UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
NILTON CARLOS DE ALMEIDA COUTINHO
DESASTRES, CIDADANIA E O PAPEL DO ESTADO: AS RELAÇÕES ENTRE
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES
“NATURAIS” HIDROLÓGICOS
São Paulo
2014
NILTON CARLOS DE ALMEIDA COUTINHO
DESASTRES, CIDADANIA E O PAPEL DO ESTADO: AS RELAÇÕES ENTRE
DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES
“NATURAIS” HIDROLÓGICOS
Tese apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial para a obtenção do título de
Doutor em Direito Político e Econômico
Orientadora: Profa. Dra. Solange Teles da Silva
São Paulo
2014
C871d
Coutinho, Nilton Carlos de Almeida
Desastres, cidadania e o papel do estado : as relações entre os direitos
fundamentais e a proteção contra desastres “naturais” hidrológicos. / Nilton
Carlos de Almeida Coutinho. – 2014.
288 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.
Orientador: Solange Teles da Silva
Bibliografia: f. 250-278
1. Desastres 2. Direitos fundamentais 3. Cidadania I. Título
CDDir 341.27
NILTON CARLOS DE ALMEIDA COUTINHO
DESASTRES, CIDADANIA E O PAPEL DO ESTADO: AS RELAÇÕES ENTRE
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES
“NATURAIS” HIDROLÓGICOS
Tese apresentada ao Curso de PósGraduação em Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutor
em Direito Político e Econômico
Aprovada em: 07/04/2014
BANCA EXAMINADORA
Dra. SOLANGE TELES DA SILVA - orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Dr. ALESSANDRO SERAFIM OCTAVIANI LUIS
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Dra. INES VIRGINIA DO PRADO SOARES
Universidade de São Paulo
Dr. FELIPE CHIARELLO DE SOUZA PINTO
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Dra. MARCIA DIEGUES LEUZINGER
Centro Universitário de Brasília
A meus pais, Mário e Anita, pela importância que
têm em minha vida.
A minha avó, Edith Gomes Coutinho, que com seus
quase cem anos de vida, nunca se cansa de me
ensinar coisas novas.
AGRADECIMENTOS
Foram quatro anos de estudos, pesquisa e dedicação, de tal forma que muitos
agradecimentos devem ser feitos. Assim, agradeço:
A Deus, por ter me dado forças para continuar em frente, rumo ao meu objetivo.
Aos meus pais, Mário e Anita, que souberam compreender e me auxiliar nos
momentos em que a solidão e a reclusão eram necessárias para a realização do trabalho.
A todos os professores e funcionários da Universidade Presbiteriana Mackenzie
(UPM), com especial menção a minha orientadora, Profa. Dra. Solange Teles da Silva, a
qual procurou contribuir com seus conhecimentos para que a presente tese ganhasse
corpo, forma e vigor, de modo a atingir o “estado da arte”. Foram várias reuniões
realizadas com o objetivo de aprofundar o estudo realizado e ampliar as possibilidades
de temas a serem discutidos nessa tese.
À equipe da Secretaria Nacional de Defesa Civil, nas pessoas do dr. Rafael
Schadeck e do sr. Wesley Felinto, bem como à equipe do CENAD e ao Cel. Alexandre
Lucas Alves (Secretário Municipal de Defesa Civil de Belo Horizonte) pelos dados
fornecidos a este pesquisador, os quais permitiram a realização da análise necessária
para a elaboração da presente tese.
Aos amigos da Procuradoria do Estado de São Paulo em Brasília, pelo incentivo,
amizade e coleguismo que permitiram que os afastamentos para as aulas e reuniões
ocorressem sem causar prejuízos ao trabalho. Neste aspecto, agradeço, também, ao
Gabinete da PGE/SP, na pessoa do Dr. Elival da Silva Ramos, pela concessão da
autorização para cursar o Programa de Doutoramento em Direito da UPM, bem como à
equipe do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado (o que faço na pessoa da
Dra. Mariangela Sarrubbo Fragatta) pelo auxílio técnico e material a este Procurador, de
modo que a presente tese pudesse ser elaborada.
Ao Instituto Mackpesquisa pela oportunidade de participar junto ao Projeto de
Pesquisa “Direito e desenvolvimento sustentável: Políticas públicas no Brasil (19902010)”, bem como aos amigos do Grupo de Pesquisa “Direito e Desenvolvimento
Sustentável”, da UPM, e “Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável”, do
UNICEUB, que contribuíram com sugestões e livros para leitura, com destaque para as
amigas Fernanda Salgueiro Borges e Márcia Franco.
Por fim, aos amigos Gustavo Viegas Rodrigues, Flavia Brunner, Silvia Adriana
Rodrigues e Renata Sobral que me auxiliaram na revisão do trabalho e literatura
estrangeira.
A todos, meus sinceros agradecimentos.
RESUMO
Os desastres hidrológicos, em razão dos prejuízos humanos e materiais, podem ser
considerados um dos maiores problemas enfrentados pelas sociedades na atualidade,
notadamente em razão de sua frequência e intensidade. Considerando os bens jurídicos
lesados em razão da ocorrência desta modalidade de desastre, faz-se necessária uma
reflexão sobre as possibilidades e limites dos instrumentos jurídicos e extrajurídicos
capazes de propiciar a proteção da comunidade em face desses desastres. Pode-se
afirmar que emerge e consagra-se um direito fundamental de proteção contra desastres,
o qual exige uma atuação positiva por parte do Estado e de toda a sociedade na busca
pela efetiva proteção, entre outros, do direito à vida digna. Nesta perspectiva, questões
relacionadas ao crescimento das áreas de risco, desenvolvimento e resiliência das
cidades, bem como referentes ao papel dos entes federados (e, em particular, dos
Municípios) na proteção contra desastres, por meio da implementação e do incentivo a
políticas públicas preventivas, foram discutidos com o objetivo de analisar as
possibilidades de se assegurar a efetiva proteção deste direito fundamental. Sustentou-se
na presente tese não apenas a emergência, mas, igualmente, a consagração do “Direito
de proteção contra desastres”, direito fundamental do ser humano, que deve ser tutelado
segundo os princípios e fundamentos que orientam a proteção dos direitos
fundamentais.
Para tanto, promoveu-se o estudo dos fatores que contribuem para a ocorrência de
desastres e as classificações a eles inerentes, para, na sequência, analisar-se os desastres
hidrológicos dentro da ótica dos direitos fundamentais, perquirindo-se acerca de suas
características e direitos correlacionados, bem como das políticas públicas relacionadas
à proteção contra tais desastres. Assim, o estudo concluiu pela constituição de um
direito fundamental de proteção contra desastres, cuja efetivação reclama uma atuação
proativa do Poder Público enquanto ente público, fiscalizando e fomentando políticas
públicas protecionistas e planejando ações que mitiguem os riscos de desastres,
especialmente nas áreas de risco. Do mesmo modo, o estudo concluiu pela necessidade
de um maior envolvimento e engajamento popular, no sentido da promoção e efetivação
de ações cidadãs e participativas, voltadas para a proteção de tal direito, em parceria
com o Poder Público e demais atores envolvidos.
ABSTRACT
Hydrological disasters, because human and material losses, can be considered one of the
greatest problems facing societies today, especially because of their frequency and
intensity. Whereas the legal interests harmed because of the occurrence of this type of
disaster, it is necessary to reflect on the possibilities and limits of legal and extra-legal
instruments capable of providing protection of the community in the face of such
disasters. It can be stated that emerges and establishes itself a fundamental right to
protection against disasters, which requires positive action by the state and the whole
society in the search for effective protection, among others, the right to dignity. In this
perspective, growth-related risk areas, development of cities and resilience issues, as
well as on the role of the federal (and, in particular, municipalities) in disaster protection
entities, by implementing and encouraging preventive public policies were discussed
with the aim of analyzing the possibilities to ensure the effective protection of this
fundamental right. It has been argued in this thesis not only the emergence but also the
dedication of the "Law of protection against disasters", fundamental human right that
must be protected according to the principles and fundamentals that govern the
protection of fundamental rights.
For this, we promoted the study of factors that contribute to the occurrence of disasters
and ratings attached to them, for, after analyzing up hydrological disasters from the
viewpoint of fundamental rights, if inquiring about - their characteristics and rights
correlated, as well as public policies related to protection against such disasters. Thus,
the study concluded that establishment of a fundamental right to protection from
disasters, whose accomplishment calls for a proactive role of the government as a public
entity, supervising and promoting protectionist policies and planning actions to mitigate
disaster risks, especially in the areas of risk. Similarly, the study identified a need for
greater involvement and public engagement towards the promotion and enforcement of
citizens and participatory activities, dedicated to the protection of this right, in
partnership with government and other stakeholders.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadro 1 - Parâmetros de identificação da ocorrência de desastres ........................................... 40
Quadro 2 - Número de desastres ocorridos no Brasil entre 1991 e 2010 .................................... 60
Gráfico 1 - Evolução dos desastres ocorridos no Brasil entre 1991 e 2010 ................................ 61
Quadro 3 - Distribuição de afetados e mortos por tipo de desastre ............................................. 61
Quadro 4 - Distribuição dos danos humanos dentro do território brasileiro ............................... 73
Quadro 5 - Quantidade de mortos e afetados em decorrência de inundações e movimentos de
massa entre 1991 e 2010 no Brasil ............................................................................................ 104
Quadro 6 - Recursos destinados diretamente a desastres .......................................................... 166
Gráfico 2 - Evolução do orçamento liquidado da Defesa Civil................................................. 167
Quadro 7 - Distribuição das vítimas de inundações bruscas e alagamento dentro do território
brasileiro.................................................................................................................................... 279
Quadro 8 - Distribuição das vítimas de inundações graduais dentro do território brasileiro .... 279
Quadro 9 - Distribuição das vítimas de movimentos de massa dentro do território brasileiro . 280
Quadro 10 - Quadro resumo ...................................................................................................... 280
LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS
ABNT
Associação Brasileira de Normas Técnicas
CENAD
Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres
CEPED
COBRADE
Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres
Codificação Brasileira de Desastres
CODAR
Codificação de Desastres, Ameaças e Riscos
CONPDEC
Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil
CPDC
CRED
Cartão de Pagamento de Defesa Civil
Centro de Investigação sobre a Epidemiologia dos Desastres
EM-DAT
FEMA
FIDE
Emergency Disaster Data Base
Federal Emergency Management Agency - Agência Federal de
Gestão de Emergências
ficha de informação de desastre
GEACAP
Grupo Especial para Assuntos de Calamidades Públicas
GEAR
GEE
Grupo Executivo de Áreas de Risco
gases de efeito estufa
IPCC
Intergovernmental Panel on Climate Change
NOPRED
Formulário de Notificação Preliminar de Desastres
ONU
PIB
PMCMV
Organização das Nações Unidas
Produto Interno Bruto
Programa Minha Casa, Minha Vida
PNPDEC
Política Nacional de Proteção e Defesa Civil
PRRC
Programa de reconstrução
SINDEC
SINPDEC
Sistema Nacional de Defesa Civil
Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil
UFSC
Universidade Federal de Santa Catarina
UNISDR
United Nations Office for Disaster Risk Reduction - Escritório da
ONU para a Redução de Riscos de Desastres
Zoneamento Ecológico Econômico
ZEE
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 13
1. DA INTERAÇÃO DO SER HUMANO COM O MEIO AMBIENTE E O RISCO DE DESASTRES ........ 24
1.1. SOCIEDADE DE RISCO E VULNERABILIDADES DAS CIDADES DIANTE DOS EFEITOS DA
MUDANÇA CLIMÁTICA ............................................................................................................ 26
1.2 Desastres: conceituação, contextualização e classificação............................................... 35
1.3 “Graus” de desastres e suas consequências ..................................................................... 46
1.3.1 Situação de emergência ............................................................................................. 50
1.3.2 Estado de calamidade pública .................................................................................... 53
1.3.3 Estado de defesa e estado de sítio ............................................................................. 55
1.4 Desastres “naturais” hidrológicos ..................................................................................... 58
1.5 O cidadão enquanto causador, colaborador e vítima dos desastres hidrológicos ........... 68
2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES ....................... 76
2.1 Direitos fundamentais: origem, evolução e características .............................................. 77
2.2 CIDADANIA, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS.................. 94
2.3 Da emergência do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental
............................................................................................................................................... 100
2.4 Da relação do direito de proteção contra desastres e outros direitos fundamentais .... 107
2.4.1 Direito à vida ............................................................................................................ 108
2.4.2 Direito à moradia ..................................................................................................... 108
2.4.3 Direito à saúde ......................................................................................................... 112
2.4.4. Direito à qualidade de vida ..................................................................................... 114
2.4.5 Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado .......................................... 116
2.4.6 Direito à assistência aos desamparados .................................................................. 118
2.5 Deveres do Estado na proteção dos direitos fundamentais ........................................... 119
3. POLÍTICAS PÚBLICAS, DESASTRES E DEFESA CIVIL: UM DESAFIO CONTÍNUO PARA A
PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.............................................................................. 125
3.1 Repartição de competências e papel do Poder Público em sede de desastres .............. 127
3.2 Políticas públicas para desenvolvimento sustentável e proteção contra desastres....... 134
3.3 Organização do sistema nacional de Defesa Civil e medidas protetivas ........................ 141
3.3.1 Histórico e evolução do sistema nacional de Defesa Civil ....................................... 142
3.3.2 Fundo Especial para Calamidades Públicas .............................................................. 145
3.3.3 Política Nacional de Proteção e Defesa Civil ............................................................ 149
3.4 Momentos de ação em sede de desastres: uma relação temporal entre passado,
presente e futuro .................................................................................................................. 152
3.4.1 Ações preventivas: direitos fundamentais e prevenção a desastres ....................... 152
3.4.2 A eclosão do desastre: medidas de urgência e gestão da crise ............................... 155
3.4.3 Depois do desastre: a necessidade de respostas ..................................................... 158
3.4.4 Momentos de ação e manutenção da dignidade da pessoa humana ..................... 162
3.5 Políticas públicas e aplicação de recursos em questões relacionadas a desastres......... 163
3.5.1 Gastos com prevenção e recuperação ..................................................................... 165
3.5.2 Licitação, aplicação de recursos e desastres ............................................................ 172
3.6 Políticas públicas, reserva do possível e mínimo existencial .......................................... 176
4. ALTERNATIVAS EM BUSCA DA EFETIVIDADE DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES
................................................................................................................................................... 183
4.1 Atores: revisitando seus papeis e responsabilidades na proteção contra desastres
“naturais” hidrológicos.......................................................................................................... 183
4.1.1 O Poder Público e sua atuação na proteção dos direitos fundamentais ................. 184
4.1.2 O ser humano e a proteção contra desastres .......................................................... 188
4.1.3 Os demais atores: protagonistas ou coadjuvantes? ................................................ 190
4.1.4 Responsabilidades .................................................................................................... 192
4.1.5. União de esforços e divisão/Compartilhamento de responsabilidades ................. 195
4.2.1 Politicas públicas de ordenamento territorial e uso e ocupação do solo ................ 204
4.2.2 Poder de polícia e efetividade na proteção contra desastres.................................. 209
4.3 Estudo de caso: instrumentos utilizados pela Prefeitura de Belo Horizonte na proteção
contra desastres .................................................................................................................... 211
4.4 Concretização do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental 220
4.5 A importância do planejamento e da prevenção para a proteção dos direitos
fundamentais ........................................................................................................................ 226
4.6 Participação popular e efetividade dos direitos fundamentais ...................................... 231
CONCLUSÕES ............................................................................................................................. 243
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................. 250
ANEXOS
Anexo I – Quadros .................................................................................................................... 279
Anexo II - CODIFICAÇÃO DE DESASTRES, AMEAÇAS E RISCOS – CODAR.............. 281
Anexo III - CLASSIFICAÇÃO E CODIFICAÇÃO BRASILEIRA DE DESASTRES
(COBRADE) ............................................................................................................................ 287
13
INTRODUÇÃO
O ser humano, ao longo de sua existência, interage com outros indivíduos e, para
manutenção da vida e do desenvolvimento das sociedades, apropria-se e utiliza-se dos
recursos naturais. Contudo, o modo como ele se apropria e utiliza os recursos naturais,
ou, em outras palavras, o modo como ele intervém no meio ambiente acaba, não raras
vezes, contribuindo para a eclosão de uma complexa gama de problemas ambientais,
dentre os quais se destacam os efeitos ocasionados pela mudança climática1. A
“sociedade de risco”2, oriunda dessa necessária intervenção humana junto ao meio
ambiente, com o objetivo de propiciar o desenvolvimento da sociedade, tem contribuído
para a ocorrência de desastres e catástrofes de todos os tipos. Associados à mudança
climática, o aumento de eventos hidrológicos – como aumento do nível dos mares, as
inundações e enchentes – têm colocado a humanidade em face da necessidade de não
apenas mitigar os efeitos provocados pelo aumento das emissões dos gases de efeito
estufa (GEE), mas, também, de adaptar-se. Assim, o aumento dos desastres decorrentes
de eventos climáticos extremos e, em particular eventos relacionados com as águas –
inundações, enchentes e alagamentos – conduz à necessidade de adoção e
implementação de instrumentos para auxiliar no enfrentamento deste problema, de
1
A presente tese analisa as respostas jurídicas do direito brasileiro em relação ao aumento dos eventos
climáticos extremos sob o prisma do direito de proteção contra os desastres, não sendo objeto dessa tese
analisar as respostas jurídicas no âmbito do direito internacional. No que diz respeito ao regime
internacional da mudança do clima, cf. - por exemplo - VIOLA, Eduardo Jose. The great emitters of
carbon and the perspectives for an agreement on mitigation of global warming. In: DIAS, Pedro Leite da
Silva; RIBEIRO, Wagner Costa; SANT’ANNA NETO, João Lima; ZULLO JÚNIOR, Jurandir (Org.).
Public policy: mitigation and adaptation to climate change in South America. Sao Paulo: Editora da
Universidade de Sao Paulo, Instituto de Estudos Avançados, 2010. VIOLA, Eduardo José;
ABRANCHES, Sergio . Mudanças climáticas e governança na América Latina. In: CARDOSO, Fernando
Henrique; FOXLEY, Alejandro (Org.). America Latina desafios da democracia e do desenvolvimento:
governabilidade, globalizaçao e políticas econômicas para além da crise. São Paulo: Elsevier, 2009, v. 1.
SILVA, Solante Teles da; CUREAU, Sandra; LEUZINGER, Márcia Diegues. Mudança do clima:
desafios jurídicos, econômicos e scioambientais. São Paulo: Fiuza, 2010.
2
Adota-se na presente tese o conceito de sociedade de risco apresentado por Ulrich Beck, segundo o qual
esta constitui-se como uma nova categoria social, na qual, em decorrência do capitalismo e do
desenvolvimento tecnológico, os riscos passam a fazer parte do convívio social, passando a ser tolerados.
Assim, o advento dessa nova modernidade opera mudanças na sociedade, na medida em que a produção
social de riquezas vem acompanhada de uma produção social de riscos, aliada à instabilidade dos
mercados frente às catástrofes ambientais e ao terrorismo. Segundo tal teoria, as ameaças e riscos
decorrentes do desenvolvimento acabam gerando uma intensificação na comercialização e produção de
tais riscos, tais como o aumento dos gastos públicos com a proteção do meio ambiente, etc. Para maiores
detalhes, cf. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião
Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010.
14
modo a reduzir as perdas humanas e materiais, decorrentes de tais desastres em uma
resposta de adaptação à mudança do clima.
Na realidade, a multiplicação e intensificação da ocorrência desses eventos
hidrológicos, verdadeiras tragédias humanas, atinge tanto países desenvolvidos como
países emergentes, como é o caso do Brasil.3 Todavia, tais desastres não afetam toda a
população mundial da mesma maneira, e, nem tampouco, no seio de um mesmo Estado,
a população é afetada da mesma forma. No Brasil, observa-se que tais desastres têm
afetado mais diretamente os moradores das áreas urbanas e, notadamente, populações
mais vulneráveis que vivem em áreas de risco. A alta densidade demográfica e a
ocupação desordenada em áreas de risco, acoplada a fatores climáticos, dentre outros,
fazem com que a região sudeste figure como uma das regiões brasileiras na qual se
observam os maiores índices de ocorrência de desastres hidrológicos.4
Considerando essa realidade e, o fato que o desenvolvimento da sociedade e as
mudanças dela decorrentes trazem consequências na órbita do direito, é fundamental
indagar-se sobre a necessária adaptação da sociedade aos efeitos da mudança do clima,
o que, por conseguinte, exige respostas jurídicas adequadas. E, tanto essas respostas,
como os mecanismos aptos ao enfrentamento de desastres, devem contar com a
participação popular, visto que, sem essa participação, torna-se extremamente difícil a
implementação de estratégias de mitigação dos efeitos dos desastres ou, ainda, de ações
preventivas em matéria de gestão dos recursos hídricos, por exemplo. Assim, o
incentivo à participação popular no processo de tomada de decisão possibilita o
desenvolvimento de uma cultura de gestão democrática dos riscos, contribuindo para
uma maior resiliência das cidades. Aqui, a atuação do Poder Público e a preparação
contra desastres - com destaque para o ente público municipal, que é quem, em última
3
Embora o presente trabalho tenha realizado um estudo dessa temática sob o prisma do direito brasileiro,
é possível observar a crescente preocupação com a questão dos desastres, notadamente no âmbito do
direito internacional e do direito comparado. Cf., por exemplo: BERGH, R. Faure M. Compulsory
insurance of loss to property caused by natural disasters: competition or solidarity? World Competition,
v. 29, n. 1, 2006. VARLEY, Ann. Disasters and environment. England: John Willey & Sons LTd, 1994.
MANYENA, S. The concept of resilience revisited. Disasters, v. 30, n. 4, dez. 2006. LAVIEILLE, JeanMarc; BÉTAILLE, Julien; PRIEUR, Michel. Les catastrophes écologiques et le droit. Belgique:
Bruylant, 2012.
4
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Universidade Federal
de Santa Catarina. Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres. Comunicação de Riscos
e de Desastres. Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010: volume Brasil. Florianópolis:
CEPED, 2012. p. 20.
15
análise, está mais próximo da população - passam a ser vistas como pilares essenciais
em sede de prevenção contra desastres, objetivando-se que os cidadãos encontrem-se
melhor preparados para colaborar na prevenção e enfrentamento dos desastres
“naturais”5 hidrológicos.
Nesta perspectiva, é necessário que o Direito aponte respostas às peculiaridades
inerentes aos desastres, de modo a eleger instrumentos que propiciem respostas rápidas
e eficazes, protegendo o indivíduo – cidadão – e a comunidade – população – contra os
riscos dos desastres hidrológicos. É certo que essa temática poderia ser analisada sob o
prisma do direito internacional, destacando-se as questões relacionadas à assistência
humanitária aos desastres6, os textos internacionais relacionados direta ou indiretamente
à redução de desastres7 ou as perspectivas e avanços das negociações em matéria do
regime internacional do clima8. Entretanto, ainda que seja possível realizar esse estudo
5
Na presente tese optou-se em utilizar a expressão “natural” entre aspas em razão de tais desastres (não
obstante a classificação adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro) decorram de aspectos relacionados
ao meio ambiente, mas, também, em razão da ação do ser humano em relação a este bem jurídico também
contribuir para a eclosão desta espécie de desatre.
6
A proteção contra desastres também é discutida sob a ótica do Direito humanitário, no qual se encontra
presente o auxílio de órgãos internacionais e a cooperação internacional em relação a determinado País.
Neste aspecto, registre-se que, segundo o Princípio 25, dos Princípios Orientadores relativos aos
Deslocados Internos, cabe às autoridades nacionais o dever e a reponsabilidade primária de prestar a
assistência humanitária aos deslocados internos. Já as organizações humanitárias internacionais e os
outros atores têm o direito de oferecer os seus serviços em apoio aos deslocados internos. Tal proteção,
contudo, refere-se especialmente em relação a ações de recuperação, ou seja: predominam ações a serem
realizadas após a ocorrência de determinado desastre.
7
Dentre eles, destaque-se o Marco de Ação de Hyogo, o qual constitui-se como importante instrumento
para a implementação da redução do risco de desastres, adotado por países membros nas Nações Unidas.
Seu objetivo é aumentar a resiliência das nações e comunidades diante de desastres, concentrando
esforços em medidas preventivas. Além dele, cite-se as resoluções 54/219 (de 22 de dezembro de
1999), 56/195 (de 21 de dezembro de 2001) 60/195 (de 22 de dezembro de 2005), 64/200 (de 21 de
dezembro de 2009), 65/157 (de 20 de dezembro de 2010), 66/199 (de 22 de dezembro de 2011), 67/209
(de 21 de dezembro de 2012), bem como a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
a Agenda 21 (e o Programa para sua Implementação), a Declaração de Joanesburgo sobre
Desenvolvimento Sustentável, o Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável (também chamado de Plano de Implementação de Joanesburgo), o documento final da
reunião plenária de alto nível da Assembléia Geral sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio, além
do documento final da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável
Desenvolvimento (denominado "O futuro que queremos”), dentre outros.
8
VIOLA, Eduardo Jose. The great emitters of carbon and the perspectives for an agreement on mitigation
of global warming. In: DIAS, Pedro Leite da Silva; RIBEIRO, Wagner Costa; SANT’ANNA NETO,
João Lima; ZULLO JÚNIOR, Jurandir (Org.). Public policy: mitigation and adaptation to climate change
in South America. Sao Paulo: Editora da Universidade de Sao Paulo, Instituto de Estudos Avançados,
2010. VIOLA, Eduardo José; ABRANCHES, Sergio. Mudanças climáticas e governança na América
Latina. In: CARDOSO, Fernando Henrique; FOXLEY, Alejandro (Org.). America Latina desafios da
democracia e do desenvolvimento: governabilidade, globalizaçao e políticas econômicas para além da
crise. São Paulo: Elsevier, 2009, v. 1. SILVA, Solante Teles da; CUREAU, Sandra; LEUZINGER,
16
sob esse ângulo, ou, ainda, observar o crescente fenômeno da internacionalização do
direito9, é fundamental estudar como o direito brasileiro aborda essa problemática e,
assim, analisar os instrumentos de luta contra os eventos hidrológicos existentes e em
qual esfera do Estado federado eles se encontram e como se articulam. Isso porque são
poucos os estudos que aprofundam essa discussão no direito brasileiro10. Do mesmo
modo, é preciso refletir acerca da natureza jurídica dos direitos tutelados na proteção
contra desastres, podendo-se indagar acerca da emergência e consagração de um direito
fundamental de proteção contra desastres, com características e contornos próprios,
dentro de um Estado Democrático e de Direito. O Estado federal brasileiro tem, diante
do aumento da frequência e da intensidade dos desastres hidrológicos, o desafio da
antecipação e prevenção, mas, igualmente, o desafio de uma resposta durante a
ocorrência do desastre e a posteriori.
Há, portanto, a necessidade de uma adequação dos instrumentos jurídicos a
serem utilizados na proteção contra desastres, de tal forma que estes atuem a posteriori
da ocorrência de tais eventos, quantificando os danos e prejuízos sofridos pelas vítimas
atingidas, identificando as causas que deram ensejo ao desastre e atribuindo as
respectivas sanções aos responsáveis e, eventualmente, constatando a existência de
excludentes de responsabilidades; mas, também, tem-se que os instrumentos jurídicos
devem estar aptos a intervir a priori, de forma antecipada, em particular na modalidade
da prevenção e planejamento, como meio eficaz para evitar a ocorrência de desastres e
propiciar a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, fundamento central da teoria
dos direitos fundamentais.
A proteção contra desastres possui relação direta com a tutela dos direitos
fundamentais, na medida em que, a ocorrência de um desastre “natural” de
consequências calamitosas, não retira das pessoas atingidas a qualidade de “ser
humano”, de tal forma que sua dignidade e seus direitos fundamentais devem ser
Márcia Diegues. Mudança do clima: desafios jurídicos, econômicos e scioambientais. São
Paulo: Fiuza, 2010.
9
Em relação a internacionalização do direito cf. VARELLA, Marcelo Dias. Internacionalização do
direito: Direito internacional, globalização e complexidade. Brasília: CNPQ, 2013. Disponível em:
<http://www.marcelodvarella.org/marcelodvarella.org/Teoria_do_Direito_Internacional_files/Internacion
alizacao_do_direito_PDF_final%20%281%29_2.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2013.
10
PEITER, Claudia Maria. Desastres naturais: enchentes e inundações e o papel do estado e da
sociedade na gestão de segurança pública. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Vale do Itajaí, 2012.
CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2013
17
protegidos e tutelados em todos os momentos, incluindo em situações de desastres. E,
para a proteção de tais direitos é essencial avaliar-se o papel do Estado nesta seara, bem
como a natureza jurídica dos bens afetados. O presente estudo concentra-se
em
questões relacionadas aos direitos fundamentais, políticas públicas a eles concernentes e
alternativas em busca da efetividade de tal direito, no âmbito do Direito brasileiro. Tem,
portanto, a preocupação em relação às medidas recuperativas, mas, também, medidas
preventivas relacionadas aos desastres hidrológicos. Assim, a presente tese sustenta a
existência de um “direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental do
ser humano”, que deve ser tutelado segundo os princípios e fundamentos que orientam a
proteção dos direitos fundamentais. Tem-se, assim, que o direito de proteção contra
desastres, na atualidade, demanda uma proteção jurídica mais efetiva e eficaz por parte
do Poder Público. Trata-se de uma exigência social decorrente do aumento crescente
dos desastres hidrológicos e da necessidade de proteção dos grupos sociais mais
suscetíveis à ocorrência desse tipo de evento. Assim, no Brasil, o direito de proteção
contra desastres hidrológicos surge como uma nova espécie de direito fundamental e,
para o seu adequado estudo enquanto direito fundamental, utilizou-se como matriz
teórica a investigação crítica de FLORES o qual, na mesma linha que BOBBIO,
defende a contínua evolução dos direitos fundamentais em decorrência das necessidades
da sociedade. Assim, segundo o referido autor, tais direitos são “resultados sempre
provisórios das lutas sociais pela dignidade”.11
Deste modo, o objetivo geral da presente tese é analisar a emergência e
consagração do direito de proteção contra desastres, indagando-se se se trata de um
direito fundamental e que, portanto, exige que Estado e sociedade adotem e
implementem instrumentos que possibilitem o exercício dos direitos cidadãos em face
de desastres “naturais”. Neste sentido, o direito de proteção contra desastres constitui-se
como um direito fundamental do ser humano, decorrente do princípio da dignidade da
pessoa humana e diretamente relacionado a outros direitos fundamentais, tais como o
direito à vida, qualidade de vida, saúde, moradia, entre outros. Ademais, para a
população que vive em áreas sujeitas à ocorrência de desastres hidrológicos
(denominadas áreas de risco) a atuação estatal com vistas a sua proteção é um dever do
11
FLORES, Joaquín. A reinvenção dos direitos humanos. Trad. Carlos Roberto Diogo Garcia et al.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 37
18
qual o Poder Público não pode furtar-se. Assim, partindo do estudo em relação aos
direitos fundamentais, sua natureza jurídica e características, a presente tese analisa o
tratamento jurídico dado aos desastres naturais hidrológicos, que são os que causam
maiores prejuízos humanos e materiais no território brasileiro,12 bem como o papel do
Estado e da sociedade no que se refere ao exercício dos direitos de cidadania em face
aos desastres “naturais” hidrológicos.
Entre os objetivos específicos estão: a análise do direito de proteção contra
desastres naturais hidrológicos sob o prisma da teoria dos direitos fundamentais,
considerando as características inerentes a estes direitos; o estudo das políticas públicas
adotadas para propiciar a defesa desse direito; bem como a análise das alternativas e
propostas de ações e medidas jurídicas de natureza protetiva a serem adotadas em sede
de proteção contra desastres. Nesse contexto, são apresentados instrumentos jurídicos
que possam assegurar a concretização desses direitos em face da ocorrência de
desastres, permitindo-se a proteção desse direito, segundo os princípios que regem os
direitos fundamentais. Surge, assim, a necessidade de estímulo à adoção de medidas
preventivas em sede de desastres “naturais” hidrológicos, em relação às medidas
recuperativas, buscando-se alternativas que possam contribuir para a efetividade do
direito de proteção contra desastres, dentro de um Estado Democrático e de Direito.
Deste modo, para a realização desse estudo e atingimento dos objetivos
propostos, realizou-se uma pesquisa documental e bibliográfica, como também uma
pesquisa quantiqualitativa com base nos dados disponibilizados pelo Ministério da
Integração Nacional (por meio da Secretaria Nacional de Defesa Civil) a fim de
identificar quais os desastres de maior incidência no território brasileiro e os fatores que
contribuíram para sua ocorrência. Após o levantamento de tais informações, passou-se a
analisar os dados coletados, verificando em quais regiões ocorreram maior número de
mortos e afetados. A utilização do número de mortos como parâmetro principal
decorreu do fato do “direito à vida” ser o direito fundamental de maior relevância dentro
do ordenamento jurídico e indispensável para o exercício de outros direitos.
12
Estudos realizados pelos órgãos de defesa civil demonstram que mais de 50% dos desastres ocorridos
no Brasil decorrem de eventos hidrológicos, sendo certo que tal percentual é mantido em termos
mundiais. Cf. infra informações detalhadas no capítulo 1, item 1.5.
19
Para que o indivíduo possua a condição de “ser humano” é essencial que o
mesmo tenha acesso a uma vida digna, isto é, que tenha acesso a bens (materiais ou
imateriais) imprescindíveis para a satisfação das necessidades vitais do indivíduo.13
Vinculou-se, então, a dignidade da pessoa humana a uma serie de direitos fundamentais,
tais como o direito a vida e qualidade de vida, o direito a moradia, o direito à saúde,
dentre outros, permitindo-se observar a emergência de um direito fundamental de
proteção contra desastres (e, em especial, de proteção contra desastres hidrológicos).
Aliás,
segundo
o
posicionamento
de
FLORES,
os
direitos
humanos
(e,
consequentemente, os direitos fundamentais) são o resultado de lutas e valores
defendidos pela sociedade, encontrando-se em contínua evolução, constituindo-se como
processos institucionais e sociais que possibilitam a abertura e a consolidações de
espaços de luta pela dignidade humana. 14
A partir dessa análise, passou-se a indagar-se acerca do papel do Estado e da
sociedade na efetivação do direito de proteção contra os desastres, enfatizando-se a
importância das políticas públicas preventivas e da participação popular para a
salvaguarda de tal direito, na medida em que as transformações geradas na sociedade
contemporânea contribuíram para a ampliação do processo de participação popular nas
esferas das decisões políticas. O aumento de tal participação ganha maior relevância
dentro de um Estado Democrático e de Direito, no qual a participação do cidadão no
processo de tomada de decisão constitui-se como fator importante para sua afirmação e
manutenção. Aliás, registre-se que o Estado de direito constitui-se como uma forma de
organização política na qual decisões relacionadas à coletividade devem ser tomadas
por instituições democráticas, dotadas de competência e procedimentos devidamente
delineados.15 Neste aspecto, o incentivo à participação popular por meio de mecanismos
democráticos (tais como consultas e audiências públicas, debates, exercício do direito
13
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart; GRUBBA, Leilane Serratine. O embasamento dos direitos
humanos e sua relação com os direitos fundamentais a partir do diálogo garantista com a teoria da
reinvenção dos direitos humanos. In: Rev. direito GV vol.8 no.2 São Paulo July/Dec. 2012. Disponível
em: http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322012000200013. Acesso em 10 de nov. 2013.
14
FLORES, op. cit., p. 34-35
15
HERMITTE, M-A. Os fundamentos jurídicos da sociedade do risco: uma análise de U. Beck. In:
VARELLA, Marcelo Dias. Org. Governo dos Riscos. Brasília, 2005, p. 12. Disponível em:
http://www.marcelodvarella.org/marcelodvarella.org/Riscos_files/Governo%20dos%20Riscos_2.pdf.
Acesso em 20 nov. 2013
20
de manifestação do pensamento, etc.) traduz-se em um importante aliado na proteção
dos direitos fundamentais, dentro do contexto de um Estado Democrático e de Direito.
Tal participação na proteção contra desastres encontra-se intimamente vinculada
à linha de pesquisa “cidadania modelando o Estado”, na medida em que a adequada
utilização dos mecanismos participativos existentes e o engajamento da população nas
ações voltadas para a proteção contra a ocorrência de “eventos naturais de efeitos
calamitosos” provocam reflexos em relação às consequências e aos danos (humanos e
materiais) decorrentes da eclosão de desastres hidrológicos, dentre outros. Acarreta,
assim, reflexos no tocante à concretização dos direitos fundamentais, tal qual o direito
de proteção contra os desastres. Assim, em razão da rapidez com que os desastres
podem ocorrer, o envolvimento da população na proteção contra sua ocorrência pode
contribuir significativamente para a redução do número de vítimas. Do mesmo modo, a
participação popular, informando o Poder Público acerca dos riscos existentes
possibilita uma melhor atuação preventiva por parte do ente público (e, em especial, do
Município) antecipando-se ao desastre e evitando sua ocorrência.
No que se refere aos aspectos jurídicos relacionados aos desastres hidrológicos,
observa-se a existência de uma regulamentação inicial sobre o tema (tanto em nível
constitucional, quanto infraconstitucional). Porém, não obstante tal regulamentação
tenha como objetivo a proteção dos seres humanos contra a ocorrência de desastres,
observa-se que a violação desse direito continua a atingir um grande número de pessoas
no País. Tal constatação leva a uma reflexão acerca da proteção dos direitos
fundamentais, cujo problema, na visão de BOBBIO, não residiria em justificá-los, mas,
sim, em como protegê-los.16 Neste contexto, a proteção contra desastres demanda uma
reflexão acerca de sua natureza jurídica de direito fundamental, bem como quais os
mecanismos juridicamente aptos a dar-lhe concretude. Para tanto, faz-se necessário a
realização de um cotejo analítico entre o direito de proteção contra desastres e algumas
normas e princípios jurídicos pertencentes a outros ramos do direito, mas a ele
relacionados.
16
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 24.
21
Desta forma, o primeiro capítulo trata da interação entre o ser humano e o meio
ambiente e o risco de desastres, partindo da concepção de sociedade de risco e suas
características a fim de destacar as vulnerabilidades das cidades e de seus cidadãos em
face dos efeitos da mudança do clima. Questões relacionadas ao desenvolvimento das
cidades brasileiras e seus reflexos no meio ambiente são abordadas, ressaltando-se o
papel da atuação humana na mudança climática e no aumento do número de desastres
hidrológicos ao longo dos anos. Esse capítulo objetiva, assim, realizar uma
contextualização acerca dos diversos tipos de desastres existentes, destacando suas
características e classificações, além de trazer dados oficiais acerca da evolução dos
desastres no Brasil entre os anos de 1991 e 2010. Feita a análise de tais dados e
concluindo-se pela predominância dos desastres hidrológicos no território brasileiro,
passam os mesmos a ser objeto de estudo específico na presente tese.
Uma vez apresentado o panorama existente em relação aos desastres no Brasil,
no segundo capitulo são tecidas considerações acerca da teoria dos direitos
fundamentais e sua relação com o direito de proteção contra desastres. Para tanto, o
referido capítulo discorre acerca da origem e evolução da teoria dos direitos
fundamentais, analisando suas características e os desdobramentos jurídicos
decorrentes. Uma vez feita tal apresentação, o estudo passa se concentrar no “cerne” dos
direitos fundamentais, consubstanciado no princípio da dignidade da pessoa humana,
núcleo essencial de tais direitos. Assim, estabelecido o contexto dentro do qual o objeto
de estudo será analisado, passa-se a tratar do direito de proteção contra desastres
enquanto direito fundamental, destacando sua inter-relação com outros direitos
fundamentais, tais como o direito à vida, o direito à moradia, o direito à saúde, o direito
à qualidade de vida, o direito ao meio ambiente e o direito à assistência aos
desamparados. Uma vez feitas tais considerações, o papel do Estado na proteção dos
direitos fundamentais passa a ser analisado em uma perspectiva teórica, enquanto ente
constitucionalmente responsável pela tutela dos interesses da coletividade.
Procurando propiciar um maior aprofundamento sobre o tema – e, considerando
que a atuação estatal na proteção contra desastres, demanda a realização de políticas
públicas específicas – o terceiro capítulo é voltado ao estudo das políticas públicas
relacionadas à proteção contra desastres, com destaque para a Política Nacional de
22
Proteção e Defesa Civil e medidas protetivas relacionadas à resiliência da comunidade
inserida em áreas de risco e suscetível a desastres hidrológicos. Assim, o referido
capítulo analisa a importância de tais políticas públicas com vistas à realização do
desenvolvimento sustentável e a proteção contra desastres.
No âmbito do estudo de tais políticas públicas, a organização do sistema
nacional de Defesa Civil, bem como as medidas protetivas por ele implementadas
passam a ser objeto de reflexão e ponderação. Para tanto, questões atinentes ao histórico
e à evolução do sistema nacional de Defesa Civil ao longo dos anos, bem como ao
fundo especial para calamidades públicas e a lei de política nacional de proteção e civil
passam a ser tratadas de forma mais específica. Explicitada a organização do sistema
nacional de Defesa Civil, são tratados, especificamente, os diversos momentos de ação
em sede de desastres como instrumentos eficazes na proteção contra desastres,
analisando-se as medidas protetivas existentes dentro do referido sistema.
Ainda com relação às políticas públicas implementadas na proteção contra
desastres, são trazidos para a discussão dados acerca dos recursos financeiros
disponíveis para a proteção desse direito fundamental e as formas como esses recursos
são alocados e utilizados, tecendo-se críticas acerca da questão atinente à realização (ou
não) de licitação em hipóteses relacionadas a desastres naturais hidrológicos. Ao final
do capítulo são feitas considerações e reflexões acerca das limitações existentes em sede
de políticas públicas de proteção contra desastres.
Por fim, o quarto capítulo apresenta alternativas em busca da efetividade do
direito de proteção contra desastres, com vistas à sua concretização enquanto direito
fundamental. Para tanto, os papeis e responsabilidades dos diversos atores envolvidos
passam a ser revistos dentro de uma ótica de direitos fundamentais, ressaltando a
importância da união de esforços e divisão e compartilhamento de responsabilidades a
fim de se obter uma adequada proteção do ser humano contra os desastres naturais
hidrológicos. Aqui, defende-se a necessidade de uma maior transversalidade das
políticas públicas relacionadas (direta ou indiretamente) com a proteção contra desastres
hidrológicos, bem como uma mudança de paradigma, valorizando-se a atuação do Poder
Público municipal na execução de medidas em proteção deste direito fundamental.
Nessa esteira, as políticas públicas de ordenamento territorial e uso e ocupação do solo,
23
bem como o exercício do poder de polícia são trazidos como alternativas viáveis para a
proteção contra desastres naturais hidrológicos, destacando-se as medidas e
instrumentos previstos no Estatuto da Cidade17.
De modo a corroborar a tese acerca da viabilidade de tais instrumentos como
mecanismos de proteção do direito fundamental de proteção contra desastres, foram
analisados os resultados positivos obtidos pela cidade de Belo Horizonte (capital do
Estado de Minas Gerais, o qual teve o maior número de mortos em decorrência de
desastres hidrológicos no período da pesquisa) na proteção contra desastres hidrológicos
por meio de uma política pública preventiva e participativa. Essa análise permite uma
melhor reflexão acerca da caracterização (ou não) do direito de proteção contra
desastres enquanto direito fundamental do ser humano, bem como possibilita a
apresentação de sugestões de medidas jurídicas aptas à obtenção de uma adequada tutela
jurídica desse direito, com vistas a sua efetiva concretização enquanto direito
fundamental autônomo.
Por fim, tendo em vista os diversos aspectos relacionados aos desastres
“naturais” hidrológicos, o papel do Estado nessa proteção volta a ser ressaltado por
meio do investimento em ações de planejamento e prevenção contra desastres, bem
como pelo incentivo em ações que propiciem uma maior participação popular (tais
como a gestão democrática e a educação ambiental), desenvolvendo-se o conceito de
cidadania, e permitindo uma efetiva proteção destes direitos fundamentais. Assim, a
proteção contra esse tipo de desastre no Brasil e, em especial, em áreas de risco, deve
ser feita de modo contínuo, relacionando-a com a proteção ambiental, urbanística e
administrativa, de modo a garantir-se, se de fato, a tutela da dignidade da pessoa
humana.
17
Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001
24
1. DA INTERAÇÃO DO SER HUMANO COM O MEIO AMBIENTE E O
RISCO DE DESASTRES
A interação do ser humano com o meio ambiente é um processo contínuo e que
pode trazer como consequências, a depender da forma como ela ocorre, provocando,
assim, a diminuição ou o aumento do risco de desastres. 18 Em função do aumento da
demanda da sociedade em relação à produção e ao consumo, observa-se, nas últimas
décadas, o aumento da atuação predatória do ser humano em face dos recursos naturais
e matérias primas existentes em nosso planeta, o que vem contribuindo para a
aceleração da mudança climática no planeta.19 Neste sentido, o quarto relatório do
Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre Mudança Climática (IPCC) de 2007
concluiu que o aumento da temperatura média do planeta registrado desde meados do
século XX é “muito provavelmente” uma consequência do aumento da emissão de gases
de efeito estufa pelo ser humano.20 No mesmo sentido, o quinto relatório do IPCC de
2013 apresenta um cenário pessimista para o futuro.21 Neste contexto, tratando
especificamente da questão atinente aos desastres, GOMES afirma que os desastres são
uma constante da natureza e, por razões diversas, seus efeitos vêm adquirindo maiores
proporções ao longo do tempo.22
18
O conceito de desastre encontra-se relacionado à ocorrência de danos humanos e materiais de grandes
proporções, com comprometimento da capacidade de recuperação da comunidade, e será abordado de
forma detalhada no item 1.3 da presente tese.
19
LEUZINGER, Marcia Dieguez. Meio ambiente, propriedade e repartição constitucional de
competências. [Dissertação] (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 1999. p. 47.
20
Segundo o relatório de 2007 do IPCC, a tendência de aquecimento parece mais evidente do que nunca.
A taxa anual de crescimento da concentração de dióxido de carbono foi maior nos últimos dez anos
(1995-2005) do que foi desde o começo da medição continua e direta da atmosfera, apesar de existir
variações de crescimento de um ano para outro. Segundo aponta o relatório, a principal fonte para o
aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera desde o período pré-industrial é o resultado
do uso de combustível fóssil. Para maiores detalhes, vide: Relatório do IPCC/ONU – Novos cenários
climáticos. Disponível em: <http://www.ecolatina.com.br/pdf/IPCC-COMPLETO.pdf>. Acesso em: 13
set. 2013.
21
Neste sentido, o quinto relatório prevê um aumento no nível do mar e aumento da temperatura na
superfície terrestre, com temperaturas extremas (quentes e frias), com ondas de calor com maior
frequência e duração. Com relação às chuvas o relatório prevê que eventos de forte precipitação tornemse mais frequentes, principalmente em regiões úmidas de latitude central. Para maiores informações, vejase: IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change. CLIMATE CHANGE 2013. The Physical
Science Basis. Summary for Policymakers. WMO UNEP. Disponível em:
<http://www.climate2013.org/images/uploads/WGI_AR5_SPM_brochure.pdf>. Acesso em 14 dez. 2013.
22
GOMES, Carla Amado. Direito(s) das catástrofes naturais. Coimbra: Almedina, 2012. p. 9.
25
Ao mesmo tempo em que a mudança climática se intensifica, observa-se o
aumento no número de desastres relacionados com o clima ocorridos em nosso planeta:
eventos climáticos extremos têm ocorrido com maior frequência e intensidade,
destacando-se os ciclones, secas, enchentes, ondas de calor, furacões, maremotos,
tornados, tempestades tropicais, tufões, nevascas, chuvas de grazino, tempestades de
areia, trombas d’água, temporais com raios e trovões, etc.23 Neste sentido,
pesquisadores do Centro de Investigação sobre a Epidemiologia dos Desastres -(CRED)
constataram um aumento em quase todos os desastres relacionados com o clima,
incluindo os desastres hidrológicos (floods).24 Aliás, a maioria dos desastres que
acometeram o mundo nos últimos anos foi resultado dessa relação predatória que o ser
humano estabeleceu com meio ambiente em prol do desenvolvimento e que, inclusive,
foi o foco de discussão da Primeira Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972.25 Deste modo, a classificação de
tais desastres sobre a nomenclatura de “naturais” é passível de críticas.
No Brasil também se observa o aumento do número de desastres, sendo certa a
predominância daqueles relacionados a fenômenos climáticos e potencializados pela
ação do ser humano.26 Sobre o tema, SALDIVA destaca que as tragédias causadas por
enchentes e desmoronamentos têm sido banalizadas pelo Poder Público e têm se
tornado cada vez mais frequentes.27
Dentre os efeitos da mudança climática, merece destaque, por exemplo, o
aumento do nível dos mares, que provoca riscos diretos e indiretos para toda a
coletividade e, em especial, riscos diretos para os cidadãos que vivem em cidades
23
GIDDENS, Anthony. A política da mudança climática. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zajhar,
2010. p. 219.
24
SHERBININ, Alex de; SCHILLER, Andrew; PULSIPHER, Alex. The vulnerability of global cities to
climate hazards. Environment and urbanization, v. 19, n. 1, p. 40, 2007. Disponível em:
<http://eau.sagepub.com/content/19/1/39.full.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2013.
25
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Universidade
Federal de Santa Catarina. Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres. Comunicação de
Riscos e de Desastres. Promoção da cultura de riscos de desastres: relatório final. Florianópolis:
CEPED, 2012. p 12. Disponível em: http://www.ceped.ufsc.br/sites/default/files/projetos/final_pcrd.pdf.
26
SANTOS, Rozely Ferreira dos (Org.). Vulnerabilidade ambiental: desastres naturais ou fenômenos
induzidos? Brasília: MMA, 2007. p. 10.
27
SALDIVA, P. et al. (Org.). Meio ambiente e saúde, o desafio das metrópoles. São Paulo: Ex-libris,
2010.
26
litorâneas.28 Nesta perspectiva, a multiplicação e o aumento na intensidade dos
fenômenos hidrológicos acaba causando desastres e trazendo prejuízos humanos e
materiais, sendo fundamental analisar como o desenvolvimento das cidades pode trazer
reflexos no meio ambiente, analisando-se os desdobramentos dessa interação com
relação ao risco de desastres.
1.1. SOCIEDADE DE RISCO E VULNERABILIDADES DAS CIDADES DIANTE
DOS EFEITOS DA MUDANÇA CLIMÁTICA
A transição da sociedade industrial moderna para uma sociedade pós-industrial e
posmoderna, de acordo com BECK, é caracterizada pela presença de aspectos
negativos, consubstanciados nos riscos e ameaças ambientais.29 Desta transição surge a
denominada sociedade de risco, a qual pode ser conceituada como aquela que, em
função de seu permanente progresso econômico, encontra-se constantemente sujeita às
consequências de uma catástrofe ambiental, sendo certo que a falta de mecanismos
jurídicos de solução dos problemas dessa nova sociedade acaba contribuindo para o
agravamento dos problemas decorrentes da evolução da sociedade industrial para a
sociedade de risco.30
É nesta sociedade que o risco de desastres passa a ser elemento integrante do dia
a dia da coletividade, criando campo fecundo para o desenvolvimento do direito dos
desastres ou, consoante prefere-se dizer, do direito de proteção contra desastres. Neste
aspecto, os desastres encontram-se inseridos em uma sociedade que tem como traço
fundamental a autoprodução dos riscos, bem como a sua confrontação com os efeitos
28
KANASHIRO, Milena; CASTELNOU, Antonio Manuel Nunes. Sociedade de risco, urbanização de
risco e estatuto da cidade. Terra e Cultura, ano 20, n. 38, p.
159. Disponível em:
<http://web.unifil.br/docs/revista_eletronica/terra_
cultura/38/Terra%20e%20
Cultura_38-12.pdf>.
Acesso em: 06 maio 2013.
29
BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998.
30
LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de direito
ambiental no Brasil. In: KISHI, Sandra Akemi S; SILVA, Solange Teles da SOARES, Inês V. Prado
(Org.). Desafios do direito ambiental no século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme
Machado. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 611-12.
27
colaterais decorrentes da sociedade pós-industrial.31 Isso porque, a sociedade de riscos
passa a conviver, cotidianamente, com a possibilidade de ocorrência de danos ou
desastres. É um risco aceito pela coletividade em razão dos benefícios que a
industrialização e o desenvolvimento podem trazer para a população, além da geração
de emprego e renda decorrente desse crescimento.32
Por outro lado, para que esse desenvolvimento ocorra sem causar grandes
prejuízos para o ser humano, é necessário estabelecer-se regras e princípios que
orientem a forma como se dará tal desenvolvimento. Assim, é preciso que haja critérios
de sustentabilidade social e ambiental e de viabilidade econômica que reflitam as
preocupações com o bem-estar das gerações presentes e futuras.33 É certo que no Brasil,
o próprio texto constitucional, além de inserir a proteção ambiental como um dos
princípios da ordem econômica, também consagra como um dos objetivos fundamentais
do Estado brasileiro a promoção do bem de todos garantindo o desenvolvimento
nacional e a erradicação da pobreza.34 Mas como assegurar o respeito a esses preceitos
constitucionais sem esquecer-se de levar em conta as gerações presentes e futuras?
Nesse contexto, faz-se necessário, em primeiro lugar, conhecer melhor esta sociedade
de riscos, bem como os riscos aos quais se encontra exposta, considerando-se que, nessa
sociedade, há a preocupação preponderante com o futuro.35 E, aliás, torna-se possível
indagar se nessa sociedade de riscos há uma gestão democrática dos riscos e em que
medida pode ela contribuir para a proteção contra desastres.36
Tal reflexão faz-se necessária, na medida em que os riscos não atingem todos os
indivíduos de forma igualitária, fazendo com que camadas hipossuficientes da
população sofram de forma mais intensa os efeitos decorrentes dessas alterações sociais.
Neste sentido, FLORES preleciona:
31
CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 15.
32
Neste aspecto, tem-se que as catástrofes naturais deixaram de ser acontecimentos excepcionais para
transformar-se em eventos tristemente habituais e especialmente penalizadores em Estados menos
desenvolvidos. Para maiores detalhes, cf.: GOMES, op. cit., p. 7.
33
SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond,
2008. p. 36.
34
Cf. item 3.2 infra
35
BECK, op. cit., 2010. p. 40.
36
Sobre “gestao democrática do risco” cf. item 4.6
28
A deterioração do meio ambiente, as injustiças propiciadas por um comércio
e por um consumo indiscriminado e desigual, a continuidade de uma cultura
de violência e guerras, a realidade das relações transculturais e das
deficiências em matéira de saúde e de convivência individual e social que
sofrem quatro quintos da hunidade obrigam-nos a pensar e,
consequentemente, a apreentar os direitos desde uma perspectiva nova,
integradora, crítica e contextualizada em práticas sociais emancipadoras. 37
Com relação aos desastres, GIDDENS esclarece que o aumento do ritmo de
desenvolvimento industrial e tecnológico, bem como a constante intervenção do ser
humano sobre a natureza têm aumentado os riscos relacionados a questões ambientais.38
Do mesmo modo, observa-se que o mundo não está preparado para o previsto aumento
de inundações, secas, furacões, tempestades extremas e outros eventos climáticos que
têm contribuído para a vulnerabilidade das cidades. Some-se a isso o fato de que o
modo como as cidades se desenvolveram – sem planejamento e medidas preventivas –
acabou contribuindo para a maior vulnerabilidade das mesmas aos desastres que
envolvem eventos hidrológicos. Assim, a denominada “sociedade de riscos” ou
“sociologia do risco,” proposta por BECK, configura-se como um modelo de sociedade
que, ao mesmo tempo, procura desfrutar dos benefícios e possibilidades da ciência, mas,
também, encontra-se obrigada a conviver e a gerenciar os riscos impostos por estes
avanços.
Necessário esclarecer a existência de diferença entre perigo e risco. Consoante
ensinam CARVALHO e DAMACENA, o perigo pode ser conceituado como a
possibilidade de que algo ocorra de forma indesejada e sem que haja controle pelo ser
humano. No mesmo sentido tem-se que o Escritório das Nações Unidas para a Redução
de Riscos de Desastres – United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNISDR)
conceitua perigo como um fenômeno, substância, atividade humana ou condição que
pode causar: perda de vidas, danos ou outros impactos na saúde, danos materiais, perda
de meios de subsistência e serviços, social e econômica interrupção ou danos
ambientais.39 Incluem-se, aqui, os fenômenos da natureza. Já o risco relaciona-se a
situações nas quais existe um determinado grau de previsibilidade ou de probabilidade
37
FLORES, op. cit., p. 31
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação São Paulo, 2004. p. 66.
39
RAWINJI, Fladwel. Claiming the human right to protection from disasters: the case for human
rights-based disaster risk reduction, p. 3 Disponível em:
<http://www.preventionweb.net/files/submissions/31225_righttodisasterprotection.pdf>.
