos do homem, direitos humanos, etc.) constituem-se como direitos essenciais para 244 Cf. FLORES, op. Cit. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322012000200013&script=sci_ arttext>. Acesso em: 08 dez. 2013 246 BUCCI, op. cit., 2006. p. 3. 247 MEDEIRO, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 110-111. 245 86 a manutenção da dignidade da pessoa humana, razão pela qual possuem características próprias, as quais os singularizam, tornando-os essenciais. Tais características visam permitir a adequada proteção da pessoa humana em todos os seus atributos, de forma a proteger e assegurar a concretização da dignidade da pessoa humana, a qual se constitui como fundamento da ordem jurídica. Discorrendo acerca das características inerentes aos direitos fundamentais, LEUZINGER afirma que, por serem direitos cujo conteúdo desdobra os conceitos jurídicos de dignidade, de liberdade, de igualdade, possuem características próprias e que os distinguem de outros direitos. Entre tais características, destacam-se a irrenunciabilidade, a irrevogabilidade, a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a inviolabilidade, a interdependência e a complementariedade. indivisibilidade, a universalidade, a 248 Tratando do tema sob a ótica dos direitos humanos, ÂNGELO249, aduz que as principais características dos direitos humanos são aquelas relacionadas à inviolabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, inalienabilidade, universalidade, efetividade, interdependência, complementariedade. MORAES, a seu turno, ensina que, segundo a concepção jusnaturalista, os direitos fundamentais possuem seis características básicas. São elas: o fato dos direitos fundamentais serem inatos, ou seja inerentes à natureza da pessoa humana e preexistentes ao Estado. São inalienáveis e, consequentemente, intransmissíveis, inegociáveis e indisponíveis. São imprescritíveis. São irrenunciáveis. São, ainda, direitos absolutos, na medida em que sua validade independe de positivação interna constitucional. E, finalmente, são direitos universais.250 Como se vê, a depender dos critérios ou concepções utilizadas, a quantidade de características inerentes a tais direitos poderá variar, mantendo-se, entretanto, as características essenciais desse direito que são a sua irrenunciabilidade e constante evolução e ampliação. Especificamente em relação à proteção contra desastres hidrológicos, merecem destaque determinadas características inerentes aos direitos fundamentais e que contribuem para a afirmação do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental do indivíduo. Assim, a indisponibilidade, a irrenunciabilidade, a intransmissibilidade, a inalienabilidade, a imprescritibilidade, a 248 LEUZINGER, op. cit., 2007. p. 29. ÂNGELO, Milton. Direitos humanos. São Paulo: Editora de Direito, 1998. p. 18. 250 MORAES, Guilherme Braga Pena. Dos direitos fundamentais: contribuição para uma teoria. São Paulo: Ltr, 1997. p. 137-8. 249 87 inviolabilidade, a vitaliciedade, a universalidade, a oponibilidade erga omnes, a indivisibilidade, a efetividade, a irrevogabilidade, a proibição de retrocesso, a autoaplicabilidade, a complementariedade, a interdependência, a não taxatividade e a extrapatrimonialidade dos direitos fundamentais são algumas características que podem ser elencadas na busca pela proteção contra desastres “naturais” hidrológicos. Conforme mencionado, uma das características constantemente atribuídas aos direitos fundamentais refere-se à indisponibilidade de tais direitos. Assim, por serem direitos inerentes ao ser humano seus titulares não podem deles dispor. Registre-se que, conforme assevera a doutrina, a indisponibilidade abrangeria os conceitos de intransmissibilidade e irrenunciabilidade.251Assim, a indisponibilidade (ou irrenunciabilidade) refere-se ao fato de que não é possível abdicar-se de tais direitos. Nesse contexto, nenhuma pessoa, inclusive o próprio titular, pode deles dispor, haja vista que a proteção de tais direitos não se limita ao interesse de seu titular, passando a interessar a toda a coletividade.252 Neste aspecto, FERRAJOLI destaca como características dos direitos fundamentais seu caráter indisponível e inalienável.253 Tal característica também encontra-se presente em sede de proteção contra desastres, uma vez que os danos decorrentes dos desastres não atingem apenas o indivíduo, mas, também, um número grande de pessoas, razão pela qual Estado e sociedade têm interesse na proteção contra a ocorrência de eventos dessa natureza. Em decorrência da indisponibilidade de tais direitos, tem-se serem eles, também, irrenunciáveis. Tal característica refere-se ao fato de que não é possível abdicar-se de tais direitos, razão pela qual nenhuma pessoa, inclusive o próprio titular, pode deles dispor. Isso porque, em razão de da relevância de tais direitos, sua proteção não se limita ao interesse de seu titular, passando a interessar a toda a coletividade. A proteção contra desastres implica na proteção do direito à vida, de tal forma que – havendo risco 251 Segundo assevera LOTUFO, a indisponibilidade abrangeria os conceitos de intransmissibilidade e irrenunciabilidade. 252 Observe-se, entretanto, que determinados direitos fundamentais possuem maior ou menor margem de liberdade de disposição por parte do indivíduo. Neste sentido, veja-se: JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito à vida privada: conflitos entre direitos da personalidade, p. 57-8 253 FERRAJOLI, op. cit., p. 292. 88 para tal bem jurídico – a atuação do Estado e dos demais membros da coletividade na proteção de tal direito é autorizada pela ordem jurídica.254 Há, também, menção à intransmissibilidade e inalienabilidade dos direitos fundamentais. Tal intransmissibilidade refere-se ao fato de que tais direitos encontramse intimamente atrelados ao seu titular, de tal forma que nem mesmo ele possa alienálos ou transmiti-los a outrem. Assim, a natureza de tais direitos não permite que um indivíduo deles se despoje, uma vez que há uma preocupação por parte de todo o corpo social no sentido de que tais direitos se mantenham unidos ao seu titular, pois não podem eles ser alienados ou negociados junto a outros indivíduos.255 Logo, são direitos intransferíveis, a título oneroso ou gratuito. Nesta perspectiva, o direito de proteção contra desastres, em razão dos bens jurídicos tutelados, não pode ser objeto de transmissão por parte do indivíduo. Em decorrência da impossibilidade do titular desses direitos deles se despojar, a doutrina costuma mencionar como característica dos direitos fundamentais sua imprescritibilidade, uma vez que inexiste prazo para a busca de eventual proteção jurídica em relação a qualquer deles, na hipótese de violação destes direitos. Assim, os direitos fundamentais não desaparecem ou se extinguem com o decorrer do tempo. Por essa razão, fala-se que tais direitos são imprescritíveis, na medida em que inexiste um prazo para o exercício de tal direito. Tal característica ganha relevância em sede de proteção contra desastres, uma vez que, em função dos efeitos da mudança climática é possível que determinado local venha, após vários anos, a oferecer risco para o indivíduo e toda coletividade. Nestas hipóteses, a ação estatal não se submete à eventual prazo, uma vez que a proteção da sociedade contra o risco de desastres permite que a atuação estatal ocorra a qualquer tempo, desde que necessária. 254 Neste sentido, observe-se a existência de expressa previsão constitucional autorizando o ingresso de qualquer pessoa em residência alheia, na hipótese de desastre, ou para prestar socorro (art. 5º, XI, da CF). Do mesmo modo, no âmbito penal, eventual ação que venha a lesar bem jurídico de outrem estará acobertada pela excludente de ilicitude denominada “estado de necessidade” a qual ampara aquele que pratica determinado fato tipificado como infração penal a fim de salvar direito próprio ou alheio de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se (art. 25 do CP). 255 COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Proteção jurídica do meio ambiente: o papel da aministração pública na preservação dos direitos da personalidade: dissertação. Maringá: Cesumar, 2009. p. 88. 89 Tratando-se de direitos fundamentais, tem-se que estes não podem ser desrespeitados por nenhuma autoridade pública ou por disposições infraconstitucionais, sob pena de responsabilização. Fala-se, assim, em inviolabilidade dos direitos fundamentais, na medida em que estes devem ser protegidos de forma prioritária, evitando-se sua lesão. Tal inviolabilidade autoriza a concessão de medidas preventivas, voltadas a evitar a ocorrência de lesão a estes bens jurídicos. Deste modo, no tocante aos desastres naturais hidrológicos, a atuação preventiva (por meio da observância de regras específicas, tendentes a evitar a ocorrência de eventos dessa natureza, tais como atendimento das regras urbanísticas e administrativas relacionadas às construções, bem como a apresentação de laudos, etc.) é plenamente possível e justificável sob a ótica dos direitos fundamentais. Outra característica inerente aos direitos fundamentais refere-se a sua vitaliciedade, ou seja: tais direitos são inatos e permanentes, acompanhando a pessoa desde o seu nascimento/concepção até a morte.256 Assim, do mesmo modo que ocorre com a “imprescritibilidade” não há que se falar em prazo para o exercício de tais direitos. Por se tratar de direitos destinados a todos os indivíduos, indistintamente, os direitos fundamentais são considerados universais. Tal característica é severamente criticada por FLORES, na medida que “é patético falar de direitos humanos universais em um mundo em que somente um quinto da população se encontra relativamente isolado do problema da pobreza”. Sobre o tema, FERRAJOLI defende a existência de uma universalidade formal dos direitos fundamentais, ou seja: estes direitos são atribuídos diretamente por normais gerais.257 Assim, o direito de proteção contra desastres é universal por ser atribuível a todos os indivíduos, indistintamente. Registrese, entretanto, que, no que tange a esta característica, há autores que defendem a sua não aplicação em relação aos direitos sociais. 256 Observe-se que, no caso do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Constituição Federal foi ampliou a proteção de tal direito, devendo o mesmo ser assegurado, inclusive, às futuras gerações. 257 FERRAJOLI, op. cit., p. 116. 90 Do mesmo modo, tais direitos são oponíves erga omnes, uma vez que, a todos, indistintamente, cumpre o dever genérico de observar e respeitar tais direitos. Assim, os direitos fundamentais referem-se a direitos que podem ser exigidos contra todos. A indivisibilidade também é considerada uma característica presente nos direitos fundamentais. Está relacionada ao fato de que não é possível separar os direitos humanos em compartimentos estanques, sendo eles cumulativos e complementares. Assim, os defensores desta característica questionam a já mencionada expressão “gerações de direitos fundamentais.” Neste sentido, tem-se que tais direitos compõem um conjunto único de direitos, não podendo ser analisados de maneira isolada, de tal forma que o desrespeito a um deles constitui a violação de todos ao mesmo tempo.258Tendo em vista a já mencionada indivisibilidade dos direitos humanos tem-se que “cabe ao Estado Brasileiro a proteção e defesa dos direitos civis e políticos, bem como a implementação e realização dos direitos econômicos, sociais e culturais”259 Assim, não é possível falar do direito de proteção contra desastres sem relacioná-lo com o direito à vida, saúde, moradia, entre outros. A proteção dos diversos direitos fundamentais é necessária a fim de se garantir a dignidade da pessoa humana. Dentre as características atribuídas aos direitos fundamentais mencione-se a sua efetividade. Isso porque, em razão da natureza desses direitos, exige-se a atuação do Poder Público no sentido de garantir a efetivação de tais direitos, os quais devem ser garantidos materialmente. Especificamente em relação aos desastres hidrológicos, temse que tal efetividade deve ser buscada pela máxima aplicabilidade das características, princípios e atributos que compõem os direitos fundamentais. Assim, somente visualizando-se a proteção contra desastres enquanto um direito fundamental do ser humano será possível avançar-se rumo a efetiva aplicação do primado constitucional da proteção contra este tipo de calamidade. Em decorrência das características acima elencadas, bem como em razão da máxima efetividade na proteção de tais direitos, outras características também podem ser acrescentadas. Assim, a irrevogabilidade e a proibição de retrocesso também podem 258 DIÓGENES JÚNIOR, José Eliaci Nogueira. Aspectos gerais das características dos direitos fundamentais. Disponível em: <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_ leitura&artigo_id=11749>. Acesso em: 30 out. 2013. 259 PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. São Paulo Max Limonad, 1998. p. 219. 91 ser consideradas características inerentes aos direitos fundamentais. Baseiam-se no fato de que a evolução da sociedade acarreta a necessidade de formulação de novos direitos, razão pela qual aqueles declarados e reconhecidos oficialmente não podem ser revogados.260 Com base nesta característica - decorrente do sistema jurídicoconstitucional - BARROSO entende que a instituição de determinado direito fundamental acarreta sua incorporação ao patrimônio jurídico da cidadania, não podendo ser posteriormente suprimido.261 No mesmo sentido, CANOTILHO entende que não é admissível a reversibilidade de direitos adquiridos no âmbito social.262 Ademais, a proteção contra medidas jurídicas, legislativas e administrativas que retrocedam garantias sociais conquistadas traduz-se em medida apta a proteger a pessoa contra violações em seus direitos fundamentais, conferindo maior segurança jurídica para o indivíduo. Desse modo, a proteção contra desastres “naturais” hidrológicos encontra-se constitucionalmente amparada, de tal forma que – tratando-se de um direito fundamental do indivíduo – não é possível a redução ou supressão dos níveis de efetividade263 e eficácia264 em sua proteção. Outra característica dos direitos fundamentais refere-se a sua autoaplicabilidade, de tal forma que não há necessidade de regulamentação infraconstitucional dos mesmos.265 Assim, concebendo-se o direto de proteção contra desastres hidrológicos enquanto um direito fundamental explícita ou implicitamente previsto no ordenamento jurídico, tem-se pela sua aplicação imediata, nos termos do artigo 5º, §1º da CF, ou seja: significa que o preceito atinente à proteção de tal direito é autossuficiente, prescindindo-se da existência de ato legislativo ou administrativo prévio com vistas a sua efetividade.266 260 COMPARATO, op. cit., p. 64. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 158. 262 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p. 326. 263 A efetividade refere-se ao cumprimento de sua função pela norma , com sua observância pelas autoridades e seus destinatários. 264 A eficácia refere-se à aptidão de uma norma para cumprir sua função social, alcançando ela o resultado jurídico pretendido pelo legislador. 265 Observe-se, entretanto, que tal característica encontra-se presente apenas nos direitos de primeira dimensão. 266 GRAU, Eros Roberto. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica da Constituição de 1988. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 318-9. 261 92 Também merecem destaque a complementariedade e a interdependência dos direitos fundamentais. Assim, em razão da sua natureza e dos bens jurídicos tutelados, os direitos fundamentais relacionam-se mutuamente, não podendo ser analisados isoladamente. Neste sentido, GAZOLA reconhece a impossibilidade de se visualizar tais direitos de forma isolada, “sob risco de perda de eficácia da ação pública.”267 Logo, as várias previsões constitucionais, apesar de autônomas, comunicam-se mutuamente a fim de permitir a proteção da dignidade da pessoa humana. Assim, conclui-se no sentido de que existe uma interatividade entre os preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos humanos e os demais ramos do Direito.268 Neste sentido, a proteção contra desastres guarda relação com uma serie de outros direitos fundamentais, tais como o direito à vida, moradia, saúde, qualidade de vida, meio ambiente ecologicamente equilibrado e assistência aos desamparados.269 Do mesmo modo, os direitos fundamentais se inter-relacionam e se complementam, de tal forma que não devem ser interpretados isoladamente, mas de forma conjunta, de modo a se atingir os objetivos previstos pelo legislador constituinte. Aliás, tais direitos constituem-se como um complexo integral, único e indivisível, no qual os diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e interdependentes.270 Neste sentido, tem-se que a proteção contra desastres demanda o exercício de outros direitos, tais como o de moradia digna, saúde, qualidade de vida, meio ambiente ecologicamente equilibrado, etc. Conforme mencionado, os direitos fundamentais decorrem de uma evolução da sociedade, sendo construídos e acrescidos com o desenvolvimento desta. Disso decorre outra característica dos direitos fundamentais, que é da sua não taxatividade (também chamada de ilimitabilidade – ou historicidade - dos direitos fundamentais), razão pela qual o rol de direitos fundamentais estabelecidos em uma Constituição não é taxativo. Ademais, na medida em que a dignidade da pessoa humana constitui-se como fundamento primeiro para a proteção desses direitos, tem-se que, em razão da evolução 267 GAZOLA, Patrícia Marques. Concretização do direito à moradia digna: teoria e prática. Belo Horizonte: Forum, 2008. p. 111. 268 FRANZOI, Jackeline Guimarães Almeida. Dos direitos humanos: breve abordagem sobre seu conceito, sua história, e sua proteção segundo a constituição brasileira de 1988 e a nível internacional. Revista Jurídica Cesumar, Maringá, v. 3, n. 1, p. 374, 2003. 269 Para maiores detalhes sobre essa interdependência entre os direitos fundamentais veja-se o item 2.4 infra 270 PIOVESAN, op. cit., p. 214. 93 da sociedade, novos direitos virão a surgir com o tempo, exigindo-se a adequada proteção por meio do ordenamento jurídico. Fala-se, assim, em uma mutabilidade histórica dos Direitos fundamentais, na medida em que as condições históricas mudam e alteram as necessidades e interesses da sociedade e, consequentemente, passam a exigir a proteção de novos direitos. Neste sentido, BOBBIO defende tratar-se de direitos historicamente relativos, na medida que sofrem alterações conforme o momento histórico e o tipo de civilização.271 Nessa linha, FLORES defende que os direitos humanos decorrem de uma marcha de processos de luta em defesa da dignidade humana. 272 Com efeito, aduz o autor: Eles [os direitos humanos] não são algo dado, nem estão garantidos por algum “bem moral”, alguma “esfera transcendental” ou por algum “fundamento originário ou teleológico”. São produtos culturais que instituem ou criam as condições necessárias para implementar um sentido político forte de liberdade.273 Em sede de direito de proteção contra desastres, observa-se que a evolução da sociedade possibilitou o surgimento de novas tecnologias e o aparelhamento estatal com vistas a uma melhor preparação contra os efeitos da mudança climática. Hoje, a sociedade consegue prever, com relativa antecedência, a ocorrência de uma série de eventos naturais danosos, criando para o Poder Público o dever de adotar medidas aptas a evitar ou mitigar os prejuízos advindos de tais acontecimentos. Uma última característica dos direitos fundamentais refere-se à ausência de um conteúdo patrimonial direto ou objetivamente aferível, ainda que a lesão gere efeitos econômicos. Deste modo, não seria possível fazer-se uma avaliação econômica decorrente de sua violação. Assim, os direitos fundamentais são direitos extrapatrimoniais em razão do fato de seu conteúdo fundamental (a dignidade da pessoa humana) ser insuscetível de mensuração, ou seja: não pode ser avaliada em aspectos econômicos ou pecuniários. Tal característica também se encontra presente em relação 271 BOBBIO, op. cit., p. 19 FLORES, op. cit., p. 114 273 Idem, ibidem 272 94 aos desastres naturais, uma vez que não é possível aferir-se, em termos econômicos, os danos que tais desastres podem causar ao indivíduo.274 Assim, irrenunciabilidade, indisponibilidade, irrevogabilidade, intransmissibilidade, inalienabilidade imprescritibilidade, e inviolabilidade são características que demonstram a importância dos direitos fundamentais em nosso ordenamento jurídico, de tal forma que não podem eles ser objeto de negociação econômica e, em razão da sua relevância para o indivíduo, são eles inatos e permanentes, acompanhando a pessoa desde o seu nascimento/concepção até a morte, acrescentando-se, então, uma outra característica, qual seja: a vitaliciedade dos direitos fundamentais. E, para a proteção de tais direitos, a adoção de medidas voltadas para a efetiva implementação e concretização desses direitos devem ser exigidas perante o Poder Público. Tal possibilidade acarreta aos direitos fundamentais outras características, quais sejam a da sua efetividade, autoaplicabilidade, interdependência, complementariedade, historicidade e proibição de retrocesso. Tais características visam conferir maior destaque a tais direitos dentro do ordenamento jurídico, bem como propiciar-lhes uma maior proteção com vistas à manutenção de defesa da dignidade da pessoa humana. 2.2 CIDADANIA, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS A despeito das diversas características inerentes aos direitos fundamentais, tem-se que todas elas relacionam-se com a busca a proteção da dignidade da pessoa humana, ou, em outras palavras, pela concretização de uma “vida digna ao ser humano, mediante a efetivação dos valores da liberdade e da igualdade”.275 Assim, a manutenção da dignidade humana consubstancia-se no fundamento axiológico que justifica a proteção dos direitos fundamentais. Logo, a proteção dos direitos fundamentais constitui-se como instrumento 274 Observe-se, entretanto, que os desastres podem causar danos a bens imateriais do indivíduo, tais como a vida, integridade física, saúde, etc. (direitos fundamentais) bem como podem lesar bens materiais (móveis, carros, etc). Em relação a estes a aferição econômica é plenamente possível. 275 RIBAS, Paulo Henrique. O papel do estado na concretização dos direitos fundamentais sociais mediante a prestação de serviços públicos. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2007. p. 19. 95 importante para a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, sendo certo que esta proteção deve ser implementada tanto pelo Poder Público quanto pela sociedade. Especificamente em relação à proteção contra desastres “naturais” hidrológicos, ganha destaque a participação do cidadão (e, em especial, a do cidadão que reside nas áreas de risco, que são as áreas mais suscetíveis a esse tipo de desastre). Isso porque são essas pessoas as principais vítimas desse tipo de desastre e que, portanto, possuem maior interesse em evitar sua ocorrência ou minimizar-lhes os danos decorrentes. A dignidade da pessoa humana é, por assim, dizer, o núcleo central dos direitos fundamentais, traduzindo-se em um bem jurídico intangível, razão pela qual sua proteção jurídica encontra-se constitucionalmente estabelecida. Do mesmo modo, a proteção contra calamidades também encontra amparo constitucional. Os desastres causam danos à coletividade e aos indivíduos que a compõem, sendo certo que, não raras vezes, a vítima perde amigos, parentes, bens materiais, ou mesmo a saúde em função das epidemias e doenças transmitidas em razão do desastre sofrido, tais como, por exemplo, a leptospirose do contato dos indivíduos com águas contaminadas.276 Citese, ainda, entre as chamadas doenças de origem hídricas, as febres tifoide e paratifoide, a disenteria bacilar, o cólera, a giardíase, disenteria amébica ou amebiana, esquistossomíase, hepatite infecciosa, poliomielite, gastroenterite, esquistossomose, ascaridíase, taeníase, oxiuríase, ancilostomíase, malária, dengue277, febre amarela, irritação de pele por cianobactérias etc. Tais fatos causam afetam a saúde e a qualidade de vida do indivíduo, trazendo dor e tristeza e – não raras vezes – afetando o estado físico e psíquico das pessoas, fazendo com que o indivíduo se sinta impotente diante da situação vivida. Assim, o Poder Público (por meio da Defesa Civil e demais órgãos) e a coletividade devem – além de proteger o indivíduo em seu aspecto físico e material procurar preservar no cidadão a autoestima, a confiança e a força de vontade e a fé de que a vida retornará ao normal. Nas palavras de ROCHA tem-se que: 276 As inundações aumentam os riscos de aquisição de doenças infecciosas transmitidas de água contaminadade através contato ou ingestão, como leptospirose, hepatite A, hepatite E, doenças diarreicas (Escherichia coli, Shigella, Salmonella) e, em menor grau, febre tifóide e cólera. (veja-se: http://inundacooes.blogspot.com.br/. Acesso em 13.10.2012 277 Na verdade, a dengue costuma ser provocada pela água das chuvas, que se acumula em qualquer recipiente e permite a proliferação do Aëdes aegypti. 96 O princípio da dignidade humana constitui-se, pois, em valor unificador dos direitos e garantias inseridas na Constituição Federal e legitimador dos 278 direitos fundamentais expressos tanto quanto daqueles implícitos. Constata-se, portanto, que a dignidade da pessoa humana impõe-se como um princípio supremo que estabelece “uma esfera absoluta e indisponível de direitos inerentes à pessoa humana, sendo ainda o referencial fundamental para a mensuração de todos os outros direitos e princípios jurídicos.”279 Segundo FLORES, a dignidade concretiza-se pelo acesso igualitário e generealizado aos bens que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida.280 Aliás, a Constituição Federal de 1988, ao discorrer acerca dos fundamentos constitucionais do Estado brasileiro, elenca entre eles: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Assim, cidadania, juntamente com a dignidade da pessoa humana e os demais elementos mencionados, constitui-se dentre os fundamentos do Estado brasileiro. Do mesmo modo, o conceito de cidadania, ganha maior amplitude, correspondendo à “participação política ativa e direta do individuo na vida da sua sociedade.”281 Neste, sentido, SEGUIN assevera: Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente ecologicamente equilibrado passam a integrar o conceito de cidadania, influenciado pelos Direitos Humanos internacionalmente reconhecidos, como o direito ao desenvolvimento, à saúde e à educação.282 Esta dignidade deve ser garantida em todos os momentos (inclusive nas hipóteses de desastres) de modo que o indivíduo consiga manter a sua condição de “ser humano”. 278 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 280. LOPES, op. cit., p. 210. 280 FLORES, op. cit., p. 37 281 LOPES, Ana Maria D’Ávila. A cidadania na constituição federal brasileira de 1988: redefinindo a participação política. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Fayga Silveira. Constituição e democracia: estudos em homenagem ao professor J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 28. 282 SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 51. 279 97 Especificamente com relação à cidadania, há vários conceitos e acepções em relação à abrangência do seu significado. Em uma perspectiva mais estrita, a cidadania corresponderia ao exercício dos direitos políticos em sentido estrito, ou seja, o direito de votar e ser votado. Assim, nesta ótica, só é considerado cidadão a pessoa que é titular de direitos políticos. Observe-se que tal conceito é extremamente limitativo, uma vez que reduz o número de pessoas que podem ser consideradas cidadãs e os poderes que lhes são conferidos. Nesta perspectiva, a atuação do cidadão na proteção contra desastres ficaria limitada à escolha dos seus representantes no Poder Público, cabendo a estes tomar decisões políticas relacionadas à proteção contra desastres. Já, sob uma perspectiva mais ampla, a cidadania pode ser entendida como o poder conferido ao povo de participar de forma ativa no processo de tomada de decisão, sendo certo que seus direitos fundamentais devem ser preservados. Neste aspecto, LOPES concebe a cidadania como um direito fundamental. Para ela, a cidadania, além de participativa, deve ser ativa, na busca da construção de uma sociedade mais livre e igualitária, através da solidariedade.”283 E a mesma autora ainda esclarece que “a importância do reconhecimento da cidadania como um direito fundamental é essencial para garantir uma proteção muito mais rigorosa a respeito do seu cumprimento”.284 No mesmo sentido, SMANIO trata a cidadania como fundamento do Estado Democrático de Direito, deixando claro que os direitos fundamentais legitimam o Estado de direito e o conteúdo da cidadania. A cidadania passa a ser a base de participação política no Estado de direito, através do exercício dos direitos fundamentais.285 Conforme ensina OBARA286 No sistema constitucional pátrio, a qualidade da cidadania, isto é, a titularidade de direitos políticos não é atribuída a todo e qualquer indivíduo, mas somente àqueles que preencherem os requisitos constitucionais necessários para gozar deste direito 283 LOPES, op. cit., 2006, p. 18 Ibidem, p. 30. 285 SMANIO, Gianpaolo Poggio. As dimensões da cidadania. Revista da Escola Superior do Ministério Público, São Paulo, ano 2, jan./jun. 2009. p. 18. 286 SILVA, Alessandra Obara Soares da. Participação popular na administração pública: as audiências públicas. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2009. 284 98 Nesta ampliação evolutiva do conceito de cidadania, constata-se a inclusão de direitos de liberdade civil, participação política e satisfação das necessidades sociais. Assim, com o surgimento do Estado Democrático de Direito, tem-se a emergência dos direitos subjetivos públicos democráticos, ou seja, a juridificação do processo de legitimação287. Ademais, a noção de Estado Democrático de Direito ganha maior fundamento com a existência de uma jurisdição constitucional atuante e que se consolide como um importante centro de decisões politicamente relevantes.288 Tem-se, assim, que a cidadania deixou de limitar-se à noção de determinação de nacionalidade do indivíduo, passando a traduzir-se como expressão de direitos fundamentais e de solidariedade.289 Logo, adotando-se essa segunda concepção sobre cidadania, observase uma maior valorização do papel do indivíduo na sociedade, participando de forma ativa nas políticas públicas e decisões administrativas a serem adotadas pelo Poder Público. Deste modo, a participação política do cidadão ganha relevância, na media em que este passa a atuar de forma ativa, opinando em relação às ações administrativas, fiscalizando a atuação estatal e reivindicando direitos que lhe pertencem e que devem ser respeitados e protegidos. Neste aspecto, o exercício da cidadania constitui-se como importante instrumento na salvaguarda dos direitos fundamentais. Especificamente em relação ao exercício da cidadania em sede de desastres “naturais” hidrológicos tem-se que a atuação do indivíduo (e, especialmente, dos indivíduos que vivem nas proximidades dos locais sujeitos a esse tipo de desastre) pode contribuir de forma relevante para a proteção desse direito fundamental, auxiliando o Poder Público na definição e implementação de políticas públicas e criando uma cultura popular de proteção contra desastres.290 Discorrendo sobre as dimensões históricas dos direitos fundamentais, SMANIO destaca – na terceira dimensão - a participação política do cidadão. Neste momento “a perspectiva da cidadania deixa de ser vertical em relação ao Estado e passa a ser 287 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. PEREIRA Francisco Antônio Rodrigues. Ativismo judicial e a ideia de atividade política do poder judiciário: perfil e limitações. (Dissertação) - Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008.p. 23. 289 SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legitimidade jurídica das politicas públicas: a efetivação da cidadania. In: ______.; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins (Org.). O direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013. p. 3. 288 290 Com relação à “cultura de proteção contra desastres” veja-se as ações implementadas pela prefeitura de Belo Horizonte (item 4.3, infra) e o item 4.6 99 horizontal”. Assim, segundo o referido autor, “a cidadania adquire assim caracterização política, horizontal, abstrata e universal, fundamentando a formação do Estado do século XVIII”.291 No mesmo sentido é a opinião de MEDEIROS, para quem os direitos fundamentais possuem uma eficácia irradiante sobre todo o ordenamento jurídico, a qual serve de diretriz para a interpretação e aplicação do direito, bem como uma eficácia horizontal, que corresponde à força vinculante dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas.292 Ademais, também não se pode deixar de mencionar o papel da população na fiscalização dos gastos públicos. Conforme anteriormente informado, em períodos de tragédia, os mecanismos de controle da aplicação de verbas são diferenciados, uma vez que as contratações são realizadas sem licitações e com projetos básicos deficientes ou incompletos. A ideia por trás dessa exceção é agilizar as compras e as obras para atender a população atingida pelas tragédias, protegendo seus direitos fundamentais. Porém, uma consequência indireta é a diminuição dos mecanismos de controle da aplicação das verbas públicas, abrindo-se a possibilidade para que maus gestores aproveitem-se dessas brechas para desviar recursos. Por isso, a importância da fiscalização pelos órgãos públicos e pela sociedade, sob pena da proteção aos direitos fundamentais tornar-se ineficaz. Assim, para que o cidadão exerça, de fato, o seu papel de ator principal em sede de desastres, é necessário que o mesmo comece a atuar de forma ativa em relação a tais eventos, sob pena de se transformar em uma marionete, aguardando passivamente que os administradores públicos adotem medidas em benefício da coletividade. Neste aspecto, a primeira ação a cargo do cidadão refere-se a fiscalização das ações administrativas em sede de desastres. Tal fiscalização deve estar presente em todos os momentos, ou seja: desde a propositura de projetos legislativos tendentes a evitar ou reduzir os riscos de desastres até o envio e aplicação de recursos disponibilizados na hipótese de ocorrência de desastres, que venham a gerar prejuízos para a coletividade. 291 SMANIO, op. cit., 2009. p. 14. MEDEIROS, Vera Maria Alécio Brasil. Da jurisdição constitucional: uma análise da concretização dos direitos fundamentais à luz da hermenêutica constitucional. Dissertação (mestrado) - UFRN, Natal, 2006. p. 213. 292 100 Assim, ampliar os instrumentos de participação, bem como a efetiva participação dos cidadãos nas decisões estatais é medida salutar para o desenvolvimento da cidadania. Ademais, a participação democrática dos diversos atores é condição legal para o sucesso do planejamento urbano293 2.3 DA EMERGÊNCIA DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL No passado, os desastres eram vistos simplesmente como acontecimentos ensejadores de situações de caso fortuito ou força maior. Isso porque, por se tratarem de acontecimentos imprevisíveis ou inevitáveis, romperiam o nexo causal, isentando qualquer pessoa (incluindo o Estado) do dever de indenizar. No entanto, tal situação alterou-se na medida em que houve um aumento na incidência dos desastres, acompanhado de prejuízos humanos significativos para toda a coletividade. Segundo assevera BOBBIO, a multiplicação dos direitos fundamentais tem como causas: o aumento da quantidade de bens consideradoras merecedores de tutela; a extensão de alguns direitos a todos os indivíduos; e o fato de que o ser humano passou a ser visto segundo suas especificidades no convívio em sociedade.294 Assim, novos direitos passaram a integrar os denominados direitos fundamentais, tais como o direito ao envelhecimento, o direito à assistência aos desamparados, etc. Nessa ótica, a proteção contra desastres passa a integrar o rol de direitos fundamentais, carecendo de uma atuação proativa por parte do Poder Público e da sociedade. Do mesmo modo, o desenvolvimento da sociedade permitiu o surgimento de novas tecnologias e, paralelamente, intensificou os danos causados ao meio ambiente. Emissão de gases poluentes, poluição atmosférica, construções em locais inadequados, desmatamentos realizados de forma irregular, entre outros fatores, contribuíram para a intensificação dos desastres ocorridos no planeta, fazendo com que sociedade e Estado passassem a procurar mecanismos eficazes para a mitigação dos problemas decorrentes de tais acontecimentos. 293 294 SCHENKEL, op. cit., p. 82. BOBBIO, op. cit., p. 68 101 Para assegurar a redução dos riscos de desastres, o Poder Público deve adotar determinadas medidas protetivas, sendo que tais medidas são estabelecidas, notadamente, em normas urbanisticoambientais com o objetivo de garantir segurança a todos os habitantes de determinada localidade, uma vez que a proteção contra desastres é essencial para a manutenção da dignidade da pessoa humana. Assim, com a evolução e desenvolvimento da sociedade, novos direitos surgem visando dar maior efetividade à proteção desse núcleo essencial dos direitos humanos.295 A proteção contra desastres guarda fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana e objetiva a tutela do direito à vida da população que vive no local atingido pelo desastre. Deste modo, é possível afirmar-se que o direito de proteção contra desastres encontra-se tutelado desde o surgimento da doutrina dos direitos fundamentais (na medida em que guarda estreita relação com a proteção da vida e dignidade da pessoa humana), podendo ser observado dentro das diferentes dimensões de direitos fundamentais, uma vez que, sob o ângulo da teoria dos direitos fundamentais, estes podem ser tutelados sob diferentes dimensões. É o que ocorre, por exemplo, com relação ao direito de proteção contra os desastres, o qual pode ser observado sob a ótica dos direitos fundamentais em suas diversas dimensões. Neste aspecto, CANOTILHO, fazendo referência ao direito à habitação, assevera: [...] quando se afirma que o direito à habitação é um direito do cidadão estamos a acentuar o caráter individual do direito; quando afirmamos que para assegurar o direito à habitação incumbe ao Estado programar e executar uma política de habitação inserida em plano de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanizamos(...) estamos a salientar a dimensão institucional de um direito.296 Assim, com o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, a proteção contra desastres ganhou ainda mais força dentro do ordenamento jurídico. Isso porque, no contexto dos direitos fundamentais, a proteção contra desastres (e, em especial, os 295 Para a presente tese será considerado núcleo essencial dos direitos humanos o conteúdo mínimo e intangível (também denominado núcleo duro e imodificável do direito fundamental) o qual, em quaisquer circunstâncias, deve sempre ser protegido, sob pena de criar grave situação de inconstitucionalidade, por afronta à dignidade da pessoa humana. 296 CANOTILHO, op. cit., 2003. p. 183. 102 direitos naturais hidrológicos) pode ser realizada dentro das diversas dimensões dos direitos fundamentais. Assim, sob a ótica dos direitos de primeira dimensão, protege-se o direito à vida do indivíduo. Já, em um contexto de direitos de segunda dimensão, passou-se a proteger os direitos sociais, nos quais encontram-se o direito à saúde, o direito à moradia, assistência aos desamparados, entre outros. Tais direitos alicerçam a proteção contra desastres enquanto direito fundamental do ser humano. Do mesmo modo, tem-se assistido a uma evolução do papel do Estado, o qual passa a intervir por meio de normas, atos administrativos ou judiciais, na tutela de direitos fundamentais. Entre tais direitos ressaltem-se os direitos sociais, que, justamente em razão de exigirem uma atuação prestacional por parte do Estado, vêm ampliando-se ao longo dos anos. A proteção contra desastres passa, então, a ser vista enquanto direito fundamental e que, portanto, merece sua adequada proteção jurídica. Ademais, com o surgimento de uma nova serie de problemas ambientais, que trazem consequências para a sociedade, o Direito (enquanto ciência jurídica) acaba tendo de se ajustar à essa sociedade de risco e às suas demandas, cada vez mais globais e ameaçadoras.297 Nesta perspectiva, surge o ramo jurídico denominado “direito de proteção contra desastres” ou, como preferem alguns, simplesmente, “direito dos desastres”.298 Além dos princípios inerentes aos direitos fundamentais, bem como das disposições constitucionais sobre o tema, observe-se que, dentre as alterações estabelecidas no Estatuto da Cidade, por força da Lei nº 12.608, de 2012, 299 a inserção, dentre as diretrizes gerais da política urbana, a ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a exposição da população a riscos de desastres. 300 Assim, com o objetivo de complementar as regras estabelecidas pela Constituição Federal em sede de política 297 CARVALHO, op. cit., 2008. p. 35. Neste sentido, veja-se: CARVALHO, op. cit., 2013. FARBER, Daniel. Disaster law and emergingissues in Brazil. In: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 4, n. 1, p. 2-15, 2012. 299 A lei 12.608/2012 institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil - CONPDEC; autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres; altera as Leis nos 12.340, de 1o de dezembro de 2010, 10.257, de 10 de julho de 2001, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.239, de 4 de outubro de 1991, e 9.394, de 20 de dezembro de 1996; e dá outras providências. 300 Art. 2º, VI, h, da lei 10.257/2001, com redação dada pela lei 12.608/2012 298 103 urbana301, a proteção contra desastres foi expressamente prevista como uma diretriz a ser seguida pela política urbana nacional. Os dados constantes no quadro a seguir demonstram o grande impacto que os desastres hidrológicos causam aos seres humanos, quer em relação ao número de óbitos, quer em relação ao número de pessoas afetadas. Para os fins objetivados na presente tese foram destacados os Estados da Região sudeste, região na qual os desastres hidrológicos foram mais impactantes durante o período da pesquisa (1991 a 2010).302 301 Art. 182 da CF: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes” 302 Conforme informado, 70% das mortes relacionadas a desastres hidrológicos no período entre 1991 e 2010 ocorreram na região Sudeste do Brasil. 104 Quadro 5 - Quantidade de mortos e afetados em decorrência de inundações e movimentos de massa entre 1991 e 2010 no Brasil Espécie de INUNDAÇÃO BRUSCA E desastre: INUNDAÇÃO GRADUAL ALAGAMENTO Estado n. ocorrências n. ocorrências NORTE mortos afetados MOVIMENTO DE MASSA mortos afetados n. ocorrências mortos afetados 433 55 1.424.117 292 47 951.875 5 0 4.798 1.030 71 4.190.308 1.664 242 6.273.247 22 5 54.414 ES 114 3 339.329 377 38 2.249.361 26 7 173.222 MG 786 60 1.696.409 935 525 1.602.128 135 34 299.638 RJ 155 195 723.199 262 263 263 140 395 747.372 SP 104 16 394.847 462 153 5.720.141 70 5 231.107 1.159 274 3.153.784 2.036 979 9.571.893 371 CENTROESTE 219 1 288.894 303 9 3.295.464 0 0 0 SUL 832 60 1.096.840 2.476 228 8.348.277 56 0 115.561 3.673 461 10.230.240 6.771 1.069 28.440.756 454 505 2.004.483 NORDESTE SUDESTE TOTAL 500(*) 1.829.710(*) (*) observou-se a existência de divergências entre os dados constantes no Atlas Brasil e nos Atlas referentes às respectivas unidades da federação. 105 O grande número de mortos e afetados em razão da eclosão de desastres naturais hidrológicos303 demonstra a relevância desta questão para a sociedade e, consequentemente, a necessidade de uma intervenção jurídica adequada. Assim, defende-se, nesta tese, a análise da questão atinente aos desastres hidrológicos dentro da perspectiva dos direitos fundamentais em razão da presença dos elementos que dão sustentáculo para tais direitos. Os direitos fundamentais são fruto da evolução histórica e social, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades.304 Desse modo, tais direitos são construídos ao longo do tempo, em razão do desenvolvimento da sociedade e do surgimento de novas necessidades que demandam sua efetiva proteção por parte do Poder Público. O aumento do número de desastres e dos prejuízos deles decorrentes cria a necessidade de atuação do Estado visando à proteção do indivíduo e da coletividade. Neste aspecto, observa-se que diversos países têm se mobilizado na busca de alternativas que possam proteger o indivíduo na hipótese de ocorrência de desastres. Uma dessas alternativas tem sido o estímulo à criação de seguros contra desastres naturais. Assim, pesquisadores de diversas universidades têm procurado desenvolver uma metodologia para a implantação de um modelo de seguro contra inundações em bacias urbanas. Neste sentido, GRACIOS desenvolveu pesquisa investigando a forma como as bacias se comportam, reunindo informações hidrológicas, hidráulicas, geográficas e topográficas do local, para saber qual o risco e custo dos seguros para áreas atingidas por enchentes.305 Durante o primeiro encontro do ciclo de debates “Águas Urbanas e Infraestrutura: Novos Desafios à Engenharia Nacional”, realizado no dia 26/06/2013, no Instituto de Engenharia em São Paulo-SP, discutiu-se o seguro como instrumento de gestão de risco, tendo como referência a experiência dos Estados Unidos. Neste aspecto, a palestra “Seguro contra Inundações - Gestão de riscos e perspectivas de avanço para projetos em habitação e infraestrutura urbana,” conduzida pelo especialista americano Roy Wright (responsável pelo Programa Nacional de Seguro contra Inundações da Federal Emergency Management Agency (FEMA)306 mencionou o programa de seguros dos Estados Unidos, o qual iniciou-se na década de 1960 e sofreu alterações ao longo do tempo. Segundo WRIGHT, o programa é 303 Conforme mencionado, muito embora os movimentos de massa não sejam classificados como desastres hidrológicos julgou-se oportuno fazer menção a eles em razão de sua relação com os desastres hidrológicos 304 BOBBIO, op. cit., p. 5. 305 GRACIOS, Melissa. Brasil começa a desenvolver metodologia para seguros contra inundações. Disponível em: <http://www.labjor.unicamp.br/midiaciencia/article.php3?id_article=262>. Acesso em: 10 go. 2013. 306 Agência Federal de Gestão de Emergências 106 viabilizado por meio de iniciativa público-privada, sendo fundamental a participação e a conscientização das comunidades sobre a importância de aderir ao projeto. O referido encontro propôs ampliar o debate com vistas a antecipar e prevenir os fatos por meio de avaliações técnicas, além de tornar possível novas iniciativas de financiamentos tanto para prevenção quanto para reparo de situações decorrentes das inundações em áreas urbanas. Ademais, para que uma seguradora resolva entrar no mercado de seguros contra enchentes, é necessário um estudo detalhado que informe os riscos de sua ocorrência e outros dados que permitam um investimento com uma margem segura de arrecadação, para que o investimento seja viável. Assim, somente de posse de tais dados e aliado à união dos setores público e privado será possível avançar-se nessa linha.307 Nos Estados Unidos destaque-se a lei Stafford – que é uma lei federal projetada para permitir a assistência a governos estaduais e municipais vítimas de desastres naturais e regulamenta a proteção contra tais desastres. Assim, a referida lei define juridicamente a forma como se dará a declaração de desastres, além de determinar os tipos de assistência prestados pelo Poder Público.308 Tal lei contempla ações de preparação para desastres e mitigação, além de ações de assistência, de emergência e recuperação. Do mesmo modo, prevê a prestação de assistência financeira, na forma de subsídios para Estados e Municípios que sejam vítimas de um desastre. Trata-se de auxílio importante para que as localidades atingidas possam adotar medidas necessárias tendentes à superação da crise, não obstante – a depender da dimensão do desastre e, principalmente, da preparação do Estado para atuar nestas situações – a recuperação da área atingida poderá ocorrer em maior ou menor tempo.309 Do mesmo modo, a referida lei objetiva incentivar Estados e Municípios a desenvolverem planos abrangentes de preparação para desastres, bem como incentivar o uso de cobertura de seguro e oferecer programas de assistência federal para perdas devido a desastres.310 A atenção dada pelo Poder Público, mídia e coletividade em relação aos desastres hidrológicos demonstra a relevância destes eventos dentro da sociedade atual, tendo em vista que o aumento de tais desastres tem acarretado prejuízos humanos e materiais relevantes, 307 Disponível em: <http://www.maxpressnet.com.br/Conteudo/1,599335,Seguro_contra_enchentes,599335,8. htm.>. Acesso em: 10 ago. 2013. 308 CARVALHO, op. cit., 2013. p. 104. 309 Neste aspecto, relembrem-se os seguintes desastres: acidente nuclear de Chernobyl (1986); Tsunami no oceano índico (2004); Furacão Katrina (2005); Terremoto no Haiti (210); acidente nuclear em Fukushima, decorrente de um tsunami (2011), etc. 310 Stafford Disaster Relief and Emergency Assistance Act 107 exigindo-se a intervenção da Ciência do Direito, com vistas a oferecer respostas jurídicas que possibilitem um melhor enfrentamento dos fatos relacionados aos desastres hidrológicos. Por fim, a proteção contra desastres hidrológicos - por se constituir como um direito fundamental do ser humano - exige a adoção de medidas tendentes a sua efetiva proteção, na medida em que os desastres hidrológicos relacionam-se com diversos outros direitos fundamentais, conforme se passará a expor. 2.4 DA RELAÇÃO DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES E OUTROS DIREITOS FUNDAMENTAIS Uma característica primordial dos direitos fundamentais refere-se a inter-relação entre eles. Assim, não obstante se possa afirmar que o direito de proteção contra desastres constitua-se como um direito fundamental autônomo, observa-se que ele também se encontra diretamente relacionado com outros direitos fundamentais consagrados no texto constitucional. A visualização do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental autônomo consubstancia-se no fato da proteção aos direitos fundamentais não se restringir apenas à vida e à saúde, mas, sim, a “tudo aquilo que seja digno de proteção a partir do ponto de vista dos direitos fundamentais”.311 Quando se fala em proteção contra desastres, objetiva-se propiciar dignidade ao indivíduo, o que pode ser obtido de várias formas, tais como por meio da proteção do direito à vida e à incolumidade física do cidadão; por meio a existência de um sistema de segurança que os proteja contra desastres; por meio da participação do cidadão no sistema nacional de Defesa Civil; por meio da conscientização de que os desastres são provocados ou agravados por ações ou omissões humanas; por meio da atuação social, não permitindo que outros contribuam para a degradação ambiental, provocadora e agravadora de desastres.312 311 ALEXY, op. cit., 2012. p. 450. SECRETARIA DE DEFESA CIVIL. Política Nacional de Defesa Civil. Ministério da Integração Nacional: Brasília, 2000. disponível em: <http://www. disaster-info.net/PED-Sudamerica/leyes/leyes/suramerica/brasil/ sistemnac/ Politica_ Nacional_Defensa_Civil.pdf>. Acesso em: 30 out. 2013. 312 108 Acrescente-se, finalmente, dentre os bens necessários para a manutenção da dignidade humana, a moradia, o trabalho, o meio ambiente, além de uma alimentação sadia, etc. 313 2.4.1 Direito à vida O direito à vida constitui-se como o primeiro e mais importante direito protegido pelo Direito. Em nosso ordenamento jurídico, o direito à vida encontra-se atrelado à dignidade da pessoa humana, não podendo dele se dissociar. Fala-se, assim, em vida digna. O Direito de proteção contra desastres visa, inicialmente, proteger o direito à vida dos indivíduos sujeitos à ocorrência de desastres. Assim, a proteção contra o risco de desastres traduz-se em um mecanismo importante para salvaguardar o direito à vida. Do mesmo modo, outros direitos fundamentais (tais como o direito à saúde, o direito ao meio ambiente, etc.) também têm por objetivo a proteção do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Neste aspecto, o direito à vida abrange, também, o direito a “uma (sadia) qualidade de vida, como direito fundamental”. 314 Importante observar que a proteção do direito à vida pode dar-se tanto e forma individual (como, por exemplo, quando uma pessoa é vítima de um desastre) quanto coletiva (na hipótese em que um determinado grupo de pessoas ou moradores de determinado local têm seu direito à vida ameaçado (ou lesado) em razão da possibilidade de um desastre natural hidrológico). Observe-se, finalmente, que a proteção do direito à vida implica na proteção de outros direitos fundamentais a ela diretamente relacionados. Assim, a proteção do direito à vida implica na manutenção das condições ambientais que dão suporte à própria vida, de tal forma que o ordenamento jurídico deve dar resposta coerente e eficaz às novas realidades sociais. 315 2.4.2 Direito à moradia O direito à moradia já se encontrava consagrado na Constituição Federal de 1988 desde sua promulgação. Assim, o artigo 7º, IV elenca o direito à moradia como uma 313 FLORES, op. cit., p. 34 JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 178. 315 Ibidem, p. 181-2. 314 109 necessidade vital básica do indivíduo a qual deveria ser atendida por meio do salário mínimo.316 Deste modo, a natureza de direito fundamental inerente ao direito à moradia encontra-se prevista no texto constitucional (em sua redação original) além de ser corolário decorrente da proteção da dignidade da pessoa humana. Contudo, com o advento da Emenda Constitucional nº 26, de 14/02/2000, tal direito ganhou ainda mais força passando a integrar, expressamente, o rol dos direitos sociais, os quais constituem-se como direitos fundamentais de segunda dimensão. Sobre o tema, observe-se que a expressão “moradia” demonstra a continuidade e estabilidade do direito, o qual deve ser exercido de modo duradouro. Assim, usou-se a expressão “moradia” ao invés da expressão “residência.” Segundo SAULE JUNIOR, o direito à moradia integra a categoria dos direitos econômicos, sociais e culturais, de tal forma que, para ter eficácia jurídica e social, exige uma ação positiva por parte do Estado, por meio de políticas. Públicas.317 Tais direitos devem ser protegidos em todos os momentos e, especialmente, em ocasiões de desastre. A vulnerabilidade da população atingida faz com que o Estado e a sociedade se organizem no sentido de atender as pessoas atingidos, garantindo-lhes a proteção destes (e outros) direitos sociais atingidos. Segundo o entendimento de SACHS, o direito à moradia decente constitui-se como uma necessidade básica da população e, ao mesmo tempo, um enorme desafio para o chamado desenvolvimento includente.318 LAZARI, por sua vez, discorre sobre o “direito de não perder um lar”, acrescentando (com base no princípio do mínimo existencial) o direito de que este lar seja servido por prestações estatais de absoluta necessidade.319 Conceber o direito à moradia enquanto direito fundamental da pessoa humana implica em atribuir-lhe as características inerentes a tais direitos, a saber: a inalienabilidade, a imprescritibilidade, a irrenunciabilidade, a inviolabilidade, a universalidade, a interdependência e a complementariedade.320 Analisando a questão sob a ótica dos direitos fundamentais de terceira dimensão, temse que o direito à moradia e a proteção contra os desastres também possuem fundamento constitucional e humanitário. Isso porque, conforme mencionado, os direitos de terceira dimensão estariam relacionados aos direitos de fraternidade ou solidariedade, que são 316 PINHEIRO, Marcelo Rebello. A eficácia e a efetividade dos direitos sociais de caráter prestacional: em busca da superação dos obstáculos. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2008. p. 168-9. 317 SAULE JUNIOR, Nelson (Coord.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Max limonad, 1999. p. 98. 318 SACHS, op. cit., p. 40. 319 LAZARI, Rafael José Nadim de. Reserva do possível e mínimo existencial: a pretensão da eficácia da norma constitucional em face da realidade. Curitiba: Juruá, 2012. p. 143. 320 SOUSA, Sergio Iglesias Nunes. Direito à moradia e de habitação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 44. 110 inerentes à situação vivida pelas pessoas vítimas de um desastre. Com a ocorrência do desastre as pessoas perdem familiares, amigos, além de seus bens materiais mais preciosos, tais como casas, roupas, etc. Neste momento, a população encontra-se extremamente vulnerável e necessitando de auxílio de modo a garantir-se um mínimo de qualidade de vida, de modo a superar o desastre vivenciado. A questão atinente à proteção dos indivíduos vítimas de desastres ganha ainda maior relevo dentro do contexto da sociedade de risco, uma vez que o desenvolvimento dessa sociedade faz com que os riscos de desastres aumentem, exigindo uma atuação cada vez mais efetiva por parte do Poder Público e da sociedade. Segundo SAULE JÚNIOR, o direito à moradia constitui-se como uma responsabilidade do Estado Brasileiro, de tal forma que deve ele atuar de forma a garantir a efetivação (e proteção) deste direito. O direito à moradia constitui-se, assim, como um direito humano integrante dos direitos fundamentais reconhecidos no direito brasileiro e que implica na obrigação e responsabilidade do Estado em proteger e assegurá-lo.321 Assim, não basta ter direito à moradia: é necessário ter-se direito a uma moradia digna. Neste aspecto, o conceito de moradia digna atrela-se à existência de moradias fora das áreas de risco, com saneamento ambiental e infraestrutura urbana, acesso ao trabalho e lazer, etc.322 Acrescente-se, ainda, que a adequação das moradias às necessidades do indivíduo reflete diretamente na qualidade de vida dos moradores. Ocorre que a falta de condições financeiras, aliada à falta de opções de moradia para boa parte da população contribuem para o crescimento de ocupações em áreas de risco e construções irregulares e inadequadas, as quais acabam contribuindo para o aumento do número de desastres “naturais” hidrológicos. Ainda, com relação à moradia, cumpre-nos relembrar que o artigo 5º, XI, da Constituição Federal proclama que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. Assim, somente nas hipóteses acima mencionadas é possível o ingresso sem a autorização do morador. Observe-se, contudo, que a expressão “desastre” foi utilizada sem rigor técnico, de modo a abranger qualquer situação de perigo vivenciada por aqueles que se encontrem na referida casa. 321 SAULE JUNIOR, Nelson (Coord.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Max limonad, 1999. p. 90. 322 ROGUET, op. cit., p. 311. 111 Contudo, em sede de direito dos desastres, observa-se que a falta de condições econômicas da população e a falta de opções de moradia acaba contribuindo para ocorrência de desastres “naturais” hidrológicos. Igualmente, a falta de opções de moradia dá azo a outro fator que contribui para a ocorrência de desastres: as ocupações irregulares. A ocupação irregular do solo é uma das principais causas dos desastres provocados pelas chuvas, razão pela qual houve uma preocupação especial do legislador com relação a ela.323 Do mesmo modo, a construção em áreas de risco, tais como áreas de encostas, entre outras propensas a deslizamentos, constitui-se como um fator preocupante e que deve ser observado por todos os envolvidos. Assim, a ocupação de encostas e outros locais de considerável declividade ou impróprios para habitação aumenta o risco de desastres nestas áreas. Isso porque as pessoas, ao construírem suas casas, escavam o morro e abrem plataformas, o que aumenta a declividade e a infiltração de água no terreno. Ademais, a instalação de populações nesta área faz com que o risco de deslizamentos se transforme em um problema social. A título exemplificativo, observe-se que, atualmente, cerca de 30% da população da Região Metropolitana de São Paulo, ou seja, 2,7 milhões de pessoas vivem em comunidades, cortiços e habitações precárias, quase sempre ilegais. 324 São concentrações significativas de áreas de risco de escorregamentos.325 Por esta razão, a ocupação irregular encontra-se diretamente relacionada aos desastres hidrológicos. Aliás, conforme mencionado, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil tem entre seus objetivos estimular o ordenamento da ocupação do solo urbano e rural, tendo em vista sua conservação e a proteção da vegetação nativa, dos recursos hídricos e da vida humana e combater a ocupação de áreas ambientalmente vulneráveis e de risco e promover a realocação da população residente nessas áreas.326 Assim, o Poder Público deve utilizar-se do seu “poder de polícia”, de modo a não permitir o uso da área mais crítica. O mesmo poder de polícia deve ser utilizado de modo a 323 Segundo TOMINAGA, os principais condicionantes antrópicos que contribuem para a saturação do solo e concentração de água nessas regiões são o uso e ocupação irregular do solo nas planícies e margens de cursos d’água, a disposição irregular de lixo nas proximidades dos cursos d’água e a alteração das características das bacias hidrográficas e cursos d’água. Para maiores detalhes, veja-se: TOMINAGA, desastres... op. cit., 2009. p. 45. 324 Segundo asseveram ROGUET e CHOHFI, a região sudeste possui a maior quantidade de aglomerados subnormais no país, sendo certo que São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados com maior quantidade, respectivamente. Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Apud: ROGUET, op. cit., 2013. p. 315. 325 Disponível em: http://www.mudancasclimaticas.andi.org.br/node/1458/. Acesso em 7 out. 2013. 326 art. 5º, X e XI da lei 12.608, de 10 de abril de 2012 112 retirar os habitantes destas áreas (na hipótese de existência de risco de deslizamento) transportando-os para locais mais seguros.327 Do mesmo modo, tem-se que, verificada a existência de ocupações em áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, o Município adotará as providências para redução do risco, dentre as quais, a execução de plano de contingência e de obras de segurança e, quando necessário, a remoção de edificações e o reassentamento dos ocupantes em local seguro.328 A Lei no 12.340/2012 ainda proclama, em seu art. 3o-A, § 4o, que, sem prejuízo das ações de monitoramento desenvolvidas pelos Estados e Municípios, o Governo Federal publicará, periodicamente, informações sobre a evolução das ocupações em áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos nos Municípios constantes do cadastro.329 Essa lei também estabeleceu uma série de procedimentos com vistas à remoção dos moradores da região. Assim, para que a remoção se efetive, será necessária a realização de vistoria no local e elaboração de laudo técnico que demonstre os riscos da ocupação para a integridade física dos ocupantes ou de terceiros e a notificação da remoção aos ocupantes acompanhada de cópia do laudo técnico. Caso seja necessário, deverão ser fornecidas informações contemplando as alternativas oferecidas pelo Poder Público para assegurar seu direito à moradia, tendo em vista sua natureza de direito fundamental. Registre-se que, na hipótese de remoção de edificações localizadas em área de risco, é importante a adoção de medidas que impeçam a reocupação da área, sob pena da remoção não atingir os objetivos almejados. Neste aspecto, é importante salientar que a lei ainda estabeleceu que aqueles que tiverem suas moradias removidas deverão ser abrigados, quando necessário, e cadastrados pelo Município para garantia de atendimento habitacional em caráter definitivo, de acordo com os critérios dos programas públicos de habitação de interesse social.330 2.4.3 Direito à saúde 327 DÓRIA, op. cit., p. 68. Lei no 12.340 “Art. 3º-B. incluído pela lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012 329 Redação dada pela lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. 330 Art. 3º-B. § 3o da Lei no 12.340/2012, com redação dada pela Lei nº 12.608, de 2012. 328 113 DALLARI conceitua saúde como um bem fundamental do indivíduo, o qual, “por meio da integração dinâmica de aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento, visa assegurar ao indivíduo o estado de completo bem-estar físico, psíquico e social.”331 Deste modo, tem-se que o direito à saúde também constitui-se como um direito social expressamente previsto na Constituição Federal brasileira, incumbindo sua proteção a todos os entes federados, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.332 Logo, a saúde traduz-se em um direito básico do ser humano incluído no rol dos Direitos Humanos e dos Direitos fundamentais, objetivando atender aos princípios densificadores do Estado Democrático.333 Sobre o tema, DALLARI assevera: [...] enfocar o direito à saúde como parte dos direitos fundamentais implica afirmar a existência, ao menos do ponto de vista dos princípios gerais, de um regramento comum a todos os demais direitos que se integram a esta categoria jurídica” de tal forma que “a assimilação de um direito como fundamental provoca identificação de um rol de características que lhes emprestam um traço unificar”, qual seja o seu regime jurídico.334 Assim, tratando-se de um direito fundamental do ser humano, incumbe ao Estado atuar de modo a garantir sua proteção. Contudo, não obstante a promoção do direito à saúde seja da incumbência de todos os entes que compõem a Federação, incumbe ao Município prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população. Isso porque a eclosão de um desastre acaba repercutindo diretamente na saúde da população atingida. Durante a realização da Oficina Regional da Organização Mundial da Saúde foram detectados os principais problemas posteriores à ocorrência de um desastre. São eles os relacionados ao abastecimento de água, saneamento básico, controle de vetores, higiene pessoal, enterro dos mortos e informação à população.335 A mesma Oficina também apontou as principais consequências previsíveis dos desastres, tais como a necessidade de socorro 331 DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010. p. 13. 332 Art. 196 da CF 333 SEGUIN, Elida. Biodireito. Rio de Janeiro: Lúmen juris, 2001. p. 51. 334 DALLARI, op. cit., p. 36-8. 335 ORGANIZACION PANAMERICANA DE LA SALUD. Oficina Sanitaria Panamericana, Oficina Regional de la Organizacion Mundial de la salud. Administracion sanitária de emergência com posterioridade a los desastres naturales. Washington, DC: 1981. 114 imediato, o cálculo das necessidades da população (aquisições de alimentos, medicamentos, roupas, etc.). Assim, o socorro às vítimas (com o fornecimento dos itens necessários) é fundamental para amenizar a situação vivenciada, bem como para evitar novos problemas para a população atingida, uma vez que, tanto nas secas como nas inundações, aumenta o consumo de água não potável, o que contribui para o surgimento de surtos de gastroenterites com desidratação, entre outras moléstias.336A propósito, registre-se que a quase totalidade das cidades brasileiras desenvolve programas de desratização extremamente ineficientes, contribuindo para que surtos de leptospirose, em circunstâncias de inundações urbanas, sejam bastante frequentes.337 Constata-se, portanto, que, a depender da magnitude do desastre, uma série de medidas precisam ser adotadas, sendo certo que a preparação e a comunicação entre os atores envolvidos é fundamental para evitar que mais vidas sejam perdidas. Por fim, registre-se que tamanha é a importância da proteção da saúde pelos entes públicos, que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a não aplicação do mínimo exigido da receita municipal nas ações e serviços públicos de saúde é causa para a intervenção Estadual nos Municípios.338 Logo, tem-se que a criação de mecanismos e instrumentos eficazes para contornar situações de desastres naturais hidrológicos é medida necessária para a manutenção da saúde da população e, em última análise, da proteção da dignidade da pessoa humana. 2.4.4. Direito à qualidade de vida A construção das sociedades de riscos é inerente ao desenvolvimento e crescimento das sociedades contemporâneas, as quais encontram-se marcadas pelo aumento populacional e pela excessiva demanda de consumo diretamente relacionada à industrialização e ao processo de globalização. Ademais, a ausência de políticas públicas e projetos eficientes voltados à preservação do meio ambiente contribuem para as mudanças climáticas e dos ecossistemas.339 336 Disponivel em: <http://www.defesacivil.sc.gov.br/images/stories/resoluo_n_3_de_02jul99.txt.>. Acesso em: 01 maio 2013. 337 Ibidem. 338 Neste sentido, veja-se art. 35, II da CF 339 SCHENKEL, op. cit., p. 52. 115 Lamentavelmente, a sociedade de risco acaba contribuindo para o comprometimento da qualidade de vida das presentes e futuras gerações, na medida que incentiva a deterioração dos recursos naturais em busca do lucro e do desenvolvimento. Conforme assevera SCHENKEL: [...] a construção das sociedades de risco está estreitamente ligada ao crescimento econômico e tecnológico desmesurado, cujas implicações repousam sobremaneira na perda da qualidade de vida à medida que se deterioram os recursos naturais na corrida pelo capitalismo e lucro acentuado.340 Tal intervenção do ser humano na natureza acaba contribuindo para o aumento dos desastres em nosso planeta, de tal forma que a proteção contra desastres passará a se tornar, a cada dia, uma tarefa fundamental para Estado e Sociedade. Assim, em face do progressivo aumento na intensidade e frequência em relação à ocorrência de eventos que levam a desastres naturais hidrológicos, faz-se necessário que Estado e sociedade passem a dar maior importância às questões relacionadas a tal temática, de modo a se adaptar às exigências decorrentes da mudança climática, contribuindo assim para que os efeitos dos desastres sobre a denominada “sociedade de risco” sejam minimizados ou mitigados. O direito dos desastres, como qualquer ramo jurídico, trata do estudo das relações humanas. Dentro de seu campo de estudo observa-se uma preocupação com manutenção da qualidade de vida e saúde do indivíduo, sendo certo que a ocorrência de desastre pode impactar o indivíduo (ou determinada comunidade) de forma negativa. Do mesmo modo, o direito dos desastres possui íntima relação com o direito à saudável qualidade de vida, bem como com o direito ao desenvolvimento econômico sustentável, de tal forma que a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais pode contribuir para a diminuição nos índices de desastres. Neste sentido, CARVALHO entende que, “com a inserção da expressão ‘sadia qualidade de vida’ no texto constitucional (art. 225, CF/1988), “os elementos ambientais passam a atuar como condição e limite segurança, propriedade”. para o usufruto dos direitos à vida, liberdade, 341 O direito à qualidade de vida, consoante defende JAMPAULO JÚNIOR, constitui-se como um direito fundamental do ser humano. Para ele, a qualidade de vida encontra-se relacionada ao bem estar do indivíduo, transitando entre todos os direitos fundamentais 340 341 SCHENKEL, op. cit., p. 53. CARVALHO, op. cit., 2008. p. 30. 116 ligados diretamente ao direito à vida, de tal forma que, obedecendo-se o princípio da dignidade humana em seu aspecto material, há de se visualizar o direito à qualidade de vida como um direito fundamental do ser humano.342 2.4.5 Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado O meio ambiente é juridicamente definido como “o conjunto de condições, leis influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”343. Como se vê, trata-se de uma definição extremamente ampla, a qual, segundo MAZZILI344 possibilita que a defesa da flora, da fauna, das águas, do solo, do subsolo e do ar seja realizada de forma praticamente ilimitada. Da definição utilizada, fica clara a relação entre o meio ambiente e o direito à vida. Além da definição legal, há conceitos criados pela doutrina. De acordo com CARVALHO345, o meio ambiente pode ser definido como o complexo de relações entre o mundo natural e os seres vivos. SILVA346, por sua vez, define-o como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”. Ainda com relação ao conceito de meio ambiente, AKAOUI347 defende que a definição apresentada é ampla o suficiente para abarcar todos os interesses de natureza ambiental, abrangendo o meio ambiente natural, cultural, do trabalho e urbano ou artificial. No Brasil, o meio ambiente passou a ter uma tutela constitucional destacada somente na Constituição de 1988, a qual inseriu um capítulo específico sobre o tema, tendo a referida Constituição elencado o direito ao ambiente sadio como um direito fundamental do indivíduo.348 Desta feita, o direito ao meio ambiente constitui-se como um direito fundamental do indivíduo, uma vez que sua existência se justifica em razão da proteção do direito à vida, saúde, qualidade de vida e, consequentemente, dignidade da pessoa humana.349 Assim, tem-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é considerado um direito 342 JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 181-2. Neste sentido, vide Lei nº. 6938/81 344 MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 148. 345 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição; direito constitucional positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 753. 346 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 20. 347 AKAOUI, Fernando Reverendo Vidal. Compromisso de ajustamento de conduta ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 24. 348 LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 47. 349 COUTINHO, op. cit., 2009., p. 20. 343 117 fundamental em razão de constituir-se como um requisito para a manutenção da sadia qualidade de vida, além de ter sido expressamente previsto no texto constitucional.350 E, para proteger tal direito, a Constituição Federal estabeleceu que: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.351 A inserção de um capítulo específico sobre o tema trouxe transformações para a questão ambiental no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, com o advento da Constituição de 1988, a proteção jurídica do meio ambiente passou a ter identidade própria, deixando de ser um bem jurídico per accidens, elevando-se ao status de bem jurídico per se. 352 Observe- se, entretanto, que a questão ambiental é tratada em diversas outras partes do texto constitucional.353 Deste modo, a criação de uma proteção jurídica autônoma para o meio ambiente, prevista em diversos capítulos da Constituição Federal, permitiu-lhe uma proteção mais efetiva, sem a necessidade de se buscar fundamento em outros direitos constitucionalmente protegidos. Assim, tal constitucionalização e autonomia do direito ao meio ambiente trouxe maior efetividade em sua proteção. Com relação aos efeitos da constitucionalização, SILVA354 destaca a unificação da ordem jurídica e a necessidade da sua simplificação. Para o referido autor, por meio da unificação, as normas constitucionais se tornariam, progressivamente, o fundamento comum dos diversos ramos do Direito. Do mesmo modo, a unificação acabaria relativizando a distinção entre direito público e privado, uma vez que a Constituição passaria a ser a base fundamentadora de todos os princípios da ordem jurídica. Deste modo, há de se concluir que o meio ambiente, além de ser direito constitucional, é, também, um direito fundamental de todos os seres humanos. E, na medida que o meio 350 COÊLHO, Ana Patrícia Moreira. Meio ambiente e desenvolvimento sustentável à luz do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Disponível em: <http://www.portalde periodicos.idp.edu.br/index.php/cadernovirtual/article/viewFile/ 639/43>. Acesso em: 17 ago. 2013. 351 Artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988. 352 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 300. 353 COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Direito ao meio ambiente: indisponibilidade do bem jurídico e possibilidade de acordos em matéria ambiental. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n. 69/70, jun./dez. 2009. p. 176. 354 SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 48-50. 118 ambiente passa a ser considerado um direito fundamental autônomo, essa circunstância traz consequências para toda a ordem jurídica. Assim, a proteção ambiental passa a ter como objetivo “tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida, como forma de direito fundamental da pessoa humana.”355 Do mesmo modo, discorrendo a respeito das consequências do reconhecimento do meio ambiente como direito humano fundamental, MARUM356 afirma que tal direito passa a ser irrevogável, eis que passa ele a se constituir como verdadeira cláusula pétrea do regime constitucional brasileiro. O mesmo autor ainda destaca a “integração plena e imediata dos pactos, tratados e convenções internacionais que versem sobre o tema”, bem como a prevalência da “norma que mais favoreça o direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado”.357 Nesta perspectiva, surge a necessidade de dar-se prioridade às medidas que evitem danos ao meio ambiente, com vistas à efetiva proteção desse direito fundamental.358 Assim, na medida em que o aumento da degradação ambiental possibilita a ocorrência de perigos naturais que podem vir a causar desastres e graves prejuízos ao ser humano,359 nítida se mostra a relação entre esses direitos fundamentais. 2.4.6 Direito à assistência aos desamparados A assistência aos desamparados constitui-se como um direito social de segunda dimensão, com conteúdo nitidamente prestacional360 e expressamente mencionado pela Constituição Federal. Conforme dispõe o art. 6º, todos têm direito à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, etc. Tais direitos são importantes na medida que criam condições para que o indivíduo mantenha sua dignidade incólume. Contudo, o indivíduo, sem esses direitos, acaba ficando em situação de desamparo, razão pela qual surge a necessidade de dar-se assistência àqueles que se encontrem nesta situação. A assistência aos desamparados constitui-se, assim, em uma forma de se resgatar a dignidade da pessoa humana, violada em razão da agressão a algum dos direitos fundamentais 355 SILVA, op. cit., 2000. p. 58. MARUM, Jorge Alberto de Oliveira. Meio ambiente e direitos humanos. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, 2002, p. 134. 357 MARUM, op. cit., p. 135. 358 SMANIO, Gianpaolo Poggio. A tutela constitucional do meio ambiente. Revista dos Tribunais, São Paulo, Ano 6, n. 21, p. 289, jan./mar., 2001. 359 SANTOS, op. cit., p. 11. 360 LAZARI, op. cit., p. 143. 356 119 do indivíduo. Neste aspecto, relembre-se que, em razão da ocorrência de desastres, as vítimas necessitam de roupas, assistência médica e outros elementos fundamentais para vida.361 Deste modo, todos os direitos até aqui mencionados constituem-se como direitos fundamentais em razão de objetivarem, em última análise, a manutenção da dignidade da pessoa humana. Ademais, caso o direito de proteção contra desastres fosse visto como mero instrumento para a salvaguarda de outros direitos fundamentais, chegar-se-ia à conclusão de que a saúde, o meio ambiente e a moradia também não se consubstanciariam em direitos fundamentais, haja vista que também podem ser classificados como instrumentos que objetivam a proteção do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, JAMPAULO JÚNIOR esclarece que a proteção do meio ambiente e sua qualidade possuem caráter instrumental que, acrescidos de outros requisitos, protegem o direito à vida e o direito à qualidade de vida.362 COÊLHO, a seu turno, relembra que, a partir do momento em que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é necessário à manutenção da sadia qualidade de vida, o mesmo passa a ser tratado como direito fundamental.363 2.5 DEVERES DO ESTADO NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Dentro deste contexto de surgimento, emergência e ampliação de direitos fundamentais ganha destaque a questão atinente aos deveres incumbidos ao Estado na proteção de tais direitos. Isso porque a evolução dos direitos fundamentais guarda íntima relação com a evolução do papel do Estado. Aliás, o papel do Estado e suas áreas de atuação tem aumentado em função das necessidades do indivíduo, no sentido de ter seus direitos protegidos de forma efetiva. Segundo PIOVESAN, o texto constitucional de 1988 “exige a eficiência de um Estado de bem-Estar Social, intervencionista e planejador”.364 Assim, o Estado Constitucional Democrático de 1988 passa a ser um “Estado de justiça social, concretamente realizável”.365 Conforme asseverado, uma das características dos direitos fundamentais refere-se a sua efetividade, ou seja: o Poder Público deve atuar para garantir a efetivação dos Direitos 361 ASSAR, M. Guia de saneamento en desastres naturales. Genebra: Organizacion Mundial de la Salud, 1971. p. 14. 362 JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 175. 363 COÊLHO, op. cit. 364 PIOVESAN, op. cit., p. 206. 365 Ibidem, p. 211. 120 fundamentais, usando os poderes que lhe são inerentes, dentro de um Estado Democrático e de Direito. Ademais, em razão dos direitos fundamentais terem como pressuposto a concessão de uma existência digna ao ser humano, torna-se imprescindível a atuação estatal em sua proteção e implementação.366 Do mesmo modo, os direitos fundamentais não podem ser desrespeitados pelo Poder Público e pelos demais membros da sociedade, sob pena de responsabilização civil, penal ou administrativa do violador. Tratam-se de características inerentes aos direitos fundamentais e que devem ser observadas e respeitadas. Nesse aspecto SARLET e FENSTERSEIFER relembram que “a caracterização do Estado Social e do conjunto de direitos fundamentais de segunda dimensão (sociais, econômicos e culturais) traz consigo a configuração de deveres sociais.”367 Em sede de direito ambiental, tem-se que Estado e sociedade devem cooperar na formulação e execução da política ambiental.368 Contudo, a Constituição foi expressa ao outorgar ao Estado uma série de atribuições estabelecidas, especialmente, no parágrafo primeiro do artigo 225 da Constituição Federal. Tal parágrafo “ressalta o papel do Poder Público na assecuração da efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.369 Dentre tais atribuições, destaque-se a de definir espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, nos quais a alteração e a supressão serão permitidas somente por meio de lei e vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. Do mesmo modo, incumbe ao Poder Público exigir estudo prévio de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. Inclui-se, ainda, entre os deveres do Estado com vistas a assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a tarefa de promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Segundo SACHS, a educação é essencial para o desenvolvimento, uma vez 366 RIBAS, op. cit., p. 20. SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Direto constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 229. 368 SMANIO, op. cit., 2001. p. 289. 369 LEMOS, op. cit., 2011. p. 52. 367 121 que contribui para a conscientização da população e a compreensão dos direitos humanos, contribuindo para a autonomia, autoconfiança e autoestima do indivíduo.370 Com a consagração da proteção ao meio ambiente como direito fundamental e dever estatal, impôs-se ao Estado a adoção permanente de medidas necessárias à proteção ambiental.371 Assim, a Constituição Federal de 1988 atribuiu ao direito ao ambiente o status de direito fundamental do individuo e da coletividade, consagrando a proteção ambiental como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro. 372 Paralelamente, tem-se que o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais trouxe para o Estado uma série de atribuições até então inexistentes. Hoje, para a salvaguarda dos direitos fundamentais, o Estado intervém na economia, nas relações privadas, na saúde, no meio ambiente, etc. Aliás, observe-se que, já no preâmbulo, a Constituição Federal projetou a instituição de um Estado democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. Assim, a atuação estatal com vistas à proteção dos direitos fundamentais traduz-se em uma exigência constitucional e que deve ser obedecida. E, para isso, é necessário que o Poder Público esteja “preparado para dar respostas rápidas às emergências da natureza”.373 Outro aspecto relevante refere-se à relação entre a proibição de retrocesso (característica inerente aos direitos fundamentais) e os deveres do Estado na proteção de tais direitos. Assim, tal característica (aplicada ao direito ambiental e ao direito de proteção contra desastres) implica na existência de um “dever estatal de progressiva melhoria da qualidade ambiental.”374 Especificamente em relação aos desastres naturais hidrológicos, observa-se que a Constituição Federal incluiu expressamente entre as funções da União a de “planejar e 370 SACHS, op. cit., p. 39. GARCIA, Maria da Gloria. F.P.D. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. GARCIA, op. cit., 2007. p. 481. 372 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSFEIFER, Tiago. O papel do poder judiciário brasileiro na tutela e efetivação dos direitos e deveres socioambientais. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 13, n. 52, p. 75, out./dez. 2008. 373 SEGUN, Elida. A lei de defesa civil: algumas considerações. Revista de Direitos Difusos, ano 12, v. 57-8, p. 68, jan./dez. 2012. 374 SARLET, op. cit., 2013. p. 219. 371 122 promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”. Do mesmo modo, permitiu-se ao Presidente da República (ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional) decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer a ordem pública ou a paz social atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.375 Tratam-se de medidas que visam dar maior efetividade à atuação estatal na defesa de tais bens jurídicos, na medida em que, tratando-se de direitos fundamentais, eventual omissão do Estado com relação a sua proteção traduzir-se-ia em violação à ordem constitucional. Tem-se assim, um “constitucionalismo concretizador dos direitos fundamentais.”376 Nesta perspectiva, o desenvolvimento da sociedade e as novas concepções de desenvolvimento trazem para o Estado o dever de articular e conduzir tal desenvolvimento, fornecendo os instrumentos legais necessários para sua adequada regulamentação e fiscalização.377 Nesta perspectiva, é possível afirmar-se que: [...] o principal papel a ser desempenhado pelo Estado é o de coordenação do processo com o objetivo de orquestrar a concertação dos diversos atores políticos e sociais, viabilizando a formulação e implementação das políticas publicas necessárias pra desencadear o desenvolvimento dos territórios. 378 No tocante aos direitos sociais (de nítido caráter prestacional) PINHEIRO379 entende que os direitos sociais tem como função a busca pela efetiva fruição do direito de liberdade dos indivíduos. Assim, é necessário garantir-se ao individuo o fornecimento de prestações materiais mínimas que lhe assegurem o exercício do direito de liberdade. NINO, por sua vez, defende a tese de que a não entrega de prestações positivas ao cidadão por parte do estado não violaria os direitos humanos, usando como argumento o fato de que tal direitos só existiria na hipótese de haver um dever do estado de atuar ou não atuar para impedir esse resultado. 380 No mesmo sentido, BOBBIO defende a eficácia não plena dos direitos sociais, uma vez que a 375 Art. 136 da CF PIOVESAN, op. cit., p. 208. 377 ROSSETO, Adriana et al. A integração das politicas públicas: condição para o desenvolvimento. In: ALVES, Luiz Roberto; SÁ, José de. (Org.). Políticas integradas de governança: participação, transparência e inclusão social. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2011. p. 26. 378 Ibidem, p. 26. 379 PINHEIRO, op. cit., p. 62. 380 NINO, Carlos Santiago. La constituicion de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1997. p . 90. 376 123 teoria do fundamento absoluto dos direitos fundamentais foi, durante muito tempo, um obstáculo para a introdução de novos direitos.381 Observe-se, entretanto, que os desastres hidrológicos podem causar danos para um número indeterminado de pessoas, um grupo de indivíduos, ou mesmo para um único cidadão. Nesta perspectiva é possível falar-se em danos difusos, coletivos ou individuais. Contudo, independentemente do tipo de dano a ser causado, deve o Estado atuar de modo a evitar ou mitigar os danos decorrentes de desastres que possam vir a causar danos para o indivíduo. Assim, a atuação do Estado na proteção e efetividade dos direitos fundamentais deve objetivar a manutenção da dignidade da pessoa humana, protegendo o indivíduo contra ameaças a esse bem jurídico tutelado. Há, ainda, diversas medidas que podem ser utilizadas com o objetivo de promover ações de mitigação e adaptação à mudança do clima, tais como instrumentos financeiros e econômicos, apoio e fomento às atividades que contribuam para a diminuição do efeito estufa, promoção da cooperação internacional, promoção da disseminação de informações, a educação, a capacitação e a conscientização pública sobre mudança do clima, etc. No que tange aos desastres hidrológicos, o Poder Público deve elaborar planos urbanos e estratégias de desenvolvimento, possibilitando o manejo do uso da terra de modo a garantir que terrenos suficientes sejam disponibilizados para a habitação (incluindo habitações populares) mas em locais seguros nos quais os moradores encontrem-se a salvo de inundações e outras calamidades.382 E, para a proteção desse direito, merece atenção a atuação da Defesa Civil enquanto órgão de proteção contra desastres, a qual constitui-se como o conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e reconstrutivas destinadas a evitar e minimizar os desastres, preservar o moral da população e restabelecer a normalidade social.383 Do conceito apresentado conclui-se que as ações adotadas em sede de Defesa Civil também estão intimamente relacionadas à proteção da dignidade da pessoa humana, na medida em que visam proteger a vida e a saúde da população por meio das ações de socorro e assistência às vítimas e afetados. Proteger o indivíduo contra a ocorrência de desastres, por meio de medidas 381 BOBBIO, op. cit., p. 22-3. A adaptação às mudanças climáticas pode atender também às metas de desenvolvimento em cidades de países em desenvolvimento?. In: CIVIS, nº 2 - Outubro 2009, p. 5. Disponível em: <http://citiesalliance.org/sites/citiesalliance.org/files/CIVIS_2_Portuguese.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2013. 383 Disponível em: <http://www.defesacivil.sp.gov.br/v2010/portal_defesacivil/conteudo/documentos/ manualDefesaCivi l_patruleiro.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2013. 382 124 preventivas, ou agir para mitigar os danos decorrentes de um desastre é medida salutar para a efetividade da proteção desse direito fundamental. Tal proteção, entretanto, poderá ser mais eficaz por meio de políticas públicas específicas e preocupadas com a manutenção da dignidade dos cidadãos. 125 3. POLÍTICAS PÚBLICAS, DESASTRES E DEFESA CIVIL: UM DESAFIO CONTÍNUO PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS As políticas públicas constituem-se como importante instrumento para a salvaguarda dos direitos fundamentais, incluindo-se neste rol o direito de proteção contra desastres. Segundo DUARTE, para cumprir os ideais do Estado Social, exige-se uma atuação racional e planejada por parte dos governantes, a ser realizada por meio da elaboração e implementação de políticas públicas, as quais, por sua vez, podem ser definidas como programas de ação governamental voltados à concretização dos direitos fundamentais.384 Do mesmo modo, analisando-se o conceito de políticas públicas, observa-se que diversos autores debruçaram-se sobre o tema.385 Na esfera jurídica, ao relacionar política pública com direito, BUCCI, a define como um programa de ação governamental, resultante de um (ou mais) processos juridicamente regulados visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos estabelecidos.386 Assim, para a referida autora, as políticas públicas passam a ser entendidas como programas de ação governamental que visam coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.387 No mesmo sentido é a opinião de MANCUSO, para quem as políticas públicas podem ser conceituadas como toda conduta da Administração Pública, em sentido largo, voltada à consecução de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal.388 Em sede de proteção contra desastres, também ganha destaque a atuação do Poder Público, como fomentador de políticas públicas direcionadas para a preservação dos direitos dos cidadãos durante os momentos de predesastre, desastre e posdesastre, notadamente por meio da atuação da Defesa Civil nestas situações. Em razão das suas funções constitucionalmente estabelecidas, o Poder Público deve atuar na concretização dos direitos 384 DUARTE, Clarice Seixas. O ciclo das políticas públicas. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins (Org.). O direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 17. 385 Dentre eles, cite-se: BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2013. FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direito fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2013. 386 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Mari Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39. 387 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e politicas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 239. 388 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Controle judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Edis (Coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 730. 126 fundamentais, o que pode ocorrer por meio de políticas públicas específicas, as quais constituem-se como ações estratégicas com o intuito de implementar os direitos garantidos na Constituição Federal.389 Neste sentido, a criação e gerenciamento de políticas públicas e ações voltadas para a proteção contra desastres, enquanto direito fundamental, traduz-se em um dever do ente público em relação a toda sociedade e, notadamente, em relação aos cidadãos que vivem em áreas de risco, nas quais há maior probabilidade de ocorrência de desastres e de lesões a direitos subjetivos, tais como o direito à vida, integridade física, saúde, meio ambiente, dentre outros. No Brasil, observa-se a existência de políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento sustentável e a proteção contra desastres, permitindo uma maior resiliência das cidades em relação a eventos dessa natureza. Assim, torna-se necessário um maior aprofundamento acerca da organização do sistema nacional de Defesa Civil e das medidas protetivas existentes. Para tanto, parte-se de uma retrospectiva histórica sobre o surgimento e evolução de tal sistema, passando pelas medidas de proteção criadas até o surgimento da lei federal que atualmente regulamenta a política nacional de proteção e Defesa Civil. Neste estudo, constata-se uma centralização legislativa em torno da União, além da previsão de auxílio aos Municípios pelos demais entes federados e adoção de medidas conjuntas. Nesta luta contra os desastres, observa-se que a atuação estatal deve ocorrer cotidianamente, por meio de ações preventivas e recuperativas realizadas com recursos financeiros disponibilizados pelo Poder Público, uma vez que a proteção contra desastres constitui-se como um direito fundamental do indivíduo. Contudo, tendo em vista a finitude dos recursos orçamentários e financeiros, questões relacionadas aos institutos da reserva do possível e ao mínimo existencial passam a ser relevantes para o estudo da relação entre os direitos fundamentais e a proteção contra desastres naturais, na medida que tais institutos são apresentados como limitadores e orientadores das políticas públicas estabelecidas pelo Poder Público. 389 COÊLHO, op. cit., 2013. 127 3.1 REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS E PAPEL DO PODER PÚBLICO EM SEDE DE DESASTRES A proteção contra desastres, em nível nacional, exige a realização de uma série de ações por parte do Estado brasileiro, a ser efetivada por meio de políticas públicas estabelecidas. Ocorre que, em razão da República Federativa do Brasil ser composta de diferentes entes públicos autônomos, houve a necessidade de se criar regras específicas atinentes à repartição de competências entre eles, uma vez que os entes que a compõem gozam de autonomia administrativa e política. Para tanto, o Estado criou um sistema de repartição de competências abrangendo suas diferentes esferas de atuação (local, regional e nacional). Tala repartição de competências é realizada – em regra - com base no princípio da predominância do interesse.390 Assim, à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se as matérias de predominante interesse regional e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local. Especificamente em relação à proteção contra desastres (e, notadamente os hidrológicos) a Constituição Federal estabeleceu que o planejamento e a promoção da defesa permanente contra as calamidades públicas é de competência da União, destacando sua atuação em relação às situações de secas e inundações. Consoante estabelece o artigo 22, XXVIII, da Constituição Federal, houve a inclusão das defesas territorial, aeroespacial, marítima e civil, bem como da mobilização nacional como hipóteses de competência legislativa privativa da União. Observa-se, assim, que a defesa contra os desastres hidrológicos é considerada uma situação de interesse geral, razão pela qual a competência em relação ao assunto foi atribuída à União. Ao atribuir-se à União a competência para planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações, a Constituição que concluiu que: 1) Secas e inundações são consideradas calamidades públicas; e 2) A defesa (e proteção) contra secas e inundações deve ser adotada de forma prioritária. Observa-se, assim, que, em sintonia com o disposto no artigo 22 da Constituição Federal, foi outorgada à União um poder-dever no sentido de planejar e promover a defesa permanente contra calamidades publicas, especialmente as secas e as inundações. Tal preocupação demonstra que, por possuírem a natureza de direito fundamental, a proteção contra calamidades públicas (e, em especial, a defesa contra secas e 390 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 418. 128 inundações) constitui-se como um dever do Estado em relação ao qual o mesmo não pode imiscuir-se. Ademais, no momento em que a Constituição impõe ao Estado determinadas obrigações, acaba elegendo prioridades e retirando do legislador qualquer margem de manobra ou de discricionariedade.391 Do mesmo modo, tratando-se de competência privativa, torna-se possível, nos termos do citado artigo 22, que haja a regulamentação de assuntos específicos pelos Estados e pelo Distrito Federal, desde que autorizados por meio de lei complementar. Registre-se, contudo, que a competência legislativa dos Estados e do Distrito Federal, nestas hipóteses, deverá restringir-se a questões específicas. Assim, exercendo a competência constitucional que lhe foi outorgada, foi promulgada a lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012, a qual trata da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. Tal lei traz consigo uma série de competências para cada um dos entes que compõem a federação no que se refere às ações relacionadas à proteção contra desastres. Deste modo, tem-se que, em sede de Defesa Civil, compete à União: I - expedir normas para implementação e execução da PNPDEC; II - coordenar o SINPDEC, em articulação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; III - promover estudos referentes às causas e possibilidades de ocorrência de desastres de qualquer origem, sua incidência, extensão e consequência; IV - apoiar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios no mapeamento das áreas de risco, nos estudos de identificação de ameaças, suscetibilidades, vulnerabilidades e risco de desastre e nas demais ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação; V - instituir e manter sistema de informações e monitoramento de desastres; VI - instituir e manter cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos; VII - instituir e manter sistema para declaração e reconhecimento de situação de emergência ou de estado de calamidade pública; VIII - instituir o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil; IX - realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, bem como dos riscos biológicos, nucleares e químicos, e produzir alertas sobre a possibilidade de ocorrência de desastres, em articulação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; X - estabelecer critérios e condições para a declaração e o reconhecimento de situações de emergência e estado de calamidade pública; XI - incentivar a instalação de centros universitários de ensino e pesquisa sobre desastres e de núcleos multidisciplinares de ensino permanente e a distância, destinados à pesquisa, extensão e capacitação de recursos humanos, com vistas no gerenciamento e na execução de atividades de proteção e Defesa Civil; 391 TAVARES, André Ramos. Justiça constitucional e direitos sociais no Brasil. In: FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 151. 