38
29
de sua ocorrência.40 Conclui-se, assim, que o perigo surge sem que haja qualquer
possibilidade de evitar seus efeitos, ao passo que o risco é determinado por uma decisão
prévia em relação à determinada ação. No risco, os efeitos podem ser evitados ou
contingenciados (minimizados), mas são aceitos por decisão do dos seres
humanos. Logo, a prevenção possui papel importante em sede de riscos. Para BECK os
perigos (diferentemente dos riscos) não resultam de decisões, ou mais precisamente, de
decisões que se centram sobre vantagens e oportunidades tecnoeconômicas e aceitam
ameaças como sendo simplesmente o lado obscuro do progresso. Assim, segundo
entende o autor, a expansão e a mercantilização dos riscos são necessidades insaciáveis,
na qual “a sociedade industrial produz as situações de ameaça e o potencial político da
sociedade de risco”.41 Nesta mesma linha, TOMINAGA esclarece que o termo “perigo”
refere-se à possibilidade de um processo ou fenômeno natural potencialmente danoso
ocorrer num determinado local e num período de tempo especificado, ao passo em que o
“risco” é a possibilidade de se ter consequências prejudiciais ou danosas em função de
perigos naturais ou induzidos pelo ser humano.42
Ao analisar os impactos negativos causados ao meio ambiente e quem os suporta
no contexto de desastres, merece destaque o processo de urbanização e a falta de uma
politica habitacional, que acaba por expulsar a população carente para áreas de risco.
Em realidade, o acelerado processo de urbanização no Brasil, fortemente alimentado
pela maciça migração rural - urbana, tem sido, desde o seu início, não só acelerado,
mas concentrador da população em cidades maiores.43 Aliás, entre o período de 1940 a
2010, a proporção da população brasileira vivendo nas cidades passou de 31% a 84%,44
podendo-se afirmar que o êxodo rural brasileiro foi um dos processos mais intensos de
urbanização ocorridos no mundo durante o século XX.45 Sobre a evolução das
40
CARVALHO, Delton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A intensificação dos desastres
naturais, as mudanças climáticas e o papel do direito ambiental. Revista de Informação Legislativa.
Senado Federal, n. 193, jan./mar. 2012. p. 87
41
BECK, op. cit., 2010. p. 28.
42
TOMINAGA, Lídia Keiko. Análise e mapeamento de risco In: ______.; SANTORO, Jair; AMARAL,
Rosangela do. Desastres naturais: conhecer para prevenir. São Paulo: Instituto Geológico, 2009. p. 151.
43
BRITO, Fausto; PINHO, Breno Aloísio T. Duarte de. A dinâmica do processo de urbanização no
Brasil, 1940-2010. Belo Horizonte : UFMG/CEDEPLAR, 2012. p. 11. Disponível em:
< http://cedeplar.ufmg.br/pesquisas/td/TD%20464.pdf.> Acesso em 10 dez. 2013.
44
Segundo dados do IBGE há, atualmente, cerca de 160 milhões de pessoas residindo em áreas urbanas.
45
MARICATO, Erminia. A cidade sustentável. In: CONGRESSO NACIONAL DE SINDICATOS DE
ENGENHEIROS, 9., p. 13 Disponível em: <http://www.adital.com.br/arquivos/2012/02/pt%20a%20
cidade%20sustent%C3%A1vel%20-%20erminia%20maricato.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2013.
30
populações urbana e rural no Brasil, observe-se pela figura a seguir que, a partir de
meados da década de 1960, iniciou-se um aumento expressivo da população urbana se
comparado com a população rural, a qual passou a diminuir paulatinamente.
Figura 1 - População Urbana e Rural do Brasil de 1940 a 2010
Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. www.sidra.ibge.gov.br. Acesso em
07/05/2011.46
E, no que tange a área habitacional, segundo asseveram ROGUET e CHOHFI, o
Estado não interviu nessa seara até a década de 1930.47 Somente após esse período, em
razão do intenso fluxo migratório para a área urbana, tornou-se imprescindível a atuação
estatal no sentido de propiciar a obtenção de moradias para a população. Contudo, a
política nacional de desenvolvimento urbano no Brasil foi estruturada por meio da
montagem de um sistema de financiamento de habitação e saneamento. Segundo
ROLNIK e KLINK o processo de urbanização no Brasil, não atendeu os objetivos de
ampliar o direito à moradia digna e à cidade para toda a população, uma vez que não
houve um suporte adequado e sustentável para a expansão da produção e do consumo
nas cidades, cujo resultado obtido foi uma urbanização sem infraestrutura básica em
razão da omissão do poder local em fiscalizar o mercado formal (o que permitiu o
46
Apud TELÓ, Fabricio; DAVID, Cesar De. O rural depois do êxodo: as implicações do despovoamento
dos campos no distrito de Arroio do Só, município de Santa Maria/RS, Brasil. Mundo Agrário, v. 13, n.
25, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/ scielo.php?pid=S1515-59942012000200005
&script=sci_arttext>. Acesso em: 20 dez. 2012.
47
ROGUET, Patrícia; CHOHFI, Roberta Dib. Políticas públicas e moradia: rumo à concretização do
direito à cidade? In: SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins (Org.). O direito
e as políticas públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013. p. 304.
31
estabelecimento de loteamentos sem infraestrutura), bem pela incapacidade do Poder
Público em ofertar moradias e loteamentos adequados aos grupos de menor renda.48
Desse modo, esses grupos acabaram por se instalar em locais economicamente mais
acessíveis, mas inadequados para a construção de aglomerados urbanos em razão de
suas configurações geográficas. Assim, o processo de industrialização e o êxodo rural
(com o consequente deslocamento da população para as cidades), desacompanhados de
uma política pública protecionista e atuante, voltada para a criação de condições
adequadas para a vida dessa população, aliada à falta de planejamento urbanístico,
acabou contribuindo para o crescimento rápido e descontrolado das cidades.49
Essa intensa urbanização, bem como a falta de planejamento para ordenar as
cidades, aliada à redução da vegetação50, colocam em xeque-mate as cidades brasileiras,
como campo fértil para virem a sofrer com os efeitos da mudança do clima e em
particular com a ocorrência de desastres a ele relacionados. O crescimento desordenado
dessas cidades e regiões metropolitanas51 e a falta de planejamento acabam colaborando
para a ocupação de áreas de risco (tais como zonas costeiras, margens de rios e
48
ROLNIK, Raquel; KLINK, Jeroen. Crescimento econômico e desenvolvimento urbano: por que nossas
cidades continuam tão precárias? Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 89, mar. 2011. Disponível
em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S0101-33002011000100006&script=sci_arttext#back13>.
Acesso em: 10 nov. 2013.
49
Consoante asseveram NAJAR e MARQUES, o crescimento descontrolado das cidades guarda relação
com aspectos econômicos, de tal forma que a distribuição dos investimentos públicos acaba trazendo
consequências na estrutura social corporificada no espaço, gerando uma “desigualdade espacial”. Para
maiores detalhes, veja-se: NAJAR, Alberto Lopes; MARQUES Eduardo César. A sociologia urbana, os
modelos de análise da metrópole e a saúde coletiva: uma contribuição para o caso brasileiro. Ciência &
Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, jan. 2003. Disponível em: <http://www.scielosp.org/
scielo.php?pid=S1413-81232003000300005&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 dez. 2013.
50
A lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas
de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal; a exploração florestal, o suprimento de matériaprima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios
florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros para o alcance de seus objetivos, tendo como
objetivo o desenvolvimento sustentável. Neste aspecto, a referida lei, ao tratar do Regime de Proteção das
Áreas Verdes Urbanas concedeu ao poder público municipal os seguintes instrumentos para o
estabelecimento de áreas verdes urbanas: I - o exercício do direito de preempção para aquisição de
remanescentes florestais relevantes, conforme dispõe a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001; II - a
transformação das Reservas Legais em áreas verdes nas expansões urbanas; III - o estabelecimento de
exigência de áreas verdes nos loteamentos, empreendimentos comerciais e na implantação de
infraestrutura; e IV - aplicação em áreas verdes de recursos oriundos da compensação ambiental.
51
Com relação às regiões metropolitanas é necessário mencionar que as periferias das metrópoles
cresceram mais do que os núcleos centrais, o que implica um aumento relativo das regiões pobres.
Consoante assevera MARICATO, enquanto os municípios centrais das regiões metropolitanas cresceram
em média 3,1% entre 1991 e 1996, os municípios periféricos cresceram 14,7% no mesmo período. Fonte:
MARICATO, Ermínia. Urbanismo na periferia do mundo globalizado: metrópoles brasileiras. In:
São Paulo em Perspectiva. vol.14 nº. 4. São Paulo. Oct./Dec. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392000000400004>. Acesso em 10 dez. 2013
32
córregos, morros e outros ambientes vulneráveis), ocupação esta que é apontada entre as
principais causas agravantes dos efeitos dos desastres naturais.52 Na realidade, a
especulação imobiliária e a necessidade de moradia fazem com que os indivíduos
instalem-se em áreas inadequadas para ali residirem, por serem locais mais acessíveis –
tanto do ponto de vista econômico como locacional. Destaque-se, ainda, que dois terços
da humanidade vivem na região litorânea53, ou seja, há parte considerável da população
que vive em locais próximos à costa ou expostos a estes riscos e o crescimento dessa
população tambem pode constituir um fator que leve mais pessoas a estarem sujeitas à
ocorrência de eventos naturais.54 Fala-se, assim, em vulnerabilidade das comunidades
instaladas em áreas de risco.
A vulnerabilidade refere-se a determinadas a características ou circunstâncias de
uma comunidade, que a tornam suscetível aos efeitos nocivos de um perigo.55 Assim, é
possível afirmar que a vulnerabilidade deriva, fundamentalmente, da relação do ser
humano com o meio-ambiente, considerando as estruturas sociais e econômicas
presentes, ou seja: a vulnerabilidade é um conceito político-ecológico no qual se
encontram presentes forças econômicas e políticas.56 Logo, a vulnerabilidade passa a ser
vista um fenômeno econômico e social.57 Neste sentido, TOMINAGA conceitua a
vulnerabilidade como sendo:
Conjunto de processos e condições resultantes de fatores físicos, sociais,
econômicos e ambientais, o qual aumenta a suscetibilidade de uma
comunidade (elemento em risco) ao impacto dos perigos. A vulnerabilidade
compreende tanto aspectos físicos (resistência de construções e proteções da
infraestrutura) como fatores humanos, tais como, econômicos, sociais,
58
políticos, técnicos, culturais, educacionais e institucionais.
52
MARCELINO, E. V.; NUNES, L. H.; KOBIYAMA, M. Banco de dados de desastres naturais: análise
de dados globais e regionais. Caminhos de Geografia, v.6, n.19, p. 130-49, 2006.
53
SILVA, Solange Teles da. Planejamento urbano na Zona Costeira. Disponível em: http://www.
conpedi.org.br/manaus/arquivos/Anais/Solange%20Teles %20da%20Silva.pdf
54
SHERBININ, Alex de; SCHILLER, Andrew; PULSIPHER, Alex. The vulnerability of global cities to
climate hazards. In: Environment and Urbanization. Vol 19(1), 2007, p. 40. Disponível em:
http://eau.sagepub.com/content/19/1/39.full.pdf. Acesso em 10 dez. 2013
55
RAWINJI, op. cit., 2013.
56
OLIVER-SMITH, Anthony. Theorizing vulnerability in a globalized world: a political ecological
perspective. In: BANKOFF, G.; FRERKS, G.; HILHORST, D. Mapping vulnerability: disasters,
development & people. London: Earthscan, 2004. p. 1.
57
GIDDENS, op. cit., 2010. p. 203.
58
TOMINAGA, op. cit., p. 151.
33
Tal vulnerabilidade, entretanto, não atinge a sociedade de forma igualitária.
Cidades localizadas em países de alta renda, e algumas cidades localizadas em países
de renda média, são resilientes à mudança climática, em razão de possuírem habitações
de boa qualidade,
infraestrutura e serviços para todos. Assim, Polícia, serviços
armados, serviços de saúde e bombeiros fornecem um alerta inicial com detalhes de que
ações devem ser tomadas e garantem respostas emergenciais rápidas, evitando perdas
humanas.59
Com o conceito de vulnerabilidade, ficou claro que a capacidade de um sistema
para atenuar tensões ou lidar com as consequências delas decorrentes, por meio de
estratégias ou outros mecanismos, constitui-se como um fator determinante do sistema
de resposta.60 Fala-se, assim, em sociedades resilientes.
Do mesmo modo, observa-se que os níveis de risco estão aumentando em razão
de fatores como as alterações climáticas, a pobreza, a falta de planejamento e gestão no
ordenamento territorial e a degradação dos ecossistemas. Neste contexto, destacam-se
os riscos a que estão submetidos os habitantes das grandes metrópoles em razão da
possibilidade
de
ocorrência
de
inundações
e
deslizamentos
causados
pela
impermeabilização excessiva das superfícies, bem como o de doenças provocadas pelas
condições insalubres existentes.61
Também é preciso mencionar-se que a distribuição e o aumento do risco
encontram-se ligados a um processo de desigualdade social ou de injustiça ambiental,
havendo, ainda, uma força de “atração” sistemática entre a pobreza extrema e os riscos
extremos. Isso porque os países em desenvolvimento possuem uma necessidade muito
maior de expandir suas economias, havendo – para eles - um imperativo de
desenvolvimento.62 Neste aspecto, BECK defende que tal atração decorre, dentre outros
fatores, da vulnerabilidade de determinada comunidade, sendo certo que há uma
tendência no sentido de que a distribuição dos riscos seja determinada pela classe
59
A adaptação às mudanças climáticas pode atender também às metas de desenvolvimento em cidades de
países em desenvolvimento?. In: CIVIS, nº 2 - Outubro 2009, p. 4. Disponível em:
http://citiesalliance.org/sites/citiesalliance.org/files/CIVIS_2_Portuguese.pdf. Acesso em 03.12.2013
60
SHERBININ, op. cit., 2013.
61
KANASHIRO, op. cit., 2013. p. 159
62
GIDDENS, op. cit., 2010, p. 90.
34
social.63 Neste aspecto, observa-se que indústrias com poder de gerar riscos costumam
se estabelecer em países mais pobres (chamados de países subdesenvolvidos) nos quais
encontra-se uma quantidade grande de pessoas desempregadas – criando uma força de
atração sistemática entre a pobreza extrema e os riscos extremos - que favorece e facilita
a instalação destas indústrias, sob o argumento de que, com isso, surgirão novas
tecnologias novos empregos.64
Tal afirmação pode ser constatada quando se observam os locais vítimas de
desastres “naturais” (em especial enchentes, inundações e deslizamentos). A grande
maioria destes desastres ocorre em áreas de ocupação irregular, nas quais a população
menos favorecida acaba edificando suas residências sem qualquer amparo técnico ou
sem observância das normas legais referentes ao tema.65 Segundo pesquisa realizada
pelo Centro Universitária de Estudos e Pesquisas sobre desastres, da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), a região sudeste brasileira é uma das que mais sofre
com as adversidades atmosféricas, em razão de sua alta densidade demográfica, aliada à
ocupação desordenada em áreas de risco, sendo certo que as principais ameaças
relacionadas ao tempo e clima são chuvas intensas66, vendavais, granizos, geadas e
friagens, secas, baixa umidade do ar e nevoeiros.67
Há, ainda, autores que utilizam a expressão “vulnerabilidade social” nas
hipóteses em que os desastres relacionados a eventos extremos (tais como chuvas,
tempestades, inundações) atingem grupos sociais mais vulneráveis.68 Isso porque os
63
BECK, op. cit., 2010. p.41.
CENCI, Daniel Rubens; Kässmayer, Karin. O direito ambiental na sociedade de risco e o conceito
de justiça ambiental. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/ 114445697/ Direito-Ambiental>. Acesso
em: 31 out. 2013.
65
Segundo dados do Ministério da Integração Nacional os danos humanos decorrentes de enxurradas
estão ligados, na maioria das vezes, às ocupações desordenadas nas margens dos rios ou outras áreas com
alta suscetibilidade a esse tipo de desastre. Para maiores informações veja-se: BRASIL. Ministério da
Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e
Desastres. Anuário brasileiro de desastres naturais – 2011. Brasília: CENAD, 2012. p. 49.
66
Observe-se que as chuvas intensas muitas vezes acabam deflagrando outros tipos de desastres, tais
como hidrológicos (enxurradas, inundações graduais ou bruscas e alagamentos) ou geológicos
(movimentos de massa e erosão). Neste sentido, veja-se: Ministério da Integração Nacional Secretaria
Nacional de Defesa Civil. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Anuário brasileiro
de desastres naturais: 2011. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Brasília: CENAD,
2012, p. 55
67
BRASIL. Atlas... op. cit., 2012, p. 20.
68
SIENA, Mariana. A dimensão de gênero da análise sociológica de desastres: conflitos entre
desabrigadas e gestoras de abrigos temporários relacionados às chuvas. São Carlos:Universidade Federal
de São Carlos, 2009. p. 29-30.
64
35
riscos ambientais não são equitativamente distribuídos, uma vez que fatores como
pobreza e vulnerabilidade de determinadas populações e comunidades fazem com que
tais pessoas se encontrem mais expostas a eles. Assim, a violação dos direitos
fundamentais dessas pessoas acaba ocorrendo de forma mais intensa do que em
populações menos vulneráveis.69 E, em razão de tal vulnerabilidade, torna-se necessário
realizar estudos detalhados e específicos sobre tais eventos prejudiciais ao ser humano e
a sociedade em geral, de modo a ter-se uma real dimensão dos prejuízos deles
decorrentes, bem como das medidas que precisam ser adotadas para combatê-los.70
1.2
DESASTRES:
CONCEITUAÇÃO,
CONTEXTUALIZAÇÃO
E
CLASSIFICAÇÃO
A sociedade de risco convive, cotidianamente, com a possibilidade de ocorrência
de danos de grandes proporções (comumente chamados de desastres, calamidades,
tragédias, etc). Mas, em termos jurídicos, expressões como “calamidade”, “desastre”,
“catástrofe” e “tragédia” podem ser utilizadas como sinônimas? Normalmente tais
expressões são utilizadas como sinônimas, sendo mais comum a utilização da expressão
“desastre” para referir-se a um evento que provoque prejuízos para a coletividade
decorrentes de fatores tecnológicos ou naturais.71 Não obstante, alguns autores
apresentam conceitos diversos para cada uma delas, o que permite delinear os seus
contornos e buscar o o sentido jurídico de tais expressões. Por exemplo, POSNER
69
VERGANI, op. cit., p. 70.
A pesquisa realizada pelo CEPED constatou que os registros de desastres na década de 2000
triplicaram em relação aos registros realizados na década de 1990. Para maiores informações veja-se:
CEPED UFSC. Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010: volume Brasil. Florianópolis: CEPED
UFSC, 2012, p. 93
71
Para o autor da presente tese a expressão tecnicamente mais adequada para o ordenamento jurídico
brasileiro, é o vocábulo “calamidade”, haja vista sua expressa menção ao longo do texto constitucional,
havendo, inclusive, a previsão de ações nas hipóteses de decretação de estado de calamidade pública.
Contudo, por não haver diferença significativa entre as expressões apresentadas, optou-se por manter a
expressão mais comumente utilizada em livros e artigos científicos brasileiros, qual seja: desastre. Neste
sentido, cf.: SANTOS, op. cit., KOBIYAMA, Masato et al. Prevenção de desastres naturais: conceitos
básicos. Curitiba: Organic Trading, 2006. CARVALHO, op. cit., 2013., etc. Observe-se, ainda, que o
Brasil classificava os desastres segundo a Codificação de Desastres, Ameaças e Riscos (denominada
CODAR), a qual foi posteriormente substituída pela Codificação Brasileira de Desastres (COBRADE).
Assim, conclui-se que a expressão “desastre” é a que sedimentou-se dentro do contexto jurídico
brasileiro.
70
36
define catástrofe como um acontecimento de pequena probabilidade de ocorrência, mas
que, uma vez materializado, provoca danos tão significativos e súbitos que rompem
com o fluxo de eventos precedentes.72 E, para outros:
[...] calamidade é considerada um desastre coletivo que aflige todo um país,
toda uma população. A tragédia, por sua vez, é definida como um evento
funesto, terrível. Hecatombe significa massacre, morte de seres humanos.
Catástrofe é definida como um evento desastroso, calamitoso, doloroso, que
importa em prejuízo. Desastre, por fim, significa evento funesto, calamidade,
73
catástrofe. (MATTEDI apud FRANK; SEVEGNANI, 2009, p. 14).
Nesta linha, a palavra “calamidade” pode ser conceituada como um “infortúnio
público”, que pode ter como causa seja fato da natureza – como, por exemplo,
inundação, seca prolongada ou peste, entre outros – seja em decorrência de ato do ser
humano – tal qual a guerra – impossibilitando o funcionamento normal dos serviços ou,
ainda, colocando em risco a vida humana.74
Já o termo “desastre” é entendido como uma séria ruptura do funcionamento de
uma comunidade ou sociedade, ocasionando perdas humanas, materiais, econômicas e
ambientais expressivas (widespread) que excedem a capacidade daquela comunidade ou
sociedade em mitigar ou conter os danos causados (to cope) com a utilização dos
próprios recursos.75 Aliás, característica comumente relacionada ao conceito de desastre
refere-se à dimensão dos prejuízos causados em relação ao local atingido. Assim, o
desastre natural estaria relacionado à impossibilidade de resposta por parte da
comunidade local, sem auxílio externo. Desse modo, haveria uma grave perturbação do
funcionamento de uma comunidade ou uma sociedade humana, causando danos
generalizados ou prejuízos ambientais, que excedem sua capacidade de resposta, por
meio de recursos próprios.76 Assim, os desastres são o resultado de eventos (naturais ou
72
POSNER, Richard. A. Catastrophe: risk and response. New York: Oxsford University Press: 2004. p.
6
73
SCHENKEL,op. cit., 2010. p. 48.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 92.
75
ISDR. International Strategy for Disaster Reduction. Living with risk: a global review of disaster
reduction initiatives. Genebra: 2004. p. 32. Disponível em: <http://www.unisdr.org>. Acesso em: 13
ago.2012.
76
HUMAN RIGHTS AND NATURAL DISASTERS. Operational Guidelines and Field Manual on
Human Rights Protection in Situations of Natural Disaster p. 24 Disponível em:
http://www.refworld.org/pdfid/49a2b8f72.pdf.> Acesso em: 10 dez. .2013.
74
37
provocados pela humanidade) que atingem determinado ecossistema de forma adversa,
causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos
e sociais. Logo, o desastre constitui-se como um evento que acarreta uma interrupção
grave das funções de uma sociedade, causando perdas humanas, materiais e/ou
ambientais significativas, excedendo a capacidade da sociedade afetada para se
recuperar sem auxílio de outro ente.
Interessante observar que, em países latinos, o termo “desastre” costuma ser
substituído por “infortúnio” ou “calamidade”, parecendo inserir no conceito de desastre
o elemento “sofrimento humano”. Tanto é assim que os desastres acabam sendo
classificados segundo o número de mortos, afetados, desabrigados, feridos e outros
critérios.77
O conceito de desastre, adotado pelo Escritório das Nações Unidas para a
redução do Risco de Desastres - UNISDR78 - é o de que este constitui-se como um
fenômeno natural que pode causar morte, lesões ou outros impactos à saúde, bem como
danos materiais, transtornos sociais e econômicos ou danos ambientais. Assim, os
desastres constituem-se como uma séria perturbação do funcionamento de uma
comunidade ou sociedade, causando perdas humanas generalizadas e que excedem a
capacidade de reação por meio de recursos próprios.79 Do conceito apresentado,
observa-se que os desastres são eventos que causam grandes problemas para uma
determinada localidade, envolvendo extensivas perdas e danos humanos, materiais,
econômicos ou ambientais. Logo, originam-se da combinação de vários fatores, quais
sejam: vulnerabilidade, capacidades, ameaças e riscos.
Tais fatores trazem consequências dentro da órbita do direito, tornando-se
necessária uma reflexão acerca das ações que podem ser tomadas em sede de prevenção
e recuperação, bem como eventual responsabilização em face da ocorrência de eventos
dessa natureza.
77
WIJKMAN, Andres; Lloyd Timberlake. Desastres naturales? Fuerza mayor u obra Del hombre.
Instituto Internacional para el Medio Ambiente y el Desarrollo: Earthscan, 1985. p. 23.
78
The United Nation Office for Disaster Risk reduction
79
International Strategy for Disaster Recuction. Terminoly on Disaster Risck Reduction, 2009, p. 9.
Disponível em: <http://www.unisdr.org/files/7817_UNISDRTerminologySpanish.pdf>. Acesso em: 18
dez. 2013.
38
Do exposto, tem-se que o conceito de desastre encontra-se intimamente
relacionado à ocorrência de danos de grandes proporções. Assim, a primeira constatação
a que se chega é a de que não é qualquer tipo de dano que dá causa a um desastre, mas,
apenas, os danos de considerável magnitude. Há, assim, peculiaridades em relação ao
dano (na ótica do direito dos desastres) e que o diferenciam de outros tipos de dano.
Então, pergunta-se: o que deve ser entendido como dano, dentro da ótica do direito dos
desastres?
No Brasil, a instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da
Integração Nacional, conceitua dano como o “resultado das perdas humanas, materiais
ou ambientais infligidas às pessoas, comunidades, instituições, instalações e aos
ecossistemas, como consequência de um desastre.” Sobre o tema, GOMES elenca a
magnitude das perdas como um aspecto relevante para a caracterização do desastre.
Contudo, a mesma autora destaca que, apesar de tal quantificação ser relativa, há
critérios de lesividade80 que auxiliam na caracterização de um evento catastrófico.81
Neste aspecto, o Relatório Estatístico Anual do EM-DAT (Emergency Disaster Data
Base)82 elenca alguns critérios objetivos para que haja um dano de magnitude tal que
possa o mesmo ser considerando um desastre. Assim, segundo o referido Relatório,
havendo 10 (dez) ou mais óbitos, 100 (cem) ou mais pessoas afetadas, ou havendo a
declaração de estado de emergência ou havendo pedido de auxílio internacional estará
caracterizada a ocorrência de um desastre.
A caracterização (ou não) de um evento como desastre é relevante para o Direito
em razão das consequências jurídicas advindas do reconhecimento da situação de
desastre. Assim, consoante será visto adiante,83 a ocorrência de um desastre, com a
declaração de situação de emergência, estado de calamidade, pública, estado de defesa
80
Dentre os critérios de lesividade utilizados para a caracterização de uma catástrofe, a autora destaca a
necessidade da presença cumulativa de: 10 ou mais mortes humanas, mínimo de 100 pessoas atingidas.
Declaração de estado de emergência, existência de pedido de ajuda externa
81
GOMES, op. cit., p. 23.
82
O EM-DAT é um Banco de Dados Internacional de Desastres que fornece uma base objetiva para
avaliação de vulnerabilidade e tomada racional de decisão em situações de desastre. Os dados nele
constantes podem ajudar a identificar os tipos de políticas de desastres que são mais comuns em um
determinado país, além de informar, historicamente, quais desastres significativos em relação a
determinadas comunidades. O EM-DAT também fornece informações relacionadas ao número de pessoas
mortas, feridas ou afetadas, etc. Para maiores informações veja-se: http://www.emdat.be/
83
Para maiores detalhes vide itens 1.3 e 3.5
39
ou estado de sítio trazem consequências na esfera jurídica, limitando direitos e
autorizando realização de obras e serviços sem a realização de procedimento licitatório.
Outro aspecto que merece ser mencionado refere-se à diferença entre acidente e
desastre. O acidente decorre do acaso (podendo advir de um fenômeno da natureza, etc.)
ou da ação imprudente, negligente ou imperita do ser humano. Nesta hipótese fala-se
em ação humana culposa. Note-se que, tratando-se de ação humana dolosa não há que
se falar em acidente. O acidente decorre, necessariamente, de algo imprevisto (quer por
ter se originado de um fenômeno da natureza, quer por ter sido causado em razão de
uma conduta humana culposa, abrangendo as hipóteses de imprudência, negligência e
imperícia). A imprudência configura-se pela ação humana descuidada, ligando-se a uma
conduta positiva por parte do agente. Já a negligência refere-se a uma conduta humana
omissa, ou seja: o agente deixa de praticar uma conduta que era devida, e por esta razão,
não impede a ocorrência de determinado dano. Por fim, tem-se a denominada imperícia,
a qual se refere a condutas praticadas por pessoas com conhecimento técnico sobre o
tema, mas em razão deste conhecimento ser deficitário, danos e prejuízos passam a ser
causados.84
Em sede de direito dos desastres, o Ministério da Integração Nacional entende
que, “os acidentes são caracterizados quando os danos e prejuízos consequentes são de
pouca importância para a coletividade como um todo, já que, na visão individual das
vítimas, qualquer desastre é de extrema importância e gravidade”.85 Observe-se,
entretanto, que o acidente, (a depender da sua extensão) pode ser qualificado como
desastre. Logo, um acidente de grandes prejuízos pode configurar um desastre.
Para classificar um evento danoso como desastre, alguns fatores costumam ser
utilizados pela doutrina. Os primeiros fatores a serem considerados, referem-se à
intensidade do evento e suas consequências para a população. Serão eles que definirão,
a priori, se se trata de um desastre e qual a sua gradação. Neste aspecto, tem-se que, no
84
Sobre responsabilidade civil, veja-se: DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de
Janeiro: Forense, 1995. RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
85
Secretaria de Defesa Civil. Política Nacional de Defesa Civil. Ministério da Integração Nacional:
Brasília, 2000. Disponível em <http://www.disaster-info.net/PED-Sudamerica/leyes/leyes/suramerica/
brasil/ sistemnac/Poli tica_Nacional_Defensa_ Civil.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2013.
40
Brasil, os desastres naturais mais comuns são as enchentes, a seca, a erosão e os
escorregamentos ou deslizamentos de terra.86
Conforme explica FARBER, o aumento na frequência e na intensidade dos
desastres naturais depende de uma complexa rede de fatores inter-relacionados. Assim,
as alterações climáticas, a degradação ambiental, o crescimento populacional, a
desigualdade social e econômica e política governamental (entre outros fatores)
contribuem para tal aumento. Estes fatores abrangem um espectro que pode ser
calibrado de acordo com o grau de controle que os governos podem exercer.87
Há, também, a possibilidade de adotar determinados parâmetros para se
identificar a ocorrência de desastres. Sobre o tema, BURTON88 identifica parâmetros,
que entende estar diretamente vinculados a tais desastres, tal qual identificados no
quadro a seguir:
Quadro 1 - Parâmetros de identificação da ocorrência de desastres
Parâmetro
Magnitude do evento
Frequência do evento
Duração do evento
Extensão areal do evento
Velocidade de ataque do
evento
Dispersão espacial do evento
Espaço de ocorrência
temporal do evento
Grau de Ocorrência
Alta
Frequente
Longa
Ampla
Rápida
Baixa
Rara
Curta
Limitada
Lenta
Difusa
Regular
Concentrada
Irregular
Fonte: BURTON e al. (1978)
Ainda com relação a caracterização dos desastres, KOBYAMA defende que
estes, normalmente, são súbitos, inesperados e com uma gravidade e magnitude capaz
de produzir danos e prejuízos diversos, resultando em mortos e feridos.89 A inserção
deste requisito para a ocorrência de um desastre traz uma consequência direta, qual seja:
a de que um fenômeno natural extremo (tal como um terremoto ou um ciclone) não será
considerado desastre caso não resulte na morte de pessoas ou em danos significativos à
86
SANTOS, op. cit., 2007. p. 10.
FARBER, Daniel. A et al. Disaster law and policy. [S.l.]: Aspen Publishers, 2006, p. 207.
88
BURTON, Ian; KATES, Robert W.; WHITE, Gilbert F. The environment as hazard. New York:
Oxford Univ. Press, 1978.
89
KOBIYAMA, op. cit., p. 7.
87
41
propriedade.90 Assim, uma inundação, por exemplo, só se traduzirá em um desastre
quando afetar diretamente ou indiretamente o ser humano e as atividades por ele
desempenhadas em um lugar e um determinado tempo, provocando danos materiais
e/ou humanos e vitimando pessoas.91
Traçadas as linhas caracterizadoras dos desastres, quais sejam: sua frequência e
intensidade (magnitude) do evento, faz-se necessário analisar as diversas espécies de
desastres, segundo o critério de classificação a ser utilizado. Dentro deste contexto, os
desastres podem ser classificados segundo: a) sua origem ou causa; b) sua forma e
evolução ou c) sua intensidade e resultados deles decorrentes.
A primeira espécie de classificação a ser analisada (e que se constitui como a
classificação comumente adotada pela Defesa Civil) refere-se à origem ou causa do
desastre. Isso porque, com relação à origem, observa-se que os desastres podem advir da
ação da natureza, da ação do ser humano, ou da ação de ambos, conjuntamente. Passase, assim, a falar-se em desastres naturais, humanos e mistos.92
Assim, o primeiro tipo de desastre em relação à origem são os naturais, causados
por fenômenos e desequilíbrios da natureza, sem a intervenção humana. São desastres
decorrentes “de fenômenos naturais, atribuíveis ao exterior do sistema social”. 93 Na
literatura internacional,94 encontra-se conceito semelhante, no sentido de que um
desastre natural é um ato da natureza de tal magnitude que dá origem a uma situação
catastrófica que desorganiza a vida cotidiana dos cidadãos, deixando-os ao desamparo.
Neste sentido, a conceituação adotada pela UNISDR (2009) considera desastre como
uma grave perturbação do funcionamento de uma comunidade ou de uma sociedade
envolvendo perdas humanas, materiais, econômicas ou ambientais de grande extensão,
cujos impactos excedem a capacidade da comunidade ou da sociedade afetada de arcar
90
WIJKMAN, op. cit., p. 23.
MASKREY, Andrew. Los desastres no sonnaturales. Colombia: LA RED: Red de Estudios Sociales
em Prevención de Desastres en América Latina. ITDG: Intermediate Technology Development Group,
1993. p. 8-9.
92
A COBRADE – a qual substituiu a CODAR – não faz menção à categoria de desastres “mistos”,
classificando os desastres em apenas duas categorias, quais sejam: naturais e tecnológicos
93
CARVALHO, op. cit., 2013. p. 15.
94
LAVIEILLE, op. cit., p. 95-7.
91
42
com
seus
próprios
recursos.95 Um desastre
natural é
um
importante evento
adverso resultante de processos naturais da Terra; exemplos incluem inundações,
erupções vulcânicas, terremotos, tsunamis e outros processos geológicos. Um desastre
natural pode causar perda de vida ou danos à propriedade, e, normalmente, traz danos
econômicos na sua esteira, cuja gravidade depende da população afetada e sua
resiliência, ou capacidade de recuperação.96
Segundo
BRAGA,
a
palavra
desastre
origina-se
da
expressão
italiana disastro (dis + astro, "má estrela").97 Segundo a autora, o desastre refere-se a
um evento marcado pela destruição, morte, dano físico e sofrimento humano que
provoca alterações permanentes às sociedades humanas, ecossistemas e meio ambiente.
Segundo ela, os desastres podem gerar uma série de danos às pessoas afetadas.98 Os
desastres naturais são assim chamados em razão de se originarem de causas naturais
relacionadas à dinâmica da Terra. Assim, os terremotos, maremotos, vulcanismos e
tsunamis estariam relacionados à dinâmica interna da Terra (uma vez que se relacionam
ao movimento das placas tectônicas), ao passo que as tempestades, tornados, enchentes,
secas e ressacas estariam relacionados à dinâmica externa da Terra, também
denominada de (dinâmica atmosférica).99
Os desastres naturais podem estar relacionados a diversas causas. CARVALHO
e DAMACENA falam em desastres geofísicos, meteorológicos, hidrológicos,
climatológicos e biológicos.100 A classificação e codificação brasileira de desastres COBRADE (que é o diploma normativo que, atualmente, classifica as diferentes
modalidades de desastes) utiliza critérios semelhantes, classificando os desastres
95
TOMINAGA, Lídia Keiko; SANTORO, Jair; AMARAL, Rosangela do. Desastres naturais: conhecer
para prevenir. São Paulo: Instituto Geológico, 2009. p 10-11.
96
BANKOFF, G.; FRERKS, G.; HILHORST, D. Mapping vulnerability: disasters, development &
people. London: Earthscan, 2004. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Natural_disaster#
cite_note-1>. Acesso em: 5 nov. 2013.
97
Como os desastres naturais estavam relacionados a meteoros, tempestades, chuvas, tornados, etc. a
mitologia antiga entendia que, quando as estrelas se encontravam em uma ‘posição ruim’ um evento ruim
poderia acontecer.
98
BRAGA, Luciana L. The importance of the concepts of disaster, catastrophe, violence, trauma and
barbarism in defining posttraumatic stress disorder in clinical practice. Disponível em: <http://www.
biomedcentral.com/1471-244X/8/68>. Acesso em: 5 maio 2013.
99
ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS, 16., Anais... Porto Alegre: AGB, 2010. Disponível
em: http://www.agb.org.br/event download.php?id Trabalho=2377. Acesso em: 10 dez. 2013.
100
CARVALHO, Delton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 26.
43
naturais em desastres geológicos, desastres hidrológicos, desastres meteorológicos,
desastres climatológicos e desastres biológicos.101 Assim, quando os desastres advém do
impacto de corpos vindos do espaço, fala-se em causas de origem sideral. Do mesmo
modo, os desastres naturais podem estar relacionados com fenômenos decorrentes da
geodinâmica, tais como fenômenos meteorológicos, vendavais, chuvas, secas, geadas,
etc. Tais desastres também podem estar relacionados à geodinâmica terrestre interna,
que são aqueles relativos a fenômenos tectônicos, tais como os terremotos, tsunamis,
escorregamentos de solo, dentre outros. Por fim, incluem-se entre os desastres naturais
aqueles relacionados com os desequilíbrios na biocenose102, como as pragas animais e
vegetais.103
O segundo tipo de desastre (em relação à sua origem) são os chamados desastres
humanos ou antropogênicos, que são aqueles provocados pelas ações ou omissões
relacionadas com as atividades humanas, ou seja: estão relacionados com a atuação do
próprio ser humano, enquanto agente e autor. Segundo CARVALHO e DAMACENA,
“os desastres antropogênicos são constituídos por desastres tecnológicos e
sociopolíticos e decorrem de fatores humanos.”104
Tais desastres são subdivididos em desastres tecnológicos, sociais e biológicos.
Os primeiros, decorrendo uso de tecnologias, destacando-se os relacionados aos meios
de transporte, produtos perigosos, explosões, etc. Já os segundos são consequência de
desequilíbrios socioeconômicos e políticos, tais como o desemprego, a marginalização
social, a violência, etc. Por fim, os biológicos são aqueles que decorrem de epidemias,
tais como: malária, cólera, sarampo, dengue, etc.
101
A classificação e codificação brasileira de desastres – COBRADE foi instituída por meio da Instrução
Normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012 e elaborada a partir da classificação utilizada pelo Banco de
Dados Internacional de Desastres (EM-DAT).
102
A biocenose é uma expressão similar à biota ou comunidade biológica. Trata-se termo criado para
ressaltar a relação de vida em comum dos seres que habitam determinada região, ou, em outras palavras,
refere-se ao conjunto de populações de vegetais e animais existentes em uma determinada área,
convivendo num espaço comum e mantendo diversos graus de relacionamento entre si
103
LOPES, Daniela da Cunha et al. Construindo comunidades mais seguras: preparando para a ação
cidadã em defesa civil. Florianópolis: UFSC/CEPED; [Brasília]: Secretaria Nacional de Defesa Civil,
2009. p. 34. Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=10434373ebdb-412d-8743-50a2fcc1441a&groupId=66920>. Acesso em: 03 dez. 2012.
104
CARVALHO, op. cit., 2013. p. 26.
44
A terceira espécie de classificação de desastres em relação sua origem ou causa
refere-se aos desastres mistos, que são aqueles decorrentes da soma de fenômenos
naturais com atividades humanas. Assim, a redução da camada de ozônio, o efeito
estufa e a desertificação e salinização do solo são exemplos de desastres mistos, eis que,
não obstante se constituam como fenômenos naturais, sua ocorrência possui íntima
relação com a ação humana sobre o meio ambiente.105
Dessa forma, quando a ação ou omissão humana contribui para a ocorrência de
um desastre natural, fala-se em desastre misto, que é aquele decorrente de uma sinergia
de fatores naturais e antropogênicos”.106 Cite-se como agravantes humanas: a emissão
de gases nocivos, que produzem chuvas ácidas; a retirada de mata ciliar e o
assoreamento dos rios e a impermeabilização do solo, que contribuem para a ocorrência
de inundações; e a ocupação desordenada sem áreas de riscos e encostas íngremes, que
contribuem para a ocorrência de deslizamentos. Observe-se que, neste tipo de desastre,
as ações e/ou omissões humanas contribuem para intensificar, complicar ou agravar os
desastres naturais. Do mesmo modo, tais desastres são caracterizados quando a
degradação ambiental praticada pela sociedade, cria condições para que fenômenos
adversos naturais ocorram, provocando os desastres.107
Em termos normativos, tem-se que a CODAR (Codificação de Desastres,
Ameaças e Riscos) fazia referência a estes três tipos de desastres: naturais, mistos e
antropogênicos. Contudo, tal codificação foi substituída pela COBRADE, que, seguindo
os padrões internacionais, estabelecidos pela ONU, classificou os desastres em apenas
duas categorias, a saber: desastres naturais e desastres tecnológicos. Assim, os desastres
hidrológicos (não obstante a possibilidade da ação humana contribuir significativamente
para a ocorrência ou potencialização das consequências danosas) são atualmente
classificados como desastres “naturais”.108
105
Esta espécie de desastre natural não foi adotada pela COBRADE – Codificação brasileira de desastres
– que é a norma que atualmente regulamenta a classificação dos desastres naturais no Brasil.
106
CARVALHO, op. cit., 2013. p. 27.
107
VENDRUSCOLO, Simone. Interfaces entre a Política Nacional de Recursos Hídricos e a Política
Nacional de Defesa Civil, com relação aos desastres hidrológicos. Dissertação (Pós-graduação) Engenharia Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. p. 18.
108
Assim, consoante já informado, optou-se, na presente tese por incluir a expressão “naturais” entre
aspas, de modo a destacar que, apesar da sua classificação jurídica, é possível afirmar-se que, não raras
vezes, a atuação do ser humano acaba contribuindo para a ocorrência de desastres dessa espécie.
45
Com relação à expressão “desastres naturais”, FARBER critica tal nomenclatura,
na medida em que, para ele, quase todos os desastres apresentam alguma contribuição
humana, por ação ou omissão. Assim, raros seriam os desastres genuinamente
naturais.109 No mesmo sentido, GOMES assevera que raramente uma catástrofe natural
origina-se, exclusivamente, de uma causa natural. Para ela a ação humana – por meio da
não realização de ações preventivas, ou em razão da ineficiência de eventual plano de
mitigação de efeitos – acaba potencializando os efeitos desse fenômeno. Desse modo,
tem-se existir diversas causas que podem contribuir para a ocorrência de um desastre110
Logo, não obstante seja comum a utilização da expressão “desastre natural,” é
necessário ter-se em mente a existência de ações humanas que contribuem ou
intensificam os efeitos de tais desastres.111
Ainda com relação às causas dos desastres, pode-se falar em causas próximas e
causas remotas. As causas próximas seriam aquelas direta e imediatamente relacionadas
ao desastre. São as causas normalmente mencionadas nos noticiários sobre desastres em
áreas urbanas. São manchetes do tipo “excesso de chuvas provoca enchente”, “chuvas
causam deslizamentos”, “morro desaba em razão de chuvas e soterra casas”, etc. Nesta
perspectiva, as chuvas seriam as causas imediatas (ou próximas) do desastre. Já as
denominadas causas remotas são aquelas relacionadas às mudanças climáticas ocorridas
nas últimas décadas e que vêm a causar desastres, tais como enchentes, inundações,
desabamentos, etc.
A segunda espécie de classificação de desastres é aquela que se baseia na
evolução dos mesmos. Neste aspecto, os desastres podem ser classificados em súbitos,
graduais e de somação de efeitos parciais. Segundo CASTRO,112 os desastres súbitos
seriam aqueles caracterizados pela rápida velocidade com que o processo evolui. Já os
desastres graduais seriam aqueles cuja evolução ocorre em etapas, ou seja: há um
agravamento gradual e progressivo da situação vivenciada. É o caso das inundações
graduais e das secas. Por fim, fala-se em “somação de efeitos parciais”, que se
109
FARBER, op. cit., 2006. p. 9.
GOMES, op. cit., 2012. p. 17-18.
111
VERGANI, op. cit., p. 74.
112
CASTRO, op. cit., 1999.
110
46
caracteriza pela ocorrência de numerosos acidentes semelhantes, cujos impactos,
quando somados, definem um desastre de grande proporção.
Há, ainda, uma classificação dos desastres segundo a intensidade e os resultados
que produzem. Nesta ótica, passa-se a falar em “graus” de desastres, os quais, dada sua
relevância, serão objeto de análise no item abaixo.
1.3 “GRAUS” DE DESASTRES E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Uma das principais consequências decorrentes da globalização e do progresso
tecnológico refere-se ao aumento dos riscos a que a população encontra-se sujeita.113
Esses riscos podem resultar danos de tal magnitude que poderão configurar um desastre.
Segundo a Defesa Civil, os desastres podem ser classificados em quatro níveis (ou
graus) de intensidade, mensurados com base em diversos fatores, tais como a magnitude
do evento e a vulnerabilidade da comunidade afetada pelo referido evento.
Observe-se que, no Brasil, a ocorrência e a intensidade dos desastres naturais
dependem mais do grau de vulnerabilidade das comunidades afetadas do que da
magnitude dos eventos adversos por elas enfrentadas, sendo certo que os desastres
naturais mais frequentes são os decorrentes de inundações, alagamentos, enxurradas,
deslizamentos, estiagens, secas e vendavais.114 No que se referente às enchentes e
inundações, tem-se que o residir em áreas ambientalmente vulneráveis, em encostas, às
margens de rios e córregos traduz-se em uma situação típica de locais com um
crescimento desordenado e insustentável, que acaba aumentando o risco de desastres
nestes locais115
Com relação à vulnerabilidade das comunidades, constata-se que esta encontrase intimamente associada ao seu grau de exposição aos riscos. Grosso modo, a
vulnerabilidade constitui-se como a relação existente entre a magnitude da ameaça, caso
113
GIDDENS, op. cit., 2009. p. 276-7
BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento e
Investimentos Estratégicos. Plano plurianual 2012-2015. Brasília: MP, 2011. p. 211.
115
SANTA CATARINA, op. cit., 2012, p. 12. Disponível em:
http://www.ceped.ufsc.br/sites/default/files/projetos/final_pcrd.pdf. Acesso em: 11 nov. 2013.
114
47
ela se concretize, e a intensidade do dano consequente.116 Assim, a depender do grau do
desastre, podem surgir diversas situações. Entre elas ganham destaque no âmbito
jurídico a situação de emergência, o estado de calamidade pública, o Estado de Defesa e
o Estado de Sítio.117
Assim, em relação à intensidade, os desastres podem ser classificados em
diferentes graus, a saber:
Desastre de Nível I: faz referência aos acidentes de pequenas proporções com
danos pouco importantes e prejuízos menores, superáveis pela comunidade
atingida. Aqui, a situação de normalidade é restabelecida sem grandes
dificuldades com os recursos do próprio Município.118
De início, registre-se que apesar de se denominar “desastre nível I” não se trata,
a rigor, de um desastre, eis que lhe falta o requisito da magnitude, o qual o diferencia e
lhe dá concretude. Aliás, consoante se observará ao longo desta tese, o desastre de nível
II também não constitui, em regra, desastre para fins de obtenção de auxílios externos.
Observe-se que o “desastre nível I” não caracteriza situação anormal, sendo facilmente
suportado e superável pela comunidade, sendo certo que os danos e prejuízos causados
são facilmente suportáveis e superáveis, além de serem de pequena relevância. Logo,
sob a ótica do direito dos desastres, os acidentes são caracterizados pela ocorrência de
danos e prejuízos de pequena importância para a coletividade como um todo.119
TOMINAGA menciona a utilização de um critério econômico para classificar os
desastres em relação a sua intensidade. Para ela, os desastres de nível I seriam aqueles
cujo prejuízo econômico é inferior a 5% (cinco por cento) do PIB municipal. 120 Desse
116
DÓRIA, Luiz Carlos Rodrigues. Problemática de defesa civil: abordagem preliminar. Brasília:
Secretaria de defesa civil, 1994. p. 88.
117
Sobre situação de emergência, estado de calamidade, estado de defesa e estado de sitio cf. infra itens
1.3.1, 1.3.2 e 1.3.3, respectivamente.
118
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de defesa Civil. Universidade
Federal de Santa Catarina. Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres. Comunicação de
Riscos e de Desastres. Curso a distância. Florianópolis: CEPED, 2010. p. 28. Disponível em:
<http://www.ceped.ufsc.br/sites/default/files/projetos/ pr_-_156_-_ead_comunicacao_-_livrotexto_final_
101126.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013.
119
Ministério da Integração Nacional. Secretaria de Defesa Civil. Política Nacional de Defesa Civil:
Brasília, 2000. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/PED-Sudamerica/leyes/leyes/suramerica/
brasil/sistemnac /Politica_Nacional_Defensa_Civil.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2013.
120
TOMINAGA, op. cit., 2009. p. 15.
48
modo, o desastre de nível I - por se traduzir em acidentes de pequenas proporções com
danos pouco importantes e prejuízos menores, superáveis pela comunidade atingida não chega a gerar estado de crise, uma vez que a normalidade é restabelecida sem
grandes dificuldades com os recursos do próprio Município. São, em resumo, situações
nas quais há danos de pequena intensidade.
O segundo nível de desastre descrito pelos órgãos de Defesa Civil, encontra-se
assim conceituado:
Desastre de Nível II: diz respeito aos acidentes de proporções medianas com
danos de alguma importância e prejuízos significativos, mas superáveis por
comunidades bem preparadas.121
Nesse tipo, a situação de normalidade é restabelecida com recursos locais a
partir de uma mobilização especial. Os danos possuem considerável importância e
observa-se a ocorrência de prejuízos significativos. São também chamados de médio
porte, caracterizando-se pela ocorrência de danos e prejuízos que, embora importantes,
podem ser recuperados com os recursos disponíveis na própria área sinistrada. 122 Tratase, em princípio, de situação anormal, mas suportável e superável pela comunidade.
TOMINAGA explica que esse tipo de desastre causa prejuízos variáveis entre 5% e
10% do PIB municipal.123
Na hipótese de agravamento da situação, em razão da ocorrência de um desastre
secundário, despreparo da administração local ou havendo um grau de vulnerabilidade
do cenário haverá a caracterização de estado de emergência. Para a caracterização de
situação de emergência ou de estado de calamidade pública foram estabelecidos alguns
critérios objetivos para tal aferição. Assim, passa-se a falar em critérios preponderantes
e critérios agravantes.124 Os primeiros são aqueles relacionados com a intensidade dos
desastres, bem como fazendo-se a devida comparação entre a necessidade e a
121
BRASIL. Curso... op. cit., 2013.
Ministério da Integração Nacional. Secretaria de Defesa Civil. Política Nacional de Defesa Civil:
Brasília, 2000. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/PED-Sudamerica/leyes/leyes/suramerica/
brasil/sistemnac /Politica_Nacional_Defensa_Civil.pdf>. Acesso em: 01 jul. 2013.
123
TOMINAGA, op. cit., 2009. p. 15.
124
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Manual para a
decretação de situação de emergência ou de estado de calamidade pública. Brasília, 2007. v. 2. p. 13.
122
49
disponibilidade de recursos para o restabelecimento da situação de normalidade. Nesta
categoria incluem-se os danos humanos, materiais e ambientais, bem como os prejuízos
econômicos e sociais. Há, também, os denominados critérios agravantes, que são
aqueles relacionados ao padrão evolutivo dos desastres, à ocorrência de desastres
secundários, ao nível de preparação e de eficiência da Defesa Civil local, e ao grau de
vulnerabilidade do cenário do desastre e da comunidade local.
Do exposto, tem-se que o desastre de nível II, em princípio, não dá azo à
decretação da situação de emergência, eis que, apesar de traduzir-se em acidentes de
proporções medianas, com danos de alguma importância e prejuízos significativos,
podem ser superáveis por comunidades bem preparadas. Assim, apenas na hipótese da
comunidade não possuir condições para superar tal situação com recursos próprios será
possível a decretação da situação de emergência.
O terceiro nível, por sua vez, é assim definido:
Desastre de Nível III: neste nível os acidentes são de grandes proporções e os
prejuízos são enormes. Para restabelecer a situação de normalidade, são
utilizados recursos locais, reforçados por aportes estaduais e federais
existentes no SINDEC.
Este tipo de desastre caracteriza a ocorrência de situação de emergência. Os
danos causados são importantes e os prejuízos vultosos. Pode ser suportável e
superável, desde que a comunidade esteja preparada. Este nível de desastre compreende
prejuízos entre 10% e 30% do PIB municipal.125
É possível, que a situação enfrentada pela comunidade se agrave em razão da
ocorrência de desastres secundários, ou em razão do despreparo da administração local,
ou, ainda, em razão do grau de vulnerabilidade do cenário ou do padrão evolutivo do
desastre. Nestas hipóteses de agravamento dar-se-á origem ao estado de calamidade
pública.
125
TOMINAGA, op. cit., 2009. p. 15.
50
Desastre de Nível IV: envolve acidente de proporções bastante graves com
danos e prejuízos muito grandes, sem condições de serem superados sem
ajuda de fora do Município atingido.126
Quando o desastre é dessa intensidade a situação só voltará a se normalizar, se
houver uma ação articulada dos três níveis do SINDEC e eventual ajuda dos organismos
internacionais.
Tem-se aqui a caracterização do estado de calamidade pública, eis que os danos,
bem como os prejuízos são vultosos, não sendo possível a sua superação sem ajuda
externa. Nestas hipóteses os prejuízos costumam ser superiores a 30% do PIB
municipal.127
A ocorrência de critérios agravantes pode dar ensejo à ocorrência de Estado de
Defesa ou Estado de sítio, previstos nos artigos 136 e 137 da Constituição Federal,
respectivamente.
Assim, conforme se pode observar, os chamados “desastres de nível I” e, em
princípio, os “desastres de nível II” podem ser superados pela comunidade local e pelo
Município, não havendo necessidade de auxílio externo. Já nas hipóteses de
agravamento desta situação, ou nas hipóteses de desastres de nível III e IV, haverá a
necessidade de auxílio externo. Nestes casos haverá o surgimento da situação de
emergência, estado de calamidade pública, estado de defesa ou estado de sítio,
consoante será analisado a seguir:
1.3.1 Situação de emergência
Tanto a situação de emergência quanto o estado de calamidade pública
constituem-se como situações anormais, provocadas por desastres e que causam danos e
prejuízos. Porém, apesar de possuírem características comuns, ambos não se
confundem, diferenciando-se em função da dimensão dos danos provocados.
126
CEARÁ. Coordenadoria Estadual de Defesa Civil. Apostila de defesa civil para prevenção de riscos
de desastres. Fortaleza: CEDEC, 2011. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/119778370/Acoes-deDefesa-Civil>. Acesso em: 11 nov. 2013.
127
TOMINAGA, op. cit., 2009. p. 15.
51
Segundo dispõe o decreto nº 7.257, a situação de emergência é uma situação
anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o
comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder Público do ente atingido.
Já na hipótese de Estado de calamidade pública existe um comprometimento substancial
da capacidade de resposta do Poder Público do ente atingido.
Nesta perspectiva, a situação de emergência constitui-se como uma situação
anormal, provocada por desastres, mas com comprometimento parcial da capacidade de
resposta do Poder Público.128 No mesmo sentido, a instrução normativa nº 1, de 24 de
agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional, conceitua a situação de
emergência como sendo uma “situação de alteração intensa e grave das condições de
normalidade em um determinado Município, estado ou região, decretada em razão de
desastre, comprometendo parcialmente sua capacidade de resposta”.
Assim, conforme mencionado, para a caracterização da situação de emergência
ou de estado de calamidade pública, faz-se necessário analisar os fatores preponderantes
e os fatores agravantes. Os critérios preponderantes estão relacionados com a
intensidade dos danos (humanos, materiais e ambientais) e a ponderação dos prejuízos
(sociais e econômicos).129 Já os fatores agravantes são aqueles relacionados à ocorrência
de desastres secundários, ao despreparo da administração local, ao grau de
vulnerabilidade do cenário e da comunidade e ao padrão evolutivo do desastre.
Importante observar que a declaração do estado de emergência costuma ser
caracterizada como um dos fatores que permitem atribuir a um evento danoso a
condição de desastre.130
Procurando estabelecer critérios mais objetivos em relação às hipóteses
ensejadoras da caracterização de situação de emergência, a referida instrução normativa
nº 1, de 24 de agosto de 2012, explicitou que havendo, pelo menos, dois dos danos
abaixo descritos (e que, no seu conjunto, importem em prejuízo econômico) e que,
128
CARVALHO, op. cit., 2012. p. 84.
MINAS GERAIS. Coordenadoria Estadual de Defesa Civil. Critério par a decretação de situação de
emergência ou estado de calamidade pública. Disponível em: http://www.defesacivil.mg.gov.br/
conteudo/arquivos/cce/criterios_decretacao.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2013.
130
CARVALHO, op. cit., 2013. p. 28.
129
52
comprovadamente, afetem a capacidade do Poder Público local de responder e gerenciar
a crise instalada, estará caracterizada a situação de emergência.
Com relação aos danos, a referida instrução elenca: a) danos humanos (de um a
nove mortos ou até noventa e nove pessoas afetadas); b) danos materiais (de uma a nove
instalações públicas de saúde, ensino ou prestadoras de outros serviços danificadas ou
destruídas; ou de uma a nove unidades habitacionais danificadas ou destruídas; ou de
uma a nove obras de infraestrutura danificadas ou destruídas; ou de uma a nove
instalações públicas de uso comunitário danificadas ou destruídas); e c) danos
ambientais.131
Esclareça-se, ainda, que a decretação de situação de emergência pressupõe a
existência de tal situação anormal e é recomendada em duas hipóteses: A primeira
hipótese ocorrerá quando o atendimento da situação anormal exigir que os
procedimentos administrativos sejam simplificados e agilizados, para evitar prejuízos e
o comprometimento da segurança de pessoas, obras, serviços e outros bens públicos e
particulares. Tal simplificação resultará na dispensa de licitação de obras e serviços, nos
termos do inciso IV do art. 24 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993. Já a segunda
hipótese pressupõe a existência de recursos financeiros destinados às atividades de
resposta aos desastres, os quais deverão estar previstos e disponíveis no orçamento.
Nesta hipótese, os recursos financeiros poderão ser utilizados ou transferidos mediante
convênio, sem que seja necessária a decretação de estado de calamidade pública.
Assim, havendo o comprometimento parcial da capacidade de resposta do Poder
Público do ente atingido estará caracterizada a ocorrência de situação de emergência;
caso haja o comprometimento substancial dessa capacidade de resposta surgirá o
denominado Estado de Calamidade Pública.
131
Os danos ambientais mencionados na referida instrução normativa abrangem: I - poluição ou
contaminação, recuperável em curto prazo, do ar, da água ou do solo, prejudicando a saúde e o
abastecimento de 10% a 20% (dez a vinte por cento) da população de municípios com até dez mil
habitantes e de 5% a 10% (cinco a dez por cento) da população de municípios com mais dez mil
habitantes; II - Diminuição ou exaurimento sazonal e temporário da água, prejudicando o abastecimento
de 10% a 20% (dez a vinte por cento) da população de municípios com até 10.000 (dez mil) habitantes e
de 5% a 10% (cinco a dez por cento) da população de municípios com mais de 10.000 (dez mil)
habitantes; III - Destruição de até 40% (quarenta por cento) de Parques, Áreas de Proteção Ambiental e
Áreas de Preservação Permanente Nacionais, Estaduais ou Municipais
53
1.3.2 Estado de calamidade pública
O Estado de calamidade pública constitui-se como situação anormal provocada
por desastres que causa danos e prejuízos que comprometam substancialmente a
capacidade de resposta do Poder Público do ente atingido.132 Caracteriza-se, portanto,
pelo comprometimento substancial dessa capacidade de resposta do ente público.
Assim, há, no estado de calamidade pública, o reconhecimento pelo Poder Público de
situação anormal, provocada por desastres, causando sérios danos à comunidade
afetada, inclusive à incolumidade ou à vida de seus integrantes.133 Logo, apesar de
estarem diretamente relacionados, a situação de emergência e o estado de calamidade
não se confundem, diferenciando-se em função da gravidade do dano sofrido, e,
consequentemente, em razão da capacidade do ente lesado retornar ao status anterior.
O termo calamidade pública foi utilizado pela primeira na Constituição Federal
de 1891, a qual estabeleceu, em seu art. 5º, que incube a cada Estado prover, a expensas
próprias, as necessidades de seu governo e administração, sendo certo que a União
prestará socorro ao Estado que, em caso de calamidade pública, o solicitar. Assim, temse que, inicialmente, as competências administrativas relativas a situações de
calamidade pública eram de incumbência dos Estados.
A declaração de estado de calamidade pública, em função das necessidades de
recursos, só se justifica quando presentes as seguintes condições:
1) a necessidade de recursos suplementares é muito grande;
2) grande parte desses recursos suplementares não se encontra
imediatamente disponível nos escalões mais elevados do SINDEC;
3) não foram previstos nos orçamentos do Município, do Estado e da União
recursos financeiros suficientes para as despesas previstas para o
restabelecimento da situação de normalidade;
4) existem recursos financeiros disponíveis no FUNCAP ou, em última
hipótese, é necessário que o Presidente da República encaminhe ao
Congresso Nacional medida provisória, provendo recursos extraordinários.
132
133
CARVALHO, op. cit., 2013. p. 84.
Decreto nº 5.376, de 17 de fevereiro de 2005
54
A instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da
Integração Nacional, utiliza uma classificação diferente, dividindo os desastres em dois
níveis, quais sejam: desastres de nível I (desastres de média intensidade);134 e desastres
de nível II (desastres de grande intensidade).135
Segundo a referida instrução normativa, a classificação quanto à intensidade
obedece a critérios baseados na relação entre I - a necessidade de recursos para o
restabelecimento da situação de normalidade; e II - a disponibilidade desses recursos na
área afetada pelo desastre e nos diferentes níveis do SINDEC.
Pela forma como os temas foram tratados pela referida portaria, observa-se que
esta procurou tratar apenas das situações em que, efetivamente, há danos de
considerável magnitude, não sendo possível ao Município afetado superar as
dificuldades sem auxílio externo. A mesma instrução normativa esclarece que os
desastres de nível I ensejam a decretação de situação de emergência, enquanto os
desastres de nível II a de estado de calamidade pública. Esta classificação é importante
pois é ela que determina quando haverá a necessidade de apoio externo a uma
determinada comunidade ou local, estando diretamente relacionada à declaração de
situação de emergência ou de estado de calamidade pública.
Deste modo, tem-se que o estado de calamidade pública configura-se como uma
“situação de alteração intensa e grave das condições de normalidade em um
determinado Município, estado ou região, decretada em razão de desastre,
comprometendo substancialmente sua capacidade de resposta”136
Por fim, destaque-se que, no que se refere ao apoio da União em relação a
Estados, Distrito Federal e Municípios que se encontrem em situação de emergência ou
estado de calamidade pública, este se dará de forma complementar, por meio dos
mecanismos previstos na Lei 12.340/2010. Frise-se, ainda, que tal apoio será prestado
134
§ 2º - São desastres de nível I aqueles em que os danos e prejuízos são suportáveis e superáveis pelos
governos locais e a situação de normalidade pode ser restabelecida com os recursos mobilizados em nível
local ou complementados com o aporte de recursos estaduais e federais;
135
§ 3º - São desastres de nível II aqueles em que os danos e prejuízos não são superáveis e suportáveis
pelos governos locais, mesmo quando bem preparados, e o restabelecimento da situação de normalidade
depende da mobilização e da ação coordenada das três esferas de atuação do Sistema Nacional de
Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e, em alguns casos, de ajuda internacional.
136
Instrução normativa nº 1, de 24 de agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional
55
aos entes cuja situação de emergência ou estado de calamidade pública tenham sido
reconhecidas pelo Poder Executivo federal, após requerimento do Poder Executivo
(estadual, distrital ou municipal) afetado pelo desastre.137 Assim, estabeleceu-se que o
auxílio da União possui caráter meramente complementar, restringindo-se às hipóteses
nas quais o ente afetado não tenha condições de superar a crise enfrentada.
1.3.3 Estado de defesa e estado de sítio
As calamidades públicas de grandes proporções interferem no funcionamento
das instituições políticas, administrativas e sociais, criando a necessidade da adoção de
medidas extremas, com o objetivo de respeitar a ordem pública e garantir o império do
Direito.138 Assim, o Estado de Defesa e o Estado de Sítio constituem-se como restrições
excepcionais aos direitos fundamentais, admitidas pela Constituição Federal. São
medidas excepcionais necessárias para a restauração da ordem em momentos de
anormalidade, constituindo o chamado sistema constitucional das crises.139
Desse modo, a Constituição Federal de 1988 admite que, em hipóteses
excepcionais e gravíssimas, haja a restrição ou a supressão temporária de direitos e
garantias fundamentais. É o que se convencionou chamar de Estado de exceção, ou seja:
é uma situação excepcional e oposta ao Estado de direito, na qual, em situações de
emergência nacional, direitos e garantias constitucionais são suspensos a fim de se
permitir a rápida proteção do Estado. Logo, o Estado de Defesa e o Estado de Sítio
consistem em um conjunto de normas constitucionais que têm por objeto situações de
crise e por finalidade a manutenção ou o restabelecimento da normalidade
constitucional.140
Com base no estudo de Constituições de democracias modernas (tais como
Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos, ROSSITER aponta quatro fatores de
137
Cf. Art. 3º da lei nº 12.340, de 1º de dezembro de 2010.
ANTUNES, op. cit., 2012. p. 118-19.
139
FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Sistema constitucional das crises: restrições a direitos
fundamentais. São Paulo: Método, 2012. p. 27.
140
BARILE, Paolo. Dirittidell’uomo e liberta fondamentali. Bologna: Il Molino, 1984. p. 450.
138
56
crise que podem justificar o Estado de exceção. São elas: a guerra (principalmente para
repelir invasões), a rebelião, a depressão econômica, e os desastres naturais. Havendo a
ocorrência de algum destes fatores surge uma situação excepcional, que autoriza o
governante a adotar as medidas necessárias para que se retorne à normalidade.141
No Brasil, os fatores que autorizam o surgimento do Estado de Exceção são
basicamente os mesmos, o qual pode culminar na decretação do Estado de Defesa ou do
Estado de Sítio, variando conforme a situação vivenciada.
O Estado de Defesa é uma modalidade mais branda de intervenção estatal (em
comparação ao Estado de Sítio) e corresponde às antigas medidas de emergência do
direito constitucional anterior,142 podendo ser decretado na hipótese do surgimento de
grave e iminente instabilidade institucional ou da ocorrência de calamidades de grandes
proporções na natureza em locais determinados. É decretado pelo Presidente da
República, após a oitiva dos Conselhos da República e de Defesa Nacional e, após a
decretação do estado de defesa ou de sua prorrogação, o Presidente da República
deverá, dentro de vinte e quatro horas, submeter o ato com a respectiva justificação ao
Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta, sendo certo que, rejeitado o
decreto, cessará imediatamente o estado de defesa. Logo, é possível conceituar-se o
Estado de Defesa constitui-se como uma situação emergencial ou de legalidade
extraordinária, na qual o Presidente da República, (excepcionalmente, mas autorizado
pela Constituição Federal) suspende determinadas garantias individuais asseguradas
constitucionalmente, a fim de que a ordem - em conjunturas de crise institucional e nas
guerras - possa ser restabelecida.143
Desse modo, o Estado de Defesa tem como objetivo preservar ou prontamente
restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social
ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades
141
ROSSITER, Clinton. Constitucional dictatorship: crisis government in the modern democracies. 3.
ed. New Brunswick (EUA): Transaction Publishes, 2005. p. 293.
142
Neste sentido, veja-se Art 74, k da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de Novembro De
1937, in verbis: Compete privativamente ao Presidente da República... decretar o estado de emergência e
o estado de guerra nos termos do art. 166.
143
COGO, Rodrigo. Medidas de exceção como instrumentos de governabilidade: breve análise da
realidade constitucional brasileira. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura& artigo_id=9051>.
Acesso em: 10 dez. 2013.
57
de grandes proporções na natureza. Assim, dentro dos objetivos almejados neste
trabalho, tem-se que o Estado de Defesa deve ser decretado nas hipóteses de
calamidades de grandes proporções na natureza, sendo certo que, nestas hipóteses, é
permitida a ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, respondendo a
União pelos danos e custos decorrentes. Por fim, observe-se que o Estado de Defesa
possui um limite temporal, tendo a duração máxima de trinta dias, podendo ser
prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua
decretação.144
Já a decretação de Estado de Sítio deve ser solicitada pelo Presidente da
República ao Congresso Nacional, o qual detém a competência para autorizá-lo a
praticar tal ato. Igualmente, o Estado de Sítio exige a prévia oitiva dos Conselhos da
República e de Defesa Nacional. O Estado de Sítio constitui-se como a mais drástica
das medidas de restrição a direitos prevista no ordenamento jurídico brasileiro, razão
pela qual o Estado de Sítio só pode ser decretado em situações excepcionais e em
hipóteses específicas, quais sejam: comoção grave de repercussão nacional ou
ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de
defesa (art. 137, I), ou de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada
estrangeira (art. 137, II). É ele, sem dúvida, a última medida a ser adotada, sendo
reservado para situações extremas e em hipóteses constitucionalmente previstas. Desse
modo, o Estado de sítio acarreta a suspensão temporária e localizada de garantias
constitucionais, demonstrando maior gravidade do que o Estado de defesa.
Com relação à duração, tem-se que o estado de sítio, no caso do art. 137, I, não
poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo
superior; Já na hipótese do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar
a guerra ou a agressão armada estrangeira. Do mesmo modo, segundo dispõe a
Constituição Federal, tem-se que, na vigência do estado de sítio decretado com
fundamento no artigo 137, I, da Constituição Federal, só poderão ser tomadas contra as
pessoas as seguintes medidas:
I - obrigação de permanência em localidade determinada;
144
Cf. art. 136, §2º da Constituição Federal
58
II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes
comuns;
III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das
comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa,
radiodifusão e televisão, na forma da lei;
IV - suspensão da liberdade de reunião;
V - busca e apreensão em domicílio;
VI - intervenção nas empresas de serviços públicos;
VII - requisição de bens.145
Para evitar a ocorrência de abusos, a mesa do Congresso Nacional, ouvidos os
líderes partidários, designará Comissão composta de cinco de seus membros para
acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao
estado de sítio. Logo que cesse o estado de defesa ou o estado de sítio, as medidas
aplicadas em sua vigência serão relatadas pelo Presidente da República, em mensagem
ao Congresso Nacional, com especificação e justificação das providências adotadas,
com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas. Cessado o
estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da
responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores ou agentes.146
Como se vê, tratam-se de situações excepcionais e que só deverão ser decretadas
na hipótese de situações extremas, tendo em vista as limitações que tais medidas
impõem aos demais direitos e garantias constitucionalmente protegidos.
1.4 DESASTRES “NATURAIS” HIDROLÓGICOS
Conforme mencionado, os desastres naturais podem ser classificados em
geológicos, hidrológicos, meteorológicos, climatológicos e biológicos.147
Dentre os desastres “naturais” merece destaque a categoria dos denominados
desastres “naturais” hidrológicos, os quais constituem-se como a espécie a ser analisada
de forma detalhada na presente tese. Tal escolha deve-se ao fato de que, considerando as
interações do ser humano com o meio ambiente e as violações relacionadas aos direitos
145
Art. 139 da CF
Art. 141 da CF
147
Para classificação completa vide BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de
Defesa Civil. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Anuário brasileiro de
desastres naturais: 2011. Brasília: CENAD, 2012. p. 72-8.
146
59
fundamentais, os desastres hidrológicos são os desastres de maior ocorrência. Segundo
dados constantes na base de dados do Centro de Pesquisa em Epidemiologia e Desastres
da Universidade Católica de Louvain, tem-se que - em termos mundiais - as inundações
representam 50% dos desastres “naturais” relacionados à agua ocorridos no mundo nas
últimas décadas. Em seguida, vêm as epidemias relacionadas à água as quais são
responsáveis por 28% dos desastres ocorridos no mesmo período. A seca é o terceiro
tipo de desastre natural relacionada à água mais recorrente nesse período, sendo
responsável por 11% dos desastres. Na quarta posição seguem os deslizamentos e
avalanches, responsáveis por 9% desastres naturais relacionados à agua. Por fim, a fome
(quando relacionada à água) é considerada responsável por 2% dos desastres naturais
ocorridos.148
Os efeitos da mudança climática ocorridos nas últimas décadas têm se
intensificado e causado danos e prejuízos para um número cada vez maior de pessoas.
Assim, risco de enchentes repentinas, alterações no fluxo dos rios, tempestades e
erosões são alguns dos efeitos decorrentes da elevação da temperatura, na medida em
que o ar mais quente contém uma proporção mais alta de umidade e pode causar mais
chuvas.149 Nos Estados Unidos, por exemplo, especialistas destacaram que o direito é
completamente despreparado para lidar com desastres. Neste aspecto, é necessário
pesquisas multi e interdisciplinares com o objetivo de informar e melhorar a tomada de
decisões em sede de desastres.150
Tal predominância dos desastres “naturais” hidrológicos também é observada no
Brasil, acrescentando-se, igualmente, sua relevância em função da quantidade de perdas
humanas decorrentes de tais desastres. Neste aspecto, os desastres naturais têm causado
148
Fonte: Executive Summary of the World Water Development report. CRED (Centre of Reservarch on
the Epidemiology of Disasters). International Disaster Data base. Brussels, Université Catholique de
Louvain.
149
GIDDENS, op. cit., 2010. p. 206-7.
150
FARBER, Daniel, no artigo “Disaster law and emerging issues in Brazil” afirma: “Hurricane Katrina
sparked interest by U.S. legal scholars in disaster law. More than any other disaster in American history,
Hurricane Katrina brought into sharp relief the limitations in the law’s capacity to anticipate and respond
to catastrophic events”. Texto completo: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do
Direito (RECHTD), 4(1): 2-15
60
maiores prejuízos em áreas urbanas densamente povoadas.151 Acrescente-se, ainda, que
tais desastres podem advir de uma série de fatores, tais como a vulnerabilidade
ambiental, aspectos econômicos, geográficos, sociais, etc.152
Segundo estatísticas do Ministério da Defesa Civil, historicamente, os desastres
hidrológicos são responsáveis mais de 50% dos desastres ocorridos, sendo certo que as
inundações ou enchentes são – de longe – as com maior incidência e número de
mortos.153 Em estudo realizado com base nos dados existentes em arquivo junto à
Secretaria Nacional de Defesa Civil, constatou-se um constante aumento no número de
desastres ocorrido nas últimas décadas. Segundo informações constantes nos bancos de
dados disponibilizados pelo Ministério da Integração Nacional, ocorreram, nas últimas
duas décadas, 31.909 desastres, sendo certos que 8.671 (27%) ocorreram na década de
1990 e 23.238 (73%) na década de 2000. Neste sentido, vejam-se os dados e o gráfico
respectivo:154
Quadro 2 - Número de desastres ocorridos no Brasil entre 1991 e 2010
ano
1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
qtde. 713
688
1.471 365
1.081 547
878
1.405 810
713
ano
2002
2003
2005
2007
2008
2010
2001
2004
2006
2009
TOTAL
8.671
qtde. 2.198 2.196 2.060 2.505 2.646 1.626 2.077 2.105 3.211 2.614 23.238
Fonte: Ministério da Integração Nacional - Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010
Com base nos dados obtidos torna-se possível visualizar o seguinte gráfico
evolutivo:
151
SEGUN, Elida. A lei de defesa civil: algumas considerações. In: FIGUEIREDO, Guilherme José
Purvin de; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Revista de Direitos Difusos, ano 12, v. 57-8, jan./dez. 2012.
p. 69.
152
SANTOS, op. cit., p. 9-12.
153
Segundo dados do Ministério da Defesa Civil, dos 2.370 municípios afetados por desastres no ano de
2011 65,44% deles o foram por desastres hidrológicos. Para maiores detalhes, cf.: BRASIL. Anuário...
op. cit., 2012.
154
BRASIL. Atlas... op. cit., 2012.
61
Gráfico 1 - Evolução dos desastres ocorridos no Brasil entre 1991 e 2010
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
0
Fonte: Ministério da Integração Nacional - Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010
O gráfico elaborado demonstra uma tendência de aumento dos desastres ao
longo dos anos. Do mesmo modo, comparando-se os referidos dados com o número de
mortos e pessoas afetadas em relação às diversas espécies de desastres, chega-se ao
seguinte quadro:
Quadro 3 - Distribuição de afetados e mortos por tipo de desastre
tipo de desastre (1991-2010)
% de afetados
% de Mortos
estiagem/seca
50,34%
10,38%
inundação brusca e alagamento
29,56%
43,19%
inundação gradual
10,36%
18,63%
vendaval/ciclone
4,23%
6,30%
movimento de massa
2,08%
20,40%
granizo
1,31%
0,65%
erosão (linear, marítima e fluvial)
1,83%
0,24%
geada
0,12%
0,00%
incêndio florestal
0,06%
0,00%
tornado
0,06%
0,20%
diversos
0,05%
0,01%
62
Total
100%
100%
Fonte: Ministério da Integração Nacional - Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010
O quadro colacionado demonstra que não obstante a estiagem/seca seja o tipo de
desastre mais comum no Brasil, os desastres hidrológicos são os responsáveis pela
maioria das mortes decorrentes de desastres.
Antes, porém, de se analisar os desastres hidrológicos em espécie faz-se
necessário destacar que, não obstante a íntima relação existente entre os eventos
hidrológicos e os deslizamentos, tem-se que estes são considerados desastres naturais
geológicos, estando, portanto, fora do objeto de análise da presente tese. O mesmo se
diga em relação às secas, as quais são classificadas como desastres climáticos.
De qualquer modo, em que pese a classificação adotada pela Defesa Civil
nacional, tona-se oportuno tecer alguns comentários acerca dos deslizamentos. Tais
desastres constituem-se como processos decorrentes do movimento do solo em
decorrência da ação direta da gravidade e que acabam deslocando rochas, vegetações e
outros materiais. Segundo a metodologia utilizada pela Defesa Civil existem quatro
tipos principais de deslizamentos de terra (também chamados de movimento de massa).
São eles: os rastejos (que são movimentos lentos, cujo deslocamento é de poucos
centímetros ao ano); os escorregamentos (também chamados de avalanches,
desabamentos ou deslizamentos em sentido estrito) que são movimentos abruptos de
parte das encostas em queda; as quedas ou tombamentos (que são os deslizamentos
decorrentes de quedas de rochas e costumam ter como causa as chuvas, os terremotos
ou erupções vulcânicas) e as corridas de massa ou movimentos de deslizamentos
laterais.155
Outro aspecto relevante a este tipo de desastres refere-se ao seu considerável
aumento nas últimas décadas, principalmente nos centros urbanos dos países
denominados emergentes.156 Com relação ao aumento de ocorrências de desastres
155
DÓRIA, op. cit., p. 65-6.
Segundo dados constantes do Atlas brasileiro de desastres 1991-2010, movimento de massa foi o tipo
de desastre que teve maior aumento no período, com aumento de 21,7 vezes, em contraponto à média
156
63
relacionados à deslizamentos, tem-se que este deriva, em sua maioria, da ocupação
inadequada de áreas de risco geológico potencial.157
Desse modo, tem-se que a ocupação de áreas íngremes por assentamentos
precários, sem infraestrutura urbana (principalmente sistemas de drenagem), a execução
de cortes e aterros instáveis (sem estruturas de contenção de taludes), os depósitos de
lixo nas encostas e a fragilidade das construções, acabam potencializando o risco de
deslizamentos nessas áreas, principalmente nos períodos de chuvas mais intensas e
prolongadas.158
Contudo, segundo estudos realizados pela Secretaria de Planejamento e
Investimentos estratégicos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, os
bairros legalmente implantados também encontram-se sujeitos a desastres associados a
deslizamentos, uma vez que não houve a devida incorporação (nos planos diretores, leis
de uso e ocupação do solo ou ao processo de licenciamento dos novos parcelamentos
urbanos) das questões atinentes às áreas de risco nos Municípios mais críticos. Assim,
falta um melhor mapeamento da suscetibilidade geológica/geotécnica aos fenômenos de
deslizamentos, inundações e enxurradas, bem como do mapeamento de riscos nas áreas
ocupadas, da definição de diretrizes para a ocupação urbana segura e do monitoramento
para reduzir a ocupação de áreas de maior fragilidade natural.159
Conforme mencionado, os movimentos de massa são classificados pela Defesa
Civil como desastres geológicos. Contudo, não obstante possam decorrer de outras
causas, tem-se que, em geral, os deslizamentos decorrem da infiltração das águas das
chuvas que minam a resistência mecânica do solo, fazendo com que este se mova da
área mais alta para a mais baixa, causando danos às populações instaladas nestas áreas.
Os deslizamentos são, em geral, provocados pela erosão causada pelo movimento das
águas dos rios, das massas glaciais ou das ondas oceânicas que também criam encostas
geral que é de 6 vezes. Assim, das 454 ocorrências registradas no período, 4% ocorreram na década de
1990 e 96% na década de 2000, destacando-se um pico de ocorrência no ano 2010, com 131 registros
157
BRASIL. Plano... op. cit., 2011. p. 211.
158
Disponível em: http://www.integracao.gov.br/pt/resultado-da-busca1?p_auth=0yN04NuS&p_p_auth=
9AQOUz5g&p_p_id=20&p_p_lifecycle=1&p_p_state=exclusive&p_p_mode=view&p_p_col_id=colum
n2&p_p_col_pos=1&p_p_col_count=2&_20_struts_action=%2Fdocument_library%2Fget_file&_20_gro
upId=10157&_20_folderId=118188&_20_name=2534. Acesso em 10.08.2013
159
BRASIL. Plano... op. cit., 2011. p. 212.
64
muito inclinadas. São processos comuns em regiões montanhosas e serranas, com
destaque para aqueles que possuem climas úmidos.160
Por tais razões, entendeu-se oportuno fazer menção a este tipo de desastre na
presente tese. Ademais, registre-se que o aumento da ocorrência desse tipo de desastre
decorre de uma série de fatores, tais como o aquecimento global, o aumento das chuvas,
etc. Contudo, esses deslizamentos também são agravados em função da urbanização
intensa e da construção de habitações em encostas acentuadas, alterando a paisagem
urbana.161
Da análise dos dados disponibilizados pelo Ministério da Integração Nacional,
depreende-se que o movimento de massas é uma espécie de desastre característica da
região Sudeste, que registra mais de 82% das ocorrências identificadas como
movimento de massa. Na análise dos danos humanos por região, verifica-se que 35% do
total de mortes ocasionadas por todos os desastres durante as décadas de 1990 e 2000
ocorreram em função dos movimentos de massa na região Sudeste. Do mesmo modo, na
região Sudeste estão também 90% dos afetados por esse tipo de desastre.162
Feitos tais esclarecimentos, passa-se a tratar dos desastres hidrológicos em
espécie.
A Constituição de 1967 foi a primeira a incluir em seu texto a defesa contra as
inundações. Segundo estabeleceu o artigo 8º, XII da referida carta constitucional, é de
competência da União “organizar a defesa permanente contra as calamidades públicas,
especialmente a seca e as inundações.” Tal redação foi mantida pela emenda
constitucional de 1969. A Constituição de 1988, por sua vez, ampliou tal proteção,
estabelecendo competir à União planejar e promover a defesa permanente contra as
calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações. Ademais, observe-se que
as secas inundações são, por expressa disposição constitucional, classificadas como
160
TOMINAGA, Lídia Keiko. Escorregamentos. In: TOMINAGA, Lídia Keiko; SANTORO, Jair;
AMARAL, Rosangela do. Desastres naturais: conhecer para prevenir. São Paulo: Instituto Geológico,
2009. p. 27.
161
ROSA FILHO, Artur; CORTEZ, Ana Tereza Cáceres. A problemática socioambiental da ocupação
urbana em áreas de risco de deslizamento da “Suíça Brasileira”. Revista Brasileira de Geografia Física.
Disponível em: <http://www.ufpe.br/ rbgfe/index.php/ revista/article/viewFile/76/76>. Acesso em: 10
dez. 2013.
162
BRASIL. Atlas... op. cit., 2012.
65
espécies de calamidade pública. Neste aspecto, observe-se, também, que a atual
Constituição determinou que a proteção permanente contra as secas e inundações deve
ser priorizada pela União. Tal inclusão demonstra a importância do combate à seca e às
inundações para a manutenção da vida humana.
As inundações podem ser classificadas em inundações graduais e inundações
bruscas. Contudo, em razão das diferentes percepções e terminologias utilizadas, há
uma dificuldade em padronizar as categorias e classificá-las.163 Acrescente-se, ainda,
que, além dos problemas tipicamente conceituais e etimológicos, algumas
características comportamentais são similares para ambas às inundações, ou seja,
ocorrem tanto nas inundações graduais como nas bruscas.164
As inundações graduais encontram-se associadas ao aumento paulatino do nível
das águas em um curso d’água estabelecido (tal como um rio, um córrego, ou um canal
de drenagem ou um dique). Tal aumento geralmente é previsível e o escoamento do
nível das águas também costuma ocorrer gradualmente. Normalmente, as inundações
graduais são cíclicas e nitidamente sazonais.165
KOBYAMA faz, ainda, menção às denominadas inundações ribeirinhas, que
seriam aquelas que ocorrem quando a precipitação é intensa e o solo não tem
capacidade de infiltração, fazendo com que grande parte do volume acabe escoando
para o sistema de drenagem, superando sua capacidade natural de escoamento, de tal
forma que o excesso de volume que não consegue ser drenado acaba ocupando a várzea
e inundando áreas próximas aos rios, de acordo com a topografia.166
As inundações bruscas também são chamadas de “enxurradas”. Aliás, a
COBRADE e a CODAR incluíram expressamente a categoria “enxurrada” dentre as
espécies de desastres hidrológicos. Desta forma, a enxurrada pode ser conceituada como
163
KOBIYAMA, op. cit., p. 47. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/lideres/portugues/cursobrasil08/documentos_e_artigos/ Prevencao%20desastres%20naturais.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2013.
164
Ao que parece, a classificação elaborada pela COBRADE procurou restringir a categoria “inundação”
para as hipóteses de inundações graduais, reservando a expressão “enxurrada” para as hipóteses de
“inundação brusca”
165
GOERL, Roberto Fabris; KOBIYAMA, M. Considerações sobre as inundações no Brasil. In:
SIMPÓSIO BRASILEIRO DE RECURSOS HÍDRICOS, 16., 2005, João Pessoa. Anais... João Pessoa,
2005. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/lideres/portugues/curso-brasil08/documentos_e_
artigos/Preven cao%20 desastres%20 naturais.pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013
166
Ibidem
66
o escoamento superficial concentrado e com alta energia de transporte, ou, em outras
palavras: a enxurrada refere-se aos escoamentos pluviais concentrados ao longo dos
cursos d’água ou em vias públicas, caracterizados pelo grande poder de acumulação das
águas superficiais e alto poder destrutivo e de arraste.167 Observa-se, assim, que as
enxurradas são desastres associados a escoamento superficial de alta velocidade e
energia, desencadeado por chuvas intensas e concentradas.168
Deste modo, as enxurradas surgem quando a água da chuva não escorre pelas
canalizações, ficando em cima das ruas. Assim, as enxurradas, também denominadas de
inundações bruscas (Flash flood) costumam ser causadas por chuvas excessivas em um
curto período de tempo, geralmente concentradas em regiões de relevo acidentado,
caracterizando-se por súbitas e violentas elevações dos caudais, os quais escoam-se de
forma rápida e intensa, afetando uma área muito limitada, durando de algumas horas a
poucos dias.169Assim, as inundações repentinas ou súbitas seriam aquelas que “ocorrem
como resultado de intensas chuvas em pequeno intervalo de tempo”170.
As enchentes não estão elencadas na COBRADE, sendo consideradas como
sinônimas às inundações. De acordo com o Glossário de Termos Relacionados à Gestão
de Recursos Hídricos, elaborado pelo IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas),
enchente é o transbordamento das águas do leito natural de um córrego, rio, lagoa, mar,
etc., provocado pela ocorrência de vazões relativamente grandes de escoamento
superficial, ocasionados comumente por chuvas intensas e contínuas. 171
De acordo com o Ministério das Cidades/IPT 2007, as enchentes ou cheias são
definidas pela elevação do nível d’água no canal de drenagem devido ao aumento da
vazão, atingindo a cota máxima do canal, porém, sem extravasar. Dessa forma, é
possível estabelecer uma diferença entre enchente e inundação, apesar da COBRADE
não ter feito essa diferenciação. Assim, caso haja a elevação do leito de um rio até a
altura de suas margens, sem chegar às áreas adjacentes ter-se-á uma enchente e, a partir
167
NOBRE, Carlos A.; YOUNG, Andrea F. Vulnerabilidades das megacidades brasileiras às
mudanças climáticas: região metropolitana de São Paulo. Relatório final. Campinas: Unicamp, 2011. p.
141.
168
BRASIL. Anuário... op. cit., 2012. p. 47.
169
GOERL, op. cit., 2013.
170
DÓRIA, op. cit., p. 48.
171
Disponível em: http://defesacivil.to.gov.br/enchente/. Acesso em 10.12.2013
67
do momento em que as águas transbordarem, ocorrerá uma inundação. No mesmo
sentido é a opinião de CARVALHO, para quem as enchentes ou cheias correspondem à
elevação do nível de água em um canal de drenagem, em decorrência do aumento da
vazão ou descarga.172 Importante frisar que a inundação também pode ser provocada de
forma induzida pelo ser humano, por meio da construção de barragens e pela abertura
ou rompimento de comportas de represas. Assim, a enchente (chamada por alguns de
“cheia") se configuraria como uma situação natural de transbordamento de água do seu
leito natural, provocada geralmente por chuvas intensas e contínuas173
Como se vê, apesar de muitas vezes serem tratadas como expressões sinônimas,
observa-se a existência de uma diferença conceitual entre enchentes e inundações.
Assim, as primeiras referem-se a ocorrências naturais e previsíveis que, em geral não
afetam diretamente a população, tendo em vista sua ciclicidade. Já as inundações são
provocadas (ou agravadas) pelas modificações implementadas no uso do solo, podendo
provocar danos de grandes proporções.
KOBYAMA também diferencia inundação de enchente. Segundo o autor, a
inundação pode ser conceituada como o aumento do nível dos rios além da sua vazão
normal, ocorrendo o transbordamento de suas águas sobre as áreas próximas a ele.
Quando não ocorre o transbordamento, apesar do rio ficar praticamente cheio, tem-se
uma “enchente”174Assim, as cheias ou enchentes estariam relacionadas a causas
naturais, ao passo que o alagamento e a inundação decorrem da ação humana.
Segundo
PEITER,
a
inundação
constitui-se
como
um
processo
de
extravazamento das águas do canal de drenagem para as áreas marginais (planície de
inundação, várzea ou leito maior do rio) quando a enchente atinge cota acima do nível
máximo da calha principal do rio), ou, ainda, quando a enchente atinge cota acima do
172
CARVALHO, Celso Santos, MACEDO Eduardo Soares de; OGURA, Agostinho Tadashi (Org.).
Mapeamento de risco em encostas e margens de rios. Brasília: Instituto de Pesquisas Tecnológicas, 2007.
p.90-91.
173
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Enchente>. Acesso em: 07 set. 2013.
174
KOBIYAMA, Masato et al. Prevenção de desastres naturais: conceitos básicos. Curitiba: Organic
Trading, 2006. p. 45-6.
68
nível máximo da calha principal do rio.175 Assim, como se vê, a referida autora trata tais
expressões como sinônimas.176
Por fim, há, ainda, segundo a classificação adotada pela COBRADE, os
desastres naturais hidrológicos decorrentes de alagamento. Neste aspecto, tem-se que a
expressão “alagamento”, refere-se a um acúmulo momentâneo de águas em uma dada
área decorrente de deficiência no sistema de drenagem. 177 Assim, este tipo de desastre é
resultado da combinação de precipitações intensas com a superação da capacidade de
escoamento de sistemas de drenagem urbana, gerando acúmulo de águas em
infraestruturas urbanas.178 Os alagamentos são geralmente acumulações rasas de
lâminas d’água que afetam as vias públicas, causando transtornos momentâneos para a
circulação de pedestres e veículos. Segundo a COBRADE, os alagamentos são
definidos como uma extrapolação da capacidade de escoamento dos sistemas de
drenagem urbano que acabam causando um acumula de águas em ruas, calçadas e
outras infraestruturas urbanas, em razão de precipitações intensas.179
Como se vê, várias são as espécies de desastres “naturais” hidrológicos que
podem atingir o cidadão. Muitas vezes, entretanto, o cidadão pode ser o causador ou
colaborador de um determinado desastre hidrológico. Tal análise passa a ser feita a
seguir.
1.5 O CIDADÃO ENQUANTO CAUSADOR, COLABORADOR E VÍTIMA DOS
DESASTRES HIDROLÓGICOS
Conforme mencionado, os desastres podem advir de diversas causas. Segundo a
COTAR, tem-se que, quando decorrem da ação da natureza sem a participação dos seres
humanos, são chamados de desastres naturais. Quando decorrem da ação humana são
175
PEITER, Claudia Maria. Desastres naturais: enchentes e inundações e o papel do estado e da
sociedade na gestão de segurança pública. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Vale do Itajaí, 2012.
p. 54.
176
Para os fins objetivados neste estudo e, em sintonia com a nomenclatura utilizada pela COBRADE, a
expressão enchente será utilizada como sinônima de inundação brusca, não obstante tenha-se consciência
das diferenças apontadas por parte da doutrina.
177
PEITER, op. cit., p. 55.
178
BRASIL. Anuário..., op. cit., 2012. p. 45.
179
Ibidem, p. 73.
69
chamados de desastres antropogênicos e, finalmente, quando há participação da
natureza e dos seres humanos são chamados de desastres mistos.180 Assim, a depender
do tipo de desastre, o ser humano pode ser causador, colaborador ou, simplesmente,
vítima dos desastres. Em vários casos a sociedade será, ao mesmo tempo, causadora e
vítima dos desastres. Aliás, segundo SCHENKEL “o ser humano é o grande
responsável pela ocorrência dos desastres, tornando-se vítima de si mesmo”.181
Com o crescimento da população, o desenvolvimento industrial, a necessidade
de ampliação de áreas para construção de casas, empresas, áreas para agricultura e
pecuária, etc. houve uma maior intervenção do ser humano no meio ambiente, o que
contribuiu significativamente para o declínio das condições ambientais no planeta e,
consequentemente, para o aumento dos desastres.
Por outro lado, os seres humanos também sofrem os efeitos negativos da
ocorrência de um desastre ou de sua iminência, sendo certo, que, tradicionalmente, os
ônus ambientais do desenvolvimento são suportados por hipossuficientes econômicos,
quais sejam: minorias e grupos vulneráveis.182 Nesta situação, há autores que chegam a
falar em prevítimas dos desastres, que são aquelas pessoas que se encontram vivendo
em áreas propensas a desastres, em condições de vida inadequadas e com déficit de
alimentação, tornando-se, assim, mais vulneráveis aos desastres.183 Registre-se,
entretanto, que os denominados desastres “naturais” hidrológicos não atingem apenas as
pessoas de baixa renda econômica (apesar de serem as comumente mais atingidas pelos
impactos decorrentes de um desastre dessa natureza).
Com relação às pessoas que sofrem os efeitos decorrentes de um desastre
hidrológico, a Defesa Civil utiliza diversas classificações. O termo mais amplo refere-se
aos afetados, que seriam todas as pessoas que tenham sido atingidas ou prejudicadas em
180
Registre-se, entretanto, que a COBRADE simplificou tal classificação fazendo menção, apenas, a
desastres naturais e tecnológicos.
181
SCHENKEL, op. cit., p. 45.
182
SÉGUIN, Elida. Justiça ambiental e o etnodesenvolvimento. Revista de Direito e Política, IBAP –
Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, ano 9, v. 21, p. 32.
183
WIJKMAN, op. cit., p. 152.
70
decorrência de um desastre. Assim, abrange todas as vítimas dos desastres, incluindo os
deslocados, desabrigados, feridos, etc.184
A proteção dos direitos fundamentais tem, como foco central, o ser humano.
Desta forma, a manutenção de sua dignidade, bem como dos demais direitos
fundamentais dela decorrentes (tais como o direito à vida, saúde, moradia, segurança,
alimentação, etc.) precisam ser protegidos e tutelados pelo ordenamento jurídico.
Assim, a análise das vítimas do desastre é importante não só pelos aspectos
humanitários, mas, também, em razão dos bens jurídicos atingidos em razão da
ocorrência de um desastre. Do mesmo modo, assevere-se que os danos humanos são
considerados critérios preponderantes para a definição da intensidade dos desastres.185
Assim, fala-se em feridos graves, desaparecidos, deslocados, desabrigados e mortos.
Em desastres de menor gravidade fala-se em enfermos, feridos leves e desalojados.186
Deste modo, quando uma pessoa ferida necessita de hospitalização, fala-se em
pessoa gravemente ferida; reservando-se a expressão levemente ferida para aquela que,
apesar de ter sido ferida em razão do desastre, não necessita de hospitalização.
Há, também, os “deslocados”, que são constituidos pelas pessoas que migram da
área afetada por determinado desastre, necessitando de medidas assistenciais e
promocionais, com o objetivo de reduzir o fluxo migratório, incluindo-se, entre estas, a
distribuição de cestas básicas de alimentos. Nesta categoria, incluem-se os chamados
“retirantes”.
Segundo estabelecem os Princípios Orientadores relativos aos Deslocados
Internos187, considera-se “deslocados internos” as pessoas, ou grupos de pessoas,
forçadas ou obrigadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência
184
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Manual de planejamento em defesa civil. Brasília,
1999. v. 1. p. 9-11.
185
Neste sentido, veja-se: Relatório Estatístico Anual do EM-DAT e instrução normativa nº 1, de 24 de
agosto de 2012, do Ministério da Integração Nacional
186
BRASIL. Manual... op. cit., 2007.
187
Os Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos não se constituem como um instrumento
legal vinculativo, buscando fundamento em princípios de direito internacional dos direitos humanos,
direito humanitário internacional e, por analogia, o direito dos refugiados. Observe-se, entretanto, que a
Assembleia Geral da ONU aprovou, em 3 de julho de 2012, a resolução 66/283 - concernente à situação
dos deslocados internos e refugiados da Geórgia. Tal resolução reconheceu os Princípios Orientadores
relativos aos Deslocados Internos como a estrutura internacional fundamental para a proteção de pessoas
deslocadas.
71
habituais, particularmente em consequência (dentre outros fatores) de calamidades
humanas ou naturais, e que não tenham atravessado uma fronteira internacionalmente
reconhecida de um Estado. Assim, muito embora
tais deslocamentos costumem
decorrer de conflitos armados, situações de violência generalizada ou violações dos
direitos humanos, os desastres naturais também podem dar ensejo
a estes
deslocamentos. Neste aspecto, registre-se – já no Princípio 1 – que os deslocados
internos devem gozar, em pé de igualdade, dos mesmos direitos e liberdades que as
demais pessoas no seu país. Assim, mesmo em situações de calamidade, os deslocados
não devem ser discriminados, nem ter quaisquer dos seus direitos tolhidos em razão do
fato ocorrido. Desta forma, deve o Poder Público garantir a proteção e a assistência
humanitária aos deslocados internos que se encontrem na sua área de jurisdição,
podendo estes solicitar e receber proteção e assistência humanitária destas autoridades
(Princípio 3).
Observando-se algumas leis locais, tem-se que o desabrigado seria a
pessoa desalojada ou cuja habitação foi afetada por dano ou ameaça de dano e que
necessita de abrigo pelo Sistema de Defesa Civil.188 Assim, da mesma forma, os
“desabrigados” necessitam de abrigo temporário, consistente em instalações e recursos
humanos, materiais e institucionais necessários ao alojamento dos mesmos. Neste
aspecto, é importante que as áreas destinadas aos abrigos provisórios sejam definidas
antes da ocorrência de um desastre, de modo que haja tempo para selecionar e preparar
o local que servirá como abrigo. Tais áreas devem estar a salvo de inundações, situandose em locais de pequeno declive, de modo a facilitar a drenagem das águas pluviais. Do
mesmo modo, devem ser realizadas as obras preparatórias necessárias para que o local
possa abrigar a população eventualmente desabrigada, tais como abastecimento de água,
sanitários, depósitos para lixo, etc.189
Para VALENCIO
188
Decreto nº 17.851, do município de campinas, de 23 de janeiro de 2013, o qual dispõe sobre o plano
municipal integrado de gerenciamento de assistência humanitária para situações de desastres
189
Organização Mundial da Saúde. A atuação do pessoal local de saúde e da comunidade frente aos
desastres naturais. Genebra, 1981, p. 21
72
O abrigo provisório é o último refúgio dos grupos que estão, mesmo antes do
desastre, em extensa desfiliação social Sendo território coletivo e púbico, sob
o controle do estado, o abrigo deverá ser o ambiente que, através dos
procedimentos de atendimento das famílias nos direitos de repouso,
vestuário, alimentação, higiene, atendimento de saúde, privacidade, além do
fornecimento de um horizonte de reconstrução, apontaria a reversão da
barbárie, ou seja, um ponto tal, que a decrepitude das relações sociopolíticas,
com implicações territoriais, não poderia ultrapassar.190
Em um grau de vulnerabilidade menor tem-se os denominados desalojados.
Nesta categoria incluem-se as pessoas cujas habitações foram danificadas ou destruídas
mas que, não necessariamente, precisam de abrigo temporário. Assim, considera-se
desalojada aquela pessoa que foi obrigada a abandonar temporária ou definitivamente
sua habitação, em função de evacuações preventivas, destruição ou avaria grave,
decorrentes do desastre, e que não necessariamente, necessita de abrigo provido pelo
Sistema de Defesa Civil.191
Por fim, há de se mencionar os enfermos (que são as pessoas doentes, em
consequência do desastre) e os desaparecidos, que seriam as pessoas que não tenham
sido localizadas, bem como aquelas sem destino desconhecido, em circunstância de
desastres.192
Como se vê, grande parte dos cidadãos atingidos diretamente por um desastre
precisa de auxílio do Poder Público ou da comunidade para se reestruturar novamente.
São pessoas que sofreram lesões físicas, emocionais e, também, patrimoniais que lhes
dificultam o exercício dos seus direitos fundamentais e, consequentemente, da
manutenção da dignidade da pessoa humana.
Ademais, não é à toa que a Defesa Civil é conceituada como um conjunto de
ações preventivas, de socorro, assistências e recuperativas destinadas a evitar ou
minimizar os desastres, preservar o moral da população e restabelecer a normalidade
social. A chamada “preservação da moral da população” encontra-se diretamente
190
VALÊNCIO, Norma. Desastre como reflexo da crueldade institucionalizada: o caso brasileiro. In:
USSIER, Jorge Luiz; MALAQUIAS, Mário Augusto Vicente ((Org.). Temas de direito urbanístico 6.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2011. p. 322.
191
Decreto nº 17.851, do município de campinas, de 23 de janeiro de 2013, o qual dispõe sobre o plano
municipal integrado de gerenciamento de assistência humanitária para situações de desastres
192
Decreto nº 17.851, do município de campinas, de 23 de janeiro de 2013, o qual dispõe sobre o plano
municipal integrado de gerenciamento de assistência humanitária para situações de desastres
73
relacionada à proteção da dignidade da pessoa humana, uma vez que, apesar dos
prejuízos sofridos, o indivíduo não deixa de ser cidadão, necessitando do auxílio do
Poder Público e da coletividade para se restabelecer.
Segundo dados do Ministério da Integração Nacional, as inundações bruscas e os
alagamentos são os desastres naturais que mais causam danos humanos no Brasil. O
estudo realizado no período de 1991 a 2010 traz a seguinte situação:193
Quadro 4 - Distribuição dos danos humanos dentro do território brasileiro
danos
humanos
sudeste
%
Norte
total
%
afetadas
20.254.061
21%
3.318.856
3%
45.827.366
48%
21.088.899
22%
5.731.157
6%
96.220.339
100%
mortas
2.436
70%
115
3%
494
14%
434
12%
15
0%
3.494
100%
enfermas
35.140
9%
159.714
40%
192.124
48%
9.040
2%
3.716
1%
399.734
100%
810
5%
4.350
25%
11.280
65%
949
5%
17
0%
17.406
100%
feridas
17.424
25%
11.703
17%
27.539
39%
12.831
18%
944
1%
70.441
100%
desaparecidas
252
4%
16
0%
5.096
90%
287
5%
1
0%
5.652
100%
deslocadas
277.090
15%
50.645
3%
1.344.858
72%
181.300
10%
4.814
0%
1.858.707
100%
desabrigadas
267.853
23%
114.681
10%
424.560
37%
319.788
28%
28.717
2%
1.155.599
100%
desalojadas
988.444
31%
286.138
9%
876.491
28%
972.998
31%
44.902
1%
3.168.973
100%
nordeste
Sul
centroeste
Gravemente
feridas
levemente
Fonte: Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010
Tais dados demonstram, ainda, que as regiões mais afetadas são a Sul e a
Sudeste, sendo certo que mais de 70% das mortes relacionadas a inundações bruscas
ocorreram nesta última. Já na região Norte observa-se um grande número de pessoas
desalojadas em decorrência do deslocamento sazonal das populações ribeirinhas,
durante o período das cheias dos rios da Bacia Amazônica. Por outro lado, tem-se que a
Região Nordeste é a que registrou maior número de afetados.
Segundo os dados obtidos, tem-se que as enfermidades detectadas aumentam à
medida que a qualidade da água disponível ao consumo fica escassa, fazendo com que a
população passe a consumir água sem tratamento adequado, o que promove os
problemas de saúde e doenças hídricas na população.
193
BRASIL. Atlas... op. cit., 2012.
74
Os dados ainda demonstram que no período de 1991 a 2010 a região brasileira
mais afetada foi a Nordeste, com 45.827.366 pessoas afetadas. A Região Sul é a
segunda em número de atingidos, quais sejam: 21.088.899 pessoas afetadas, seguida da
região Sudeste, com 20.254.061 pessoas afetadas. Os dados também demonstram os
tipos de desastres com maiores impactos humanos (pessoas afetadas, mortas, enfermas,
gravemente feridas, levemente feridas, desaparecidas, deslocadas, desabrigadas e
desalojgadas).194
Dos dados coletados, conclui-se que em virtude da interação entre o ser humano
e o meio ambiente (aliado uma série de fatores climatológicos, ambientais, urbanísticos,
etc.) tem havido um aumento do número de desastres no planeta. Nesta perspectiva, os
desastres hidrológicos constituem-se como a espécie de desastre que causa maior
número de mortos no Brasil.195
Assim, tendo em vista os danos causados por tais espécies de desastres aos
cidadãos (e, em especial, em razão do alto número de mortes decorrentes de desastres
hidrológicos) surge a necessidade de analisar-se as possibilidades de atuação jurídica
com vistas à proteção de tais indivíduos, dentro da teoria dos direitos fundamentais.
Ademais, observe-se que essa população (também chamada de “minorias”)
possui direitos que devem ser implementados, ainda que contra a vontade de supostas
maiorias. Logo, deve-se criar regras que favoreçam essas minorias e, consequentemente,
permitam-lhes o exercício de seus direitos fundamentais. Nesta perspectiva, as ações do
Poder Público (abrangendo os poderes executivo, legislativo e judiciário) assumem um
papel chave na implementação de políticas públicas voltadas para essa população.196
Isso porque, não obstante existam normas jurídicas tendentes à proteção dos direitos
fundamentais do indivíduo, há de se perquirir acerca da liberdade fática (real) dessas
“minorias” ou seja, na possibilidade fática de um indivíduo escolher entre duas
194
Para dados completos Cf. anexo 1
Segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Integração Nacional houve, no período de 1991 a
2010, 2.475 mortes decorrentes de desastres. Destas mortes, 43,19% decorreram de inundações bruscas, e
18,63% de inundações graduais, o que corresponde a 61,82% das mortes relacionadas a desastres no
período.
196
PEREIRA, Francisco Antônio Rodrigues. Ativismo judicial e a ideia de atividade política do poder
judiciário: perfil e limitações. (Dissertação) - Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2008. p. 37.
195
75
alternativas permitidas.197Assim, conclui-se que “a liberdade fática deve ser garantida
diretamente pelos direitos fundamentais.” 198
197
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São
Paulo: Malheiros, 2012. p. 503.
198
Ibidem, p. 505.
76
2. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA
DESASTRES
A teoria dos direitos fundamentais pode ser analisada a partir de prismas
diversos - histórico, filosófico, sociológico ou jurídico. ALEXY explica, então, essa
teoria a partir de três de seus atributos: o de uma teoria de direitos fundamentais da
Constituição alemã, o de uma teoria jurídica e o de uma teoria geral. 199 Considerandose, notadamente a abordagem desenvolvida pelo autor de uma teoria jurídica e de uma
teoria geral, o presente capítulo analisa determinados direitos fundamentais positivados
na Constituição de 1988 e busca contemplar não apenas “uma teoria ideal dos direitos
fundamentais” 200, mas aproximá-la da realidade.
Nesse sentido, a proteção aos direitos fundamentais deve ser compreendida
abrangendo, não apenas a vida e a saúde, mas “tudo aquilo que seja digno de proteção a
partir do ponto de vista dos direitos fundamentais.”201 Na realidade, os direitos
fundamentais compreendem pressupostos éticos e componentes jurídicos, ao conectar
assim ideias que sustentam a dignidade humana e seus objetivos com o direito que
transforma essas ideias e seus objetivos em normas fundamentais da ordem jurídica. E,
é justamente nesse sentido que se pode afirmar que os direitos fundamentais incluem,
em uma sociedade de risco, a proteção contra desastres, uma vez que a eclosão de um
desastre “natural” hidrológico afeta a dignidade da pessoa humana, na medida em que
acarreta-lhe danos à saúde, moradia e qualidade de vida. Igualmente, tais desastres
comprometem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, além de violar o
direito à vida, tendo em vista que os desastres hidrológicos são a espécie de desastre que
causa maior número de mortes.202
Os desastres, tendo em vista as consequências danosas causadas à sociedade,
exigem uma atuação efetiva do Poder Público e da sociedade com o propósito de
199
ALEXY, op. cit., 2012. p. 31.
Ibidem, p. 39.
201
Ibidem, p. 450.
202
De todas as mortes ocorridas no território brasileiro em decorrência de desastres naturais no período de
1991 a 2010, 43,19% decorreram de inundações bruscas, 20,40% de movimento de massa, 18,63% de
inundação gradual, 6,30% de vendaval e ciclone, 06,65% de granizo, 0,20% de tornado e 0,24% de erosão
200
77
minimizar suas consequências e, até mesmo, de evitá-lo, quando possível. Assim,
dentro do contexto de uma sociedade de risco, inserida em um Estado Democrático e de
Direito, torna-se possível defender a emergência de um direito fundamental de proteção
contra desastres, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana e decorrente da
ampliação do papel do Estado na proteção dos Direitos fundamentais.
Tal proteção fundamenta-se, também em uma série de outros direitos
fundamentais constitucionalmente previstos, tais como o direito à vida, moradia, saúde
e qualidade de vida, entre outros. Proteger o cidadão, garantindo o exercício da sua
cidadania, bem como propiciando o desenvolvimento sustentável, são medidas que
devem ser seguidas por todo Estado que tenha entre seus fundamentos a dignidade da
pessoa humana e entre seus objetivos a promoção do bem de todos, como estabelece o
texto constitucional brasileiro de 1988.203
2.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS: ORIGEM, EVOLUÇÃO E CARACTERÍSTICAS
Discorrendo sobre a temática dos direitos humanos, FLORES ensina que os
mesmos referem-se a dinâmicas sociais que objetivam a construção de condições
materiais e imateriais necessárias para a obtenção de determinados bens. Assim, para
ele, ao lutar pelo acesso a determinados bens, os atores sociais colocam em
funcionamento determinadas práticas sociais que visam propiciar ao ser humano os
meios e instrumentos (políticos, sociais, econômicos culturais ou jurídicos) que
possibilitem a construção das condições materiais e imateriais necessárias para viver
com dignidade.204 Logo, tais direitos originam-se das lutas sociais em busca do acesso
igualitário aos bens entendidos como “fundamentais” ou “essenciais” para a existência
de uma vida digna.
Para BOBBIO, os “direitos do homem” traduzem-se em um termo de difícil
conceituação, face sua amplitude terminológica. Trata-se, segundo ele, de direitos que
pertencem (ou deveriam pertencer) a todos os indivíduos. São direitos cujo
reconhecimento é condição imprescindível para o aperfeiçoamento da pessoa
203
204
Vide art. 1º, III e art. 3º, IV da CF
FLORES, op. cit., p. 37
78
humana.205 Para PANSIERI, os direitos fundamentais referem-se a normas definidoras
de direitos inerentes à pessoa humana.206
Na visão de FERRAJOLI, os direitos fundamentais são todos aqueles direitos
subjetivos atribuídos universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do
status de pessoas, entendendo-se como direito subjetivo207 toda expectativa positiva (de
prestações) ou negativa (e não causar danos) adstrita a um sujeito por meio de uma
norma jurídica.208 Nesta linha, é possível afirmar-se que os direitos fundamentais são
direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico e por meio dos quais outorga-se aos
titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face do Poder Público e dos
demais indivíduos. São, nos dizeres de MENDES, a um só tempo, direitos subjetivos e
elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva.209
Em relação à terminologia, os direitos fundamentais podem ter, conforme
destaca JAMPAULO, diferentes denominações: direitos individuais, liberdades
públicas, ou direitos do homem e do cidadão.210 No que diz respeito a essa discussão,
SARLET211 destaca que, ao menos na ótica semântica, o termo “direitos fundamentais”
é o gênero, o qual engloba as demais variações utilizadas em todo o texto constitucional
brasileiro, a saber: direitos do homem, direitos humanos, direitos subjetivos públicos,
liberdades públicas, direitos individuais, direitos humanos fundamentais, direitos
individuais, liberdades fundamentais, direitos de cidadania, direitos da personalidade
dentre tantos outros. Sobre o tema, há autores que entendem que os direitos
fundamentais estabelecidos na Constituição Federal são, em princípio, os mesmos
205
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 17.
PANSIERI. Do conteúdo à fundamentalidade do direito à moradia In: OLIVEIRA NETO, Francisco
José Rodrigues de, et al. Constituição e estado social: os obstáculos à concretização da constituição. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 121-2.
207
Na visão de FERRAJOLI (2001, p. 57), o direito subjetivo é uma expectativa para a qual corresponde
uma obrigação. Assim, uma expectativa positiva corresponde a uma obrigação positiva de prestação, ao
passo que uma expectativa negativa corresponde a uma obrigação negativa, no sentido de não lesionar.