129 XII - fomentar a pesquisa sobre os eventos deflagradores de desastres; e XIII - apoiar a comunidade docente no desenvolvimento de material didático392 pedagógico relacionado ao desenvolvimento da cultura de prevenção de desastres. Observe-se que, em sede de Defesa Civil, foi atribuída aos Corpos de Bombeiros militares a execução de atividades de Defesa Civil, sem, contudo, excluir a responsabilidade da sociedade com relação à execução de tais atividades. Tal regramento acaba aproximando a Defesa Civil da sua origem inicial, ligada à defesa contra guerras externas, e, consequentemente, militarizando suas ações. Assim, essa “militarização” acaba dificultando a participação popular e a busca de decisões consensuais entre os atores envolvidos. Neste aspecto, VALENCIO preleciona: A compreensão hegemônica do desastre como um assunto eminentemente militar e militarizado afasta os civis brasileiros da possibilidade de compor, na instituição de Defesa Civil, o compartilhamento das experiências comunitárias exitosas, sobretudo 393 em prevenção, preparação e resposta(...) Tais críticas têm como objetivo esclarecer que a Defesa Civil não pode ser vista como um sistema estritamente militar e hierarquizado, mas, sim, como um mecanismo posto à disposição da sociedade para auxiliar no combate a desastres. No que se refere à competência legislativa da União em questões relacionadas à política urbana, incumbe a ela legislar sobre normas gerais de direito urbanístico, bem como estabelecendo normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios em relação à política urbana, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.394 A Defesa Civil também previu uma série de competências a cargo dos Estadosmembros, tendo em vista que estes também integram a Federação e devem organizar-se e reger-se por meio de Constituições e leis por eles adotadas, sem, contudo, contrariar os princípios estabelecidos na Constituição Federal. Conforme ensina HORTA395 os Estadosmembros são dotados de autonomia, a qual “pressupõe repartição constitucional de competência para o exercício e o desenvolvimento de sua atividade normativa”. Deste modo, 392 Art. 6o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012 VALÊNCIO, op. cit., p. 336. 394 Art. 3º, I e II da lei 10.257/2001 395 HORTA. Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 363. 393 130 a repartição de competências é inerente ao Estado Federal, sendo certo que – segundo essa repartição - é da competência dos Estados: I - executar a PNPDEC em seu âmbito territorial; II - coordenar as ações do SINPDEC em articulação com a União e os Municípios; 396 III - instituir o Plano Estadual de Proteção e Defesa Civil; IV - identificar e mapear as áreas de risco e realizar estudos de identificação de ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades, em articulação com a União e os Municípios; V - realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, em articulação com a União e os Municípios; VI - apoiar a União, quando solicitado, no reconhecimento de situação de emergência e estado de calamidade pública; VII - declarar, quando for o caso, estado de calamidade pública ou situação de emergência; e VIII - apoiar, sempre que necessário, os Municípios no levantamento das áreas de risco, na elaboração dos Planos de Contingência de Proteção e Defesa Civil e na 397 divulgação de protocolos de prevenção e alerta e de ações emergenciais. Do exposto, observa-se que as competências a cargo dos Estados também giram em torno de ações de coordenação e apoio. Neste ponto, há de se relembrar o tratamento dado à Constituição ao Distrito Federal, o qual também integra a federação, constituindo-se como unidade autônoma e possuindo personalidade jurídica de direito público interno. A propósito, o Distrito Federal acumula as competências dos Estados e dos Municípios, com algumas peculiaridades. Por fim, com relação ao papel do Município em sede de desastres e sua prevenção, há de se destacar que incumbe a ele a promoção do adequado ordenamento territorial, o que será feito mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Assim, também foram conferidas aos Municípios uma série de atribuições em relação à Defesa Civil. Entre elas, tem-se as ações de: I - executar a PNPDEC em âmbito local; II - coordenar as ações do SINPDEC no âmbito local, em articulação com a União e os Estados; III - incorporar as ações de proteção e Defesa Civil no planejamento municipal; IV - identificar e mapear as áreas de risco de desastres; V - promover a fiscalização das áreas de risco de desastre e vedar novas ocupações nessas áreas; 396 O Plano Estadual de Proteção e Defesa Civil conterá, no mínimo: a identificação das bacias hidrográficas com risco de ocorrência de desastres; e as diretrizes de ação governamental de proteção e defesa civil no âmbito estadual, em especial no que se refere à implantação da rede de monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das bacias com risco de desastre. 397 art. 7o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012 131 VI - declarar situação de emergência e estado de calamidade pública; VII - vistoriar edificações e áreas de risco e promover, quando for o caso, a intervenção preventiva e a evacuação da população das áreas de alto risco ou das edificações vulneráveis; VIII - organizar e administrar abrigos provisórios para assistência à população em situação de desastre, em condições adequadas de higiene e segurança; IX - manter a população informada sobre áreas de risco e ocorrência de eventos extremos, bem como sobre protocolos de prevenção e alerta e sobre as ações emergenciais em circunstâncias de desastres; X - mobilizar e capacitar os radioamadores para atuação na ocorrência de desastre; XI - realizar regularmente exercícios simulados, conforme Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil; XII - promover a coleta, a distribuição e o controle de suprimentos em situações de desastre; XIII - proceder à avaliação de danos e prejuízos das áreas atingidas por desastres; XIV - manter a União e o Estado informados sobre a ocorrência de desastres e as atividades de proteção civil no Município; XV - estimular a participação de entidades privadas, associações de voluntários, clubes de serviços, organizações não governamentais e associações de classe e comunitárias nas ações do SINPDEC e promover o treinamento de associações de voluntários para atuação conjunta com as comunidades apoiadas; e 398 XVI - prover solução de moradia temporária às famílias atingidas por desastres. Como se vê, compete aos Municípios promover a fiscalização das áreas com riscos de desastre e vedar novas ocupações nessas áreas, criando mecanismos de controle e fiscalização. Tal fiscalização é importante, em razão dos riscos e prejuízos advindos da ocorrência de desastres, ou agravados em razão da existência de ocupações irregulares em áreas de risco. Assim, estas ocupações inadequadas do espaço urbano devem ser tratadas e fiscalizadas por se localizarem, muitas vezes, em áreas de risco ou em áreas de preservação permanente, que são áreas inapropriadas para residências familiares ou para a realização de empreendimentos imobiliários.399 Do exposto, constata-se que a União tem atribuições relacionadas ao planejamento e monitoramento em ampla escala, bem como ao reconhecimento do estado de calamidade pública e situação de emergência. Do mesmo modo, observa-se que o Estado também possui grande participação nas ações de planejamento e monitoramento, devendo apoiar o ente municipal, que é o responsável pelo planejamento urbano preventivo, de modo a evitar ocupações em áreas de risco, bem como realizar a implantação de ações de prevenção e gestão de situação de risco.400 398 art. 8o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. PEITER, op. cit., p. 69. 400 GANEM, Roseli Senna. Gestão de desastres no Brasil. Biblioteca Digital. Câmara dos Deputados, 2012, p. 15. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/10496/gestao_desastres_ganem. pdf?sequence=1>. Acesso em 20 nov. 2013 399 132 Importante ressaltar que, apesar de se constituírem como entes distintos, a Constituição Federal atribui competências comuns à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Tratam-se de atribuições estabelecidas pela Constituição Federal com o intuito de possibilitar uma melhor proteção jurídica dos bens tutelados, razão pela qual tais competências foram atribuídas a todos os entes federados. Especificamente em relação às competências comuns no âmbito da Defesa Civil, tem-se que compete à União, aos Estados e aos Municípios: I - desenvolver cultura nacional de prevenção de desastres, destinada ao desenvolvimento da consciência nacional acerca dos riscos de desastre no País; II - estimular comportamentos de prevenção capazes de evitar ou minimizar a ocorrência de desastres; III - estimular a reorganização do setor produtivo e a reestruturação econômica das áreas atingidas por desastres; IV - estabelecer medidas preventivas de segurança contra desastres em escolas e hospitais situados em áreas de risco; V - oferecer capacitação de recursos humanos para as ações de proteção e Defesa Civil; e VI - fornecer dados e informações para o sistema nacional de informações e 401 monitoramento de desastres. Por se tratar de competência comum, é possível que os entes públicos celebrem acordos de cooperação a fim de bem executar suas tarefas. Para tanto, exige-se a criação de leis complementares que venham a fixar normas para a cooperação entre os entes públicos, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.402 A cooperação entre os entes públicos constitui-se como um dever atinente à realização da proteção ambiental. Neste sentido, respeitadas as repartições de competências constitucionalmente estabelecidas, tem-se que o exercício de tais competências (legislativas e executivas) deve conduzir a sua descentralização e ao fortalecimento da autonomia dos entes federados ou periféricos, com vistas à efetividade da proteção ambiental e dos mecanismos de participação política.403 Importante observar, contudo, que o Município é o órgão executor da maioria das ações a serem adotadas em sede de Defesa Civil e prevenção a desastres, contando com a colaboração dos Estados e da União no desenvolvimento dessas atividades. Assim, o Município constitui-se como um dos atores mais importantes na luta contra os desastres 401 Art. 9o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. Vide art. 23, parágrafo único, da CF, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006. 403 SARLET, 2013. p. 216. 402 133 naturais hidrológicos. Isso deve-se, entre outros fatores, à expansão das cidades, que ocorreu em função da migração de pessoas das zonas rurais para a cidade, bem como ao aumento da população local.404 Tal expansão causou um crescimento rápido e, não raras vezes, desordenado, intensificando o papel do Poder Público nessa área. Assim, tem-se que, para que o Estado brasileiro cumpra seu papel como ente responsável pela proteção ambiental, bem como pela gestão, uso e ocupação do solo, contribuindo para a prevenção de desastres, é fundamental a preocupação com uma gestão eficiente e proativa, antecipando-se aos problemas e aos desastres que podem ocorrer em determinada área. Assim, modelos de urbanização devem ser pensados com antecedência, proibindo-se a ocupação de áreas irregulares e retirando as pessoas desses locais, de modo a evitar a criação de novos focos de exposição. Sob outra ótica também é importante criar-se programas habitacionais que possam dar efetividade ao direito à moradia, propiciando a todos os indivíduos (e, em especial, aos hipossuficientes) o exercício desse direito constitucional fora das áreas impróprias para habitação, como é o caso das áreas de risco. Logo, é importante criar-se leis que possibilitem a regulamentação do espaço público, além da implantação de um sistema eficaz de fiscalização, de modo a impedir que mais pessoas venham a morar em áreas sujeitas a desastres hidrológicos. Ainda em sede de atuação estatal, tem-se que a criação de medidas de adaptação, tais como a implementação de parques lineares ao redor de corpos d’água - minimizando assim os riscos de enchentes e o estabelecimento de ferramentas de monitoramento e alerta - além da criação de planos de ação em casos de emergência e o desenvolvimento de estratégias nacionais para a adaptação do país face aos efeitos da mudança climática, são medidas salutares para a prevenção de desastres futuros. Nessa perspectiva, ações relacionadas à fiscalização acerca da ocupação do solo, remoção de pessoas residentes em áreas de risco, realização de obras de contenção de encostas, elaboração de regras para a construção de casas e prédios, sistemas eficazes de radares e alertas, além da integração entre as diferentes esferas estatais, com auxílio mútuo entre elas otimizará o sistema de repartição de competências e permitirá que as ações preventivas sejam adotadas com a antecedência que se faz necessária. De tudo o quanto foi exposto, tem-se que os três níveis de governo existentes devem unir-se de modo a, realmente, criar uma política nacional eficaz para retirar pessoas das áreas de risco e realoca-las em locais adequados. Neste aspecto, observe-se que a Constituição 404 GIDDENS, op. cit., 2004. p. 575. 134 atribuiu papel importante ao Poder Público, o qual deverá executar suas obrigações constitucionais observando-se, também, os deveres comuns fixados no artigo 23, incisos III405, VI406 e VII407 da Constituição Federal. Assim, o Estado deve procurar atuar em todas as fases dos desastres: antes, durante e depois; procurando, contudo, intensificar suas ações em medidas preventivas. E, para que isso ocorra, é fundamental a integração entre as diversas políticas públicas existentes e a serem criadas. Assim, não basta apenas uma política de gestão de riscos e resposta a desastres. Esta deve aliar-se a políticas públicas de saneamento básico408, oferta de água, planejamento urbano, habitação, energia nuclear, conservação ambiental, etc. Aliás, tratando-se de um direito fundamental do indivíduo, a proteção contra a ocorrência de desastres demanda uma regulamentação normativa na qual aspectos sociais, urbanísticos, ambientais sejam observados de modo a garantir-se a efetivação de um ordenamento territorial adequado, no qual os direitos fundamentais do indivíduo sejam respeitados. 3.2 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES Tal sistema de repartição de competências encontra-se intimamente ligado à execução das políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento sustentável e à proteção contra desastres. Nesta perspectiva, as políticas públicas constituem-se como instrumentos importantes para a concretização dos direitos fundamentais (com destaque para os direitos de segunda dimensão - direitos sociais), na medida em que tais direitos demandam uma atuação positiva por parte do Estado.409 ALEXY visualiza os “direitos a proteção” como direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado, no sentido de que este o projeta contra 405 “Proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” 406 “Proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” 407 “Preservar as florestas, a fauna e a flora” 408 Neste aspecto, a lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que dispõe sobre o Saneamento Básico, incluiu a limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos, bem como a drenagem e manejo das águas pluviais urbanas entre os serviços de saneamento. 409 LOPES, Bruno Matias. Limites ao ativismo judicial no controle das políticas públicas e sua inaplicabilidade ao núcleo essencial dos direitos fundamentais. In: CONGRESSO NACIONAL DE PROCURADORES, 39., 2013. 135 intervenções de terceiros.410 Assim, cabe ao Estado a missão de atuar de modo a assegurar a efetividade destes direitos. A efetiva proteção contra a ocorrência de desastres deve dar-se por meio de políticas públicas a serem implementadas pelo Poder Público de modo a garantir a preservação do meio ambiente e, consequentemente, garantir a saúde e a qualidade de vida dos indivíduos, protegendo-os contra a ocorrência futura de desastres. Na impossibilidade de se evitar a ocorrência de desastres, tais políticas devem procurar minimizar os efeitos e os danos provocados pelos desastres, o que pode ser feito por meio de normas e estudos técnicos que estabeleçam critérios seguros para construções de moradias. Dessa forma, a implantação de políticas públicas deve ter como objetivo a satisfação dos interesses da coletividade, de modo a preservar seus direitos fundamentais. Neste sentido, consoante ensina BUCCI, o fundamento mediato e fonte de justificação das políticas públicas é o Estado social, marcado pela obrigação de efetivação dos direitos fundamentais positivos.411 Tal modelo de Estado fundamenta-se na busca pela redução das desigualdades sociais, por meio de sua atuação direta nas atividades econômicas e sociais e ampliação dos serviços públicos, com vistas ao estabelecimento de uma vida digna.412 O risco de desastres representa um grande desafio ao desenvolvimento sustentável. Neste sentido, a Conferência das Nações Unidas sobre desenvolvimento sustentável destacou os impactos devastadores que terremotos, inundações, secas, furacões e tsunamis têm sobre as pessoas, o meio ambiente e as economias. 413 Do mesmo modo observa-se que os níveis de risco têm aumentado em razão de fatores como “as alterações climáticas, a pobreza, as falhas de planejamento e gestão no ordenamento territorial e a degradação dos ecossistemas”. 414 E, neste aspecto, as instituições de governança podem ter grande influência no enfrentamento e na capacidade de adaptação das comunidades locais a esses desastres.415 Não obstante tenha sido criada uma lei específica atinente à Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, tem-se que diversas outras políticas públicas implementadas pelo 410 ALEXY, op. cit., p. 450. BUCCI, Maria Paula Dallari. As políticas públicas e o direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 13, p. 135, 1996. 412 RIBAS, op. cit., p. 38. 413 RIO+20. Conferência das Nações Unidades sobre Desenvolvimento Sustentável. Disponível em:<http://www.onu.org.br/rio20/temas-desastres/>. Acesso em: 06 nov. 2013. 414 Ibidem 415 Ibidem. 411 136 Poder Público constituem-se como instrumentos que podem ser utilizados na proteção contra desastres “naturais” hidrológicos. Aliás, é justamente por meio da junção e alinhamento de diferentes ações e políticas públicas voltadas para a prevenção de desastres que a proteção de tal direito poderá ser realizada de maneira eficaz.416 E tal junção exige planejamento e gestão adequados. Assim, além da Lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, há diversas outras leis que tratam, direta ou indiretamente, de políticas públicas relacionadas à proteção contra desastres. Deste modo, políticas públicas voltadas para a gestão de resíduos sólidos, ordenamento territorial, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, meio ambiente e Defesa Civil foram criadas e estruturadas de modo a coordenar as ações do Poder Público, com o objetivo de permitir a adequada proteção da população e dos recursos ambientais existentes. Tais políticas abrangem diversos segmentos e somente por meio de uma ação coordenada e direcionada poder-se-á avançar em termos de proteção contra desastres. E a justificativa deve-se ao fato de que tais políticas são interdependentes, ou seja: os avanços experimentados em qualquer dessas áreas interferirá (direta ou indiretamente) em outra política pública. Tais políticas, não obstante tenham objetivos específicos, podem se consubstanciar em instrumentos importantes na proteção e defesa do ser humano contra a ocorrência de desastres, garantindo-se o desenvolvimento sustentável da sociedade e protegendo os direitos fundamentais dos cidadãos. Por exemplo, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (instituída por meio da lei 12.305/210) apresenta diretrizes relacionadas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos. Neste aspecto, a referida lei tem, dentre seus objetivos, a proteção da saúde pública e da qualidade ambiental e a redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos. Ocorre que o lançamento de lixo e outros resíduos sólidos em locais inadequados pode causar o entupimento de bueiros, facilitando a ocorrência de enchentes em épocas de chuva, uma vez que a água das chuvas não poderá escoar de forma eficaz. Observa-se, assim, que diversas políticas públicas relacionam-se entre si, contribuindo para o sucesso (ou insucesso) de políticas estabelecidas para outras áreas. Também é importante observar que tais políticas públicas devem visar a proteção do meio ambiente e, também, a proteção do desenvolvimento sustentável, o qual também constitui-se como um direito fundamental. Aliás, segundo SEGUIN, o direito ao 416 LAVIEILLE, op. cit., p. 265. 137 desenvolvimento é um direito humano subjetivo.417 Neste sentido, a Constituição Federal, ao tratar da Ordem Econômica e Financeira, estabeleceu, em seu artigo 170, que a ordem econômica estará fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo como objetivo assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Tal artigo demonstra a preocupação do constituinte em garantir o princípio da dignidade da pessoa humana, eis que a ordem econômica terá como o objetivo assegurar a já mencionada existência digna. Do mesmo modo, observe-se que a Constituição Federal também incluiu a proteção ao meio ambiente como princípio da ordem econômica. 418 Desta forma, diversos princípios devem orientar a ordem econômica em financeira. São eles: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e 419 prestação ; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.420 O desenvolvimento constitui-se como um dos objetivos fundamentais de nosso Estado Democrático de Direito, de tal forma que deve ser ele incentivado. Contudo, o desenvolvimento traz, como circunstância inerente, o desgaste ao meio Ambiente.421 Assim, tal desenvolvimento não pode ser protegido a qualquer custo. Segundo FLORES, é difícil tratar-se de tal questão, haja vista que a ideia de crescimento contínuo da produção e dos produtos internos brutos encontra-se atrelada ao conceito de desenvolvimento. Contudo, tentando compatibilizar desenvolvimento e proteção de direitos, o referido autor o conceitua como um conjunto de condições econômicas, sociais, culturais e políticas que possibilite um desdobramento integral, equitativo, planificado e qualitativo das atitudes e aptidões humanas na luta pela dignidade.422 Deste modo, o desenvolvimento não deve ter como objetivo a maximização do Produto Interno Bruto - PIB, mas, sim, a promoção da igualdade, 417 SÉGUIN, justiça... op. cit., p. 41. LEMOS, op. cit., 2011. p. 47. 419 Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003. 420 Cf. art. 170 da CF 421 COÊLHO, meio...op. cit., 2013. 422 FLORES, op. cit., p. 142 418 138 melhorando as condições de vida dos indivíduos e reduzindo a pobreza.423 Neste aspecto, torna-se possível afirmar que a defesa do meio ambiente funciona como um “limite à livre iniciativa.”424 Segundo estabelece o parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal, “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Assim, observa-se que, do mesmo modo que protege o meio ambiente, a Constituição Federal de 1988 também demonstrou sua preocupação com o desenvolvimento. Contudo, tais direitos precisam ser compatibilizados com os demais objetivos insculpidos na mesma Constituição Federal, de tal forma que “toda e qualquer atividade só serão legítimos se buscarem construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regional; promover o bem de todos.”425 Na sociedade pós-moderna o valor dos bens encontra-se atrelado à capacidade de determinado grupo em isolar e mitigar riscos, valorizando-se a sensação de segurança. Assim, por meio de normas jurídicas, busca-se a utilização sustentável dos recursos naturais, obtendo-se desenvolvimento econômico sem, no entanto, colocar em risco o ambiente ecologicamente equilibrado, protegendo-o em benefício das presentes e futuras gerações. E, para conciliar a proteção a esses direitos, surge o que se convencionou denominar de desenvolvimento sustentável. Foi a forma encontrada pela coletividade a fim de tentar minimizar as lesões a esses direitos. Deste modo, o desenvolvimento sustentável pode ser conceituado como aquele que “atende às necessidades do presente, sem comprometer a possibilidade de que as futuras gerações atendam às suas próprias necessidades.”426 Há, assim, a necessidade de um desenvolvimento racional, que procure compatibilizar o direito ao desenvolvimento e a proteção aos recursos ambientais de modo razoável, evitando sua escassez futura, uma vez que a ultrapassagem dos limites da sustentabilidade ambiental levaria as civilização ao risco de um colapso.427 Nos dizeres de ROCHA: 423 SACHS, op. cit., p. 14. MILARÉ, op. cit., 2007. p. 149. 425 SILVA, Solange Teles da. Princípio da precaução: uma nova postura em face dos riscos e incertezas científicas. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros. Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Ministério da Integração Nacional Rey, 2004. p. 84. 426 BRASIL, op. cit, 1999. p. 13. 427 DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 10-11. 424 139 A razoabilidade nada mais é que a obediência a critérios aceitáveis, do ponto de vista racional, os quais têm de estar em sintonia com o senso das pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida428. Ademais, nenhuma abordagem em defesa do meio ambiente essencialmente baseada na privação dará resultado.429 Assim, ao conceito de desenvolvimento sustentável passam a ser acrescidos dois elementos: sustentabilidade ambiental e sustentabilidade social.430 Desse modo, segundo preleciona SACHS, o desenvolvimento sustentável encontra-se alicerçado em cinco pilares, quais sejam: o pilar social, ambiental, territorial, econômico e político.431 Neste aspecto, a proteção do direito fundamental ao desenvolvimento, encontra-se intimamente relacionada à proteção de outros direitos também fundamentais. A propósito: [...] o desenvolvimento sustentável deve garantir minimamente ao cidadão: a moradia, a saúde (onde se inclui também o meio ambiente ecologicamente equilibrado), a educação, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos idosos e desamparados.432 Assim, num contexto de sociedade de risco e mudança climática, o desenvolvimento sustentável passa a ser visto como a condição para enfrentar as alterações climáticas e conciliar o atendimento às necessidades comuns e particulares das populações e comunidades que vivem no território nacional.433 É certo que o risco da ocorrência de desastres sempre existirá, mas a adoção das medidas preventivas necessárias, aliadas à preparação da comunidade para agir em situações adversas contribuirá para reduzir as vítimas em eventuais desastres. Logo, somente com compromisso e políticas públicas preocupadas com o desenvolvimento sustentável será possível avançar em termos de sistema de gestão de riscos. E, para isso, é fundamental a elaboração de uma política de gerenciamento de desastres estruturada e que consiga aglutinar 428 ROCHA, op. cit., p. 286. GIDDENS, op. cit., 2010, p. 30. 430 SACHS, op. cit., p. 15. 431 SACHS, op. cit., p. 15. 432 JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 176. 433 Art. 3º, IV, da lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009. 429 140 os diversos setores e atores envolvidos: direito, política, economia, Poder Público, sociedade, etc.434 Em sede de políticas públicas relacionadas à proteção contra desastres, observa-se que a ação em diferentes áreas, de forma articulada e envolvendo Poder Público e a coletividade foi a forma preconizada pela lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) para o atingimento dos objetivos propostos. Assim, a PNPDEC deverá integrar-se às políticas de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia e às demais políticas setoriais, tendo em vista a promoção do desenvolvimento sustentável.435 Neste aspecto, tem-se que: Foi possível perceber a fragilidade da articulação entre os projetos e as obras preconizadas e os planos e obras das estruturas setoriais de saneamento ambiental e resíduos sólidos. Não há compromisso entre o destino final adequado e, em muitos casos, os técnicos da habitação, e as associações não têm conhecimento a existência de planos para o saneamento ambiental. A desarticulação entre a política habitacional nos planos diretores, instrumentos de reforma urbana e zoneamento (que mesmo nos planos recentes fizeram aumentar o preço da terra e dos imóveis) promoveu a remoção forçada de parte das famílias para longe dos locais de origem, em virtude da carência de recursos para aquisição em locais próximos. Os procedimentos de execução de obra são muito mais rápidos dos que os de regularização fundiária e urbanística, deixados nas mãos da burocracia da Administração e da Justiça. 436 Observe-se, ainda que os programas habitacionais promovidos pelos entes públicos deverão priorizar a relocação de comunidades atingidas por desastres e de moradores de áreas de risco.437 Foi a forma encontrada pelo legislador para relacionar a proteção do direito à moradia com a proteção contra desastres, de modo a tutelar esses dois direitos fundamentais. Do mesmo modo, a lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012, promoveu alterações no Estatuto da Cidade (lei 10.257, de 10 de julho de 2001), de tal forma que o mesmo passou a ser obrigatório para Municípios localizados em áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos.438 Do mesmo modo, foram ampliados os itens constantes no Plano 434 CARVALHO, Délton Winter de. Aspectos epistemológicos da ecologização do direito: reflexões sobre a formação de critérios para análise da prova científica. Scientia Iuridica, v. 324, n. 59, p. 445, out./dez. 2010. 435 CARVALHO, op. cit., 2013. p. 101. 436 BUENO, op. cit., 2013. 437 Art. 14 da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. 438 Art. 41, VI da lei 10.257/2001, com redação dada pela lei 12.608/2012 141 Diretor de forma a ampliar a resiliência de tais Municípios contra a ocorrência de desastres e será tratada em item específico.439 Por fim, também merece destaque a Política Nacional para as Mudanças Climáticas, aprovada em 2009, criando instrumentos de implantação do Plano Nacional para Mudanças Climáticas e programas decorrentes em diversos ministérios.440 Assim, para conter os efeitos da mudança climática, a Lei de Política Nacional sobre Mudança do Clima estabelece que as ações a ela relacionadas serão executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos órgãos da administração pública, observando-se os princípios da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o das responsabilidades comuns. A mesma lei ainda ressalta que serão tomadas medidas para prever, evitar ou minimizar as causas identificadas da mudança climática com origem antrópica no território nacional. Tais medidas levarão em consideração os diferentes contextos socioeconomicos de sua aplicação, distribuindo os ônus e encargos entre os setores econômicos e as populações e comunidades interessadas.441 3.3 ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE DEFESA CIVIL E MEDIDAS PROTETIVAS A atual Constituição Federal estabeleceu competir privativamente à União legislar sobre defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, Defesa Civil e mobilização nacional.442 Como se vê, foram inseridos no mesmo inciso temas aparentemente diversos. Contudo, conforme se apresentará adiante, a inclusão da Defesa Civil no mesmo inciso deriva de aspectos históricos, relacionados ao surgimento da Defesa Civil no Brasil e no mundo. A organização da Defesa Civil no ordenamento jurídico brasileiro sofreu diversas alterações ao longo dos anos. Assim, hoje, fala-se em um sistema nacional de Defesa Civil, com ações preventivas e recuperativas, de tal forma que as políticas públicas relacionadas a desastres devem contemplar os diferentes momentos de ação a ele inerentes, ou seja: adoção de medidas preventivas e medidas recuperativas. Neste sistema, tem-se competir à União a 439 Neste sentido, veja-se o item 4.3.2 da presente tese. BUENO, loc. cit. 441 Art. 3º da lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009. 442 Art. 22, XXVIII, da CF 440 142 adoção das diretrizes gerais em torno da organização do sistema nacional de Defesa Civil e medidas protetivas a ele inerentes. Nesse contexto, muito embora os dados existentes demonstrem que a aplicação de recursos em medidas recuperativas ainda é maior do que as ações preventivas, tem-se que a proteção contra desastres hidrológicos é um desafio contínuo, sendo certo que a adoção de ações planejadas e voltadas para a prevenção e a mitigação dos riscos de desastres são as que surtem maiores resultados em termos de proteção de direitos humanos.443 A organização do sistema nacional de proteção e Defesa Civil encontra-se atrelada à política pública estabelecida para esta área. Para uma melhor compreensão do tema é preciso compreender o surgimento da Defesa Civil e sua evolução ao longo dos anos, passando a englobar não apenas ações de defesa, mas, principalmente, ações de prevenção. 3.3.1 Histórico e evolução do sistema nacional de Defesa Civil No Brasil, assim como em diversos outros países444, a Defesa Civil surgiu, inicialmente, com o objetivo de proteger o país contra ameaças externas. Neste aspecto, observa-se que tal tema começou a ser tratado em 1942, após o afundamento dos navios militares no litoral de Sergipe e do vapor Itagiba torpedeado pelo submarino alemão U-507, no litoral do estado da Bahia.445 O primeiro documento normativo a tratar do tema foi o Decreto Lei n.º 4.098, de 06.02.1942, o qual define os Serviços Passivos de Defesa Antiaérea como encargos necessários à defesa da pátria. Tal Decreto-Lei estabeleceu que o serviço de defesa passiva antiaérea abrangeria o recebimento de instruções, recolhimento em abrigos, atendimento aos alarmes, construção de abrigos em edifícios destinados a hotéis hospitais, casa de diversão, estabelecimentos comerciais e de ensino, etc. Assim, seguindo o exemplo da Inglaterra, o governo federal, preocupado com a segurança da população cria em 1942, o Serviço de 443 Neste sentido o relatório do TCU (TC 000.741/2011-6) destacou que, segundo informação apresentada durante a conferência realizada nas Nações Unidas, em Nova York, no dia 9/2/2011, na Assembleia Geral sobre Redução de Riscos de Desastres (General Assembly on Disaster Risk Reduction), tem-se que cada dólar investido em prevenção pode economizar muitos dólares em reconstruções pós-desastres. Tal informação foi corroborada pelo Ministério da Integração Nacional, o qual informou que, para cada R$1,00 gasto em prevenção, economiza-se R$7,00 em reconstrução. 444 Neste sentido, cite-se a Grã-Bretanha e o Japão, dentre outros. 445 Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/historico-sedec>. Acesso em: 26 abr. 2014. 143 Defesa Passiva Antiaérea, a obrigatoriedade do ensino da defesa passiva em todos estabelecimentos de ensino, oficiais ou particulares, existentes no país, entre outras. 446 Posteriormente, o Decreto-lei nº 4.624, de 26 de agosto de 1942 que criou o serviço de defesa passiva antiaérea) cuja finalidade era a de estabelecer a segurança e garantir a proteção e a vida da população, bem como a defesa do patrimônio.447 Segundo dispunha o artigo 2º do referido decreto, o Serviço de Defesa Passiva Anti-Aérea seria integrado por serviços públicos a serem organizados, pelo aproveitamento e adaptação de orgãos federais, estaduais e municipais já existentes e por serviços privados. Registre-se, ainda, o Decreto-Lei nº 4.800 de 06 de outubro de 1942, o qual tornou obrigatório o ensino de Defesa Passiva Antiaérea nos estabelecimentos escolares. Tal nomenclatura foi alterada pelo decreto-lei 5.861 de 30 de setembro de 1943, que passou a denominá-lo “Serviço de Defesa Civil”, ficando sob a supervisão do então Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Após o fim da segunda guerra mundial, houve a publicação do Decreto-Lei nº 9.370, de 17 de Junho de 1946 extinguiu o Serviço de Defesa Civil, a Diretoria Nacional do Serviço de Defesa Civil e as Diretorias Regionais. Em função de fortes chuvas que assolaram a região Sudeste entre os anos de 1966 e 1967, provocando enchentes e deslizamentos na região sudeste, o Brasil começou a se estruturar para combater tais calamidades. Assim, em 1966 foi organizada no Rio de Janeiro (chamado na época Estado da Guanabara) a primeira Defesa Civil Estadual do Brasil. No ano seguinte foi criado o Ministério do Interior, o qual tinha, dentre suas funções, a atribuição de assistir as populações atingidas por calamidades públicas em todo território nacional. No final da década de 1960, é criado no Ministério do Interior448 (ao qual fora atribuída a competência para o beneficiamento de áreas e obras de proteção contra secas e inundações e assistência às populações atingidas pelas calamidades públicas), o Fundo Especial para Calamidades Públicas (FUNCAP)449 e o Grupo Especial para Assuntos de 446 CARLOS, Luis Fernando Santos. A participação comunitária na gestão de riscos e a redução de desastres. 2006. 192 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Planejamento e Gestão em Defesa Civil)Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, 2006. p. 26 447 DÓRIA, op. cit., p. 95. 448 Cf. Decreto-Lei n.º 200, de 25.02.1967 449 O decreto n.º 64.568, de 22 de Maio de 1969 criou o Grupo de trabalho para elaborar o Plano de defesa permanente contra as calamidades públicas, surgindo o FUNCAP – Fundo Especial de Calamidades Públicas. 144 Calamidades Públicas – GEACAP. Tal Grupo tinha como incumbência prestar assistência em relação à defesa permanente contra calamidades públicas. Acrescente-se, finalmente, que o Decreto-Lei nº 950, de 13.10.1969450 e o Decreto nº 66.204, de 13.02.1970451, cuidaram, respectivamente, de instituir e regulamentaro Fundo Especial para Calamidades Públicas – FUNCAP, tendo sido posteriormente revogados pelos Decreto nº 4.543/2002 e decreto nº 1.080/1994. Tal quadro permaneceu praticamente inalterado até o advento da Constituição Federal de 1988, a qual atribuiu à União a competência para legislar sobre defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, Defesa Civil e mobilização nacional.452 O decreto federal nº 97.274, de 16 de dezembro de 1988, foi o primeiro a ser editado sob a égide da atual Constituição Federal. Segundo ele, a Defesa Civil corresponderia ao o conjunto de medidas destinadas a prevenir, limitar ou corrigir os riscos e danos pessoais e materiais decorrentes de estado de calamidade pública ou de situação de emergência. Trata-se, assim, de uma instituição estratégica para redução de riscos de desastres, protegendo os direitos fundamentais dos indivíduos sujeitos à ocorrência de desastres. No ano seguinte a Assembléia Geral da ONU realizada em 22 de dezembro de 1989, aprovou a Resolução 44/236, que estabelecia o ano de 1990 como início da Década Internacional para Redução dos Desastres Naturais. Posteriormente, é publicado o decreto no 1.080, de 08 de março de 1994, o qual passa a regulamentar o FUNCAP.453 A organização sistêmica da defesa civil no Brasil acontece em 1988, com a criação do Sistema Nacional de Defesa Civil (SINDEC) o qual passou por uma reorganização em 1993 e atualizado por intermédio do Decreto Federal nº 5.376, de 17/02/2005. Nessa nova estrutura, ganham destaque o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (CENAD) e o Grupo de Apoio a Desastres, além do fortalecimento dos órgãos de Defesa Civil estaduais e municipais. 450 revogado pelo Decreto nº 4.543/2002 revogado pelo Decreto nº 1.080, de 8 de março de 1994. 452 Neste sentido, veja-se o art. 22, XXVIII da CF/1988. Observe-se, ainda, que, nos termos do art. 10, XIII da emenda constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, competia à União a tarefa de organizar a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente a sêca e as inundações 453 Neste aspecto, o referido decreto, em seu art. 1° esclarece que o Fundo Especial para Calamidades Públicas (Funcap), criado pelo Decreto-Lei n° 950, de 13 de outubro de 1969, e ratificado, nos termos do art. 36 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, pelo Decreto Legislativo n° 66, de 18 de dezembro de 1990, tem por finalidade financiar as ações de socorro, de assistência à população e de reabilitação de áreas atingidas. 451 145 O atual conceito legal de Defesa Civil vem descrito no Decreto n° 7.257/2010, o qual a conceitua como o conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas destinadas a evitar desastres e minimizar seus impactos para a população e restabelecer a normalidade social.454 No que se refere à nomenclatura utilizada, é importante observar a existência de uma tendência mundial em alterar a denominação “Defesa Civil” para “Proteção Civil”, de modo a valorizar a importância das ações preventivas permanentes, passando-se a demonstrar uma atitude proativa de precaução, percebendo os riscos e procurando evitar suas possíveis consequências à incolumidade física, ao patrimônio e ao meio ambiente.455 Neste aspecto, diversos países já adotam a denominação proteção civil. Dentre eles, cite-se: Angola, Catalanha, Espanha, Itália, México, França.456 Segundo VALENCIO, a Defesa Civil atua em diversas áreas, sendo certo que a concretização dessas ações transversais constitui-se no espírito de sua missão. Para ela, a Defesa Civil envolve, simultaneamente, questões de educação, saúde pública, direitos humanos, segurança pública, comunicação, assistência social, meio ambiente, planejamento urbano, habitação, desenvolvimento rural e outros.457 Nesta perspectiva, passa-se a falar em medidas de proteção, as quais abrangem ações a serem desenvolvidas antes, durante e depois da ocorrência de um desastre. Atualmente, o sistema nacional de proteção e Defesa Civil – SINPDEC – encontra-se previsto na lei 12.608/2012, sendo constituído pelos órgãos e entidades da administração pública federal, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e pelas entidades públicas e privadas de atuação significativa na área de proteção e Defesa Civil, tendo como contribuir no processo de planejamento, articulação, coordenação e execução dos programas, projetos e ações de proteção e Defesa Civil. 3.3.2 Fundo Especial para Calamidades Públicas 454 Art. 2°, I, do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010. CUNHA, Maria Inez Resende. Aspectos socioeconômicos e ambientais das inundações no Brasil no período de 2003 a 2006. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2007. p. 20. 456 Paralelamente, Argentina, Chile, Estados Unidos e Reino Unido ainda utilizam a denominação defesa civil. 457 VALÊNCIO, op. cit., p. 329. 455 146 Em razão das calamidades públicas atingirem bens jurídicos diretamente relacionados à dignidade do indivíduo (tais como a vida, saúde, moradia, entre outros) a obtenção de recursos para ações deve ser um mecanismo célere e disponível aos entes públicos que deles precisarem. Assim, o Fundo Especial para Calamidades Públicas (FUNCAP) constitui-se, atualmente, como um fundo de natureza contábil e financeira, que tem como finalidade custear: ações de prevenção em áreas de risco de desastre458 e ações de reconstrução em áreas atingidas por desastres nos entes federados nos quais houve o reconhecimento de situação de emergência ou estado de calamidade pública. Tal fundo foi instituído pelo Decreto-Lei nº 950, de 13 de outubro de 1969 e encontra-se atualmente regulamentado pela lei nº 12.340, de 1º de dezembro de 2010. Segundo a referida lei, o FUNCAP constitui-se de dotações consignadas na lei orçamentária anual da União e seus créditos adicionais, doações e outros recursos que lhe vierem a ser destinados.459 Registre-se, entretanto, que a utilização do FUNCAP para ações de prevenção só foi autorizada recentemente, por meio da medida provisória nº 631, de 24 de dezembro de 2013. O recebimento de recursos advindos da União deve seguir ao disposto no decreto n o 1.080, de 08 de março de 1994 (o qual regulamenta o FUNCAP), bem com os demais diplomas normativos correlatos. Segundo estabelece o artigo 10 da Instrução Normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012 do Ministério da Integração Nacional, o Poder Executivo Federal reconhecerá a situação anormal decretada pelo Município, pelo Distrito Federal ou pelo Estado quando, caracterizado o desastre, for necessário estabelecer um regime jurídico especial, que permita o atendimento complementar às necessidades temporárias de excepcional interesse público, voltadas à resposta aos desastres, à reabilitação do cenário e à reconstrução das áreas atingidas.460 Assim, o Poder Executivo do Estado, do Distrito Federal ou do Município afetado pelo desastre deverá encaminhar requerimento461 de auxílio diretamente ao Ministério da Integração Nacional, no prazo máximo de dez dias após a ocorrência do desastre, devendo ser 458 Cf. medida provisória nº 631, de 24 de dezembro de 2013. Cf. art. 9º da lei 12.340/2010, com redação dada pela Medida Provisória nº 631, de 2013. 460 Observe-se, entretanto, que, segundo estabelece o art. 10, parágrafo único, da lei 12.340/2010, com redação dada pela Medida Provisória nº 631, de 2013, o Poder Executivo federal regulamentará o funcionamento, as competências, as responsabilidades e a composição do Conselho Diretor e a forma de indicação dos seus membros. Desse modo é provável que haja a edição de nova instrução normative ou outro diploma normativo regulamentando a matéria. 461 Importante: Considerando a intensidade do desastre e seus impactos sociais, econômicos e ambientais, o Ministério da Integração Nacional reconhecerá, independentemente do fornecimento das informações previstas no parágrafo primeiro, a situação de emergência ou o estado de calamidade pública com base no Decreto do respectivo ente federado. (art. 7º, § 3o, do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010 459 147 instruído com ato do respectivo ente federado que decretou a situação de emergência ou o estado de calamidade pública.462 Tal requerimento deverá conter as seguintes informações: I - tipo do desastre, de acordo com a codificação de desastres, ameaças e riscos, definida pelo Ministério da Integração Nacional; II - data e local do desastre; III - descrição da área afetada, das causas e dos efeitos do desastre; IV - estimativa de danos humanos, materiais, ambientais e serviços essenciais prejudicados; V - declaração das medidas e ações em curso, capacidade de atuação e recursos humanos, materiais, institucionais e financeiros empregados pelo respectivo ente federado para o restabelecimento da normalidade; e VI - outras informações disponíveis acerca do desastre e seus efeitos. 463 A citada medida provisória nº 631/2013 também explicitou que os recursos do FUNCAP serão transferidos diretamente aos fundos constituídos pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios cujos objetos permitam a execução das ações de prevenção e recuperação, após o reconhecimento federal da situação de emergência ou do estado de calamidade pública ou a identificação da ação como necessária à prevenção de desastre, dispensada a celebração de convênio ou outros instrumentos jurídicos.464 Do mesmo modo, os recursos do Funcap serão mantidos na Conta Única do Tesouro Nacional e geridos por um Conselho Diretor que deverá estabelecer os critérios para priorização e aprovação dos planos de trabalho, acompanhamento, fiscalização e aprovação da prestação de contas. O reconhecimento da situação de emergência ou estado de calamidade será feito pelo Ministro de Estado da Integração Nacional, por meio de Portaria, desde que a situação o justifique e que tenham sido cumpridos os requisitos estabelecidos na Medida Provisória nº 494, de 2010, e pelo Decreto 7257, de 4 de agosto de 2010. Com o objetivo de coibir fraudes e abusos, a União deve verificar a documentação apresentada, de tal forma que, constatada a presença de vícios, malversação, desvios ou utilização dos recursos transferidos em desconformidade com o disposto na legislação, o Ministério da Integração Nacional suspenderá a liberação dos recursos e não efetuará novas transferências ao órgão ou entidade do Estado, Distrito Federal ou Município beneficiário até 462 Art. 3° da lei 12.340/2010 Cf. art. 7º do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010. 464 Cf. art 9º, § 1º da lei 12.340/2010, com redação dada pela medida provisória nº 631, de 24 de dezembro de 2013. 