208
FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta,
2001. p. 19.
209
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de
direito constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p . 2.
210
JAMPAULO JÚNIOR, João. Qualidade de vida, direito fundamental. Uma questão urbana: a
função social da cidade. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo,
2007. p. 180.
211
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012. p. 28.
206
79
direitos da personalidade, não havendo diferenças significativas entre tais direitos.212 No
mesmo sentido, o posicionamento de BITTAR213que considera direitos das
personalidades os mesmos direitos, mas sob o ângulo das relações entre particulares.
CARVALHO entende que “os direitos da personalidade são entendidos como os
direitos essenciais da pessoa, formando o núcleo da personalidade. São direitos próprios
da pessoa em si, existentes por natureza, a partir do ente humano...”214 Ademais,
ROCHA entende que “os direitos fundamentais são assim denominados por serem
conferidos pela Constituição e por terem função fundamentadora e legitimadora do
sistema jurídico-político do chamado Estado de Direito.”215 Desta forma, a organização
do Estado deve respeitar os direitos garantidos pelo ordenamento jurídico.
É certo que, esses posicionamentos têm como base perspectivas teóricas
distintas. Neste aspecto, há quem utilize o termo “direitos humanos” em âmbito
internacional, reservando a expressão “direitos fundamentais” para referir-se a tais
direitos em nível constitucional ou interno.216 A partir de uma perspectiva jurídicohistórica, os direitos fundamentais podem ser analisados enquanto direitos humanos
positivados nas Constituições, explícita ou implicitamente. Sobre o tema, tonar-se
importante destacar que
a constitucionalização dos direitos humanos (sob a
denominação de direitos fundamentais) é produto das lutas sociais, traduzindo-se em
uma massa densa e variável de interesses que se amoldam e conformam, consoante as
mudanças sociais.217
Deste modo, adotou-se na presente tese a perspectiva de análise dos direitos
humanos enquanto direitos fundamentais da pessoa humana considerada tanto no seu
aspecto individual como comunitário. Tais direitos fazem parte da própria essência
(corporal, espiritual e social) da pessoa e devem ser reconhecidos e respeitados por
todos os indivíduos e pelo Estado. Do mesmo modo, tem-se que tais direitos encontram212
Neste sentido: SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Novo Código Civil: tutela da dignidade da pessoa
humana no casamento. Revista do Advogado, ano 22, n. 68, p. 122, dez. 2002.
213
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007. p. 23.
214
CARVALHO. op. cit., p. 29.
215
ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. p.
137.
216
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322012000200013&script=sci_arttext.
Acesso em 8 dez. 2013.
217
DIAS, Daniella S. . Desenvolvimento urbano: princípios constitucionais. Curitiba: Juruá, 2002. p. 22.
80
se em constante evolução, ou seja: o rol de direitos fundamentais modifica-se em razão
de condições históricas ou transformações na sociedade, visando a manutenção da
dignidade da pessoa humana. Aliás, segundo BOBBIO, “não existem direitos
fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa
determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas”.218
Neste aspecto, tem-se que “perceber os direitos humanos como o resultado de lutas
implica sabê-los transitórios, contextuais e complexos.”219
Com relação ao rol de direitos que devem ser entendidos como “direitos
fundamentais” ou “direitos humanos”, há de se fazer uma breve digressão histórica, de
modo a observar sua evolução em torno de diferentes “gerações” ou “dimensões” de
direitos220 reconhecidas ao longo dos anos, uma vez que, com a evolução da sociedade,
novos direitos passaram a ser reconhecidos e protegidos. Aliás, há que se ter em mente
que o desenvolvimento do Estado encontra-se diretamente relacionado com o
desenvolvimento do indivíduo, de seu cidadão, de seus direitos fundamentais.221 Neste
aspecto, FLORES, ao tratar dos direitos humanos, analisa-os sob um enfoque
universalista, conceituando-os como direitos afirmados politicamente a partir de lutas
sociais.222
Assim, observa-se a existência de diversas “gerações” ou “dimensões” de
direitos fundamentais, havendo, inclusive, autores que defendem (além da existência
dos direitos de primeira, segunda e terceira dimensão) a existência de direitos de quarta
218
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 19.
CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart ; GRUBBA, Leilane Serratine. O embasamento dos
direitos humanos e sua relação com os direitos fundamentais a partir do diálogo garantista com a teoria da
reinvenção dos direitos humanos. In: Rev. direito GV vol.8 no.2 São Paulo July/Dec. 2012. Disponível
em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322012000200013>. Acesso em 10 de nov. 2013.
220
Com relação à nomenclatura, tem-se que a doutrina não é unânime sobre os termos a serem utilizados.
Para alguns, novas gerações de direitos fundamentais surgiriam com o desenvolvimento da sociedade e do
direito. Para outros, haveria, apenas, uma análise dos direitos fundamentais sob óticas diferentes,
passando-se, então, a falar-se em “dimensões” dos direitos fundamentais. Defendendo a utilização de
segundo termo, SARLET (SARLET, op. cit., 2012. p. 45) entende que o reconhecimento progressivo de
novos Direitos Fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementaridade (e não de
alternância) razão pela qual a expressão “gerações” de direito levaria à falsa impressão de que haveria a
substituição gradativa de uma geração por outra. Desta forma, adotar-se-á, na presente tese, a
terminologia “dimensões” de direitos fundamentais. Registgre-se, porém, que tanto para os que utilizama
a expressão “gerações” quanto para os que utilizam a expressão “dimensões” observa-se ter havido uma
significativa evolução no conteúdo desses direitos ao longo do tempo.
221
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. São Paulo: Método, 2011. p. 63.
222
FLORES, op. cit., p. 37
219
81
e de quinta dimensão.223 Deste modo, para o desenvolvimento da presente tese (e
caracterização da proteção contra desastres enquanto direito fundamental do ser
humano) será - inicialmente - realizada uma breve exposição acerca das diferentes
dimensões dos direitos fundamentais e sua evolução histórica para, na sequência, situarse a proteção contra desastres dentro das referidas dimensões e as características
inerentes a esta espécie de direito.
Os direitos fundamentais de primeira dimensão são aqueles que relacionados a
direitos do próprio indivíduo como tal, ou seja: direitos que limitam a atuação do
Estado na liberdade individual. São, conforme diz BONAVIDES, “direitos de
resistência ou de oposição perante o Estado”224, sendo também chamados de direitos
civis e políticos, os quais englobam os direitos à vida, à liberdade, a propriedade, à
igualdade formal, os direitos de participação política e algumas garantias processuais.
Aqui, encontram-se os direitos subjetivos dos cidadãos que exigem uma postura
negativa, não interventiva por parte do Estado. Os direitos humanos de primeira
dimensão consistem em “direitos de liberdade, isto é, direitos cujo exercício pelo
cidadão requer que o Estado e os concidadãos se abstenham de turbar.”225Assim, neste
primeiro momento, os direitos fundamentais estabelecem limites de atuação ao
Estado.226
Com o tempo, percebe-se que a simples existência de direitos negativos não era
suficiente para garantir a igualdade material entre as pessoas. Assim, torna-se necessária
a criação de direitos que possam resgatar o indivíduo da situação de massificação,
automatização, espoliação e coisificação imposta pelo capitalismo.227 Emerge a
necessidade de uma ação positiva por parte do Estado, afirmando-se os direitos
fundamentais de segunda dimensão, também chamados de direitos sociais e que se
constituem como uma série de direitos prestacionais, ou seja: impelem o Estado a
223
Neste sentido, veja-se: BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. Direitos
Fundamentais & Justiça, n. 3, abr./jun., 2008, p. 91. Disponível em: <http://www.dfj.inf.br/
Arquivos/PDF_ Livre/3_Doutrina_5.pdf>. Acesso em: 5 fev. 2013.
224
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 563-564
225
BUCCI, Maria Paula Dallari. (Org.). Politicas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São
Paulo: Saraiva, 2006. p. 3.
226
LEUZINGER, op. cit., 1999. p. 56.
227
LOPES, Othon de Azevedo. A dignidade da pessoa humana como princípio jurídico fundamental. In:
SILVA, Alexandre Vitorino da et al. Estudos de direito público: direitos fundamentais e estado
democrático de direito. Porto Alegre: Síntese, 2003. p. 198-9.
82
programar políticas públicas com vistas ao bem-estar social da população, exigindo-se,
portanto, uma postura mais ativa por parte do ente estatal. Para FERRAJOLI os direitos
sociais consistiriam em direitos positivos, ou seja, em expectativas de prestações por
parte dos outros.228 Segundo LEUZINGER:
Com o florescer da ideologia antiliberal, que dominou em grande parte o
século XX, em contraposição às enormes injustiças geradas pelo
abstencionismo do Estado Liberal, nasceram os chamados direitos
fundamentais de segunda geração – direitos de igualdade-, decorrentes da
transformação do Estado de Direito em Estado Social de Direito, tendentes à
afirmação dos chamados direitos sociais e à realização de objetivos de justiça
social.229
Neste contexto, ganham especial proteção jurídica os direitos sociais, os quais se
caracterizam como direitos a prestações sociais estatais, como o direito à saúde, o
direito à moradia, entre outros. Para ALEXY, os “direitos a prestação em sentido
estrito” constituem-se como direitos do indivíduo, em face do Estado, a algo que o
indivíduo, “se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta
suficiente no mercado, poderia também obter de particulares”.230 Tratam-se, portanto,
de direitos que dependem de providências positivas do Poder Público, caracterizandose, assim, como prestações positivas impostas às autoridades públicas.231
Assim, diferentemente dos direitos de primeira dimensão, tem-se, aqui, uma
exigência em face do Estado, no sentido de que este assegure o exercício de
determinados direitos por meio da implementação de políticas públicas, impondo-se ao
Estado uma obrigação de fazer, que acaba correspondendo à concretização dos direitos
à saúde, educação, trabalho, habitação, assistência social e demais direitos sociais. Nesta
vertente, os direitos sociais representam uma mudança de paradigma no direito,
modificando a postura abstencionista do Estado e atribuindo-lhe um enfoque
prestacional, característico das obrigações de fazer.232 Desse modo, tais direitos devem
ser observados e respeitados em um Estado Social de Direito a fim de garantir a
228
FERRAJOLI, op. cit., p. 294.
LEUZINGER, op. cit., p. 57.
230
ALEXY, op. cit., 2012. p. 499.
231
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros,
2012. p. 151.
232
BUCCI, op. cit., 2006. p. 2-3.
229
83
melhoria das condições de vida dos membros da sociedade e, em especial, dos
notadamente hipossuficientes, visando à concretização de uma igualdade material. Em
outras palavras: os direitos sociais são direitos-meio, ou seja: direitos que tem como
principal função assegurar a todas as pessoas condições de gozar os direitos individuais
de primeira dimensão.233 Por fim, ALEXY esclarece que todos os direitos a prestações
em sentido estrito seriam direitos fundamentais sociais, tendo em vista as características
que lhes são peculiares.234
Do mesmo modo, com o desenvolvimento da sociedade, houve um aumento no
rol de direitos a serem tutelados. Neste contexto, os direitos fundamentais de terceira
dimensão surgem como direitos de fraternidade ou solidariedade, objetivando tutelar a
qualidade de vida e a solidariedade entre os homens. Tais direitos abrangeriam o direito
a um meio ambiente equilibrado, a uma saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz,
à autodeterminação dos povos e a outros direitos difusos, pertencentes a grupos
determinados.235 Neste sentido, registre-se que os direitos difusos são direitos que
pertencem a grandes grupos ou parcelas de grupos, constituindo-se como prerrogativas
jurídicas coletivas; assim, não se traduzem em direitos individuais ou personalíssimos,
mas, sim, como direitos de comunidades e coletividades, que podem ser postulados por
entidades que as representam ou por órgãos públicos que tutelem o bem comum.236
Desse modo, os direitos de terceira dimensão passam a se caracterizar em função
da sua transindividualidade, ou seja: caracterizam-se como direitos de titularidade
coletiva ou difusa, abrangendo a preservação ambiental e cultural, os direitos dos
consumidores e das minorias étnicas e sociais, e consubstanciando-se como direitos
difusos, sendo possível mencionar-se, ainda, o direito à paz, o direito ao
desenvolvimento, o direito ao meio ambiente e o direito ao patrimônio comum da
humanidade.237 Assim, a Constituição brasileira, além de reconhecer a existência dos
233
BUCCI, op. cit., 2006. p. 3.
ALEXY, op. cit., 2012. p. 499.
235
VIGLIAR, José Marcelo. Ação civil pública. São Paulo: Atlas, 1997. p. 42.
236
AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito ao meio ambiente e participação popular. Brasília:
Edições IBAMA, Coleção meio ambiente, 1998. p. 31.
237
LEUZINGER, Marcia Dieguez. Natureza e cultura: direito ao meio ambiente equilibrado e direitos
culturais diante da criação de unidades de conservação de proteção integral e domínio público habitadas
por populações tradicionais. Tese (Doutorado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2007. p. 35.
234
84
interesses difusos e coletivos, estabeleceu um “sistema de garantia” de tais interesses,
definindo titulares para sua proteção e instrumentos jurídicos correlatos.238
Em relação aos direitos fundamentais de quarta e quinta dimensão, destaque-se
que, por exemplo, BOBBIO, os relaciona aqueles direitos associados à engenharia
genética,239 enquanto que BONAVIDES afirma que tais direitos são considerados como
necessários à concretização da sociedade aberta ao futuro, em sua dimensão de máxima
universalidade, associando-os assim ao direito à democracia, à informação e à
pluralidade.
240
Já os direitos fundamentais de quinta dimensão seriam os direitos
relacionados à paz, destacando BONAVIDES que a paz passa a ser reconhecida como
condição indispensável ao progresso de todas as nações, constituindo-se em um direito
natural dos povos.241
Refletindo-se acerca das diversas dimensões apresentadas, constata-se que um
mesmo direito fundamental pode – a depender da situação fática existente – ser
classificado sob “gerações” ou
“dimensões” diversas. Nesta perspectiva, o direito
proteção contra desastres (analisado de forma ampla, e abrangendo as diversas
modalidades de desastres possíveis)242 pode ser tutelado enquanto direito fundamental
de: primeira dimensão (quando não há a necessidade de intervenção do Poder Público);
segunda dimensão (quando a proteção refere-se todo o corpo social); terceira (quando se
relaciona a determinados grupos de indivíduos); quarta (quando sua ocorrência pode
agredir o patrimônio genético da espécie humana, comprometendo sua existência);243 e
quinta dimensão (quando a ocorrência de um desastre pode afetar
o direito à
convivência pacífica entre os seres humanos.).
238
SMANIO, Gianpaolo Poggio. A tutela constitucional dos interesses difusos. Revista do Ministério
Público, Rio de Janeiro, n. 21, jan./jun. 2005. p.133.
239
BOBBIO, op. cit.,
240
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. p.525.
241
BONAVIDES, op. cit., 2008, p. 83-91. Disponível em: <http://www.dfj.inf.br/ Arquivos/
PDF_Livre/3_Doutrina_5.pdf>. Acesso em: 05 out. 2013.
242
Conforme apresentado há, além dos desastres naturais (que abrangem os desastres geológicos,
hidrológicos, meteorológicos, climatológicos e biológicos) e os desastres tecnológicos (que abrangem os
desastres relacionados a substâncias radioativas, produtos perigosos, incêndios urbanos, obras civis e
transporte de passageiros e cargas). Para maiores detalhes vejam-se as tabelas da CODAR e da
COBRADE, anexas à presente tese.
243
Cite-se os desastres radioativos, as mutações genéticas e outros desastres que possam causar
alterações no genoma humano
85
Por esta razão, há autores que criticam esta divisão. Neste sentido, observa-se
que, no âmbito da teoria crítica dos direitos humanos, de Joaquín Flores244, não há
relevância na divisão dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, nem, tão
pouco, em atribuir-lhes graus de importância, haja vista que a luta por dignidade possui
caráter global e universal, não sendo possível compartimentalizar ou dividir os direitos
relacionados à manutenção dessa dignidade.245
A subdivisão dos direitos fundamentais em gerações (ou
dimensões) vem
apenas reforçar a ideia de que o conteúdo jurídico da dignidade humana (e
consequentemente, o rol dos direitos fundamentais) tende a se ampliar ao longo dos
anos, na medida em que a sociedade evolui e novos direitos são reconhecidos e
agregados ao rol dos direitos fundamentais.246 Contudo, o surgimento e a ampliação de
novos direitos visa, apenas, ampliar a proteção conferida ao ser humano em sua essência
e dignidade. Ademais, com base no disposto no artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição
Federal, tem-se que direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte. Logo, trata-se de rol meramente
exemplificativo, sendo possível concluir-se pela aceitação da existência de direitos
fundamentais fora do Título II e, inclusive, fora do corpo da Constituição Federal.247
Dentro deste cenário jurídico, torna-se possível afirmar que a proteção contra desastres
encontra-se contemplada no texto constitucional implicitamente (por força do disposto
no citado parágrafo segundo do artigo 5º) e, no tocante aos desastres hidrológicos,
houve expressa menção no texto constitucional acerca da importância de sua proteção.
Tal proteção em nível constitucional é relevante em razão dos desdobramentos que o
reconhecimento do atributo de direito “fundamental” acarreta em relação à proteção
contra desastres hidrológicos.
Os direitos fundamentais (também chamados de direitos da personalidade,
direitos do homem, direitos humanos, etc.) constituem-se como direitos essenciais para
244
Cf. FLORES, op. Cit.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322012000200013&script=sci_
arttext>. Acesso em: 08 dez. 2013
246
BUCCI, op. cit., 2006. p. 3.
247
MEDEIRO, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto alegre:
Livraria do Advogado, 2004. p. 110-111.
245
86
a manutenção da dignidade da pessoa humana, razão pela qual possuem características
próprias, as quais os singularizam, tornando-os essenciais. Tais características visam
permitir a adequada proteção da pessoa humana em todos os seus atributos, de forma a
proteger e assegurar a concretização da dignidade da pessoa humana, a qual se constitui
como fundamento da ordem jurídica. Discorrendo acerca das características inerentes
aos direitos fundamentais, LEUZINGER afirma que, por serem direitos cujo conteúdo
desdobra os conceitos jurídicos de dignidade, de liberdade, de igualdade, possuem
características próprias e que os distinguem de outros direitos. Entre tais características,
destacam-se a irrenunciabilidade, a irrevogabilidade, a imprescritibilidade, a
inalienabilidade,
a
inviolabilidade,
a
interdependência e a complementariedade.
indivisibilidade,
a
universalidade,
a
248
Tratando do tema sob a ótica dos direitos humanos, ÂNGELO249, aduz que as
principais
características
dos
direitos
humanos
são
aquelas
relacionadas
à
inviolabilidade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade, inalienabilidade, universalidade,
efetividade, interdependência, complementariedade. MORAES, a seu turno, ensina que,
segundo a concepção jusnaturalista, os direitos fundamentais possuem seis
características básicas. São elas: o fato dos direitos fundamentais serem inatos, ou seja
inerentes à natureza da pessoa humana e preexistentes ao Estado. São inalienáveis e,
consequentemente, intransmissíveis, inegociáveis e indisponíveis. São imprescritíveis.
São irrenunciáveis. São, ainda, direitos absolutos, na medida em que sua validade
independe de positivação interna constitucional. E, finalmente, são direitos
universais.250 Como se vê, a depender dos critérios ou concepções utilizadas, a
quantidade de características inerentes a tais direitos poderá variar, mantendo-se,
entretanto, as características essenciais desse direito que são a sua irrenunciabilidade e
constante evolução e ampliação. Especificamente em relação à proteção contra desastres
hidrológicos, merecem destaque determinadas características inerentes aos direitos
fundamentais e que contribuem para a afirmação do direito de proteção contra desastres
enquanto
direito
fundamental
do
indivíduo.
Assim,
a
indisponibilidade,
a
irrenunciabilidade, a intransmissibilidade, a inalienabilidade, a imprescritibilidade, a
248
LEUZINGER, op. cit., 2007. p. 29.
ÂNGELO, Milton. Direitos humanos. São Paulo: Editora de Direito, 1998. p. 18.
250
MORAES, Guilherme Braga Pena. Dos direitos fundamentais: contribuição para uma teoria. São
Paulo: Ltr, 1997. p. 137-8.
249
87
inviolabilidade, a vitaliciedade, a universalidade, a oponibilidade erga omnes, a
indivisibilidade, a efetividade, a irrevogabilidade, a proibição de retrocesso, a
autoaplicabilidade, a complementariedade, a interdependência, a não taxatividade e a
extrapatrimonialidade dos direitos fundamentais são algumas características que podem
ser elencadas na busca pela proteção contra desastres “naturais” hidrológicos.
Conforme mencionado, uma das características constantemente atribuídas aos
direitos fundamentais refere-se à indisponibilidade de tais direitos. Assim, por serem
direitos inerentes ao ser humano seus titulares não podem deles dispor. Registre-se que,
conforme assevera a doutrina, a indisponibilidade abrangeria os conceitos de
intransmissibilidade
e
irrenunciabilidade.251Assim,
a
indisponibilidade
(ou
irrenunciabilidade) refere-se ao fato de que não é possível abdicar-se de tais direitos.
Nesse contexto, nenhuma pessoa, inclusive o próprio titular, pode deles dispor, haja
vista que a proteção de tais direitos não se limita ao interesse de seu titular, passando a
interessar a toda a coletividade.252 Neste aspecto, FERRAJOLI destaca como
características dos direitos fundamentais seu caráter indisponível e inalienável.253 Tal
característica também encontra-se presente em sede de proteção contra desastres, uma
vez que os danos decorrentes dos desastres não atingem apenas o indivíduo, mas,
também, um número grande de pessoas, razão pela qual Estado e sociedade têm
interesse na proteção contra a ocorrência de eventos dessa natureza.
Em decorrência da indisponibilidade de tais direitos, tem-se serem eles, também,
irrenunciáveis. Tal característica refere-se ao fato de que não é possível abdicar-se de
tais direitos, razão pela qual nenhuma pessoa, inclusive o próprio titular, pode deles
dispor. Isso porque, em razão de da relevância de tais direitos, sua proteção não se
limita ao interesse de seu titular, passando a interessar a toda a coletividade. A proteção
contra desastres implica na proteção do direito à vida, de tal forma que – havendo risco
251
Segundo assevera LOTUFO, a indisponibilidade abrangeria os conceitos de intransmissibilidade e
irrenunciabilidade.
252
Observe-se, entretanto, que determinados direitos fundamentais possuem maior ou menor margem de
liberdade de disposição por parte do indivíduo. Neste sentido, veja-se: JABUR, Gilberto Haddad.
Liberdade de pensamento e direito à vida privada: conflitos entre direitos da personalidade, p. 57-8
253
FERRAJOLI, op. cit., p. 292.
88
para tal bem jurídico – a atuação do Estado e dos demais membros da coletividade na
proteção de tal direito é autorizada pela ordem jurídica.254
Há, também, menção à intransmissibilidade e inalienabilidade dos direitos
fundamentais. Tal intransmissibilidade refere-se ao fato de que tais direitos encontramse intimamente atrelados ao seu titular, de tal forma que nem mesmo ele possa alienálos ou transmiti-los a outrem. Assim, a natureza de tais direitos não permite que um
indivíduo deles se despoje, uma vez que há uma preocupação por parte de todo o corpo
social no sentido de que tais direitos se mantenham unidos ao seu titular, pois não
podem eles ser alienados ou negociados junto a outros indivíduos.255 Logo, são direitos
intransferíveis, a título oneroso ou gratuito. Nesta perspectiva, o direito de proteção
contra desastres, em razão dos bens jurídicos tutelados, não pode ser objeto de
transmissão por parte do indivíduo.
Em decorrência da impossibilidade do titular desses direitos deles se despojar, a
doutrina costuma mencionar como característica dos direitos fundamentais sua
imprescritibilidade, uma vez que inexiste prazo para a busca de eventual proteção
jurídica em relação a qualquer deles, na hipótese de violação destes direitos. Assim, os
direitos fundamentais não desaparecem ou se extinguem com o decorrer do tempo. Por
essa razão, fala-se que tais direitos são imprescritíveis, na medida em que inexiste um
prazo para o exercício de tal direito. Tal característica ganha relevância em sede de
proteção contra desastres, uma vez que, em função dos efeitos da mudança climática é
possível que determinado local venha, após vários anos, a oferecer risco para o
indivíduo e toda coletividade. Nestas hipóteses, a ação estatal não se submete à eventual
prazo, uma vez que a proteção da sociedade contra o risco de desastres permite que a
atuação estatal ocorra a qualquer tempo, desde que necessária.
254
Neste sentido, observe-se a existência de expressa previsão constitucional autorizando o ingresso de
qualquer pessoa em residência alheia, na hipótese de desastre, ou para prestar socorro (art. 5º, XI, da CF).
Do mesmo modo, no âmbito penal, eventual ação que venha a lesar bem jurídico de outrem estará
acobertada pela excludente de ilicitude denominada “estado de necessidade” a qual ampara aquele
que pratica determinado fato tipificado como infração penal a fim de salvar direito próprio ou alheio de
perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, cujo sacrifício, nas
circunstâncias, não era razoável exigir-se (art. 25 do CP).
255
COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Proteção jurídica do meio ambiente: o papel da
aministração pública na preservação dos direitos da personalidade: dissertação. Maringá: Cesumar, 2009.
p. 88.
89
Tratando-se de direitos fundamentais, tem-se que estes não podem ser
desrespeitados por nenhuma autoridade pública ou por disposições infraconstitucionais,
sob pena de responsabilização. Fala-se, assim, em inviolabilidade dos direitos
fundamentais, na medida em que estes devem ser protegidos de forma prioritária,
evitando-se sua lesão. Tal inviolabilidade autoriza a concessão de medidas preventivas,
voltadas a evitar a ocorrência de lesão a estes bens jurídicos. Deste modo, no tocante
aos desastres naturais hidrológicos, a atuação preventiva (por meio da observância de
regras específicas, tendentes a evitar a ocorrência de eventos dessa natureza, tais como
atendimento das regras urbanísticas e administrativas relacionadas às construções, bem
como a apresentação de laudos, etc.) é plenamente possível e justificável sob a ótica dos
direitos fundamentais.
Outra característica inerente aos direitos fundamentais refere-se a sua
vitaliciedade, ou seja: tais direitos são inatos e permanentes, acompanhando a pessoa
desde o seu nascimento/concepção até a morte.256 Assim, do mesmo modo que ocorre
com a “imprescritibilidade” não há que se falar em prazo para o exercício de tais
direitos.
Por se tratar de direitos destinados a todos os indivíduos, indistintamente, os
direitos fundamentais são considerados universais. Tal característica é severamente
criticada por FLORES, na medida que “é patético falar de direitos humanos universais
em um mundo em que somente um quinto da população se encontra relativamente
isolado do problema da pobreza”. Sobre o tema, FERRAJOLI defende a existência de
uma universalidade formal dos direitos fundamentais, ou seja: estes direitos são
atribuídos diretamente por normais gerais.257 Assim, o direito de proteção contra
desastres é universal por ser atribuível a todos os indivíduos, indistintamente. Registrese, entretanto, que, no que tange a esta característica, há autores que defendem a sua não
aplicação em relação aos direitos sociais.
256
Observe-se que, no caso do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a
Constituição Federal foi ampliou a proteção de tal direito, devendo o mesmo ser assegurado, inclusive, às
futuras gerações.
257
FERRAJOLI, op. cit., p. 116.
90
Do mesmo modo, tais direitos são oponíves erga omnes, uma vez que, a todos,
indistintamente, cumpre o dever genérico de observar e respeitar tais direitos. Assim, os
direitos fundamentais referem-se a direitos que podem ser exigidos contra todos.
A indivisibilidade também é considerada uma característica presente nos direitos
fundamentais. Está relacionada ao fato de que não é possível separar os direitos
humanos em compartimentos estanques, sendo eles cumulativos e complementares.
Assim, os defensores desta característica questionam a já mencionada expressão
“gerações de direitos fundamentais.” Neste sentido, tem-se que tais direitos compõem
um conjunto único de direitos, não podendo ser analisados de maneira isolada, de tal
forma que o desrespeito a um deles constitui a violação de todos ao mesmo
tempo.258Tendo em vista a já mencionada indivisibilidade dos direitos humanos tem-se
que “cabe ao Estado Brasileiro a proteção e defesa dos direitos civis e políticos, bem
como a implementação e realização dos direitos econômicos, sociais e culturais”259
Assim, não é possível falar do direito de proteção contra desastres sem relacioná-lo com
o direito à vida, saúde, moradia, entre outros. A proteção dos diversos direitos
fundamentais é necessária a fim de se garantir a dignidade da pessoa humana.
Dentre as características atribuídas aos direitos fundamentais mencione-se a sua
efetividade. Isso porque, em razão da natureza desses direitos, exige-se a atuação do
Poder Público no sentido de garantir a efetivação de tais direitos, os quais devem ser
garantidos materialmente. Especificamente em relação aos desastres hidrológicos, temse que tal efetividade deve ser buscada pela máxima aplicabilidade das características,
princípios e atributos que compõem os direitos fundamentais. Assim, somente
visualizando-se a proteção contra desastres enquanto um direito fundamental do ser
humano será possível avançar-se rumo a efetiva aplicação do primado constitucional da
proteção contra este tipo de calamidade.
Em decorrência das características acima elencadas, bem como em razão da
máxima efetividade na proteção de tais direitos, outras características também podem
ser acrescentadas. Assim, a irrevogabilidade e a proibição de retrocesso também podem
258
DIÓGENES JÚNIOR, José Eliaci Nogueira. Aspectos gerais das características dos direitos
fundamentais.
Disponível
em:
<http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_
leitura&artigo_id=11749>. Acesso em: 30 out. 2013.
259
PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. São Paulo Max Limonad, 1998. p. 219.
91
ser consideradas características inerentes aos direitos fundamentais. Baseiam-se no fato
de que a evolução da sociedade acarreta a necessidade de formulação de novos direitos,
razão pela qual aqueles declarados e reconhecidos oficialmente não podem ser
revogados.260 Com base nesta característica - decorrente do sistema jurídicoconstitucional - BARROSO entende que a instituição de determinado direito
fundamental acarreta sua incorporação ao patrimônio jurídico da cidadania, não
podendo ser posteriormente suprimido.261 No mesmo sentido, CANOTILHO entende
que não é admissível a reversibilidade de direitos adquiridos no âmbito social.262
Ademais, a proteção contra medidas jurídicas, legislativas e administrativas que
retrocedam garantias sociais conquistadas traduz-se em medida apta a proteger a pessoa
contra violações em seus direitos fundamentais, conferindo maior segurança jurídica
para o indivíduo. Desse modo, a proteção contra desastres “naturais” hidrológicos
encontra-se constitucionalmente amparada, de tal forma que – tratando-se de um direito
fundamental do indivíduo – não é possível a redução ou supressão dos níveis de
efetividade263 e eficácia264 em sua proteção.
Outra característica dos direitos fundamentais refere-se a sua autoaplicabilidade,
de tal forma que não há necessidade de regulamentação infraconstitucional dos
mesmos.265 Assim, concebendo-se o direto de proteção contra desastres hidrológicos
enquanto um direito fundamental explícita ou implicitamente previsto no ordenamento
jurídico, tem-se pela sua aplicação imediata, nos termos do artigo 5º, §1º da CF, ou
seja: significa que o preceito atinente à proteção de tal direito é autossuficiente,
prescindindo-se da existência de ato legislativo ou administrativo prévio com vistas a
sua efetividade.266
260
COMPARATO, op. cit., p. 64.
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001. p. 158.
262
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra:
Almedina, 2003. p. 326.
263
A efetividade refere-se ao cumprimento de sua função pela norma , com sua observância pelas
autoridades e seus destinatários.
264
A eficácia refere-se à aptidão de uma norma para cumprir sua função social, alcançando ela o resultado
jurídico pretendido pelo legislador.
265
Observe-se, entretanto, que tal característica encontra-se presente apenas nos direitos de primeira
dimensão.
266
GRAU, Eros Roberto. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica da Constituição de 1988. 12. ed.
São Paulo: Malheiros, 2007. p. 318-9.
261
92
Também merecem destaque a complementariedade e a interdependência dos
direitos fundamentais. Assim, em razão da sua natureza e dos bens jurídicos tutelados,
os direitos fundamentais relacionam-se mutuamente, não podendo ser analisados
isoladamente. Neste sentido, GAZOLA reconhece a impossibilidade de se visualizar
tais direitos de forma isolada, “sob risco de perda de eficácia da ação pública.”267 Logo,
as várias previsões constitucionais, apesar de autônomas, comunicam-se mutuamente a
fim de permitir a proteção da dignidade da pessoa humana. Assim, conclui-se no sentido
de que existe uma interatividade entre os preceitos constitucionais que dizem respeito
aos direitos humanos e os demais ramos do Direito.268 Neste sentido, a proteção contra
desastres guarda relação com uma serie de outros direitos fundamentais, tais como o
direito à vida, moradia, saúde, qualidade de vida, meio ambiente ecologicamente
equilibrado e assistência aos desamparados.269 Do mesmo modo, os direitos
fundamentais se inter-relacionam e se complementam, de tal forma que não devem ser
interpretados isoladamente, mas de forma conjunta, de modo a se atingir os objetivos
previstos pelo legislador constituinte. Aliás, tais direitos constituem-se como um
complexo integral, único e indivisível, no qual os diferentes direitos estão
necessariamente inter-relacionados e interdependentes.270 Neste sentido, tem-se que a
proteção contra desastres demanda o exercício de outros direitos, tais como o de
moradia digna, saúde, qualidade de vida, meio ambiente ecologicamente equilibrado,
etc.
Conforme mencionado, os direitos fundamentais decorrem de uma evolução da
sociedade, sendo construídos e acrescidos com o desenvolvimento desta. Disso decorre
outra característica dos direitos fundamentais, que é da sua não taxatividade (também
chamada de ilimitabilidade – ou historicidade - dos direitos fundamentais), razão pela
qual o rol de direitos fundamentais estabelecidos em uma Constituição não é taxativo.
Ademais, na medida em que a dignidade da pessoa humana constitui-se como
fundamento primeiro para a proteção desses direitos, tem-se que, em razão da evolução
267
GAZOLA, Patrícia Marques. Concretização do direito à moradia digna: teoria e prática. Belo
Horizonte: Forum, 2008. p. 111.
268
FRANZOI, Jackeline Guimarães Almeida. Dos direitos humanos: breve abordagem sobre seu
conceito, sua história, e sua proteção segundo a constituição brasileira de 1988 e a nível internacional.
Revista Jurídica Cesumar, Maringá, v. 3, n. 1, p. 374, 2003.
269
Para maiores detalhes sobre essa interdependência entre os direitos fundamentais veja-se o item 2.4
infra
270
PIOVESAN, op. cit., p. 214.
93
da sociedade, novos direitos virão a surgir com o tempo, exigindo-se a adequada
proteção por meio do ordenamento jurídico. Fala-se, assim, em uma mutabilidade
histórica dos Direitos fundamentais, na medida em que as condições históricas mudam e
alteram as necessidades e interesses da sociedade e, consequentemente, passam a exigir
a proteção de novos direitos. Neste sentido, BOBBIO defende tratar-se de direitos
historicamente relativos, na medida que sofrem alterações conforme o momento
histórico e o tipo de civilização.271 Nessa linha, FLORES defende que os direitos
humanos decorrem de uma marcha de processos de luta em defesa da dignidade
humana. 272 Com efeito, aduz o autor:
Eles [os direitos humanos] não são algo dado, nem estão garantidos por
algum “bem moral”, alguma “esfera transcendental” ou por algum
“fundamento originário ou teleológico”. São produtos culturais que instituem
ou criam as condições necessárias para implementar um sentido político forte
de liberdade.273
Em sede de direito de proteção contra desastres, observa-se que a evolução da
sociedade possibilitou o surgimento de novas tecnologias e o aparelhamento estatal com
vistas a uma melhor preparação contra os efeitos da mudança climática. Hoje, a
sociedade consegue prever, com relativa antecedência, a ocorrência de uma série de
eventos naturais danosos, criando para o Poder Público o dever de adotar medidas aptas
a evitar ou mitigar os prejuízos advindos de tais acontecimentos.
Uma última característica dos direitos fundamentais refere-se à ausência de um
conteúdo patrimonial direto ou objetivamente aferível, ainda que a lesão gere efeitos
econômicos. Deste modo, não seria possível fazer-se uma avaliação econômica
decorrente de sua violação. Assim, os
direitos fundamentais são direitos
extrapatrimoniais em razão do fato de seu conteúdo fundamental (a dignidade da pessoa
humana) ser insuscetível de mensuração, ou seja: não pode ser avaliada em aspectos
econômicos ou pecuniários. Tal característica também se encontra presente em relação
271
BOBBIO, op. cit., p. 19
FLORES, op. cit., p. 114
273
Idem, ibidem
272
94
aos desastres naturais, uma vez que não é possível aferir-se, em termos econômicos, os
danos que tais desastres podem causar ao indivíduo.274
Assim,
irrenunciabilidade,
indisponibilidade,
irrevogabilidade,
intransmissibilidade,
inalienabilidade
imprescritibilidade,
e
inviolabilidade
são
características que demonstram a importância dos direitos fundamentais em nosso
ordenamento jurídico, de tal forma que não podem eles ser objeto de negociação
econômica e, em razão da sua relevância para o indivíduo, são eles inatos e
permanentes, acompanhando a pessoa desde o seu nascimento/concepção até a morte,
acrescentando-se, então, uma outra característica, qual seja: a vitaliciedade dos direitos
fundamentais. E, para a proteção de tais direitos, a adoção de medidas voltadas para a
efetiva implementação e concretização desses direitos devem ser exigidas perante o
Poder Público. Tal possibilidade acarreta aos direitos fundamentais outras
características, quais sejam a da sua efetividade, autoaplicabilidade, interdependência,
complementariedade, historicidade e proibição de retrocesso. Tais características visam
conferir maior destaque a tais direitos dentro do ordenamento jurídico, bem como
propiciar-lhes uma maior proteção com vistas à manutenção de defesa da dignidade da
pessoa humana.
2.2
CIDADANIA,
DIGNIDADE
DA
PESSOA
HUMANA
E
DIREITOS
FUNDAMENTAIS
A despeito das diversas características inerentes aos direitos fundamentais, tem-se
que todas elas relacionam-se com a busca a proteção da dignidade da pessoa humana, ou,
em outras palavras, pela concretização de uma “vida digna ao ser humano, mediante a
efetivação dos valores da liberdade e da igualdade”.275 Assim, a manutenção da dignidade
humana consubstancia-se no fundamento axiológico que justifica a proteção dos direitos
fundamentais. Logo, a proteção dos direitos fundamentais constitui-se como instrumento
274
Observe-se, entretanto, que os desastres podem causar danos a bens imateriais do indivíduo, tais como
a vida, integridade física, saúde, etc. (direitos fundamentais) bem como podem lesar bens materiais
(móveis, carros, etc). Em relação a estes a aferição econômica é plenamente possível.
275
RIBAS, Paulo Henrique. O papel do estado na concretização dos direitos fundamentais sociais
mediante a prestação de serviços públicos. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2007. p.
19.
95
importante para a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, sendo certo que esta
proteção deve ser implementada tanto pelo Poder Público quanto pela sociedade.
Especificamente em relação à proteção contra desastres “naturais” hidrológicos,
ganha destaque a participação do cidadão (e, em especial, a do cidadão que reside nas
áreas de risco, que são as áreas mais suscetíveis a esse tipo de desastre). Isso porque são
essas pessoas as principais vítimas desse tipo de desastre e que, portanto, possuem
maior interesse em evitar sua ocorrência ou minimizar-lhes os danos decorrentes.
A dignidade da pessoa humana é, por assim, dizer, o núcleo central dos direitos
fundamentais, traduzindo-se em um bem jurídico intangível, razão pela qual sua
proteção jurídica encontra-se constitucionalmente estabelecida. Do mesmo modo, a
proteção contra calamidades também encontra amparo constitucional. Os desastres
causam danos à coletividade e aos indivíduos que a compõem, sendo certo que, não
raras vezes, a vítima perde amigos, parentes, bens materiais, ou mesmo a saúde em
função das epidemias e doenças transmitidas em razão do desastre sofrido, tais como,
por exemplo, a leptospirose do contato dos indivíduos com águas contaminadas.276 Citese, ainda, entre as chamadas doenças de origem hídricas, as febres tifoide e paratifoide,
a disenteria bacilar, o cólera, a giardíase, disenteria amébica ou amebiana,
esquistossomíase, hepatite infecciosa, poliomielite, gastroenterite, esquistossomose,
ascaridíase, taeníase, oxiuríase,
ancilostomíase, malária, dengue277, febre amarela,
irritação de pele por cianobactérias etc. Tais fatos causam afetam a saúde e a qualidade
de vida do indivíduo, trazendo dor e tristeza e – não raras vezes – afetando o estado
físico e psíquico das pessoas, fazendo com que o indivíduo se sinta impotente diante da
situação vivida. Assim, o Poder Público (por meio da Defesa Civil e demais órgãos) e a
coletividade devem – além de proteger o indivíduo em seu aspecto físico e material procurar preservar no cidadão a autoestima, a confiança e a força de vontade e a fé de
que a vida retornará ao normal. Nas palavras de ROCHA tem-se que:
276
As inundações aumentam os riscos de aquisição de doenças infecciosas transmitidas de água
contaminadade através contato ou ingestão, como leptospirose, hepatite A, hepatite E, doenças
diarreicas (Escherichia coli, Shigella, Salmonella) e, em menor grau, febre tifóide e cólera. (veja-se:
http://inundacooes.blogspot.com.br/. Acesso em 13.10.2012
277
Na verdade, a dengue costuma ser provocada pela água das chuvas, que se acumula em qualquer
recipiente e permite a proliferação do Aëdes aegypti.
96
O princípio da dignidade humana constitui-se, pois, em valor unificador dos
direitos e garantias inseridas na Constituição Federal e legitimador dos
278
direitos fundamentais expressos tanto quanto daqueles implícitos.
Constata-se, portanto, que a dignidade da pessoa humana impõe-se como um
princípio supremo que estabelece “uma esfera absoluta e indisponível de direitos
inerentes à pessoa humana, sendo ainda o referencial fundamental para a mensuração de
todos os outros direitos e princípios jurídicos.”279 Segundo FLORES, a dignidade
concretiza-se pelo acesso igualitário e generealizado aos bens que fazem com que a vida
seja “digna” de ser vivida.280
Aliás, a Constituição Federal de 1988, ao discorrer acerca dos fundamentos
constitucionais do Estado brasileiro, elenca entre eles: a soberania, a cidadania, a
dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o
pluralismo político. Assim, cidadania, juntamente com a dignidade da pessoa humana e
os demais elementos mencionados, constitui-se dentre os fundamentos do Estado
brasileiro. Do mesmo modo, o conceito de cidadania, ganha maior amplitude,
correspondendo à “participação política ativa e direta do individuo na vida da sua
sociedade.”281 Neste, sentido, SEGUIN assevera:
Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente ecologicamente equilibrado
passam a integrar o conceito de cidadania, influenciado pelos Direitos
Humanos internacionalmente reconhecidos, como o direito ao
desenvolvimento, à saúde e à educação.282
Esta dignidade deve ser garantida em todos os momentos (inclusive nas
hipóteses de desastres) de modo que o indivíduo consiga manter a sua condição de “ser
humano”.
278
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 280.
LOPES, op. cit., p. 210.
280
FLORES, op. cit., p. 37
281
LOPES, Ana Maria D’Ávila. A cidadania na constituição federal brasileira de 1988: redefinindo a
participação política. In: BONAVIDES, Paulo; LIMA, Francisco Gérson Marques de; BEDÊ, Fayga
Silveira. Constituição e democracia: estudos em homenagem ao professor J. J. Gomes Canotilho. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 28.
282
SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 51.
279
97
Especificamente com relação à cidadania, há vários conceitos e acepções em
relação à abrangência do seu significado. Em uma perspectiva mais estrita, a cidadania
corresponderia ao exercício dos direitos políticos em sentido estrito, ou seja, o direito de
votar e ser votado. Assim, nesta ótica, só é considerado cidadão a pessoa que é titular de
direitos políticos. Observe-se que tal conceito é extremamente limitativo, uma vez que
reduz o número de pessoas que podem ser consideradas cidadãs e os poderes que lhes
são conferidos. Nesta perspectiva, a atuação do cidadão na proteção contra desastres
ficaria limitada à escolha dos seus representantes no Poder Público, cabendo a estes
tomar decisões políticas relacionadas à proteção contra desastres.
Já, sob uma perspectiva mais ampla, a cidadania pode ser entendida como o
poder conferido ao povo de participar de forma ativa no processo de tomada de decisão,
sendo certo que seus direitos fundamentais devem ser preservados. Neste aspecto,
LOPES concebe a cidadania como um direito fundamental. Para ela, a cidadania, além
de participativa, deve ser ativa, na busca da construção de uma sociedade mais livre e
igualitária, através da solidariedade.”283 E a mesma autora ainda esclarece que “a
importância do reconhecimento da cidadania como um direito fundamental é essencial
para garantir uma proteção muito mais rigorosa a respeito do seu cumprimento”.284 No
mesmo sentido, SMANIO trata a cidadania como fundamento do Estado Democrático
de Direito, deixando claro que os direitos fundamentais legitimam o Estado de direito e
o conteúdo da cidadania. A cidadania passa a ser a base de participação política no
Estado de direito, através do exercício dos direitos fundamentais.285 Conforme ensina
OBARA286
No sistema constitucional pátrio, a qualidade da cidadania, isto é, a
titularidade de direitos políticos não é atribuída a todo e qualquer indivíduo,
mas somente àqueles que preencherem os requisitos constitucionais
necessários para gozar deste direito
283
LOPES, op. cit., 2006, p. 18
Ibidem, p. 30.
285
SMANIO, Gianpaolo Poggio. As dimensões da cidadania. Revista da Escola Superior do Ministério
Público, São Paulo, ano 2, jan./jun. 2009. p. 18.
286
SILVA, Alessandra Obara Soares da. Participação popular na administração pública: as audiências
públicas. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2009.
284
98
Nesta ampliação evolutiva do conceito de cidadania, constata-se a inclusão de
direitos de liberdade civil, participação política e satisfação das necessidades sociais.
Assim, com o surgimento do Estado Democrático de Direito, tem-se a emergência dos
direitos subjetivos públicos democráticos, ou seja, a juridificação do processo de
legitimação287. Ademais, a noção de Estado Democrático de Direito ganha maior
fundamento com a existência de uma jurisdição constitucional atuante e que se
consolide como um importante centro de decisões politicamente relevantes.288 Tem-se,
assim, que a cidadania deixou de limitar-se à noção de determinação de nacionalidade
do indivíduo, passando a traduzir-se como expressão de direitos fundamentais e de
solidariedade.289 Logo, adotando-se essa segunda concepção sobre cidadania, observase uma maior valorização do papel do indivíduo na sociedade, participando de forma
ativa nas políticas públicas e decisões administrativas a serem adotadas pelo Poder
Público. Deste modo, a participação política do cidadão ganha relevância, na media em
que este passa a atuar de forma ativa, opinando em relação às ações administrativas,
fiscalizando a atuação estatal e reivindicando direitos que lhe pertencem e que devem
ser respeitados e protegidos. Neste aspecto, o exercício da cidadania constitui-se como
importante instrumento na salvaguarda dos direitos fundamentais. Especificamente em
relação ao exercício da cidadania em sede de desastres “naturais” hidrológicos tem-se
que a atuação do indivíduo (e, especialmente, dos indivíduos que vivem nas
proximidades dos locais sujeitos a esse tipo de desastre) pode contribuir de forma
relevante para a proteção desse direito fundamental, auxiliando o Poder Público na
definição e implementação de políticas públicas e criando uma cultura popular de
proteção contra desastres.290
Discorrendo sobre as dimensões históricas dos direitos fundamentais, SMANIO
destaca – na terceira dimensão - a participação política do cidadão. Neste momento “a
perspectiva da cidadania deixa de ser vertical em relação ao Estado e passa a ser
287
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PEREIRA Francisco Antônio Rodrigues. Ativismo judicial e a ideia de atividade política do poder
judiciário: perfil e limitações. (Dissertação) - Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2008.p. 23.
289
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legitimidade jurídica das politicas públicas: a efetivação da cidadania.
In: ______.; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins (Org.). O direito e as políticas públicas no Brasil. São
Paulo: Atlas, 2013. p. 3.
288
290
Com relação à “cultura de proteção contra desastres” veja-se as ações implementadas pela prefeitura
de Belo Horizonte (item 4.3, infra) e o item 4.6
99
horizontal”. Assim, segundo o referido autor, “a cidadania adquire assim caracterização
política, horizontal, abstrata e universal, fundamentando a formação do Estado do
século XVIII”.291 No mesmo sentido é a opinião de MEDEIROS, para quem os direitos
fundamentais possuem uma eficácia irradiante sobre todo o ordenamento jurídico, a
qual serve de diretriz para a interpretação e aplicação do direito, bem como uma eficácia
horizontal, que corresponde à força vinculante dos direitos fundamentais no âmbito das
relações privadas.292
Ademais, também não se pode deixar de mencionar o papel da população na
fiscalização dos gastos públicos. Conforme anteriormente informado, em períodos de
tragédia, os mecanismos de controle da aplicação de verbas são diferenciados, uma vez
que as contratações são realizadas sem licitações e com projetos básicos deficientes ou
incompletos. A ideia por trás dessa exceção é agilizar as compras e as obras para
atender a população atingida pelas tragédias, protegendo seus direitos fundamentais.
Porém, uma consequência indireta é a diminuição dos mecanismos de controle da
aplicação das verbas públicas, abrindo-se a possibilidade para que maus gestores
aproveitem-se dessas brechas para desviar recursos. Por isso, a importância da
fiscalização pelos órgãos públicos e pela sociedade, sob pena da proteção aos direitos
fundamentais tornar-se ineficaz.
Assim, para que o cidadão exerça, de fato, o seu papel de ator principal em sede
de desastres, é necessário que o mesmo comece a atuar de forma ativa em relação a tais
eventos, sob pena de se transformar em uma marionete, aguardando passivamente que
os administradores públicos adotem medidas em benefício da coletividade. Neste
aspecto, a primeira ação a cargo do cidadão refere-se a fiscalização das ações
administrativas em sede de desastres. Tal fiscalização deve estar presente em todos os
momentos, ou seja: desde a propositura de projetos legislativos tendentes a evitar ou
reduzir os riscos de desastres até o envio e aplicação de recursos disponibilizados na
hipótese de ocorrência de desastres, que venham a gerar prejuízos para a coletividade.
291
SMANIO, op. cit., 2009. p. 14.
MEDEIROS, Vera Maria Alécio Brasil. Da jurisdição constitucional: uma análise da concretização
dos direitos fundamentais à luz da hermenêutica constitucional. Dissertação (mestrado) - UFRN, Natal,
2006. p. 213.
292
100
Assim, ampliar os instrumentos de participação, bem como a efetiva
participação dos cidadãos nas decisões estatais é medida salutar para o desenvolvimento
da cidadania. Ademais, a participação democrática dos diversos atores é condição legal
para o sucesso do planejamento urbano293
2.3 DA EMERGÊNCIA DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES
ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL
No passado, os desastres eram vistos simplesmente como acontecimentos
ensejadores de situações de caso fortuito ou força maior. Isso porque, por se tratarem de
acontecimentos imprevisíveis ou inevitáveis, romperiam o nexo causal, isentando
qualquer pessoa (incluindo o Estado) do dever de indenizar. No entanto, tal situação
alterou-se na medida em que houve um aumento na incidência dos desastres,
acompanhado de prejuízos humanos significativos para toda a coletividade.
Segundo assevera BOBBIO, a multiplicação dos direitos fundamentais tem
como causas: o aumento da quantidade de bens consideradoras merecedores de tutela; a
extensão de alguns direitos a todos os indivíduos; e o fato de que o ser humano passou a
ser visto segundo suas especificidades no convívio em sociedade.294 Assim, novos
direitos passaram a integrar os denominados direitos fundamentais, tais como o direito
ao envelhecimento, o direito à assistência aos desamparados, etc. Nessa ótica, a
proteção contra desastres passa a integrar o rol de direitos fundamentais, carecendo de
uma atuação proativa por parte do Poder Público e da sociedade.
Do mesmo modo, o desenvolvimento da sociedade permitiu o surgimento de
novas tecnologias e, paralelamente, intensificou os danos causados ao meio ambiente.
Emissão de gases poluentes, poluição atmosférica, construções em locais inadequados,
desmatamentos realizados de forma irregular, entre outros fatores, contribuíram para a
intensificação dos desastres ocorridos no planeta, fazendo com que sociedade e Estado
passassem a procurar mecanismos eficazes para a mitigação dos problemas decorrentes
de tais acontecimentos.
293
294
SCHENKEL, op. cit., p. 82.
BOBBIO, op. cit., p. 68
101
Para assegurar a redução dos riscos de desastres, o Poder Público deve adotar
determinadas
medidas
protetivas,
sendo
que
tais
medidas
são
estabelecidas, notadamente, em normas urbanisticoambientais com o objetivo de
garantir segurança a todos os habitantes de determinada localidade, uma vez que a
proteção contra desastres é essencial para a manutenção da dignidade da pessoa
humana. Assim, com a evolução e desenvolvimento da sociedade, novos direitos
surgem visando dar maior efetividade à proteção desse núcleo essencial dos direitos
humanos.295
A proteção contra desastres guarda fundamento no princípio da dignidade da
pessoa humana e objetiva a tutela do direito à vida da população que vive no local
atingido pelo desastre. Deste modo, é possível afirmar-se que o direito de proteção
contra desastres encontra-se tutelado desde o surgimento da doutrina dos direitos
fundamentais (na medida em que guarda estreita relação com a proteção da vida e
dignidade da pessoa humana), podendo ser observado dentro das diferentes dimensões
de direitos fundamentais, uma vez que, sob o ângulo da teoria dos direitos
fundamentais, estes podem ser tutelados sob diferentes dimensões. É o que ocorre, por
exemplo, com relação ao direito de proteção contra os desastres, o qual pode ser
observado sob a ótica dos direitos fundamentais em suas diversas dimensões. Neste
aspecto, CANOTILHO, fazendo referência ao direito à habitação, assevera:
[...] quando se afirma que o direito à habitação é um direito do cidadão
estamos a acentuar o caráter individual do direito; quando afirmamos que
para assegurar o direito à habitação incumbe ao Estado programar e executar
uma política de habitação inserida em plano de reordenamento geral do
território e apoiada em planos de urbanizamos(...) estamos a salientar a
dimensão institucional de um direito.296
Assim, com o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, a proteção
contra desastres ganhou ainda mais força dentro do ordenamento jurídico. Isso porque,
no contexto dos direitos fundamentais, a proteção contra desastres (e, em especial, os
295
Para a presente tese será considerado núcleo essencial dos direitos humanos o conteúdo mínimo e
intangível (também denominado núcleo duro e imodificável do direito fundamental) o qual, em quaisquer
circunstâncias, deve sempre ser protegido, sob pena de criar grave situação de inconstitucionalidade, por
afronta à dignidade da pessoa humana.
296
CANOTILHO, op. cit., 2003. p. 183.
102
direitos naturais hidrológicos) pode ser realizada dentro das diversas dimensões dos
direitos fundamentais. Assim, sob a ótica dos direitos de primeira dimensão, protege-se
o direito à vida do indivíduo. Já, em um contexto de direitos de segunda dimensão,
passou-se a proteger os direitos sociais, nos quais encontram-se o direito à saúde, o
direito à moradia, assistência aos desamparados, entre outros. Tais direitos alicerçam a
proteção contra desastres enquanto direito fundamental do ser humano.
Do mesmo modo, tem-se assistido a uma evolução do papel do Estado, o qual
passa a intervir por meio de normas, atos administrativos ou judiciais, na tutela de
direitos fundamentais. Entre tais direitos ressaltem-se os direitos sociais, que,
justamente em razão de exigirem uma atuação prestacional por parte do Estado, vêm
ampliando-se ao longo dos anos. A proteção contra desastres passa, então, a ser vista
enquanto direito fundamental e que, portanto, merece sua adequada proteção jurídica.
Ademais, com o surgimento de uma nova serie de problemas ambientais, que trazem
consequências para a sociedade, o Direito (enquanto ciência jurídica) acaba tendo de se
ajustar à essa sociedade de risco e às suas demandas, cada vez mais globais e
ameaçadoras.297 Nesta perspectiva, surge o ramo jurídico denominado “direito de
proteção contra desastres” ou, como preferem alguns, simplesmente, “direito dos
desastres”.298
Além dos princípios inerentes aos direitos fundamentais, bem como das
disposições constitucionais sobre o tema, observe-se que, dentre as alterações
estabelecidas no Estatuto da Cidade, por força da Lei nº 12.608, de 2012, 299 a inserção,
dentre as diretrizes gerais da política urbana, a ordenação e controle do uso do solo, de
forma a evitar a exposição da população a riscos de desastres. 300 Assim, com o objetivo
de complementar as regras estabelecidas pela Constituição Federal em sede de política
297
CARVALHO, op. cit., 2008. p. 35.
Neste sentido, veja-se: CARVALHO, op. cit., 2013. FARBER, Daniel. Disaster law and
emergingissues in Brazil. In: Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito
(RECHTD), v. 4, n. 1, p. 2-15, 2012.
299
A lei 12.608/2012 institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC; dispõe sobre o
Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa
Civil - CONPDEC; autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres; altera as
Leis nos 12.340, de 1o de dezembro de 2010, 10.257, de 10 de julho de 2001, 6.766, de 19 de dezembro de
1979, 8.239, de 4 de outubro de 1991, e 9.394, de 20 de dezembro de 1996; e dá outras providências.
300
Art. 2º, VI, h, da lei 10.257/2001, com redação dada pela lei 12.608/2012
298
103
urbana301, a proteção contra desastres foi expressamente prevista como uma diretriz a
ser seguida pela política urbana nacional.
Os dados constantes no quadro a seguir demonstram o grande impacto que os
desastres hidrológicos causam aos seres humanos, quer em relação ao número de óbitos,
quer em relação ao número de pessoas afetadas. Para os fins objetivados na presente
tese foram destacados os Estados da Região sudeste, região na qual os desastres
hidrológicos foram mais impactantes durante o período da pesquisa (1991 a 2010).302
301
Art. 182 da CF: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”
302
Conforme informado, 70% das mortes relacionadas a desastres hidrológicos no período entre 1991 e
2010 ocorreram na região Sudeste do Brasil.
104
Quadro 5 - Quantidade de mortos e afetados em decorrência de inundações e movimentos de massa entre 1991 e 2010 no Brasil
Espécie de
INUNDAÇÃO BRUSCA E
desastre:
INUNDAÇÃO GRADUAL
ALAGAMENTO
Estado
n. ocorrências
n. ocorrências
NORTE
mortos
afetados
MOVIMENTO DE MASSA
mortos
afetados
n. ocorrências
mortos
afetados
433
55
1.424.117
292
47
951.875
5
0
4.798
1.030
71
4.190.308
1.664
242
6.273.247
22
5
54.414
ES
114
3
339.329
377
38
2.249.361
26
7
173.222
MG
786
60
1.696.409
935
525
1.602.128
135
34
299.638
RJ
155
195
723.199
262
263
263
140
395
747.372
SP
104
16
394.847
462
153
5.720.141
70
5
231.107
1.159
274
3.153.784
2.036
979
9.571.893
371
CENTROESTE
219
1
288.894
303
9
3.295.464
0
0
0
SUL
832
60
1.096.840
2.476
228
8.348.277
56
0
115.561
3.673
461
10.230.240
6.771
1.069
28.440.756
454
505
2.004.483
NORDESTE
SUDESTE
TOTAL
500(*) 1.829.710(*)
(*) observou-se a existência de divergências entre os dados constantes no Atlas Brasil e nos Atlas referentes às respectivas unidades da federação.
105
O grande número de mortos e afetados em razão da eclosão de desastres naturais
hidrológicos303 demonstra a relevância desta questão para a sociedade e, consequentemente, a
necessidade de uma intervenção jurídica adequada. Assim, defende-se, nesta tese, a análise da
questão atinente aos desastres hidrológicos dentro da perspectiva dos direitos fundamentais
em razão da presença dos elementos que dão sustentáculo para tais direitos. Os direitos
fundamentais são fruto da evolução histórica e social, caracterizados por lutas em defesa de
novas liberdades.304 Desse modo, tais direitos são construídos ao longo do tempo, em razão
do desenvolvimento da sociedade e do surgimento de novas necessidades que demandam sua
efetiva proteção por parte do Poder Público.
O aumento do número de desastres e dos prejuízos deles decorrentes cria a
necessidade de atuação do Estado visando à proteção do indivíduo e da coletividade. Neste
aspecto, observa-se que diversos países têm se mobilizado na busca de alternativas que
possam proteger o indivíduo na hipótese de ocorrência de desastres. Uma dessas alternativas
tem sido o estímulo à criação de seguros contra desastres naturais. Assim, pesquisadores de
diversas universidades têm procurado desenvolver uma metodologia para a implantação de
um modelo de seguro contra inundações em bacias urbanas. Neste sentido, GRACIOS
desenvolveu pesquisa investigando a forma como as bacias se comportam, reunindo
informações hidrológicas, hidráulicas, geográficas e topográficas do local, para saber qual o
risco e custo dos seguros para áreas atingidas por enchentes.305
Durante o primeiro encontro do ciclo de debates “Águas Urbanas e Infraestrutura:
Novos Desafios à Engenharia Nacional”, realizado no dia 26/06/2013, no Instituto de
Engenharia em São Paulo-SP, discutiu-se o seguro como instrumento de gestão de risco,
tendo como referência a experiência dos Estados Unidos. Neste aspecto, a palestra “Seguro
contra Inundações - Gestão de riscos e perspectivas de avanço para projetos em habitação e
infraestrutura urbana,” conduzida pelo especialista americano Roy Wright (responsável pelo
Programa Nacional de Seguro contra Inundações da Federal Emergency Management Agency
(FEMA)306 mencionou o programa de seguros dos Estados Unidos, o qual iniciou-se na
década de 1960 e sofreu alterações ao longo do tempo. Segundo WRIGHT, o programa é
303
Conforme mencionado, muito embora os movimentos de massa não sejam classificados como desastres
hidrológicos julgou-se oportuno fazer menção a eles em razão de sua relação com os desastres hidrológicos
304
BOBBIO, op. cit., p. 5.
305
GRACIOS, Melissa. Brasil começa a desenvolver metodologia para seguros contra inundações.
Disponível em: <http://www.labjor.unicamp.br/midiaciencia/article.php3?id_article=262>. Acesso em: 10 go.
2013.
306
Agência Federal de Gestão de Emergências
106
viabilizado por meio de iniciativa público-privada, sendo fundamental a participação e a
conscientização das comunidades sobre a importância de aderir ao projeto. O referido
encontro propôs ampliar o debate com vistas a antecipar e prevenir os fatos por meio de
avaliações técnicas, além de tornar possível novas iniciativas de financiamentos tanto para
prevenção quanto para reparo de situações decorrentes das inundações em áreas urbanas.
Ademais, para que uma seguradora resolva entrar no mercado de seguros contra enchentes, é
necessário um estudo detalhado que informe os riscos de sua ocorrência e outros dados que
permitam um investimento com uma margem segura de arrecadação, para que o investimento
seja viável. Assim, somente de posse de tais dados e aliado à união dos setores público e
privado será possível avançar-se nessa linha.307
Nos Estados Unidos destaque-se a lei Stafford – que é uma lei federal projetada para
permitir a assistência a governos estaduais e municipais vítimas de desastres naturais e
regulamenta a proteção contra tais desastres. Assim, a referida lei define juridicamente a
forma como se dará a declaração de desastres, além de determinar os tipos de assistência
prestados pelo Poder Público.308 Tal lei contempla ações de preparação para desastres e
mitigação, além de ações de assistência, de emergência e recuperação. Do mesmo modo,
prevê a prestação de assistência financeira, na forma de subsídios para Estados e Municípios
que sejam vítimas de um desastre. Trata-se de auxílio importante para que as localidades
atingidas possam adotar medidas necessárias tendentes à superação da crise, não obstante – a
depender da dimensão do desastre e, principalmente, da preparação do Estado para atuar
nestas situações – a recuperação da área atingida poderá ocorrer em maior ou menor tempo.309
Do mesmo modo, a referida lei objetiva incentivar Estados e Municípios a desenvolverem
planos abrangentes de preparação para desastres, bem como incentivar o uso de cobertura de
seguro e oferecer programas de assistência federal para perdas devido a desastres.310
A atenção dada pelo Poder Público, mídia e coletividade em relação aos desastres
hidrológicos demonstra a relevância destes eventos dentro da sociedade atual, tendo em vista
que o aumento de tais desastres tem acarretado prejuízos humanos e materiais relevantes,
307
Disponível em: <http://www.maxpressnet.com.br/Conteudo/1,599335,Seguro_contra_enchentes,599335,8.
htm.>. Acesso em: 10 ago. 2013.
308
CARVALHO, op. cit., 2013. p. 104.
309
Neste aspecto, relembrem-se os seguintes desastres: acidente nuclear de Chernobyl (1986); Tsunami no
oceano índico (2004); Furacão Katrina (2005); Terremoto no Haiti (210); acidente nuclear em Fukushima,
decorrente de um tsunami (2011), etc.
310
Stafford Disaster Relief and Emergency Assistance Act
107
exigindo-se a intervenção da Ciência do Direito, com vistas a oferecer respostas jurídicas que
possibilitem um melhor enfrentamento dos fatos relacionados aos desastres hidrológicos.
Por fim, a proteção contra desastres hidrológicos - por se constituir como um direito
fundamental do ser humano - exige a adoção de medidas tendentes a sua efetiva proteção, na
medida em que os desastres hidrológicos relacionam-se com diversos outros direitos
fundamentais, conforme se passará a expor.
2.4 DA RELAÇÃO DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES E OUTROS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
Uma característica primordial dos direitos fundamentais refere-se a inter-relação entre
eles. Assim, não obstante se possa afirmar que o direito de proteção contra desastres
constitua-se como um direito fundamental autônomo, observa-se que ele também se encontra
diretamente relacionado com outros direitos fundamentais consagrados no texto
constitucional.
A visualização do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental
autônomo consubstancia-se no fato da proteção aos direitos fundamentais não se restringir
apenas à vida e à saúde, mas, sim, a “tudo aquilo que seja digno de proteção a partir do ponto
de vista dos direitos fundamentais”.311
Quando se fala em proteção contra desastres, objetiva-se propiciar dignidade ao
indivíduo, o que pode ser obtido de várias formas, tais como por meio da proteção do direito à
vida e à incolumidade física do cidadão; por meio a existência de um sistema de segurança
que os proteja contra desastres; por meio da participação do cidadão no sistema nacional de
Defesa Civil; por meio da conscientização de que os desastres são provocados ou agravados
por ações ou omissões humanas; por meio da atuação social, não permitindo que outros
contribuam para a degradação ambiental, provocadora e agravadora de desastres.312
311
ALEXY, op. cit., 2012. p. 450.
SECRETARIA DE DEFESA CIVIL. Política Nacional de Defesa Civil. Ministério da Integração Nacional:
Brasília, 2000. disponível em: <http://www. disaster-info.net/PED-Sudamerica/leyes/leyes/suramerica/brasil/
sistemnac/ Politica_ Nacional_Defensa_Civil.pdf>. Acesso em: 30 out. 2013.
312
108
Acrescente-se, finalmente, dentre os bens necessários para a manutenção da dignidade
humana, a moradia, o trabalho, o meio ambiente, além de uma alimentação sadia, etc. 313
2.4.1 Direito à vida
O direito à vida constitui-se como o primeiro e mais importante direito protegido pelo
Direito. Em nosso ordenamento jurídico, o direito à vida encontra-se atrelado à dignidade da
pessoa humana, não podendo dele se dissociar. Fala-se, assim, em vida digna.
O Direito de proteção contra desastres visa, inicialmente, proteger o direito à vida dos
indivíduos sujeitos à ocorrência de desastres. Assim, a proteção contra o risco de desastres
traduz-se em um mecanismo importante para salvaguardar o direito à vida. Do mesmo modo,
outros direitos fundamentais (tais como o direito à saúde, o direito ao meio ambiente, etc.)
também têm por objetivo a proteção do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Neste
aspecto, o direito à vida abrange, também, o direito a “uma (sadia) qualidade de vida, como
direito fundamental”. 314
Importante observar que a proteção do direito à vida pode dar-se tanto e forma
individual (como, por exemplo, quando uma pessoa é vítima de um desastre) quanto coletiva
(na hipótese em que um determinado grupo de pessoas ou moradores de determinado local
têm seu direito à vida ameaçado (ou lesado) em razão da possibilidade de um desastre natural
hidrológico).
Observe-se, finalmente, que a proteção do direito à vida implica na proteção de outros
direitos fundamentais a ela diretamente relacionados. Assim, a proteção do direito à vida
implica na manutenção das condições ambientais que dão suporte à própria vida, de tal forma
que o ordenamento jurídico deve dar resposta coerente e eficaz às novas realidades sociais. 315
2.4.2 Direito à moradia
O direito à moradia já se encontrava consagrado na Constituição Federal de 1988
desde sua promulgação. Assim, o artigo 7º, IV elenca o direito à moradia como uma
313
FLORES, op. cit., p. 34
JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 178.
315
Ibidem, p. 181-2.
314
109
necessidade vital básica do indivíduo a qual deveria ser atendida por meio do salário
mínimo.316 Deste modo, a natureza de direito fundamental inerente ao direito à moradia
encontra-se prevista no texto constitucional (em sua redação original) além de ser corolário
decorrente da proteção da dignidade da pessoa humana. Contudo, com o advento da Emenda
Constitucional nº 26, de 14/02/2000, tal direito ganhou ainda mais força passando a integrar,
expressamente, o rol dos direitos sociais, os quais constituem-se como direitos fundamentais
de segunda dimensão. Sobre o tema, observe-se que a expressão “moradia” demonstra a
continuidade e estabilidade do direito, o qual deve ser exercido de modo duradouro. Assim,
usou-se a expressão “moradia” ao invés da expressão “residência.” Segundo SAULE
JUNIOR, o direito à moradia integra a categoria dos direitos econômicos, sociais e culturais,
de tal forma que, para ter eficácia jurídica e social, exige uma ação positiva por parte do
Estado, por meio de políticas. Públicas.317 Tais direitos devem ser protegidos em todos os
momentos e, especialmente, em ocasiões de desastre. A vulnerabilidade da população atingida
faz com que o Estado e a sociedade se organizem no sentido de atender as pessoas atingidos,
garantindo-lhes a proteção destes (e outros) direitos sociais atingidos.
Segundo o
entendimento de SACHS, o direito à moradia decente constitui-se como uma necessidade
básica da população e, ao mesmo tempo, um enorme desafio para o chamado
desenvolvimento includente.318 LAZARI, por sua vez, discorre sobre o “direito de não perder
um lar”, acrescentando (com base no princípio do mínimo existencial) o direito de que este lar
seja servido por prestações estatais de absoluta necessidade.319 Conceber o direito à moradia
enquanto direito fundamental da pessoa humana implica em atribuir-lhe as características
inerentes a tais direitos, a saber: a inalienabilidade, a imprescritibilidade, a irrenunciabilidade,
a inviolabilidade, a universalidade, a interdependência e a complementariedade.320
Analisando a questão sob a ótica dos direitos fundamentais de terceira dimensão, temse que o direito à moradia e a proteção contra os desastres também possuem fundamento
constitucional e humanitário. Isso porque, conforme mencionado, os direitos de terceira
dimensão estariam relacionados aos direitos de fraternidade ou solidariedade, que são
316
PINHEIRO, Marcelo Rebello. A eficácia e a efetividade dos direitos sociais de caráter prestacional: em
busca da superação dos obstáculos. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2008. p. 168-9.
317
SAULE JUNIOR, Nelson (Coord.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São
Paulo: Max limonad, 1999. p. 98.
318
SACHS, op. cit., p. 40.
319
LAZARI, Rafael José Nadim de. Reserva do possível e mínimo existencial: a pretensão da eficácia da
norma constitucional em face da realidade. Curitiba: Juruá, 2012. p. 143.
320
SOUSA, Sergio Iglesias Nunes. Direito à moradia e de habitação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
p. 44.
110
inerentes à situação vivida pelas pessoas vítimas de um desastre. Com a ocorrência do
desastre as pessoas perdem familiares, amigos, além de seus bens materiais mais preciosos,
tais como casas, roupas, etc. Neste momento, a população encontra-se extremamente
vulnerável e necessitando de auxílio de modo a garantir-se um mínimo de qualidade de vida,
de modo a superar o desastre vivenciado.
A questão atinente à proteção dos indivíduos vítimas de desastres ganha ainda maior
relevo dentro do contexto da sociedade de risco, uma vez que o desenvolvimento dessa
sociedade faz com que os riscos de desastres aumentem, exigindo uma atuação cada vez mais
efetiva por parte do Poder Público e da sociedade. Segundo SAULE JÚNIOR, o direito à
moradia constitui-se como uma responsabilidade do Estado Brasileiro, de tal forma que deve
ele atuar de forma a garantir a efetivação (e proteção) deste direito. O direito à moradia
constitui-se, assim, como um direito humano integrante dos direitos fundamentais
reconhecidos no direito brasileiro e que implica na obrigação e responsabilidade do Estado em
proteger e assegurá-lo.321 Assim, não basta ter direito à moradia: é necessário ter-se direito a
uma moradia digna. Neste aspecto, o conceito de moradia digna atrela-se à existência de
moradias fora das áreas de risco, com saneamento ambiental e infraestrutura urbana, acesso ao
trabalho e lazer, etc.322 Acrescente-se, ainda, que a adequação das moradias às necessidades
do indivíduo reflete diretamente na qualidade de vida dos moradores. Ocorre que a falta de
condições financeiras, aliada à falta de opções de moradia para boa parte da população
contribuem para o crescimento de ocupações em áreas de risco e construções irregulares e
inadequadas, as quais acabam contribuindo para o aumento do número de desastres “naturais”
hidrológicos.
Ainda, com relação à moradia, cumpre-nos relembrar que o artigo 5º, XI, da
Constituição Federal proclama que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela
podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. Assim, somente
nas hipóteses acima mencionadas é possível o ingresso sem a autorização do morador.
Observe-se, contudo, que a expressão “desastre” foi utilizada sem rigor técnico, de modo a
abranger qualquer situação de perigo vivenciada por aqueles que se encontrem na referida
casa.
321
SAULE JUNIOR, Nelson (Coord.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São
Paulo: Max limonad, 1999. p. 90.
322
ROGUET, op. cit., p. 311.
111
Contudo, em sede de direito dos desastres, observa-se que a falta de condições
econômicas da população e a falta de opções de moradia acaba contribuindo para ocorrência
de desastres “naturais” hidrológicos. Igualmente, a falta de opções de moradia dá azo a outro
fator que contribui para a ocorrência de desastres: as ocupações irregulares.
A ocupação irregular do solo é uma das principais causas dos desastres provocados
pelas chuvas, razão pela qual houve uma preocupação especial do legislador com relação a
ela.323 Do mesmo modo, a construção em áreas de risco, tais como áreas de encostas, entre
outras propensas a deslizamentos, constitui-se como um fator preocupante e que deve ser
observado por todos os envolvidos. Assim, a ocupação de encostas e outros locais de
considerável declividade ou impróprios para habitação aumenta o risco de desastres nestas
áreas. Isso porque as pessoas, ao construírem suas casas, escavam o morro e abrem
plataformas, o que aumenta a declividade e a infiltração de água no terreno. Ademais, a
instalação de populações nesta área faz com que o risco de deslizamentos se transforme em
um problema social.
A título exemplificativo, observe-se que, atualmente, cerca de 30% da população da
Região Metropolitana de São Paulo, ou seja, 2,7 milhões de pessoas vivem em comunidades,
cortiços e habitações precárias, quase sempre ilegais. 324 São concentrações significativas de
áreas de risco de escorregamentos.325 Por esta razão, a ocupação irregular encontra-se
diretamente relacionada aos desastres hidrológicos. Aliás, conforme mencionado, a Política
Nacional de Proteção e Defesa Civil tem entre seus objetivos estimular o ordenamento da
ocupação do solo urbano e rural, tendo em vista sua conservação e a proteção da vegetação
nativa, dos recursos hídricos e da vida humana e combater a ocupação de áreas
ambientalmente vulneráveis e de risco e promover a realocação da população residente nessas
áreas.326
Assim, o Poder Público deve utilizar-se do seu “poder de polícia”, de modo a não
permitir o uso da área mais crítica. O mesmo poder de polícia deve ser utilizado de modo a
323
Segundo TOMINAGA, os principais condicionantes antrópicos que contribuem para a saturação do solo e
concentração de água nessas regiões são o uso e ocupação irregular do solo nas planícies e margens de cursos
d’água, a disposição irregular de lixo nas proximidades dos cursos d’água e a alteração das características das
bacias hidrográficas e cursos d’água. Para maiores detalhes, veja-se: TOMINAGA, desastres... op. cit., 2009. p.
45.
324
Segundo asseveram ROGUET e CHOHFI, a região sudeste possui a maior quantidade de aglomerados
subnormais no país, sendo certo que São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados com maior quantidade,
respectivamente. Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Apud: ROGUET, op. cit., 2013. p. 315.
325
Disponível em: http://www.mudancasclimaticas.andi.org.br/node/1458/. Acesso em 7 out. 2013.
326
art. 5º, X e XI da lei 12.608, de 10 de abril de 2012
112
retirar os habitantes destas áreas (na hipótese de existência de risco de deslizamento)
transportando-os para locais mais seguros.327
Do mesmo modo, tem-se que, verificada a existência de ocupações em áreas
suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou
processos geológicos ou hidrológicos correlatos, o Município adotará as providências para
redução do risco, dentre as quais, a execução de plano de contingência e de obras de
segurança e, quando necessário, a remoção de edificações e o reassentamento dos ocupantes
em local seguro.328
A Lei no 12.340/2012 ainda proclama, em seu art. 3o-A, § 4o, que, sem prejuízo das
ações de monitoramento desenvolvidas pelos Estados e Municípios, o Governo Federal
publicará, periodicamente, informações sobre a evolução das ocupações em áreas suscetíveis
à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos
geológicos ou hidrológicos correlatos nos Municípios constantes do cadastro.329 Essa lei
também estabeleceu uma série de procedimentos com vistas à remoção dos moradores da
região. Assim, para que a remoção se efetive, será necessária a realização de vistoria no local
e elaboração de laudo técnico que demonstre os riscos da ocupação para a integridade física
dos ocupantes ou de terceiros e a notificação da remoção aos ocupantes acompanhada de
cópia do laudo técnico. Caso seja necessário, deverão ser fornecidas informações
contemplando as alternativas oferecidas pelo Poder Público para assegurar seu direito à
moradia, tendo em vista sua natureza de direito fundamental.
Registre-se que, na hipótese de remoção de edificações localizadas em área de risco, é
importante a adoção de medidas que impeçam a reocupação da área, sob pena da remoção não
atingir os objetivos almejados. Neste aspecto, é importante salientar que a lei ainda estabeleceu
que aqueles que tiverem suas moradias removidas deverão ser abrigados, quando necessário, e
cadastrados pelo Município para garantia de atendimento habitacional em caráter definitivo, de
acordo com os critérios dos programas públicos de habitação de interesse social.330
2.4.3 Direito à saúde
327
DÓRIA, op. cit., p. 68.
Lei no 12.340 “Art. 3º-B. incluído pela lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012
329
Redação dada pela lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012.
330
Art. 3º-B. § 3o da Lei no 12.340/2012, com redação dada pela Lei nº 12.608, de 2012.
328
113
DALLARI conceitua saúde como um bem fundamental do indivíduo, o qual, “por
meio da integração dinâmica de aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento, visa
assegurar ao indivíduo o estado de completo bem-estar físico, psíquico e social.”331 Deste
modo, tem-se que o direito à saúde também constitui-se como um direito social
expressamente previsto na Constituição Federal brasileira, incumbindo sua proteção a todos
os entes federados, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.332 Logo, a saúde traduz-se em um direito básico do ser
humano incluído no rol dos Direitos Humanos e dos Direitos fundamentais, objetivando
atender aos princípios densificadores do Estado Democrático.333 Sobre o tema, DALLARI
assevera:
[...] enfocar o direito à saúde como parte dos direitos fundamentais implica afirmar a
existência, ao menos do ponto de vista dos princípios gerais, de um regramento
comum a todos os demais direitos que se integram a esta categoria jurídica” de tal
forma que “a assimilação de um direito como fundamental provoca identificação de
um rol de características que lhes emprestam um traço unificar”, qual seja o seu
regime jurídico.334
Assim, tratando-se de um direito fundamental do ser humano, incumbe ao Estado atuar
de modo a garantir sua proteção. Contudo, não obstante a promoção do direito à saúde seja da
incumbência de todos os entes que compõem a Federação, incumbe ao Município prestar,
com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde
da população. Isso porque a eclosão de um desastre acaba repercutindo diretamente na saúde
da população atingida.
Durante a realização da Oficina Regional da Organização Mundial da Saúde foram
detectados os principais problemas posteriores à ocorrência de um desastre. São eles os
relacionados ao abastecimento de água, saneamento básico, controle de vetores, higiene
pessoal, enterro dos mortos e informação à população.335 A mesma Oficina também apontou
as principais consequências previsíveis dos desastres, tais como a necessidade de socorro
331
DALLARI, Sueli Gandolfi; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Direito sanitário. São Paulo: Verbatim, 2010.
p. 13.
332
Art. 196 da CF
333
SEGUIN, Elida. Biodireito. Rio de Janeiro: Lúmen juris, 2001. p. 51.
334
DALLARI, op. cit., p. 36-8.
335
ORGANIZACION PANAMERICANA DE LA SALUD. Oficina Sanitaria Panamericana, Oficina Regional
de la Organizacion Mundial de la salud. Administracion sanitária de emergência com posterioridade a los
desastres naturales. Washington, DC: 1981.
114
imediato, o cálculo das necessidades da população (aquisições de alimentos, medicamentos,
roupas, etc.).
Assim, o socorro às vítimas (com o fornecimento dos itens necessários) é fundamental
para amenizar a situação vivenciada, bem como para evitar novos problemas para a população
atingida, uma vez que, tanto nas secas como nas inundações, aumenta o consumo de água não
potável, o que contribui para o surgimento de surtos de gastroenterites com desidratação, entre
outras moléstias.336A propósito, registre-se que a quase totalidade das cidades brasileiras
desenvolve programas de desratização extremamente ineficientes, contribuindo para que
surtos de leptospirose, em circunstâncias de inundações urbanas, sejam bastante frequentes.337
Constata-se, portanto, que, a depender da magnitude do desastre, uma série de medidas
precisam ser adotadas, sendo certo que a preparação e a comunicação entre os atores
envolvidos é fundamental para evitar que mais vidas sejam perdidas.
Por fim, registre-se que tamanha é a importância da proteção da saúde pelos entes
públicos, que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que a não aplicação do mínimo
exigido da receita municipal nas ações e serviços públicos de saúde é causa para a intervenção
Estadual nos Municípios.338 Logo, tem-se que a criação de mecanismos e instrumentos
eficazes para contornar situações de desastres naturais hidrológicos é medida necessária para
a manutenção da saúde da população e, em última análise, da proteção da dignidade da pessoa
humana.
2.4.4. Direito à qualidade de vida
A construção das sociedades de riscos é inerente ao desenvolvimento e crescimento
das sociedades contemporâneas, as quais encontram-se marcadas pelo aumento populacional e
pela excessiva demanda de consumo diretamente relacionada à industrialização e ao processo
de globalização. Ademais, a ausência de políticas públicas e projetos eficientes voltados à
preservação do meio ambiente contribuem para as mudanças climáticas e dos ecossistemas.339
336
Disponivel em: <http://www.defesacivil.sc.gov.br/images/stories/resoluo_n_3_de_02jul99.txt.>. Acesso em:
01 maio 2013.
337
Ibidem.
338
Neste sentido, veja-se art. 35, II da CF
339
SCHENKEL, op. cit., p. 52.
115
Lamentavelmente, a sociedade de risco acaba contribuindo para o comprometimento
da qualidade de vida das presentes e futuras gerações, na medida que incentiva a deterioração
dos recursos naturais em busca do lucro e do desenvolvimento. Conforme assevera
SCHENKEL:
[...] a construção das sociedades de risco está estreitamente ligada ao crescimento
econômico e tecnológico desmesurado, cujas implicações repousam sobremaneira
na perda da qualidade de vida à medida que se deterioram os recursos naturais na
corrida pelo capitalismo e lucro acentuado.340
Tal intervenção do ser humano na natureza acaba contribuindo para o aumento dos
desastres em nosso planeta, de tal forma que a proteção contra desastres passará a se tornar, a
cada dia, uma tarefa fundamental para Estado e Sociedade. Assim, em face do progressivo
aumento na intensidade e frequência em relação à ocorrência de eventos que levam a
desastres naturais hidrológicos, faz-se necessário que Estado e sociedade passem a dar maior
importância às questões relacionadas a tal temática, de modo a se adaptar às exigências
decorrentes da mudança climática, contribuindo assim para que os efeitos dos desastres sobre
a denominada “sociedade de risco” sejam minimizados ou mitigados.
O direito dos desastres, como qualquer ramo jurídico, trata do estudo das relações
humanas. Dentro de seu campo de estudo observa-se uma preocupação com manutenção da
qualidade de vida e saúde do indivíduo, sendo certo que a ocorrência de desastre pode
impactar o indivíduo (ou determinada comunidade) de forma negativa. Do mesmo modo, o
direito dos desastres possui íntima relação com o direito à saudável qualidade de vida, bem
como com o direito ao desenvolvimento econômico sustentável, de tal forma que a proteção
do meio ambiente e dos recursos naturais pode contribuir para a diminuição nos índices de
desastres. Neste sentido, CARVALHO entende que, “com a inserção da expressão ‘sadia
qualidade de vida’ no texto constitucional (art. 225, CF/1988), “os elementos ambientais
passam a atuar como condição e limite
segurança, propriedade”.
para o usufruto dos direitos à vida, liberdade,
341
O direito à qualidade de vida, consoante defende JAMPAULO JÚNIOR, constitui-se
como um direito fundamental do ser humano. Para ele, a qualidade de vida encontra-se
relacionada ao bem estar do indivíduo, transitando entre todos os direitos fundamentais
340
341
SCHENKEL, op. cit., p. 53.
CARVALHO, op. cit., 2008. p. 30.
116
ligados diretamente ao direito à vida, de tal forma que, obedecendo-se o princípio da
dignidade humana em seu aspecto material, há de se visualizar o direito à qualidade de vida
como um direito fundamental do ser humano.342
2.4.5 Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
O meio ambiente é juridicamente definido como “o conjunto de condições, leis
influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas”343. Como se vê, trata-se de uma definição extremamente ampla, a
qual, segundo MAZZILI344 possibilita que a defesa da flora, da fauna, das águas, do solo, do
subsolo e do ar seja realizada de forma praticamente ilimitada. Da definição utilizada, fica
clara a relação entre o meio ambiente e o direito à vida. Além da definição legal, há conceitos
criados pela doutrina. De acordo com CARVALHO345, o meio ambiente pode ser definido
como o complexo de relações entre o mundo natural e os seres vivos. SILVA346, por sua vez,
define-o como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que
propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”. Ainda com
relação ao conceito de meio ambiente, AKAOUI347 defende que a definição apresentada é
ampla o suficiente para abarcar todos os interesses de natureza ambiental, abrangendo o meio
ambiente natural, cultural, do trabalho e urbano ou artificial.
No Brasil, o meio ambiente passou a ter uma tutela constitucional destacada somente
na Constituição de 1988, a qual inseriu um capítulo específico sobre o tema, tendo a referida
Constituição elencado o direito ao ambiente sadio como um direito fundamental do
indivíduo.348 Desta feita, o direito ao meio ambiente constitui-se como um direito
fundamental do indivíduo, uma vez que sua existência se justifica em razão da proteção do
direito à vida, saúde, qualidade de vida e, consequentemente, dignidade da pessoa humana.349
Assim, tem-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é considerado um direito
342
JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 181-2.
Neste sentido, vide Lei nº. 6938/81
344
MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 148.
345
CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição; direito
constitucional positivo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 753.
346
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 20.
347
AKAOUI, Fernando Reverendo Vidal. Compromisso de ajustamento de conduta ambiental. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 24.
348
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 47.
349
COUTINHO, op. cit., 2009., p. 20.
343
117
fundamental em razão de constituir-se como um requisito para a manutenção da sadia
qualidade de vida, além de ter sido expressamente previsto no texto constitucional.350 E, para
proteger tal direito, a Constituição Federal estabeleceu que:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.351
A inserção de um capítulo específico sobre o tema trouxe transformações para a
questão ambiental no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, com o advento da Constituição
de 1988, a proteção jurídica do meio ambiente passou a ter identidade própria, deixando de
ser um bem jurídico per accidens, elevando-se ao status de bem jurídico per se.
352
Observe-
se, entretanto, que a questão ambiental é tratada em diversas outras partes do texto
constitucional.353 Deste modo, a criação de uma proteção jurídica autônoma para o meio
ambiente, prevista em diversos capítulos da Constituição Federal, permitiu-lhe uma proteção
mais efetiva, sem a necessidade de se buscar fundamento em outros direitos
constitucionalmente protegidos. Assim, tal constitucionalização e autonomia do direito ao
meio ambiente trouxe maior efetividade em sua proteção.
Com relação aos efeitos da constitucionalização, SILVA354 destaca a unificação da
ordem jurídica e a necessidade da sua simplificação. Para o referido autor, por meio da
unificação, as normas constitucionais se tornariam, progressivamente, o fundamento comum
dos diversos ramos do Direito. Do mesmo modo, a unificação acabaria relativizando a
distinção entre direito público e privado, uma vez que a Constituição passaria a ser a base
fundamentadora de todos os princípios da ordem jurídica.
Deste modo, há de se concluir que o meio ambiente, além de ser direito constitucional,
é, também, um direito fundamental de todos os seres humanos. E, na medida que o meio
350
COÊLHO, Ana Patrícia Moreira. Meio ambiente e desenvolvimento sustentável à luz do direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Disponível em: <http://www.portalde
periodicos.idp.edu.br/index.php/cadernovirtual/article/viewFile/ 639/43>. Acesso em: 17 ago. 2013.
351
Artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988.
352
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 300.
353
COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Direito ao meio ambiente: indisponibilidade do bem jurídico e
possibilidade de acordos em matéria ambiental. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, n.
69/70, jun./dez. 2009. p. 176.
354
SILVA, Virgílio Afonso. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre
particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 48-50.
118
ambiente passa a ser considerado um direito fundamental autônomo, essa circunstância traz
consequências para toda a ordem jurídica. Assim, a proteção ambiental passa a ter como
objetivo “tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida, como forma
de direito fundamental da pessoa humana.”355 Do mesmo modo, discorrendo a respeito das
consequências do reconhecimento do meio ambiente como direito humano fundamental,
MARUM356 afirma que tal direito passa a ser irrevogável, eis que passa ele a se constituir
como verdadeira cláusula pétrea do regime constitucional brasileiro. O mesmo autor ainda
destaca a “integração plena e imediata dos pactos, tratados e convenções internacionais que
versem sobre o tema”, bem como a prevalência da “norma que mais favoreça o direito
fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado”.357 Nesta perspectiva, surge a necessidade
de dar-se prioridade às medidas que evitem danos ao meio ambiente, com vistas à efetiva
proteção desse direito fundamental.358
Assim, na medida em que o aumento da degradação ambiental possibilita a ocorrência
de perigos naturais que podem vir a causar desastres e graves prejuízos ao ser humano,359
nítida se mostra a relação entre esses direitos fundamentais.
2.4.6 Direito à assistência aos desamparados
A assistência aos desamparados constitui-se como um direito social de segunda
dimensão, com conteúdo nitidamente prestacional360 e expressamente mencionado pela
Constituição Federal. Conforme dispõe o art. 6º, todos têm direito à saúde, à alimentação, ao
trabalho, à moradia, ao lazer, etc. Tais direitos são importantes na medida que criam
condições para que o indivíduo mantenha sua dignidade incólume. Contudo, o indivíduo, sem
esses direitos, acaba ficando em situação de desamparo, razão pela qual surge a necessidade
de dar-se assistência àqueles que se encontrem nesta situação.
A assistência aos desamparados constitui-se, assim, em uma forma de se resgatar a
dignidade da pessoa humana, violada em razão da agressão a algum dos direitos fundamentais
355
SILVA, op. cit., 2000. p. 58.
MARUM, Jorge Alberto de Oliveira. Meio ambiente e direitos humanos. Revista de Direito Ambiental, São
Paulo, 2002, p. 134.
357
MARUM, op. cit., p. 135.
358
SMANIO, Gianpaolo Poggio. A tutela constitucional do meio ambiente. Revista dos Tribunais, São Paulo,
Ano 6, n. 21, p. 289, jan./mar., 2001.
359
SANTOS, op. cit., p. 11.
360
LAZARI, op. cit., p. 143.
356
119
do indivíduo. Neste aspecto, relembre-se que, em razão da ocorrência de desastres, as vítimas
necessitam de roupas, assistência médica e outros elementos fundamentais para vida.361
Deste modo, todos os direitos até aqui mencionados constituem-se como direitos
fundamentais em razão de objetivarem, em última análise, a manutenção da dignidade da
pessoa humana. Ademais, caso o direito de proteção contra desastres fosse visto como mero
instrumento para a salvaguarda de outros direitos fundamentais, chegar-se-ia à conclusão de
que a saúde, o meio ambiente e a moradia também não se consubstanciariam em direitos
fundamentais, haja vista que também podem ser classificados como instrumentos que
objetivam a proteção do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Neste sentido,
JAMPAULO JÚNIOR esclarece que a proteção do meio ambiente e sua qualidade possuem
caráter instrumental que, acrescidos de outros requisitos, protegem o direito à vida e o direito
à qualidade de vida.362 COÊLHO, a seu turno, relembra que, a partir do momento em que o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é necessário à manutenção da sadia
qualidade de vida, o mesmo passa a ser tratado como direito fundamental.363
2.5 DEVERES DO ESTADO NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Dentro deste contexto de surgimento, emergência e ampliação de direitos
fundamentais ganha destaque a questão atinente aos deveres incumbidos ao Estado na
proteção de tais direitos. Isso porque a evolução dos direitos fundamentais guarda íntima
relação com a evolução do papel do Estado. Aliás, o papel do Estado e suas áreas de atuação
tem aumentado em função das necessidades do indivíduo, no sentido de ter seus direitos
protegidos de forma efetiva. Segundo PIOVESAN, o texto constitucional de 1988 “exige a
eficiência de um Estado de bem-Estar Social, intervencionista e planejador”.364 Assim, o
Estado Constitucional Democrático de 1988 passa a ser um “Estado de justiça social,
concretamente realizável”.365
Conforme asseverado, uma das características dos direitos fundamentais refere-se a
sua efetividade, ou seja: o Poder Público deve atuar para garantir a efetivação dos Direitos
361
ASSAR, M. Guia de saneamento en desastres naturales. Genebra: Organizacion Mundial de la Salud,
1971. p. 14.
362
JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 175.
363
COÊLHO, op. cit.
364
PIOVESAN, op. cit., p. 206.
365
Ibidem, p. 211.
120
fundamentais, usando os poderes que lhe são inerentes, dentro de um Estado Democrático e
de Direito. Ademais, em razão dos direitos fundamentais terem como pressuposto a concessão
de uma existência digna ao ser humano, torna-se imprescindível a atuação estatal em sua
proteção e implementação.366
Do mesmo modo, os direitos fundamentais não podem ser desrespeitados pelo Poder
Público e pelos demais membros da sociedade, sob pena de responsabilização civil, penal ou
administrativa do violador. Tratam-se de características inerentes aos direitos fundamentais e
que devem ser observadas e respeitadas. Nesse aspecto SARLET e FENSTERSEIFER
relembram que “a caracterização do Estado Social e do conjunto de direitos fundamentais de
segunda dimensão (sociais, econômicos e culturais) traz consigo a configuração de deveres
sociais.”367
Em sede de direito ambiental, tem-se que Estado e sociedade devem cooperar na
formulação e execução da política ambiental.368 Contudo, a Constituição foi expressa ao
outorgar ao Estado uma série de atribuições estabelecidas, especialmente, no parágrafo
primeiro do artigo 225 da Constituição Federal. Tal parágrafo “ressalta o papel do Poder
Público na assecuração da efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado”.369 Dentre tais atribuições, destaque-se a de definir espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, nos quais a alteração e a supressão serão
permitidas somente por meio de lei e vedada qualquer utilização que comprometa a
integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. Do mesmo modo, incumbe ao Poder
Público exigir estudo prévio de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente.
Inclui-se, ainda, entre os deveres do Estado com vistas a assegurar a efetividade do
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a tarefa de promover a educação
ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do
meio ambiente. Segundo SACHS, a educação é essencial para o desenvolvimento, uma vez
366
RIBAS, op. cit., p. 20.
SARLET, Ingo Wolfgang. FENSTERSEIFER, Tiago. Direto constitucional ambiental: constituição,
direitos fundamentais e proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 229.
368
SMANIO, op. cit., 2001. p. 289.
369
LEMOS, op. cit., 2011. p. 52.
367
121
que contribui para a conscientização da população e a compreensão dos direitos humanos,
contribuindo para a autonomia, autoconfiança e autoestima do indivíduo.370
Com a consagração da proteção ao meio ambiente como direito fundamental e dever
estatal, impôs-se ao Estado a adoção permanente de medidas necessárias à proteção
ambiental.371 Assim, a Constituição Federal de 1988 atribuiu ao direito ao ambiente o status
de direito fundamental do individuo e da coletividade, consagrando a proteção ambiental
como um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro. 372
Paralelamente, tem-se que o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais
trouxe para o Estado uma série de atribuições até então inexistentes. Hoje, para a salvaguarda
dos direitos fundamentais, o Estado intervém na economia, nas relações privadas, na saúde,
no meio ambiente, etc. Aliás, observe-se que, já no preâmbulo, a Constituição Federal
projetou a instituição de um Estado democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e
a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias. Assim, a atuação estatal com vistas à proteção dos direitos
fundamentais traduz-se em uma exigência constitucional e que deve ser obedecida. E, para
isso, é necessário que o Poder Público esteja “preparado para dar respostas rápidas às
emergências da natureza”.373
Outro aspecto relevante refere-se à relação entre a proibição de retrocesso
(característica inerente aos direitos fundamentais) e os deveres do Estado na proteção de tais
direitos. Assim, tal característica (aplicada ao direito ambiental e ao direito de proteção contra
desastres) implica na existência de um “dever estatal de progressiva melhoria da qualidade
ambiental.”374
Especificamente em relação aos desastres naturais hidrológicos, observa-se que a
Constituição Federal incluiu expressamente entre as funções da União a de “planejar e
370
SACHS, op. cit., p. 39.
GARCIA, Maria da Gloria. F.P.D. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos fundamentais e
proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. GARCIA, op. cit., 2007. p. 481.
372
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSFEIFER, Tiago. O papel do poder judiciário brasileiro na tutela e
efetivação dos direitos e deveres socioambientais. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 13, n. 52, p.
75, out./dez. 2008.
373
SEGUN, Elida. A lei de defesa civil: algumas considerações. Revista de Direitos Difusos, ano 12, v. 57-8, p.
68, jan./dez. 2012.
374
SARLET, op. cit., 2013. p. 219.
371
122
promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as
inundações”. Do mesmo modo, permitiu-se ao Presidente da República (ouvidos o Conselho
da República e o Conselho de Defesa Nacional) decretar estado de defesa para preservar ou
prontamente restabelecer a ordem pública ou a paz social atingidas por calamidades de
grandes proporções na natureza.375 Tratam-se de medidas que visam dar maior efetividade à
atuação estatal na defesa de tais bens jurídicos, na medida em que, tratando-se de direitos
fundamentais, eventual omissão do Estado com relação a sua proteção traduzir-se-ia em
violação à ordem constitucional. Tem-se assim, um “constitucionalismo concretizador dos
direitos fundamentais.”376
Nesta perspectiva, o desenvolvimento da sociedade e as novas concepções de
desenvolvimento trazem para o Estado o dever de articular e conduzir tal desenvolvimento,
fornecendo os instrumentos legais necessários para sua adequada regulamentação e
fiscalização.377 Nesta perspectiva, é possível afirmar-se que:
[...] o principal papel a ser desempenhado pelo Estado é o de coordenação do
processo com o objetivo de orquestrar a concertação dos diversos atores políticos e
sociais, viabilizando a formulação e implementação das políticas publicas
necessárias pra desencadear o desenvolvimento dos territórios. 378
No tocante aos direitos sociais (de nítido caráter prestacional) PINHEIRO379 entende
que os direitos sociais tem como função a busca pela efetiva fruição do direito de liberdade
dos indivíduos. Assim, é necessário garantir-se ao individuo o fornecimento de prestações
materiais mínimas que lhe assegurem o exercício do direito de liberdade. NINO, por sua vez,
defende a tese de que a não entrega de prestações positivas ao cidadão por parte do estado não
violaria os direitos humanos, usando como argumento o fato de que tal direitos só existiria na
hipótese de haver um dever do estado de atuar ou não atuar para impedir esse resultado. 380 No
mesmo sentido, BOBBIO defende a eficácia não plena dos direitos sociais, uma vez que a
375
Art. 136 da CF
PIOVESAN, op. cit., p. 208.
377
ROSSETO, Adriana et al. A integração das politicas públicas: condição para o desenvolvimento. In: ALVES,
Luiz Roberto; SÁ, José de. (Org.). Políticas integradas de governança: participação, transparência e inclusão
social. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2011. p. 26.
378
Ibidem, p. 26.
379
PINHEIRO, op. cit., p. 62.
380
NINO, Carlos Santiago. La constituicion de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1997. p . 90.
376
123
teoria do fundamento absoluto dos direitos fundamentais foi, durante muito tempo, um
obstáculo para a introdução de novos direitos.381
Observe-se, entretanto, que os desastres hidrológicos podem causar danos para um
número indeterminado de pessoas, um grupo de indivíduos, ou mesmo para um único
cidadão. Nesta perspectiva é possível falar-se em danos difusos, coletivos ou individuais.
Contudo, independentemente do tipo de dano a ser causado, deve o Estado atuar de modo a
evitar ou mitigar os danos decorrentes de desastres que possam vir a causar danos para o
indivíduo. Assim, a atuação do Estado na proteção e efetividade dos direitos fundamentais
deve objetivar a manutenção da dignidade da pessoa humana, protegendo o indivíduo contra
ameaças a esse bem jurídico tutelado.
Há, ainda, diversas medidas que podem ser utilizadas com o objetivo de promover
ações de mitigação e adaptação à mudança do clima, tais como instrumentos financeiros e
econômicos, apoio e fomento às atividades que contribuam para a diminuição do efeito estufa,
promoção da cooperação internacional, promoção da disseminação de informações, a
educação, a capacitação e a conscientização pública sobre mudança do clima, etc. No que
tange aos desastres hidrológicos, o Poder Público deve elaborar planos urbanos e estratégias
de desenvolvimento, possibilitando o manejo do uso da terra de modo a garantir que terrenos
suficientes sejam disponibilizados para a habitação (incluindo habitações populares) mas em
locais seguros nos quais os moradores encontrem-se a salvo de inundações e outras
calamidades.382
E, para a proteção desse direito, merece atenção a atuação da Defesa Civil enquanto
órgão de proteção contra desastres, a qual constitui-se como o conjunto de ações preventivas,
de socorro, assistenciais e reconstrutivas destinadas a evitar e minimizar os desastres,
preservar o moral da população e restabelecer a normalidade social.383 Do conceito
apresentado conclui-se que as ações adotadas em sede de Defesa Civil também estão
intimamente relacionadas à proteção da dignidade da pessoa humana, na medida em que
visam proteger a vida e a saúde da população por meio das ações de socorro e assistência às
vítimas e afetados. Proteger o indivíduo contra a ocorrência de desastres, por meio de medidas
381
BOBBIO, op. cit., p. 22-3.
A adaptação às mudanças climáticas pode atender também às metas de desenvolvimento em cidades de países
em desenvolvimento?. In: CIVIS, nº 2 - Outubro 2009, p. 5. Disponível em:
<http://citiesalliance.org/sites/citiesalliance.org/files/CIVIS_2_Portuguese.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2013.
383
Disponível
em:
<http://www.defesacivil.sp.gov.br/v2010/portal_defesacivil/conteudo/documentos/
manualDefesaCivi l_patruleiro.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2013.
382
124
preventivas, ou agir para mitigar os danos decorrentes de um desastre é medida salutar para a
efetividade da proteção desse direito fundamental. Tal proteção, entretanto, poderá ser mais
eficaz por meio de políticas públicas específicas e preocupadas com a manutenção da
dignidade dos cidadãos.
125
3. POLÍTICAS PÚBLICAS, DESASTRES E DEFESA CIVIL: UM DESAFIO
CONTÍNUO PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
As políticas públicas constituem-se como importante instrumento para a salvaguarda
dos direitos fundamentais, incluindo-se neste rol o direito de proteção contra desastres.
Segundo DUARTE, para cumprir os ideais do Estado Social, exige-se uma atuação racional e
planejada por parte dos governantes, a ser realizada por meio da elaboração e implementação
de políticas públicas, as quais, por sua vez, podem ser definidas como programas de ação
governamental voltados à concretização dos direitos fundamentais.384 Do mesmo modo,
analisando-se o conceito de políticas públicas, observa-se que diversos autores debruçaram-se
sobre o tema.385
Na esfera jurídica, ao relacionar política pública com direito, BUCCI, a define como
um programa de ação governamental, resultante de um (ou mais) processos juridicamente
regulados visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a
realização de objetivos estabelecidos.386 Assim, para a referida autora, as políticas públicas
passam a ser entendidas como programas de ação governamental que visam coordenar os
meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos
socialmente relevantes e politicamente determinados.387 No mesmo sentido é a opinião de
MANCUSO, para quem as políticas públicas podem ser conceituadas como toda conduta da
Administração Pública, em sentido largo, voltada à consecução de programa ou meta
previstos em norma constitucional ou legal.388
Em sede de proteção contra desastres, também ganha destaque a atuação do Poder
Público, como fomentador de políticas públicas direcionadas para a preservação dos direitos
dos cidadãos durante os momentos de predesastre, desastre e posdesastre, notadamente por
meio da atuação da Defesa Civil nestas situações. Em razão das suas funções
constitucionalmente estabelecidas, o Poder Público deve atuar na concretização dos direitos
384
DUARTE, Clarice Seixas. O ciclo das políticas públicas. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN,
Patrícia Tuma Martins (Org.). O direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 17.
385
Dentre eles, cite-se: BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas
públicas. São Paulo: Saraiva, 2013. FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direito fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 2013.
386
BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Mari Paula Dallari (Org.).
Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39.
387
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e politicas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 239.
388
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Controle judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Edis
(Coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 730.
126
fundamentais, o que pode ocorrer por meio de políticas públicas específicas, as quais
constituem-se como ações estratégicas com o intuito de implementar os direitos garantidos na
Constituição Federal.389
Neste sentido, a criação e gerenciamento de políticas públicas e ações voltadas para a
proteção contra desastres, enquanto direito fundamental, traduz-se em um dever do ente
público em relação a toda sociedade e, notadamente, em relação aos cidadãos que vivem em
áreas de risco, nas quais há maior probabilidade de ocorrência de desastres e de lesões a
direitos subjetivos, tais como o direito à vida, integridade física, saúde, meio ambiente, dentre
outros.
No Brasil, observa-se a existência de políticas públicas relacionadas ao
desenvolvimento sustentável e a proteção contra desastres, permitindo uma maior resiliência
das cidades em relação a eventos dessa natureza. Assim, torna-se necessário um maior
aprofundamento acerca da organização do sistema nacional de Defesa Civil e das medidas
protetivas existentes. Para tanto, parte-se de uma retrospectiva histórica sobre o surgimento e
evolução de tal sistema, passando pelas medidas de proteção criadas até o surgimento da lei
federal que atualmente regulamenta a política nacional de proteção e Defesa Civil. Neste
estudo, constata-se uma centralização legislativa em torno da União, além da previsão de
auxílio aos Municípios pelos demais entes federados e adoção de medidas conjuntas.
Nesta luta contra os desastres, observa-se que a atuação estatal deve ocorrer
cotidianamente, por meio de ações preventivas e recuperativas realizadas com recursos
financeiros disponibilizados pelo Poder Público, uma vez que a proteção contra desastres
constitui-se como um direito fundamental do indivíduo. Contudo, tendo em vista a finitude
dos recursos orçamentários e financeiros, questões relacionadas aos institutos da reserva do
possível e ao mínimo existencial passam a ser relevantes para o estudo da relação entre os
direitos fundamentais e a proteção contra desastres naturais, na medida que tais institutos são
apresentados como limitadores e orientadores das políticas públicas estabelecidas pelo Poder
Público.
389
COÊLHO, op. cit., 2013.
127
3.1 REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS E PAPEL DO PODER PÚBLICO EM SEDE DE
DESASTRES
A proteção contra desastres, em nível nacional, exige a realização de uma série de
ações por parte do Estado brasileiro, a ser
efetivada por meio de políticas públicas
estabelecidas. Ocorre que, em razão da República Federativa do Brasil ser composta de
diferentes entes públicos autônomos, houve a necessidade de se criar regras específicas
atinentes à repartição de competências entre eles, uma vez que os entes que a compõem
gozam de autonomia administrativa e política. Para tanto, o Estado criou um sistema de
repartição de competências abrangendo suas diferentes esferas de atuação (local, regional e
nacional). Tala repartição de competências é realizada – em regra - com base no princípio da
predominância do interesse.390 Assim, à União caberá aquelas matérias e questões de
predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se as matérias de
predominante interesse regional e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local.
Especificamente em relação à proteção contra desastres (e, notadamente os
hidrológicos) a Constituição Federal estabeleceu que o planejamento e a promoção da defesa
permanente contra as calamidades públicas é de competência da União, destacando sua
atuação em relação às situações de secas e inundações. Consoante estabelece o artigo 22,
XXVIII, da Constituição Federal, houve a inclusão das defesas territorial, aeroespacial,
marítima e civil, bem como da mobilização nacional como hipóteses de competência
legislativa privativa da União. Observa-se, assim, que a defesa contra os desastres
hidrológicos é considerada uma situação de interesse geral, razão pela qual a competência em
relação ao assunto foi atribuída à União. Ao atribuir-se à União a competência para planejar e
promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as
inundações, a Constituição
que concluiu que: 1) Secas e inundações são consideradas
calamidades públicas; e 2) A defesa (e proteção) contra secas e inundações deve ser adotada
de forma prioritária. Observa-se, assim, que, em sintonia com o disposto no artigo 22 da
Constituição Federal, foi outorgada à União um poder-dever no sentido de planejar e
promover a defesa permanente contra calamidades publicas, especialmente as secas e as
inundações. Tal preocupação demonstra que, por possuírem a natureza de direito
fundamental, a proteção contra calamidades públicas (e, em especial, a defesa contra secas e
390
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 418.
128
inundações) constitui-se como um dever do Estado em relação ao qual o mesmo não pode
imiscuir-se. Ademais, no momento em que a Constituição impõe ao Estado determinadas
obrigações, acaba elegendo prioridades e retirando
do legislador qualquer margem de
manobra ou de discricionariedade.391
Do mesmo modo, tratando-se de competência privativa, torna-se possível, nos termos
do citado artigo 22, que haja a regulamentação de assuntos específicos pelos Estados e pelo
Distrito Federal, desde que autorizados por meio de lei complementar. Registre-se, contudo,
que a competência legislativa dos Estados e do Distrito Federal, nestas hipóteses, deverá
restringir-se a questões específicas.
Assim, exercendo a competência constitucional que lhe foi outorgada, foi promulgada
a lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012, a qual trata da Política Nacional de Proteção e Defesa
Civil. Tal lei traz consigo uma série de competências para cada um dos entes que compõem a
federação no que se refere às ações relacionadas à proteção contra desastres. Deste modo,
tem-se que, em sede de Defesa Civil, compete à União:
I - expedir normas para implementação e execução da PNPDEC;
II - coordenar o SINPDEC, em articulação com os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios;
III - promover estudos referentes às causas e possibilidades de ocorrência de
desastres de qualquer origem, sua incidência, extensão e consequência;
IV - apoiar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios no mapeamento das áreas
de risco, nos estudos de identificação de ameaças, suscetibilidades, vulnerabilidades
e risco de desastre e nas demais ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta
e recuperação;
V - instituir e manter sistema de informações e monitoramento de desastres;
VI - instituir e manter cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à
ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos
geológicos ou hidrológicos correlatos;
VII - instituir e manter sistema para declaração e reconhecimento de situação de
emergência ou de estado de calamidade pública;
VIII - instituir o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil;
IX - realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de
risco, bem como dos riscos biológicos, nucleares e químicos, e produzir alertas
sobre a possibilidade de ocorrência de desastres, em articulação com os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios;
X - estabelecer critérios e condições para a declaração e o reconhecimento de
situações de emergência e estado de calamidade pública;
XI - incentivar a instalação de centros universitários de ensino e pesquisa sobre
desastres e de núcleos multidisciplinares de ensino permanente e a distância,
destinados à pesquisa, extensão e capacitação de recursos humanos, com vistas no
gerenciamento e na execução de atividades de proteção e Defesa Civil;
391
TAVARES, André Ramos. Justiça constitucional e direitos sociais no Brasil. In: FRANCISCO, José Carlos.
Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey,
2012. p. 151.
129
XII - fomentar a pesquisa sobre os eventos deflagradores de desastres; e
XIII - apoiar a comunidade docente no desenvolvimento de material didático392
pedagógico relacionado ao desenvolvimento da cultura de prevenção de desastres.
Observe-se que, em sede de Defesa Civil, foi atribuída aos Corpos de Bombeiros
militares a execução de atividades de Defesa Civil, sem, contudo, excluir a responsabilidade
da sociedade com relação à execução de tais atividades. Tal regramento acaba aproximando a
Defesa Civil da sua origem inicial, ligada à defesa contra guerras externas, e,
consequentemente, militarizando suas ações. Assim, essa “militarização” acaba dificultando a
participação popular e a busca de decisões consensuais entre os atores envolvidos. Neste
aspecto, VALENCIO preleciona:
A compreensão hegemônica do desastre como um assunto eminentemente militar e
militarizado afasta os civis brasileiros da possibilidade de compor, na instituição de
Defesa Civil, o compartilhamento das experiências comunitárias exitosas, sobretudo
393
em prevenção, preparação e resposta(...)