463 148 que a situação seja regularizada465, bem como suspenderá a utilização do Cartão de Pagamento de Defesa Civil (CPDC), quando for o caso. Assim, caso seja constatada a utilização dos recursos em desconformidade com as ações especificadas pelo Ministério da Integração Nacional pelo órgão ou entidade do Estado, Distrito Federal ou Município beneficiário (...) este será obrigado a devolver os valores recebidos devidamente atualizados. Observa-se, deste modo, que – até o advento da citada medida provisória nº 631/2013, tal fundo visava tão somente a obtenção de recursos para medidas recuperativas, não podendo ser utilizado para custear obras e serviços relacionados à prevenção de desastres futuros. Logo, apesar da existência de um Fundo relacionado à ocorrência de desastres não havia uma política Nacional de Proteção e Defesa Civil visando impedir a ocorrência de desastres, mas, apenas, previsões de ação após a ocorrência de um desastre. Desse modo, somente em abril de 2012 o Brasil passou a ter uma Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, a qual foi implementada por meio da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. E, somente após 23 de dezembro de 2013, o FUNCAP passou a permitir a transferência de recursos da União aos órgãos e entidades dos Estados, Distrito Federal e Municípios para a execução de ações de prevenção em áreas de risco de desastres.466 Tal lei, além de instituir a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, trouxe alterações em relação ao FUNCAP atribuindo aos Municípios inseridos no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, o dever de elaborar mapeamento contendo as áreas suscetíveis à ocorrência desses tipos de desastres e Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil, instituir órgãos municipais de Defesa Civil, elaborar plano de implantação de obras e serviços para a redução de riscos de desastre, criar mecanismos de controle e fiscalização para evitar a edificação em áreas suscetíveis à ocorrência de tais tipos de desastres e elaborar carta geotécnica de aptidão à urbanização, 465 Permite-se, no entanto, que o órgão ou entidade do Estado, Distrito Federal ou Município beneficiário, cuja utilização dos recursos transferidos tenha sido considerada irregular, apresente justificativa no prazo de trinta dias, nos termos do disposto no art. 11, §3º, do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010. 466 Registre-se que, atualmente, a medida provisória 631/2013 encontra-se pendente de análise pelo Congresso Nacional, sendo certo que, nos termos do disposto no artigo 63, §3º da CF, as medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. 149 estabelecendo diretrizes urbanísticas voltadas para a segurança dos novos parcelamentos do solo e para o aproveitamento de agregados para a construção civil.467 3.3.3 Política Nacional de Proteção e Defesa Civil No Brasil, a lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012 elaborou um sistema de repartição de competências no qual a União é responsável pela coordenação do sistema, em articulação com os demais entes estatais, devendo apoiá-los no mapeamento das áreas de risco e nos estudos relacionados a proteção contra desastres. Tal lei instituiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC, o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil- SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil – CONPDEC, além de autorizar a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres e alterar diversos diplomas normativos correlacionados à temática de proteção e Defesa Civil. Assim, a função primordial da União é a de coordenar tais atividades e fomentar estudos e pesquisas na área, de modo a proteger o ser humano contra os desastres. Já os Estados desempenharão funções semelhantes, porém limitados à sua respectiva área de atuação. Por fim, tem-se que os Municípios ficaram responsáveis pelas ações relacionadas à execução da política pública em sede de desastres, tais como: promover a fiscalização das áreas de risco de desastre e vedar novas ocupações nessas áreas, vistoriar edificações e áreas de risco e promover intervenções preventivas e a evacuação da população, organizar e administrar abrigos provisórios para assistência à população em situação de desastre. De início, registre-se que a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil abrangerá ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação voltadas à proteção e Defesa Civil.468 Neste sentido, a referida lei explicitou o dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no sentido de adotar as medidas necessárias para a redução dos riscos de desastre. Tal dever deriva da natureza de “direito fundamental” inerente à proteção contra desastres e manutenção da dignidade da pessoa humana, o que cria para os entes federados os deveres acima mencionados. 467 Art. 3º-A da Lei no 12.340, de 1o de dezembro de 2010, com redação dada pela lei 12.608, de 10 de abril de 2012. 468 Sobre tais ações cf. item 3.4 da presente tese 150 Dentro desse contexto de proteção a direitos fundamentais, observe-se que a nova lei amplia as ações de Defesa Civil demonstrando maior preocupação com a questão atinente às ações protetivas (e, em especial, as ações de prevenção e mitigação), sem se esquecer das ações de recuperação. Deste modo, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil terá como diretrizes: I - atuação articulada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para redução de desastres e apoio às comunidades atingidas; II - abordagem sistêmica das ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação; III - a prioridade às ações preventivas relacionadas à minimização de desastres; IV - adoção da bacia hidrográfica como unidade de análise das ações de prevenção de desastres relacionados a corpos d’água; V - planejamento com base em pesquisas e estudos sobre áreas de risco e incidência de desastres no território nacional; 469 VI - participação da sociedade civil. Os objetivos da Política Nacional de Proteção Contra Desastres (PNPDC) foram expressamente previstos no artigo 5º da referida lei. Desse modo terá ela como objetivo primordial a redução dos riscos de desastres. Caso os desastres venham a ocorrer, a Política Nacional de Proteção Contra Desastres procurará prestar socorro e assistência às populações atingidas por desastres e recuperar as áreas por eles afetadas. Do mesmo modo, deverá procurar incorporar a redução do risco de desastre e as ações de proteção e Defesa Civil entre os elementos da gestão territorial e do planejamento das políticas setoriais.470 Frise-se, ainda, que em se tratando de uma política pública, sua atuação deverá ser constante, de modo que deverá ela promover a continuidade das ações de proteção e Defesa Civil, bem como estimular o desenvolvimento de cidades resilientes e os processos sustentáveis de urbanização. Tratam-se de medidas úteis na identificação e avaliação das ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades a desastres, de modo a evitar ou reduzir sua ocorrência. Do mesmo modo, constitui-se como objetivo da PNPDC a monitoração dos eventos meteorológicos, hidrológicos, geológicos, biológicos, nucleares, químicos e outros potencialmente causadores de desastres. Tal monitoração permitirá a produção de alertas antecipados sobre a possibilidade de ocorrência de desastres naturais, contribuindo para a redução das perdas humanas e materiais relacionadas a tais eventos. Do mesmo modo, a 469 Art. 4º da lei 12.608, de 10 de abril de 2012 Tal gestão poderá contar com a contribuição do Plano Diretor Municipal, como instrumento de ordenação da ocupação do solo. Neste sentido, a PNPDC também objetivará a conservação e a proteção da vegetação nativa, dos recursos hídricos e da vida humana, de modo a evitar a ocorrência de desastres, além de combater a ocupação de áreas ambientalmente vulneráveis e de risco. (Cf. art. 5º da lei 12.608, de 10 de abril de 2012) 470 151 referida lei deverá estimular iniciativas que resultem na destinação de moradia em local seguro, promovendo a realocação da população residente em áreas de risco. Por fim, a referida lei tem como objetivos desenvolver consciência nacional acerca dos riscos de desastre, orientar as comunidades a adotar comportamentos adequados de prevenção e de resposta em situação de desastre e promover a autoproteção e integrar informações em sistema capaz de subsidiar os órgãos do SINPDEC na previsão e no controle dos efeitos negativos de eventos adversos sobre a população, os bens e serviços e o meio ambiente.471 Observe-se que um dos objetivos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil é monitorar os eventos meteorológicos, hidrológicos, geológicos, biológicos, nucleares, químicos e outros potencialmente causadores de desastres; e produzir alertas antecipados sobre a possibilidade de ocorrência de desastres naturais. Neste aspecto, observe-se que compete à União realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, bem como dos riscos biológicos, nucleares e químicos, e produzir alertas sobre a possibilidade de ocorrência de desastres, em articulação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.472 Do mesmo modo, compete ao Estado apoiar, sempre que necessário, os Municípios no levantamento das áreas de risco, na elaboração dos Planos de Contingência de Proteção e Defesa Civil e na divulgação de protocolos de prevenção e alerta e de ações emergenciais.473 Por fim, tem-se que compete ao Município a função de manter a população informada sobre áreas de risco e ocorrência de eventos extremos, bem como sobre protocolos de prevenção e alerta e sobre as ações emergenciais em circunstâncias de desastres. 474 Neste sentido, observe-se que, um dos princípios gerais em sede de direitos humanos e desastres naturais, refere-se ao direito à informação. Assim, todas as comunidades afetadas por um desastre natural devem ter direito a informações de fácil acesso sobre: a natureza e a intensidade do desastre enfrentando, medidas a serem adotadas para mitigação de riscos e informações sobre ações de assistência humanitária em curso. Do mesmo modo, devem elas 471 Art. 5º, da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012 Art. 6o, IX, da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. 473 Art. 7o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012 474 Art. 8o, IX, da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012 472 152 ter a oportunidade de participar do planejamento e implementação medidas de prevenção e resposta em relação ao desastre.475 3.4 MOMENTOS DE AÇÃO EM SEDE DE DESASTRES: UMA RELAÇÃO TEMPORAL ENTRE PASSADO, PRESENTE E FUTURO O Sistema Nacional de Defesa Civil contempla ações para todos os momentos relacionados ao desastre (antes, durante e depois). Assim, a Defesa Civil costuma dividir as ações em sede de desastres em três momentos: antes (pré-evento); durante (momento do desastre); e após o evento (posdesastre), sendo certo que se deve dar preferência às ações de prevenção, eis que podem evitar prejuízos e danos para a população e para o próprio ente público, ou, pelo menos, mitigar os efeitos decorrentes de um desastre futuro. Tal sistema contempla ações de prevenção de desastres, preparação para emergências e desastres, resposta aos desastres e reconstrução da comunidade vítima de um desastre. Fala-se, assim, em um conjunto de medidas protetivas, composto por medidas preventivas e recuperativas. Neste aspecto, faz-se necessário esclarecer que as medidas preventivas abrangem as ações de prevenção, mitigação e preparação, ao passo que as medidas recuperativas abrangem as ações de resposta (as quais contemplam as ações de socorro, assistência às vítimas e restabelecimentos dos serviços essenciais) e as ações de reconstrução. 3.4.1 Ações preventivas: direitos fundamentais e prevenção a desastres Na sociedade de risco, a possibilidade de ocorrência de desastres é um fator com o qual todos devem aprender a conviver. Para tanto, deve o Poder Público e a sociedade envidar todos os esforços disponíveis de modo a evitar a ocorrência de um desastre futuro. As ações de prevenção podem ser conceituadas todas aquelas destinadas a reduzir a ocorrência e a intensidade de desastres, podendo ser realizadas por meio da identificação, mapeamento e monitoramento de riscos, ameaças e vulnerabilidades locais. Tais ações 475 HUMAN RIGHTS AND NATURAL DISASTERS Operational Guidelines and Field Manual on Human Rights Protection in Situations of Natural Disaster, p. 24. Disponível em: <http://www.refworld.org/ pdfid/49a2b8f72.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2013. 153 incluem, ainda, a capacitação da sociedade em atividades de Defesa Civil, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional. 476 A ação preventiva pode ser realizada por meio de ações do Município ou em colaboração com Estado e União. Neste sentido, a realização de convênios com o Estado e com o Ministério das Cidades, mediante contrapartida por parte do Município é medida salutar para prevenir a ocorrência de danos.477 No tocante as medidas relacionadas à redução dos riscos, tem-se que estas podem ser implementadas por meio de medidas estruturais e medidas não estruturais.478As medidas estruturais podem ser implementadas por meio de obras como muros de arrimo, diques, canais de drenagem, obras de contenção de encostas, etc. Já as medidas não estruturais seriam aquelas relacionadas ao zoneamento urbano e o uso racional do espaço disponível, bem como a normatização da segurança das edificações e outras ações preventivas. Outra medida importante refere-se ao mapeamento da área de risco e à elaboração de planos de contingência e simulados. Em nível nacional registre-se a existência do Programa de Prevenção de Desastres – PRVD, o qual apresenta projetos relacionados ao estudo de riscos (tais como projetos como os de avaliação de riscos e desastres, mapeamento de áreas de risco), bem como à redução dos riscos. Assim, as ações de prevenção em relação a riscos comprovados podem contemplar: construção de reservatórios de amortecimento; implantação de sistema de abastecimento de água; relocação de unidades habitacionais situadas em áreas de risco, mas ainda não danificadas; recuperação de obras de arte especiais progressivamente deterioradas (pontes, viadutos, etc.); implantação de sistemas de macro e microdrenagem, voltados à prevenção de alagamentos ou enxurradas; sistemas de proteção de erosão costeira, etc.479 476 Art. 2° do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010. Observe-se, entretanto, que a Medida Provisória nº 361, permitiu a utilização do FUNCAP nessas hipóteses, dispensando-se a celebração de convênios. 478 CUNHA, op. cit., p. 26. 479 BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Convênios: caderno de orientações. Brasília: Secretaria Nacional de Defesa Civil, 2011, p. 11.. Disponível em: <http://www.integracao. gov.br/c/document_library/get_file?uuid=ea0957ec-305c-4c9c-a2f6-47e7dad795e2&groupId=10157>. Acesso em: 10 nov. 2013. 477 154 A avaliação de riscos, consoante estabelece a Defesa Civil, consiste em estudos das ameaças de desastres e do grau de vulnerabilidade do sistema e dos corpos receptores, de modo a qualificar e hierarquizar os riscos, definindo as áreas de maior vulnerabilidade.480 Além das ações de prevenção, há, também, as ações de preparação, que são o segundo tipo de ação mencionado pelo Sistema de Defesa Civil. Tal fase é anterior à ocorrência do desastre podendo, entretanto (e a depender da situação) persistir durante sua ocorrência. Nesta fase, registre-se o Programa de Preparação para Emergências e Desastres – PPED, o qual, por sua vez, é composto por dois subprogramas. O primeiro subprograma relaciona-se à preparação técnica e institucional, abrangendo projetos de desenvolvimento institucional, desenvolvimento de recursos humanos, desenvolvimento científico e tecnológico, mudança cultural, motivação e articulação empresarial, informações e estudos epidemiológicos e monitoração, alerta e alarme. Já o segundo subprograma refere-se à preparação operacional e de modernização do sistema, abrangendo projetos de planejamento operacional e de mobilização e aparelhamento e apoio logístico. O Programa de Preparação para Emergências e Desastres - PPED, estabelecido pela Política Nacional de Defesa Civil e com previsão no orçamento da União, é um importante programa estratégico, de âmbito nacional. Seus objetivos principais são: incrementar o nível de segurança intrínseca e reduzir a vulnerabilidade dos cenários dos desastres e das comunidades em risco; otimizar o funcionamento do Sistema Nacional de Defesa Civil - SINDEC, em todo o território nacional; minimizar as influências negativas relacionadas com as variáveis tempo e recursos, sobre o desempenho do SINDEC; e facilitar uma rápida e eficiente mobilização dos recursos necessários ao restabelecimento da situação de normalidade, em circunstâncias de desastres. Seus objetivos específicos são: a prevenção dos desastres, no que diz respeito à avaliação e à redução dos riscos de desastres; as ações de resposta aos desastres, compreendendo as ações de socorro às populações ameaçadas, assistência às populações afetadas e reabilitação dos cenários dos desastres; e as atividades de reconstrução.481 480 481 Ibidem. BRASIL, op. cit., 1999. p. 2. 155 3.4.2 A eclosão do desastre: medidas de urgência e gestão da crise Não tendo sido possível evitar a ocorrência de um desastre torna-se necessária a adoção de medidas urgentes que possam contribuir para minimizar as perdas humanas e materiais dele decorrentes. Assim, na hipótese de ocorrência de determinado desastre, incumbe ao Poder Público (com o auxílio da Defesa Civil) a remoção e, posteriormente, o reassentamento de famílias por meio de uma política habitacional devidamente estruturada e planejada. Tais ações são denominadas de ações recuperativas e dividem-se em ações de resposta e ações de reconstrução, sendo certo que as ações referentes à atuação durante o desastre, bem como as imediatamente subsequentes, integram as chamadas ações de resposta. As ações de respostas encontram-se descritas no sistema nacional de Defesa Civil e são constituídas pelas ações adotadas no momento da ocorrência do desastre e no espaço de tempo imediatamente subsequente. Isso porque nem sempre um desastre ocorre instantaneamente, podendo prolongar-se no tempo. É o caso, por exemplo, dos deslizamentos durante as chuvas. Mesmo que ocorra um deslizamento há o risco de deslizamentos posteriores, tendo em vista a continuidade das chuvas. Conforme mencionado, as ações de resposta abrangem as ações de socorro, de assistência às vítimas e de restabelecimento de serviços essenciais. Assim, tem-se que: As primeiras (ações de socorro) são as ações imediatas de resposta aos desastres e tem o objetivo de socorrer a população atingida. Tal socorre abrange a busca e salvamento, bem como os primeiros-socorros, o atendimento pré-hospitalar e o atendimento médico e cirúrgico de urgência, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional;482 Já as ações de assistência às vítimas são: [...] ações imediatas destinadas a garantir condições de incolumidade e cidadania aos atingidos, incluindo o fornecimento de água potável, a provisão e meios de preparação de alimentos, o suprimento de material de abrigamento, de vestuário, de limpeza e de higiene pessoal, a instalação de lavanderias, banheiros, o apoio logístico às equipes empenhadas no desenvolvimento dessas ações, a atenção 482 Art. 2°, V, decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010. 156 integral à saúde, ao manejo de mortos, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional;483 Por fim, há as denominadas ações de restabelecimento de serviços essenciais, que são ações de caráter emergencial destinadas ao restabelecimento das condições de segurança e habitabilidade da área atingida pelo desastre. Nestas ações incluem-se: A desmontagem de edificações e de obras-de-arte com estruturas comprometidas, o suprimento e distribuição de energia elétrica, água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem das águas pluviais, transporte coletivo, trafegabilidade, comunicações, abastecimento de água potável e desobstrução e remoção de escombros, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional. 484 Tais ações têm como objetivo atender os indivíduos afetados por desastres, garantindo-se àqueles que se encontram em situação de fragilidade, condições para que os direitos inerentes à dignidade humana sejam protegidos.485 No tocante ao gerenciamento dos desastres, NOGUEIRA destaca que as atividades de resposta ao desastre (que são aquelas que se desenvolvem no período de emergência ou imediatamente após ocorrido o evento) podem envolver ações de evacuação, busca e resgate, de assistência e alívio à população afetada e ações que se realizam durante o período em que a comunidade se encontra desorganizada em razão do desastre e os serviços básicos de infraestrutura não funcionam.486 Assim, para que os danos e perdas decorrentes de um desastre sejam os menores possíveis, é fundamental a preparação da comunidade e do Poder Público local para atuar diante de tais adversidades. Por esta razão, a realização de simulados e a educação para atuação em situações de crises e desastres constituem-se em medidas importantes para a salvaguarda dos direitos fundamentais dos indivíduos vítimas de desastres. A população precisa se mobilizar e agir, de modo a minimizar as consequências negativas decorrentes de determinado desastre. Porém, para que isso ocorra, precisa estar preparada para agir. 483 Art. 2°,VI decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010. Art. 2°, VII, decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010. 485 CUNHA, op. cit., p. 20. 486 NOGUEIRA, Fernando Rocha. Políticas públicas municipais para gerenciamento de riscos ambientais associados a escorregamentos em áreas de ocupação subnormal. Tese (Doutorado em Geociências e Meio Ambiente) - Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2002. p. 68. 484 157 Sem a prévia existência de um plano de contingência e sem a prévia realização de simulados, a comunidade não terá condições para agir eficazmente na hipótese de ocorrência de um desastre. Deste modo, não havendo um plano de ação previamente estabelecido a ser seguido na hipótese de ocorrência de desastres, não terá a coletividade condições de se defender adequadamente. Assim, as ações serão efetuadas instintivamente e, provavelmente serão menos eficazes do que na hipótese de ser seguido um plano previamente definido. Nesta hipótese, os indivíduos acabam se transformando em marionetes, uma vez que não possuem condições ou capacitação para agir de forma eficaz neste momento. Assim, a atuação durante a ocorrência de um desastre exige planejamento e suporte técnico por parte do Poder Público, de modo a contribuir para a minimização das perdas (humanas e materiais) que possam advir da eclosão de um desastre. Outro aspecto importante, com relação a atuação durante o desastre refere-se a participação da mídia neste processo. A cobertura feita pelos veículos de comunicação pode ser muito útil a fim de informar a população local e demais interessados acerca da situação vivenciada no momento da ocorrência de determinado desastre. Assim, pode a mídia informar sobre prejuízos causados pelo desastre, estradas interditadas, pessoas feridas, etc. Tais informações podem auxiliar pessoas atingidas pelas tragédias a encontrar refúgios, bem como equipes de auxílio, assistência médica, etc. Igualmente, o trabalho da imprensa pode auxiliar pessoas a localizar familiares vitimados pelo referido desastre, etc. Não obstante a literatura inclua as ações de resposta ao desastre nesta fase, preferiu-se, nesta tese, restringi-las apenas às ações a serem praticadas durante o desastre e logo em seguida a sua ocorrência, incluindo as demais ações recuperativas na fase do “pós-desastre”. A grosso modo, as ações adotadas durante a ocorrência do desastre são iminentemente emergenciais e urgentes, com o objetivo de tentar salvar o maior número de pessoas possível, tendo em vista a eclosão do desastre. Assim, é possível inserir-se nesta fase as ações de socorro, avaliação dos danos ocorridos (elaborando laudos técnicos de modo a fundamentar eventual pedido de ajuda decorrente de decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública) e reabilitação de serviços essenciais. Pode-se, ainda, incluir nesta fase ações de desobstrução e remoção de escombros, sepultamentos e limpeza do local, de modo a evitar infecções e outras doenças derivadas do desastre. 158 De qualquer modo, tal divisão é meramente didática eis que, de fato, tais ações são praticadas após a ocorrência do desastre, sendo preferível tratá-las como ações recuperativas.487 Assim, a atuação durante o desastre deve limitar-se apenas às ações imediatas ao desastre, sendo certo que as ações sequencias (e, em especial, as ações de reconstrução) devem ser incluídas na fase do posdesastre. É o que se verá a seguir. 3.4.3 Depois do desastre: a necessidade de respostas Uma vez ocorrido o desastre algumas medidas burocráticas precisam ser adotadas. A primeira delas refere-se a elaboração da FIDE – ficha de informação de desastre e do NOPRED - Formulário de Notificação Preliminar de Desastres. Tais documentos têm como objetivo comunicar oficialmente o Sistema acerca da ocorrência de um desastre, além de apresentarem informações preliminares sobre a magnitude do fenômeno adverso causador do desastre e sobre a área afetada. Assim, por meio de tais documentos há a informação ao Órgão Estadual de Defesa Civil e à Secretaria Nacional de Defesa Civil, em Brasília-DF, acerca da ocorrência do evento adverso ou desastre. Do mesmo modo, os referidos documentos apresentam uma avaliação preliminar sobre a intensidade do desastre, caracterizando os danos humanos e materiais e os prejuízos sociais, além de se constituírem como fonte oficial de informações.488 Paralelamente à FIDE - Ficha de Informação de Desastre e o NOPRED - Formulário de Notificação Preliminar de Desastres, tem-se o AVADAN – Formulário de Avaliação de Danos - o qual tem por finalidade: informar, com precisão, o SINDEC sobre as características dos desastres; avaliar os danos humanos, materiais e ambientais provocados pelo desastre; e informar sobre os prejuízos econômicos e sociais resultantes.489Assim, a avaliação de danos deverá verificar: qual a área afetada e o tipo de ocupação existente; as causas do desastre, etc; também deverão constar os danos humanos, isto é: a quantidade de pessoas desalojadas, desabrigadas, deslocadas, desaparecidas, levemente feridas, gravemente feridas, enfermas, mortas e afetadas. Por fim, registre-se que o AVADAN também deve mencionar os Danos Materiais, danos ambientais e prejuízos econômicos, bem como apresentar um relatório sobre 487 Segundo entendimento do autor da presente tese as ações em sede de desastres dividem-se fundamentalmente em duas categorias: ações preventivas e ações recuperativas. Contudo, como a literatura nacional e internacional dividem tais ações em três momentos julgou-se oportuno trazê-las para conhecimento. 488 BRASIL, op. cit., 2007. p. 23-5. 489 Ibidem, p. 26. 159 os prejuízos sociais sofridos, tais como: serviços de abastecimento d’água, energia elétrica, transporte, comunicações, esgoto, gás, coleta e tratamento de lixo, etc. Uma vez ocorrido o desastre e prestado o atendimento de urgência às pessoas atingidas, torna-se necessário pensar em ações de recuperação e reconstrução. As ações de reconstrução são aquelas nas quais, superada a fase mais crítica do desastre e do posdesastre (ou seja: já tendo havido a adoção de ações tendentes ao socorro e à assistência às vítimas e restabelecimento de serviços) passa-se às ações tendentes ao retorno à situação anterior, bem como à adoção de estratégias e tecnologias que evitem que o desastre volte a ocorrer, e, caso isso não seja possível, tentam atuar de forma a reduzir os prejuízos na hipótese de nova ocorrência do evento adverso. Desta forma, na reconstrução deve-se procurar inserir mecanismos, obras e instrumentos que impeçam ou minimizem um acidente futuro. Segundo estabelece o referido decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010 as ações de reconstrução podem ser conceituadas como: [...] ações de caráter definitivo destinadas a restabelecer o cenário destruído pelo desastre, como a reconstrução ou recuperação de unidades habitacionais, infraestrutura pública, sistema de abastecimento de água, açudes, pequenas barragens, estradas vicinais, prédios públicos e comunitários, cursos d'água, contenção de encostas, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional;490 O PRRC – Programa de reconstrução abrange ações de recuperação socioeconômica de áreas afetadas por desastres, além da relocação populacional e construção de moradias para populações de baixa renda, abrangendo, também, programa de recuperação de infraestrutura e de serviços púbicos.491 Em razão de sua conformação geográfica e outras especificidades, o Rio de Janeiro é um dos Estados que mais sofre em razão dos desastres “naturais” hidrológicos. Assim, foi promulgada naquele Estado a lei nº 5.745, de 10 de junho de 2010, a qual dispõe sobre a realocação de pessoas moradoras de áreas de risco, e dá outras providências. Pela referida lei, 490 Art. 2°, VIII, do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010 SECRETARIA DE DEFESA CIVIL. POLÍTICA NACIONAL DE DEFESA CIVIL. MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL: BRASÍLIA, 2000, p.13. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/PEDSudamerica/leyes/leyes/suramerica/brasil/sistemnac/Poli tica_Nacional_Defensa_Civil.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2013. 491 160 os projetos habitacionais construídos direta e indiretamente pelo Poder Público estadual deverão reservar 10% (dez por cento) das suas unidades para ocupação de famílias oriundas de áreas localizadas nas beiras de rios, lagos, lagoas, em terrenos de baixa resistência à compressão, ou de encostas, quando consideradas em áreas de risco supervisionadas pelo Instituto Estadual do Ambiente - INEA.492 Tal reserva de residências tem como objetivo amenizar o problema referente às ocupações em áreas de risco. Do mesmo modo, o Poder Executivo, em parceria com os Municípios, efetuará o mapeamento das áreas de risco do Estado do Rio de Janeiro e recuperará ambientalmente as áreas de risco desocupadas, com espécies nativas dos ecossistemas locais. Paralelamente, o Poder Público deverá estabelecer uma política ambiental, visando impedir a ocupação das margens dos rios, o desmatamento e a ocupação de encostas e terrenos de baixa resistência, assim como deverá elaborar diretrizes e critérios bem definidos para a expansão urbana nas áreas mais suscetíveis a fenômenos, como deslizamento de terras e enchentes. Em fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) com o objetivo de avaliar o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC) e evitar a ocorrência de calamidades devido as chuvas no estado do Rio de Janeiro, concluiu-se pela necessidade de maior articulação entre os órgãos e entidades municipais, estaduais e federais. Dentre as falhas detectadas, registrem-se: a ineficácia do Fundo Especial para Calamidades Públicas (FUNCAP) e a relocação intempestiva de moradores. O relatório também destacou que há inobservância da União à diretriz de prioridade da prevenção. No âmbito federal, o TCU recomendou: a) ao Ministério das Cidades: que priorize programas habitacionais para a relocação de famílias residentes em áreas de risco ou que tenham sido desabrigadas; b) ao Ministério da Integração Nacional: a implementação e a regulamentação do Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil; c) a ambos: O apoio aos Municípios mais suscetíveis à ocorrência de desastres naturais na implementação e na finalização do mapeamento das áreas de risco e na elaboração de planos de Contingência de Proteção e Defesa Civil, além da implantação de obras e serviços para a redução de riscos de desastres, e apoio na criação de mecanismos de controle e fiscalização para evitar a edificação em áreas de risco. 493 Relembre-se, entretanto, 492 Art. 1º da lei nº 5.745, de 10 de junho de 2010 Relatório completo constante no processo TC 025.143/2013-1. Disponível em: <https://contas.tcu. gov.br/ etcu/AcompanharProcesso?p1=25143&p2=2013&p3=>1. Acesso em: 15 jan. 2014. 493 161 que tais ações devem ser adotadas apenas na hipótese de ocorrência de um desastre, devendo, sempre que possível, dar-se mais valor às ações preventivas. Outra crítica feita às ações recuperativas refere-se ao fato de que os programas de reabilitação e ajuda acabam servindo para fomentar a permanência da população pobre em áreas sujeitas a riscos de inundações.494 Consoante entendimento de CASTRO: [...] o uso exagerado desses dispositivos legais relativos a estado de calamidade pública, em função de uma política imediatista e da falta de determinação política para priorizar as atividades de minimização de desastres, contribui para retardar o desenvolvimento da doutrina de redução de desastres e para maximizar o volume de danos humanos, materiais e ambientais perfeitamente evitáveis 495 No caso de construções realizadas em áreas de risco deve-se, primeiramente, procurar retirar essas populações desses locais, bem como impedir que novas construções sejam realizadas nestes locais. Analisando a proteção contra desastres sob a ótica dos direitos fundamentais concluise que não basta apenas reconstruir o que foi destruído em decorrência de um desastre. Os desastres “naturais” hidrológicos são, em geral, desastres de natureza cíclica, eis que – por estarem relacionados aos períodos de chuva e de seca – costumam ocorrer em determinadas épocas do ano. Assim, se não forem adotadas medidas que impeçam ou minimizem desastres futuros, novos prejuízos serão causados aos indivíduos, violando a dignidade da pessoa humana. Tais ações (tendo em vista que o desastre já ocorreu) possuem, também, um caráter preventivo em relação a futuros desastres. São, assim, medidas preventivas decorrentes de um desastre pretérito. Isso ocorre porque a simples reconstrução/recuperação (sem a preocupação com a prevenção a novos desastres futuros) deixaria a população em situação igual a que se encontrava antes do desastre ocorrido. Logo, na hipótese de um desastre pretérito, deve-se pensar não em ações recuperativas ou reconstrutivas, mas, sim, em ações que possam impedir ou minimizar os efeitos de um desastre futuro. 494 WIJKMAN, op. cit. CASTRO, Antonio Luiz Coimbra de. Segurança global da população. Brasília: Ministério da Integração Nacional, Secretaria de Defesa Civil, 2000. p. 43. 495 162 Observe-se que, no caso dos desastres relacionados à água, esta preocupação deve ser uma constante, eis que, conforme mencionado, as chuvas, enchentes e inundações são eventos cíclicos, ocorrendo com certa regularidade. Deste modo, mais do que simplesmente reconstruir um local atingido, deve-se pensar em mecanismos e instrumentos que impeçam que desastres dessa natureza voltem a ocorrer. Logo, tem-se que, mesmo nas hipóteses de medidas “pós desastre”, deve-se adotar uma postura preventiva, evitando que novos desastres voltem a ocorrer, ou, se inevitáveis, que sejam mitigados ao máximo. 3.4.4 Momentos de ação e manutenção da dignidade da pessoa humana Independentemente da fase em que se encontre (predesastre, desastre ou posdesatre) é necessário ter-se em mente que os direitos fundamentais do indivíduo e, em especial, a dignidade da pessoa humana, devem ser preservados e protegidos pelo Poder Público e pela coletividade. Logo, o fato de ocorrer um desastre ou outra situação calamitosa não faz com que as pessoas percam seus direitos humanos fundamentais. Mesmo que o desastre tenha causado significativo impacto na vida das pessoas, destruindo lares, etc. ainda assim, tais direitos precisam ser protegidos e tutelados pelo Poder Público. Assim, uma vez ocorrido o desastre, deve o Poder Público (e os demais atores envolvidos) procurar alternativas que possibilitem o rápido retorno à situação de segurança e proteção existente antes da eclosão do desastre. Observa-se, assim, o dever primordial de proteção e assistência as pessoas atingidas. Ao realizar a remoção das pessoas atingidas por determinado desastre, deve o Poder Público assegurar, de maneira prática, que seja fornecido alojamento adequado aos deslocados e que tais deslocações sejam efetuadas em condições satisfatórias de segurança, nutrição, saúde e higiene e que não haja separação dos membros da mesma família.496 Tem-se, aqui, a demonstração de que, mesmo em hipóteses de desastres, deve-se preservar os direitos fundamentais do indivíduo, garantindo a sua saúde, segurança, alimentação e condições de higiene que lhe 496 permitam manter sua qualidade de “ser humano”. Frise-se, ainda, a Princípio nº 17 dos Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos 163 importância da manutenção dos vínculos familiares, mantendo unidos os membros de uma mesma família e contribuindo para a superação da adversidade vivenciada. Neste aspecto, observe-se, ainda, que, segundo o Princípio 8 dos “Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos”, tal deslocamento deve ser feito de modo a não violar os direitos à vida, dignidade, liberdade e segurança dos afetados. Do mesmo modo, as autoridades competentes deverão fornecer aos deslocados internos e assegurar-lhes o acesso seguro a: a) alimentação básica e água potável; b) abrigo básico e habitação; c) vestuário adequado; e d) serviços médicos essenciais e saneamento.497 Há, ainda, que fazer-se menção ao dever do Poder Público, no sentido de criar condições e fornecer meios que permitam o regresso voluntário, em segurança e com dignidade, dos deslocados internos às suas casas ou aos locais de residência habituais, ou a sua reinstalação voluntária em qualquer outra parte do país. Tais autoridades devem esforçar-se para facilitar a reintegração das pessoas regressadas ou reinstaladas que outrora foram deslocados internos.498 Assim, em que pese a ocorrência de desastres venha a causar prejuízos aos indivíduos, lesando-lhes direitos fundamentais, tais como a integridade física, moradia, saúde, etc. deve o Poder Público e a sociedade agirem de modo a restabelecer a situação anterior, mantendo o status de “pessoa humana” do indivíduo. 3.5 POLÍTICAS PÚBLICAS E APLICAÇÃO DE RECURSOS EM QUESTÕES RELACIONADAS A DESASTRES Dadas suas características, a efetivação dos direitos fundamentais sociais causam enormes efeitos financeiros, principalmente quando são muitos os indivíduos que deles necessitam. Contudo, tal argumento não torna possível a defesa da inexistência de tais direitos.499 Pelo contrário: justamente por se tratarem de direitos fundamentais exige-se uma preocupação maior do Estado em relação a sua efetivação. Assim, dados os bens jurídicos tutelados, tem-se que o combate aos efeitos da mudança climática (e, consequentemente, o combate aos desastres naturais hidrológicos) exige o gasto de recursos financeiros por parte do Poder Público.500 497 Princípio 18 - Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos Neste sentido, veja-se: Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos. 499 ALEXY, op. cit., 2012. p. 512-3. 500 GIDDENS, op. cit., 2010. p. 26. 498 164 Tais recursos podem advir de receitas próprias – advindas de tributos pertencentes ao ente público – e receitas derivadas – decorrentes de transferências (voluntárias ou obrigatórias) por parte dos Estados ou da União. As transferências voluntárias são aquelas decorrentes de projetos realizados em parceria, com divisão de responsabilidades, entre os órgãos estatais, sendo também chamadas de transferências discricionárias, uma vez que compete à autoridade pública decidir acerca de tal transferência de recursos. Em geral, elas são realizadas por meio de contratos, convênios ou acordos para alcançar um objetivo em comum. No que diz respeito às transferências obrigatórias, elas são determinadas em lei ou na Constituição e sobre elas não há qualquer decisão da autoridade pública com relação ao seu repasse a outro ente. Assim, são denominadas “obrigatórias” em razão do governo (Federal ou Estadual) ser obrigado a repassar uma parte dos impostos por ele arrecadados ao Município, que é o ente responsável pela execução dessa política pública. Especificamente em relação ao direito dos desastres, tem-se que a questão foi tratada pela Lei n. 12.340/2010501, a qual, por sua vez, foi regulamentada pelo Decreto n. 7.257/2010 e disciplina os auxílios estatais para prevenção de desastres e atividades de resgate, assistência e reconstrução pós-desastre. Conforme dito anteriormente, as ações de Defesa Civil dividem-se basicamente em dois grupos: prevenção de desastres e resposta a desastres. Assim, foram previstos dois tipos de auxílios. No caso de obras preventivas a transferência de recursos é tratada, tradicionalmente, por meio de convênios (transferência voluntária de recursos). Tais recursos decorrem das transferências financeiras voluntárias, oriundas do Fundo para Calamidades Públicas (FUNCAP) e destinam-se a obras de prevenção de desastres por meio da redução da vulnerabilidade de áreas de risco. Nos casos de posdesastre, o repasse é feito sob a forma de transferência obrigatória, nas hipóteses de decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública. Neste caso, o repasse decorre das transferências financeiras compulsórias, que são aquelas direcionadas pela União aos Municípios com a finalidade de ajudar e prestar assistência a vítimas, bem como de promover o restabelecimento e a reconstrução de áreas afetadas por 501 Segundo estabelece o art. 4º da Lei n. 12.340/2010 (com redação dada pela Medida Provisória nº 631, de 2013) são obrigatórias as transferências da União aos órgãos e entidades dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para a execução de ações de prevenção em áreas de risco de desastres, de resposta e de recuperação em áreas atingidas ou com o risco de serem atingidas por desastres, observados os requisitos e procedimentos estabelecidos pela legislação aplicável. Caberá ao órgão responsável pela transferência de recursos definir o montante de recursos a ser transferido de acordo com sua disponibilidade orçamentária e financeira e, no caso de execução de ações de recuperação, o ente beneficiário deverá apresentar plano de trabalho ao órgão responsável pela transferência dos recursos no prazo de noventa dias da ocorrência do desastre. 165 desastres. Trata-se, como se vê, de um auxílio financeiro a posteriori e cuja concessão é vinculada.502 Assim, para a execução das políticas públicas almejadas, torna-se necessária a aplicação de recursos oriundos de diversas fontes de receitas. Do mesmo modo, a forma como tais recursos serão geridos e administrados, bem como as obras e serviços nos quais eles serão investidos, contribuem significativamente para o atingimento (ou não) daquela política pública. Neste aspecto, o planejamento e a prevenção constituem-se como mecanismos importantes para o sucesso de determinada política pública, na medida que possibilitam o investimento em ações que possam proteger o indivíduo contra a ocorrência de desastres e, na sua impossibilidade, que possam mitigar os efeitos decorrentes de eventual desastre. Para tanto, torna-se fundamental a atuação da Administração Pública (por meio dos Municípios, que são os entes responsáveis pelo ordenamento territorial) bem como da população envolvida, contribuindo para a gestão democrática dos riscos aos quais a mesma encontra-se exposta. 3.5.1 Gastos com prevenção e recuperação A satisfação dos direitos sociais é custosa, exigindo a obtenção e a distribuição de recursos.503 Especificamente à proteção contra desastres, tem-se, segundo dados do Ministério da Integração, que foram aplicados, em sede de desastres os seguintes valores de recursos: 502 MARRARA, Thiago. Do "direito desastroso" ao <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/do-direitoAcesso em: 14 dez. 2013. 503 FERRAJOLI, op. cit., p. 52. direito dos desastres. Disponível em: desastroso-ao-direito--dos-desastres/10161>. 166 Quadro 6 - Recursos destinados diretamente a desastres ano recursos destinados à resposta aos recursos em obras preventivas desastres e reconstrução Programa 1027 - Prevenção e Programa 1029 – Resposta aos Preparação para Desastres Desastres e Reconstrução 2003 R$ 130.000.000,00 (*) dados não disponíveis 2004 R$ 130.000.000,00 (*) dados não disponíveis 2005 R$ 254.129.531,00 R$ 142.369.152 2006 R$ 254.547.109,00 R$ 110.359.45 2007 R$ 554.292.972,00 R$ 262.880.000 2008 R$ 1.168.716.740,00 R$ 616.509.214 2009 R$ 1.922.621.130,00 R$ 646.565.600 2010 R$ 3.045.399.483,00 R$ 425.000.603 Fonte: SIGPLAN - Programa 1029 / PPA 2008-2011 (Resposta aos Desastres e Reconstrução), disponível em: http://www.integracao.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=e008bc1e-64bb-4eab-ac0950451032c336&groupId=10157. Acesso em 02.04.2013 Apesar de não ter sido possível obter-se os valores investidos nos anos de 2001 a 2004 em sua totalidade, é possível observar-se que o Governo tem investido mais dinheiro em ações de recuperação do que em ações de prevenção.504 Neste aspecto, observe-se que o Grupo de Trabalho sobre Orçamento e Finanças, da Comissão Especial de Medidas Preventivas Diante de Catástrofes Climáticas, criado no âmbito da Câmara de Deputados, realizou um estudo técnico e apurou o seguinte gráfico evolutivo: 504 Do mesmo modo, segundo relatório referente à auditoria operacional realizada pelo Tribunal de Contas da União – TCU junto à Secretaria Nacional de Defesa Civil, em atendimento ao Requerimento 49 do Congresso Nacional, de 10/2/2009 e consubstanciado por meio do TC 000.741/2011-6, tem-se que o Brasil avança lentamente na prevenção de desastres, de tal forma que a atuação dos municípios em relação à proteção contra desastres é sempre reativa, ou seja, somente com a ocorrência de uma calamidade governo e sociedade se mobilizam, sendo certo que, passado algum tempo o evento é esquecido e as ações preventivas são relegadas a um segundo plano. 167 Gráfico 2 - Evolução do orçamento liquidado da Defesa Civil Fonte: MACEDO, Marcelo de Rezende Estudo técnico nº 04/2011. Comissão Especial de Medidas Preventivas Diante de Catástrofes Climáticas. Câmara dos Deputados: Brasília, 2011. Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/7364/comissao_especial_macedo.pdf?sequence=1. Acesso em 01.05.2013 Do mesmo modo, o referido grupo também apurou que os valores alocados no Projeto de Lei para a Prevenção são muito reduzidos em relação aos montantes Autorizados. Os estudos demonstraram que dos recursos destinados a ações de prevenção foram utilizados apenas: 25,3% no ano 2005; 39,7% no ano 2006; 51,7% no ano 2007; 51,7% no ano 2008; 69,7% no ano 2009 e 66,0% no ano 2010. Assim, não obstante a importância das ações preventivas na proteção contra a ocorrência de desastres, pouco se tem aplicado em obras dessa natureza. No que tange aos recursos financeiros, observa-se que, a depender da vontade política do governante, vários fundos e programas específicos podem ser criados para auxiliar Municípios na realização dessas obras. Aliás, para muitos, a implementação de direitos sociais prestacionais “está subordinada a escolhas políticas, as quais definirão a destinação dos recursos e as políticas públicas necessárias a efetivação destes direitos”.505 505 PINHEIRO, op. cit., p. 125. 168 É importante mudar-se esse pensamento, uma vez que a falta de planejamento e o não investimento em ações preventivas acabam contribuindo para a ocorrência de desastres, que acabam obrigando o Estado a fazer investimentos bem maiores para recuperar o local, ao passo que, se fossem aplicados anteriormente (em medidas preventivas), implicariam um custo bem menor e evitariam desastres naturais de maiores proporções.506 Registre-se, ainda, que, em regra, as ações preventivas são menos onerosas em função de sua natureza, bem como em razão da sua submissão, em regra, ao princípio da obrigação de licitar, o qual inexiste na hipótese de obras e serviços de natureza recuperativa incluídos nas hipóteses de dispensa de licitação. Sob outra ótica, registre-se que países que passaram a priorizar atividades de prevenção de desastres, bem como preparação para emergências e desastres melhoraram substancialmente as condições de segurança global da população, além de reduzir os gastos com ações de resposta e reconstrução.507 Logo, deve-se estabelecer metas com o intuito de reduzir os gastos com ações recuperativas, privilegiando-se a adoção de medidas preventivas. Como se vê, há uma profunda diferença em relação a obras ou serviços realizados antes ou após a ocorrência de um desastre, sendo certo que tais diferenças não se resumem à fonte de origem dos recursos, abrangendo, também, aspectos relacionados ao procedimento para contratação de obras e serviços. Explica-se:508 Segundo a lei, tem-se, como regra geral, que as obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas na lei 8.666/93. Contudo, na hipótese de ocorrência de situação de emergência ou de estado de calamidade pública (e havendo urgência na realização de obras e serviços) haverá a dispensa da licitação. Tem-se, assim, duas situação distintas: Em épocas de “normalidade” o Poder Público deverá realizar procedimento licitatório para realização de obras e serviços, bem como obter recursos prévios que lhe permitam 506 ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS, 16., Anais... Porto Alegre: AGB, 2010. Disponível em: http://www.agb.org.br/event download.php?id Trabalho=2377. Acesso em: 10 dez. 2013. 507 CASTRO, op. cit., 2000. p. 43. 508 Para maiores detalhes sobre o procedimento para dispensa de licitação veja-se o item 3.5.2. 169 efetuar os pagamentos decorrentes. Já em épocas de “anormalidade” o sistema normativo é simplificado, ante a urgência que a situação exige. Assim a aplicação dos recursos variará segundo o momento de sua solicitação e de acordo com a situação vivenciada por determinada localidade. Deste modo, a aplicação de recursos públicos para a realização de obras e serviços de caráter preventivo segue as regras gerais referentes aos gastos públicos. Assim, há a necessidade de previsão orçamentária, licitação, empenho do valor a ser pago, etc. Logo, é possível aos entes públicos solicitarem auxílios a fim de realizar ações de caráter preventivo, destinadas a reduzir a ocorrência e a intensidade dos desastres com ações estruturais e não estruturais. Tais medidas referem-se ao planejamento da ocupação do espaço geográfico e à execução de obras e serviços, principalmente relacionados com intervenções em áreas de risco. Nessa esteira, é possível solicitar recursos para execução de obras ou elaboração de estudos e desenvolvimento de projetos, tais como: Plano Diretor de drenagem urbana, mapeamento de áreas de risco, estudos e projetos de minimização de seca, de macrodrenagem, de prevenção de deslizamentos, etc.509 Ainda com relação às contratações de obras e serviços, registre-se que a Medida Provisória nº 631, de 2013, inseriu um artigo 15-A, na lei 12.340/2010, estabelecendo a aplicabilidade do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC)510, às licitações e aos contratos destinados à execução de ações de prevenção em áreas de risco de desastres, de resposta e de recuperação em áreas atingidas por desastres. Importante mencionar que a decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública está relacionada, entre outros fatores, à capacidade de resposta do Município com recursos próprios. Assim, não havendo necessidade de auxílio por parte do Estado ou da União, não haverá a configuração de tais graus de desastres. 509 BRASIL, convênios... op. cit., 2013. O RDC tem por objetivos: ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes, promover a troca de experiências e tecnologias em busca da melhor relação entre custos e benefícios para o setor público, incentivar a inovação tecnológica e assegurar tratamento isonômico entre os licitantes e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração pública. Dentre as diretrizes a serem observadas nas licitações e contratações por meio do RDC destaque-se a busca da maior vantagem para a administração pública, considerando custos e benefícios, diretos e indiretos, de natureza econômica, social ou ambiental, inclusive os relativos à manutenção, ao desfazimento de bens e resíduos, ao índice de depreciação econômica e a outros fatores de igual relevância. Para maiores detalhes, cf. Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011. 510 170 Do mesmo modo, tratando-se de medida preventiva e, em tese, não urgente, o recebimento de recursos condiciona-se a existência de reserva orçamentária. Logo, não havendo previsão orçamentária, a abertura de crédito extraordinário é, em regra, proibida. Contudo, a Constituição Federal de 1988 autoriza como medida excepcional, segundo regra estabelecida no artigo 167, § 3º, que, nas hipóteses em que haja o surgimento de despesas imprevisíveis e urgentes (como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública) haja a abertura de crédito extraordinário511, observado o disposto no artigo 62. Desse modo, essas transferências são atendidas por créditos adicionais extraordinários, abertos por medida provisória, nos termos do citado artigo 62. Assim, em caso de relevância e urgência (como é o caso dos desastres naturais hidrológicos), o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Foi a forma prevista pela Constituição Federal para atender situações de calamidade pública, como as hipóteses atinentes aos desastres hidrológicos. Ainda em nível constitucional, cite-se a possibilidade da instituição pela União, mediante lei complementar, de empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência.512 Uma crítica feita ao sistema refere-se ao fato de que um Município bem organizado, com boa estrutura de prevenção e gerenciamento de desastres, com controle das áreas de risco, das suas ameaças e vulnerabilidades, controle e atualização dos recursos locais existentes e com um bom trabalho de captação e sensibilização de parceiros (órgãos, instituições e da comunidade), terá grandes possibilidades de atender com eficiência uma situação de desastre e restabelecer a ordem e a normalidade anterior ao evento.513 Neste aspecto, registre-se que o PIB municipal também é um fator que pode influenciar na obtenção (ou não) de recursos por parte dos demais entes de direito público. Isso porque, utilizando-se de critérios econômicos, a decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública só ocorreria na hipótese de danos superiores a 10 e 30% do PIB Municipal, respectivamente. 511 Neste aspecto, o artigo da Lei nº 4.320, de 1964, conceitua os créditos extraordinários como aqueles destinados a despesas urgentes e imprevistas, em caso de guerra, comoção intestina ou calamidade pública. 512 Art. 148, I da CF. 513 Disponível em: <http://www.defesacivil.sp.gov.br/v2010/portal_defesacivil/conteudo/documentos/manual DefesaCivil_patruleiro.pdf P. 25-26>. Acesso em: 10 dez. 2013. 171 É estranho, mas a falta de planejamento dos Municípios (não se preparando adequadamente para evitar a ocorrência de desastres) é um fator que lhes facilita o acesso aos recursos disponibilizados pelos Estados e pela União para reconstrução de áreas afetadas por desastres “naturais”. Isso por que a decretação da situação de emergência ou do estado de calamidade pública pressupõe que o Município não esteja preparado para superar os prejuízos sofridos, sem a ajuda externa. Dessa forma, o não investimento em medidas preventivas acaba facilitando o acesso do Município aos recursos dos demais entes públicos.514 Com o objetivo de mudar esse panorama foi editada recentemente a medida provisória nº 631, de 24 de dezembro de 2013, a qual atribuiu à União a responsabilidade de: I - definir as diretrizes e aprovar os planos de trabalho de ações de prevenção em áreas de risco e de recuperação em áreas atingidas por desastres; II - efetuar os repasses de recursos aos entes beneficiários nas formas previstas no Art. 1º-A, caput,515 de acordo com os planos de trabalho aprovados; III - fiscalizar o atendimento das metas físicas de acordo com os planos de trabalho aprovados, exceto nas ações de resposta; e IV - avaliar o cumprimento do objeto relacionado às ações de prevenção em áreas de risco de desastres, de resposta e de recuperação em áreas atingidas por desastre. A referida medida provisória também atribuiu aos Estados, Distrito Federal e Municípios beneficiados com tais recursos financeiros, a responsabilidade exclusiva de: I demonstrar a necessidade dos recursos demandados; II - apresentar plano de trabalho ao órgão responsável pela transferência de recursos, na forma e no prazo definidos em regulamento;516 III - apresentar estimativa de custos necessários à execução das ações de prevenção e de recuperação; IV - realizar todas as etapas necessárias à execução das ações de prevenção em área de risco, de resposta e de recuperação de desastres, nelas incluídas a contratação e execução das obras ou prestação de serviços, inclusive de engenharia, em todas as suas fases; e V - prestar contas das ações de prevenção, de resposta e de recuperação perante o órgão responsável pela transferência de recursos e aos órgãos de controle 514 Neste aspecto, Marisa Midori Ishii, em tese intitulada “Dispensa por emergência/calamidade pública: novos rumos”, apresentada durante o XXXIX Congresso Nacional de Procuradores, realizado em Pernambuco entre os dias 16 e 20 de outubro de 2013, denomina de “emergência fabricada” a situação na qual a Administração, por desídia ou intenção deliberada do agente público, não adota providências cabíveis para a realização de procedimento licitatório com a devida antecedência, gerando a extrema necessidade para a contratação, o que autorizaria, com fulcro no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93, a dispensa de licitação. 515 A transferência de recurso poderá ser feita por meio de depósito em conta específica mantida pelo ente beneficiário em instituição financeira oficial federal ou por meio do Fundo Nacional para Calamidades Públicas, Proteção e Defesa Civil – FUNCAP. 516 Tal exigência não estará presente nas ações de resposta. 172 competente. Exige-se, ainda, que os entes beneficiários disponibilizem relatórios relativos às despesas realizadas com os recursos liberados pela União ao órgão responsável pela transferência de recursos e aos órgãos de controle.517 3.5.2 Licitação, aplicação de recursos e desastres A licitação constitui-se como um procedimento administrativo destinado a escolher a contratação da obra ou serviço mais vantajosa para a Administração Pública. Para isso, exigese uma série de requisitos que devem ser obedecidos de forma rigorosa. Consoante preceitua o art. 3o da lei 8.666/93, a licitação será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. Como se vê, o procedimento licitatório acaba sendo lento, na medida em que se deve obedecer todos os princípios acima expostos, bem como as demais determinações legais sobre o tema. Busca-se, assim, garantir a observância do princípio constitucional da isonomia. Consoante se depreende do texto legal, a regra no ordenamento jurídico brasileiro para a aquisição de obras e serviços pela Administração Direita e Indireta é a da necessidade de realização de licitação, sendo a dispensa aceita excepcionalmente. Assim, somente em épocas de anormalidade e, observados os requisitos estabelecidos em lei, admite-se a dispensa de licitação. A situação de emergência e o estado de calamidade pública constituem-se como situações anormais, provocadas por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem, respectivamente, no comprometimento parcial ou substancial da capacidade de resposta do Poder Público do ente atingido. Segundo ensina AMARAL,518 a situação de emergência caracteriza-se pela necessidade de solução imediata, de tal modo que a realização de licitação, com os prazos e formalidades a ela inerentes, possa vir a causar “prejuízo relevante ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços ou bens, ou ainda provocar a paralisação 517 Tais relatórios deverão ser apresentados nos prazos estabelecidos em regulamento e sempre que solicitados. AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Licitações nas empresas estatais. São Paulo: McGraw Hill, 1979. p. 54. 518 173 ou prejudicar a regularidade de suas atividades específicas”. Nestes casos, surge uma necessidade urgente de se restabelecer a situação anterior, reconstruindo prédios, estradas, pontes e outros bens lesados em decorrência de determinado desastre. Dada a anormalidade da situação, a licitação pública passa a ser dispensada, nos termos do inciso IV do art. 24 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993: IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos. Observe-se, assim, que não basta a ocorrência de um desastre para que a licitação seja dispensada. Tal ato exige uma série de requisitos que precisam estar presentes, sob pena de ilegalidade e possibilidade de punição do gestor público e daqueles que tenham contribuído para a fraude. Assim, uma vez caracterizada a situação de emergência (em razão da urgência de atendimento de situação capaz de causar prejuízo ou comprometer os bens jurídicos mencionados em lei) ou a ocorrência de calamidade pública, a Administração poderá deixar de realizar o procedimento licitatório para a situação vivenciada.519 Logo, uma vez caracterizada a situação de emergência ou estado de calamidade pública, e havendo a presença dos demais requisitos exigidos em lei, ficará dispensada a licitação para realização de obras e serviços que possam ser concluídas nos 180 (cento e oitenta) dias seguintes à ocorrência da emergência. A citada lei também traz exceções em relação à rescisão do contrato licitatório na hipótese de ocorrência dessas situações anormais. Dessa forma, não obstante a suspensão da execução do contrato por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias seja causa de rescisão do contrato (art. 78, XIV da lei 8.666/93) esta não se dará em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra (...). Do mesmo modo, o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados constitui (em regra) causa para a rescisão do contrato. Porém, em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem 519 MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 113-15. 174 interna ou guerra, será assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação. Quando se permite uma contratação emergencial nessas hipóteses, o controle e a fiscalização dos gastos se tornam mais difíceis, uma vez que as contratações acabam sendo realizadas com documentos incompletos ou não esclarecendo como a obra será feita, bem como os parâmetros para as compras e contratos de serviços, etc. Tal situação se justifica em razão da necessidade urgente de se atender a população atingida pelas tragédias, protegendo-se sua saúde, integridade física e demais direitos fundamentais, inerentes à dignidade da pessoa humana. Desse modo, a situação excepcional vivida por aquela comunidade obriga a adoção de medidas urgentes pelo Poder Público, de modo que o Município tenha condições de dar início imediato às obras necessárias para que o local atingido retorne à normalidade. Ocorre que a dispensa da licitação (não obstante os motivos justificadores) acaba facilitando a ocorrência de fraudes na contratação de empresas, etc., gerando prejuízo para o ente público e a coletividade.520 Assim, não obstante a dispensa de licitação esteja prevista em lei, deve-se criar na sociedade uma cultura de fiscalizar e acompanhar as contratações emergenciais feitas pelas prefeituras. É certo que, em períodos de tragédia, os mecanismos de controle da aplicação de verbas são diferenciados, havendo uma preocupação primordial pelo restabelecimento da situação de normalidade e realização das obras e serviços necessários para que isso ocorra. Contudo, o fato da lei autorizar a dispensa de licitação não significa que não é possível fiscalizar as obras e serviços realizados em situações de desastres. Assim, faz-se necessário criar mecanismos eficazes para a fiscalização dos gastos públicos em sede de desastres. E essa fiscalização deve ser exercida por toda a sociedade. Registre-se, entretanto, que tal fiscalização não pode ser meramente figurativa, mas, sim, exercida de fato o que exige, necessariamente, publicidade das informações à população e acesso real de tais dados e informações a todos os cidadãos. A propósito, registre-se a obrigatoriedade de que os entes federados deem ampla divulgação, inclusive por meio de portal na internet, acerca das ações 520 Neste sentido, cite-se: processo n.º 0000521-75.2011.4.02.510 - ação de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal em Nova Friburgo (RJ); Processo nº 0000859-41.2001.8.20.0101- Ação Civil de Improbidade Administrativa proposta pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. 175 inerentes às obras ou empreendimentos custeadas com recursos federais, destacando o detalhamento das metas, valores envolvidos, empresas contratadas e estágio de execução.521 Outro aspecto que merece ser mencionado: A justificativa principal para dispensa da licitação é a urgência das obras de reconstrução, necessárias para a manutenção da dignidade das pessoas atingidas por um desastre hidrológico. Entretanto, quando as situações se repetem todo ano (como é o caso das chuvas e, consequentemente, das enchentes, inundações e alagamentos) pergunta-se: se é sabido que dentro de um ano as chuvas voltarão a ocorrer porque não fazer agora as obras necessárias para evitar novas tragédias? Por que não aproveita esse período para remover (com segurança) as pessoas que residem em áreas de risco? Por que não se iniciar um projeto de educação ambiental que ajude a conscientizar as pessoas sobre a necessidade de jogar lixo em locais adequados? Por que não aproveitar esse período para treinar a população, capacitando-a para agir em momentos de crise? Observe-se, ainda que, lamentavelmente, raras são as condenações de agentes públicos em razão de prevaricação ou omissão estatal na proteção contra desastres.522 Há, ainda, um outro problema relacionado aos desastres, qual seja: o fato de que, por serem considerados fenômenos “naturais’ e, não raras vezes, de ocorrência cíclica, não há uma política pública voltada para a diminuição dos riscos e prejuízos dele decorrentes, o que contribui para que ocorra uma banalização das ações administrativas e políticas públicas relacionadas a este tema. Acresça-se, ainda, que a decretação da situação de emergência ou do estado de calamidade pública acaba trazendo outro “benefício”523 para o administrador público, qual seja: a dispensa de licitação.524 Assim, tem-se que a criação de programas que incentivem a inclusão nos orçamentos de verbas destinadas à prevenção de desastres (evitando as contratações emergenciais e sem licitação) podem produzir bons frutos no que se refere à proteção contra desastres. 521 Cf. Art. 1º-A, § 9º da lei nº 12.340, de 1º de dezembro de 2010, com redação dada pela Medida Provisória nº 631, de 2013. 522 SEGUN, op. cit., Elida. 2012. p. 69. 523 Fala-se em “benefício” em razão da desnecessidade de observância a uma série de procedimentos e regras estabelecidas pela lei 8.666/93, facilitando a contratação de obras e serviços. 524 Registre-se, entretanto, que o Tribunal de Contas da União tem admitido a possibilidade de contratação direta nos casos de “emergência fabricada”, em razão da existência de interesse público. Contudo, uma vez detectada a negligência, desídia, falta de planejamento, má-gestão ou má-fé do agente público, deverá ser analisada a conduta do agente público que não adotou tempestivamente as providências cabíveis, podendo este vir a ser responsabilizado. 176 3.6 POLÍTICAS PÚBLICAS, RESERVA DO POSSÍVEL E MÍNIMO EXISTENCIAL Segundo APPIO, as políticas públicas têm como finalidade assegurar a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, assegurando-lhes as condições materiais para uma existência digna. São, em suma, instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na sociedade.525 A proteção contra desastres “naturais” hidrológicos exige a atuação do Poder Público antes, durante e depois da eclosão de um desastre. A prevenção é a ação mais indicada, na medida em que impede a violação de direitos fundamentais do indivíduo, garantindo a manutenção de sua dignidade. Assim, a proteção contra desastres busca, em sua essência, a proteção à vida e à dignidade da pessoa humana. São esses, em última análise, os direitos tutelados pela ordem jurídica em sede de desastres. Contudo, os desastres atingem outros bens jurídicos, tais como a saúde, a integridade física e o patrimônio do indivíduo, entre outros. Dessa forma, os bens jurídicos lesados variarão segundo os danos oriundos de determinado desastre, sendo certo, entretanto, que a dignidade da pessoa humana estará sempre no centro das atenções jurídicas, quando o dano advir de um desastre. Tratando-se de direito fundamental de predominante caráter prestacional (na medida em que exige uma ação positiva por parte do Estado) as políticas públicas a ele relacionadas costumam ser classificadas como políticas públicas afetas a direitos fundamentais de segunda dimensão. Logo, os direitos sociais constituem-se como direitos que dependem de providências positivas do Poder Público, caracterizando-se, assim, como prestações positivas impostas às autoridades públicas.526 Deste modo, caberia ao Estado o dever de defender tais direitos, por imposição constitucional. Desta maneira, os direitos sociais constituem-se como direitos que dependem de providências positivas do Poder Público, caracterizando-se, assim, como “prestações positivas impostas às autoridades públicas”.527 Quando se fala em desastres (e, mais especificamente, em proteção contra desastres “naturais” hidrológicos) fala-se em medidas preventivas, tais como fiscalização da ocupação irregular do solo, retirada da população de áreas de risco, melhoria do sistema de drenagem de 525 APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005. p. 136. SILVA, op. cit., 2012. p. 151. 527 SILVA, op. cit., 2012. p. 148. 526 177 água, realização de obras de contenção de encostas, instalação de sistema eficaz de monitoramento e de alerta em sede de desastres, etc. A proteção contra os desastres – quando considerada no plano abstrato - constitui-se como uma espécie de direito fundamental social, decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana - e, por se tratar de um direito fundamental social de cunho prestacional, exige do Estado uma atuação positiva. Nesta linha, acrescente-se, ainda, que, em sede de direitos sociais, é justamente em tempos de crise que a proteção constitucional em relação a esses direitos torna-se mais imprescindível.528 Assim, o argumento atinente a aspectos orçamentários não pode ser utilizado como fator impeditivo para a proteção de tais direitos, mas, apenas, para balizar alguns sopesamentos em relação aos direitos “prioritários”. Logo, na medida em que determinado direito fundamental social encontra-se constitucionalmente garantido surge para o Estado uma proibição de abster-se em relação à proteção de tal direito.529 Segundo preconiza a doutrina530, tem-se que, tratando-se de direitos fundamentais sociais de cunho prestacional, o Poder Judiciário possui legitimidade para a efetivação de tais direitos. Contudo, discorrendo acerca da judicialização de direitos sociais, RAMOS especula se tal ativismo judicial será estendido a outros direitos sociais prestacionais associados a normas programáticas, citando como exemplo os direitos à moradia e de assistência aos desamparados. 531 Neste sentido, a recomendação da Corregedoria Nacional de Justiça – CNJ nº 40, de 05.06.2012 apresenta um plano de ação a ser observado pelos Tribunais de Justiça dos Estados para o enfrentamento e solução de situações decorrentes de calamidades e desastres ambientais. Tal plano de ação prevê a instituição de um gabinete de crise (a ser acionado em situação de desastre ambiental), bem como concentração provisória do atendimento jurídico 528 ALEXY, op. cit., 2012. p. 513. CANOTILHO, op. cit., 2003. p. 321. 530 Neste sentido: ESTEVES, João Luiz M. Direitos fundamentais sociais no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Método, 2007. KRELL, Andreas Joaquim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva, 2004. 531 RAMOS, Elival da Silva. Eficácia de normas constitucionais, implementação de direitos fundamentais e ativismo judiciário. In: FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 260. 529 178 em único local, facilitando o acesso à população, bem como à tomada de decisões conjuntas; Tal plano prevê, ainda, a instituição de equipe de apoio técnico especializado (a ser integrada por psicólogos e assistentes sociais, engenheiros, médicos e arquitetos); além dessas medidas previu-se também a realização de auxílio recíproco entre os Magistrados, com a possibilidade de extensão do regime de plantão a um número maior de magistrados e servidores e a ampliação temporária do horário de atendimento dos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Tais ações encontram-se em consonância com os Princípios Orientadores sobre os Deslocados Internos, os quais estabelecem que as autoridades devem facilitar a emissão de novos documentos para substituir os extraviados no decurso da deslocação, sem imposição de condições despropositadas, tais como a exigência do regresso a área de residência habitual com vista a obter esses ou outros documentos necessários.532 Tendo em vista a grande quantidade de óbitos que podem advir da ocorrência de um desastre, aspectos relacionados a reconhecimento simplificado de corpos e lavratura de termos de entrega de menores533 aos genitores desprovidos de documentação e termos de guarda provisório a familiares (inclusive família extensa) também foram previstos na referida recomendação nº 40; por fim, a referida recomendação também previu ações voltadas para que o juiz possa, com celeridade, decidir sobre outras situações que envolvam menores em situação de risco, tais como, por exemplo, sua remoção compulsória de áreas de alto risco. Tratam-se, como se vê, de recomendações a serem observadas nas hipóteses de ocorrência de desastres, visando a proteção das vítimas de desastres naturais, permitindo-se a rápida atuação do poder judiciário com vistas à proteção dos atingidos e a resolução de questões jurídicas oriundas de tais desastres (tais, como enterro e reconhecimento das vítimas, emissão de segunda via de documentos, etc.) Registre-se, também, por oportuno, que tal recomendação parte do pressuposto de que há uma crescente instabilidade do clima global, sendo a mesma responsável pelo agravamento dos danos causados à população em decorrência de fenômenos naturais, o que exige uma atuação efetiva por parte do Poder Judiciário.534 Por outro lado, entretanto, registre-se que não pode o juiz fixar amplamente 532 Princípios Diretores para os Deslocados Internos. Princípio 20. Tal ato, contudo, exige a observância de outros elementos que comprovem o vínculo, de modo a evitar-se práticas ilegais, tais como adoções fraudulentas. 534 Neste aspecto, observe-se que, segundo a Recomendação CNJ nº 40/2012, o Poder Judiciário dos Estados tem competência para decidir sobre o destino de pessoas e bens afetados pelas catástrofes climáticas, especialmente crianças e adolescentes de famílias atingidas e corpos insepultos e controlar o funcionamento das atividades dos cartórios extrajudiciais. 533 179 políticas públicas ou discricionariamente escolher uma solução política para o caso, uma vez que se trata de uma atuação que deve observar limites.535 Do mesmo modo, a reserva do possível costuma ser utilizada como uma espécie de limitação à intervenção do Poder Judiciário.536 Observe-se, entretanto, que na hipótese dos Poderes Executivo e Legislativo não promoverem as condutas necessárias para o rearranjo financeiro do Estado, a fim de que seus objetivos fundamentais possam ser materialmente alcançados no tempo, caberá ao poder Judiciário intervir, mediante atividade tipicamente jurisdicional, nas respectivas políticas públicas.537 Tal possibilidade de intervenção do Poder Judiciário em sede de políticas públicas deve realizar-se de forma razoável e proporcional, buscando-se a garantia deste mínimo existencial.538 Assim, há de se estabelecer limites ao poder judiciário em apreciar determinada política pública, sob pena de ocorrer invasão indevida na esfera própria da atividade política de governo.539 Nesta linha, PINHEIRO destaca a importância de se examinar os bens jurídicos contemplados pelo orçamento público e a prestação requerida pelo Estado, de tal forma que deverá ser ponderado qual o bem jurídico mais essencial e que deverá ser escolhido como destinatário do orçamento.540 Assim, tem-se que o Poder Judiciário poderá vir a exercer o controle das políticas púbicas “para aferir sua compatibilização com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”.541 Observe-se, entretanto, que a atuação do poder judiciário, em relação aos direitos sociais prestacionais, deve ser subsidiária, ou seja: “só deve ocorrer quando ficar evidenciado que os poderes políticos falharam ou foram omissos”.542 Assim, conclui-se que os limites e as possibilidades do controle judicial em relação à atuação do Estado na proteção dos direitos fundamentais encontram-se relacionados a uma serie de fatores (que vão desde a própria estruturação do Poder Judiciário e de suas competências, até os instrumentos postos à disposição da cidadania para, pelo Poder 535 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 232. 536 GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 149. 537 CANELA JUNIOR, Osvaldo. O orçamento e a ‘reserva do possível’: dimensionamento no controle judicial de políticas públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 233. 538 GRINOVER, op. cit., p. 149. 539 BUCCI, op. cit., 2006, p. 23. 540 PINHEIRO, op. cit., p. 124. 541 GRINOVER, op. cit., p. 149. 542 PINHEIRO, op. cit., p. 185. 180 Judiciário, provocar a sua intervenção, passando por critérios jurídicos como o da proporcionalidade e o da reserva do possível).543 Como forma de justificar a limitação da atuação do Estado em determinadas áreas, surgiu a denominada teoria da “reserva do possível”. Tal expressão é utilizada largamente na doutrina para identificar o fenômeno da limitação de recursos frente à necessidade de aplicação dos mesmos para concreção dos direitos sociais.544 Importante observar que a reserva do possível, no Brasil, encontra-se ligada ao limite de ação do Estado em razão da escassez dos recursos públicos.545 Sobre o tema, DAVIES defende a incidência da chamada “reserva do possível” como instrumento de ponderação na efetivação de políticas públicas, limitando tais políticas e assegurando um “mínimo existencial" aos cidadãos, sendo, em última análise, um ponto de equilíbrio entre a possibilidade de controle judicial das políticas públicas e a discricionariedade administrativa. Assim, para a referida autora, a “reserva do possível” mostra-se como um ponto de equilíbrio entre a possibilidade de controle judicial das políticas públicas e a discricionariedade administrativa.546. No mesmo sentido, TORRES, ensina que, em razão da proteção desse direitos decorrer da necessidade de políticas públicas, é preciso levar-se em consideração a teoria da reserva do possível, de modo a verificar-se o que é razoável da sociedade esperar-se do Estado.547 Observe-se, entretanto, que tal proteção deve garantir um “mínimo existencial” ao cidadão, de modo a atribuir-se eficácia jurídica positiva ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, o qual deve ser protegido pelo Estado e, se necessário, pela via judicial.548 Neste aspecto, tem-se que o denominado “mínimo existencial” é fruto de construção hermenêutica, no intuito de salvaguardar direitos fundamentais sociais sem os quais mostra-se 543 Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/noticias-do-cjf/2013/setembro/deveres-de-protecao-do-estado-emmateria-de-direitos-fundamentais-e-tema-de-palestra>. “Direitos Fundamentais e Dever de Proteção do Estado: limites e responsabilidades do controle judicial.” Palestra por Ingo Sarlet, no seminário 25 Anos da Constituição Cidadã: olhar para o passado, reflexão sobre o presente e construção do futuro. O evento foi promovido pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF), no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ). 544 BARCELLOS, Ana Paula de. Educação, constituição, democracia e recursos públicos. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 12, 2003. p. 47. 545 OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais sociais frente à reserva do possível. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. p. 235. 546 DAVIES, Ana Carolina Izidório. Limites constitucionais do direito à saúde: reserva do possível X mínimo existencial. In: CONGRESSO NACIONAL DE PROCURADORES DO ESTADO EM PORTO DE GALINHAS, 39., 15 a 18 de out. 2013. 547 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e a reserva do possível. In: NUNES, Antonio José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Diálogos constitucionais: Brasil/ Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 447-52. 548 BARCELLOS, op. cit., 2002. p. 233. 181 impossível a existência digna do indivíduo.549 No que se refere a noção de mínimo existencial PINHEIRO entende que este corresponde à garantia de fornecimento estatal de prestações materiais mínimas aptas a assegurar aos indivíduos uma existência digna 550. No mesmo sentido é a opinião de BARCELLOS551, segundo a qual o mínimo existencial consistiria em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais o individuo se encontraria em situação de indignidade. E a mesma autora esclarece que tal mínimo existencial corresponderia ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna, de tal forma que “mínimo existencial” e “núcleo material do princípio da dignidade humana” descreveriam o mesmo fenômeno.552 Consoante ensina NAKAMURA, ressalvada a hipótese de ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, a cláusula da "reserva do possível" não pode ser invocada pelo Estado a fim de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, principalmente nas hipóteses em que essa omissão estatal possa resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.553 Assim, mesmo diante da incapacidade financeira do Estado, tal restrição estará sujeita ao critério da proporcionalidade, sem prejuízo da salvaguarda do conteúdo mínimo necessário de tal direito.554No mesmo sentido, OLSEN defende que a alegação da reserva do possível em defesa do ente estatal somente será possível quando houver, de fato, insuficiência financeira do Estado, respeitando-se as prioridades constitucionais existentes.555 Proteger tal direito, por meio de uma ação efetiva do Poder Público (quer por meio de políticas públicas, que por meio de atos judiciais) traduz-se em um desafio contínuo para todo o corpo social, de modo a minimizar as lesões aos bens jurídicos tutelados e permitindo a eficaz proteção dos direitos fundamentais do ser humano e a preservação desse núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, garantindo o denominado “mínimo existencial”. Assim, “extrair um núcleo de direitos subjetivos imprescindíveis à obtenção de uma vida 549 LAZARI, op. cit., p. 143. PINHEIRO, op. cit., p. 82. 551 BARCELLOS, op. cit., p. 305. 552 Ibidem, p. 230. 553 NAKAMURA, André Luiz dos Santos. Direitos sociais e aministração: a compatibilização da teoria da reserva do possível e a exigência de garantia do mínimo existencial para a efetividade dos direitos sociais. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 11, n. 119, jan. 2011. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/ PDIexibepdf.aspx? tipoConteudo=Normal&vw=S&pdiCntd=71283&id Publicacao=1>. Acesso em: 15 dez. 2013. 554 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Ed. Coimbra, 1991. p. 131. 555 OLSEN, op. cit., p. 365. 550 182 digna do imenso catálogo dos direitos sociais prestacionais constitui-se no propósito básico do estudo referente ao mínimo existencial”.556Aliás, a dignidade da pessoa humana constitui-se como um princípio jurídico supremo, (e em constante reconstrução), o qual corresponde a um núcleo absoluto e inviolável de direitos da pessoa humana, reconhecida como sujeito de direito.557 Neste aspecto rememore-se que o objetivo primordial da Constituição Federal de 1988 traduz-se na promoção do bem-estar do indivíduo, assegurando-lhe condições para manutenção de sua dignidade, o que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência, que constituem o núcleo dos direitos fundamentais.558 Com relação às políticas públicas protetivas, os Estados possuem considerável flexibilidade no que diz respeito às escolhas operacionais que devem fazer em termos de prioridades e recursos a serem aplicados. No entanto, nas hipóteses em que houver negligência das autoridades públicas no dever de adotar medidas preventivas em relação um perigo natural claramente identificável, bem como em utilizar meios eficazes para atenuar o risco de sua ocorrência, a responsabilidade há de ser reconhecida.559 Mesmo com todos os problemas decorrentes dos desastres e, considerando-se os limites fáticos ao atendimento da população atingida (e, em especial, a escassez de recursos orçamentários) tem-se que a garantia do “mínimo existencial” deve ser preservada em todas as hipóteses, devendo o Poder Público munir-se de todos os recursos que tenha à disposição para sua preservação. Ademais, dada a relevância desse “mínimo existencial” inserido no conceito de dignidade da pessoa humana, sua proteção não pode deixar de ser exercida, razão pela qual a participação popular deve ser vista como um instrumento de salvaguarda desse direito. Aliás, esse “mínimo existencial” pode ser entendido como um conteúdo mínimo de direitos prestacionais que devem ser assegurados pelo Estado, de modo a propiciar aos cidadãos as condições existenciais necessárias para uma vida digna. E a manutenção desse “mínimo existencial”, garantindo-se a proteção da dignidade da pessoa humana, traz para o direito a necessidade de buscar-se alternativas com vistas à efetivação (e concretização) do direito de proteção contra desastres. 556 PESSANHA, Érica. A eficácia dos direitos sociais prestacionais. Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano 7, n. 8, jun. p. 311, 2006. Disponível em: <(http://fdc.br/Arquivos/ Mestrado/ Revistas/Revista08/Discente/Erica.pdf)>. 557 LOPES, op. cit., 2003. p. 210. 558 NAKAMURA, op. cit. 559 KÄLIN, Walter; DALE, Claudine Haenni. Disaster risk mitigation: why human rights matter. Disponível em: <http://www.fmreview.org/FMRpdfs/FMR31/38-39.pdf. Acesso em 10.12.2013>. p. 39. 183 4. ALTERNATIVAS EM BUSCA DA EFETIVIDADE DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES Estabelecida a relação entre os direitos fundamentais e a proteção contra desastres, torna-se necessário rever o papel do Estado e da sociedade na proteção contra a ocorrência de um desastre “natural” hidrológico. Isso porque, considerando o direito de proteção contra desastres como um direito fundamental do ser humano, uma atuação mais efetiva e protetiva por parte do Poder Público e da sociedade torna-se imprescindível. Ampliar os instrumentos jurídicos que podem auxiliar nessa proteção, bem como propiciar maior efetividade e eficácia na proteção desse direito são tarefas exigidas pelo ordenamento jurídico dentro da teoria dos direitos fundamentais. Nessa perspectiva, faz-se necessário uma mudança de paradigma em relação aos papéis e responsabilidades assumidos pelos diversos atores envolvidos na proteção contra os desastres naturais hidrológicos e apresentação de alternativas viáveis com vistas ao atingimento desse objetivo. Assim, o papel do Município (enquanto ente responsável pela execução da política urbana) e os poderes administrativos a ele relacionados passam a ser tratados como alternativas viáveis para o enfrentamento dessa questão. Tal proteção envolve, ainda, o planejamento, as ações preventivas e a participação popular como alternativas voltadas para a proteção contra tais desastres. 4.1 ATORES: REVISITANDO SEUS PAPEIS E RESPONSABILIDADES NA PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES “NATURAIS” HIDROLÓGICOS A proteção dos direitos fundamentais implica na necessidade de atuação do Poder Público e da sociedade em defesa dos mesmos. Conforme asseverado nos capítulos anteriores, diversos são os atores atuantes na questão atinente aos desastres naturais hidrológicos, podendo-se citar o cidadão, o Poder Público, a sociedade civil organizada, entre outros. Assim, o ser humano constitui-se como importante ator em sede de mudanças climáticas e desastres, quer em razão da sua contribuição para a ocorrência de tais desastres, quer em razão das consequências que os desastres acarretam para o corpo social. Do mesmo modo, o Poder Público (por meio de seus diversos entes e órgãos) bem como a sociedade civil organizada, desempenham papel importante na proteção e defesa contra desastres. Aliás, observe-se que a 184 Lei de Mudança do Clima faz expressa menção ao estímulo e o apoio à participação do Poder Público, setor produtivo, meio acadêmico e da sociedade civil organizada no desenvolvimento e na execução de políticas, planos, programas e ações relacionados à mudança do clima.560 4.1.1 O Poder Público e sua atuação na proteção dos direitos fundamentais Segundo assevera LOPES Os direitos fundamentais a prestações objetivam a garantia, não apenas da liberdade perante o Estado, mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo depende de uma postura ativa dos poderes públicos no que tange à conquista e à manutenção de sua liberdade. Os direitos a prestações exigem do Estado uma conduta positiva no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material.561 Do exposto, tem-se que o Poder Público é o primeiro ente incumbido da proteção dos cidadãos contra desastres e efeitos da natureza. Do mesmo modo, é dever do Poder Público defender o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. A constitucionalização do direito ambiental permitiu que a proteção ao meio ambiente se realizasse de maneira mais efetiva dentro da teoria dos direitos fundamentais. Neste sentido, BATISTA acentua que o ambiente e a saúde também passaram a investir-se da natureza jurídica de direitos humanos e fundamentais.562 Tal constitucionalização demonstra a importância do meio ambiente para a manutenção da vida humana, de tal forma que a realização de um planejamento ambiental adequando, bem como a preocupação com o controle dos riscos ambientais advindos do desenvolvimento é fundamental para se garantir a proteção deste direito. E, neste sentido, a atuação estatal passa a desempenhar papel fundamental nesta proteção. Inúmeros são os problemas ambientais urbanos vivenciados nas cidades modernas. Como se sabe, a manutenção do abastecimento de água no meio urbano depende diretamente da forma de sua utilização e do potencial oriundo dos mananciais utilizados no seu abastecimento. Os mananciais são fontes disponíveis de água determinados pelas condições locais, com os quais a população pode ser abastecida. Do mesmo modo, o consumo de água e 560 Art. 5º, V, da lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009. LOPES, op. cit., 2013. 562 BATISTA, Roberto Carlos. Ambiente e saúde: direitos humanos e fundamentais interdependentes. In: THEODORO, Suzi Huff; BATISTA, Roberto Carlos; ZANETI, Izabel. Direito ambiental e desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 32. 561 185 a forma como sua utilização pelos diferentes setores da sociedade tem sido gerenciada pelo Poder Público repercutem diretamente na qualidade e no consumo. Assim, questões como a proteção dos mananciais, por meio da proteção ambiental de suas reservas, mata ciliar, etc., além de questões quanto ao reuso da água e a destinação dos esgotos, podem ampliar ou diminuir o tempo de vida útil dos mananciais de abastecimento. Igualmente, a falta de tratamento dos esgotos também acarreta problemas ambientais, tais como a poluição, a contaminação dos solos e da água, além dos resíduos sólidos decorrentes do lixo produzido nas cidades. Some-se, ainda, o tratamento dado às áreas verdes563 pelo Poder Público. As áreas verdes urbanas são de extrema importância para a qualidade de vida da população de um determinado Município. As áreas verdes de uso comum propiciam o lazer da população, além de contribuir para a permeabilização do solo em épocas de chuva, etc. No que tange à efetiva proteção contra desastres naturais hidrológicos, o Poder Público precisa se preocupar, também, com aspectos relacionados a outras ramos do conhecimento, como, por exemplo, a questão habitacional. A construção de loteamentos e casas em locais inadequados pode causar sérios riscos para toda a população, tais como o risco de deslizamentos de terra (quando há construções em locais proibidos ou sem cobertura vegetal adequada), etc. Do mesmo modo, os fundos de vale também são um problema que exige uma preocupação especial por parte do Poder Público. Neste sentido, MOTA esclarece que o crescimento desordenado das cidades acarreta inúmeros problemas, tais como a falta de condições sanitárias, poluição, o que acaba se refletindo na qualidade de vida urbana e na saúde das pessoas564. Deste modo, observa-se que os riscos ecológicos decorrentes de problemas ambientais urbanos enfrentados atualmente devem ser observados com atenção, face sua magnitude e o grau de incerteza que podem deles decorrer. Ademais, várias são as causas das enchentes, podendo-se citar a ausência de mata ciliar e de mata nos taludes e encostas da região, o assoreamento e os estrangulamentos dos cursos hídricos principais, os processos de desbarrancamento das margens dos rios e os processos erosivos agudos decorrentes da falta de 563 Segundo estabelece a Lei 12.651/2012 em seu artigo 3º, XX, as áreas verdes são “espaços, públicos ou privados, com predomínio de vegetação, preferencialmente nativa, natural ou recuperada, previstos no Plano Diretor, nas Leis de Zoneamento Urbano e Uso do Solo do Município, indisponíveis para construção de moradias, destinados aos propósitos de recreação, lazer, melhoria da qualidade ambiental urbana, proteção dos recursos hídricos, manutenção ou melhoria paisagística, proteção de bens e manifestações culturais”. 564 MOTA, Suetônio. Planejamento urbano e preservação ambiental. Fortaleza: UFC, 1981. p. 10. 186 vegetação nos morros, dentre outros.565 Neste aspecto, novamente, vê-se patente a importância da atuação estatal no combate a essas causas. Assim, a falta de planejamento (ou o planejamento deficitário em relação aos aspectos acima mencionados, dentre outros) acaba agravando o risco de desastres nas áreas urbanas. Contudo, de nada adianta criar-se mecanismos de proteção se não forem eles utilizados de maneira lógica e eficiente. A escolha acerca da melhor atitude a ser tomada a fim de evitar o surgimento de um problema ambiental exige conhecimento técnico, planejamento e análise acerca das consequências advindas daquela decisão. Do mesmo modo, caso tal problema já exista, é necessário que o administrador público procure alternativas viáveis para eliminá-lo ou amenizá-lo, cumprindo sua função constitucional de proteção aos interesses da coletividade. Nunca é demais lembrar que o administrador público é um mero gestor dos interesses da coletividade, razão pela qual deve ele se submeter aos princípios fixados na Constituição Federal. Desse modo, é necessário que o Poder Executivo (enquanto responsável pelos atos de chefia, governo e administração do Estado), promova a adequada elaboração de políticas públicas, traçando estratégias de atuação na busca da efetividade dos direitos, à saúde, à moradia, à segurança, etc., garantindo-se, assim, a efetividade dos direitos sociais dentro de um Estado Democrático e de Direito.566 Ao Poder Público (e, especificamente, ao Município) cabe a função de executar a política de desenvolvimento urbano, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Com relação às políticas públicas, tem-se que estas devem ser implementadas e estimuladas pelo Poder Público, na medida em que se constituem como ferramentas postas à disposição do ente público para a realização de obras e projetos que possam contribuir para a proteção contra a ocorrência de desastres, bem como minimizar os efeitos de eventual desastre, protegendo o direito dos cidadãos. Aliás, é importante frisar que o direito a ações positivas do Estado acaba impondo ao Estado a persecução de determinados objetivos os 565 Neste sentido, veja-se: OLIVEIRA, Sonia Regina Leão de; COHEN, Simone Cynamon. Habitação saudável: uma perspectiva de minimização dos riscos ambientais. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE FESA CIVIL - DEFENCIL, 5., São Paulo, 18, 19 e 20 de novembro de 2009. Disponível em: <http://www.defesacivil.uff.br/defencil_5/Artigo_Anais_Eletronicos_Defencil_18.pdf>. Acesso em: 07 nov. 2013. 566 GONÇALVES, op. cit. 187 quais, encontram-se, em certa medida, vinculados a direitos constitucionais subjetivos dos cidadãos.567 Neste aspecto, destaque-se que a lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, a qual dispõe sobre a proteção da vegetação nativa e dá outras providências, preocupou-se em incentivar a regularização fundiária de interesse social dos assentamentos inseridos em área urbana. Assim, nestas hipóteses, a regularização ambiental será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, a qual dispõe sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas e dá outras providências. Tal projeto deverá incluir estudo técnico que demonstre a melhoria das condições ambientais em relação à situação anterior com a adoção das medidas nele preconizadas. Neste aspecto, o referido estudo técnico deverá incluir os seguintes elementos: caracterização físico-ambiental, social, cultural e econômica da área; identificação dos recursos ambientais, dos passivos e fragilidades ambientais e das restrições e potencialidades da área; especificação e a avaliação dos sistemas de infraestrutura urbana e de saneamento básico implantados, outros serviços e equipamentos públicos; a identificação das unidades de conservação e das áreas de proteção de mananciais na área de influência direta da ocupação, sejam elas águas superficiais ou subterrâneas; a especificação da ocupação consolidada existente na área; a identificação das áreas consideradas de risco de inundações e de movimentos de massa rochosa, tais como deslizamento, queda e rolamento de blocos, corrida de lama e outras definidas como de risco geotécnico; a indicação das faixas ou áreas em que devem ser resguardadas as características típicas da Área de Preservação Permanente com a devida proposta de recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de regularização; a avaliação dos riscos ambientais; comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade urbano-ambiental e de habitabilidade dos moradores a partir da regularização; e demonstração de garantia de acesso livre e gratuito pela população às praias e aos corpos d’água, quando couber.568 Porém, não raras vezes, o Poder Público acaba sendo omisso em sua missão de fiscalizar a atuação dos indivíduos, impedindo a construção em áreas de risco, bem como controlando o uso e ocupação do solo, além da instalação de empresas poluidoras, etc. tem 567 568 ALEXY, op. cit., 2012. p. 444. Neste sentido, veja-se art. 65 da lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. 188 sido uma das principais críticas feitas em relação à proteção do meio ambiente e a prevenção a desastres.569 É certo que o Estado detém uma quantidade grande de tarefas em relação a temas ligados ao meio ambiente, proteção da vida, etc. Contudo, não se pode permitir que a quantidade de tarefas e atribuições acabem fazendo com que o Estado deixe de realizar a função de fiscalizar e monitorar eventos suscetíveis de causar desastres futuros. Por fim, também não se pode deixar de mencionar que, em diversas oportunidades, o Poder Público é o ator responsável pela ocorrência de desastres em razão de sua atuação direta. É o que ocorre quando o Poder Público concede autorização para construir em áreas de risco ou quando o Poder Público desempenha atividade econômica ou de outra natureza sem se preocupar com os riscos causados aos indivíduos de determinada localidade. 4.1.2 O ser humano e a proteção contra desastres A proteção dos direitos fundamentais é uma incumbência não só do Estado, mas, também, de toda a sociedade. Assim, o cidadão possui papel primordial na proteção do meio ambiente e na adoção de medidas que impeçam ou minimizem a ocorrência de desastres. Aliás, torna-se oportuno relembrar o dever imposto ao Poder Público e à coletividade no sentido de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. No mesmo sentido foi a orientação seguida pela Declaração do Rio de Janeiro570, a qual procurou assegurar a participação de todos os cidadãos interessados nas questões ambientais. Assim, a participação da sociedade na proteção ambiental foi expressamente prevista na atual Constituição Federal, a qual estabeleceu que o dever de defender e preservar o meio ambiente compete tanto ao Poder Público quanto à coletividade. Do mesmo modo, tal dever encontra-se previsto em diversos diplomas normativos. Assim, foi-se o tempo em que a satisfação das necessidades básicas da população era atribuição exclusiva do Estado. Hoje, tem-se a consciência que não é mais possível deixar essa responsabilidade única e 569 Em artigo publicado na revisa “desafio”, do IPEA, traz-se informação no sentido de que o aumento dos desastres hidrológicos (com destaque para os deslizamentos) é consequência da ocupação desordenada do solo existente nas cidades brasileiras. Segundo MARICATO, no Rio de Janeiro, 50% dos imóveis são irregulares, situação que se agrava nas regiões Norte e Nordeste, havendo uma falta de controle institucionalizada no país. Para maiores detalhes, cf. EUZÉBIO, Gilson Luiz. Cidades – uma tragédia anunciada. In: desafio do desenvolvimento. Disponível em: http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view = article&id= 1209:reportagens-materias&Itemid=39. Acesso em 10 de nov. De 2013 570 Princípio 10 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. 