Tais críticas têm como objetivo esclarecer que a Defesa Civil não pode ser vista como
um sistema estritamente militar e hierarquizado, mas, sim, como um mecanismo posto à
disposição da sociedade para auxiliar no combate a desastres.
No que se refere à competência legislativa da União em questões relacionadas à
política urbana, incumbe a ela legislar sobre normas gerais de direito urbanístico, bem como
estabelecendo normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios em relação à política urbana, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do
bem-estar em âmbito nacional.394
A Defesa Civil também previu uma série de competências a cargo dos Estadosmembros, tendo em vista que estes também integram a Federação e devem organizar-se e
reger-se por meio de Constituições e leis por eles adotadas, sem, contudo, contrariar os
princípios estabelecidos na Constituição Federal. Conforme ensina HORTA395 os Estadosmembros são dotados de autonomia, a qual “pressupõe repartição constitucional de
competência para o exercício e o desenvolvimento de sua atividade normativa”. Deste modo,
392
Art. 6o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012
VALÊNCIO, op. cit., p. 336.
394
Art. 3º, I e II da lei 10.257/2001
395
HORTA. Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 363.
393
130
a repartição de competências é inerente ao Estado Federal, sendo certo que – segundo essa
repartição - é da competência dos Estados:
I - executar a PNPDEC em seu âmbito territorial;
II - coordenar as ações do SINPDEC em articulação com a União e os Municípios;
396
III - instituir o Plano Estadual de Proteção e Defesa Civil;
IV - identificar e mapear as áreas de risco e realizar estudos de identificação de
ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades, em articulação com a União e os
Municípios;
V - realizar o monitoramento meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de
risco, em articulação com a União e os Municípios;
VI - apoiar a União, quando solicitado, no reconhecimento de situação de
emergência e estado de calamidade pública;
VII - declarar, quando for o caso, estado de calamidade pública ou situação de
emergência; e
VIII - apoiar, sempre que necessário, os Municípios no levantamento das áreas de
risco, na elaboração dos Planos de Contingência de Proteção e Defesa Civil e na
397
divulgação de protocolos de prevenção e alerta e de ações emergenciais.
Do exposto, observa-se que as competências a cargo dos Estados também giram em
torno de ações de coordenação e apoio. Neste ponto, há de se relembrar o tratamento dado à
Constituição ao Distrito Federal, o qual também integra a federação, constituindo-se como
unidade autônoma e possuindo personalidade jurídica de direito público interno. A propósito,
o Distrito Federal acumula as competências dos Estados e dos Municípios, com algumas
peculiaridades.
Por fim, com relação ao papel do Município em sede de desastres e sua prevenção, há
de se destacar que incumbe a ele a promoção do adequado ordenamento territorial, o que será
feito mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo
urbano. Assim, também foram conferidas aos Municípios uma série de atribuições em relação
à Defesa Civil. Entre elas, tem-se as ações de:
I - executar a PNPDEC em âmbito local;
II - coordenar as ações do SINPDEC no âmbito local, em articulação com a União e
os Estados;
III - incorporar as ações de proteção e Defesa Civil no planejamento municipal;
IV - identificar e mapear as áreas de risco de desastres;
V - promover a fiscalização das áreas de risco de desastre e vedar novas ocupações
nessas áreas;
396
O Plano Estadual de Proteção e Defesa Civil conterá, no mínimo: a identificação das bacias hidrográficas com
risco de ocorrência de desastres; e as diretrizes de ação governamental de proteção e defesa civil no âmbito
estadual, em especial no que se refere à implantação da rede de monitoramento meteorológico, hidrológico e
geológico das bacias com risco de desastre.
397
art. 7o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012
131
VI - declarar situação de emergência e estado de calamidade pública;
VII - vistoriar edificações e áreas de risco e promover, quando for o caso, a
intervenção preventiva e a evacuação da população das áreas de alto risco ou das
edificações vulneráveis;
VIII - organizar e administrar abrigos provisórios para assistência à população em
situação de desastre, em condições adequadas de higiene e segurança;
IX - manter a população informada sobre áreas de risco e ocorrência de eventos
extremos, bem como sobre protocolos de prevenção e alerta e sobre as ações
emergenciais em circunstâncias de desastres;
X - mobilizar e capacitar os radioamadores para atuação na ocorrência de desastre;
XI - realizar regularmente exercícios simulados, conforme Plano de Contingência
de Proteção e Defesa Civil;
XII - promover a coleta, a distribuição e o controle de suprimentos em situações de
desastre;
XIII - proceder à avaliação de danos e prejuízos das áreas atingidas por desastres;
XIV - manter a União e o Estado informados sobre a ocorrência de desastres e as
atividades de proteção civil no Município;
XV - estimular a participação de entidades privadas, associações de voluntários,
clubes de serviços, organizações não governamentais e associações de classe e
comunitárias nas ações do SINPDEC e promover o treinamento de associações de
voluntários para atuação conjunta com as comunidades apoiadas; e
398
XVI - prover solução de moradia temporária às famílias atingidas por desastres.
Como se vê, compete aos Municípios promover a fiscalização das áreas com riscos de
desastre e vedar novas ocupações nessas áreas, criando mecanismos de controle e
fiscalização. Tal fiscalização é importante, em razão dos riscos e prejuízos advindos da
ocorrência de desastres, ou agravados em razão da existência de ocupações irregulares em
áreas de risco. Assim, estas ocupações inadequadas do espaço urbano devem ser tratadas e
fiscalizadas por se localizarem, muitas vezes, em áreas de risco ou em áreas de preservação
permanente, que são áreas inapropriadas para residências familiares ou para a realização de
empreendimentos imobiliários.399
Do exposto, constata-se que a União tem atribuições relacionadas ao planejamento e
monitoramento em ampla escala, bem como ao reconhecimento do estado de calamidade
pública e situação de emergência. Do mesmo modo, observa-se que o Estado também possui
grande participação nas ações de planejamento e monitoramento, devendo apoiar o ente
municipal, que é o responsável pelo planejamento urbano preventivo, de modo a evitar
ocupações em áreas de risco, bem como realizar a implantação de ações de prevenção e
gestão de situação de risco.400
398
art. 8o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012.
PEITER, op. cit., p. 69.
400
GANEM, Roseli Senna. Gestão de desastres no Brasil. Biblioteca Digital. Câmara dos Deputados, 2012, p.
15. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/10496/gestao_desastres_ganem.
pdf?sequence=1>. Acesso em 20 nov. 2013
399
132
Importante ressaltar que, apesar de se constituírem como entes distintos, a
Constituição Federal atribui competências comuns à União, Estados, Distrito Federal e
Municípios. Tratam-se de atribuições estabelecidas pela Constituição Federal com o intuito
de possibilitar uma melhor proteção jurídica dos bens tutelados, razão pela qual tais
competências foram atribuídas a todos os entes federados. Especificamente em relação às
competências comuns no âmbito da Defesa Civil, tem-se que compete à União, aos Estados e
aos Municípios:
I - desenvolver cultura nacional de prevenção de desastres, destinada ao
desenvolvimento da consciência nacional acerca dos riscos de desastre no País;
II - estimular comportamentos de prevenção capazes de evitar ou minimizar a
ocorrência de desastres;
III - estimular a reorganização do setor produtivo e a reestruturação econômica das
áreas atingidas por desastres;
IV - estabelecer medidas preventivas de segurança contra desastres em escolas e
hospitais situados em áreas de risco;
V - oferecer capacitação de recursos humanos para as ações de proteção e Defesa
Civil; e
VI - fornecer dados e informações para o sistema nacional de informações e
401
monitoramento de desastres.
Por se tratar de competência comum, é possível que os entes públicos celebrem
acordos de cooperação a fim de bem executar suas tarefas. Para tanto, exige-se a criação de
leis complementares que venham a fixar normas para a cooperação entre os entes públicos,
tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.402
A cooperação entre os entes públicos constitui-se como um dever atinente à realização
da proteção ambiental. Neste sentido, respeitadas as repartições de competências
constitucionalmente estabelecidas, tem-se que o exercício de tais competências (legislativas e
executivas) deve conduzir a sua descentralização e ao fortalecimento da autonomia dos entes
federados ou periféricos, com vistas à efetividade da proteção ambiental e dos mecanismos
de participação política.403
Importante observar, contudo, que o Município é o órgão executor da maioria das
ações a serem adotadas em sede de Defesa Civil e prevenção a desastres, contando com a
colaboração dos Estados e da União no desenvolvimento dessas atividades. Assim, o
Município constitui-se como um dos atores mais importantes na luta contra os desastres
401
Art. 9o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012.
Vide art. 23, parágrafo único, da CF, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006.
403
SARLET, 2013. p. 216.
402
133
naturais hidrológicos. Isso deve-se, entre outros fatores, à expansão das cidades, que ocorreu
em função da migração de pessoas das zonas rurais para a cidade, bem como ao aumento da
população local.404 Tal expansão causou um crescimento rápido e, não raras vezes,
desordenado, intensificando o papel do Poder Público nessa área. Assim, tem-se que, para que
o Estado brasileiro cumpra seu papel como ente responsável pela proteção ambiental, bem
como pela gestão, uso e ocupação do solo, contribuindo para a prevenção de desastres, é
fundamental a preocupação com uma gestão eficiente e proativa, antecipando-se aos
problemas e aos desastres que podem ocorrer em determinada área.
Assim, modelos de urbanização devem ser pensados com antecedência, proibindo-se a
ocupação de áreas irregulares e retirando as pessoas desses locais, de modo a evitar a criação
de novos focos de exposição. Sob outra ótica também é importante criar-se programas
habitacionais que possam dar efetividade ao direito à moradia, propiciando a todos os
indivíduos (e, em especial, aos hipossuficientes) o exercício desse direito constitucional fora
das áreas impróprias para habitação, como é o caso das áreas de risco. Logo, é importante
criar-se leis que possibilitem a regulamentação do espaço público, além da implantação de um
sistema eficaz de fiscalização, de modo a impedir que mais pessoas venham a morar em áreas
sujeitas a desastres hidrológicos.
Ainda em sede de atuação estatal, tem-se que a criação de medidas de adaptação, tais
como a implementação de parques lineares ao redor de corpos d’água - minimizando assim os
riscos de enchentes e o estabelecimento de ferramentas de monitoramento e alerta - além da
criação de planos de ação em casos de emergência e o desenvolvimento de estratégias
nacionais para a adaptação do país face aos efeitos da mudança climática, são medidas
salutares para a prevenção de desastres futuros. Nessa perspectiva, ações relacionadas à
fiscalização acerca da ocupação do solo, remoção de pessoas residentes em áreas de risco,
realização de obras de contenção de encostas, elaboração de regras para a construção de casas
e prédios, sistemas eficazes de radares e alertas, além da integração entre as diferentes esferas
estatais, com auxílio mútuo entre elas otimizará o sistema de repartição de competências e
permitirá que as ações preventivas sejam adotadas com a antecedência que se faz necessária.
De tudo o quanto foi exposto, tem-se que os três níveis de governo existentes devem
unir-se de modo a, realmente, criar uma política nacional eficaz para retirar pessoas das áreas
de risco e realoca-las em locais adequados. Neste aspecto, observe-se que a Constituição
404
GIDDENS, op. cit., 2004. p. 575.
134
atribuiu papel importante ao Poder Público, o qual deverá executar suas obrigações
constitucionais observando-se, também, os deveres comuns fixados no artigo 23, incisos
III405, VI406 e VII407 da Constituição Federal. Assim, o Estado deve procurar atuar em todas as
fases dos desastres: antes, durante e depois; procurando, contudo, intensificar suas ações em
medidas preventivas. E, para que isso ocorra, é fundamental a integração entre as diversas
políticas públicas existentes e a serem criadas.
Assim, não basta apenas uma política de gestão de riscos e resposta a desastres. Esta
deve aliar-se a políticas públicas de saneamento básico408, oferta de água, planejamento
urbano, habitação, energia nuclear, conservação ambiental, etc. Aliás, tratando-se de um
direito fundamental do indivíduo, a proteção contra a ocorrência de desastres demanda uma
regulamentação normativa na qual aspectos sociais, urbanísticos, ambientais sejam
observados de modo a garantir-se a efetivação de um ordenamento territorial adequado, no
qual os direitos fundamentais do indivíduo sejam respeitados.
3.2
POLÍTICAS
PÚBLICAS
PARA
DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
E
PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES
Tal sistema de repartição de competências encontra-se intimamente ligado à execução
das políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento sustentável e à proteção contra
desastres. Nesta perspectiva, as políticas públicas constituem-se como instrumentos
importantes para a concretização dos direitos fundamentais (com destaque para os direitos de
segunda dimensão - direitos sociais), na medida em que tais direitos demandam uma atuação
positiva por parte do Estado.409 ALEXY visualiza os “direitos a proteção” como direitos do
titular de direitos fundamentais em face do Estado, no sentido de que este o projeta contra
405
“Proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”
406
“Proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”
407
“Preservar as florestas, a fauna e a flora”
408
Neste aspecto, a lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que dispõe sobre o Saneamento Básico, incluiu a
limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos, bem como a drenagem e manejo das águas pluviais urbanas entre
os serviços de saneamento.
409
LOPES, Bruno Matias. Limites ao ativismo judicial no controle das políticas públicas e sua inaplicabilidade
ao núcleo essencial dos direitos fundamentais. In: CONGRESSO NACIONAL DE PROCURADORES, 39.,
2013.
135
intervenções de terceiros.410 Assim, cabe ao Estado a missão de atuar de modo a assegurar a
efetividade destes direitos.
A efetiva proteção contra a ocorrência de desastres deve dar-se por meio de políticas
públicas a serem implementadas pelo Poder Público de modo a garantir a preservação do
meio ambiente e, consequentemente, garantir a saúde e a qualidade de vida dos indivíduos,
protegendo-os contra a ocorrência futura de desastres. Na impossibilidade de se evitar a
ocorrência de desastres, tais políticas devem procurar minimizar os efeitos e os danos
provocados pelos desastres, o que pode ser feito por meio de normas e estudos técnicos que
estabeleçam critérios seguros para construções de moradias.
Dessa forma, a implantação de políticas públicas deve ter como objetivo a satisfação
dos interesses da coletividade, de modo a preservar seus direitos fundamentais. Neste sentido,
consoante ensina BUCCI, o fundamento mediato e fonte de justificação das políticas públicas
é o Estado social, marcado pela obrigação de efetivação dos direitos fundamentais
positivos.411 Tal modelo de Estado fundamenta-se na busca pela redução das desigualdades
sociais, por meio de sua atuação direta nas atividades econômicas e sociais e ampliação dos
serviços públicos, com vistas ao estabelecimento de uma vida digna.412
O risco de desastres representa um grande desafio ao desenvolvimento sustentável.
Neste sentido, a Conferência das Nações Unidas sobre desenvolvimento sustentável destacou
os impactos devastadores que terremotos, inundações, secas, furacões e tsunamis têm sobre as
pessoas, o meio ambiente e as economias. 413 Do mesmo modo observa-se que os níveis de
risco têm aumentado em razão de fatores como “as alterações climáticas, a pobreza, as falhas
de planejamento e gestão no ordenamento territorial e a degradação dos ecossistemas”. 414 E,
neste aspecto, as instituições de governança podem ter grande influência no enfrentamento e
na capacidade de adaptação das comunidades locais a esses desastres.415
Não obstante tenha sido criada uma lei específica atinente à Política Nacional de
Proteção e Defesa Civil, tem-se que diversas outras políticas públicas implementadas pelo
410
ALEXY, op. cit., p. 450.
BUCCI, Maria Paula Dallari. As políticas públicas e o direito administrativo. Revista Trimestral de Direito
Público, São Paulo, n. 13, p. 135, 1996.
412
RIBAS, op. cit., p. 38.
413
RIO+20. Conferência das Nações Unidades sobre Desenvolvimento Sustentável. Disponível
em:<http://www.onu.org.br/rio20/temas-desastres/>. Acesso em: 06 nov. 2013.
414
Ibidem
415
Ibidem.
411
136
Poder Público constituem-se como instrumentos que podem ser utilizados na proteção contra
desastres “naturais” hidrológicos. Aliás, é justamente por meio da junção e alinhamento de
diferentes ações e políticas públicas voltadas para a prevenção de desastres que a proteção de
tal direito poderá ser realizada de maneira eficaz.416 E tal junção exige planejamento e gestão
adequados.
Assim, além da Lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, há diversas outras
leis que tratam, direta ou indiretamente, de políticas públicas relacionadas à proteção contra
desastres. Deste modo, políticas públicas voltadas para a gestão de resíduos sólidos,
ordenamento territorial, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, meio ambiente e
Defesa Civil foram criadas e estruturadas de modo a coordenar as ações do Poder Público,
com o objetivo de permitir a adequada proteção da população e dos recursos ambientais
existentes. Tais políticas abrangem diversos segmentos e somente por meio de uma ação
coordenada e direcionada poder-se-á avançar em termos de proteção contra desastres. E a
justificativa deve-se ao fato de que tais políticas são interdependentes, ou seja: os avanços
experimentados em qualquer dessas áreas interferirá (direta ou indiretamente) em outra
política pública.
Tais políticas, não obstante tenham objetivos específicos, podem se consubstanciar em
instrumentos importantes na proteção e defesa do ser humano contra a ocorrência de
desastres, garantindo-se o desenvolvimento sustentável da sociedade e protegendo os direitos
fundamentais dos cidadãos. Por exemplo, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (instituída
por meio da lei 12.305/210) apresenta diretrizes relacionadas à gestão integrada e ao
gerenciamento de resíduos sólidos. Neste aspecto, a referida lei tem, dentre seus objetivos, a
proteção da saúde pública e da qualidade ambiental e a redução, reutilização, reciclagem e
tratamento dos resíduos sólidos. Ocorre que o lançamento de lixo e outros resíduos sólidos em
locais inadequados pode causar o entupimento de bueiros, facilitando a ocorrência de
enchentes em épocas de chuva, uma vez que a água das chuvas não poderá escoar de forma
eficaz. Observa-se, assim, que diversas políticas públicas relacionam-se entre si, contribuindo
para o sucesso (ou insucesso) de políticas estabelecidas para outras áreas.
Também é importante observar que tais políticas públicas devem visar a proteção do
meio ambiente e, também, a proteção do desenvolvimento sustentável, o qual também
constitui-se como um direito fundamental. Aliás, segundo SEGUIN, o direito ao
416
LAVIEILLE, op. cit., p. 265.
137
desenvolvimento é um direito humano subjetivo.417 Neste sentido, a Constituição Federal, ao
tratar da Ordem Econômica e Financeira, estabeleceu, em seu artigo 170, que a ordem
econômica estará fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo
como objetivo assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Tal
artigo demonstra a preocupação do constituinte em garantir o princípio da dignidade da
pessoa humana, eis que a ordem econômica terá como o objetivo assegurar a já mencionada
existência digna. Do mesmo modo, observe-se que a Constituição Federal também incluiu a
proteção ao meio ambiente como princípio da ordem econômica.
418
Desta forma, diversos
princípios devem orientar a ordem econômica em financeira. São eles:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme
o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
419
prestação ;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as
leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.420
O desenvolvimento constitui-se como um dos objetivos fundamentais de nosso Estado
Democrático de Direito, de tal forma que deve ser ele incentivado. Contudo, o
desenvolvimento traz, como circunstância inerente, o desgaste ao meio Ambiente.421 Assim,
tal desenvolvimento não pode ser protegido a qualquer custo. Segundo FLORES, é difícil
tratar-se de tal questão, haja vista que a ideia de crescimento contínuo da produção e dos
produtos internos brutos encontra-se atrelada ao conceito de desenvolvimento. Contudo,
tentando compatibilizar desenvolvimento e proteção de direitos, o referido autor o conceitua
como um conjunto de condições econômicas, sociais, culturais e políticas que possibilite um
desdobramento integral, equitativo, planificado e qualitativo das atitudes e aptidões humanas
na luta pela dignidade.422 Deste modo, o desenvolvimento não deve ter como objetivo a
maximização do Produto Interno Bruto - PIB, mas, sim, a promoção da igualdade,
417
SÉGUIN, justiça... op. cit., p. 41.
LEMOS, op. cit., 2011. p. 47.
419
Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003.
420
Cf. art. 170 da CF
421
COÊLHO, meio...op. cit., 2013.
422
FLORES, op. cit., p. 142
418
138
melhorando as condições de vida dos indivíduos e reduzindo a pobreza.423 Neste aspecto,
torna-se possível afirmar que a defesa do meio ambiente funciona como um “limite à livre
iniciativa.”424
Segundo estabelece o parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal, “é
assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Assim, observa-se que, do
mesmo modo que protege o meio ambiente, a Constituição Federal de 1988 também
demonstrou sua preocupação com o desenvolvimento. Contudo, tais direitos precisam ser
compatibilizados com os demais objetivos insculpidos na mesma Constituição Federal, de tal
forma que “toda e qualquer atividade só serão legítimos se buscarem construir uma sociedade
livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a
marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regional; promover o bem de todos.”425
Na sociedade pós-moderna o valor dos bens encontra-se atrelado à capacidade de
determinado grupo em isolar e mitigar riscos, valorizando-se a sensação de segurança. Assim,
por meio de normas jurídicas, busca-se a utilização sustentável dos recursos naturais,
obtendo-se desenvolvimento econômico sem, no entanto, colocar em risco o ambiente
ecologicamente equilibrado, protegendo-o em benefício das presentes e futuras gerações.
E, para conciliar a proteção a esses direitos, surge o que se convencionou denominar
de desenvolvimento sustentável. Foi a forma encontrada pela coletividade a fim de tentar
minimizar as lesões a esses direitos. Deste modo, o desenvolvimento sustentável pode ser
conceituado como aquele que “atende às necessidades do presente, sem comprometer a
possibilidade de que as futuras gerações atendam às suas próprias necessidades.”426 Há, assim,
a necessidade de um desenvolvimento racional, que procure compatibilizar o direito ao
desenvolvimento e a proteção aos recursos ambientais de modo razoável, evitando sua
escassez futura, uma vez que a ultrapassagem dos limites da sustentabilidade ambiental
levaria as civilização ao risco de um colapso.427 Nos dizeres de ROCHA:
423
SACHS, op. cit., p. 14.
MILARÉ, op. cit., 2007. p. 149.
425
SILVA, Solange Teles da. Princípio da precaução: uma nova postura em face dos riscos e incertezas
científicas. In: VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia Barros. Princípio da precaução. Belo
Horizonte: Del Ministério da Integração Nacional Rey, 2004. p. 84.
426
BRASIL, op. cit, 1999. p. 13.
427
DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro: Record,
2006. p. 10-11.
424
139
A razoabilidade nada mais é que a obediência a critérios aceitáveis, do ponto de
vista racional, os quais têm de estar em sintonia com o senso das pessoas
equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência
exercida428.
Ademais, nenhuma abordagem em defesa do meio ambiente essencialmente baseada
na privação dará resultado.429 Assim, ao conceito de desenvolvimento sustentável passam a
ser acrescidos dois elementos: sustentabilidade ambiental e sustentabilidade social.430 Desse
modo, segundo preleciona SACHS, o desenvolvimento sustentável encontra-se alicerçado em
cinco pilares, quais sejam: o pilar social, ambiental, territorial, econômico e político.431 Neste
aspecto, a proteção do direito fundamental ao desenvolvimento, encontra-se intimamente
relacionada à proteção de outros direitos também fundamentais. A propósito:
[...] o desenvolvimento sustentável deve garantir minimamente ao cidadão: a
moradia, a saúde (onde se inclui também o meio ambiente ecologicamente
equilibrado), a educação, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância e a assistência aos idosos e desamparados.432
Assim, num contexto de sociedade de risco e mudança climática, o desenvolvimento
sustentável passa a ser visto como a condição para enfrentar as alterações climáticas e
conciliar o atendimento às necessidades comuns e particulares das populações e comunidades
que vivem no território nacional.433
É certo que o risco da ocorrência de desastres sempre existirá, mas a adoção das
medidas preventivas necessárias, aliadas à preparação da comunidade para agir em situações
adversas contribuirá para reduzir as vítimas em eventuais desastres. Logo, somente com
compromisso e políticas públicas preocupadas com o desenvolvimento sustentável será
possível avançar em termos de sistema de gestão de riscos. E, para isso, é fundamental a
elaboração de uma política de gerenciamento de desastres estruturada e que consiga aglutinar
428
ROCHA, op. cit., p. 286.
GIDDENS, op. cit., 2010, p. 30.
430
SACHS, op. cit., p. 15.
431
SACHS, op. cit., p. 15.
432
JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 176.
433
Art. 3º, IV, da lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009.
429
140
os diversos setores e atores envolvidos: direito, política, economia, Poder Público, sociedade,
etc.434
Em sede de políticas públicas relacionadas à proteção contra desastres, observa-se que
a ação em diferentes áreas, de forma articulada e envolvendo Poder Público e a coletividade
foi a forma preconizada pela lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC)
para o atingimento dos objetivos propostos. Assim, a PNPDEC deverá integrar-se às políticas
de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças
climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e
tecnologia e às demais políticas setoriais, tendo em vista a promoção do desenvolvimento
sustentável.435 Neste aspecto, tem-se que:
Foi possível perceber a fragilidade da articulação entre os projetos e as obras
preconizadas e os planos e obras das estruturas setoriais de saneamento ambiental e
resíduos sólidos. Não há compromisso entre o destino final adequado e, em muitos
casos, os técnicos da habitação, e as associações não têm conhecimento a existência
de planos para o saneamento ambiental. A desarticulação entre a política
habitacional nos planos diretores, instrumentos de reforma urbana e zoneamento
(que mesmo nos planos recentes fizeram aumentar o preço da terra e dos imóveis)
promoveu a remoção forçada de parte das famílias para longe dos locais de origem,
em virtude da carência de recursos para aquisição em locais próximos. Os
procedimentos de execução de obra são muito mais rápidos dos que os de
regularização fundiária e urbanística, deixados nas mãos da burocracia da
Administração e da Justiça. 436
Observe-se, ainda que os programas habitacionais promovidos pelos entes públicos
deverão priorizar a relocação de comunidades atingidas por desastres e de moradores de áreas
de risco.437 Foi a forma encontrada pelo legislador para relacionar a proteção do direito à
moradia com a proteção contra desastres, de modo a tutelar esses dois direitos fundamentais.
Do mesmo modo, a lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012, promoveu alterações no
Estatuto da Cidade (lei 10.257, de 10 de julho de 2001), de tal forma que o mesmo passou a
ser obrigatório para Municípios localizados em áreas suscetíveis à ocorrência de
deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou
hidrológicos correlatos.438 Do mesmo modo, foram ampliados os itens constantes no Plano
434
CARVALHO, Délton Winter de. Aspectos epistemológicos da ecologização do direito: reflexões sobre a
formação de critérios para análise da prova científica. Scientia Iuridica, v. 324, n. 59, p. 445, out./dez. 2010.
435
CARVALHO, op. cit., 2013. p. 101.
436
BUENO, op. cit., 2013.
437
Art. 14 da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012.
438
Art. 41, VI da lei 10.257/2001, com redação dada pela lei 12.608/2012
141
Diretor de forma a ampliar a resiliência de tais Municípios contra a ocorrência de desastres e
será tratada em item específico.439
Por fim, também merece destaque a Política Nacional para as Mudanças Climáticas,
aprovada em 2009, criando instrumentos de implantação do Plano Nacional para Mudanças
Climáticas e programas decorrentes em diversos ministérios.440 Assim, para conter os efeitos
da mudança climática, a Lei de Política Nacional sobre Mudança do Clima estabelece que as
ações a ela relacionadas serão executadas sob a responsabilidade dos entes políticos e dos
órgãos da administração pública, observando-se os princípios da precaução, da prevenção, da
participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o das responsabilidades comuns. A
mesma lei ainda ressalta que serão tomadas medidas para prever, evitar ou minimizar as
causas identificadas da mudança climática com origem antrópica no território nacional. Tais
medidas levarão em consideração os diferentes contextos socioeconomicos de sua aplicação,
distribuindo os ônus e encargos entre os setores econômicos e as populações e comunidades
interessadas.441
3.3 ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE DEFESA CIVIL E MEDIDAS
PROTETIVAS
A atual Constituição Federal estabeleceu competir privativamente à União legislar
sobre defesa territorial, defesa aeroespacial, defesa marítima, Defesa Civil e mobilização
nacional.442 Como se vê, foram inseridos no mesmo inciso temas aparentemente diversos.
Contudo, conforme se apresentará adiante, a inclusão da Defesa Civil no mesmo inciso deriva
de aspectos históricos, relacionados ao surgimento da Defesa Civil no Brasil e no mundo.
A organização da Defesa Civil no ordenamento jurídico brasileiro sofreu diversas
alterações ao longo dos anos. Assim, hoje, fala-se em um sistema nacional de Defesa Civil,
com ações preventivas e recuperativas, de tal forma que as políticas públicas relacionadas a
desastres devem contemplar os diferentes momentos de ação a ele inerentes, ou seja: adoção
de medidas preventivas e medidas recuperativas. Neste sistema, tem-se competir à União a
439
Neste sentido, veja-se o item 4.3.2 da presente tese.
BUENO, loc. cit.
441
Art. 3º da lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009.
442
Art. 22, XXVIII, da CF
440
142
adoção das diretrizes gerais em torno da organização do sistema nacional de Defesa Civil e
medidas protetivas a ele inerentes.
Nesse contexto, muito embora os dados existentes demonstrem que a aplicação de
recursos em medidas recuperativas ainda é maior do que as ações preventivas, tem-se que a
proteção contra desastres hidrológicos é um desafio contínuo, sendo certo que a adoção de
ações planejadas e voltadas para a prevenção e a mitigação dos riscos de desastres são as que
surtem maiores resultados em termos de proteção de direitos humanos.443
A organização do sistema nacional de proteção e Defesa Civil encontra-se atrelada à
política pública estabelecida para esta área. Para uma melhor compreensão do tema é preciso
compreender o surgimento da Defesa Civil e sua evolução ao longo dos anos, passando a
englobar não apenas ações de defesa, mas, principalmente, ações de prevenção.
3.3.1 Histórico e evolução do sistema nacional de Defesa Civil
No Brasil, assim como em diversos outros países444, a Defesa Civil surgiu,
inicialmente, com o objetivo de proteger o país contra ameaças externas. Neste aspecto,
observa-se que tal tema começou a ser tratado em 1942, após o afundamento dos navios
militares no litoral de Sergipe e do vapor Itagiba torpedeado pelo submarino alemão U-507,
no litoral do estado da Bahia.445
O primeiro documento normativo a tratar do tema foi o Decreto Lei n.º 4.098, de
06.02.1942, o qual define os Serviços Passivos de Defesa Antiaérea como encargos
necessários à defesa da pátria. Tal Decreto-Lei estabeleceu que o serviço de defesa passiva
antiaérea abrangeria o recebimento de instruções, recolhimento em abrigos, atendimento aos
alarmes, construção de abrigos em edifícios destinados a hotéis hospitais, casa de diversão,
estabelecimentos comerciais e de ensino, etc. Assim, seguindo o exemplo da Inglaterra, o
governo federal, preocupado com a segurança da população cria em 1942, o Serviço de
443
Neste sentido o relatório do TCU (TC 000.741/2011-6) destacou que, segundo informação apresentada
durante a conferência realizada nas Nações Unidas, em Nova York, no dia 9/2/2011, na Assembleia Geral sobre
Redução de Riscos de Desastres (General Assembly on Disaster Risk Reduction), tem-se que cada dólar
investido em prevenção pode economizar muitos dólares em reconstruções pós-desastres. Tal informação foi
corroborada pelo Ministério da Integração Nacional, o qual informou que, para cada R$1,00 gasto em prevenção,
economiza-se R$7,00 em reconstrução.
444
Neste sentido, cite-se a Grã-Bretanha e o Japão, dentre outros.
445
Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/historico-sedec>. Acesso em: 26 abr. 2014.
143
Defesa Passiva Antiaérea, a obrigatoriedade do ensino da defesa passiva em todos
estabelecimentos de ensino, oficiais ou particulares, existentes no país, entre outras. 446
Posteriormente, o Decreto-lei nº 4.624, de 26 de agosto de 1942 que criou o serviço de
defesa passiva antiaérea) cuja finalidade era a de estabelecer a segurança e garantir a proteção
e a vida da população, bem como a defesa do patrimônio.447 Segundo dispunha o artigo 2º do
referido decreto, o Serviço de Defesa Passiva Anti-Aérea seria integrado por serviços públicos
a serem organizados, pelo aproveitamento e adaptação de orgãos federais, estaduais e
municipais já existentes e por serviços privados. Registre-se, ainda, o Decreto-Lei nº 4.800
de 06 de outubro de 1942, o qual tornou obrigatório o ensino de Defesa Passiva Antiaérea nos
estabelecimentos escolares.
Tal nomenclatura foi alterada pelo decreto-lei 5.861 de 30 de setembro de 1943, que
passou a denominá-lo “Serviço de Defesa Civil”, ficando sob a supervisão do então
Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Após o fim da segunda guerra mundial, houve a publicação do Decreto-Lei nº 9.370,
de 17 de Junho de 1946 extinguiu o Serviço de Defesa Civil, a Diretoria Nacional do Serviço
de Defesa Civil e as Diretorias Regionais.
Em função de fortes chuvas que assolaram a região Sudeste entre os anos de 1966 e
1967, provocando enchentes e deslizamentos na região sudeste, o Brasil começou a se
estruturar para combater tais calamidades. Assim, em 1966 foi organizada no Rio de Janeiro
(chamado na época Estado da Guanabara) a primeira Defesa Civil Estadual do Brasil. No ano
seguinte foi criado o Ministério do Interior, o qual tinha, dentre suas funções, a atribuição de
assistir as populações atingidas por calamidades públicas em todo território nacional.
No final da década de 1960, é criado no Ministério do Interior448 (ao qual fora
atribuída a competência para o beneficiamento de áreas e obras de proteção contra secas e
inundações e assistência às populações atingidas pelas calamidades públicas), o Fundo
Especial para Calamidades Públicas (FUNCAP)449 e o Grupo Especial para Assuntos de
446
CARLOS, Luis Fernando Santos. A participação comunitária na gestão de riscos e a redução de desastres.
2006. 192 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Planejamento e Gestão em Defesa Civil)Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, 2006. p. 26
447
DÓRIA, op. cit., p. 95.
448
Cf. Decreto-Lei n.º 200, de 25.02.1967
449
O decreto n.º 64.568, de 22 de Maio de 1969 criou o Grupo de trabalho para elaborar o Plano de defesa
permanente contra as calamidades públicas, surgindo o FUNCAP – Fundo Especial de Calamidades Públicas.
144
Calamidades Públicas – GEACAP. Tal Grupo tinha como incumbência prestar assistência em
relação à defesa permanente contra calamidades públicas. Acrescente-se, finalmente, que
o Decreto-Lei nº 950, de 13.10.1969450 e o Decreto nº 66.204, de 13.02.1970451, cuidaram,
respectivamente, de instituir e regulamentaro Fundo Especial para Calamidades Públicas –
FUNCAP, tendo sido posteriormente revogados pelos Decreto nº 4.543/2002 e decreto nº
1.080/1994.
Tal quadro permaneceu praticamente inalterado até o advento da Constituição Federal
de 1988, a qual atribuiu à União a competência para legislar sobre defesa territorial, defesa
aeroespacial, defesa marítima, Defesa Civil e mobilização nacional.452 O decreto federal nº
97.274, de 16 de dezembro de 1988, foi o primeiro a ser editado sob a égide da atual
Constituição Federal. Segundo ele, a Defesa Civil corresponderia ao o conjunto de medidas
destinadas a prevenir, limitar ou corrigir os riscos e danos pessoais e materiais decorrentes de
estado de calamidade pública ou de situação de emergência. Trata-se, assim, de uma
instituição estratégica para redução de riscos de desastres, protegendo os direitos
fundamentais dos indivíduos sujeitos à ocorrência de desastres.
No ano seguinte a Assembléia Geral da ONU realizada em 22 de dezembro de 1989,
aprovou a Resolução 44/236, que estabelecia o ano de 1990 como início da Década
Internacional para Redução dos Desastres Naturais. Posteriormente, é publicado o decreto no
1.080, de 08 de março de 1994, o qual passa a regulamentar o FUNCAP.453
A organização sistêmica da defesa civil no Brasil acontece em 1988, com a criação do
Sistema Nacional de Defesa Civil (SINDEC) o qual passou por uma reorganização em 1993 e
atualizado por intermédio do Decreto Federal nº 5.376, de 17/02/2005. Nessa nova estrutura,
ganham destaque o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (CENAD) e o
Grupo de Apoio a Desastres, além do fortalecimento dos órgãos de Defesa Civil estaduais e
municipais.
450
revogado pelo Decreto nº 4.543/2002
revogado pelo Decreto nº 1.080, de 8 de março de 1994.
452
Neste sentido, veja-se o art. 22, XXVIII da CF/1988. Observe-se, ainda, que, nos termos do art. 10, XIII da
emenda constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, competia à União a tarefa de organizar a defesa
permanente contra as calamidades públicas, especialmente a sêca e as inundações
453
Neste aspecto, o referido decreto, em seu art. 1° esclarece que o Fundo Especial para Calamidades Públicas
(Funcap), criado pelo Decreto-Lei n° 950, de 13 de outubro de 1969, e ratificado, nos termos do art. 36 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias, pelo Decreto Legislativo n° 66, de 18 de dezembro de 1990, tem
por finalidade financiar as ações de socorro, de assistência à população e de reabilitação de áreas atingidas.
451
145
O atual conceito legal de Defesa Civil vem descrito no Decreto n° 7.257/2010, o qual
a conceitua como o conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas
destinadas a evitar desastres e minimizar seus impactos para a população e restabelecer a
normalidade social.454
No que se refere à nomenclatura utilizada, é importante observar a existência de uma
tendência mundial em alterar a denominação “Defesa Civil” para “Proteção Civil”, de modo a
valorizar a importância das ações preventivas permanentes, passando-se a demonstrar uma
atitude proativa de precaução, percebendo os riscos e procurando evitar suas possíveis
consequências à incolumidade física, ao patrimônio e ao meio ambiente.455 Neste aspecto,
diversos países já adotam a denominação proteção civil. Dentre eles, cite-se: Angola,
Catalanha, Espanha, Itália, México, França.456
Segundo VALENCIO, a Defesa Civil atua em diversas áreas, sendo certo que a
concretização dessas ações transversais constitui-se no espírito de sua missão. Para ela, a
Defesa Civil envolve, simultaneamente, questões de educação, saúde pública, direitos
humanos, segurança pública, comunicação, assistência social, meio ambiente, planejamento
urbano, habitação, desenvolvimento rural e outros.457
Nesta perspectiva, passa-se a falar em medidas de proteção, as quais abrangem ações a
serem desenvolvidas antes, durante e depois da ocorrência de um desastre.
Atualmente, o sistema nacional de proteção e Defesa Civil – SINPDEC – encontra-se
previsto na lei 12.608/2012, sendo constituído pelos órgãos e entidades da administração
pública federal, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e pelas entidades públicas e
privadas de atuação significativa na área de proteção e Defesa Civil, tendo como contribuir no
processo de planejamento, articulação, coordenação e execução dos programas, projetos e
ações de proteção e Defesa Civil.
3.3.2 Fundo Especial para Calamidades Públicas
454
Art. 2°, I, do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010.
CUNHA, Maria Inez Resende. Aspectos socioeconômicos e ambientais das inundações no Brasil no
período de 2003 a 2006. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2007. p. 20.
456
Paralelamente, Argentina, Chile, Estados Unidos e Reino Unido ainda utilizam a denominação defesa civil.
457
VALÊNCIO, op. cit., p. 329.
455
146
Em razão das calamidades públicas atingirem bens jurídicos diretamente relacionados
à dignidade do indivíduo (tais como a vida, saúde, moradia, entre outros) a obtenção de
recursos para ações deve ser um mecanismo célere e disponível aos entes públicos que deles
precisarem. Assim, o Fundo Especial para Calamidades Públicas (FUNCAP) constitui-se,
atualmente, como um fundo de natureza contábil e financeira, que tem como finalidade
custear: ações de prevenção em áreas de risco de desastre458 e ações de reconstrução em áreas
atingidas por desastres nos entes federados nos quais houve o reconhecimento de situação de
emergência ou estado de calamidade pública. Tal fundo foi instituído pelo Decreto-Lei nº 950,
de 13 de outubro de 1969 e encontra-se atualmente regulamentado pela lei nº 12.340, de 1º de
dezembro de 2010. Segundo a referida lei, o FUNCAP constitui-se de dotações consignadas
na lei orçamentária anual da União e seus créditos adicionais, doações e outros recursos que
lhe vierem a ser destinados.459 Registre-se, entretanto, que a utilização do FUNCAP para
ações de prevenção só foi autorizada recentemente, por meio da medida provisória nº 631, de
24 de dezembro de 2013.
O recebimento de recursos advindos da União deve seguir ao disposto no decreto n o
1.080, de 08 de março de 1994 (o qual regulamenta o FUNCAP), bem com os demais
diplomas normativos correlatos. Segundo estabelece o artigo 10 da Instrução Normativa nº 1,
de 24 de agosto de 2012 do Ministério da Integração Nacional, o Poder Executivo Federal
reconhecerá a situação anormal decretada pelo Município, pelo Distrito Federal ou pelo
Estado quando, caracterizado o desastre, for necessário estabelecer um regime jurídico
especial, que permita o atendimento complementar às necessidades temporárias de
excepcional interesse público, voltadas à resposta aos desastres, à reabilitação do cenário e à
reconstrução das áreas atingidas.460
Assim, o Poder Executivo do Estado, do Distrito Federal ou do Município afetado pelo
desastre deverá encaminhar requerimento461 de auxílio diretamente ao Ministério da
Integração Nacional, no prazo máximo de dez dias após a ocorrência do desastre, devendo ser
458
Cf. medida provisória nº 631, de 24 de dezembro de 2013.
Cf. art. 9º da lei 12.340/2010, com redação dada pela Medida Provisória nº 631, de 2013.
460
Observe-se, entretanto, que, segundo estabelece o art. 10, parágrafo único, da lei 12.340/2010, com redação
dada pela Medida Provisória nº 631, de 2013, o Poder Executivo federal regulamentará o funcionamento, as
competências, as responsabilidades e a composição do Conselho Diretor e a forma de indicação dos seus
membros. Desse modo é provável que haja a edição de nova instrução normative ou outro diploma normativo
regulamentando a matéria.
461
Importante: Considerando a intensidade do desastre e seus impactos sociais, econômicos e ambientais, o
Ministério da Integração Nacional reconhecerá, independentemente do fornecimento das informações previstas
no parágrafo primeiro, a situação de emergência ou o estado de calamidade pública com base no Decreto do
respectivo ente federado. (art. 7º, § 3o, do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010
459
147
instruído com ato do respectivo ente federado que decretou a situação de emergência ou o
estado de calamidade pública.462
Tal requerimento deverá conter as seguintes informações:
I - tipo do desastre, de acordo com a codificação de desastres, ameaças e riscos,
definida pelo Ministério da Integração Nacional;
II - data e local do desastre;
III - descrição da área afetada, das causas e dos efeitos do desastre;
IV - estimativa de danos humanos, materiais, ambientais e serviços essenciais
prejudicados;
V - declaração das medidas e ações em curso, capacidade de atuação e recursos
humanos, materiais, institucionais e financeiros empregados pelo respectivo ente
federado para o restabelecimento da normalidade; e
VI - outras informações disponíveis acerca do desastre e seus efeitos. 463
A citada medida provisória nº 631/2013 também explicitou que os recursos do
FUNCAP serão transferidos diretamente aos fundos constituídos pelos Estados, pelo Distrito
Federal e pelos Municípios cujos objetos permitam a execução das ações de prevenção e
recuperação, após o reconhecimento federal da situação de emergência ou do estado de
calamidade pública ou a identificação da ação como necessária à prevenção de desastre,
dispensada a celebração de convênio ou outros instrumentos jurídicos.464 Do mesmo modo, os
recursos do Funcap serão mantidos na Conta Única do Tesouro Nacional e geridos por um
Conselho Diretor que deverá estabelecer os critérios para priorização e aprovação dos planos
de trabalho, acompanhamento, fiscalização e aprovação da prestação de contas.
O reconhecimento da situação de emergência ou estado de calamidade será feito pelo
Ministro de Estado da Integração Nacional, por meio de Portaria, desde que a situação o
justifique e que tenham sido cumpridos os requisitos estabelecidos na Medida Provisória nº
494, de 2010, e pelo Decreto 7257, de 4 de agosto de 2010.
Com o objetivo de coibir fraudes e abusos, a União deve verificar a documentação
apresentada, de tal forma que, constatada a presença de vícios, malversação, desvios ou
utilização dos recursos transferidos em desconformidade com o disposto na legislação, o
Ministério da Integração Nacional suspenderá a liberação dos recursos e não efetuará novas
transferências ao órgão ou entidade do Estado, Distrito Federal ou Município beneficiário até
462
Art. 3° da lei 12.340/2010
Cf. art. 7º do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010.
464
Cf. art 9º, § 1º da lei 12.340/2010, com redação dada pela medida provisória nº 631, de 24 de dezembro de
2013.
463
148
que a situação seja regularizada465, bem como suspenderá a utilização do Cartão de
Pagamento de Defesa Civil (CPDC), quando for o caso.
Assim, caso seja constatada a utilização dos recursos em desconformidade com as
ações especificadas pelo Ministério da Integração Nacional pelo órgão ou entidade do Estado,
Distrito Federal ou Município beneficiário (...) este será obrigado a devolver os valores
recebidos devidamente atualizados.
Observa-se, deste modo, que – até o advento da citada medida provisória nº 631/2013,
tal fundo visava tão somente a obtenção de recursos para medidas recuperativas, não podendo
ser utilizado para custear obras e serviços relacionados à prevenção de desastres futuros.
Logo, apesar da existência de um Fundo relacionado à ocorrência de desastres não havia uma
política Nacional de Proteção e Defesa Civil visando impedir a ocorrência de desastres, mas,
apenas, previsões de ação após a ocorrência de um desastre. Desse modo, somente em abril de
2012 o Brasil passou a ter uma Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, a qual foi
implementada por meio da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. E, somente após 23 de
dezembro de 2013, o FUNCAP passou a permitir a transferência de recursos da União aos
órgãos e entidades dos Estados, Distrito Federal e Municípios para a execução de ações de
prevenção em áreas de risco de desastres.466
Tal lei, além de instituir a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, trouxe
alterações em relação ao FUNCAP atribuindo aos Municípios inseridos no cadastro nacional
de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto,
inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, o dever de elaborar
mapeamento contendo as áreas suscetíveis à ocorrência desses tipos de desastres e Plano de
Contingência de Proteção e Defesa Civil, instituir órgãos municipais de Defesa Civil, elaborar
plano de implantação de obras e serviços para a redução de riscos de desastre, criar
mecanismos de controle e fiscalização para evitar a edificação em áreas suscetíveis à
ocorrência de tais tipos de desastres e elaborar carta geotécnica de aptidão à urbanização,
465
Permite-se, no entanto, que o órgão ou entidade do Estado, Distrito Federal ou Município beneficiário, cuja
utilização dos recursos transferidos tenha sido considerada irregular, apresente justificativa no prazo de trinta
dias, nos termos do disposto no art. 11, §3º, do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010.
466
Registre-se que, atualmente, a medida provisória 631/2013 encontra-se pendente de análise pelo Congresso
Nacional, sendo certo que, nos termos do disposto no artigo 63, §3º da CF, as medidas provisórias perderão
eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do §
7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações
jurídicas delas decorrentes.
149
estabelecendo diretrizes urbanísticas voltadas para a segurança dos novos parcelamentos do
solo e para o aproveitamento de agregados para a construção civil.467
3.3.3 Política Nacional de Proteção e Defesa Civil
No Brasil, a lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012 elaborou um sistema de repartição de
competências no qual a União é responsável pela coordenação do sistema, em articulação com
os demais entes estatais, devendo apoiá-los no mapeamento das áreas de risco e nos estudos
relacionados a proteção contra desastres. Tal lei instituiu a Política Nacional de Proteção e
Defesa Civil – PNPDEC, o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil- SINPDEC e o
Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil – CONPDEC, além de autorizar a criação de
sistema de informações e monitoramento de desastres e alterar diversos diplomas normativos
correlacionados à temática de proteção e Defesa Civil.
Assim, a função primordial da União é a de coordenar tais atividades e fomentar
estudos e pesquisas na área, de modo a proteger o ser humano contra os desastres. Já os
Estados desempenharão funções semelhantes, porém limitados à sua respectiva área de
atuação. Por fim, tem-se que os Municípios ficaram responsáveis pelas ações relacionadas à
execução da política pública em sede de desastres, tais como: promover a fiscalização das
áreas de risco de desastre e vedar novas ocupações nessas áreas, vistoriar edificações e áreas
de risco e promover intervenções preventivas e a evacuação da população, organizar e
administrar abrigos provisórios para assistência à população em situação de desastre.
De início, registre-se que a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil abrangerá
ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação voltadas à proteção e
Defesa Civil.468 Neste sentido, a referida lei explicitou o dever da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios no sentido de adotar as medidas necessárias para a redução
dos riscos de desastre. Tal dever deriva da natureza de “direito fundamental” inerente à
proteção contra desastres e manutenção da dignidade da pessoa humana, o que cria para os
entes federados os deveres acima mencionados.
467
Art. 3º-A da Lei no 12.340, de 1o de dezembro de 2010, com redação dada pela lei 12.608, de 10 de abril de
2012.
468
Sobre tais ações cf. item 3.4 da presente tese
150
Dentro desse contexto de proteção a direitos fundamentais, observe-se que a nova lei
amplia as ações de Defesa Civil demonstrando maior preocupação com a questão atinente às
ações protetivas (e, em especial, as ações de prevenção e mitigação), sem se esquecer das
ações de recuperação. Deste modo, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil terá como
diretrizes:
I - atuação articulada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
para redução de desastres e apoio às comunidades atingidas;
II - abordagem sistêmica das ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e
recuperação;
III - a prioridade às ações preventivas relacionadas à minimização de desastres;
IV - adoção da bacia hidrográfica como unidade de análise das ações de prevenção
de desastres relacionados a corpos d’água;
V - planejamento com base em pesquisas e estudos sobre áreas de risco e incidência
de desastres no território nacional;
469
VI - participação da sociedade civil.
Os objetivos da Política Nacional de Proteção Contra Desastres (PNPDC) foram
expressamente previstos no artigo 5º da referida lei. Desse modo terá ela como objetivo
primordial a redução dos riscos de desastres. Caso os desastres venham a ocorrer, a Política
Nacional de Proteção Contra Desastres procurará prestar socorro e assistência às populações
atingidas por desastres e recuperar as áreas por eles afetadas. Do mesmo modo, deverá
procurar incorporar a redução do risco de desastre e as ações de proteção e Defesa Civil entre
os elementos da gestão territorial e do planejamento das políticas setoriais.470 Frise-se, ainda,
que em se tratando de uma política pública, sua atuação deverá ser constante, de modo que
deverá ela promover a continuidade das ações de proteção e Defesa Civil, bem como
estimular o desenvolvimento de cidades resilientes e os processos sustentáveis de
urbanização. Tratam-se de medidas úteis na identificação e avaliação das ameaças,
suscetibilidades e vulnerabilidades a desastres, de modo a evitar ou reduzir sua ocorrência. Do
mesmo modo, constitui-se como objetivo da PNPDC a monitoração dos eventos
meteorológicos, hidrológicos, geológicos, biológicos, nucleares, químicos e outros
potencialmente causadores de desastres. Tal monitoração permitirá a produção de alertas
antecipados sobre a possibilidade de ocorrência de desastres naturais, contribuindo para a
redução das perdas humanas e materiais relacionadas a tais eventos. Do mesmo modo, a
469
Art. 4º da lei 12.608, de 10 de abril de 2012
Tal gestão poderá contar com a contribuição do Plano Diretor Municipal, como instrumento de ordenação da
ocupação do solo. Neste sentido, a PNPDC também objetivará a conservação e a proteção da vegetação nativa,
dos recursos hídricos e da vida humana, de modo a evitar a ocorrência de desastres, além de combater a
ocupação de áreas ambientalmente vulneráveis e de risco. (Cf. art. 5º da lei 12.608, de 10 de abril de 2012)
470
151
referida lei deverá estimular iniciativas que resultem na destinação de moradia em local
seguro, promovendo a realocação da população residente em áreas de risco. Por fim, a
referida lei tem como objetivos desenvolver consciência nacional acerca dos riscos de
desastre, orientar as comunidades a adotar comportamentos adequados de prevenção e de
resposta em situação de desastre e promover a autoproteção e integrar informações em
sistema capaz de subsidiar os órgãos do SINPDEC na previsão e no controle dos efeitos
negativos de eventos adversos sobre a população, os bens e serviços e o meio ambiente.471
Observe-se que um dos objetivos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil
é monitorar os eventos meteorológicos, hidrológicos, geológicos, biológicos, nucleares,
químicos e outros potencialmente causadores de desastres; e produzir alertas antecipados
sobre a possibilidade de ocorrência de desastres naturais.
Neste aspecto, observe-se que compete à União realizar o monitoramento
meteorológico, hidrológico e geológico das áreas de risco, bem como dos riscos biológicos,
nucleares e químicos, e produzir alertas sobre a possibilidade de ocorrência de desastres, em
articulação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.472
Do mesmo modo, compete ao Estado apoiar, sempre que necessário, os Municípios no
levantamento das áreas de risco, na elaboração dos Planos de Contingência de Proteção e
Defesa Civil e na divulgação de protocolos de prevenção e alerta e de ações emergenciais.473
Por fim, tem-se que compete ao Município a função de manter a população informada
sobre áreas de risco e ocorrência de eventos extremos, bem como sobre protocolos de
prevenção e alerta e sobre as ações emergenciais em circunstâncias de desastres. 474 Neste
sentido, observe-se que, um dos princípios gerais em sede de direitos humanos e desastres
naturais, refere-se ao direito à informação. Assim, todas as comunidades afetadas por um
desastre natural devem ter direito a informações de fácil acesso sobre: a natureza e a
intensidade do desastre enfrentando, medidas a serem adotadas para mitigação de riscos e
informações sobre ações de assistência humanitária em curso. Do mesmo modo, devem elas
471
Art. 5º, da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012
Art. 6o, IX, da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012.
473
Art. 7o da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012
474
Art. 8o, IX, da lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012
472
152
ter a oportunidade de participar do planejamento e implementação medidas de prevenção e
resposta em relação ao desastre.475
3.4 MOMENTOS DE AÇÃO EM SEDE DE DESASTRES: UMA RELAÇÃO TEMPORAL
ENTRE PASSADO, PRESENTE E FUTURO
O Sistema Nacional de Defesa Civil contempla ações para todos os momentos
relacionados ao desastre (antes, durante e depois). Assim, a Defesa Civil costuma dividir as
ações em sede de desastres em três momentos: antes (pré-evento); durante (momento do
desastre); e após o evento (posdesastre), sendo certo que se deve dar preferência às ações de
prevenção, eis que podem evitar prejuízos e danos para a população e para o próprio ente
público, ou, pelo menos, mitigar os efeitos decorrentes de um desastre futuro. Tal sistema
contempla ações de prevenção de desastres, preparação para emergências e desastres, resposta
aos desastres e reconstrução da comunidade vítima de um desastre. Fala-se, assim, em um
conjunto de medidas protetivas, composto por medidas preventivas e recuperativas. Neste
aspecto, faz-se necessário esclarecer que as medidas preventivas abrangem as ações de
prevenção, mitigação e preparação, ao passo que as medidas recuperativas abrangem as ações
de resposta (as quais contemplam as ações de socorro, assistência às vítimas e
restabelecimentos dos serviços essenciais) e as ações de reconstrução.
3.4.1 Ações preventivas: direitos fundamentais e prevenção a desastres
Na sociedade de risco, a possibilidade de ocorrência de desastres é um fator com o
qual todos devem aprender a conviver. Para tanto, deve o Poder Público e a sociedade envidar
todos os esforços disponíveis de modo a evitar a ocorrência de um desastre futuro.
As ações de prevenção podem ser conceituadas todas aquelas destinadas a reduzir a
ocorrência e a intensidade de desastres, podendo ser realizadas por meio da identificação,
mapeamento e monitoramento de riscos, ameaças e vulnerabilidades locais. Tais ações
475
HUMAN RIGHTS AND NATURAL DISASTERS Operational Guidelines and Field Manual on Human
Rights Protection in Situations of Natural Disaster, p. 24. Disponível em: <http://www.refworld.org/
pdfid/49a2b8f72.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2013.
153
incluem, ainda, a capacitação da sociedade em atividades de Defesa Civil, entre outras
estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional. 476
A ação preventiva pode ser realizada por meio de ações do Município ou em
colaboração com Estado e União. Neste sentido, a realização de convênios com o Estado e
com o Ministério das Cidades, mediante contrapartida por parte do Município é medida
salutar para prevenir a ocorrência de danos.477
No tocante as medidas relacionadas à redução dos riscos, tem-se que estas podem ser
implementadas por meio de medidas estruturais e medidas não estruturais.478As medidas
estruturais podem ser implementadas por meio de obras como muros de arrimo, diques, canais
de drenagem, obras de contenção de encostas, etc. Já as medidas não estruturais seriam aquelas
relacionadas ao zoneamento urbano e o uso racional do espaço disponível, bem como a
normatização da segurança das edificações e outras ações preventivas. Outra medida
importante refere-se ao mapeamento da área de risco e à elaboração de planos de contingência
e simulados.