189 exclusivamente a cargo do ente público, havendo a necessidade da participação da sociedade na busca pela efetivação de seus direitos. Neste aspecto, a primeira vertente a ser analisada refere-se à responsabilidade do ser humano enquanto causador ou colaborador para a eclosão de um desastre “natural” hidrológico. Sobre o tema, LEUZINGER observa que a maioria das sociedades não possuía uma cultura de preservação dos recursos ambientais, sendo certo que, com o desenvolvimento econômico empreendido a partir do início da era industrial, as agressões ao meio ambiente passaram a ser ainda mais intensas.571 Desse modo, tornou-se urgente o estabelecimento de limites à atuação humana, uma vez que o desenvolvimento sustentável parte da máxima de que a natureza tem limites, de tal forma que o progresso humano não pode extrapolar tais limites nem desenvolver-se de forma desordenada, com flagrante agressão aos recursos naturais572. Assim, para diminuir tais agressões e permitir a adequada proteção ao meio ambiente, as condutas lesivas ao meio ambiente passaram a ser regulamentadas (e sancionadas) pelo Poder Público. Logo, ações no sentido de regulamentar (e/ou coibir) desmatamentos e outras lesões ao bem jurídico ambiental foram implementadas pelo Poder Público.573 Registre-se, ainda, que a responsabilização ambiental pode ocorrer em três esferas distintas: civil, penal e administrativa. Neste sentido, preceitua o § 3º do art. 225 da CF: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Com base no acima estatuído foi criada a lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, a qual dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Tal lei previu a possibilidade de responsabilização administrativa, civil e penal das pessoas jurídicas, bem como a desconsideração da pessoa jurídica nas hipóteses em que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. Do mesmo modo, a lei estabeleceu que a responsabilidade das 571 LEUZINGER, op. cit., 1999. p. 29. ROCHA, op. cit., 2004. p.276. 573 Dentre tais ações cite-se a criminalização de condutas lesivas ao meio ambiente, a exigência de estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente 572 190 pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato. Desse modo, pessoas físicas ou jurídicas podem, em tese, ser responsabilizadas por suas ações ou omissões, segundo diretrizes estabelecidas em nosso ordenamento jurídico. 4.1.3 Os demais atores: protagonistas ou coadjuvantes? Além do Poder Público e do cidadão, outros atores podem desempenhar papel importante em prol de uma maior efetividade do direito de proteção contra desastres. Assim, tem-se que o Ministério Público, enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado e incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis,574 também desempenha papel importante na proteção contra desastres “naturais” hidrológicos. Deste modo, e tendo em vista que o direito de proteção contra desastres constitui-se como um direito fundamental do indivíduo diretamente relacionado a uma serie de interesses sociais e individuais indisponíveis, tais como o direito à vida, à saúde e à integridade física, entre outros, a atuação do Ministério Público na proteção contra a ocorrência de desastres encontra-se amparada constitucionalmente. Ademais, observe-se que, por serem considerados direitos fundamentais, tais direitos podem ser incluídos dentro do rol dos interesses individuais indisponíveis. Neste aspecto, torna-se oportuno destacar que a democracia autêntica deve contemplar, também, o respeito às minorias e aos direitos fundamentais dos cidadãos, sob pena de perder sua característica principal.575 Observe-se, ainda, que o direito de proteção contra desastres também guarda relação com o direito à moradia, o qual se consubstancia como um direito social de cunho prestacional. Assim, deve o Estado respeitar (e defender) os direitos de todos os cidadãos que o compõem. Do exposto, observa-se que o Ministério Público também possui legitimidade para atuar em defesa de pessoas vítimas ou ameaçadas pela possibilidade de ocorrência de um desastre futuro.576 Assim, para propiciar o adequado desempenho de seu mister, foi atribuída 574 Art. 127 da CF PEREIRA, op. cit., p. 29. 576 Neste aspecto, registre-se que o encaminhamento pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) no ano 2011, de documento ao Ministério da Integração Nacional e à Secretária Nacional de Defesa Civil encomendando a efetiva implementação da Política de Prevenção aos Desastres no âmbito dos entes 575 191 ao Ministério Público uma série de funções, sendo certo que, para os fins objetivados neste trabalho, merecem destaque as de: zelar pelo respeito aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Observe-se, ainda, que, para o desempenho de suas funções, o Ministério Público procura, não raras vezes, especializar suas áreas de atuação de modo a otimizar sua atuação em defesa dos interesses por ele tutelados. Assim, no que tange à defesa dos interesses sociais relevantes, tem-se, comumente, Promotorias de Justiça voltadas à defesa da cidadania, na qual se busca não só a efetivação dos direitos fundamentais sociais, cobrando-se dos entes públicos a execução de políticas que assegurem os direitos sociais constitucionalmente previstos, como também a proteção ao patrimônio público, através de uma repressão mais efetiva dos atos de improbidade administrativa. Do mesmo modo, na área ambiental, o Ministério Público tem atuado no sentido de contribuir para o adequado ordenamento do território urbano, verificando o cumprimento das normas urbanísticas, com destaque para as ocupações de áreas de risco e parcelamento ilegal do solo. Também merece menção, em sede de desastres naturais hidrológicos, a chamada sociedade civil organizada. A sociedade civil organizada (abrangendo o terceiro setor, associações, ONG’s, etc.) também pode atuar de modo a contribuir para a minimização dos danos decorrentes de tais desastres, bem como cobrar a adoção, pelo Poder Público, de medidas preventivas e de socorro às vítimas. Assim, a atuação do indivíduo por meio de grupos organizados pode contribuir para a diminuição do número de desastres ou, pelo menos, do número de vítimas de desastres. Do mesmo modo, não se pode deixar de mencionar o papel da mídia enquanto transmissora de informações e instrumento de pressão em relação ao Poder Público, eis que a divulgação dos problemas envolvidos por determinada comunidade podem contribuir para que a adoção de medidas preventivas, de socorro e recuperativas ocorra de modo rápido e eficiente. A mídia possui papel importante, na medida em que, ao divulgar informações sobre o risco de desastres ou sua ocorrência, dá publicidade à situação vivenciada pela comunidade, federados, bem como o fornecimento de dados para elaboração da política nacional de prevenção aos desastres, assim como a constituição de iguais planos nos âmbitos estadual e municipal. Tal documento recomentou, ainda, a elaboração, pela Secretaria Nacional de Defesa Civil, de manual com as ações preventivas e de socorro a serem implementadas pelas unidades de cada ente federativo, bem como informações sobre as ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas já adotadas, visto a proximidade do período de chuvas em diversas regiões do País. Cf. http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2011/janeiro/ desastres-com-a-chuva-pfdcencaminha-recomendacao-a-autoridades-de-defesa-civil/. Acesso em 7 jan. 2012 192 alertando a população, o Poder Público e a sociedade de um modo geral. Logo, a atuação da mídia na cobertura do evento, impede que os danos decorrentes de determinado desastre fiquem esquecidos, traduzindo-se como importante instrumento de pressão com vistas à adoção de medidas recuperativas. 4.1.4 Responsabilidades Questão das mais importantes refere-se à responsabilidade pelos danos decorrentes dos desastres. Tal afirmação decorre, dentre outras razões, da multiplicidade de fatores que contribuem para a eclosão de um desastre, o que dificulta a caracterização das causas de um desastre hidrológico e, consequentemente, da imputação de responsabilidades.577 Em uma sociedade de risco, a prevenção e o manejo de catástrofes podem acabar promovendo uma reorganização do poder e da responsabilidade.578 O denominado “direito de proteção contra desastres” encontra-se amparado em diversos diplomas normativos esparsos, além de encontrar fundamento constitucional na proteção do direito à vida, à dignidade humana, ao meio ambiente, entre outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados. Neste aspecto, a responsabilidade pode incidir sobre o Poder Público ou sobre o próprio particular. No tocante à responsabilidade civil do Estado tem-se que esta evoluiu muito ao longo dos séculos. Assim, se inicialmente defendia-se a total irresponsabilidade do Estado, com base no absolutismo monárquico, sob o fundamento de que “The King can do no wrong” tem-se que, hoje, o Estado responde “por suas ações e omissões, quando infringirem a ordem jurídica e lesarem terceiros.”579 A primeira teoria permitindo a responsabilidade do Estado foi a teoria subjetiva.580 Segundo tal teoria, a obrigação de ressarcir incumbe àquele que por ato culposo ou doloso cause um dano a outrem ou em deixe de impedir sua ocorrência quando a isso estivesse obrigado. Assim, o dever de indenizar, surge sempre que estiverem presentes os seguintes 577 GOMES, op. cit., p. 18. BECK, op. cit., 2010. p. 28. 579 JUSTEN FILHO, Marçal . Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 791. 580 Para Rui Stoco tem-se que a responsabilidade subjetiva consiste na obrigação do Estado de indenizar alguém que tenha sofrido um dano em razão de um procedimento contrário ao Direito, de natureza culposa ou dolosa, ou em razão de uma omissão estatal quando deveria ter agido para impedi-lo. STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 996-7. 578 193 elementos: dano, conduta lesiva e nexo de causalidade entre eles. Em se tratando de responsabilidade subjetiva, faz-se indispensável, também, a comprovação da culpa do agente. Em um momento posterior a responsabilidade do Estado evoluiu para o que se convencionou chamar de teoria da culpa administrativa “faute du service”, de inspiração francesa. Segundo esta teoria, haverá a denominada culpa do serviço ou falta do serviço quando este não funciona, devendo funcionar, funcional mal ou funciona atrasado. Por fim, há que se mencionar, em sede de responsabilidade civil, a teoria da responsabilidade objetiva com base no risco, a qual se subdivide em duas: A primeira é a teoria da responsabilidade objetiva com base no risco administrativo. Para essa teoria a responsabilidade exige a presença dos seguintes requisitos: ocorrência do dano, ação ou omissão administrativa, existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Já a segunda denomina-se teoria da responsabilidade objetiva com base no risco integral e difere-se da primeira em razão de não admitir a existência de causas excludentes da responsabilidade estatal. Registre-se, todavia, que, tratando-se de riscos conhecidos e mensuráveis há quem defenda que, quando esse risco se concretiza, a responsabilidade da administração não vai ceder à invocação de força maior, uma vez que um dos principais critérios para invocar tal eximente de responsabilidade é justamente a imprevisibilidade do evento. 581 O Brasil adota, desde 1946, a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, com base no risco administrativo, de tal forma que a responsabilidade do Estado pode ser afastada por meio de causas excludentes, tais como a força maior, o caso fortuito, ou a culpa exclusiva da vítima. Atualmente, a responsabilidade objetiva encontra-se prevista no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, de tal forma que o Estado responde pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, sem necessidade de comprovação da culpa dos agentes públicos. Assim, tem-se que a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público – em relação às condutas comissivas – deve ser vista sob a ótica da teoria da responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo. Deste modo, para o reconhecimento de tal responsabilidade há de se observar a presença dos seguintes requisitos: 581 LAVIEILLE, op. cit., p. 271. 194 a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa.582 Do mesmo modo, entende-se que, em sede de direito de proteção contra desastres, tem-se que, com relação às condutas comissivas, foi adotada a teoria da responsabilidade objetiva, com base na teoria do risco administrativo. Assim, o Estado responde objetivamente pelos danos decorrentes da atuação de seus agentes, mas pode apresentar justificativas que venham a romper o nexo causal e, consequentemente, ilidir a responsabilidade do Poder Público. No que tange aos atos omissivos há discussão na doutrina e jurisprudência. Para uns, haveria, neste caso, a mesma regra, de tal forma que o Estado responderia independentemente da existência de culpa por parte de seus agentes. Para outros, caso o prejuízo surja de conduta omissiva nos casos em que há o dever legal de agir, adotar-se-ia a teoria da responsabilidade subjetiva do Estado, sendo necessário, portanto, a comprovação de culpa para que surja a obrigação de indenizar. Com relação à responsabilidade estatal na hipótese de danos decorrentes de condutas omissivas defende-se nesta tese que a mesma deve ser analisada sob a ótica da responsabilidade subjetiva. Aliás, conforme já mencionado, a teoria da faute Du service (também denominada de teoria da culpa anônima) atribui a responsabilidade ao ente estatal em razão de uma omissão por parte deste, sem que haja a necessidade de se comprovar uma atuação específica por parte do agente público. Fala-se, deste modo, em uma culpa anônima, uma vez que não é necessária a identificação de uma culpa individual para que surja a responsabilidade do Estado. Assim, somente ficando comprovado que a ação negligente do Poder Público, permitindo a construção de moradias em áreas de risco, bem como permitindo a instalação de empresas altamente poluentes e que possam causar alterações significativas no clima de determinada região, será possível discutir-se acerca de eventual responsabilidade do Estado por desastres decorrentes de condutas omissivas. 582 Sobre a responsabilidade civil do Estado, veja-se: CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O problema da responsabilidade do estado por actos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974. CRETELLA JÚNIOR, José. O estado e a obrigação de indenizar. São Paulo: Saraiva, 1980. TRUJILLO, Elcio. Responsabilidade do estado por ato lícito. Leme: LED, 1996. STERMAN. Sônia. Responsabilidade do Estado: movimento multitudinário: saques, depredações, fatos de guerra, revoluções, atos terroristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. 195 Muito embora incumba ao Estado a proteção do meio ambiente e dos demais bens jurídicos tutelados, tal tarefa não é exclusiva do ente público. O cidadão que venha a causar ou contribuir para a ocorrência de um determinado desastre também pode ser responsabilizado civil, penal ou administrativamente sempre que infringir algum preceito normativo. Quando o indivíduo descumpre os deveres inerentes à vida em sociedade, desrespeitando as orientações do Poder Público e seus órgãos, acaba contribuindo para a ocorrência de desastres. Assim, por exemplo, quando o indivíduo edifica sua residência em área de risco, quando não obedece aos diplomas normativos referentes à construção civil e urbanismo, quando joga lixo em locais proibidos, etc. dá ele causa para a ocorrência de desastres. A principal diferença entre a responsabilidade do ente público e a responsabilidade do cidadão é que a responsabilidade deste é subjetiva, ou seja deve haver prova da conduta do agente, do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado (desastre), além da necessidade de que esta conduta seja dolosa ou culposa. Logo, para que o indivíduo possa ser responsabilizado é necessário que haja prova da sua imprudência, negligência ou imperícia (no caso de condutas culposas) ou de ter agido dolosamente para a ocorrência do resultado danoso. Assim, havendo culpa exclusiva da vítima, a responsabilidade do Estado acaba sendo excluída e, havendo concorrência de culpas por parte do Poder Público e do particular haverá a possibilidade de responsabilização civil, proporcionalmente à conduta praticada. Isso porque não é admissível, no atual sistema em que vivemos, responsabilizar-se o Estado nas hipóteses em que o indivíduo não agiu da forma que era esperado, ou quando o indivíduo desrespeitou alguma regra ou determinação estatal. Isso porque a proteção ao meio ambiente é dever de todos (Estado e sociedade), de tal forma que, tendo o particular desrespeitado as regras que lhe foram impostas, contribuindo para a eclosão de determinado desastre não é lícito atribuirse ao Estado responsabilidade que não lhe compete. 4.1.5. União de esforços e divisão/Compartilhamento de responsabilidades Dadas as características e consequências dos desastres “naturais” hidrológicos não é possível deixar a responsabilidade de sua contenção a cargo de um único ator. Assim, não basta a ação estatal para que o problema dos desastres deixe de existir ou seja minimizado. É fundamental a participação da população nesse processo, colaborando com o Poder Público e reivindicando medidas que possam contribuir para a diminuição dos desastres. 196 Assim, a participação de todos os atores envolvidos no processo de desenvolvimento constitui-se como estratégia eficaz para a solução dos problemas de determinada localidade.583 Neste sentido, observe-se que a lei 12.608/2012 (a qual estabeleceu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil) procurou valorizar as união dos diversos atores na proteção contra desastres. Assim, a referida lei estabeleceu que as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre poderão ser adotadas com a colaboração de entidades públicas ou privadas e da sociedade em geral.584 Tal pensamento foi previsto como uma diretriz a ser seguida pela Lei de Política Nacional sobre Mudança do Clima, a qual fez expressa menção ao estímulo e ao apoio à participação dos governos federal, estadual, distrital e municipal; do setor produtivo; do meio acadêmico e da sociedade civil organizada, no desenvolvimento e na execução de políticas, planos, programas e ações relacionados à mudança do clima.585 Assim, a união do Poder Público e da coletividade na adoção de medidas preventivas, que possam minimizar os efeitos de sua ocorrência, bem como a busca de soluções eficazes em relação aos desastres relacionados à água é medida essencial para que se possa, de fato, avançar na proteção contra desastres dessa natureza. Neste aspecto, registre-se que os danos decorrentes de desastres quase sempre são causados ou pelo menos agravados pela incapacidade da sociedade em regular riscos com antecedência. Desse modo, surge, patente, a importância do planejamento e da busca de soluções conjuntas. A construção da cidade, a escolha do lugar e das áreas regiões nas quais deverão (ou não) ser construídos determinados tipos de obras, empresas, etc. trazem consequências relevantes para todo o corpo social e, para se ter uma exata noção destas consequências (e se são viáveis sob o ponto de vista ambiental) planejar é fundamental. A inclusão do princípio da participação comunitária em nosso ordenamento jurídico vem reforçar o mandamento constitucional segundo o qual impõe-se a todos a defesa e preservação do meio ambiente, ou seja: na busca de soluções para os problemas ambientais deve-se estimular a cooperação entre o Estado e a sociedade, por meio da participação dos diversos grupos sociais existentes, na busca de soluções para os problemas ambientais. Neste aspecto, a participação popular trouxe bons frutos, por exemplo, em Portugal, no qual 583 SACHS, op. cit., p. 61. Art. 2o da lei 12.608, de 10 de abril de 2012. 585 Art. 5º, V, da lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009. 584 197 arquitetos, engenheiros, juristas e estudantes e, principalmente, moradores de bairros urbanos pobres e degradados, uniram-se em torno de novos direitos e melhores condições de vida, reivindicando habitações decentes, o que foi chamado de “direito ao lugar”. 586 Tal movimento decorreu da mobilização e organização popular (cujas reivindicações surgiram no século XIX), encontrando terreno fértil para seu desenvolvimento na Constituição de 1974.587 Ademais, dentro de um Estado Democrático e de Direito, o individuo passa a ser visto como sujeito de direito, sendo concebido em face de suas especificidades e peculiaridades, dando-lhe concretude. Assim, passa-se a se falar na tutela jurídica de direitos pertencentes a grupos minoritários, tais como os hipossuficientes.588 É necessário utilizar-se a prevenção, a capacitação dos agentes e o fortalecimento da Defesa Civil como ferramentas na proteção contra desastres, pois, se não é possível evitar sua ocorrência, é preciso, pelo menos, tentar reduzir os seus efeitos e danos (materiais e humanos) deles decorrentes. Assim, a capacitação dos agentes públicos e a participação da comunidade constituem-se como diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Proteção Contra Desastres.589 A diminuição dos desastres só será possível com a união do Poder Público e da sociedade, por meio da educação ambiental e com a aplicação de recursos em obras que possam proteger a população e prepará-la para agir em momentos de crise. Do mesmo modo, a capacitação dos cidadãos, preparando-os para agir em momentos de desastres, de modo a minimizar os danos decorrentes, é medida essencial para que se logre sucesso nessa empreitada. Observe-se que, se a intervenção do indivíduo na natureza não for freada ou controlada, os recursos ambientais não serão suficientes para garantir a manutenção da vida humana. Trata-se, como se vê, de uma relação complexa na qual indivíduo e natureza precisam conviver diariamente. E, em determinados momentos, tal relação torna-se desarmoniosa e desastres ambientais acabam acontecendo. Tais desastres podem ter diversas 586 NUNES, João Arriscado; SERRA, Nuno. Casas decentes para o povo: movimentos urbanos e emancipação em Portugal. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 264 587 NUNES, João Arriscado; SERRA, Nuno. Casas decentes para o povo: movimentos urbanos e emancipação em Portugal. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 267-268 588 PIOVESAN, op. cit., p. 214-5. 589 SEGUN, op. cit., 2012. p. 72. 198 causas, tais como abalos sísmicos, tsunamis, ciclones, inundações, acidentes nucleares, etc. Logo, tem-se que, ao mesmo tempo em que a intervenção na natureza é necessária para melhorar a qualidade de vida dos seres humanos, sua proteção também é fundamental para que os recursos ambientais continuem disponíveis para as gerações futuras. E, por esta razão, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que incumbe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Assim, o compartilhamento de tais responsabilidades é medida crucial para a efetiva proteção desse direito. Tal preocupação encontra-se expressa, entre outros documentos, no Marco de Ação de Hyogo, o qual constitui-se como um importante instrumento para a implementação da redução de risco de desastres, adotado por países membros nas Nações Unidas. O objetivo é aumentar a resiliência das nações e comunidades diante de desastres, visando para 2015 a redução considerável das perdas ocasionadas por desastres, de vidas humanas, bens sociais, econômicos e ambientais. O Marco de Ação de Hyogo é composto de cinco ações principais: A primeira delas visa garantir que a redução de riscos de desastres seja uma prioridade nacional e local com uma sólida base institucional para a sua implementação. Assim, governos locais, regionais e nacionais devem unir-se na busca da criação de uma cultura de proteção contra desastres, reduzindo os riscos de sua ocorrência. A segundaa ação, de caráter nitidamente preventivo, refere-se à identificação, avaliação e observância de perto dos riscos de desastres e a melhoria dos alertas. Tal ação permite que as comunidades estejam alertas para a ocorrência de desastres e estejam preparadas para agir na hipótese de surgimento de riscos de desastres. Outra ação mencionada no Marco de Hyogo e, também diretamente relacionada à criação de uma cultura de proteção contra desastres, refere-se à utilização do conhecimento, da inovação e da educação para criar e fortalecer uma cultura de segurança e resiliência em todos os níveis. Assim, deve-se estimular o envolvimento da população nas ações de comunicação relacionadas aos risco de desastres, partilhando-se as experiências e criando-se uma cultura de resiliência.590 A quarta ação refere-se à redução dos fatores fundamentais de risco, de modo a evitar a ocorrência de desastres. 590 GOMES, op. cit., p. 56-7. 199 Por fim, devem ser implementadas ações voltadas ao fortalecimento das comunidades no sentido de estarem preparadas para adotarem uma resposta eficaz em todos os níveis, na hipótese de risco de desastres. Tais ações devem estimular a participação popular e a busca de soluções conjuntas para os problemas e riscos decorrentes de desastres hidrológicos, contribuindo para a gestão democrática desses riscos. Neste aspecto, ganha destaque o papel do Município no fomento e implementação de tais ações. 4.2 DA NECESSÁRIA TRANSVERSALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DA MUDANÇA DE PARADIGMA: GOVERNANÇA LOCAL E O PAPEL DO MUNICÍPIO A implementação e execução das políticas públicas exigem uma atuação eficaz da Administração Pública, por meio de seus diversos órgãos, constituindo-se como importantes instrumentos para a concretização dos Direitos fundamentais.591 Assim, com vistas à efetividade da proteção do cidadão contra a ocorrência de desastres por meio de uma postura preventiva (e, tendo em vista as disposições constitucionais sobre o tema), faz-se necessário envolver o Município de forma mais atuante na execução de tais políticas. Como se pode observar, apesar das disposições constitucionais acerca da repartição de competências entre os entes públicos (com ênfase na proteção contra desastres naturais hidrológicos) observa-se a falta de uma atuação voltada para a prevenção dos desastres. Tal prevenção é fundamental, por ser a forma mais eficaz de se garantir a manutenção da dignidade da pessoa humana e a proteção dos direitos fundamentais do indivíduo, tais como o direito à moradia, o direito à saúde, etc. Quando a atuação do Poder Público ocorre por meio de medidas recuperativas o que se objetiva é, em última análise, recuperar uma situação anterior, ou seja: procura-se devolver ao indivíduo a cidadania e a dignidade existentes até antes da eclosão do desastre. Em que pese a importância da atuação no momento do desastre e após sua ocorrência, tais ações ocorrem em momento posterior ao da violação dos direitos fundamentais dos moradores de determinada região. Neste aspecto, tem-se que o direito de proteção contra desastres (enquanto direito fundamental do indivíduo) exige que a atuação do Poder Público e da sociedade ocorram antes de sua violação. Neste sentido, rememore-se que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a primazia dos direitos fundamentais enquanto um conjunto de direitos cujo adimplemento independe da 591 SMANIO, op. cit., 2013. p. 12. 200 vontade política, devendo ser garantidos a todos os indivíduos, sem distinção de qualquer natureza.592 Assim, para que se avance na proteção contra desastres, dentro de um contexto de direitos humanos e direitos fundamentais, é necessário que Poder Público e sociedade comecem a priorizar a adoção de medidas preventivas, evitando a ocorrência de desastres dessa natureza. Do mesmo modo, o direito de proteção contra desastres precisa de um melhor tratamento normativo, ampliando os poderes da Administração Pública Municipal, estabelecendo direitos e deveres em relação a todos os envolvidos na questão atinente aos desastres. Isso porque, conforme já mencionado, o Município é o ente que detém a competência para executar as principais políticas públicas relacionadas aos desastres “naturais” hidrológicos, cabendo a ele a função de executar a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil âmbito local. No que tange ao planejamento municipal, tem-se que este deve incluir em seu texto ações de proteção e Defesa Civil. Assim, incumbe ao Município identificar e mapear as áreas de risco de desastres, promover a fiscalização das áreas de risco de desastre e vedar novas ocupações nessas áreas, etc. Igualmente, as políticas públicas relacionadas ao tema “proteção contra desastres” devem ser executadas pelos Municípios – uma vez que são eles os entes públicos que se encontram mais próximos da realidade local – devendo, para tanto, contar com o apoio dos demais entes públicos (Estados e União), bem como dos demais atores envolvidos (sociedade civil organizada, etc.). Neste aspecto, a avaliação histórica do risco também é uma medida salutar na proteção contra desastres, tendo em vista sua contribuição na tomada de decisões em relação às possibilidades de enfrentamento dos riscos relacionados à ocorrência de desastres.593 Lamentavelmente, observa-se a falta de cultura em prevenção de desastres por parte dos Municípios, podendo a mesma ser constatada em razão da não estruturação de órgãos de Defesa Civil por parte grande da maioria dos Municípios brasileiros, bem como pela inexistência (ou não aplicação) de leis de uso e ocupação do solo e sua não prepação para 592 FONTE, Felipe de Melo. A intervenção judicial no âmbito das políticas públicas orientadas à concretização dos direitos fundamentais. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Reio de Janeiro. Faculdade de Direito, 2009. p. 23. 593 Neste sentido, veja-se: OLIVEIRA, op. cit., 2013. 201 atuação em situações de emergência, não havendo preocupação em mapeamento de áreas de risco nem a conscientização da população acerca dos perigos relacionados aos desastres.594 Ainda com relação à política de desenvolvimento urbano, nossa Constituição demonstrou sua preocupação com a função social da propriedade urbana. Segundo o art. 182, § 2º “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Segundo estabelece o Estatuto da Cidade, o plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, devendo englobar o território do Município como um todo. O Plano Diretor tem por missão estimular o discurso entre cidadãos e Poder Público, atuando como um mecanismo de interlocução entre ambos. Assim, por meio dele devem as partes deliberar sobre emergências locais, problemas sociais e políticas de crescimento e expansão.595 Logo, o Município é, de fato e de direito, o locus no qual as ações de prevenção e recuperação devem ser implementadas. Deste modo, a presença de uma governança local bem preparada e estruturada de modo a dar suporte às vítimas de determinados desastres é crucial para a mudança de paradigma e redução nos danos humanos e materiais decorrentes dos desastres “naturais” hidrológicos. Aliás, nas últimas décadas, tem-se observado uma maior descentralização da ação governamental e o fortalecimento dos Municípios, passando os mesmos a serem responsáveis por uma serie de serviços.596 Discorrendo acerca do papel do Município na gestão das cidades e elaboração de políticas pública, OSÓRIO assevera: O Estatuto da Cidade constitui-se em um importante suporte jurídico para a ação dos governos municipais que buscam alternativas para a solução dos graves problemas urbanos, sociais e ambientais que atingem enormes parcelas da população brasileira. É reconhecido o papel fundamental dos Municípios na formulação e condução do processo de gestão das cidades, estabelecendo diretrizes para nortear a elaboração de políticas públicas urbanas. O Estatuto da Cidade consolida e amplia a competência jurídica da ação municipal instituída pela Constituição Federal. 597 594 Neste sentido, veja-se relatório da auditoria realizada pelo TCU junto à Secretaria Nacional de Defesa Civil, constante no TC 000.741/2011-6. 595 SCHENKEL, op. cit., p. 48. 596 ROSSETO, op. cit., p. 26-7. 597 OSÓRIO, op. cit. p. 21 202 Porém, para que tal ação seja realmente exercida de forma efetiva, é necessário melhorar a estrutura organizacional dos Municípios e atribuir-lhes maiores poderes para agir de modo a ter-se uma atuação mais eficaz nesta área. Dada a forma como o tema foi tratado no ordenamento jurídico brasileiro, tem-se que o Município é o principal ator (dentre os entes de direito público) nas ações de prevenção e/ou mitigação a desastres. É ele o responsável pela execução das ações e políticas públicas a serem implementadas, contando com o apoio financeiro de Estados e da União. A ele (com o auxílio da Defesa Civil e da comunidade local) incumbe a tarefa de articular e intermediar tais ações, bem como fazer a gestão dos recursos disponibilizados pelos entes púbicos e, eventualmente, doados pela sociedade. Conforme estabelece a Lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, compete aos Municípios, entre outras funções, a de realizar regularmente exercícios simulados, conforme Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil. Assim, o sistema municipal ou local de Defesa Civil é considerado o mais importante de todos, porque é no Município que os desastres acontecem. Por isso, a estrutura mais importante para o enfrentamento dos desastres é a estrutura local. 598 As cidades enfrentam processos intensos de urbanização e alta densidade populacional, sendo certo que a referida urbanização constitui-se como um fenômeno social, econômico e ambiental extremamente significativo e que afeta significativamente todos os aspectos do planejamento, desenvolvimento e gestão das sociedades humanas.599 É necessário que a população esteja preparada para agir na hipótese da ocorrência de desastres e, para isso, deve o Poder Público realizar ações que possibilitem tal preparação. Neste aspecto, a simulação dos procedimentos executados durante desastres e treinamentos auxiliarão na diminuição do índice de mortes em casos de desastres como enxurradas e deslizamentos. A simulação deve, ainda, contemplar a emissão de alertas à população, o acionamento de sirenes, além da retirada da população pelas rotas de fuga previamente traçadas. Assim, deve-se criar um sistema de alarme eficaz e informar a população sobre os procedimentos a serem adotados na hipótese de situação de risco. E, para isso, a realização dos simulados. A emissão de alertas pode ser feita por meio de mensagens de texto em 598 Disponível em: <http://www.defesacivil.sp.gov.br/v2010/portal_defesacivil/conteudo/documentos/ manual DefesaCivil_patruleiro.pdf>. Acesso em: 8 out. 2013. 599 NOGUEIRA, op. cit., p. 1. 203 celulares, sirenes, etc. Basta a existência (e funcionamento) de um sistema de alarme para avisar a população em situações de perigo, de modo que as pessoas que moram em áreas de risco possam deixar suas casas em tempo. O Sistema de Alerta é um meio de informar as autoridades e a população acerca dos riscos iminentes, possibilitando-lhes a adoção de medidas que reduzam os impactos oriundos de um desastre. Segundo ensina VENDRUSCOLO, o sistema de alerta (na hipótese de eventos chuvosos) trata da fase de acompanhamento do evento. Assim, no primeiro nível surge um acompanhamento por parte dos técnicos, alertando-se a Defesa Civil sobre a eventualidade da chegada de uma enchente. No segundo nível (Nível de alerta) prevê-se a ocorrência de um nível futuro crítico dentro de um horizonte de tempo da previsão. Nesta fase, a Defesa Civil e administrações municipais passam a receber regularmente as previsões para a cidade e a população recebe o alerta e instruções da Defesa Civil. Por fim, quando ocorrem prejuízos materiais e humanos chega-se ao denominado nível de emergência. 600 Na hipótese de ocorrência de desastres, a atuação do Município deve ser a mais rápida e efetiva possível. Cabe a ele (em parceria com a Defesa Civil) procurar abrigar e alojar as pessoas vítimas do desastre, bem como tomar as medidas pertinentes à eventual decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública, de modo a obter recursos para a reconstrução do cenário atingido. Neste aspecto, um sistema de previsão de alerta em tempo real pode contribuir para minimizar-se as perdas decorrentes de um evento crítico, permitindo-se a adoção das medidas necessárias. Do mesmo modo, é importante a elaboração de planos de ações que antevejam a possibilidade de um desastre e estabeleçam as medidas a serem adotadas na hipótese de um desastre.601 Por fim, não se pode deixar de mencionar a importância da atuação do Município na captação de recursos para a realização das obras necessárias para a prevenção de desastres e reconstrução do cenário lesado, merecendo destaque a municipalização de várias políticas públicas como alternativa viável rumo à efetiva proteção dos direitos fundamentais.602 Neste aspecto, a municipalização das políticas publicas retirou dos governos estaduais a função de 600 VENDRUSCOLO, op. cit., p. 55. Exemplificativamente, mencione-se o Decreto nº 17.851, de 23 de janeiro de 2013, do município de Campinas, o qual criou o plano municipal integrado de gerenciamento de assistência humanitária para situações de desastres. Tal plano consiste em um conjunto de medidas planejadas pela Prefeitura para socorrer com rapidez e eficácia vítimas atingidas por Situação de Emergência ou Estado de Calamidade Pública e tem como finalidade estabelecer diretrizes coordenadas, visando melhorar a capacidade de resposta do Poder Público em caso de desastre, Situação de Emergência (SE) ou Estado de Calamidade Pública (ECP). 602 ROSSETO, op. cit., p. 26-7. 601 204 execução direta de diversos serviços públicos, passando a desempenhar coordenar, financiar ou suplementar as ações praticadas pelo poder local. o papel de 603 A execução de políticas públicas relacionadas à proteção contra desastres (e, em especial, os desastres “naturais” hidrológicos) exige a adoção de um novo modelo de governança local, mais eficaz e propositivo, antecipando-se aos problemas e buscando alternativas que evitem a ocorrência de desastres ou, minimizem os efeitos deles decorrentes. Ademais, “o pleno desenvolvimento da função social da cidade corresponde ao efetivo exercício do direito à cidade, o que se dará através de uma política de desenvolvimento urbano.”604 E tal política há de ser realizada pelo Municípios, em prol da coletividade. É este o papel que se espera dos Municípios e seus governantes. 4.2.1 Politicas públicas de ordenamento territorial e uso e ocupação do solo A preocupação com políticas públicas habitacionais insere-se dentre as atribuições do Poder Público. Especificamente em relação à proteção do direito à moradia, observe-se que o Comitê de Direito Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas emitiu, em 13 de dezembro de 1991, o Comentário Geral nº 4, o qual elencou dente os elementos indispensáveis para que uma moradia seja considerada adequada: a construção de políticas públicas habitacionais contemplando os grupos vulneráveis, tais como os grupos sociais empobrecidos e vítimas de desastres naturais. No Brasil, observa-se que, até o início do século XXI, raras foram as tentativas de evitar o risco de desastres naturais por meio de um controle rígido do uso do solo. 605 A primeira regulação federal sobre o espaço urbano ocorreu em 1979, com a aprovação da lei nº 6.766, de parcelamento do solo urbano.606 Assim, com o objetivo de implementar políticas públicas específicas relacionadas à questão habitacional e de ordenamento territorial foi criada a lei 10.257/2001 – Estatuto da cidade. Tal lei regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Com ele, surge uma nova concepção em 603 ABRUCIO, F L; GAETANI, F. Avanços e perspectivas da gestão pública nos estados: agenda aprendizado e coalizão. Brasília: Consad/Fundap, 2006. p. 26. 604 JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 178. 605 SEGUN, op. cit., 2012. p. 69. 606 BUENO, op. cit. 205 relação aos processos de uso, desenvolvimento e ocupação do território urbano e que deve orientar a ação do Poder Público e da sociedade, de modo que a gestão das cidades seja efetivada por meio de princípios e diretrizes estabelecidos sob a ótica da justiça, democracia e sustentabilidade.607 A Carta de princípios para a elaboração do Plano Diretor 608, elaborada pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana, em 1989, elencou, como princípios fundamentais: o Direito à Cidade e à Cidadania609, a Gestão Democrática da Cidade610 e a Função Social da Propriedade.611 Tais princípios foram posteriormente incorporados ao texto final da Lei 10.257/01 (Estatuto da cidade), o qual estabeleceu que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as uma série de diretrizes gerais. Dentre tais diretrizes, destaque-se: a garantia do direito a cidades sustentáveis;612 a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; a cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais. 607 OSÓRIO, op. cit. DE GRAZIA, Grazia (Org.). Plano diretor: instrumento de reforma urbana. Rio de Janeiro: FASE, 1990. 609 Tal direito compreende o acesso universal aos serviços e equipamentos urbanos, à terra, à moradia, ao meio ambiente sadio, ao lazer, transporte, saneamento, à participação no planejamento da cidade, à educação e saúde. Enfim, acesso a condições de vida urbana digna. 610 A gestão democrática da cidade consubstancia-se na forma de planejar, tomar decisões, legislar e governar as cidades com participação e controle social, de forma a dar legitimidade e sustentabilidade à nova ordem jurídicaurbanística de natureza social. 611 A função social da propriedade encontra-se adstrita à prevalência do interesse comum sobre o direito individual, o que implica no uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano, de modo a evitar sua retenção especulativa ou sua utilização inadequada ou não utilização. 612 Segundo estabelece o Estatuto da cidade, o direito a cidades sustentáveis deve ser entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (art. 2º, I da lei 10.257, de 10 de julho de 2001) 608 206 Além das competências legislativas a cargo da União em questões relacionadas à política urbana, compete a ela promover, por iniciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. Do mesmo modo, deve a União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos, bem como elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social.613 Ao tratar da política de desenvolvimento urbano, a atual Constituição Federal estabeleceu, em seu artigo 182, que tal política será executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, e terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Tal preocupação também ficou evidenciada ao atribuir-se ao Município a competência para promover o ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, nos termos do art. 30, VIII da Constituição Federal, além de atribuir-lhe a competência para legislar sobre assuntos de interesse local, bem como para suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber. Desse modo, e em atendimento às disposições constitucionais sobre o tema, o Estatuto elencou uma série de diretrizes que nortearão a atuação da Administração Pública, sendo que algumas encontram-se diretamente ligadas à questão ambiental, merecendo destaque aquelas descritas no art. 5º em seus incisos I; IV; VI, g; VIII; XII; XIII; e XIV. Do disposto nos referidos incisos, observa-se a preocupação do Estatuto da Cidade com as denominadas cidades sustentáveis, razão pela qual primou ele pela adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência. A questão é relevante na medida em que, conforme a população urbana continua a crescer, mais políticas públicas e reformas tornam-se necessárias a fim de atender as populações que habitam tais áreas.614 Analisando-se tais diretrizes observa-se a existência de uma grande preocupação em se garantir condições para que a vida continue a se desenvolver de forma harmônica, permitindo613 614 Art. 3º, III, IV e V da lei 10.257, de 10 de julho de 2001. GIDDENS, op. cit., 2004. p. 575. 207 se o progresso, sem, contudo, eliminar os recursos ambientais. Por esta razão, a necessidade de ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a poluição e a degradação ambiental. Para TORRES, a transferência para os Municípios da operacionalização, implantação e gerenciamento de políticas públicas trouxe um fortalecimento desses entes.615 Do mesmo modo, a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente e a proteção ao patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico encontram-se inseridas no Estatuto da Cidade. O Estatuto da Cidade criou uma série de instrumentos para a realização de sua política urbana. Entre eles é possível citar-se: o planejamento municipal; o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; o IPTU progressivo no tempo; a desapropriação com pagamento em títulos; a usucapião especial de imóvel urbano; a concessão de uso especial para fins de moradia; o direito de superfície; o direito de preempção; a outorga onerosa do direito de construir; as operações urbanas consorciadas; a transferência do direito de construir; o estudo de impacto de vizinhança, além de outros institutos tributários, financeiros, jurídicos, etc.616 Tal atuação estatal é importante, na medida em que a garantia do direito à moradia exige uma atuação positiva do Estado por meio da promoção de política pública urbana e habitacional.617 Sobre o tema JAMPAULO JUNIOR conclui: [...] a questão urbana está diretamente ligada ao poder local. As decisões no plano urbanístico devem obediência ao princípio da Soberania Popular e a efetiva participação da população (gestão democrática da cidade). A cidade possui caráter instrumental para o direito à qualidade de vida.618 Dentro desta ótica, o Plano Diretor constitui-se como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. A Lei nº 12.608/12 introduziu importantes modificações no Estatuto da Cidade, de modo a traçar regras para Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos. Desta forma, tais Municípios deverão 615 TORRES, M. D. de F. Estado democracia e administração publica no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 67. 616 COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Direito municipal contemporâneo: estatuto da cidade enquanto instrumento de proteção ambiental. In: CONGRESSSO BRASILEIRO DE ADVOCACIA PÚBLICA, 15., 2011. 617 Neste sentido, veja: SAULE JUNIOR, op. cit., p. 92; e MARICATO, Emília. Política habitacional no Brasil: crítica e perspectivas. Revista Projeto, São Paulo, p. 52-3. 618 JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 179. 208 elaborar planos diretores contendo uma série de medidas que possam contribuir na proteção contra desastres. Dentre elas, destaque-se o mapeamento das áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos. Trata-se de medida importante, de modo a permitir que o Município tenha maior conhecimento acerca dos locais nos quais o risco de desastres é maior. Outra medida elencada, e que deve constar no plano diretor, refere-se ao planejamento de ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre. Novamente, observa-se a preocupação com a prevenção contra a ocorrência de desastres e a proteção dos moradores de determinada área de risco. O Plano Diretor dos Municípios nos quais haja risco de desastres deverá contemplar, também, medidas de drenagem urbana necessárias à prevenção e à mitigação de impactos de desastres. Além disso, o Plano Diretor deverá conter diretrizes para a regularização fundiária de assentamentos urbanos irregulares, observadas as regras estabelecidas na lei no 11.977, de 7 de julho de 2009,619 e demais normas federais e estaduais pertinentes, além da previsão de áreas para habitação de interesse social por meio da demarcação de zonas especiais de interesse social e de outros instrumentos de política urbana, onde o uso habitacional for permitido.620 Registre-se, ainda, que o art. 12 da Lei no 6.766, de 19 de dezembro de 1979 (lei de parcelamento do solo urbano) também sofreu alterações por força da lei 12.608/2012. Assim, nos termos do parágrafo 3o do citado artigo “é vedada a aprovação de projeto de loteamento e desmembramento em áreas de risco definidas como não edificáveis, no Plano Diretor ou em legislação dele derivada.” Trata-se de importante medida no sentido de evitar a construção de moradias em locais sujeitos à ocorrência de desastres. Neste sentido, relate-se, ainda, que: a partir de abril de 2014, nos Municípios inseridos no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, a aprovação 619 A lei 11.977/2009 dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas e dá outras providências. Tal lei também acrescentou dois novos institutos jurídicos aos instrumentos da política urbana estabelecida no Estatuto da cidade, denominados “demarcação urbanística para fins de regularização fundiária” e “legitimação de posse.” 620 Art. 42-A da lei 10.257/2001, com redação dada pela lei 12.608/2012. 209 do projeto de parcelamento ficará vinculada ao atendimento dos requisitos constantes da carta geotécnica de aptidão à urbanização. 621 Tem-se, assim, que a referida lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979, expressamente vedou o parcelamento do solo em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento)622; terrenos nos quais as condições geológicas não aconselham a edificação; e em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.623 Como se vê, procurou-se criar campo propício para que os Municípios planejem suas ações, adotando medidas de caráter nitidamente preventivo, as quais poderão contribuir para a redução do risco de desastres nestas áreas. Deste modo, se nas décadas de 1980 e 1990 a participação dos Municípios em relação ao direito à moradia limitava-se à doação de terrenos e dotação de infraestrutura para programas habitacionais promovidos em parceria com governos estaduais,624 a Constituição de 1988 procurou valorizar o papel do Município, tornando-o o ente responsável pela execução da política urbana, contando com o apoio do Plano Diretor, podendo desempenhar papel importante na ordenação do solo e mapeamento das áreas de risco. A propósito, registre-se que o Plano Diretor deve levar em consideração o mapeamento das áreas com altos riscos de desastres na realização do microzoneamento urbano e na definição de áreas: non aedificandi; aedificandi com restrições; aedificandi em acordo com as posturas do Código de Obras do Município; de proteção; etc. Tratam-se de medidas relevantes e que podem contribuir significativamente para a redução de desastres nessas localidades. 