Em nível nacional registre-se a existência do Programa de Prevenção de Desastres –
PRVD, o qual apresenta projetos relacionados ao estudo de riscos (tais como projetos como
os de avaliação de riscos e desastres, mapeamento de áreas de risco), bem como à redução dos
riscos.
Assim, as ações de prevenção em relação a riscos comprovados podem contemplar:
construção de reservatórios de amortecimento; implantação de sistema de abastecimento de
água; relocação de unidades habitacionais situadas em áreas de risco, mas ainda não
danificadas; recuperação de obras de arte especiais progressivamente deterioradas (pontes,
viadutos, etc.); implantação de sistemas de macro e microdrenagem, voltados à prevenção de
alagamentos ou enxurradas; sistemas de proteção de erosão costeira, etc.479
476
Art. 2° do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010.
Observe-se, entretanto, que a Medida Provisória nº 361, permitiu a utilização do FUNCAP nessas hipóteses,
dispensando-se a celebração de convênios.
478
CUNHA, op. cit., p. 26.
479
BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Convênios: caderno de orientações. Brasília: Secretaria
Nacional
de
Defesa
Civil,
2011,
p.
11..
Disponível
em:
<http://www.integracao.
gov.br/c/document_library/get_file?uuid=ea0957ec-305c-4c9c-a2f6-47e7dad795e2&groupId=10157>. Acesso
em: 10 nov. 2013.
477
154
A avaliação de riscos, consoante estabelece a Defesa Civil, consiste em estudos das
ameaças de desastres e do grau de vulnerabilidade do sistema e dos corpos receptores, de
modo a qualificar e hierarquizar os riscos, definindo as áreas de maior vulnerabilidade.480
Além das ações de prevenção, há, também, as ações de preparação, que são o segundo
tipo de ação mencionado pelo Sistema de Defesa Civil. Tal fase é anterior à ocorrência do
desastre podendo, entretanto (e a depender da situação) persistir durante sua ocorrência. Nesta
fase, registre-se o Programa de Preparação para Emergências e Desastres – PPED, o qual, por
sua vez, é composto por dois subprogramas.
O primeiro subprograma relaciona-se à preparação técnica e institucional, abrangendo
projetos de desenvolvimento institucional, desenvolvimento de recursos humanos,
desenvolvimento científico e tecnológico, mudança cultural, motivação e articulação
empresarial, informações e estudos epidemiológicos e monitoração, alerta e alarme.
Já o segundo subprograma refere-se à preparação operacional e de modernização do
sistema, abrangendo projetos de planejamento operacional e de mobilização e aparelhamento
e apoio logístico.
O Programa de Preparação para Emergências e Desastres - PPED, estabelecido pela
Política Nacional de Defesa Civil e com previsão no orçamento da União, é um importante
programa estratégico, de âmbito nacional. Seus objetivos principais são: incrementar o nível de
segurança intrínseca e reduzir a vulnerabilidade dos cenários dos desastres e das comunidades
em risco; otimizar o funcionamento do Sistema Nacional de Defesa Civil - SINDEC, em todo
o território nacional; minimizar as influências negativas relacionadas com as variáveis tempo
e recursos, sobre o desempenho do SINDEC; e facilitar uma rápida e eficiente mobilização
dos recursos necessários ao restabelecimento da situação de normalidade, em circunstâncias
de desastres. Seus objetivos específicos são: a prevenção dos desastres, no que diz respeito à
avaliação e à redução dos riscos de desastres; as ações de resposta aos desastres,
compreendendo as ações de socorro às populações ameaçadas, assistência às populações
afetadas e reabilitação dos cenários dos desastres; e as atividades de reconstrução.481
480
481
Ibidem.
BRASIL, op. cit., 1999. p. 2.
155
3.4.2 A eclosão do desastre: medidas de urgência e gestão da crise
Não tendo sido possível evitar a ocorrência de um desastre torna-se necessária a
adoção de medidas urgentes que possam contribuir para minimizar as perdas humanas e
materiais dele decorrentes.
Assim, na hipótese de ocorrência de determinado desastre, incumbe ao Poder Público
(com o auxílio da Defesa Civil) a remoção e, posteriormente, o reassentamento de famílias
por meio de uma política habitacional devidamente estruturada e planejada.
Tais ações são denominadas de ações recuperativas e dividem-se em ações de resposta
e ações de reconstrução, sendo certo que as ações referentes à atuação durante o desastre, bem
como as imediatamente subsequentes, integram as chamadas ações de resposta.
As ações de respostas encontram-se descritas no sistema nacional de Defesa Civil e
são constituídas pelas ações adotadas no momento da ocorrência do desastre e no espaço de
tempo imediatamente subsequente. Isso porque nem sempre um desastre ocorre
instantaneamente, podendo prolongar-se no tempo. É o caso, por exemplo, dos deslizamentos
durante as chuvas. Mesmo que ocorra um deslizamento há o risco de deslizamentos
posteriores, tendo em vista a continuidade das chuvas.
Conforme mencionado, as ações de resposta abrangem as ações de socorro, de
assistência às vítimas e de restabelecimento de serviços essenciais. Assim, tem-se que:
As primeiras (ações de socorro) são as ações imediatas de resposta aos desastres e tem
o objetivo de socorrer a população atingida. Tal socorre abrange a busca e salvamento, bem
como os primeiros-socorros, o atendimento pré-hospitalar e o atendimento médico e cirúrgico
de urgência, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional;482
Já as ações de assistência às vítimas são:
[...] ações imediatas destinadas a garantir condições de incolumidade e cidadania aos
atingidos, incluindo o fornecimento de água potável, a provisão e meios de
preparação de alimentos, o suprimento de material de abrigamento, de vestuário, de
limpeza e de higiene pessoal, a instalação de lavanderias, banheiros, o apoio
logístico às equipes empenhadas no desenvolvimento dessas ações, a atenção
482
Art. 2°, V, decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010.
156
integral à saúde, ao manejo de mortos, entre outras estabelecidas pelo Ministério da
Integração Nacional;483
Por fim, há as denominadas ações de restabelecimento de serviços essenciais, que são
ações de caráter emergencial destinadas ao restabelecimento das condições de segurança e
habitabilidade da área atingida pelo desastre. Nestas ações incluem-se:
A desmontagem de edificações e de obras-de-arte com estruturas comprometidas, o
suprimento e distribuição de energia elétrica, água potável, esgotamento sanitário,
limpeza urbana, drenagem das águas pluviais, transporte coletivo, trafegabilidade,
comunicações, abastecimento de água potável e desobstrução e remoção de
escombros, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional. 484
Tais ações têm como objetivo atender os indivíduos afetados por desastres,
garantindo-se àqueles que se encontram em situação de fragilidade, condições para que os
direitos inerentes à dignidade humana sejam protegidos.485
No tocante ao gerenciamento dos desastres, NOGUEIRA destaca que as atividades de
resposta ao desastre (que são aquelas que se desenvolvem no período de emergência ou
imediatamente após ocorrido o evento) podem envolver ações de evacuação, busca e resgate,
de assistência e alívio à população afetada e ações que se realizam durante o período em que a
comunidade se encontra desorganizada em razão do desastre e os serviços básicos de
infraestrutura não funcionam.486
Assim, para que os danos e perdas decorrentes de um desastre sejam os menores
possíveis, é fundamental a preparação da comunidade e do Poder Público local para atuar
diante de tais adversidades. Por esta razão, a realização de simulados e a educação para
atuação em situações de crises e desastres constituem-se em medidas importantes para a
salvaguarda dos direitos fundamentais dos indivíduos vítimas de desastres. A população
precisa se mobilizar e agir, de modo a minimizar as consequências negativas decorrentes de
determinado desastre. Porém, para que isso ocorra, precisa estar preparada para agir.
483
Art. 2°,VI decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010.
Art. 2°, VII, decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010.
485
CUNHA, op. cit., p. 20.
486
NOGUEIRA, Fernando Rocha. Políticas públicas municipais para gerenciamento de riscos ambientais
associados a escorregamentos em áreas de ocupação subnormal. Tese (Doutorado em Geociências e Meio
Ambiente) - Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2002. p. 68.
484
157
Sem a prévia existência de um plano de contingência e sem a prévia realização de
simulados, a comunidade não terá condições para agir eficazmente na hipótese de ocorrência
de um desastre. Deste modo, não havendo um plano de ação previamente estabelecido a ser
seguido na hipótese de ocorrência de desastres, não terá a coletividade condições de se
defender adequadamente. Assim, as ações serão efetuadas instintivamente e, provavelmente
serão menos eficazes do que na hipótese de ser seguido um plano previamente definido. Nesta
hipótese, os indivíduos acabam se transformando em marionetes, uma vez que não possuem
condições ou capacitação para agir de forma eficaz neste momento.
Assim, a atuação durante a ocorrência de um desastre exige planejamento e suporte
técnico por parte do Poder Público, de modo a contribuir para a minimização das perdas
(humanas e materiais) que possam advir da eclosão de um desastre.
Outro aspecto importante, com relação a atuação durante o desastre refere-se a
participação da mídia neste processo. A cobertura feita pelos veículos de comunicação pode
ser muito útil a fim de informar a população local e demais interessados acerca da situação
vivenciada no momento da ocorrência de determinado desastre. Assim, pode a mídia informar
sobre prejuízos causados pelo desastre, estradas interditadas, pessoas feridas, etc. Tais
informações podem auxiliar pessoas atingidas pelas tragédias a encontrar refúgios, bem como
equipes de auxílio, assistência médica, etc. Igualmente, o trabalho da imprensa pode auxiliar
pessoas a localizar familiares vitimados pelo referido desastre, etc.
Não obstante a literatura inclua as ações de resposta ao desastre nesta fase, preferiu-se,
nesta tese, restringi-las apenas às ações a serem praticadas durante o desastre e logo em
seguida a sua ocorrência, incluindo as demais ações recuperativas na fase do “pós-desastre”.
A grosso modo, as ações adotadas durante a ocorrência do desastre são iminentemente
emergenciais e urgentes, com o objetivo de tentar salvar o maior número de pessoas possível,
tendo em vista a eclosão do desastre. Assim, é possível inserir-se nesta fase as ações de
socorro, avaliação dos danos ocorridos (elaborando laudos técnicos de modo a fundamentar
eventual pedido de ajuda decorrente de decretação de situação de emergência ou estado de
calamidade pública) e reabilitação de serviços essenciais. Pode-se, ainda, incluir nesta fase
ações de desobstrução e remoção de escombros, sepultamentos e limpeza do local, de modo a
evitar infecções e outras doenças derivadas do desastre.
158
De qualquer modo, tal divisão é meramente didática eis que, de fato, tais ações são
praticadas após a ocorrência do desastre, sendo preferível tratá-las como ações
recuperativas.487 Assim, a atuação durante o desastre deve limitar-se apenas às ações
imediatas ao desastre, sendo certo que as ações sequencias (e, em especial, as ações de
reconstrução) devem ser incluídas na fase do posdesastre. É o que se verá a seguir.
3.4.3 Depois do desastre: a necessidade de respostas
Uma vez ocorrido o desastre algumas medidas burocráticas precisam ser adotadas.
A primeira delas refere-se a elaboração da FIDE – ficha de informação de desastre e
do NOPRED - Formulário de Notificação Preliminar de Desastres. Tais documentos têm
como objetivo comunicar oficialmente o Sistema acerca da ocorrência de um desastre, além
de apresentarem informações preliminares sobre a magnitude do fenômeno adverso causador
do desastre e sobre a área afetada. Assim, por meio de tais documentos há a informação ao
Órgão Estadual de Defesa Civil e à Secretaria Nacional de Defesa Civil, em Brasília-DF,
acerca da ocorrência do evento adverso ou desastre. Do mesmo modo, os referidos
documentos apresentam uma avaliação preliminar sobre a intensidade do desastre,
caracterizando os danos humanos e materiais e os prejuízos sociais, além de se constituírem
como fonte oficial de informações.488
Paralelamente à FIDE - Ficha de Informação de Desastre e o NOPRED - Formulário
de Notificação Preliminar de Desastres, tem-se o AVADAN – Formulário de Avaliação de
Danos - o qual tem por finalidade: informar, com precisão, o SINDEC sobre as características
dos desastres; avaliar os danos humanos, materiais e ambientais provocados pelo desastre; e
informar sobre os prejuízos econômicos e sociais resultantes.489Assim, a avaliação de danos
deverá verificar: qual a área afetada e o tipo de ocupação existente; as causas do desastre, etc;
também deverão constar os danos humanos, isto é: a quantidade de pessoas desalojadas,
desabrigadas, deslocadas, desaparecidas, levemente feridas, gravemente feridas, enfermas,
mortas e afetadas. Por fim, registre-se que o AVADAN também deve mencionar os Danos
Materiais, danos ambientais e prejuízos econômicos, bem como apresentar um relatório sobre
487
Segundo entendimento do autor da presente tese as ações em sede de desastres dividem-se fundamentalmente
em duas categorias: ações preventivas e ações recuperativas. Contudo, como a literatura nacional e internacional
dividem tais ações em três momentos julgou-se oportuno trazê-las para conhecimento.
488
BRASIL, op. cit., 2007. p. 23-5.
489
Ibidem, p. 26.
159
os prejuízos sociais sofridos, tais como: serviços de abastecimento d’água, energia elétrica,
transporte, comunicações, esgoto, gás, coleta e tratamento de lixo, etc.
Uma vez ocorrido o desastre e prestado o atendimento de urgência às pessoas
atingidas, torna-se necessário pensar em ações de recuperação e reconstrução.
As ações de reconstrução são aquelas nas quais, superada a fase mais crítica do
desastre e do posdesastre (ou seja: já tendo havido a adoção de ações tendentes ao socorro e à
assistência às vítimas e restabelecimento de serviços) passa-se às ações tendentes ao retorno à
situação anterior, bem como à adoção de estratégias e tecnologias que evitem que o desastre
volte a ocorrer, e, caso isso não seja possível, tentam atuar de forma a reduzir os prejuízos na
hipótese de nova ocorrência do evento adverso. Desta forma, na reconstrução deve-se
procurar inserir mecanismos, obras e instrumentos que impeçam ou minimizem um acidente
futuro.
Segundo estabelece o referido decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010 as ações de
reconstrução podem ser conceituadas como:
[...] ações de caráter definitivo destinadas a restabelecer o cenário destruído pelo
desastre, como a reconstrução ou recuperação de unidades habitacionais,
infraestrutura pública, sistema de abastecimento de água, açudes, pequenas
barragens, estradas vicinais, prédios públicos e comunitários, cursos d'água,
contenção de encostas, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração
Nacional;490
O PRRC – Programa de reconstrução abrange ações de recuperação socioeconômica
de áreas afetadas por desastres, além da relocação populacional e construção de moradias para
populações de baixa renda, abrangendo, também, programa de recuperação de infraestrutura e
de serviços púbicos.491
Em razão de sua conformação geográfica e outras especificidades, o Rio de Janeiro é
um dos Estados que mais sofre em razão dos desastres “naturais” hidrológicos. Assim, foi
promulgada naquele Estado a lei nº 5.745, de 10 de junho de 2010, a qual dispõe sobre a
realocação de pessoas moradoras de áreas de risco, e dá outras providências. Pela referida lei,
490
Art. 2°, VIII, do decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010
SECRETARIA DE DEFESA CIVIL. POLÍTICA NACIONAL DE DEFESA CIVIL. MINISTÉRIO DA
INTEGRAÇÃO NACIONAL: BRASÍLIA, 2000, p.13. Disponível em: <http://www.disaster-info.net/PEDSudamerica/leyes/leyes/suramerica/brasil/sistemnac/Poli tica_Nacional_Defensa_Civil.pdf>. Acesso em: 20 jan.
2013.
491
160
os projetos habitacionais construídos direta e indiretamente pelo Poder Público estadual
deverão reservar 10% (dez por cento) das suas unidades para ocupação de famílias oriundas
de áreas localizadas nas beiras de rios, lagos, lagoas, em terrenos de baixa resistência à
compressão, ou de encostas, quando consideradas em áreas de risco supervisionadas pelo
Instituto Estadual do Ambiente - INEA.492
Tal reserva de residências tem como objetivo amenizar o problema referente às
ocupações em áreas de risco. Do mesmo modo, o Poder Executivo, em parceria com os
Municípios, efetuará o mapeamento das áreas de risco do Estado do Rio de Janeiro e
recuperará ambientalmente as áreas de risco desocupadas, com espécies nativas dos
ecossistemas locais. Paralelamente, o Poder Público deverá estabelecer uma política
ambiental, visando impedir a ocupação das margens dos rios, o desmatamento e a ocupação
de encostas e terrenos de baixa resistência, assim como deverá elaborar diretrizes e critérios
bem definidos para a expansão urbana nas áreas mais suscetíveis a fenômenos, como
deslizamento de terras e enchentes.
Em fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) com o objetivo de
avaliar o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC) e evitar a ocorrência de
calamidades devido as chuvas no estado do Rio de Janeiro, concluiu-se pela necessidade de
maior articulação entre os órgãos e entidades municipais, estaduais e federais. Dentre as
falhas detectadas, registrem-se: a ineficácia do Fundo Especial para Calamidades Públicas
(FUNCAP) e a relocação intempestiva de moradores. O relatório também destacou que há
inobservância da União à diretriz de prioridade da prevenção. No âmbito federal, o TCU
recomendou: a) ao Ministério das Cidades: que priorize programas habitacionais para a
relocação de famílias residentes em áreas de risco ou que tenham sido desabrigadas; b) ao
Ministério da Integração Nacional: a implementação e a regulamentação do Plano Nacional
de Proteção e Defesa Civil; c) a ambos: O apoio aos Municípios mais suscetíveis à ocorrência
de desastres naturais na implementação e na finalização do mapeamento das áreas de risco e
na elaboração de planos de Contingência de Proteção e Defesa Civil, além da implantação de
obras e serviços para a redução de riscos de desastres, e apoio na criação de mecanismos de
controle e fiscalização para evitar a edificação em áreas de risco. 493 Relembre-se, entretanto,
492
Art. 1º da lei nº 5.745, de 10 de junho de 2010
Relatório completo constante no processo TC 025.143/2013-1. Disponível em: <https://contas.tcu. gov.br/
etcu/AcompanharProcesso?p1=25143&p2=2013&p3=>1. Acesso em: 15 jan. 2014.
493
161
que tais ações devem ser adotadas apenas na hipótese de ocorrência de um desastre, devendo,
sempre que possível, dar-se mais valor às ações preventivas.
Outra crítica feita às ações recuperativas refere-se ao fato de que os programas de
reabilitação e ajuda acabam servindo para fomentar a permanência da população pobre em
áreas sujeitas a riscos de inundações.494 Consoante entendimento de CASTRO:
[...] o uso exagerado desses dispositivos legais relativos a estado de calamidade
pública, em função de uma política imediatista e da falta de determinação política
para priorizar as atividades de minimização de desastres, contribui para retardar o
desenvolvimento da doutrina de redução de desastres e para maximizar o volume de
danos humanos, materiais e ambientais perfeitamente evitáveis 495
No caso de construções realizadas em áreas de risco deve-se, primeiramente, procurar
retirar essas populações desses locais, bem como impedir que novas construções sejam
realizadas nestes locais.
Analisando a proteção contra desastres sob a ótica dos direitos fundamentais concluise que não basta apenas reconstruir o que foi destruído em decorrência de um desastre. Os
desastres “naturais” hidrológicos são, em geral, desastres de natureza cíclica, eis que – por
estarem relacionados aos períodos de chuva e de seca – costumam ocorrer em determinadas
épocas do ano. Assim, se não forem adotadas medidas que impeçam ou minimizem desastres
futuros, novos prejuízos serão causados aos indivíduos, violando a dignidade da pessoa
humana.
Tais ações (tendo em vista que o desastre já ocorreu) possuem, também, um caráter
preventivo em relação a futuros desastres. São, assim, medidas preventivas decorrentes de um
desastre pretérito. Isso ocorre porque a simples reconstrução/recuperação (sem a preocupação
com a prevenção a novos desastres futuros) deixaria a população em situação igual a que se
encontrava antes do desastre ocorrido. Logo, na hipótese de um desastre pretérito, deve-se
pensar não em ações recuperativas ou reconstrutivas, mas, sim, em ações que possam impedir
ou minimizar os efeitos de um desastre futuro.
494
WIJKMAN, op. cit.
CASTRO, Antonio Luiz Coimbra de. Segurança global da população. Brasília: Ministério da Integração
Nacional, Secretaria de Defesa Civil, 2000. p. 43.
495
162
Observe-se que, no caso dos desastres relacionados à água, esta preocupação deve ser
uma constante, eis que, conforme mencionado, as chuvas, enchentes e inundações são eventos
cíclicos, ocorrendo com certa regularidade. Deste modo, mais do que simplesmente
reconstruir um local atingido, deve-se pensar em mecanismos e instrumentos que impeçam
que desastres dessa natureza voltem a ocorrer.
Logo, tem-se que, mesmo nas hipóteses de medidas “pós desastre”, deve-se adotar
uma postura preventiva, evitando que novos desastres voltem a ocorrer, ou, se inevitáveis, que
sejam mitigados ao máximo.
3.4.4 Momentos de ação e manutenção da dignidade da pessoa humana
Independentemente da fase em que se encontre (predesastre, desastre ou posdesatre) é
necessário ter-se em mente que os direitos fundamentais do indivíduo e, em especial, a
dignidade da pessoa humana, devem ser preservados e protegidos pelo Poder Público e pela
coletividade.
Logo, o fato de ocorrer um desastre ou outra situação calamitosa não faz com que as
pessoas percam seus direitos humanos fundamentais. Mesmo que o desastre tenha causado
significativo impacto na vida das pessoas, destruindo lares, etc. ainda assim, tais direitos
precisam ser protegidos e tutelados pelo Poder Público.
Assim, uma vez ocorrido o desastre, deve o Poder Público (e os demais atores
envolvidos) procurar alternativas que possibilitem o rápido retorno à situação de segurança e
proteção existente antes da eclosão do desastre. Observa-se, assim, o dever primordial de
proteção e assistência as pessoas atingidas.
Ao realizar a remoção das pessoas atingidas por determinado desastre, deve o Poder
Público assegurar, de maneira prática, que seja fornecido alojamento adequado aos deslocados
e que tais deslocações sejam efetuadas em condições satisfatórias de segurança, nutrição,
saúde e higiene e que não haja separação dos membros da mesma família.496 Tem-se, aqui, a
demonstração de que, mesmo em hipóteses de desastres, deve-se preservar os direitos
fundamentais do indivíduo, garantindo a sua saúde, segurança, alimentação e condições de
higiene que lhe
496
permitam manter sua qualidade de “ser humano”. Frise-se, ainda, a
Princípio nº 17 dos Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos
163
importância da manutenção dos vínculos familiares, mantendo unidos os membros de uma
mesma família e contribuindo para a superação da adversidade vivenciada. Neste aspecto,
observe-se, ainda, que, segundo o Princípio 8 dos “Princípios Orientadores relativos aos
Deslocados Internos”, tal deslocamento deve ser feito de modo a não violar os direitos à vida,
dignidade, liberdade e segurança dos afetados. Do mesmo modo, as autoridades competentes
deverão fornecer aos deslocados internos e assegurar-lhes o acesso seguro a: a) alimentação
básica e água potável; b) abrigo básico e habitação; c) vestuário adequado; e d) serviços
médicos essenciais e saneamento.497 Há, ainda, que fazer-se menção ao dever do Poder
Público, no sentido de criar condições e fornecer meios que permitam o regresso voluntário,
em segurança e com dignidade, dos deslocados internos às suas casas ou aos locais de
residência habituais, ou a sua reinstalação voluntária em qualquer outra parte do país. Tais
autoridades devem esforçar-se para facilitar a reintegração das pessoas regressadas ou
reinstaladas que outrora foram deslocados internos.498
Assim, em que pese a ocorrência de desastres venha a causar prejuízos aos indivíduos,
lesando-lhes direitos fundamentais, tais como a integridade física, moradia, saúde, etc. deve o
Poder Público e a sociedade agirem de modo a restabelecer a situação anterior, mantendo o
status de “pessoa humana” do indivíduo.
3.5 POLÍTICAS PÚBLICAS E APLICAÇÃO DE RECURSOS EM QUESTÕES
RELACIONADAS A DESASTRES
Dadas suas características, a efetivação dos direitos fundamentais sociais causam
enormes efeitos financeiros, principalmente quando são muitos os indivíduos que deles
necessitam. Contudo, tal argumento não torna possível a defesa da inexistência de tais
direitos.499 Pelo contrário: justamente por se tratarem de direitos fundamentais exige-se uma
preocupação maior do Estado em relação a sua efetivação. Assim, dados os bens jurídicos
tutelados, tem-se que o combate aos efeitos da mudança climática (e, consequentemente, o
combate aos desastres naturais hidrológicos) exige o gasto de recursos financeiros por parte
do Poder Público.500
497
Princípio 18 - Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos
Neste sentido, veja-se: Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos.
499
ALEXY, op. cit., 2012. p. 512-3.
500
GIDDENS, op. cit., 2010. p. 26.
498
164
Tais recursos podem advir de receitas próprias – advindas de tributos pertencentes ao
ente público – e receitas derivadas – decorrentes de transferências (voluntárias ou
obrigatórias) por parte dos Estados ou da União. As transferências voluntárias são aquelas
decorrentes de projetos realizados em parceria, com divisão de responsabilidades, entre os
órgãos estatais, sendo também chamadas de transferências discricionárias, uma vez que
compete à autoridade pública decidir acerca de tal transferência de recursos. Em geral, elas
são realizadas por meio de contratos, convênios ou acordos para alcançar um objetivo em
comum. No que diz respeito às transferências obrigatórias, elas são determinadas em lei ou na
Constituição e sobre elas não há qualquer decisão da autoridade pública com relação ao seu
repasse a outro ente. Assim, são denominadas “obrigatórias” em razão do governo (Federal ou
Estadual) ser obrigado a repassar uma parte dos impostos por ele arrecadados ao Município,
que é o ente responsável pela execução dessa política pública. Especificamente em relação ao
direito dos desastres, tem-se que a questão foi tratada pela Lei n. 12.340/2010501, a qual, por
sua vez, foi regulamentada pelo Decreto n. 7.257/2010 e disciplina os auxílios estatais para
prevenção de desastres e atividades de resgate, assistência e reconstrução pós-desastre.
Conforme dito anteriormente, as ações de Defesa Civil dividem-se basicamente em
dois grupos: prevenção de desastres e resposta a desastres. Assim, foram previstos dois tipos
de auxílios. No caso de obras preventivas a transferência de recursos é tratada,
tradicionalmente, por meio de convênios (transferência voluntária de recursos). Tais recursos
decorrem das transferências financeiras voluntárias, oriundas do Fundo para Calamidades
Públicas (FUNCAP) e destinam-se a obras de prevenção de desastres por meio da redução da
vulnerabilidade de áreas de risco.
Nos casos de posdesastre, o repasse é feito sob a forma de transferência obrigatória,
nas hipóteses de decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública.
Neste caso, o repasse decorre das transferências financeiras compulsórias, que são aquelas
direcionadas pela União aos Municípios com a finalidade de ajudar e prestar assistência a
vítimas, bem como de promover o restabelecimento e a reconstrução de áreas afetadas por
501
Segundo estabelece o art. 4º da Lei n. 12.340/2010 (com redação dada pela Medida Provisória nº 631, de
2013) são obrigatórias as transferências da União aos órgãos e entidades dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios para a execução de ações de prevenção em áreas de risco de desastres, de resposta e de recuperação
em áreas atingidas ou com o risco de serem atingidas por desastres, observados os requisitos e procedimentos
estabelecidos pela legislação aplicável. Caberá ao órgão responsável pela transferência de recursos definir o
montante de recursos a ser transferido de acordo com sua disponibilidade orçamentária e financeira e, no caso de
execução de ações de recuperação, o ente beneficiário deverá apresentar plano de trabalho ao órgão responsável
pela transferência dos recursos no prazo de noventa dias da ocorrência do desastre.
165
desastres. Trata-se, como se vê, de um auxílio financeiro a posteriori e cuja concessão é
vinculada.502
Assim, para a execução das políticas públicas almejadas, torna-se necessária a
aplicação de recursos oriundos de diversas fontes de receitas. Do mesmo modo, a forma como
tais recursos serão geridos e administrados, bem como as obras e serviços nos quais eles serão
investidos, contribuem significativamente para o atingimento (ou não) daquela política
pública. Neste aspecto, o planejamento e a prevenção constituem-se como mecanismos
importantes para o sucesso de determinada política pública, na medida que possibilitam o
investimento em ações que possam proteger o indivíduo contra a ocorrência de desastres e, na
sua impossibilidade, que possam mitigar os efeitos decorrentes de eventual desastre. Para
tanto, torna-se fundamental a atuação da Administração Pública (por meio dos Municípios,
que são os entes responsáveis pelo ordenamento territorial) bem como da população
envolvida, contribuindo para a gestão democrática dos riscos aos quais a mesma encontra-se
exposta.
3.5.1 Gastos com prevenção e recuperação
A satisfação dos direitos sociais é custosa, exigindo a obtenção e a distribuição de
recursos.503 Especificamente à proteção contra desastres, tem-se, segundo dados do Ministério
da Integração, que foram aplicados, em sede de desastres os seguintes valores de recursos:
502
MARRARA, Thiago. Do "direito desastroso" ao
<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/do-direitoAcesso em: 14 dez. 2013.
503
FERRAJOLI, op. cit., p. 52.
direito dos desastres. Disponível em:
desastroso-ao-direito--dos-desastres/10161>.
166
Quadro 6 - Recursos destinados diretamente a desastres
ano recursos destinados à resposta aos recursos em obras preventivas
desastres e reconstrução
Programa
1027
-
Prevenção
e
Programa 1029 – Resposta aos Preparação para Desastres
Desastres e Reconstrução
2003
R$ 130.000.000,00
(*) dados não disponíveis
2004
R$ 130.000.000,00
(*) dados não disponíveis
2005
R$ 254.129.531,00
R$ 142.369.152
2006
R$ 254.547.109,00
R$ 110.359.45
2007
R$ 554.292.972,00
R$ 262.880.000
2008
R$ 1.168.716.740,00
R$ 616.509.214
2009
R$ 1.922.621.130,00
R$ 646.565.600
2010
R$ 3.045.399.483,00
R$ 425.000.603
Fonte: SIGPLAN - Programa 1029 / PPA 2008-2011 (Resposta aos Desastres e Reconstrução), disponível
em: http://www.integracao.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=e008bc1e-64bb-4eab-ac0950451032c336&groupId=10157. Acesso em 02.04.2013
Apesar de não ter sido possível obter-se os valores investidos nos anos de 2001 a 2004
em sua totalidade, é possível observar-se que o Governo tem investido mais dinheiro em
ações de recuperação do que em ações de prevenção.504
Neste aspecto, observe-se que o Grupo de Trabalho sobre Orçamento e Finanças, da
Comissão Especial de Medidas Preventivas Diante de Catástrofes Climáticas, criado no
âmbito da Câmara de Deputados, realizou um estudo técnico e apurou o seguinte gráfico
evolutivo:
504
Do mesmo modo, segundo relatório referente à auditoria operacional realizada pelo Tribunal de Contas da
União – TCU junto à Secretaria Nacional de Defesa Civil, em atendimento ao Requerimento 49 do Congresso
Nacional, de 10/2/2009 e consubstanciado por meio do TC 000.741/2011-6, tem-se que o Brasil avança
lentamente na prevenção de desastres, de tal forma que a atuação dos municípios em relação à proteção contra
desastres é sempre reativa, ou seja, somente com a ocorrência de uma calamidade governo e sociedade se
mobilizam, sendo certo que, passado algum tempo o evento é esquecido e as ações preventivas são relegadas a
um segundo plano.
167
Gráfico 2 - Evolução do orçamento liquidado da Defesa Civil
Fonte: MACEDO, Marcelo de Rezende Estudo técnico nº 04/2011. Comissão Especial de Medidas Preventivas
Diante de Catástrofes Climáticas. Câmara dos Deputados: Brasília, 2011. Disponível em:
http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/7364/comissao_especial_macedo.pdf?sequence=1.
Acesso em 01.05.2013
Do mesmo modo, o referido grupo também apurou que os valores alocados no Projeto
de Lei para a Prevenção são muito reduzidos em relação aos montantes Autorizados.
Os estudos demonstraram que dos recursos destinados a ações de prevenção foram
utilizados apenas: 25,3% no ano 2005; 39,7% no ano 2006; 51,7% no ano 2007; 51,7% no
ano 2008; 69,7% no ano 2009 e 66,0% no ano 2010. Assim, não obstante a importância das
ações preventivas na proteção contra a ocorrência de desastres, pouco se tem aplicado em
obras dessa natureza.
No que tange aos recursos financeiros, observa-se que, a depender da vontade política
do governante, vários fundos e programas específicos podem ser criados para auxiliar
Municípios na realização dessas obras. Aliás, para muitos, a implementação de direitos sociais
prestacionais “está subordinada a escolhas políticas, as quais definirão a destinação dos
recursos e as políticas públicas necessárias a efetivação destes direitos”.505
505
PINHEIRO, op. cit., p. 125.
168
É importante mudar-se esse pensamento, uma vez que a falta de planejamento e o não
investimento em ações preventivas acabam contribuindo para a ocorrência de desastres, que
acabam obrigando o Estado a fazer investimentos bem maiores para recuperar o local, ao
passo que, se fossem aplicados anteriormente (em medidas preventivas), implicariam um
custo bem menor e evitariam desastres naturais de maiores proporções.506
Registre-se, ainda, que, em regra, as ações preventivas são menos onerosas em função
de sua natureza, bem como em razão da sua submissão, em regra, ao princípio da obrigação
de licitar, o qual inexiste na hipótese de obras e serviços de natureza recuperativa incluídos
nas hipóteses de dispensa de licitação.
Sob outra ótica, registre-se que países que passaram a priorizar atividades de
prevenção de desastres, bem como preparação para emergências e desastres melhoraram
substancialmente as condições de segurança global da população, além de reduzir os gastos
com ações de resposta e reconstrução.507 Logo, deve-se estabelecer metas com o intuito de
reduzir os gastos com ações recuperativas, privilegiando-se a adoção de medidas preventivas.
Como se vê, há uma profunda diferença em relação a obras ou serviços realizados
antes ou após a ocorrência de um desastre, sendo certo que tais diferenças não se resumem à
fonte de origem dos recursos, abrangendo, também, aspectos relacionados ao procedimento
para contratação de obras e serviços. Explica-se:508
Segundo a lei, tem-se, como regra geral, que as obras, serviços, inclusive de
publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração
Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação,
ressalvadas as hipóteses previstas na lei 8.666/93.
Contudo, na hipótese de ocorrência de situação de emergência ou de estado de
calamidade pública (e havendo urgência na realização de obras e serviços) haverá a dispensa
da licitação. Tem-se, assim, duas situação distintas:
Em épocas de “normalidade” o Poder Público deverá realizar procedimento licitatório
para realização de obras e serviços, bem como obter recursos prévios que lhe permitam
506
ENCONTRO NACIONAL DOS GEÓGRAFOS, 16., Anais... Porto Alegre: AGB, 2010. Disponível em:
http://www.agb.org.br/event download.php?id Trabalho=2377. Acesso em: 10 dez. 2013.
507
CASTRO, op. cit., 2000. p. 43.
508
Para maiores detalhes sobre o procedimento para dispensa de licitação veja-se o item 3.5.2.
169
efetuar os pagamentos decorrentes. Já em épocas de “anormalidade” o sistema normativo é
simplificado, ante a urgência que a situação exige. Assim a aplicação dos recursos variará
segundo o momento de sua solicitação e de acordo com a situação vivenciada por
determinada localidade.
Deste modo, a aplicação de recursos públicos para a realização de obras e serviços de
caráter preventivo segue as regras gerais referentes aos gastos públicos. Assim, há a
necessidade de previsão orçamentária, licitação, empenho do valor a ser pago, etc.
Logo, é possível aos entes públicos solicitarem auxílios a fim de realizar ações de
caráter preventivo, destinadas a reduzir a ocorrência e a intensidade dos desastres com ações
estruturais e não estruturais. Tais medidas referem-se ao planejamento da ocupação do espaço
geográfico e à execução de obras e serviços, principalmente relacionados com intervenções
em áreas de risco. Nessa esteira, é possível solicitar recursos para execução de obras ou
elaboração de estudos e desenvolvimento de projetos, tais como: Plano Diretor de drenagem
urbana, mapeamento de áreas de risco, estudos e projetos de minimização de seca, de
macrodrenagem, de prevenção de deslizamentos, etc.509
Ainda com relação às contratações de obras e serviços, registre-se que a Medida
Provisória nº 631, de 2013, inseriu um artigo 15-A, na lei 12.340/2010, estabelecendo a
aplicabilidade do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC)510, às licitações e aos
contratos destinados à execução de ações de prevenção em áreas de risco de desastres, de
resposta e de recuperação em áreas atingidas por desastres.
Importante mencionar que a decretação de situação de emergência ou estado de
calamidade pública está relacionada, entre outros fatores, à capacidade de resposta do
Município com recursos próprios. Assim, não havendo necessidade de auxílio por parte do
Estado ou da União, não haverá a configuração de tais graus de desastres.
509
BRASIL, convênios... op. cit., 2013.
O RDC tem por objetivos: ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os
licitantes, promover a troca de experiências e tecnologias em busca da melhor relação entre custos e benefícios
para o setor público, incentivar a inovação tecnológica e assegurar tratamento isonômico entre os licitantes e a
seleção da proposta mais vantajosa para a administração pública. Dentre as diretrizes a serem observadas nas
licitações e contratações por meio do RDC destaque-se a busca da maior vantagem para a administração pública,
considerando custos e benefícios, diretos e indiretos, de natureza econômica, social ou ambiental, inclusive os
relativos à manutenção, ao desfazimento de bens e resíduos, ao índice de depreciação econômica e a outros
fatores de igual relevância. Para maiores detalhes, cf. Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.
510
170
Do mesmo modo, tratando-se de medida preventiva e, em tese, não urgente, o
recebimento de recursos condiciona-se a existência de reserva orçamentária. Logo, não
havendo previsão orçamentária, a abertura de crédito extraordinário é, em regra, proibida.
Contudo, a Constituição Federal de 1988 autoriza como medida excepcional, segundo
regra estabelecida no artigo 167, § 3º, que, nas hipóteses em que haja o surgimento de
despesas imprevisíveis e urgentes (como as decorrentes de guerra, comoção interna ou
calamidade pública) haja a abertura de crédito extraordinário511, observado o disposto no
artigo 62. Desse modo, essas transferências são atendidas por créditos adicionais
extraordinários, abertos por medida provisória, nos termos do citado artigo 62. Assim, em
caso de relevância e urgência (como é o caso dos desastres naturais hidrológicos), o
Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo
submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Foi a forma prevista pela Constituição
Federal para atender situações de calamidade pública, como as hipóteses atinentes aos
desastres hidrológicos.
Ainda em nível constitucional, cite-se a possibilidade da instituição pela União,
mediante lei complementar, de empréstimos compulsórios para atender a despesas
extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência.512
Uma crítica feita ao sistema refere-se ao fato de que um Município bem organizado,
com boa estrutura de prevenção e gerenciamento de desastres, com controle das áreas de
risco, das suas ameaças e vulnerabilidades, controle e atualização dos recursos locais
existentes e com um bom trabalho de captação e sensibilização de parceiros (órgãos,
instituições e da comunidade), terá grandes possibilidades de atender com eficiência uma
situação de desastre e restabelecer a ordem e a normalidade anterior ao evento.513
Neste aspecto, registre-se que o PIB municipal também é um fator que pode
influenciar na obtenção (ou não) de recursos por parte dos demais entes de direito público.
Isso porque, utilizando-se de critérios econômicos, a decretação de situação de emergência ou
estado de calamidade pública só ocorreria na hipótese de danos superiores a 10 e 30% do PIB
Municipal, respectivamente.
511
Neste aspecto, o artigo da Lei nº 4.320, de 1964, conceitua os créditos extraordinários como aqueles
destinados a despesas urgentes e imprevistas, em caso de guerra, comoção intestina ou calamidade pública.
512
Art. 148, I da CF.
513
Disponível em: <http://www.defesacivil.sp.gov.br/v2010/portal_defesacivil/conteudo/documentos/manual
DefesaCivil_patruleiro.pdf P. 25-26>. Acesso em: 10 dez. 2013.
171
É estranho, mas a falta de planejamento dos Municípios (não se preparando
adequadamente para evitar a ocorrência de desastres) é um fator que lhes facilita o acesso aos
recursos disponibilizados pelos Estados e pela União para reconstrução de áreas afetadas por
desastres “naturais”. Isso por que a decretação da situação de emergência ou do estado de
calamidade pública pressupõe que o Município não esteja preparado para superar os prejuízos
sofridos, sem a ajuda externa. Dessa forma, o não investimento em medidas preventivas acaba
facilitando o acesso do Município aos recursos dos demais entes públicos.514
Com o objetivo de mudar esse panorama foi editada recentemente a medida provisória
nº 631, de 24 de dezembro de 2013, a qual atribuiu à União a responsabilidade de: I - definir
as diretrizes e aprovar os planos de trabalho de ações de prevenção em áreas de risco e de
recuperação em áreas atingidas por desastres; II - efetuar os repasses de recursos aos entes
beneficiários nas formas previstas no Art. 1º-A, caput,515 de acordo com os planos de trabalho
aprovados; III - fiscalizar o atendimento das metas físicas de acordo com os planos de
trabalho aprovados, exceto nas ações de resposta; e IV - avaliar o cumprimento do objeto
relacionado às ações de prevenção em áreas de risco de desastres, de resposta e de
recuperação em áreas atingidas por desastre.
A referida medida provisória também atribuiu aos Estados, Distrito Federal e
Municípios beneficiados com tais recursos financeiros, a responsabilidade exclusiva de: I demonstrar a necessidade dos recursos demandados; II - apresentar plano de trabalho ao
órgão responsável pela transferência de recursos, na forma e no prazo definidos em
regulamento;516 III - apresentar estimativa de custos necessários à execução das ações de
prevenção e de recuperação; IV - realizar todas as etapas necessárias à execução das ações de
prevenção em área de risco, de resposta e de recuperação de desastres, nelas incluídas a
contratação e execução das obras ou prestação de serviços, inclusive de engenharia, em todas
as suas fases; e
V - prestar contas das ações de prevenção, de resposta e de recuperação
perante o órgão responsável pela transferência de recursos e aos órgãos de controle
514
Neste aspecto, Marisa Midori Ishii, em tese intitulada “Dispensa por emergência/calamidade pública: novos
rumos”, apresentada durante o XXXIX Congresso Nacional de Procuradores, realizado em Pernambuco entre os
dias 16 e 20 de outubro de 2013, denomina de “emergência fabricada” a situação na qual a Administração, por
desídia ou intenção deliberada do agente público, não adota providências cabíveis para a realização de
procedimento licitatório com a devida antecedência, gerando a extrema necessidade para a contratação, o que
autorizaria, com fulcro no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93, a dispensa de licitação.
515
A transferência de recurso poderá ser feita por meio de depósito em conta específica mantida pelo ente
beneficiário em instituição financeira oficial federal ou por meio
do Fundo Nacional para Calamidades
Públicas, Proteção e Defesa Civil – FUNCAP.
516
Tal exigência não estará presente nas ações de resposta.
172
competente. Exige-se, ainda, que os entes beneficiários disponibilizem relatórios relativos às
despesas realizadas com os recursos liberados pela União ao órgão responsável pela
transferência de recursos e aos órgãos de controle.517
3.5.2 Licitação, aplicação de recursos e desastres
A licitação constitui-se como um procedimento administrativo destinado a escolher a
contratação da obra ou serviço mais vantajosa para a Administração Pública. Para isso, exigese uma série de requisitos que devem ser obedecidos de forma rigorosa.
Consoante preceitua o art. 3o da lei 8.666/93, a licitação será processada e julgada em
estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da
moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao
instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. Como se vê,
o procedimento licitatório acaba sendo lento, na medida em que se deve obedecer todos os
princípios acima expostos, bem como as demais determinações legais sobre o tema. Busca-se,
assim, garantir a observância do princípio constitucional da isonomia.
Consoante se depreende do texto legal, a regra no ordenamento jurídico brasileiro para
a aquisição de obras e serviços pela Administração Direita e Indireta é a da necessidade de
realização de licitação, sendo a dispensa aceita excepcionalmente. Assim, somente em épocas
de anormalidade e, observados os requisitos estabelecidos em lei, admite-se a dispensa de
licitação.
A situação de emergência e o estado de calamidade pública constituem-se como
situações anormais, provocadas por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem,
respectivamente, no comprometimento parcial ou substancial da capacidade de resposta do
Poder Público do ente atingido. Segundo ensina AMARAL,518 a situação de emergência
caracteriza-se pela necessidade de solução imediata, de tal modo que a realização de licitação,
com os prazos e formalidades a ela inerentes, possa vir a causar “prejuízo relevante ou
comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços ou bens, ou ainda provocar a paralisação
517
Tais relatórios deverão ser apresentados nos prazos estabelecidos em regulamento e sempre que solicitados.
AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Licitações nas empresas estatais. São Paulo: McGraw Hill, 1979. p.
54.
518
173
ou prejudicar a regularidade de suas atividades específicas”. Nestes casos, surge uma
necessidade urgente de se restabelecer a situação anterior, reconstruindo prédios, estradas,
pontes e outros bens lesados em decorrência de determinado desastre. Dada a anormalidade
da situação, a licitação pública passa a ser dispensada, nos termos do inciso IV do art. 24 da
Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993:
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada
urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a
segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou
particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação
emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser
concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e
ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a
prorrogação dos respectivos contratos.
Observe-se, assim, que não basta a ocorrência de um desastre para que a licitação seja
dispensada. Tal ato exige uma série de requisitos que precisam estar presentes, sob pena de
ilegalidade e possibilidade de punição do gestor público e daqueles que tenham contribuído
para a fraude. Assim, uma vez caracterizada a situação de emergência (em razão da urgência
de atendimento de situação capaz de causar prejuízo ou comprometer os bens jurídicos
mencionados em lei) ou a ocorrência de calamidade pública, a Administração poderá deixar
de realizar o procedimento licitatório para a situação vivenciada.519 Logo, uma vez
caracterizada a situação de emergência ou estado de calamidade pública, e havendo a
presença dos demais requisitos exigidos em lei, ficará dispensada a licitação para realização
de obras e serviços que possam ser concluídas nos 180 (cento e oitenta) dias seguintes à
ocorrência da emergência.
A citada lei também traz exceções em relação à rescisão do contrato licitatório na
hipótese de ocorrência dessas situações anormais. Dessa forma, não obstante a suspensão da
execução do contrato por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias seja causa de rescisão do
contrato (art. 78, XIV da lei 8.666/93) esta não se dará em caso de calamidade pública, grave
perturbação da ordem interna ou guerra (...). Do mesmo modo, o atraso superior a 90
(noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou
fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados constitui (em regra) causa para a
rescisão do contrato. Porém, em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem
519
MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 113-15.
174
interna ou guerra, será assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do
cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação.
Quando se permite uma contratação emergencial nessas hipóteses, o controle e a
fiscalização dos gastos se tornam mais difíceis, uma vez que as contratações acabam sendo
realizadas com documentos incompletos ou não esclarecendo como a obra será feita, bem
como os parâmetros para as compras e contratos de serviços, etc.
Tal situação se justifica em razão da necessidade urgente de se atender a população
atingida pelas tragédias, protegendo-se sua saúde, integridade física e demais direitos
fundamentais, inerentes à dignidade da pessoa humana. Desse modo, a situação excepcional
vivida por aquela comunidade obriga a adoção de medidas urgentes pelo Poder Público, de
modo que o Município tenha condições de dar início imediato às obras necessárias para que o
local atingido retorne à normalidade. Ocorre que a dispensa da licitação (não obstante os
motivos justificadores) acaba facilitando a ocorrência de fraudes na contratação de empresas,
etc., gerando prejuízo para o ente público e a coletividade.520
Assim, não obstante a dispensa de licitação esteja prevista em lei, deve-se criar na
sociedade uma cultura de fiscalizar e acompanhar as contratações emergenciais feitas pelas
prefeituras.
É certo que, em períodos de tragédia, os mecanismos de controle da aplicação de
verbas são diferenciados, havendo uma preocupação primordial pelo restabelecimento da
situação de normalidade e realização das obras e serviços necessários para que isso ocorra.
Contudo, o fato da lei autorizar a dispensa de licitação não significa que não é possível
fiscalizar as obras e serviços realizados em situações de desastres. Assim, faz-se necessário
criar mecanismos eficazes para a fiscalização dos gastos públicos em sede de desastres. E essa
fiscalização deve ser exercida por toda a sociedade. Registre-se, entretanto, que tal
fiscalização não pode ser meramente figurativa, mas, sim, exercida de fato o que exige,
necessariamente, publicidade das informações à população e acesso real de tais dados e
informações a todos os cidadãos. A propósito, registre-se a obrigatoriedade de que os entes
federados deem ampla divulgação, inclusive por meio de portal na internet, acerca das ações
520
Neste sentido, cite-se: processo n.º 0000521-75.2011.4.02.510 - ação de improbidade administrativa proposta
pelo Ministério Público Federal em Nova Friburgo (RJ); Processo nº 0000859-41.2001.8.20.0101- Ação Civil
de Improbidade Administrativa proposta pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte.
175
inerentes às obras ou empreendimentos custeadas com recursos federais, destacando o
detalhamento das metas, valores envolvidos, empresas contratadas e estágio de execução.521
Outro aspecto que merece ser mencionado: A justificativa principal para dispensa da
licitação é a urgência das obras de reconstrução, necessárias para a manutenção da dignidade
das pessoas atingidas por um desastre hidrológico. Entretanto, quando as situações se repetem
todo ano (como é o caso das chuvas e, consequentemente, das enchentes, inundações e
alagamentos) pergunta-se: se é sabido que dentro de um ano as chuvas voltarão a ocorrer
porque não fazer agora as obras necessárias para evitar novas tragédias? Por que não
aproveita esse período para remover (com segurança) as pessoas que residem em áreas de
risco? Por que não se iniciar um projeto de educação ambiental que ajude a conscientizar as
pessoas sobre a necessidade de jogar lixo em locais adequados? Por que não aproveitar esse
período para treinar a população, capacitando-a para agir em momentos de crise? Observe-se,
ainda que, lamentavelmente, raras são as condenações de agentes públicos em razão de
prevaricação ou omissão estatal na proteção contra desastres.522
Há, ainda, um outro problema relacionado aos desastres, qual seja: o fato de que, por
serem considerados fenômenos “naturais’ e, não raras vezes, de ocorrência cíclica, não há
uma política pública voltada para a diminuição dos riscos e prejuízos dele decorrentes, o que
contribui para que ocorra uma banalização das ações administrativas e políticas públicas
relacionadas a este tema.
Acresça-se, ainda, que a decretação da situação de emergência ou do estado de
calamidade pública acaba trazendo outro “benefício”523 para o administrador público, qual
seja: a dispensa de licitação.524
Assim, tem-se que a criação de programas que incentivem a inclusão nos orçamentos
de verbas destinadas à prevenção de desastres (evitando as contratações emergenciais e sem
licitação) podem produzir bons frutos no que se refere à proteção contra desastres.
521
Cf. Art. 1º-A, § 9º da lei nº 12.340, de 1º de dezembro de 2010, com redação dada pela Medida Provisória nº
631, de 2013.
522
SEGUN, op. cit., Elida. 2012. p. 69.
523
Fala-se em “benefício” em razão da desnecessidade de observância a uma série de procedimentos e regras
estabelecidas pela lei 8.666/93, facilitando a contratação de obras e serviços.
524
Registre-se, entretanto, que o Tribunal de Contas da União tem admitido a possibilidade de contratação direta
nos casos de “emergência fabricada”, em razão da existência de interesse público. Contudo, uma vez detectada a
negligência, desídia, falta de planejamento, má-gestão ou má-fé do agente público, deverá ser analisada a
conduta do agente público que não adotou tempestivamente as providências cabíveis, podendo este vir a ser
responsabilizado.
176
3.6 POLÍTICAS PÚBLICAS, RESERVA DO POSSÍVEL E MÍNIMO EXISTENCIAL
Segundo APPIO, as políticas públicas têm como finalidade assegurar a igualdade de
oportunidades para todos os cidadãos, assegurando-lhes as condições materiais para uma
existência digna. São, em suma, instrumentos de execução de programas políticos baseados na
intervenção estatal na sociedade.525
A proteção contra desastres “naturais” hidrológicos exige a atuação do Poder Público
antes, durante e depois da eclosão de um desastre. A prevenção é a ação mais indicada, na
medida em que impede a violação de direitos fundamentais do indivíduo, garantindo a
manutenção de sua dignidade. Assim, a proteção contra desastres busca, em sua essência, a
proteção à vida e à dignidade da pessoa humana. São esses, em última análise, os direitos
tutelados pela ordem jurídica em sede de desastres. Contudo, os desastres atingem outros bens
jurídicos, tais como a saúde, a integridade física e o patrimônio do indivíduo, entre outros.
Dessa forma, os bens jurídicos lesados variarão segundo os danos oriundos de determinado
desastre, sendo certo, entretanto, que a dignidade da pessoa humana estará sempre no centro
das atenções jurídicas, quando o dano advir de um desastre.
Tratando-se de direito fundamental de predominante caráter prestacional (na medida
em que exige uma ação positiva por parte do Estado) as políticas públicas a ele relacionadas
costumam ser classificadas como políticas públicas afetas a direitos fundamentais de segunda
dimensão. Logo, os direitos sociais constituem-se como direitos que dependem de
providências positivas do Poder Público, caracterizando-se, assim, como prestações positivas
impostas às autoridades públicas.526 Deste modo, caberia ao Estado o dever de defender tais
direitos, por imposição constitucional.
Desta maneira, os direitos sociais constituem-se como direitos que dependem de
providências positivas do Poder Público, caracterizando-se, assim, como “prestações positivas
impostas às autoridades públicas”.527
Quando se fala em desastres (e, mais especificamente, em proteção contra desastres
“naturais” hidrológicos) fala-se em medidas preventivas, tais como fiscalização da ocupação
irregular do solo, retirada da população de áreas de risco, melhoria do sistema de drenagem de
525
APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005. p. 136.
SILVA, op. cit., 2012. p. 151.
527
SILVA, op. cit., 2012. p. 148.
526
177
água, realização de obras de contenção de encostas, instalação de sistema eficaz de
monitoramento e de alerta em sede de desastres, etc.
A proteção contra os desastres – quando considerada no plano abstrato - constitui-se
como uma espécie de direito fundamental social, decorrente do princípio da dignidade da
pessoa humana - e, por se tratar de um direito fundamental social de cunho prestacional, exige
do Estado uma atuação positiva. Nesta linha, acrescente-se, ainda, que, em sede de direitos
sociais, é justamente em tempos de crise que a proteção constitucional em relação a esses
direitos torna-se mais imprescindível.528 Assim, o argumento atinente a aspectos
orçamentários não pode ser utilizado como fator impeditivo para a proteção de tais direitos,
mas, apenas, para balizar alguns sopesamentos em relação aos direitos “prioritários”. Logo, na
medida em que determinado direito fundamental social encontra-se constitucionalmente
garantido surge para o Estado uma proibição de abster-se em relação à proteção de tal
direito.529
Segundo preconiza a doutrina530, tem-se que, tratando-se de direitos fundamentais
sociais de cunho prestacional, o Poder Judiciário possui legitimidade para a efetivação de tais
direitos. Contudo, discorrendo acerca da judicialização de direitos sociais, RAMOS especula
se tal ativismo judicial será estendido a outros direitos sociais prestacionais associados a
normas programáticas, citando como exemplo os direitos à moradia e de assistência aos
desamparados. 531
Neste sentido, a recomendação da Corregedoria Nacional de Justiça – CNJ nº 40, de
05.06.2012 apresenta um plano de ação a ser observado pelos Tribunais de Justiça dos
Estados para o enfrentamento e solução de situações decorrentes de calamidades e desastres
ambientais.
Tal plano de ação prevê a instituição de um gabinete de crise (a ser acionado em
situação de desastre ambiental), bem como concentração provisória do atendimento jurídico
528
ALEXY, op. cit., 2012. p. 513.
CANOTILHO, op. cit., 2003. p. 321.
530
Neste sentido: ESTEVES, João Luiz M. Direitos fundamentais sociais no Supremo Tribunal Federal. São
Paulo: Método, 2007. KRELL, Andreas Joaquim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na
Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris,
2002. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle judicial das omissões do poder público. São Paulo: Saraiva,
2004.
531
RAMOS, Elival da Silva. Eficácia de normas constitucionais, implementação de direitos fundamentais e
ativismo judiciário. In: FRANCISCO, José Carlos. Neoconstitucionalismo e atividade jurisdicional: do
passivismo ao ativismo judicial. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 260.