4.2.2 Poder de polícia e efetividade na proteção contra desastres O poder de polícia traduz-se em uma atividade da Administração Pública voltada a condicionar direitos e garantias individuais, em benefício do bem-estar da coletividade.625 621 GANEM, Roseli Senna. Gestão de desastres no Brasil. Biblioteca Digital. Câmara dos Deputados, 2012, p. 19. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/10496/gestao_desastres_ ganem.pdf?sequence=1>. Acesso em 20.11.2013 622 Salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes 623 Cf. art. 3º, parágrafo único da lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979 624 ROGUET, op. cit., p. 308. 625 FERNANDES, Paulo Victor. Impacto Ambiental: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 57. 210 Segundo estabelece o artigo 78 do Código Tributário Nacional, considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Trata-se, assim, de um poder conferido à Administração Púlbica a fim de impedir que os abusos dos direitos pessoais possam perturbar ou ameaçar os interesses gerais da coletividade.626 Em sede de desastres “naturais” hidrológicos tem-se que o poder de polícia deve abranger a autorização para construção de residências, retirada de pessoas de áreas de risco e seu subsequente alojamento, etc. Neste aspecto, observe-se que o papel fiscalizatório do Município também foi enaltecido, cabendo a ele vistoriar edificações e áreas de risco e promover, quando for o caso, a intervenção preventiva e a evacuação da população das áreas de alto risco ou das edificações vulneráveis. Neste sentido, o artigo 3º-B, § 1o, da lei 12.340/2010 (com redação dada pela lei 12.608/2012) estabeleceu os procedimentos necessários para a efetivação da remoção de edificações. Assim, é necessária a prévia realização de vistoria no local e elaboração de laudo técnico que demonstre os riscos da ocupação para a integridade física dos ocupantes ou de terceiros e a prévia notificação da remoção aos ocupantes, a qual deverá estar acompanhada de cópia do laudo técnico e, quando for o caso, de informações sobre as alternativas oferecidas pelo Poder Público para assegurar seu direito à moradia. Neste aspecto, destaque-se a importância do poder de polícia do ente público municipal na proteção contra desastres hidrológicos. Isso porque, cabendo ao ente municipal o ordenamento territorial urbano, deve ele utilizar-se do poder de polícia e dos atributos a ele inerentes a fim de coibir a instalação de pessoas em áreas de risco, bem como efetivar a remoção da população que se encontre nestas áreas, instalando-as em áreas adequadas ou, em último caso, em abrigos. Assim, o Município deve, aos olhos do “direito de proteção contra desastres” ter permissão legislativa e administrativa para agir em prol desse objetivo: a prevenção de desastres e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. Tal poder, se 626 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno: de acordo com a EC 19/98. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 394-6. BRAZ, Petrônio. Atos administrativos. Leme: LED, 1997. p. 36-7; JUSTEN FILHO, op. cit., p 385 211 exercido de forma disciplinada e criteriosa, dentro de uma política pública preventiva pode contribuir significativamente para a redução do número de vítimas em decorrência de desastres hidrológicos. Contudo, na medida em que o direito à liberdade e o direito à moradia também constituem-se como direitos fundamentais, a atuação do Poder Público, por meio do poder de polícia, não raras vezes, acaba sendo limitada. Isso porque a remoção de pessoas de suas casas (não obstante o objetivo seja protegê-las contra o risco de desastres) esbarra na proteção do direito à liberdade e moradia. Deste modo, tem-se que o poder de polícia decorre da existência de um interesse público que justifique a limitação de um direito do indivíduo, sendo necessário que o exercício desse poder seja balizado por princípios jurídicos que lhe dão contorno e orientam sua atuação, respeitando-se os direitos e liberdades civis dos cidadãos.627 Assim, é fundamental que o Poder Público tenha condições de oferecer locais apropriados para que as pessoas que vivem em áreas de risco possam ficar na iminência de um desastre ou após sua ocorrência, mantendo-se íntegra a dignidade da pessoa humana, sob pena de violar-se ainda mais os direitos fundamentais do indivíduo. Deste modo, tem-se que, com relação à atuação dos governos municipais com vistas à resiliência das cidades contra os impactos da mudança climática, são consideradas medidas essenciais: a redução dos riscos advindos deles e de outros perigos ambientais; a atuação em benefício das pessoas que estão mais expostas à mudança climática e outros perigos ambientais; o estabelecimento de uma forte base de conhecimento local sobre as variabilidades climáticas e prováveis impactos locais causados pela mudança climática; o incentivo e apoio de ações que reduzam os riscos e vulnerabilidades; a atuação em parceria entre o Município e os moradores de regiões mais suscetíveis a desastres hidrológicos, incentivando políticas públicas governamentais voltadas à adaptação da comunidade em relação aos efeitos da mudança do clima. 628 4.3 ESTUDO DE CASO: INSTRUMENTOS UTILIZADOS PELA PREFEITURA DE BELO HORIZONTE NA PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES 627 LAVIEILLE, op. cit., p. 273. A adaptação às mudanças climáticas pode atender também às metas de desenvolvimento em cidades de países em desenvolvimento?. In: CIVIS, nº 2 - Outubro 2009, p. 7-8. Disponível em: <http://citiesalliance.org/ sites/citiesalliance.org/files/CIVIS_2_Portuguese.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2013. 628 212 A análise dos dados constantes no ATLAS 1991-2010 - Secretaria Nacional de Defesa Civil demonstra que a maioria absoluta das mortes relacionadas a desastres naturais hidrológicos ocorreram na Região Sudeste,629 sendo certo que o maior número de mortos ocorreu no Estado de Minas Gerais. Desse modo, optou-se pela realização de uma pesquisa de campo junto à capital do referido Estado.630 Outro fato importante para a utilização do Município de Belo Horizonte deve-se a análise dos dados constantes no Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010. Segundo os dados constantes no referido atlas, o Estado de Minas Gerais foi o Estado com maior número de mortes em decorrência de inundações (584 mortes no período)631. A análise demonstrou, ainda, que Belo Horizonte foi o Município que apresentou maior número de afetados por inundações bruscas nas cinco vezes em que decretou situação de emergência por desastres de inundações bruscas e alagamentos registradas em bairros do perímetro urbano.632 Do mesmo modo, Belo Horizonte é o Município com maior número de afetados em decorrência de movimentos de massa: 200.000 pessoas. Tal predominância deve-se, entre outros fatores, as grandes áreas de vilas e favelas com ocupação irregular, aliadas às características geomorfológicas e litoestruturais, com altas declividades.633 Deste modo, a cidade de Belo Horizonte, em consequência de sua bacia hidrográfica e sua topografia acidentada, convive com a ocupação de algumas áreas e encostas e baixadas, sujeitas à ocorrência de desastres hidrológicos.634 Segundo asseverou o referido atlas, a grande quantidade de afetados em Belo Horizonte em razão de inundações (299.200 habitantes) pode estar relacionada a uma drenagem ineficiente das águas precipitadas, aliada ao alto índice de ocupação humana, o que 629 Das 3.494 mortes ocorridas no País no período analisado (1991 a 2010), 2.436 (70%) ocorreram na região sudeste. Do mesmo modo, das 1.069 mortes relacionadas à inundação brusca e alagamento 543 (51%) ocorreram na região sudeste. A mesma predominância é observada nas hipóteses de inundação gradual, nas quais das 461 mortes registradas no período, 274 (59%) ocorreram na Região Sudeste. Inserindo-se as mortes decorrentes de movimento de massa (505) observa-se que 500 (95%) das mortes ocorreram na Região Sudeste 630 Igualmente, foi efetuado contado com as secretarias municipais de defesa civil das demais capitais da Região Sudeste, não tendo havido (até a conclusão da presente tese) o recebimento de respostas aos questionamentos formulados 631 Desse total, o maior número de mortos ocorreu no município de Munhoz, situado na Mesorregião Sul/Suldoeste do Estado de Minas Gerais, com 441 óbitos. 632 BRASIL, atlas... op. cit., 2011. p. 46. 633 BRASIL, atlas... op. cit., 2011. p. 69. 634 BELO HORIZONTE. Prefeitura. Plano de contingência para enfrentamento de desastres no município. Belo Horizonte, 2011. p. 4. 213 contribui para o aumento da impermeabilização do solo e, consequentemente, para a ocorrência de alagamentos e inundações bruscas.635 Outro fator importante para a utilização da capital Belo Horizonte como “estudo de caso” refere-se aos resultados recentes daquela Capital, sendo certo que nos últimos três anos houve o registro de uma morte por ano em decorrência de desastres hidrológicos. A redução do número de vítimas em Belo Horizonte, deve-se, dentre outros fatores, à realização de vistorias individuais nas moradias em áreas de risco, ações preventivas e corretivas. As vistorias realizadas pela secretaria municipal de Defesa Civil também constituem-se como um importante instrumento na prevenção contra a ocorrência de desastres. Tais vistorias desembocam na elaboração de um relatório informando ao morador as intervenções pertinentes e imprescindíveis em relação ao referido imóvel. Do mesmo modo, podem ser expedidas notificações, nas hipóteses em que se constate risco de desastres, para que o responsável pelo imóvel apresente laudo de estabilidade da edificação.636 Por fim, a Prefeitura de Belo Horizonte foi utilizada como parâmetro tendo em vista a mesma ter sido vencedora do “Prêmio Sasakawa 2013, da ONU”, voltado para a Redução de Riscos de Desastres. Trata-se de um prêmio de incentivo à Redução de Riscos de Desastres e que valoriza ações relacionadas à atuação das sociedades com relação à prevenção e planejamento em sede de desastres. A questão central é verificar como as sociedades se organizam para mitigar os impactos.637 O Plano Diretor de Defesa Civil e o Plano de Contingência para Enfrentamento de Desastres em Belo Horizonte foi instituído por meio do decreto nº 14.879, de 2 de abril de 2012. Tal decreto considerou o dever do estado em promover a proteção civil da população contra desastres naturais ou provocados pelo próprio ser humano; a necessidade de se estabelecer diretrizes para o planejamento, coordenação, execução e controle das atividades de Defesa Civil em Belo Horizonte, numa perspectiva de atuação sistêmica, envolvendo todos os segmentos públicos, privados e a comunidade com o objetivo de reduzir as ameaças e vulnerabilidade, os danos humanos, materiais, ambientais e os prejuízos econômicos e sociais decorrentes da ocorrência de desastres; e a necessidade de se dimensionar o Sistema Municipal de Defesa Civil - SIMDEC, capacitando-o e preparandoo para atuar em todos os tipos de desastres que ocorrem no Município. 635 BRASIL, atlas... op. cit., 2011. p. 46. BELO HORIZONTE, op. cit., p. 18. 637 Disponível em: <http://www.onu.org.br/onu-abre-inscricoes-ate-28-de-fevereiro-para-premio-de-incentivo-areducao-de-riscos-de-desastres/>. Acesso em: 01 jul. 2013. 636 214 Neste aspecto, outro diferencial existente no Município de Belo Horizonte e que, possivelmente, contribuiu para a diminuição dos danos relacionados a desastres na capital mineira refere-se a efetiva estruturação e funcionamento do Conselho Municipal de Defesa Civil, se comparado a outros Municípios. Segundo consta do Relatório de Gestão 2008 da SEDEC, apesar de 77% dos Municípios possuírem coordenadorias de Defesa Civil ou órgãos semelhantes, estes não se encontram estruturados para atuar por ocasião de desastres, sendo certo que, apesar da Defesa Civil estar presente em cerca de quatro mil cidades, tem-se que, em aproximadamente três mil delas, o departamento existe apenas “no papel". 638 Tal situação pode ser explicada em razão da necessidade de existência formal do referido órgão para que o Município tivesse acesso a recursos da Sedec em casos de emergências causadas por desastres naturais.639 Preocupada com a prevenção contra desastres, foram adotadas pela prefeitura de Belo Horizonte uma série de ações em alinhamento com o Marco de Hyogo. Assim, criou-se uma legislação que institucionaliza a prevenção de riscos, além da criação de estruturas institucionais de redução de risco e Políticas públicas bem definidas com grandes investimentos tanto em infraestrutura quanto na aproximação com a comunidade em risco. Assim, a prefeitura de Belo Horizonte criou uma Central de Gerenciamento de crise, composta por diversas secretarias. Desta central participam: o secretário de segurança urbana e patrimonial, o se secretário de obras e infraestrutura, o secretário de políticas sociais, o secretário de saúde, o secretário de serviços urbanos, dentre outros. 640 Frise-se, também, a criação de um fundo municipal de calamidade pública, com recursos destinados à assistência e resposta aos desastres recorrentes na cidade. No que se refere às estruturas institucionais de gestão de riscos, cada Regional criou uma gerência de gestão de riscos. Assim, com o objetivo de ter-se uma visão sistêmica acerca das questões relacionadas ao risco de desastres, foi criado o GEAR - Grupo Executivo de Áreas de Risco, o qual congrega todos os gestores públicos e de empresas com vocação para a prevenção e resposta aos desastres. Tal grupo reúne-se semanalmente, são socializadas as necessidades de recuperação dos desastres acontecidos, a previsão meteorológica para a semana seguinte e as necessidades de intervenções preventivas para os prováveis eventos adversos previstos. As soluções são construídas em conjunto, com contribuição técnica, 638 Neste sentido, veja-se reportagem publicada no Jornal “O Estado de São Paulo”, em 3/2/2010 Dados extraídos do relatório constante do TC 000.741/2011-6 640 BELO HORIZONTE op. cit., p. 10-11. 639 215 logística e material daqueles que tem vocação e possibilidade para atuar. Ações e prazos são estabelecidos e na reunião seguinte são verificados os andamentos e resultados práticos pactuados. Em sintonia com o Marco de ação de Hyogo, o Município de Belo Horizonte tem procurado identificar, avaliar e observar de perto os riscos dos desastres e melhorar os alertas previamente. Tal ação tem sido realizada por meio da criação de um mapeamento de risco geológico, identificando moradia por moradia, atualizado. Acrescente-se, ainda, a existência de uma carta de inundação da cidade, segundo modelos matemáticos, e identificando 80 pontos de inundação e alagamentos. A prefeitura também investiu na implantação de um moderno sistema de monitoramento e emissão de avisos com vistas à redução dos prejuízos humanos, materiais e sociais.641 Assim, Belo Horizonte conta com diversas estações hidrofluviométricas, que aliadas a outras tecnologias, permitem emissão de alertas mais precisos. Destaque-se, também, a existência de uma importante parceria com a imprensa, que divulga os alertas emitidos, inclusive com as recomendações preventivas. Do mesmo modo, o sistema de alertas tem evoluído com o uso de tecnologias, tais como SMS, redes sociais, etc., as quais têm contribuído para que a população tenha conhecimento prévio acerca de eventuais desastres hidrológicos, tendo tempo para adotar as medidas necessárias à proteção de sua vida e outros direitos fundamentais. Com vistas à redução dos riscos de desastres, o mapeamento de risco tem sido feito em parceria com a comunidade, aproveitando o conhecimento e a percepção do risco daqueles que moram em áreas vulneráveis. Registre-se, ainda, que o mapeamento de riscos tem constatado a diminuição do número de residências construídas em áreas de risco “alto” ou “muito alto” de desastres.642 Tal diminuição traz consequências diretas para a redução do risco de desastres, na medida em que afasta as pessoas de tais áreas. Outra ação em alinhamento com o marco de Hyogo refere-se à utilização do conhecimento, da inovação e da educação para criar uma cultura de segurança e resiliência em todos os níveis. Assim, a elaboração de planos de contingência em conjunto com a 641 BELO HORIZONTE, op. cit., p. 5-6. Segundo dados da Secretaria Municipal de Defesa Civil havia, na década de 1990, 15.650 residências em áreas de risco “alto” ou “muito alto” de desastres. Em 2011 esse número há havia sido reduzido para 2.671 residências. 642 216 comunidade possibilitou maior alcance dos alertas prévios e melhoria nas ações preventivas nas áreas de risco. Do mesmo modo, o treinamento das comunidades, em conjunto com outros atores que podem contribuir para a prevenção e resiliência das comunidades em risco (tais como Associações de Profissionais especializados em geologia, engenharia e perícias) e a formação de parcerias com universidades para que alunos participem das vistorias e pesquisem sobre as questões do risco na cidade têm contribuído para a criação dessa cultura de segurança e resiliência. A inserção da comunidade na formulação de políticas públicas e ações protetivas possibilita um maior envolvimento dessa comunidade com os problemas enfrentados e, consequentemente, estimula o surgimento de uma “cultura de proteção contra desastres” na qual Poder Público, cidadãos e sociedade civil organizada se unem na busca de soluções eficazes para os problemas vivenciados. A Redução dos fatores fundamentais de risco também se constitui como uma ação em alinhamento com o marco de Hyogo. Assim, observa-se em Belo Horizonte uma robusta política de redução de risco, com intervenções estruturais simples com mutirões comunitários e também com intervenções complexas através de obras estruturantes nas áreas de risco geológico.643 A quinta ação praticada em sintonia com o Marco de Hyogo refere-se ao fortalecimento da preparação contra desastres para uma resposta eficaz em todos os níveis. Nesse aspecto, ganham destaque: a) a existência de um Plano de Contingências atualizado e distribuído à comunidade. b) a capacitação e o treinamento de comunidades em áreas de Risco; c) a organização e o abastecimento de depósitos de assistência humanitária. d) a capacitação e a atualização dos Gestores das Regionais e do Sistema de Políticas Sociais. e) o Investimento em aquisição de novas viaturas para a Defesa Civil; f) a atuação sistêmica com Corpo de Bombeiros e Defesa Civil Estadual e nacional fortalecida através de capacitação e definição de processos de integração. g) A manutenção dos recursos destinados ao Fundo de Calamidade Pública. Os resultados alcançados por Belo Horizonte são explícitos na ausência de mortes em deslizamentos de terra desde 2003 e o baixo índice de mortes nas inundações nos últimos 3 anos.644 Os resultados são ótimos em função do pensamento sistêmico de proteção civil, de tal 643 Segundo informou o Coordenador Municipal de Defesa Civil, os investimentos previstos por ano para redução do risco de inundações têm ultrapassado a cifra de R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais) 644 Segundo registros da Secretaria Municipal de Defesa Civil de Belo Horizonte, houve uma morte por ano no período. 217 forma que todos os órgãos públicos municipais pensam em políticas de redução e gestão de riscos. Há estruturas institucionais específicas, com orçamentos específicos para redução e gestão de risco. Mapeamentos de riscos e monitoramento com emissão de alertas são ações importantes. Plano de contingências para desastres na cidade é robusto e atualizado anualmente.645 Registre-se, ainda, outra medida adotada pela prefeitura de Belo Horizonte: a elaboração do Plano Diretor de drenagem urbana, o qual subdividiu o território do Município em diversas bacias elementares, além de propor novos conceitos e diretrizes para o enfrentamento das inundações na cidade. Criou-se, também, núcleos de alerta de chuva, os quais traduziram-se em um canal de dialogo direto com a população atingida pelas inundações, visando sua proteção.646 Segundo informação obtida junto ao Secretário Municipal de Defesa Civil de Belo Horizonte, Coronel Alexandre Lucas Alves, há uma forte mobilização comunitária, com aproveitamento da percepção de risco dos moradores para construção de medidas de auto proteção, proteção comunitária e intervenções estruturais. Todas as recomendações do Marco de Hyogo são cumpridas com sólidas políticas públicas consolidadas. Assim, a adoção de políticas públicas voltadas para a prevenção contra desastres, eliminando (ou mitigando) os fatores de risco, é um mecanismo importante para a efetiva proteção do direito fundamental de proteção contra desastres. Assim, no início da década de 1990, Belo Horizonte contava com 15.000 moradias localizadas em áreas de risco alto ou muito alto. Por meio do Programa Estrutural em áreas de risco esse número diminuiu para 2.700 no ano 2010. Todavia, tendo em vista a existência de uma tendência mundial em relação ao aumento dos desastres em razão do desenvolvimento da sociedade de risco (consoante argumentos apresentados na presente tese) tem-se como de suma importância a implementação de medidas preventivas, de modo a procurar mitigar a ocorrência de desastres (e, em especial, dos desastres hidrológicos – que são os mais recorrentes no território brasileiro). 645 Informações fornecidas pelo Secretário Municipal de Defesa Civil de Belo Horizonte, Cel. Alexandre Lucas Alves. 646 BELO HORIZONTE, op. cit., p. 5. 218 Assim, o Município de Belo Horizonte indicou como medidas necessárias: a manutenção de uma cultura sistêmica de proteção civil, com a efetiva participação de gestores e comunidade nas reuniões. Dentre os fatores que dificultam a efetiva proteção do direito fundamental de proteção contra os desastres destacam-se as dificuldades orçamentárias e o planejamento deficitário. São fatores que precisam ser levados em conta pelo administrador público a fim de permitir a adequada proteção dos direitos fundamentais. Aliás, o problema da eficácia dos direitos fundamentais e, principalmente, dos direitos sociais prestacionais, deve merecer relevante atenção no âmbito dos três Poderes, para que comece a se produzir no mundo dos fatos o que já se garantiu normativamente na Constituição.647 Proteger os direitos fundamentais de forma efetiva é um dever do qual o Poder Público não pode imiscuir-se. É certo que os resultados positivos obtidos pela Prefeitura de Belo Horizonte não garantem ser essa a melhor solução para a proteção dos cidadãos contra a ocorrência de desastres naturais hidrológicos. Contudo, tais medidas demonstram uma diminuição no número de vítimas em decorrência de tais desastres, não obstante o aumento na ocorrência de tais eventos seja uma tendência mundial, consoante os dados apresentados na presente tese. Assim, a atuação proativa da municipalidade, aliada à participação da sociedade na proteção contra a ocorrência de desastres demonstrou ser medida eficaz na manutenção da dignidade da pessoa humana e preservação dos direitos fundamentais. Ainda com relação à proteção dos direitos fundamentais, o coordenador da Secretaria Municipal de Defesa Civil relatou um caso emblemático: existe em Belo Horizonte uma área com alto risco de deslizamentos, com 69 famílias ameaçadas. A prefeitura ingressou com uma medida liminar para retirada compulsória de tais famílias. Tal liminar foi cassada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o risco de um desastre nesta área ainda persiste. E o mais interessante: tramita em Belo Horizonte uma ação civil pública contra o munícipio pleiteando a retirada dessas famílias da referida área, em razão de degradação de área de preservação permanente. Trata-se de uma discussão complexa, na medida em que envolve diferentes direitos fundamentais em colisão no caso concreto, uma vez que o exercício de um direito fundamental colide com o exercício de outro direito fundamental também protegido pelo ordenamento jurídico.648 Por esta razão predomina o entendimento de que deve-se obter 647 PESSANHA, Érica. A eficácia dos direitos sociais prestacionais. Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano 7, n. 8, jun. p. 307, 2006. Disponível em: <(http://fdc.br/Arquivos/ Mestrado/ Revistas/Revista08/Discente/Erica.pdf)>. Acesso em: 8 out. 2013. 648 ALEXY, op. cit., 2012. p. 93. 219 o consentimento livre e informado daqueles que serão deslocados.649 Ademais, rememore-se que toda e qualquer restrição à eficácia de normas de direitos fundamental só será possível na hipótese de colisão com outros direitos da mesma natureza, ou seja: na hipótese de colisão entre direitos fundamentais.650 Para isso é necessário, além de um juízo de oportunidade e conveniência, de uma análise de razoabilidade e proporcionalidade na medida a ser implementada. Neste aspecto, ressalte-se que o Principio nº 6 dos Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos, relativo aos Deslocados Internos, estabelece que todo o ser humano tem o direito de ser protegido contra a deslocação arbitrária da sua casa ou do seu local de residência habitual. Assim, mesmo em casos de calamidades, a deslocação (ou retirada) do indivíduo daquele local não será admitida, salvo se a segurança e a saúde dos afetados exigirem sua pronta evacuação, devendo, ainda, tal deslocação restringir-se ao tempo mínimo exigido pelas circunstâncias. Tal deslocamento só poderá ocorrer quando todas as alternativas exequíveis já tiverem sido analisadas, de modo a se evitar a deslocação e, mesmo assim, devem ser tomadas todas as medidas disponíveis para minimizar a deslocação e os seus efeitos adversos. BUENO, analisando a questão da sustentabilidade urbana apresenta uma série de propostas voltadas para o planejamento e gestão urbana e orientação das políticas públicas relacionadas com a adaptação do espaço intraurbano, de modo a diminuir sua vulnerabilidade e permitir uma melhoria das condições de conforto ambiental, com um enfoque socioambiental. Dentre as medidas por ele relacionadas, cite-se: a elaboração de planos de ação nas microbacias urbanas, com a promoção de retenção, reuso e infiltração das águas pluviais, requalificação dos fundos de vale urbanos, preservação dos fundos de vales periurbanos e rurais; a urbanização e adequação de assentamentos precários e saneamento das cidades; produção de habitação social para promover as necessárias remoções; a disseminação do uso da energia solar, sobretudo para aquecimento de água, direcionando-se a energia elétrica para outras demandas que utilizam energia suja; políticas de controle da expansão urbana; enriquecimento da arborização urbana – vias, paisagismo, equipamentos públicos, quintais e jardins; a requalificação das áreas centrais e ociosas; a reciclagem de 649 Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos. GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá, 2004. p. 195. 650 220 entulho para a construção civil, como forma de diminuir o uso de novos minérios e energia; a reciclagem e correta destinação dos resíduos sólidos;651 4.4 CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL A luta pelos direitos surge em razão da existência de injustiças, tornando-se necessário criar-se condições (materiais e imateriais) concretas que possibilitem o acesso aos bens necessários para uma existência digna.652 Assim, tratando-se de um direito fundamental do ser humano, a proteção contra desastres exige que a interpretação de suas normas e princípios paute-se por uma hermenêutica concretizadora, com vistas à efetiva proteção de tal direito. Deste modo, em razão das normas constitucionais estarem no ápice do ordenamento jurídico, deve-se realizar uma atividade interpretativo-concretizadora em relação às mesmas.653 Nesta perspectiva, o “direito de proteção contra desastres” constitui-se como um direito fundamental que tem por objetivo garantir a proteção da dignidade da pessoa humana por meio de medidas que evitem a ocorrência de desastres ou (quando não for possível evitar tal ocorrência) que possam mitigar os efeitos danosos decorrentes, garantindo a manutenção de tal dignidade, defendendo os interesses fundamentais dos cidadãos. Ademais, tal proteção abrange não apenas a vida e a saúde, mas “tudo aquilo que seja digno de proteção a partir do ponto de vista dos direitos fundamentais.”654 Assim, surge para o ente público a tarefa de criar normas e regular situações jurídicas tendentes a evitar e/ou minimizar o risco de desastres, sendo certo que “a principal característica dos direitos fundamentais é o escopo de concretização do principio da dignidade da pessoa humana.”655 E mesma autora ainda conclui no sentido de que qualquer direito que seja essencial à concretização dos valores em pauta deve ser considerado como direito fundamental.656 651 BUENO, Laura Machado de Mello. Reflexões sobre o futuro da sustentabilidade urbana a partir de um enfoque socioambiental. Cadernos Metrópole (PUCSP), v. 19, p. 99-121, 2008. 652 FLORES, op. cit., p. 36 653 GALINDO, op. cit., p. 26. 654 ALEXY, op. cit., 2012, p. 450. 655 DALLARI, op. cit., p. 3-38. 656 Ibidem. 221 Contudo, tratando-se de direito de caráter nitidamente prestacional, a regulação normativa nesta área é extremamente difícil. Sobre o tema, PINHEIRO elenca quais seriam, em sua opinião, os três principais obstáculos para a eficácia e a efetividade dos direitos sociais prestacionais. O primeiro deles refere-se ao conteúdo aberto e indeterminado dos preceitos constitucionais que consagram tais direitos. Para o autor, a eficácia de tais normas fundamentais dependerá da análise cautelosa das peculiaridades da situação posta, devendo-se procurar a realização do direito em seu grau máximo. O segundo refere-se a cláusula da reserva do financeiramente possível e, finalmente, a falta de legitimidade democrática dos juízes para interferir na formulação e execução de políticas públicas.657 No tocante à proteção contra desastres observe-se que, apesar de muitos defenderem que a proteção do direito à moradia (e, por interpretação constitucional, o direito a uma moradia digna, protegida contra a ocorrência de desastres) constitui-se como mera norma programática, há de se ter em mente que tal proteção constitui-se como direito fundamental do indivíduo, devendo o Estado buscar instrumentos e alternativas que possibilitem a efetivação desse direito. Isso porque, conforme apresentado nesta tese, o direito de proteção contra desastres constitui-se como um direito fundamental do ser humano, sendo certo que o surgimento de novos direitos encontra-se relacionado ao aumento da demanda da cidadania, exigindo-se uma maior intervenção do Estado no domínio econômico.”658 Por outro lado, não obstante o direito de proteção contra desastres seja um direito fundamental diretamente relacionado a outros direitos (tais como o direito à vida, saúde e a dignidade da pessoa humana) é impossível evitar a ocorrência de todo e qualquer desastre. Isso porque os desastres encontram-se relacionados a diversos fatores, tais como aspectos geográficos, geológicos, climáticos, etc. Do mesmo modo, seu surgimento ou agravamento deriva de interferências decorrentes da ação da natureza e da ação humana sobre o meio ambiente. Assim, a depender da forma como esses elementos se relacionam os riscos de desastres poderão ser maiores ou menores, porém a eliminação total do risco é algo praticamente inatingível. Neste aspecto, CARVALHO ressalta a “importância das condições ambientais essenciais para a concretização dos direitos a vida, à propriedade e à saúde”659 A proteção contra desastres guarda relação com diversas outras áreas do conhecimento (jurídico e extrajurídico). No que tange aos aspectos jurídicos, observe-se sua relação com o 657 PINHEIRO, op. cit., p. 182-3. BUCCI, op. cit., 2006. p. 5. 659 CARVALHO, op. cit., 2008. p. 29. 658 222 direito de proteção ao meio ambiente, o direito urbanístico, o direito administrativo, o direito constitucional, o direito civil, etc. Com relação ao direito ambiental, a primeira aproximação entre o meio ambiente e os desastres refere-se à dimensão internacional dos mesmos. Os desastres, em sua maioria, encontram-se diretamente relacionados às ações da natureza (podendo-se citar o efeito estufa, o aquecimento global, etc.) e ações antrópicas que, não raras vezes, desrespeitam os limites territoriais dos países. Assim, em razão da “transfronteiricidade” dos danos decorrentes de desastres, princípios de direito internacional também devem ser a ele aplicados. Tal “transfronteiricidade” decorre do fato de que ações praticadas por indivíduos ou instituições em determinado local podem trazer consequências importantes sobre a vida de pessoas que vivem em outros pontos do mundo.660 Assim, não é possível limitar os efeitos de um desastre a aspectos puramente geográficos. Nessa linha, não obstante não se possa afirmar com certeza as causas do aquecimento global, acredita-se que o aumento da temperatura terrestre têm causado as principais catástrofes naturais no planeta.661. Neste aspecto, ganham relevância na proteção contra desastres os princípios da proteção internacional da pessoa humana (princípio nitidamente de caráter de direito humanitário) e da colaboração internacional (também denominado de princípio da cooperação entre os povos). Por meio de tais princípios, indivíduos e organismos internacionais procuram prestar imediata ajuda a autoridades locais na defesa de cidadãos vítimas de algum tipo de desastre. Neste aspecto, é preciso o desenvolvimento de políticas de defesa humanitária, propiciando segurança na entrega de alimentos, materiais, medicamentos, e outros tipos de auxílios aos que necessitam. Do mesmo modo, o direito à moradia e o direito à propriedade privada guardam estreita relação com a proteção contra desastres e a dignidade da pessoa humana. Nesta linha, cite-se o princípio da função socioambiental da propriedade, segundo o qual a propriedade não pode oferecer riscos às demais pessoas, surgindo para o pode público o dever de intervir com vistas à proteção dos interesses da coletividade. Acrescente-se, ainda, que os princípios da precaução, da prevenção, do poluidor pagador, da responsabilidade, da cooperação internacional, do meio ambiente equilibrado, dentre outros, também são aplicáveis às questões relacionadas ao direito de proteção contra desastres. Deste modo, o princípio da consideração 660 661 GIDDENS, op. cit., 2004. p. 575. GIDDENS, op. cit., 2004. p. 67. 223 da variável ambiental também deve ser aplicado no processo de tomada de decisão que implique riscos para o meio ambiente ou que possa contribuir para a ocorrência de desastres. No que se refere ao direito administrativo brasileiro, também é possível encontrar-se diversos pontos de contato com o direito de proteção contra desastres. Dentre eles, destaquem-se as medidas de caráter preventivo, tais como a fiscalização, vistoria, ordem, notificação, autorização, licença, outorga de direito de uso, desocupação, retirada de famílias de áreas de risco, etc. São medidas adotadas com o objetivo de eliminar ou mitigar o risco de ocorrência de desastres futuros. O direito dos desastres também contempla medidas punitivas (ou repressivas) tendentes a punir aqueles que desrespeitem suas regras e diretrizes. Em sede de direito urbanístico, tem-se que este também possui vários pontos de contato com o direito de proteção contra desastres. Isso porque a forma de ordenação da cidade contribui para a ocorrência (ou não) de acidentes e desastres. Observe-se, também que o direito urbanístico constitui-se como um conjunto de normas jurídicas, notadamente de natureza administrativa, incidente sobre os fenômenos no Urbanismo e que tem como objeto o estudo das normas que visem impor valores convivenciais na ocupação e utilização dos espaços habitáveis.662Assim, o uso e ocupação do solo, bem como sua forma de utilização, são temas que interessam tanto ao Direito Administrativo, quanto ao Direito urbanístico e ao Direito dos Desastres. Do exposto, observa-se que as normas jurídicas constituem-se como um instrumento por meio do qual se estabelece caminhos para satisfazer, de um modo “normativo”, as necessidade e demandas da sociedade.663 Nessa esteira, o direito de proteção contra os desastres pode ser conceituado, sob o ponto de vista jurídico, como o conjunto de normas jurídicas destinadas a prevenir, mitigar e evitar a ocorrência de desastres, bem como destinadas a possibilitar o adequado socorro às pessoas afetadas e reconstrução da área atingida, de modo a evitar desastres futuros, garantindo-se a manutenção da dignidade da pessoa humana. Outra peculiaridade inerente ao direito de proteção contra desastres refere-se a sua característica multidisciplinar, dialogando com diversas áreas do conhecimento, tais como engenharia, geografia, geologia, climatologia, etc. Deste modo, dadas as características e 662 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao direito ecológico e ao direito urbanístico: instrumentos jurídicos para um futuro melhor. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 56. 663 FLORES, op. cit., p. 46 224 peculiaridades a ele inerentes, não é possível tratar-se a questão sob o viés exclusivo de um único ramo do conhecimento científico. Desse modo, aspectos relacionados à geografia, arquitetura, geologia, meteorologia, economia, sociologia, etc. também devem ser observados na busca de soluções para o problema atinente aos desastres. Trata-se, assim, de um sistema complexo e inter-relacionado, com princípios oriundos de diversos ramos da ciência, requerendo, portanto, uma teoria própria, tendo o indivíduo como o centro das suas preocupações. Com base neste pensamento, tem-se que a proteção contra os desastres (e, em especial, os desastres “naturais” hidrológicos) coaduna-se com os princípios e regras atinentes à proteção dos direitos fundamentais. Aliás, observe-se que, quando o titular de um direito fundamental possui um direito em face do Estado, no sentido de que este realize determinada ação positiva, é correto dizer-se que o Estado tem, em relação ao indivíduo, o dever de realizar determinada ação. Assim, sempre que houver uma relação constitucional desse tipo poderá o cidadão exigir judicialmente o cumprimento desse direito.664 Os direitos fundamentais possuem como característica um alto grau de evolutividade, ou seja: os direitos fundamentais tendem a se ampliar e a se expandir ao longo do tempo. Tanto que um dos princípios a eles relacionados refere-se à proibição de retrocesso. Em outras palavras, na medida em que os direitos fundamentais se constituem como direitos conquistados pelo ser humano, tendem eles a serem ampliados na medida em que a sociedade se desenvolve e evolui. Tratar o direito de proteção contra desastres como um direito fundamental do ser humano constitui-se em medida salutar para a maior eficácia de sua adequada tutela jurídica. Ademais, a proteção contra desastres (por meio de medidas preventivas e recuperativas) visa, em última análise, resguardar a dignidade da pessoa humana, que é o princípio central em torno do qual a teoria dos direitos humanos e dos direitos fundamentais foi construída. Logo, criar mecanismos que permitam a adequada proteção do cidadão diante da possibilidade da ocorrência de um desastre natural hidrológico, dentre outros, constitui-se em alternativa válida e eficaz para a efetividade de tal proteção. A atuação do Poder Público e o planejamento realizado em parceria com a sociedade podem contribuir imensamente para a efetiva proteção do ser humano contra a ocorrência de 664 ALEXY, op. cit., 2012. p. 445. 225 desastres. Logo, pode-se afirmar que a concretização dos direitos sociais exige uma atuação eficaz do Poder Público, bem como da implementação de políticas eficazes, a serem elaboradas e realizadas pelo Estado, em parceria com a sociedade civil. 665 No mesmo sentido tem-se que, para enfrentar os desafios ambientais, deve-se procurar ultrapassar a atuação estritamente legislativa passando-se a utilizar uma abordagem estratégica.666 Tal atuação visa aglutinar esforços em prol da proteção contra o risco de desastres hidrológicos e protegendo os direitos fundamentais dos indivíduos. A concretização do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental do ser humano exige, não apenas, o seu reconhecimento jurídico e a criação de normas específicas para sua proteção (com a aplicação de princípios correlatos), mas, também, exige uma reflexão sobre como assegurar a proteção dos direitos fundamentais em momentos de crise, tal como ocorre nas hipóteses de desastres hidrológicos. O decreto no 592, de 6 de julho de 1992, promulga, no Brasil, a obrigatoriedade de observância e cumprimento do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no âmbito do território brasileiro. Assim, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, determinou-se a necessidade de se criar condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais. Neste aspecto, frise-se que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana, sendo certo que não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado.667 É importante também mencionar que, mesmo na hipótese em que situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente (tal como ocorre nas hipóteses de estado de defesa e estado de sítio, entre outras) apesar do Estado poder adotar medidas extremas, tais medidas devem restringir-se ao mínimo exigido pela situação não podendo, em nenhuma hipótese, autorizar qualquer suspensão do direito à vida, liberdade, segurança e integridade física. Porém, fica a questão: como assegurar a proteção dos direitos fundamentais em momentos de desastre? Como conferir concretude e efetividade à proteção contra desastres? FLORES critica a concepção usual no sentido de que os direitos humanos se consubstanciariam no “direito a ter direitos”. Para ele, mais do que ter direitos é necessário discutir-se quais bens tais direitos devem garantir, além das condições materiais necessárias 665 SMANIO, op. cit., 2013. p. 3. SILVA, Solange teles da. Aspectos da futura política brasileira de gestão de resíduos sólidos à luz da experiência européia. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 8, n. 30, p. 61, abr./jun. 2003. 667 Cf. artigo 5, 2 do decreto no 592, de 6 de julho de 1992 666 226 para exigir ou colocar tais direitos em prática, bem como as lutas sociais que devem ser colocadas em prática para que se possa garantir um acesso mais justo para que todos possuam uma vida digna.668 Nesta mesma linha, BOBBIO entende que o problema central a ser enfrentado refere-se às medidas a serem implementadas para a efetiva proteção dos direitos fundamentais.669 Tal concretização exige a criação de condições que permitam o gozo de seus direitos civis e políticos, podendo-se falar em quatro grupos de direitos humanos: direitos referentes à segurança e integridade física e proteção contra agressão ou violência; direitos relativos às necessidades fundamentais da vida (alimentação e água); direitos relativos as outras necessidades de proteção econômica, social e cultural e; direitos referentes a proteção dos outros direitos civis e políticos (direito a documentos pessoais de identificação, o direito a participação política).670 Assim, a visualização da proteção contra desastres enquanto um direito fundamental do indivíduo pode contribuir para a redução dos efeitos dos desastres, na medida em que se passa a exigir do estado uma preocupação maior com a situação enfrentada e, consequentemente, uma maior atuação em relação aos desastres, contribuindo para sua concretização enquanto direito de tal natureza. Contudo, em que pese a importância do reconhecimento de tal atributo ao direito de proteção contra desastres, sua simples inclusão no rol de direitos fundamentais, não é suficiente para sua adequada proteção jurídica. Há, assim, a necessidade de atribuir-se maior eficácia e efetividade na sua tutela jurídica, possibilitando uma maior resiliência dos Municípios em relação a eventos dessa natureza, o que pode ser obtido por meio de políticas públicas, planejamento, participação popular e medidas concretas em prol da proteção contra desastres hidrológicos. Ademais, consoante assevera FLORES, os direitos fundamentais devem ser garantidos não apenas por meio de normas jurídicas, mas, também, por políticas públicas e por uma economia aberta às exigências da dignidade.671 4.5 A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO E DA PREVENÇÃO PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 668 FLORES, op. cit., p. 33 BOBBIO, op. cit., p. 37 670 HUMAN RIGHTS AND NATURAL DISASTERS. Operational Guidelines and Field Manual on Human Rights Protection in Situations of Natural Disaster. Washington, DC: Brookings-Bern Project on International Displacement, 2008. Disponível em: <http://www.brookings.edu/~/media/research/files/reports/2008/5/ spring%20natural%20disasters/spring_natural_disasters.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2013. 671 FLORES, op. cit., p. 39 669 227 Tratando-se de um direito fundamental do indivíduo, de caráter prestacional, a atuação estatal em defesa do mesmo é medida crucial para a efetiva proteção do indivíduo contra a ocorrência de desastres. Assim, as ações preventivas são, sem dúvida, as que podem trazer maiores benefícios para toda a sociedade, eis que evitam a ocorrência de desastres ou minimizam seus efeitos (na hipótese de não ser possível evitá-los). Segundo SILVA, em razão da incerteza científica, o princípio da precaução tem como objetivo direcionar o Poder Público e a sociedade a buscarem o conhecimento aprofundado do que já se sabe com vistas a desvendar o que ainda não se sabe. 672 As medidas preventivas constituem-se como ações relativas à prevenção de desastres, buscando promover a redução da vulnerabilidade de determinada comunidade ou região ao risco de desastres. Já as denominadas medidas recuperativas abrangem as ações de resposta e reconstrução, as quais encontram-se relacionadas com a reconstrução da situação de normalidade, isto é, referem-se ao momento do evento e após sua ocorrência. Segundo a Representante Especial da ONU para a Redução do Risco de Desastres, Margareta Wahlström, chefe da UNISDR (United Nations Office for Disaster Risk Reduction - Escritório da ONU para a Redução de Riscos de Desastres), o principal obstáculo para a prevenção de catástrofes é o reconhecimento de que os desastres ocorrem dentro de cenários previsíveis, razão pela qual as Nações devem planejar e estar preparadas para sua ocorrência.673 Assim, para a eficácia da proteção contra desastres é necessário que as ações sejam realizadas antes da ocorrência de desastres, de modo a preparar a população para lhe dar com um evento futuro. Neste aspecto, “a redução dos riscos de desastres gera muitos benefícios econômicos, ambientais e sociais”.674Logo, deve-se dar preferência para as ações de prevenção, em razão dos benefícios delas advindos. Fala-se, assim, em medidas preventivas. RIBEIRO ensina que o planejamento é um processo contínuo e dinâmico que tem como objetivo orientar a transformação da realidade atual, em rumos predeterminados. Assim, utilizando-se das informações existentes, passasse a analisar as possibilidades e alternativas, refletindo-se acerca do caminho a ser seguido. Segundo o mesmo autor, “os produtos 672 SILVA, Solange Teles da. Ato administrativo ambiental. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein. Os caminhos do ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 361. 673 Disponível em: <http://www.onu.org.br/onu-abre-inscricoes-ate-28-de-fevereiro-para-premio-de-incentivo-areducao-de-riscos-de-desastres/>. Acesso em: 01 nov. 2013. 674 RIO+20. op. cit. 228 resultantes do planejamento são os planos, isto é, propostas contendo os tipos de transformações pretendidas e como levá-las a efeito”.675 Deste modo, tem-se que o planejamento traduz-se em um conjunto de ações intencionais, coordenadas e orientadas para tornar realidade um objetivo almejado, de forma a antever situações e permitir a tomada de decisões com antecedência. Do mesmo modo, o planejamento urbano também deve levar em conta os serviços públicos urbanos a serem prestados, bem como a forma de otimizá-los, atendendo aos princípio da eficiência. E, para solucionar tais problemas deve o Poder Público planejar sua atuação, disciplinando a forma como o espaço urbano será utilizado. Do mesmo modo, observa-se que, na área ambiental, o planejamento é importante para a proteção, preservação, recuperação ou melhoria da qualidade do meio ambiente. Logo, o planejamento exerce função fundamental no controle dos riscos ambientais e dos problemas ambientais vividos em nossa sociedade e, para cumprir essa missão, vários aspectos precisam ser observados a fim de se impedir o surgimento (ou agravamento) de problemas ambientais decorrentes da falta e/ou da gestão inadequada por parte do Poder Público. Para isto é importante o alinhamento e inter-relação entre diversas políticas públicas na intervenção em caso de desastres naturais.676 A prevenção é constituída por um conjunto de ações que tem a finalidade de minimizar desastres pela avaliação de riscos de desastres e a redução das ameaças e/ou vulnerabilidades.677 No tocante à redução dos riscos, pode-se citar a redução da vulnerabilidade às secas e às estiagens, a redução das vulnerabilidades às inundações e aos escorregamentos em áreas urbanas, a redução da vulnerabilidade aos demais acidentes naturais e aos desastres humanos e mistos, entre outros. A simulação dos procedimentos executados durante desastres (e, entre eles, a emissão de alertas à população, o acionamento de sirenes, a retirada dos moradores de casas localizadas em terrenos vulneráveis e o cadastramento das famílias em abrigos) são medidas eficazes na preparação da população para agir em momentos de desastre. Assim, os treinamentos auxiliam a diminuir o índice de mortes em casos de desastres naturais, como enxurradas e deslizamentos. Tais ações terão simulação dos procedimentos executados durante desastres e, durante os procedimentos, os moradores são retirados das casas e 675 RIBEIRO, Benjamin Adiron. Noções de planejamento urbano. São Paulo: O Semeador, 1988. p. 57. LAVIEILLE, op. cit., p. 265. 677 LOPES, op. cit., 2009. p. 56. 676 229 direcionados para as rotas de fuga até um ponto de encontro. Depois seguem para um abrigo, onde participam de palestras. Reitere-se, finalmente que as ações preventivas e os programas de preparação para emergências e desastres devem ter prioridade sobre as ações de resposta aos desastres e de reconstrução, por se constituírem como medidas mais eficazes e menos onerosas. Neste sentido, “o princípio da precaução afirma a necessidade de uma nova postura, em face dos riscos e incertezas científicas”678 A adoção de ações ou medidas preventivas encontra-se diretamente relacionada aos princípios da precaução e da prevenção, ou de um princípio da prevenção lato sensu. O princípio da precaução tem como fundamento o fato de que, em razão da dificuldade em se reconstituir uma área que tenha sofrido um dano ambiental, deve-se evitar, ao máximo, que o dano chegue a ocorrer. Isso porque, em geral, a grande maioria dos danos causados ao meio ambiente são irreparáveis. É esta, aliás, a orientação traçada pela Declaração do Rio, a qual estabelece que quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis devem ser tomadas medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. (Princípio 15). Tal princípio tem como objetivo impedir o dano ambiental, ainda que sua ocorrência futura seja incerta, ou seja, sua aplicação deriva do fato de não se saber, ao certo, quais as consequências e reflexos que determinada conduta poderá gerar ao meio ambiente, por incerteza ou imprevisibilidade. Em trabalho específico sobre o tema, MARTINS679 defende que a implementação do princípio da precaução gira em torno de sete ideias fundamentais. Dentre elas destaque-se que, ainda que não existam provas científicas que estabeleçam um nexo causal entre uma atividade e os seus efeitos ao meio ambiente, devem ser tomadas as medidas necessárias para impedir a sua ocorrência; do mesmo modo, na hipótese de conflito entre interesses econômicos e interesses ambientais, deve-se adotar a decisão em benefício do ambiente. 678 SILVA, op. cit., 2004. p. 75. MARTINS, Ana Gouveia e Freitas. O principio da precaução no direito do ambiente. Lisboa: Associação Acadêmica Faculdade Direito Lisboa, 2002. 54-60. 679 230 CAVALCANTE680 ressalta que o princípio da precaução ambiental na Administração Pública se caracteriza por um sistema de estudos, devendo ser utilizado para atividades que possam causar significativo impacto adverso ao meio ambiente. Para MARTINS681 “o princípio da precaução deve ser assumido como um princípio jurídico-político orientador da política ambiental”, constituindo-se como um importante argumento para a atuação estatal na hipótese de inexistência de comprovação científica acerca do potencial de degradação em relação a determinado empreendimento ou obra. Nestas hipóteses, o princípio da precaução justifica-se em razão da relevância dos bens jurídicos tutelados, de tal forma que qualquer ameaça (ainda que não comprovada) em relação a tais bens deve ser combatida antes que possa vir a causar algum dano, razão pela qual a atuação estatal, com vistas à proteção do meio ambiente, há de ser exigida. Logo, o principio da precaução pode ser definido como “uma nova dimensão da gestão do meio ambiente na busca do desenvolvimento sustentável e da minimização dos riscos.”682 Paralelamente ao princípio da precaução (e a ele diretamente relacionado) tem-se o princípio da prevenção, o qual foi inserido na Declaração do Rio/92, devendo ele ser observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Tal princípio relaciona-se à ideia da existência de um perigo comprovado cientificamente ou facilmente previsível e que com ele guarda relação de causalidade, devendo-se eliminar tal risco.683 Importante deixar claro que, apesar de muitos autores utilizarem as expressões como sinônimas, o princípio da prevenção não se confunde com o princípio da precaução. Com base nesta característica, MILARÉ traça o principal fato diferenciador entre os referidos princípios. Segundo o citado autor, a prevenção trata de riscos ou impactos já conhecidos pela ciência, ao passo que a precaução se destina a gerir riscos ou impactos desconhecidos684. Para AMOY685, o princípio da prevenção refere-se ao perigo concreto, enquanto o da precaução refere-se ao perigo abstrato. Assim, no princípio da prevenção, as consequências de determinado ato são previamente conhecidas, devendo, portanto, ser evitadas. Já no princípio da precaução, a 680 CAVALCANTE, Sérgio Ribeiro. Princípio da precaução ambiental: uma diretriz política, constitucional, administrativa e jurisdicional nas presunções científicas. Monografia (Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Ambiental) - Faculdade SENAI de Tecnologia Ambiental, São Bernardo do Campo, 2006. p. 87. 681 MARTINS, op. cit., p. 93. 682 SILVA, op. cit., 2004. p. 84. 683 BARREIRA, Péricles Antunes. Direito ambiental. Goiás: Ibama, 2004. p. 19-31. 684 MILARÉ, op. cit., 2007. p. 142. 685 AMOY, Rodrigo de Almeida. A proteção do direito fundamental ao meio ambiente no direito interno e internacional. Disponível em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/ bh/rodrigo_de_almeida_amoy.pdf > Acesso em: 21 dez. 2008. 231 proteção decorre do fato de não se saber quais danos poderão ser causados ao bem jurídico tutelado. A diferença entre os referidos princípios também é apontada para FENSTERSEIFER686 para quem o princípio da prevenção traria consigo a ideia de conhecimento completo acerca dos efeitos de determinada intervenção no meio ambiente, ao passo que, o princípio da precaução possuiria um universo maior, por procurar atuar na proteção de um bem jurídico ambiental sobre o qual ainda não se sabe, com exatidão, quais serão as consequências danosas que podem vir a lhe ocorrer. Porém, não são todos os autores que fazem essa diferenciação. Ante o exposto, tem-se que a aplicação do princípio da prevenção (bem como do princípio da precaução) permite que a Administração Pública se antecipe à lesão ambiental e realize condutas atinentes à prevenção do dano, permitindo uma maior efetividade na proteção ao meio ambiente. Por esta razão passa-se a falar de um princípio da prevenção lato sensu, de modo a abranger essas duas vertentes. 4.6 PARTICIPAÇÃO POPULAR E EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Não obstante o planejamento e a prevenção sejam mecanismos úteis para a proteção contra desastres, a participação popular também se traduz como medida necessária para a adequada proteção desse direito fundamental, na medida em que amplia as possibilidades de ações com vistas à proteção dos moradores de determinada localidade sujeita à possibilidade de ocorrência de desastres naturais hidrológicos. Ademais, tratando-se de direitos fundamentais, a atuação do Estado e de todo o corpo social em sua proteção são medidas que podem potencializar tal proteção, garantindo sua real efetividade na proteção contra eventos dessa natureza. Acrescente-se, ainda, que a partir do momento em que o ser humano passa a ser visto como sujeito de direito, há um rompimento o modelo anterior, valorizando-se a participação 686 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 81-2. 232 ativa da pessoa humana na condução da sociedade e passando-se a ver o ser humano como razão final de toda a ordem social.687 A participação popular constitui-se como uma necessidade inerente à vida em sociedade. Durante todo o seu período de existência o indivíduo relaciona-se com os demais seres humanos, manifestando sua opinião e interferindo nas decisões do grupo. Assim, o denominado Estado da democracia participativa tem como pressuposto a ampliação da participação política, a qual acaba por conduzir “ao encorajamento da participação direta de indivíduos e cidadãos e à ampliação da representação política, para além da mera representação eleitoral.”688 Neste aspecto, o envolvimento da população atingida, por meio de uma atuação mais efetiva e participativa na busca de soluções para os problemas existentes, pode contribuir para uma maior proteção de seus direitos fundamentais. No que se refere à importância da participação popular na proteção dos direitos fundamentais, FLORES afirma: Não podemos entender os direitos sem vê-los como parte da luta de grupos sociais empenhados em promover a emancipação humana... Os direitos humanos não são conquistados apenas por meio das normas jurídicas que propiciam seu reconhecimento, mas, também, e de modo muito especial, por meio das práticas sociais de ONGs, de Associações, de Movimentos Sociais, de Sindicatos, de Partidos Políticos, de Iniciativas Cidadãs e de reivindicações de grupos... que de um modo ou de outro restaram tradicionalmente marginalizados do processo de positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas. 689 Tendo em vista os riscos em relação aos quais a população encontra-se sujeita na sociedade atual é necessário propiciar-se ao cidadão condições de atuar de forma efetiva em relação à proteção contra desastres. Neste contexto, ganha relevância a participação popular, enquanto mecanismo para mitigar a mudança climática.690 Contudo, parafraseando BECK e GIDDENS, NUNES e SERRA esclarecem que a ciência, a tecnologia e o conhecimento especializado tendem a gerar novas formas de incerteza e de risco, cujas consequências acabam afetando de forma desproporcional os cidadãos. Assim, cidadãos “comuns” acabam sendo excluídos da participação efetiva nos debates e deliberações relacionadas a esses 687 LOPES, op. cit., op. cit., 2003. p. 196. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente no direito brasileiro. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 75. 689 FLORES, op. cit., p. 77 690 GIDDENS, op. cit., 2010. p. 26. 688 233 “riscos manufaturados”.691 E, para proteger-se os direitos dessa comunidade, a participação popular deve ser incentivada e estimulada. Assim, a participação popular, por meio de suas diversas formas de manifestação, encontra assento na ordem constitucional, caracterizando-se como direito fundamental. Deste modo, o direito de participação passa a ser visto como uma forma de democratização da Administrativa Pública. Ademais, o direito de participação, segundo Marcos Augusto Perez é inerente ao Estado Democrático de Direito. Com efeito, aduz o autor: Ora, se o administrado possui o direito de requerer da Administração informações que lhe interessam particularmente e de peticionar ao Poder Público contra ilegalidades ou abusos, como forma de garantia de sua liberdade individual, tem esse mesmo administrado, por outro lado, numa dimensão coletiva, o direito de participar da tomada de decisões da Administração Pública, exercitando o direito de receber informações que sejam do interesse da coletividade e de apresentar suas sugestões, críticas, protestos, em prol do interesse geral, obtendo as respectivas respostas e uma decisão administrativa devidamente motivada”. 219 Frise-se, por oportuno, que o Estado Democrático de Direito caracteriza-se em função da participação dos cidadãos, ou seja: pela possibilidade conferida ao particular de, individual e pessoalmente, influenciar na administração, gestão, controle e decisões do Estado, como decorrência do princípio democrático.692 Como bem salienta SILVA693 “O próprio sistema constitucional estabeleceu a participação popular indireta como regra, prevendo expressamente as hipóteses em que a participação direta seria necessária ou admitida, tudo em consonância com o sistema democrático e os princípios de direito público consagrados constitucionalmente”. Discorrendo sobre a Poliarquia Diretamente Deliberativa defendida por Cohen, FARIA destaca as possibilidades de operacionalização do pressuposto deliberativo em sociedades, partindo da ideia de que “é possível institucionalizar soluções de problemas 691 NUNES, João Arriscado; SERRA, Nuno. Casas decentes para o povo: movimentos urbanos e emancipação em Portugal. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 258 692 SOARES, Evanna. A audiência pública no processo administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 229, p. 263. 693 SILVA, Alessandra, op. cit., 2010. 234 diretamente pelos cidadãos e não simplesmente promover a discussão informal com promessas de influências possíveis na arena política formal.”694 A participação popular constitui-se como um dos fundamentos do Estado Democrático, na medida em que corresponde ao exercício de cidadania proativa. Isso porque, no Estado Democrático de Direito, a participação do particular se dá na própria gestão e controle da Administração Pública. Segundo DI PIETRO695 “É nesse sentido que a participação popular é uma característica essencial do Estado de Direito Democrático, porque ela aproxima mais o particular da Administração, diminuindo ainda mais as barreiras entre o Estado e a Sociedade” TÁCITO também defende que o Direito administrativo contemporâneo caminha rumo ao abandono da vertente autoritária e, consequentemente, para a valorização da participação de seus destinatários finais na formação da conduta administrativa.696 Assim, quando se fala em democracia participativa e papel do cidadão há que se mencionar a gestão democrática das cidades, estabelecida no Estatuto da Cidade. Neste aspecto, tem-se que a gestão democrática, apesar de mencionada em outros capítulos do referido Estatuto, é objeto de análise específica no capítulo IV, artigos 43, 44 e 45. Com relação à gestão, contudo, é necessário observar que tal termo abrange tanto a participação política direta e indireta dos cidadãos na formulação das políticas urbanas quanto o controle social. Assim, a gestão democrática das cidades implica na “participação dos seus cidadãos e habitantes nas funções de direção, planejamento, controle e avaliação das políticas urbanas.”697 Do mesmo modo, o Estatuto também previu a gestão orçamentária participativa, a ser realizada por meio de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual.698 Tem-se, assim, que o Estatuto da Cidade criou uma serie de instrumentos destinados a permitir a participação da população no processo de tomada de decisões. Dentre eles, temos: os órgãos colegiados de 694 FARIA, Cláudia Feres. Democracia deliberativa: Habermas, Cohen e Bohman. Lua Nova: revista de cultura e política, São Paulo, n. 50, 2000. 695 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação popular na administração pública. Revista de Direito Administrativo, p. 32, n. 191. 696 TACITO, Caio. Direito administrativo participativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 209, p. 2. 697 BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão democrática da cidade. In: ESTATUTO da cidade: comentários à lei federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 336. 698 Destaque-se qua a realização de debates, adiências e consultas públicas constitui-se como condição obrigatória para a aprovação do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual pela Câmara Municipal, nos termos do art. 44 do Estatuto da Cidade. 235 política urbana; os debates, audiências e consultas públicas; as conferências sobre assuntos de interesse urbano; e a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Observe-se, entretanto, que tal rol é meramente exemplificativo. Aliás, MARTINS JÚNIOR preleciona: Os instrumentos de participação e gestão democrática da cidade (previstos no rol exemplificativo do art. 43) são institutos de participação orgânica não corporativa, que abarcam todas as matérias relacionadas ao desenvolvimento urbano, ordenação do uso e ocupação do solo urbano, políticas urbanas, serviços públicos, etc.699 Procurando prestigiar a participação popular no processo de tomada de decisão, tem-se que esta foi expressamente prevista no Estatuto da Cidade, o qual obriga a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade no processo de elaboração do Plano Diretor e na fiscalização de sua implementação. Assim, tem-se que tais questões podem e devem ser discutidas nos movimentos populares, entidades de classes, universidades, de modo a criar-se políticas sociais articuladas envolvendo os diversos atores envolvidos.700 Importante ressaltar que as audiências públicas determinadas pelo Estatuto da Cidade, no processo de elaboração de Plano Diretor têm por finalidade informar, colher subsídios, debater, rever e analisar o conteúdo do Plano Diretor Participativo. Com isso, o processo de elaboração, implementação e execução do Plano Diretor passa a ser participativo, nos termos dos artigos 40, § 4º e 43, ambos do Estatuto da Cidade. Tal participação é importante na medida em que possibilita que o cidadão expresse sua opinião ao Poder Público, apresentando novas opções de atuação. Do mesmo modo, o Estatuto exige a audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente ou sobre o conforto ou a segurança da população. Assim, tem-se que o estatuto possibilita a participação dos vários seguimentos 699 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Participação popular no estatuto das cidades. Temas de Direito Urbanístico, São Paulo, n. 4, p. 264, 2005. 700 ROGUET, op. cit., 2013. p. 320. 236 sociais preocupados com a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável das cidades.701 Dentre as formas de participação popular, cite-se a coleta de opinião, por meio da qual possibilita-se à Administração valer-se dos meios de comunicação em geral para recolher subsídios, em forma de tendências, preferências e de razoes, dos segmentos sociais interessados na decisão.702 Há, também, o debate público, no qual a participação dos interessados é mais intensa, possibilitando-se à Administração não apenas conhecer as tendências, preferências e razoes dos interessados como abrir uma instancia de negociação. Outro instrumento de participação popular consiste na audiência pública, a qual (da mesma forma que o debate público) amplia a participação dos interessados na decisão, inclusive com instância de negociação. Contudo, a audiência pública submete-se a maior “formalidade processual” podendo servir tanto a uma atuação coadjuvante como a uma atuação determinante por parte de interessados regulamente habilitados à participação. Neste sentido, a audiência pública pode ser conceituada como um procedimento de consulta à sociedade ou a grupos sociais interessados em determinada questão ambiental. 703 No mesmo sentido, MOREIRA NETO explica a noção de audiência pública da seguinte forma: O instituto da audiência pública é um processo administrativo de participação aberto a indivíduos e a grupos sociais determinados, visando ao aperfeiçoamento da legitimidade das decisões da Administração Pública, criado por lei, que lhe preceitua a forma e a eficácia vinculatória, pela qual os administrados exercem o direito de expor tendências, preferências e opções que possam conduzir o Poder Público à decisões de maior aceitação consensual704. As audiências públicas possuem diversas vantagens, na medida que são canais de participação direta da população, garantindo-se o exercício do direito de informação e de manifestação de pensamento a respeito de assuntos determinados, com vistas a informar e a 701 COUTINHO, op. cit., 2010. p. 155. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 231, p. 148, 2003. 703 MILARÉ, op. cit., 2007, p. 964. 704 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Audiências públicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 210, p. 14, out./ dez. 1997. 702 237 orientar os órgãos públicos nas tomadas de decisões políticas e administrativas705. Uma das vantagens da audiência pública refere-se ao fato da participação popular contribuir para a tomada de decisão por parte da Administração Pública; do mesmo modo, a audiência pública propicia maior transparência do procedimento administrativos, além de apresentar um forte conteúdo pedagógico, como técnica social de acesso ao poder e de exercício do poder.706 Com a audiência pública surge um novo espaço para interlocução e debates. BUCCI destaca que tais espaços possuem uma legitimidade substantiva, que lhes dá amparo. 707 Tal interlocução é importante, pois permite que os participantes obtenham maiores informações sobre a situação existente, bem como conheçam melhor os posicionamentos e problemas enfrentados pelos demais atores envolvidos. Não raras vezes, os projetos desenvolvidos para determinada região não são executados em razão da existência de problemas de natureza orçamentária, financeira ou jurídica. Do mesmo modo, a falta de adesão popular aos projetos acaba dificultando a sua efetivação. Assim, tais espaços de discussão acabam exercendo um caráter pedagógico e socializador. Neste sentido, ressalte-se o caráter pedagógico das audiências públicas em razão de propiciarem uma real oportunidade de conscientização e educação da população sobre as diretrizes e políticas públicas.708 Há, ainda, que se observar as conferências sobre assuntos de interesse urbano e a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, que também se constituem como medidas atinentes à ampliação da participação popular. Ademais, o desenvolvimento includente requer a garantia do exercício dos direitos civis cívicos e políticos.709 Contudo, não obstante as diversas formas de participação popular existentes no Estatuto da Cidade e em outros diplomas normativos, parte da doutrina destaca a existência de diversos empecilhos para a ampliação da participação popular. Neste sentido, DI PIETRO afirma que a Constituição de 1988 trouxe alguns avanços no que se refere à participação 705 DIAS, Solange Gonçalves. Democracia representativa x democracia participativa: participação popular no plano local e emergência de um novo paradigma democrático. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p.148. 706 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 20007. p. 211. 707 BUCCI, op. cit., 2010. p. 344. 708 OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. As audiências publicas e o processo administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 209, p. 153-67, jul./set. 1997. 709 SACHS, op. cit., p. 81. 238 popular na gestão e no controle da Administração Pública. Porém, segundo a autora, há vários problemas que dificultam o avanço de tal participação, eis que muitos dos instrumentos de participação encontram-se previstos em normas programáticas, acrescentando o desinteresse de grande massa da população, a qual encontra-se preocupada com a própria sobrevivência, além do desinteresse do Poder Público em implantar esses mecanismos participativos.710 Como justificativa para os entraves que dificultam a implantação de mecanismos efetivos de participação ALCÁZAR aponta o desinteresse dos próprios políticos, os quais, ao assumirem o poder não têm interesse no surgimento de novos grupos participativos que poderiam estabelecer poderes rivais aos interesses daqueles.711 Contudo, na medida em que a proteção do ser humano e a manutenção da dignidade da pessoa humana constitui-se como direito fundamental do indivíduo, a participação popular na tutela de tais direitos deve ser incentivada e fomentada pelo Poder Público. Aliás, com a constitucionalização da proteção do meio ambiente, enquanto direito fundamental do indivíduo, surge para o particular o dever de preservar e defender o meio ambiente. 712 E, para que haja a efetiva participação da sociedade na proteção contra desastres é necessário garantir-se que esta tenha acesso à informação e educação ambiental, sob pena de não ter condições de desempenhar seu papel em defesa dos direitos fundamentais. Assim, o acesso à informação constitui-se como um requisito essencial para que os cidadãos tenham condições de se defender e se preparar em relação à ocorrência de determinado desastres. Ademais, o acesso à informação encontra-se incluído entre os direitos e garantias fundamentais, expressos no art. 5º da Constituição Federal, in verbis: XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional (...) XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. O princípio da informação permite que toda pessoa obtenha do Estado informações relativas ao meio ambiente. Assim, qualquer interessado pode participar em questões relativas 710 DI PIETRO, op. cit., p. 38. ALCÁZAR, Mariano Baena. Curso de ciência de la administración. Madri: Tecnos, 1985. p. 392. 712 LEMOS, op. cit., 2011. p. 47. 711 239 à defesa e/ou proteção do meio ambiente713. Tal princípio objetiva fazer com que toda a sociedade tenha conhecimento acerca da exata situação ambiental, abrangendo tanto a sua preservação quanto a sua degradação. O acesso às informações relativas ao meio ambiente foi previsto pela Declaração do Rio em seu Princípio 10. O direito à informação ambiental se justifica em razão do direito conferido a todos os cidadãos de viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Tal direito se encontra previsto na lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, a qual permite que qualquer pessoa legitimamente interessada tenha acesso aos resultados das análises efetuadas pelos órgãos responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, bem como das respectivas fundamentações. Ademais, o meio ambiente constitui-se como um direito fundamental, pertencente a toda sociedade, de tal modo que, devem os cidadãos ter acesso a todas as informações relacionadas à proteção desse bem jurídico. Neste aspecto, recorde-se, ainda, que a informação ambiental é um pré-requisito para que determinada comunidade tenha condições de se manifestar acerca de determinado evento ambiental. Por esta razão, MACHADO714 destaca que a informação ambiental deve ser transmitida de forma a possibilitar tempo suficiente para que os interessados possam analisar a matéria e agir em defesa de seus direitos, procurando a Administração Pública ou mesmo o Judiciário. No âmbito do direito de proteção contra desastres, observa-se que o direito à informação também foi assegurado às pessoas vítimas de desastres, encontrando-se prevista nos princípios Orientadores Sobre os Deslocados Internos. Segundo consta, as pessoas atingidas por desastres devem receber informações relacionadas aos motivos e procedimentos para tal deslocamento, bem como aquelas relacionadas ao realojamento, caso este venha a ser necessário. Do mesmo modo, as autoridades competentes devem esforçar-se para envolver as pessoas afetadas nas ações relacionadas ao planeamento e gestão do seu realojamento. Paralelamente ao princípio da informação, tem-se o princípio da educação ambiental, o qual se constitui como um dever do Poder Público em relação à sociedade. Aliás, uma das obrigações impostas ao Poder Público em relação ao meio ambiente refere-se à promoção da educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente (art. 225, §1º, VI). Neste sentido, SILVA entende que o principio da informação em matéria ambiental, bem como o principio da participação dos 713 Neste aspecto, lembre-se que a lei de ação civil pública (lei nº 7.347/85) permite que associações, obedecidas as exigências legais, promovam ações de prevenção e reparação de atos lesivos ao meio ambiente 714 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 94. 240 cidadãos nos processos decisórios constituem a melhor maneira de se trataras questões ambientais.715 No que se refere à educação ambiental observe-se que, segundo disposto na lei 9.795/99, esta se refere aos processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à qualidade vida e sua sustentabilidade. Assim, a fim de propiciar a adequada proteção ao meio ambiente, a Constituição Federal de 1988 também estabeleceu que a educação ambiental deverá fazer parte dos currículos escolares, conscientizando-se a sociedade acerca da necessidade de preservação do meio ambiente. A definição legal deixa claro que, por meio da educação ambiental, pretende-se formar uma consciência ambiental, de modo a propiciar o melhor gerenciamento e utilização dos recursos ambientais em benefício da humanidade. Segundo LANFREDI716, o modelo de educação ambiental criado “propõe posturas de integração e participação, de tal maneira que cada pessoa é incentivada a exercitar sua cidadania em plenitude”. No mesmo sentido, LEMOS ressalta que a solução para o problema da não efetividade da proteção ambiental, não pode advir apenas do Poder Público ou da norma. Para ela é fundamental que haja um maior engajamento da sociedade neste sentido, destacando a importância da educação ambiental nesse processo. 717 Observe-se, por oportuno, que a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei 9.394/96) inseriu a educação ambiental em sua proposta de Parâmetros Curriculares Nacionais, passando a fazer parte do currículo do ensino Fundamental. Tais medidas visam conscientizar os cidadãos acerca da importância da proteção do meio ambiente, face às consequências danosas que a sua violação pode trazer a todos os seres vivos. Sobre o tema, FREITAS718 afirma que a educação ambiental é o mais eficaz meio preventivo de proteção ao meio ambiente. Em sede de direito dos desastres registre-se que a lei 12.608/12 incluiu um parágrafo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para o fim de estabelecer que “os currículos do 715 SILVA, op. cit., 2003. p. 52. LANFREDI, Geraldo Ferreira. Política ambiental: busca de efetividade de seus instrumentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 142. 717 LEMOS, op. cit., 2011. p. 167. 718 FREITAS, op. cit., p. 66. 716 241 ensino fundamental e médio devem incluir os princípios da proteção e Defesa Civil e a educação ambiental de forma integrada aos conteúdos obrigatórios”.719 Tal inclusão visa estimular uma cultura de prevenção em relação a desastres, propiciando a reeducação do cidadão em relação a questões ambientais. Neste aspecto, observe-se que a falta de educação ambiental, em grande parte da população, constitui-se como agravante para a ocorrência de eventos naturais negativos, pois os depósitos de lixo em lugares inadequados ou às margens de rios causam entupimento de córregos, de bueiros e, consequentemente, o assoreamento de leito dos rios.720 Porém, não basta que haja acesso da informação à coletividade. É necessário que essa tenha condições de compreender o significado daquelas informações, bem como que haja instrumentos jurídicos para que esta possa buscar a proteção de seus direitos, na hipótese de abuso, violação ou mesmo de má utilização dos recursos disponibilizados. Assim, é necessário que o cidadão deixe de ser visto como simples vítima de um desastre. Todos têm direitos e deveres relacionados com a segurança da comunidade contra desastres e é preciso obedecer e respeitar tais direitos e deveres. O cidadão possui direito à incolumidade e à vida e deve agir para a garantia de tais direitos. Concluindo, tem-se que a preocupação com a prevenção de desastres deve ser uma tarefa de toda a comunidade, de tal forma que a proteção contra desastres, enquanto direito fundamental, exige um melhor aprimoramento do Estado em termos de planejamento e políticas públicas, sob pena de ineficácia da proteção do direito de proteção contra os desastres. Do mesmo modo, o cidadão, enquanto membro da coletividade, precisa colaborar para a efetivação desse direito, sendo certo que, para que o indivíduo possa, de fato exercer sua cidadania e participar do processo de tomada de decisão em questões ambientais e/ou urbanísticas, bem como contribuir significativa na proteção contra desastres, é necessário que o Estado propicie condições materiais para que os indivíduos exerçam esse direito. Assim, o cidadão deve “esforçar-se na conquista desse direito fundamental, agindo ativamente nas atividades ligadas à tutela do meio ambiente”.721 Tais ações são importantes, na medida em que possibilitam a atuação do cidadão no processo de tomada de decisão e contribuem para a proteção dos direitos fundamentais, pertencentes a toda a sociedade, nos quais a proteção contra desastres hidrológicos encontrase inserida. Ademais, a participação popular propicia o desenvolvimento da cidadania e da 719 Cf. art. 26, §7º, da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 PEITER, op. cit., p. 69. 721 DUARTE, Tiago Vieira de Sousa. A responsabilização civil do dano ambiental futuro. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, Goiânia, 2011. p.42. 720 242 conscientização, instrumentos úteis para o surgimento de uma cultura de proteção e prevenção contra desastres “naturais” hidrológicos. 243 CONCLUSÕES O ser humano interage cotidianamente com o meio ambiente e essa interação tem causado, além do crescimento econômico e do surgimento de novas tecnologias, impactos negativos para toda a sociedade, tais como o agravamento dos efeitos decorrentes da mudança climática, os quais tem se intensificado nas últimas décadas e contribuído para o aumento dos riscos aos quais essa sociedade encontra-se sujeita. Do mesmo modo, com o crescimento do capitalismo, criou-se um campo propício para o surgimento e solidificação de uma sociedade de risco, na qual a mesma passa a conviver com ameaças de eventos negativos e prejudiciais, decorrentes do seu desenvolvimento. Contudo, observa-se que esses eventos negativos não atingem todos os indivíduos de forma igualitária, sendo certo que as comunidades economicamente hipossuficientes são mais vulneráveis aos efeitos decorrentes de eventos climáticos negativos. Tal vulnerabilidade decorre, dentre outros fatores, da falta de conhecimento e informação sobre os riscos aos quais essa comunidade encontra-se sujeita, bem como em razão da falta de estrutura dessa comunidade para prevenir-se e proteger-se contra a ocorrência de desastres. Acrescente-se, ainda, o despreparo do poder público para atuar na proteção dessa comunidade, em razão da falta de políticas públicas específicas voltadas para uma maior resiliência dessa comunidade, bem como em razão da falta de planejamento e de implementação de ações preventivas que possam, de fato, proteger os cidadãos. Para mitigar os efeitos decorrentes dos riscos aos quais essa comunidade encontra-se sujeita, desenvolvimento econômico e proteção ambiental devem caminhar juntos, de modo a garantir-se um desenvolvimento sustentável, que permita ao ser humano suprir suas necessidades sem por em risco os bens jurídicos ambientais. Assim, faz-se necessária a criação de políticas públicas preocupadas com estes aspectos. Os desastres, a depender de sua intensidade e consequências, podem acarretar danos de considerável magnitude e dar causa a situações excepcionais, tais como a situação de emergência ou o estado de calamidade pública e, em situações mais críticas, o estado de defesa e o estado de sítio. Do mesmo modo, os desastres “naturais” (com destaque para os desastres hidrológicos) continuarão a existir, tendo em vista tratar-se de fenômenos inerentes à natureza. Acrescente-se, também, que em razão do aumento populacional, com a 244 subsequente necessidade de mais áreas para edificação de moradias, plantio de alimentos, pastagens de animais, indústrias, etc. a intervenção do ser humano na natureza será cada vez maior, o que aumentará, ainda mais os efeitos da mudança climática, contribuindo para a ocorrência de desastres hidrológicos, dentre outros. O crescimento populacional e o desenvolvimento econômico trazem consigo uma outra consequência relevante, qual seja: o surgimento de núcleos habitacionais em locais impróprios, com condições de habitabilidade precárias e com maior probabilidade de ocorrência de desastres, surgindo as chamadas áreas de risco.Tais fatores fazem com tais desastres tendem a se tornar cada vez mais frequentes e com maior intensidade, fazendo-se necessário buscar instrumentos e alternativas que possam contribuir para a proteção do indivíduo, enquanto sujeito de direitos. No âmbito legislativo, observa-se que o legislador entendeu que a competência para legislar sobre calamidades públicas (incluindo-se os desastres hidrológicos) encontra-se relacionada à proteção de um interesse geral (e não regional ou local). Assim, tal competência foi atribuída à União, cabendo a ela a implantação de uma política nacional voltada para a proteção dos cidadãos face o risco da ocorrência de desastres. No que se refere aos danos decorrentes de desastres, observa-se que a não regulação antecipada dos riscos pelo direito (e, em especial, pelo direito fundiário, urbanístico e ambiental), tem contribuído para a eclosão de desastres com maior frequência e com consequências de grande magnitude. Para tanto, é necessário conscientizar governo e população acerca dos benefícios advindos da implementação de medidas preventivas como instrumento protetivo. Quanto mais cedo medidas dessa natureza forem adotadas, maiores serão as chances de efeitos positivos, reduzindo o número de perdas humanas e materiais. As consequências decorrentes da eclosão de um desastre costumam atingir propoções enormes, causando prejuízos econômicos, materiais e, também, humanos. Proteger o cidadão contra os efeitos decorrentes de um desastre constitui-se em medida essencial para a manutenção da dignidade da pessoa humana. Assim, sob a ótica da teoria dos direitos fundamentais observa-se que a proteção contra desastres hidrológicos possui todas as características inerentes aos direitos fundamentais. Trata-se de um direito atribuído universalmente a todos os seres humanos e reconhecido pelo ordenamento jurídico. Ademais, a Constituição Federal optou por explicitar sua preocupação em relação à proteção contra as 245 calamidades públicas, com destaque para as secas e as inundações, muito embora o rol de direitos fundamentais mencionados na Constituição Federal seja meramente exemplificativo. Observe-se, ainda, que os direitos fundamentais são dotados de uma série de características que se encontram presentes na proteção contra desastres hidrológicos. Assim, não é possível para o indivíduo que se encontre sujeito ao risco da ocorrência de um desastre dispor, renunciar ou alienar seu direito à proteção. Trata-se de um direito de conteúdo extrapatrimonial, imprescritível, inviolável, vitalício, oponível erga omnes, intransmissível, indivisível e irrevogável do indivíduo. Do mesmo modo, para que tal direito seja respeitado e exercido de forma efetiva, possui ele uma serie de outras características, consubstanciadas na proibição de retrocesso, autoaplicabilidade, complementariedade, interdependência e não taxatividade. O direito de proteção contra desastres constitui-se como um direito fundamental do indivíduo e que, portanto, deve ser tutelado e protegido pelo Estado. Aliás, o fato de um direito possuir o atributo de “fundamental” dá ao seu titular o direito de obrigar o Estado e os demais indivíduos a respeitarem tal direito. Ressalte-se que a defesa da inclusão da proteção contra desastres enquanto direito fundamental do indivíduo decorre do fato desta possuir as características inerentes a essa categoria jurídica e, também, em razão da sua íntima ligação com a proteção da dignidade da pessoa humana. Acrescente-se, ainda (no caso dos desastres hidrológicos) o tratamento dado pela Constituição Federal a essa modalidade de calamidade, exigindo-se uma preocupação especial por parte do ente público. Tem-se, assim, a emergência do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental autônomo e diretamente relacionado a outros direitos fundamentais, tais como o direito à vida, o direito à moradia, o direito à saúde, à qualidade de vida, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à assistência aos desamparados. Logo, tratando-se de um direito fundamental do ser humano, surge para o Estado uma série de deveres relacionados à sua proteção. A proteção contra desastres “naturais” hidrológicos guarda íntima relação com o direito à moradia digna, saúde e qualidade de vida, constituindo-se, portanto como um direito fundamental em suas diversas acepções e formas de visualização. Acrescente-se, ainda, que tal direito pode ser observado enquanto direito fundamental em todas as suas dimensões, justificando a atuação estatal em relação a ele. Neste aspecto, a Administração Pública não pode imiscuir-se do seu papel de gestor dos interesses da coletividade, devendo atuar de modo a possibilitar a adequada proteção do direito fundamental de proteção contra desastres. Para 246 tanto, os governos devem ter como meta a proteção contra a ocorrência de desastres e, principalmente, a redução do número de vítimas de tais eventos. E, para o atingimento de tal objetivo, faz-se necessário o estabelecimento de um plano de ação no qual sejam inseridas ações preventivas em seus programas de governo, por meio de políticas públicas previamente planejadas e voltadas para a proteção contra desastres, segundo os princípios que regem os direitos fundamentais. Dadas as características e circunstâncias relacionadas aos desastres, tem-se que o Estado não consegue, sozinho, desempenhar de forma satisfatória as atividades de proteção e Defesa Civil. É necessário que as diferentes esferas administrativas (União, EstadosMembros, Distrito Federal e Municípios) juntem-se ao voluntariado na busca da prestação de um serviço público mais eficiente e com maior qualidade. Assim, o Brasil precisa desenvolver uma estrutura administrativo-operacional e logística em preparação e resposta a desastres naturais, da mesma forma que os países desenvolvidos têm realizado. Para evitar a ocorrência de desastres é necessária uma ação governamental efetiva (por meio de medidas de possibilitem inclusão social, educação, segurança, estímulo à participação comunitária, construção de habitações adequadas e longe de áreas de risco) além de políticas públicas que estimulem o fortalecimento das capacidades locais de enfrentamento dos problemas relacionados aos desastres, criando comunidades resilientes. Neste aspecto, a fiscalização e regulamentação dos locais nos quais a construção de moradias não se apresenta viável constitui-se como importante mecanismo de combate aos desastres “naturais” hidrológicos. Isso porque, tratando-se de locais nos quais a possibilidade de eventos nocivos é mais provável, deve-se impedir a realização de edificações nestes locais, ou então, deve-se – primeiramente – adotar as medidas urbanisticoambientais necessárias para mitigar os riscos de desastres nos locais que não possuam a infraestrutura adequada para impedir a ocorrência de desastres ou mitigar-lhes os efeitos. Do mesmo modo, para que os desastres possam ser evitados ou, pelo menos, minimizados, é necessário que a população se encontre informada e preparada para enfrentálos. E, para isso, deve o Poder Público investir mais eficientemente em políticas públicas preventivas, o que somente será possível com planejamento e adoção de medidas que impeçam o surgimento (ou agravamento) dos riscos de desastres. Em outras palavras: é necessário formular estratégias de longo prazo para fazer frente aos desafios advindos das mudanças climáticas e demográficas. 247 Nesta perspectiva, é fundamental o envolvimento da população nesse processo, de modo a ter-se, de fato, uma gestão democrática dos riscos decorrentes do desenvolvimento e dos efeitos da mudança climática, dentre outros fatores. Tal gestão democrática implica na união dos diversos setores envolvidos na busca de alternativas viáveis e eficazes na proteção contra desastres e desenvolvimento da cidadania. Desta forma, tem-se que, no que se refere à participação popular, o Poder Público deve realizar e incentivar atividades de educação ambiental, com o objetivo de conscientizar a população acerca da importância da proteção ao meio ambiente e da atuação dos cidadãos nas ações a ela relacionadas. Assim, para que tal participação da sociedade na proteção do meio ambiente seja efetiva é necessário que esta tenha acesso à informação e educação ambiental, além da possibilidade efetiva de se manifestar e atuar como protagonista na proteção contra desastres hidrológicos. É necessário que a população tome consciência acerca de seu papel na prevenção a acidentes e desastres naturais, adotando uma postura proativa em sede de proteção e Defesa Civil. Em relação ao Poder Público, o Município é o ente responsável pela execução e atuação direta em sede de desastres, a teor do descrito no artigo 182 da Constituição Federal. Logo, o Município constitui-se como figura essencial neste processo, eis que compete a ele executar as principais políticas públicas relacionadas à proteção contra desastres. Assim, deve-se fornecer aos Municípios condições técnicas que lhes permitam aperfeiçoar o planejamento da expansão urbana, bem como fazer o adequado mapeamento de desastres, estabelecendo protocolos de resposta a eles, criando e aprimorando procedimentos de monitoramento e emissão de alertas. Do mesmo modo, o poder de polícia (enquanto mecanismo destinado a limitar e regular o exercício de direitos por parte dos cidadãos) deve ser utilizado, de modo a coibir ações que possam vir a contribuir para a ocorrência de desastres, tais como a prática de condutas em desacordo com as regras urbanísticas ou que possam causar danos ao meio ambiente, contribuindo para a eclosão de desastres hidrológicos. Observa-se, assim, que o Município tem papel fundamental na defesa da população em sede de desastres hidrológicos, bem como na “construção” de cidades mais resilientes a eventos dessa natureza. Assim, é necessária a existência de um órgão de proteção civil local forte e estruturado, que possibilite a proteção dos direitos fundamentais do indivíduo em situações de calamidade. Do mesmo modo, é necessário que os diversos órgãos e secretarias discutam medidas preventivas que possam colaborar para evitar a ocorrência de desastres 248 hidrológicos. Tais medidas podem abranger obras estruturais, políticas públicas específicas, campanhas comunitárias voltadas para a conscientização da população, etc. Sob outra ótica, é essencial que os Municípios contem com o apoio dos demais entes federados para o adequado desempenho de tal função, o que pode se dar por meio de auxílio tecnicofinanceiro e parcerias que possibilitem uma atuação mais efetiva do ente público municipal nessa seara. No que se refere ao tratamento jurídico dado ao tema “desastres”, observa-se que, apesar da relevância de tal direito, a proteção contra desastres encontra-se, atualmente, como um mero capítulo ou apêndice de outros ramos jurídicos (tais como o Direito Constitucional, o Direito Administrativo, o Direito Ambiental e o Direito Urbanístico). Assim, por não possuir, ainda, estruturação jurídica e dogmática suficientes, que possam elevá-lo ao status de ramo autônomo do Direito, o direito de proteção contra desastres tem extraído seus princípios de outros ramos do Direito que lhe são mais próximos, utilizando-se dessas e outras fontes jurídicas para se estruturar e buscar fundamentos que permitam um melhor tratamento jurídico das questões jurídicas relacionadas aos desastres hidrológicos. Realizar pesquisas sobre o tema, tratando a proteção contra desastres enquanto direito fundamental do ser humano, constitui-se como medida primordial, de modo a contribuir para que o tema passe a ser tratado pelo Poder Público e pela sociedade com a relevância que lhe é inerente. Do mesmo modo, o direito de proteção contra desastres possui relação com diversos ramos do conhecimento (jurídico e extrajurídico) tendo em vista que a proteção contra desastres se relaciona a questões sociais, econômicas, urbanísticas, geográficas, etc. Tratando-se de direito fundamental do ser humano, a proteção contra desastres exige a união do Poder Público, da sociedade em geral e do cidadão individualmente considerado, com vistas à redução do número de vítimas (mortos, desabrigados, desalojados e afetados) de um desastre hidrológico. Nesta perspectiva, a atuação deve se dar nas mais diversas vertentes, garantindo-se a efetividade da proteção desse direito fundamental. Os direitos sociais e econômicos, vistos durante muito tempo como normas meramente programáticas, lidos a partir da teoria em estudo, passam a ser encarados como normas dotadas de eficácia, de tal forma que geram deveres e obrigações para as autoridades públicas, as quais devem agir de forma a proteger de forma efetiva o direito fundamental de proteção contra desastres, enquanto direito fundamental do ser humano. 249 É preciso reduzir-se os riscos de desastres através de esforços sistemáticos na busca de alternativas aptas a combater os fatores causais dos desastres. Assim, a redução da exposição a riscos, diminuindo a vulnerabilidade de pessoas e bens, a gestão prudente da terra e do meio ambiente e a melhoria dos sistemas de monitoramento e alerta, permitindo-se uma atuação precoce em relação a eventos a adversos, são exemplos de ações voltadas para a redução do risco de desastres, as quais, entretanto, não excluem outras medidas que possam contribuir na proteção deste direito fundamental. As alternativas aqui apresentadas visam contribuir para a efetiva proteção contra os desastres, enquanto direito fundamental do ser humano, garantindo-se a manutenção da dignidade do indivíduo e o adequado tratamento jurídico da questão. Assim, implementação de políticas públicas inter-relacionadas e voltadas para a eliminação (ou mitigação) de fatores causadores de desastres devem ser estimuladas e nas mais diversas áreas, incluindo as políticas públicas de ordenamento territorial e uso e ocupação do solo, bem como as políticas voltadas para os recursos hídricos, resíduos sólidos, etc. Enfim, deve-se atuar nas mais diversas frentes, de modo a obter-se um resultado eficiente na proteção deste direito fundamental. Deste modo, observa-se que a concretização do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental traz consequências diretas em relação ao papel do Estado e da sociedade na sua proteção, valorizando-se a importância do planejamento, das medidas preventivas e da participação popular na proteção contra desastres “naturais” hidrológicos, com vistas à salvaguarda deste e de outros direitos fundamentais (tais como o direito à vida, saúde, moradia, etc.) e, em última análise, da manutenção da dignidade da pessoa humana. 250 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRUCIO, F. L; GAETANI, F. Avanços e perspectivas da gestão publica nos estados: agenda aprendizado e coalizão. Brasília: Consad/Fundap, 2006. AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito ao meio ambiente e participação popular. Brasília: IBAMA, 1998. (Coleção meio ambiente, 1998). AKAOUI, Fernando Reverendo Vidal. Compromisso de ajustamento de conduta ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004 ALCÁZAR, Mariano Baena. 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