529
178
em único local, facilitando o acesso à população, bem como à tomada de decisões conjuntas;
Tal plano prevê, ainda, a instituição de equipe de apoio técnico especializado (a ser integrada
por psicólogos e assistentes sociais, engenheiros, médicos e arquitetos); além dessas medidas
previu-se também a realização de auxílio recíproco entre os Magistrados, com a possibilidade
de extensão do regime de plantão a um número maior de magistrados e servidores e a
ampliação temporária do horário de atendimento dos Cartórios de Registro Civil de Pessoas
Naturais. Tais ações encontram-se em consonância com os Princípios Orientadores sobre os
Deslocados Internos, os quais estabelecem que as autoridades devem facilitar a emissão de
novos documentos para substituir os extraviados no decurso da deslocação, sem imposição de
condições despropositadas, tais como a exigência do regresso a área de residência habitual
com vista a obter esses ou outros documentos necessários.532
Tendo em vista a grande quantidade de óbitos que podem advir da ocorrência de um
desastre, aspectos relacionados a reconhecimento simplificado de corpos e lavratura de termos
de entrega de menores533 aos genitores desprovidos de documentação e termos de guarda
provisório a familiares (inclusive família extensa) também foram previstos na referida
recomendação nº 40; por fim, a referida recomendação também previu ações voltadas para
que o juiz possa, com celeridade, decidir sobre outras situações que envolvam menores em
situação de risco, tais como, por exemplo, sua remoção compulsória de áreas de alto risco.
Tratam-se, como se vê, de recomendações a serem observadas nas hipóteses de
ocorrência de desastres, visando a proteção das vítimas de desastres naturais, permitindo-se a
rápida atuação do poder judiciário com vistas à proteção dos atingidos e a resolução de
questões jurídicas oriundas de tais desastres (tais, como enterro e reconhecimento das vítimas,
emissão de segunda via de documentos, etc.) Registre-se, também, por oportuno, que tal
recomendação parte do pressuposto de que há uma crescente instabilidade do clima global,
sendo a mesma responsável pelo agravamento dos danos causados à população em
decorrência de fenômenos naturais, o que exige uma atuação efetiva por parte do Poder
Judiciário.534 Por outro lado, entretanto, registre-se que não pode o juiz fixar amplamente
532
Princípios Diretores para os Deslocados Internos. Princípio 20.
Tal ato, contudo, exige a observância de outros elementos que comprovem o vínculo, de modo a evitar-se
práticas ilegais, tais como adoções fraudulentas.
534
Neste aspecto, observe-se que, segundo a Recomendação CNJ nº 40/2012, o Poder Judiciário dos Estados tem
competência para decidir sobre o destino de pessoas e bens afetados pelas catástrofes climáticas, especialmente
crianças e adolescentes de famílias atingidas e corpos insepultos e controlar o funcionamento das atividades dos
cartórios extrajudiciais.
533
179
políticas públicas ou discricionariamente escolher uma solução política para o caso, uma vez
que se trata de uma atuação que deve observar limites.535
Do mesmo modo, a reserva do possível costuma ser utilizada como uma espécie de
limitação à intervenção do Poder Judiciário.536 Observe-se, entretanto, que na hipótese dos
Poderes Executivo e Legislativo não promoverem as condutas necessárias para o rearranjo
financeiro do Estado, a fim de que seus objetivos fundamentais possam ser materialmente
alcançados no tempo, caberá ao poder Judiciário intervir, mediante atividade tipicamente
jurisdicional, nas respectivas políticas públicas.537 Tal possibilidade de intervenção do Poder
Judiciário em sede de políticas públicas deve realizar-se de forma razoável e proporcional,
buscando-se a garantia deste mínimo existencial.538 Assim, há de se estabelecer limites ao
poder judiciário em apreciar determinada política pública, sob pena de ocorrer invasão
indevida na esfera própria da atividade política de governo.539
Nesta linha, PINHEIRO destaca a importância de se examinar os bens jurídicos
contemplados pelo orçamento público e a prestação requerida pelo Estado, de tal forma que
deverá ser ponderado qual o bem jurídico mais essencial e que deverá ser escolhido como
destinatário do orçamento.540 Assim, tem-se que o Poder Judiciário poderá vir a exercer o
controle das políticas púbicas “para aferir sua compatibilização com os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil”.541 Observe-se, entretanto, que a atuação do
poder judiciário, em relação aos direitos sociais prestacionais, deve ser subsidiária, ou seja:
“só deve ocorrer quando ficar evidenciado que os poderes políticos falharam ou foram
omissos”.542 Assim, conclui-se que os limites e as possibilidades do controle judicial em
relação à atuação do Estado na proteção dos direitos fundamentais encontram-se relacionados
a uma serie de fatores (que vão desde a própria estruturação do Poder Judiciário e de suas
competências, até os instrumentos postos à disposição da cidadania para, pelo Poder
535
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 232.
536
GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
p. 149.
537
CANELA JUNIOR, Osvaldo. O orçamento e a ‘reserva do possível’: dimensionamento no controle judicial
de políticas públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo. O controle jurisdicional de
políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 233.
538
GRINOVER, op. cit., p. 149.
539
BUCCI, op. cit., 2006, p. 23.
540
PINHEIRO, op. cit., p. 124.
541
GRINOVER, op. cit., p. 149.
542
PINHEIRO, op. cit., p. 185.
180
Judiciário, provocar a sua intervenção, passando por critérios jurídicos como o da
proporcionalidade e o da reserva do possível).543
Como forma de justificar a limitação da atuação do Estado em determinadas áreas,
surgiu a denominada teoria da “reserva do possível”. Tal expressão é utilizada largamente na
doutrina para identificar o fenômeno da limitação de recursos frente à necessidade de
aplicação dos mesmos para concreção dos direitos sociais.544 Importante observar que a
reserva do possível, no Brasil, encontra-se ligada ao limite de ação do Estado em razão da
escassez dos recursos públicos.545 Sobre o tema, DAVIES defende a incidência da chamada
“reserva do possível” como instrumento de ponderação na efetivação de políticas públicas,
limitando tais políticas e assegurando um “mínimo existencial" aos cidadãos, sendo, em
última análise, um ponto de equilíbrio entre a possibilidade de controle judicial das políticas
públicas e a discricionariedade administrativa. Assim, para a referida autora, a “reserva do
possível” mostra-se como um ponto de equilíbrio entre a possibilidade de controle judicial das
políticas públicas e a discricionariedade administrativa.546. No mesmo sentido, TORRES,
ensina que, em razão da proteção desse direitos decorrer da necessidade de políticas públicas,
é preciso levar-se em consideração a teoria da reserva do possível, de modo a verificar-se o
que é razoável da sociedade esperar-se do Estado.547
Observe-se, entretanto, que tal proteção deve garantir um “mínimo existencial” ao
cidadão, de modo a atribuir-se eficácia jurídica positiva ao núcleo essencial da dignidade da
pessoa humana, o qual deve ser protegido pelo Estado e, se necessário, pela via judicial.548
Neste aspecto, tem-se que o denominado “mínimo existencial” é fruto de construção
hermenêutica, no intuito de salvaguardar direitos fundamentais sociais sem os quais mostra-se
543
Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/noticias-do-cjf/2013/setembro/deveres-de-protecao-do-estado-emmateria-de-direitos-fundamentais-e-tema-de-palestra>. “Direitos Fundamentais e Dever de Proteção do Estado:
limites e responsabilidades do controle judicial.” Palestra por Ingo Sarlet, no seminário 25 Anos da Constituição
Cidadã: olhar para o passado, reflexão sobre o presente e construção do futuro. O evento foi promovido pelo
Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF), no auditório do Superior Tribunal de
Justiça (STJ).
544
BARCELLOS, Ana Paula de. Educação, constituição, democracia e recursos públicos. Revista de Direito da
Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 12, 2003. p. 47.
545
OLSEN, Ana Carolina Lopes. A eficácia dos direitos fundamentais sociais frente à reserva do possível.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. p. 235.
546
DAVIES, Ana Carolina Izidório. Limites constitucionais do direito à saúde: reserva do possível X mínimo
existencial. In: CONGRESSO NACIONAL DE PROCURADORES DO ESTADO EM PORTO DE
GALINHAS, 39., 15 a 18 de out. 2013.
547
TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e a reserva do possível. In: NUNES,
Antonio José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Diálogos constitucionais: Brasil/
Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 447-52.
548
BARCELLOS, op. cit., 2002. p. 233.
181
impossível a existência digna do indivíduo.549 No que se refere a noção de mínimo existencial
PINHEIRO entende que este corresponde à garantia de fornecimento estatal de prestações
materiais mínimas aptas a assegurar aos indivíduos uma existência digna 550. No mesmo
sentido é a opinião de BARCELLOS551, segundo a qual o mínimo existencial consistiria em
um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais o individuo se encontraria em
situação de indignidade. E a mesma autora esclarece que tal mínimo existencial
corresponderia ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna,
de tal forma que “mínimo existencial” e “núcleo material do princípio da dignidade humana”
descreveriam o mesmo fenômeno.552
Consoante ensina NAKAMURA, ressalvada a hipótese de ocorrência de justo motivo
objetivamente aferível, a cláusula da "reserva do possível" não pode ser invocada pelo Estado
a fim de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, principalmente nas
hipóteses em que essa omissão estatal possa resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação
de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.553
Assim, mesmo diante da incapacidade financeira do Estado, tal restrição estará sujeita ao
critério da proporcionalidade, sem prejuízo da salvaguarda do conteúdo mínimo necessário de
tal direito.554No mesmo sentido, OLSEN defende que a alegação da reserva do possível em
defesa do ente estatal somente será possível quando houver, de fato, insuficiência financeira
do Estado, respeitando-se as prioridades constitucionais existentes.555
Proteger tal direito, por meio de uma ação efetiva do Poder Público (quer por meio de
políticas públicas, que por meio de atos judiciais) traduz-se em um desafio contínuo para todo
o corpo social, de modo a minimizar as lesões aos bens jurídicos tutelados e permitindo a
eficaz proteção dos direitos fundamentais do ser humano e a preservação desse núcleo
essencial da dignidade da pessoa humana, garantindo o denominado “mínimo existencial”.
Assim, “extrair um núcleo de direitos subjetivos imprescindíveis à obtenção de uma vida
549
LAZARI, op. cit., p. 143.
PINHEIRO, op. cit., p. 82.
551
BARCELLOS, op. cit., p. 305.
552
Ibidem, p. 230.
553
NAKAMURA, André Luiz dos Santos. Direitos sociais e aministração: a compatibilização da teoria da
reserva do possível e a exigência de garantia do mínimo existencial para a efetividade dos direitos sociais.
Fórum Administrativo, Belo Horizonte,
ano 11, n. 119, jan. 2011. Disponível em:
<http://www.bidforum.com.br/bid/ PDIexibepdf.aspx? tipoConteudo=Normal&vw=S&pdiCntd=71283&id
Publicacao=1>. Acesso em: 15 dez. 2013.
554
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Ed.
Coimbra, 1991. p. 131.
555
OLSEN, op. cit., p. 365.
550
182
digna do imenso catálogo dos direitos sociais prestacionais constitui-se no propósito básico do
estudo referente ao mínimo existencial”.556Aliás, a dignidade da pessoa humana constitui-se
como um princípio jurídico supremo, (e em constante reconstrução), o qual corresponde a um
núcleo absoluto e inviolável de direitos da pessoa humana, reconhecida como sujeito de
direito.557 Neste aspecto rememore-se que o objetivo primordial da Constituição Federal de
1988 traduz-se na promoção do bem-estar do indivíduo, assegurando-lhe condições para
manutenção de sua dignidade, o que inclui, além da proteção dos direitos individuais,
condições materiais mínimas de existência, que constituem o núcleo dos direitos
fundamentais.558
Com relação às políticas públicas protetivas, os Estados possuem considerável
flexibilidade no que diz respeito às escolhas operacionais que devem fazer em termos de
prioridades e recursos a serem aplicados. No entanto, nas hipóteses em que houver
negligência das autoridades públicas no dever de adotar medidas preventivas em relação um
perigo natural claramente identificável, bem como em utilizar meios eficazes para atenuar o
risco de sua ocorrência, a responsabilidade há de ser reconhecida.559 Mesmo com todos os
problemas decorrentes dos desastres e, considerando-se os limites fáticos ao atendimento da
população atingida (e, em especial, a escassez de recursos orçamentários) tem-se que a
garantia do “mínimo existencial” deve ser preservada em todas as hipóteses, devendo o Poder
Público munir-se de todos os recursos que tenha à disposição para sua preservação. Ademais,
dada a relevância desse “mínimo existencial” inserido no conceito de dignidade da pessoa
humana, sua proteção não pode deixar de ser exercida, razão pela qual a participação popular
deve ser vista como um instrumento de salvaguarda desse direito. Aliás, esse “mínimo
existencial” pode ser entendido como um conteúdo mínimo de direitos prestacionais que
devem ser assegurados pelo Estado, de modo a propiciar aos cidadãos as condições
existenciais necessárias para uma vida digna. E a manutenção desse “mínimo existencial”,
garantindo-se a proteção da dignidade da pessoa humana, traz para o direito a necessidade de
buscar-se alternativas com vistas à efetivação (e concretização) do direito de proteção contra
desastres.
556
PESSANHA, Érica. A eficácia dos direitos sociais prestacionais. Revista da Faculdade de Direito de
Campos, ano 7, n. 8, jun. p. 311, 2006. Disponível em: <(http://fdc.br/Arquivos/ Mestrado/
Revistas/Revista08/Discente/Erica.pdf)>.
557
LOPES, op. cit., 2003. p. 210.
558
NAKAMURA, op. cit.
559
KÄLIN, Walter; DALE, Claudine Haenni. Disaster risk mitigation: why human rights matter. Disponível
em: <http://www.fmreview.org/FMRpdfs/FMR31/38-39.pdf. Acesso em 10.12.2013>. p. 39.
183
4. ALTERNATIVAS EM BUSCA DA EFETIVIDADE DO DIREITO DE PROTEÇÃO
CONTRA DESASTRES
Estabelecida a relação entre os direitos fundamentais e a proteção contra desastres,
torna-se necessário rever o papel do Estado e da sociedade na proteção contra a ocorrência de
um desastre “natural” hidrológico. Isso porque, considerando o direito de proteção contra
desastres como um direito fundamental do ser humano, uma atuação mais efetiva e protetiva
por parte do Poder Público e da sociedade torna-se imprescindível. Ampliar os instrumentos
jurídicos que podem auxiliar nessa proteção, bem como propiciar maior efetividade e eficácia
na proteção desse direito são tarefas exigidas pelo ordenamento jurídico dentro da teoria dos
direitos fundamentais.
Nessa perspectiva, faz-se necessário uma mudança de paradigma em relação aos
papéis e responsabilidades assumidos pelos diversos atores envolvidos na proteção contra os
desastres naturais hidrológicos e apresentação de alternativas viáveis com vistas ao
atingimento desse objetivo. Assim, o papel do Município (enquanto ente responsável pela
execução da política urbana) e os poderes administrativos a ele relacionados passam a ser
tratados como alternativas viáveis para o enfrentamento dessa questão. Tal proteção envolve,
ainda, o planejamento, as ações preventivas e a participação popular como alternativas
voltadas para a proteção contra tais desastres.
4.1 ATORES: REVISITANDO SEUS PAPEIS E RESPONSABILIDADES NA PROTEÇÃO
CONTRA DESASTRES “NATURAIS” HIDROLÓGICOS
A proteção dos direitos fundamentais implica na necessidade de atuação do Poder
Público e da sociedade em defesa dos mesmos. Conforme asseverado nos capítulos anteriores,
diversos são os atores atuantes na questão atinente aos desastres naturais hidrológicos,
podendo-se citar o cidadão, o Poder Público, a sociedade civil organizada, entre outros.
Assim, o ser humano constitui-se como importante ator em sede de mudanças climáticas e
desastres, quer em razão da sua contribuição para a ocorrência de tais desastres, quer em razão
das consequências que os desastres acarretam para o corpo social. Do mesmo modo, o Poder
Público (por meio de seus diversos entes e órgãos) bem como a sociedade civil organizada,
desempenham papel importante na proteção e defesa contra desastres. Aliás, observe-se que a
184
Lei de Mudança do Clima faz expressa menção ao estímulo e o apoio à participação do Poder
Público, setor produtivo, meio acadêmico e da sociedade civil organizada no desenvolvimento
e na execução de políticas, planos, programas e ações relacionados à mudança do clima.560
4.1.1 O Poder Público e sua atuação na proteção dos direitos fundamentais
Segundo assevera LOPES
Os direitos fundamentais a prestações objetivam a garantia, não apenas da liberdade
perante o Estado, mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da
premissa de que o indivíduo depende de uma postura ativa dos poderes públicos no
que tange à conquista e à manutenção de sua liberdade. Os direitos a prestações
exigem do Estado uma conduta positiva no sentido de que este se encontra obrigado
a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material.561
Do exposto, tem-se que o Poder Público é o primeiro ente incumbido da proteção dos
cidadãos contra desastres e efeitos da natureza. Do mesmo modo, é dever do Poder Público
defender o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. A constitucionalização do
direito ambiental permitiu que a proteção ao meio ambiente se realizasse de maneira mais
efetiva dentro da teoria dos direitos fundamentais. Neste sentido, BATISTA acentua que o
ambiente e a saúde também passaram a investir-se da natureza jurídica de direitos humanos e
fundamentais.562 Tal constitucionalização demonstra a importância do meio ambiente para a
manutenção da vida humana, de tal forma que a realização de um planejamento ambiental
adequando, bem como a preocupação com o controle dos riscos ambientais advindos do
desenvolvimento é fundamental para se garantir a proteção deste direito. E, neste sentido, a
atuação estatal passa a desempenhar papel fundamental nesta proteção.
Inúmeros são os problemas ambientais urbanos vivenciados nas cidades modernas.
Como se sabe, a manutenção do abastecimento de água no meio urbano depende diretamente
da forma de sua utilização e do potencial oriundo dos mananciais utilizados no seu
abastecimento. Os mananciais são fontes disponíveis de água determinados pelas condições
locais, com os quais a população pode ser abastecida. Do mesmo modo, o consumo de água e
560
Art. 5º, V, da lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009.
LOPES, op. cit., 2013.
562
BATISTA, Roberto Carlos. Ambiente e saúde: direitos humanos e fundamentais interdependentes. In:
THEODORO, Suzi Huff; BATISTA, Roberto Carlos; ZANETI, Izabel. Direito ambiental e desenvolvimento
sustentável. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 32.
561
185
a forma como sua utilização pelos diferentes setores da sociedade tem sido gerenciada pelo
Poder Público repercutem diretamente na qualidade e no consumo. Assim, questões como a
proteção dos mananciais, por meio da proteção ambiental de suas reservas, mata ciliar, etc.,
além de questões quanto ao reuso da água e a destinação dos esgotos, podem ampliar ou
diminuir o tempo de vida útil dos mananciais de abastecimento. Igualmente, a falta de
tratamento dos esgotos também acarreta problemas ambientais, tais como a poluição, a
contaminação dos solos e da água, além dos resíduos sólidos decorrentes do lixo produzido
nas cidades. Some-se, ainda, o tratamento dado às áreas verdes563 pelo Poder Público. As
áreas verdes urbanas são de extrema importância para a qualidade de vida da população de um
determinado Município. As áreas verdes de uso comum propiciam o lazer da população, além
de contribuir para a permeabilização do solo em épocas de chuva, etc.
No que tange à efetiva proteção contra desastres naturais hidrológicos, o Poder
Público precisa se preocupar, também, com aspectos relacionados a outras ramos do
conhecimento, como, por exemplo, a questão habitacional. A construção de loteamentos e
casas em locais inadequados pode causar sérios riscos para toda a população, tais como o
risco de deslizamentos de terra (quando há construções em locais proibidos ou sem cobertura
vegetal adequada), etc. Do mesmo modo, os fundos de vale também são um problema que
exige uma preocupação especial por parte do Poder Público. Neste sentido, MOTA esclarece
que o crescimento desordenado das cidades acarreta inúmeros problemas, tais como a falta de
condições sanitárias, poluição, o que acaba se refletindo na qualidade de vida urbana e na
saúde das pessoas564.
Deste modo, observa-se que os riscos ecológicos decorrentes de problemas ambientais
urbanos enfrentados atualmente devem ser observados com atenção, face sua magnitude e o
grau de incerteza que podem deles decorrer. Ademais, várias são as causas das enchentes,
podendo-se citar a ausência de mata ciliar e de mata nos taludes e encostas da região, o
assoreamento e os estrangulamentos dos cursos hídricos principais, os processos de
desbarrancamento das margens dos rios e os processos erosivos agudos decorrentes da falta de
563
Segundo estabelece a Lei 12.651/2012 em seu artigo 3º, XX, as áreas verdes são “espaços, públicos ou
privados, com predomínio de vegetação, preferencialmente nativa, natural ou recuperada, previstos no Plano
Diretor, nas Leis de Zoneamento Urbano e Uso do Solo do Município, indisponíveis para construção de
moradias, destinados aos propósitos de recreação, lazer, melhoria da qualidade ambiental urbana, proteção dos
recursos hídricos, manutenção ou melhoria paisagística, proteção de bens e manifestações culturais”.
564
MOTA, Suetônio. Planejamento urbano e preservação ambiental. Fortaleza: UFC, 1981. p. 10.
186
vegetação nos morros, dentre outros.565 Neste aspecto, novamente, vê-se patente a
importância da atuação estatal no combate a essas causas.
Assim, a falta de planejamento (ou o planejamento deficitário em relação aos aspectos
acima mencionados, dentre outros) acaba agravando o risco de desastres nas áreas urbanas.
Contudo, de nada adianta criar-se mecanismos de proteção se não forem eles utilizados de
maneira lógica e eficiente. A escolha acerca da melhor atitude a ser tomada a fim de evitar o
surgimento de um problema ambiental exige conhecimento técnico, planejamento e análise
acerca das consequências advindas daquela decisão.
Do mesmo modo, caso tal problema já exista, é necessário que o administrador
público procure alternativas viáveis para eliminá-lo ou amenizá-lo, cumprindo sua função
constitucional de proteção aos interesses da coletividade.
Nunca é demais lembrar que o administrador público é um mero gestor dos interesses
da coletividade, razão pela qual deve ele se submeter aos princípios fixados na Constituição
Federal. Desse modo, é necessário que o Poder Executivo (enquanto responsável pelos atos de
chefia, governo e administração do Estado), promova a adequada elaboração de políticas
públicas, traçando estratégias de atuação na busca da efetividade dos direitos, à saúde, à
moradia, à segurança, etc., garantindo-se, assim, a efetividade dos direitos sociais dentro de
um Estado Democrático e de Direito.566
Ao Poder Público (e, especificamente, ao Município) cabe a função de executar a
política de desenvolvimento urbano, tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Com relação às políticas públicas, tem-se que estas devem ser implementadas e
estimuladas pelo Poder Público, na medida em que se constituem como ferramentas postas à
disposição do ente público para a realização de obras e projetos que possam contribuir para a
proteção contra a ocorrência de desastres, bem como minimizar os efeitos de eventual
desastre, protegendo o direito dos cidadãos. Aliás, é importante frisar que o direito a ações
positivas do Estado acaba impondo ao Estado a persecução de determinados objetivos os
565
Neste sentido, veja-se: OLIVEIRA, Sonia Regina Leão de; COHEN, Simone Cynamon. Habitação
saudável: uma perspectiva de minimização dos riscos ambientais. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE
FESA CIVIL - DEFENCIL, 5., São Paulo, 18, 19 e 20 de novembro de 2009. Disponível em:
<http://www.defesacivil.uff.br/defencil_5/Artigo_Anais_Eletronicos_Defencil_18.pdf>. Acesso em: 07 nov.
2013.
566
GONÇALVES, op. cit.
187
quais, encontram-se, em certa medida, vinculados a direitos constitucionais subjetivos dos
cidadãos.567
Neste aspecto, destaque-se que a lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, a qual dispõe
sobre a proteção da vegetação nativa e dá outras providências, preocupou-se em incentivar a
regularização fundiária de interesse social dos assentamentos inseridos em área urbana.
Assim, nestas hipóteses, a regularização ambiental será admitida por meio da aprovação do
projeto de regularização fundiária, na forma da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, a qual
dispõe sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas e dá
outras providências. Tal projeto deverá incluir estudo técnico que demonstre a melhoria das
condições ambientais em relação à situação anterior com a adoção das medidas nele
preconizadas. Neste aspecto, o referido estudo técnico deverá incluir os seguintes elementos:
caracterização físico-ambiental, social, cultural e econômica da área; identificação dos
recursos ambientais, dos passivos e fragilidades ambientais e das restrições e potencialidades
da área; especificação e a avaliação dos sistemas de infraestrutura urbana e de saneamento
básico implantados, outros serviços e equipamentos públicos; a identificação das unidades de
conservação e das áreas de proteção de mananciais na área de influência direta da ocupação,
sejam elas águas superficiais ou subterrâneas; a especificação da ocupação consolidada
existente na área; a identificação das áreas consideradas de risco de inundações e de
movimentos de massa rochosa, tais como deslizamento, queda e rolamento de blocos, corrida
de lama e outras definidas como de risco geotécnico; a indicação das faixas ou áreas em que
devem ser resguardadas as características típicas da Área de Preservação Permanente com a
devida proposta de recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de
regularização; a avaliação dos riscos ambientais; comprovação da melhoria das condições de
sustentabilidade urbano-ambiental e de habitabilidade dos moradores a partir da
regularização; e demonstração de garantia de acesso livre e gratuito pela população às praias e
aos corpos d’água, quando couber.568
Porém, não raras vezes, o Poder Público acaba sendo omisso em sua missão de
fiscalizar a atuação dos indivíduos, impedindo a construção em áreas de risco, bem como
controlando o uso e ocupação do solo, além da instalação de empresas poluidoras, etc. tem
567
568
ALEXY, op. cit., 2012. p. 444.
Neste sentido, veja-se art. 65 da lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012.
188
sido uma das principais críticas feitas em relação à proteção do meio ambiente e a prevenção
a desastres.569
É certo que o Estado detém uma quantidade grande de tarefas em relação a temas
ligados ao meio ambiente, proteção da vida, etc. Contudo, não se pode permitir que a
quantidade de tarefas e atribuições acabem fazendo com que o Estado deixe de realizar a
função de fiscalizar e monitorar eventos suscetíveis de causar desastres futuros.
Por fim, também não se pode deixar de mencionar que, em diversas oportunidades, o
Poder Público é o ator responsável pela ocorrência de desastres em razão de sua atuação
direta. É o que ocorre quando o Poder Público concede autorização para construir em áreas de
risco ou quando o Poder Público desempenha atividade econômica ou de outra natureza sem
se preocupar com os riscos causados aos indivíduos de determinada localidade.
4.1.2 O ser humano e a proteção contra desastres
A proteção dos direitos fundamentais é uma incumbência não só do Estado, mas,
também, de toda a sociedade. Assim, o cidadão possui papel primordial na proteção do meio
ambiente e na adoção de medidas que impeçam ou minimizem a ocorrência de desastres.
Aliás, torna-se oportuno relembrar o dever imposto ao Poder Público e à coletividade no
sentido de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. No
mesmo sentido foi a orientação seguida pela Declaração do Rio de Janeiro570, a qual procurou
assegurar a participação de todos os cidadãos interessados nas questões ambientais.
Assim, a participação da sociedade na proteção ambiental foi expressamente prevista
na atual Constituição Federal, a qual estabeleceu que o dever de defender e preservar o meio
ambiente compete tanto ao Poder Público quanto à coletividade. Do mesmo modo, tal dever
encontra-se previsto em diversos diplomas normativos. Assim, foi-se o tempo em que a
satisfação das necessidades básicas da população era atribuição exclusiva do Estado. Hoje,
tem-se a consciência que não é mais possível deixar essa responsabilidade única e
569
Em artigo publicado na revisa “desafio”, do IPEA, traz-se informação no sentido de que o aumento dos
desastres hidrológicos (com destaque para os deslizamentos) é consequência da ocupação desordenada do solo
existente nas cidades brasileiras. Segundo MARICATO, no Rio de Janeiro, 50% dos imóveis são irregulares,
situação que se agrava nas regiões Norte e Nordeste, havendo uma falta de controle institucionalizada no país.
Para maiores detalhes, cf. EUZÉBIO, Gilson Luiz. Cidades – uma tragédia anunciada. In: desafio do
desenvolvimento. Disponível em: http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view =
article&id= 1209:reportagens-materias&Itemid=39. Acesso em 10 de nov. De 2013
570
Princípio 10 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento.
189
exclusivamente a cargo do ente público, havendo a necessidade da participação da sociedade
na busca pela efetivação de seus direitos.
Neste aspecto, a primeira vertente a ser analisada refere-se à responsabilidade do ser
humano enquanto causador ou colaborador para a eclosão de um desastre “natural”
hidrológico. Sobre o tema, LEUZINGER observa que a maioria das sociedades não possuía
uma cultura de preservação dos recursos ambientais, sendo certo que, com o desenvolvimento
econômico empreendido a partir do início da era industrial, as agressões ao meio ambiente
passaram a ser ainda mais intensas.571 Desse modo, tornou-se urgente o estabelecimento de
limites à atuação humana, uma vez que o desenvolvimento sustentável parte da máxima de
que a natureza tem limites, de tal forma que o progresso humano não pode extrapolar tais
limites nem desenvolver-se de forma desordenada, com flagrante agressão aos recursos
naturais572.
Assim, para diminuir tais agressões e permitir a adequada proteção ao meio ambiente,
as condutas lesivas ao meio ambiente passaram a ser regulamentadas (e sancionadas) pelo
Poder Público. Logo, ações no sentido de regulamentar (e/ou coibir) desmatamentos e outras
lesões ao bem jurídico ambiental foram implementadas pelo Poder Público.573 Registre-se,
ainda, que a responsabilização ambiental pode ocorrer em três esferas distintas: civil, penal e
administrativa. Neste sentido, preceitua o § 3º do art. 225 da CF:
As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Com base no acima estatuído foi criada a lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, a
qual dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades
lesivas ao meio ambiente. Tal lei previu a possibilidade de responsabilização administrativa,
civil e penal das pessoas jurídicas, bem como a desconsideração da pessoa jurídica nas
hipóteses em que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à
qualidade do meio ambiente. Do mesmo modo, a lei estabeleceu que a responsabilidade das
571
LEUZINGER, op. cit., 1999. p. 29.
ROCHA, op. cit., 2004. p.276.
573
Dentre tais ações cite-se a criminalização de condutas lesivas ao meio ambiente, a exigência de estudo prévio
de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação
do meio ambiente
572
190
pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo
fato.
Desse modo, pessoas físicas ou jurídicas podem, em tese, ser responsabilizadas por
suas ações ou omissões, segundo diretrizes estabelecidas em nosso ordenamento jurídico.
4.1.3 Os demais atores: protagonistas ou coadjuvantes?
Além do Poder Público e do cidadão, outros atores podem desempenhar papel
importante em prol de uma maior efetividade do direito de proteção contra desastres. Assim,
tem-se que o Ministério Público, enquanto instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado e incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis,574 também desempenha papel importante na
proteção contra desastres “naturais” hidrológicos.
Deste modo, e tendo em vista que o direito de proteção contra desastres constitui-se
como um direito fundamental do indivíduo diretamente relacionado a uma serie de interesses
sociais e individuais indisponíveis, tais como o direito à vida, à saúde e à integridade física,
entre outros, a atuação do Ministério Público na proteção contra a ocorrência de desastres
encontra-se amparada constitucionalmente. Ademais, observe-se que, por serem considerados
direitos fundamentais, tais direitos podem ser incluídos dentro do rol dos interesses
individuais indisponíveis. Neste aspecto, torna-se oportuno destacar que a democracia
autêntica deve contemplar, também, o respeito às minorias e aos direitos fundamentais dos
cidadãos, sob pena de perder sua característica principal.575 Observe-se, ainda, que o direito
de proteção contra desastres também guarda relação com o direito à moradia, o qual se
consubstancia como um direito social de cunho prestacional. Assim, deve o Estado respeitar
(e defender) os direitos de todos os cidadãos que o compõem.
Do exposto, observa-se que o Ministério Público também possui legitimidade para
atuar em defesa de pessoas vítimas ou ameaçadas pela possibilidade de ocorrência de um
desastre futuro.576 Assim, para propiciar o adequado desempenho de seu mister, foi atribuída
574
Art. 127 da CF
PEREIRA, op. cit., p. 29.
576
Neste aspecto, registre-se que o encaminhamento pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
(PFDC/MPF) no ano 2011, de documento ao Ministério da Integração Nacional e à Secretária Nacional de
Defesa Civil encomendando a efetiva implementação da Política de Prevenção aos Desastres no âmbito dos entes
575
191
ao Ministério Público uma série de funções, sendo certo que, para os fins objetivados neste
trabalho, merecem destaque as de: zelar pelo respeito aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; promover o inquérito civil e
a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos. Observe-se, ainda, que, para o desempenho de suas
funções, o Ministério Público procura, não raras vezes, especializar suas áreas de atuação de
modo a otimizar sua atuação em defesa dos interesses por ele tutelados. Assim, no que tange à
defesa dos interesses sociais relevantes, tem-se, comumente, Promotorias de Justiça voltadas à
defesa da cidadania, na qual se busca não só a efetivação dos direitos fundamentais sociais,
cobrando-se dos entes públicos a execução de políticas que assegurem os direitos sociais
constitucionalmente previstos, como também a proteção ao patrimônio público, através de
uma repressão mais efetiva dos atos de improbidade administrativa. Do mesmo modo, na área
ambiental, o Ministério Público tem atuado no sentido de contribuir para o adequado
ordenamento do território urbano, verificando o cumprimento das normas urbanísticas, com
destaque para as ocupações de áreas de risco e parcelamento ilegal do solo.
Também merece menção, em sede de desastres naturais hidrológicos, a chamada
sociedade civil organizada. A sociedade civil organizada (abrangendo o terceiro setor,
associações, ONG’s, etc.) também pode atuar de modo a contribuir para a minimização dos
danos decorrentes de tais desastres, bem como cobrar a adoção, pelo Poder Público, de
medidas preventivas e de socorro às vítimas. Assim, a atuação do indivíduo por meio de
grupos organizados pode contribuir para a diminuição do número de desastres ou, pelo menos,
do número de vítimas de desastres.
Do mesmo modo, não se pode deixar de mencionar o papel da mídia enquanto
transmissora de informações e instrumento de pressão em relação ao Poder Público, eis que a
divulgação dos problemas envolvidos por determinada comunidade podem contribuir para
que a adoção de medidas preventivas, de socorro e recuperativas ocorra de modo rápido e
eficiente. A mídia possui papel importante, na medida em que, ao divulgar informações sobre
o risco de desastres ou sua ocorrência, dá publicidade à situação vivenciada pela comunidade,
federados, bem como o fornecimento de dados para elaboração da política nacional de prevenção aos desastres,
assim como a constituição de iguais planos nos âmbitos estadual e municipal. Tal documento recomentou, ainda,
a elaboração, pela Secretaria Nacional de Defesa Civil, de manual com as ações preventivas e de socorro a serem
implementadas pelas unidades de cada ente federativo, bem como informações sobre as ações preventivas, de
socorro, assistenciais e recuperativas já adotadas, visto a proximidade do período de chuvas em diversas regiões
do
País. Cf.
http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informativos/edicoes-2011/janeiro/
desastres-com-a-chuva-pfdcencaminha-recomendacao-a-autoridades-de-defesa-civil/. Acesso em 7 jan. 2012
192
alertando a população, o Poder Público e a sociedade de um modo geral. Logo, a atuação da
mídia na cobertura do evento, impede que os danos decorrentes de determinado desastre
fiquem esquecidos, traduzindo-se como importante instrumento de pressão com vistas à
adoção de medidas recuperativas.
4.1.4 Responsabilidades
Questão das mais importantes refere-se à responsabilidade pelos danos decorrentes dos
desastres. Tal afirmação decorre, dentre outras razões, da multiplicidade de fatores que
contribuem para a eclosão de um desastre, o que dificulta a caracterização das causas de um
desastre hidrológico e, consequentemente, da imputação de responsabilidades.577
Em uma sociedade de risco, a prevenção e o manejo de catástrofes podem acabar
promovendo uma reorganização do poder e da responsabilidade.578 O denominado “direito de
proteção contra desastres” encontra-se amparado em diversos diplomas normativos esparsos,
além de encontrar fundamento constitucional na proteção do direito à vida, à dignidade
humana, ao meio ambiente, entre outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados. Neste
aspecto, a responsabilidade pode incidir sobre o Poder Público ou sobre o próprio particular.
No tocante à responsabilidade civil do Estado tem-se que esta evoluiu muito ao longo
dos séculos. Assim, se inicialmente defendia-se a total irresponsabilidade do Estado, com base
no absolutismo monárquico, sob o fundamento de que “The King can do no wrong” tem-se
que, hoje, o Estado responde “por suas ações e omissões, quando infringirem a ordem jurídica
e lesarem terceiros.”579
A primeira teoria permitindo a responsabilidade do Estado foi a teoria subjetiva.580
Segundo tal teoria, a obrigação de ressarcir incumbe àquele que por ato culposo ou doloso
cause um dano a outrem ou em deixe de impedir sua ocorrência quando a isso estivesse
obrigado. Assim, o dever de indenizar, surge sempre que estiverem presentes os seguintes
577
GOMES, op. cit., p. 18.
BECK, op. cit., 2010. p. 28.
579
JUSTEN FILHO, Marçal . Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 791.
580
Para Rui Stoco tem-se que a responsabilidade subjetiva consiste na obrigação do Estado de indenizar alguém
que tenha sofrido um dano em razão de um procedimento contrário ao Direito, de natureza culposa ou dolosa, ou
em razão de uma omissão estatal quando deveria ter agido para impedi-lo. STOCO, Rui. Tratado de
responsabilidade civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 996-7.
578
193
elementos: dano, conduta lesiva e nexo de causalidade entre eles. Em se tratando de
responsabilidade subjetiva, faz-se indispensável, também, a comprovação da culpa do agente.
Em um momento posterior a responsabilidade do Estado evoluiu para o que se
convencionou chamar de teoria da culpa administrativa “faute du service”, de inspiração
francesa. Segundo esta teoria, haverá a denominada culpa do serviço ou falta do serviço
quando este não funciona, devendo funcionar, funcional mal ou funciona atrasado.
Por fim, há que se mencionar, em sede de responsabilidade civil, a teoria da
responsabilidade objetiva com base no risco, a qual se subdivide em duas:
A primeira é a teoria da responsabilidade objetiva com base no risco administrativo.
Para essa teoria a responsabilidade exige a presença dos seguintes requisitos: ocorrência do
dano, ação ou omissão administrativa, existência de nexo causal entre o dano e a ação ou
omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal.
Já a segunda denomina-se teoria da responsabilidade objetiva com base no risco
integral e difere-se da primeira em razão de não admitir a existência de causas excludentes da
responsabilidade estatal. Registre-se, todavia, que, tratando-se de riscos conhecidos e
mensuráveis há quem defenda que, quando esse risco se concretiza, a responsabilidade da
administração não vai ceder à invocação de força maior, uma vez que um dos principais
critérios para invocar tal eximente de responsabilidade é justamente a imprevisibilidade do
evento. 581
O Brasil adota, desde 1946, a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, com base
no risco administrativo, de tal forma que a responsabilidade do Estado pode ser afastada por
meio de causas excludentes, tais como a força maior, o caso fortuito, ou a culpa exclusiva da
vítima. Atualmente, a responsabilidade objetiva encontra-se prevista no artigo 37, § 6º, da
Constituição Federal de 1988, de tal forma que o Estado responde pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, sem necessidade de comprovação da culpa dos
agentes públicos. Assim, tem-se que a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito
público – em relação às condutas comissivas – deve ser vista sob a ótica da teoria da
responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo. Deste modo, para o
reconhecimento de tal responsabilidade há de se observar a presença dos seguintes requisitos:
581
LAVIEILLE, op. cit., p. 271.
194
a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação
administrativa.582
Do mesmo modo, entende-se que, em sede de direito de proteção contra desastres,
tem-se que, com relação às condutas comissivas, foi adotada a teoria da responsabilidade
objetiva, com base na teoria do risco administrativo. Assim, o Estado responde objetivamente
pelos danos decorrentes da atuação de seus agentes, mas pode apresentar justificativas que
venham a romper o nexo causal e, consequentemente, ilidir a responsabilidade do Poder
Público.
No que tange aos atos omissivos há discussão na doutrina e jurisprudência. Para uns,
haveria, neste caso, a mesma regra, de tal forma que o Estado responderia independentemente
da existência de culpa por parte de seus agentes. Para outros, caso o prejuízo surja de conduta
omissiva nos casos em que há o dever legal de agir, adotar-se-ia a teoria da responsabilidade
subjetiva do Estado, sendo necessário, portanto, a comprovação de culpa para que surja a
obrigação de indenizar.
Com relação à responsabilidade estatal na hipótese de danos decorrentes de condutas
omissivas defende-se nesta tese que a mesma deve ser analisada sob a ótica da
responsabilidade subjetiva. Aliás, conforme já mencionado, a teoria da faute Du service
(também denominada de teoria da culpa anônima) atribui a responsabilidade ao ente estatal
em razão de uma omissão por parte deste, sem que haja a necessidade de se comprovar uma
atuação específica por parte do agente público. Fala-se, deste modo, em uma culpa anônima,
uma vez que não é necessária a identificação de uma culpa individual para que surja a
responsabilidade do Estado. Assim, somente ficando comprovado que a ação negligente do
Poder Público, permitindo a construção de moradias em áreas de risco, bem como permitindo
a instalação de empresas altamente poluentes e que possam causar alterações significativas no
clima de determinada região, será possível discutir-se acerca de eventual responsabilidade do
Estado por desastres decorrentes de condutas omissivas.
582
Sobre a responsabilidade civil do Estado, veja-se: CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado.
3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O problema da
responsabilidade do estado por actos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974. CRETELLA JÚNIOR, José. O estado
e a obrigação de indenizar. São Paulo: Saraiva, 1980. TRUJILLO, Elcio. Responsabilidade do estado por ato
lícito. Leme: LED, 1996. STERMAN. Sônia. Responsabilidade do Estado: movimento multitudinário: saques,
depredações, fatos de guerra, revoluções, atos terroristas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.
195
Muito embora incumba ao Estado a proteção do meio ambiente e dos demais bens
jurídicos tutelados, tal tarefa não é exclusiva do ente público. O cidadão que venha a causar
ou contribuir para a ocorrência de um determinado desastre também pode ser
responsabilizado civil, penal ou administrativamente sempre que infringir algum preceito
normativo. Quando o indivíduo descumpre os deveres inerentes à vida em sociedade,
desrespeitando as orientações do Poder Público e seus órgãos, acaba contribuindo para a
ocorrência de desastres. Assim, por exemplo, quando o indivíduo edifica sua residência em
área de risco, quando não obedece aos diplomas normativos referentes à construção civil e
urbanismo, quando joga lixo em locais proibidos, etc. dá ele causa para a ocorrência de
desastres.
A principal diferença entre a responsabilidade do ente público e a responsabilidade do
cidadão é que a responsabilidade deste é subjetiva, ou seja deve haver prova da conduta do
agente, do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado (desastre), além da necessidade
de que esta conduta seja dolosa ou culposa. Logo, para que o indivíduo possa ser
responsabilizado é necessário que haja prova da sua imprudência, negligência ou imperícia
(no caso de condutas culposas) ou de ter agido dolosamente para a ocorrência do resultado
danoso. Assim, havendo culpa exclusiva da vítima, a responsabilidade do Estado acaba sendo
excluída e, havendo concorrência de culpas por parte do Poder Público e do particular haverá
a possibilidade de responsabilização civil, proporcionalmente à conduta praticada. Isso porque
não é admissível, no atual sistema em que vivemos, responsabilizar-se o Estado nas hipóteses
em que o indivíduo não agiu da forma que era esperado, ou quando o indivíduo desrespeitou
alguma regra ou determinação estatal. Isso porque a proteção ao meio ambiente é dever de
todos (Estado e sociedade), de tal forma que, tendo o particular desrespeitado as regras que
lhe foram impostas, contribuindo para a eclosão de determinado desastre não é lícito atribuirse ao Estado responsabilidade que não lhe compete.
4.1.5. União de esforços e divisão/Compartilhamento de responsabilidades
Dadas as características e consequências dos desastres “naturais” hidrológicos não é
possível deixar a responsabilidade de sua contenção a cargo de um único ator. Assim, não
basta a ação estatal para que o problema dos desastres deixe de existir ou seja minimizado. É
fundamental a participação da população nesse processo, colaborando com o Poder Público e
reivindicando medidas que possam contribuir para a diminuição dos desastres.
196
Assim, a participação de todos os atores envolvidos no processo de desenvolvimento
constitui-se como estratégia eficaz para a solução dos problemas de determinada
localidade.583 Neste sentido, observe-se que a lei 12.608/2012 (a qual estabeleceu a Política
Nacional de Proteção e Defesa Civil) procurou valorizar as união dos diversos atores na
proteção contra desastres. Assim, a referida lei estabeleceu que as medidas necessárias à
redução dos riscos de desastre poderão ser adotadas com a colaboração de entidades públicas
ou privadas e da sociedade em geral.584
Tal pensamento foi previsto como uma diretriz a ser seguida pela Lei de Política
Nacional sobre Mudança do Clima, a qual fez expressa menção ao estímulo e ao apoio à
participação dos governos federal, estadual, distrital e municipal; do setor produtivo; do meio
acadêmico e da sociedade civil organizada, no desenvolvimento e na execução de políticas,
planos, programas e ações relacionados à mudança do clima.585
Assim, a união do Poder Público e da coletividade na adoção de medidas preventivas,
que possam minimizar os efeitos de sua ocorrência, bem como a busca de soluções eficazes
em relação aos desastres relacionados à água é medida essencial para que se possa, de fato,
avançar na proteção contra desastres dessa natureza.
Neste aspecto, registre-se que os danos decorrentes de desastres quase sempre são
causados ou pelo menos agravados pela incapacidade da sociedade em regular riscos com
antecedência. Desse modo, surge, patente, a importância do planejamento e da busca de
soluções conjuntas. A construção da cidade, a escolha do lugar e das áreas regiões nas quais
deverão (ou não) ser construídos determinados tipos de obras, empresas, etc. trazem
consequências relevantes para todo o corpo social e, para se ter uma exata noção destas
consequências (e se são viáveis sob o ponto de vista ambiental) planejar é fundamental.
A inclusão do princípio da participação comunitária em nosso ordenamento jurídico
vem reforçar o mandamento constitucional segundo o qual impõe-se a todos a defesa e
preservação do meio ambiente, ou seja: na busca de soluções para os problemas ambientais
deve-se estimular a cooperação entre o Estado e a sociedade, por meio da participação dos
diversos grupos sociais existentes, na busca de soluções para os problemas ambientais. Neste
aspecto, a participação popular trouxe bons frutos, por exemplo, em Portugal, no qual
583
SACHS, op. cit., p. 61.
Art. 2o da lei 12.608, de 10 de abril de 2012.
585
Art. 5º, V, da lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009.
584
197
arquitetos, engenheiros, juristas e estudantes e, principalmente, moradores de bairros urbanos
pobres e degradados, uniram-se em torno de novos direitos e melhores condições de vida,
reivindicando habitações decentes, o que foi chamado de “direito ao lugar”. 586 Tal movimento
decorreu da mobilização e organização popular (cujas reivindicações surgiram no século
XIX), encontrando terreno fértil para seu desenvolvimento na Constituição de 1974.587
Ademais, dentro de um Estado Democrático e de Direito, o individuo passa a ser visto
como sujeito de direito, sendo concebido em face de suas especificidades e peculiaridades,
dando-lhe concretude. Assim, passa-se a se falar na tutela jurídica de direitos pertencentes a
grupos minoritários, tais como os hipossuficientes.588
É necessário utilizar-se a prevenção, a capacitação dos agentes e o fortalecimento da
Defesa Civil como ferramentas na proteção contra desastres, pois, se não é possível evitar sua
ocorrência, é preciso, pelo menos, tentar reduzir os seus efeitos e danos (materiais e humanos)
deles decorrentes. Assim, a capacitação dos agentes públicos e a participação da comunidade
constituem-se como diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Proteção Contra
Desastres.589
A diminuição dos desastres só será possível com a união do Poder Público e da
sociedade, por meio da educação ambiental e com a aplicação de recursos em obras que
possam proteger a população e prepará-la para agir em momentos de crise. Do mesmo modo,
a capacitação dos cidadãos, preparando-os para agir em momentos de desastres, de modo a
minimizar os danos decorrentes, é medida essencial para que se logre sucesso nessa
empreitada.
Observe-se que, se a intervenção do indivíduo na natureza não for freada ou
controlada, os recursos ambientais não serão suficientes para garantir a manutenção da vida
humana. Trata-se, como se vê, de uma relação complexa na qual indivíduo e natureza
precisam conviver diariamente. E, em determinados momentos, tal relação torna-se
desarmoniosa e desastres ambientais acabam acontecendo. Tais desastres podem ter diversas
586
NUNES, João Arriscado; SERRA, Nuno. Casas decentes para o povo: movimentos urbanos e emancipação
em Portugal. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia
participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 264
587
NUNES, João Arriscado; SERRA, Nuno. Casas decentes para o povo: movimentos urbanos e emancipação
em Portugal. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia
participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 267-268
588
PIOVESAN, op. cit., p. 214-5.
589
SEGUN, op. cit., 2012. p. 72.
198
causas, tais como abalos sísmicos, tsunamis, ciclones, inundações, acidentes nucleares, etc.
Logo, tem-se que, ao mesmo tempo em que a intervenção na natureza é necessária para
melhorar a qualidade de vida dos seres humanos, sua proteção também é fundamental para
que os recursos ambientais continuem disponíveis para as gerações futuras. E, por esta razão,
a Constituição Federal de 1988 estabeleceu que incumbe ao Poder Público e à coletividade o
dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Assim, o
compartilhamento de tais responsabilidades é medida crucial para a efetiva proteção desse
direito.
Tal preocupação encontra-se expressa, entre outros documentos, no Marco de Ação de
Hyogo, o qual constitui-se como um importante instrumento para a implementação da redução
de risco de desastres, adotado por países membros nas Nações Unidas. O objetivo é aumentar
a resiliência das nações e comunidades diante de desastres, visando para 2015 a redução
considerável das perdas ocasionadas por desastres, de vidas humanas, bens sociais,
econômicos e ambientais. O Marco de Ação de Hyogo é composto de cinco ações principais:
A primeira delas visa garantir que a redução de riscos de desastres seja uma prioridade
nacional e local com uma sólida base institucional para a sua implementação. Assim,
governos locais, regionais e nacionais devem unir-se na busca da criação de uma cultura de
proteção contra desastres, reduzindo os riscos de sua ocorrência.
A segundaa ação, de caráter nitidamente preventivo, refere-se à identificação,
avaliação e observância de perto dos riscos de desastres e a melhoria dos alertas. Tal ação
permite que as comunidades estejam alertas para a ocorrência de desastres e estejam
preparadas para agir na hipótese de surgimento de riscos de desastres.
Outra ação mencionada no Marco de Hyogo e, também diretamente relacionada à
criação de uma cultura de proteção contra desastres, refere-se à utilização do conhecimento,
da inovação e da educação para criar e fortalecer uma cultura de segurança e resiliência em
todos os níveis. Assim, deve-se estimular o envolvimento da população nas ações
de
comunicação relacionadas aos risco de desastres, partilhando-se as experiências e criando-se
uma cultura de resiliência.590
A quarta ação refere-se à redução dos fatores fundamentais de risco, de modo a evitar
a ocorrência de desastres.
590
GOMES, op. cit., p. 56-7.
199
Por fim, devem ser implementadas ações voltadas ao fortalecimento das comunidades
no sentido de estarem preparadas para adotarem uma resposta eficaz em todos os níveis, na
hipótese de risco de desastres. Tais ações devem estimular a participação popular e a busca de
soluções conjuntas para os problemas e riscos decorrentes de desastres hidrológicos,
contribuindo para a gestão democrática desses riscos. Neste aspecto, ganha destaque o papel
do Município no fomento e implementação de tais ações.
4.2 DA NECESSÁRIA TRANSVERSALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DA MUDANÇA DE PARADIGMA:
GOVERNANÇA LOCAL E O PAPEL DO MUNICÍPIO
A implementação e execução das políticas públicas exigem uma atuação eficaz da
Administração Pública, por meio de seus diversos órgãos, constituindo-se como importantes
instrumentos para a concretização dos Direitos fundamentais.591 Assim, com vistas à
efetividade da proteção do cidadão contra a ocorrência de desastres por meio de uma postura
preventiva (e, tendo em vista as disposições constitucionais sobre o tema), faz-se necessário
envolver o Município de forma mais atuante na execução de tais políticas. Como se pode
observar, apesar das disposições constitucionais acerca da repartição de competências entre os
entes públicos (com ênfase na proteção contra desastres naturais hidrológicos) observa-se a
falta de uma atuação voltada para a prevenção dos desastres. Tal prevenção é fundamental,
por ser a forma mais eficaz de se garantir a manutenção da dignidade da pessoa humana e a
proteção dos direitos fundamentais do indivíduo, tais como o direito à moradia, o direito à
saúde, etc.
Quando a atuação do Poder Público ocorre por meio de medidas recuperativas o que se
objetiva é, em última análise, recuperar uma situação anterior, ou seja: procura-se devolver ao
indivíduo a cidadania e a dignidade existentes até antes da eclosão do desastre. Em que pese a
importância da atuação no momento do desastre e após sua ocorrência, tais ações ocorrem em
momento posterior ao da violação dos direitos fundamentais dos moradores de determinada
região. Neste aspecto, tem-se que o direito de proteção contra desastres (enquanto direito
fundamental do indivíduo) exige que a atuação do Poder Público e da sociedade ocorram
antes de sua violação.
Neste sentido, rememore-se que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a primazia
dos direitos fundamentais enquanto um conjunto de direitos cujo adimplemento independe da
591
SMANIO, op. cit., 2013. p. 12.
200
vontade política, devendo ser garantidos a todos os indivíduos, sem distinção de qualquer
natureza.592
Assim, para que se avance na proteção contra desastres, dentro de um contexto de
direitos humanos e direitos fundamentais, é necessário que Poder Público e sociedade
comecem a priorizar a adoção de medidas preventivas, evitando a ocorrência de desastres
dessa natureza.
Do mesmo modo, o direito de proteção contra desastres precisa de um melhor
tratamento normativo, ampliando os poderes da Administração Pública Municipal,
estabelecendo direitos e deveres em relação a todos os envolvidos na questão atinente aos
desastres. Isso porque, conforme já mencionado, o Município é o ente que detém a
competência para executar as principais políticas públicas relacionadas aos desastres
“naturais” hidrológicos, cabendo a ele a função de executar a Política Nacional de Proteção e
Defesa Civil âmbito local.
No que tange ao planejamento municipal, tem-se que este deve incluir em seu texto
ações de proteção e Defesa Civil. Assim, incumbe ao Município identificar e mapear as áreas
de risco de desastres, promover a fiscalização das áreas de risco de desastre e vedar novas
ocupações nessas áreas, etc. Igualmente, as políticas públicas relacionadas ao tema “proteção
contra desastres” devem ser executadas pelos Municípios – uma vez que são eles os entes
públicos que se encontram mais próximos da realidade local – devendo, para tanto, contar
com o apoio dos demais entes públicos (Estados e União), bem como dos demais atores
envolvidos (sociedade civil organizada, etc.). Neste aspecto, a avaliação histórica do risco
também é uma medida salutar na proteção contra desastres, tendo em vista sua contribuição
na tomada de decisões em relação às possibilidades de enfrentamento dos riscos relacionados
à ocorrência de desastres.593
Lamentavelmente, observa-se a falta de cultura em prevenção de desastres por parte
dos Municípios, podendo a mesma ser constatada em razão da não estruturação de órgãos de
Defesa Civil por parte grande da maioria dos Municípios brasileiros, bem como pela
inexistência (ou não aplicação) de leis de uso e ocupação do solo e sua não prepação para
592
FONTE, Felipe de Melo. A intervenção judicial no âmbito das políticas públicas orientadas à
concretização dos direitos fundamentais. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Reio de Janeiro.
Faculdade de Direito, 2009. p. 23.
593
Neste sentido, veja-se: OLIVEIRA, op. cit., 2013.
201
atuação em situações de emergência, não havendo preocupação em mapeamento de áreas de
risco nem a conscientização da população acerca dos perigos relacionados aos desastres.594
Ainda com relação à política de desenvolvimento urbano, nossa Constituição
demonstrou sua preocupação com a função social da propriedade urbana. Segundo o art. 182,
§ 2º “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Segundo estabelece o
Estatuto da Cidade, o plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da
política de desenvolvimento e expansão urbana, devendo englobar o território do Município
como um todo. O Plano Diretor tem por missão estimular o discurso entre cidadãos e Poder
Público, atuando como um mecanismo de interlocução entre ambos. Assim, por meio dele
devem as partes deliberar sobre emergências locais, problemas sociais e políticas de
crescimento e expansão.595
Logo, o Município é, de fato e de direito, o locus no qual as ações de prevenção e
recuperação devem ser implementadas. Deste modo, a presença de uma governança local bem
preparada e estruturada de modo a dar suporte às vítimas de determinados desastres é crucial
para a mudança de paradigma e redução nos danos humanos e materiais decorrentes dos
desastres “naturais” hidrológicos. Aliás, nas últimas décadas, tem-se observado uma maior
descentralização da ação governamental e o fortalecimento dos Municípios, passando os
mesmos a serem responsáveis por uma serie de serviços.596
Discorrendo acerca do papel do Município na gestão das cidades e elaboração de
políticas pública, OSÓRIO assevera:
O Estatuto da Cidade constitui-se em um importante suporte jurídico para a ação dos
governos municipais que buscam alternativas para a solução dos graves problemas
urbanos, sociais e ambientais que atingem enormes parcelas da população brasileira.
É reconhecido o papel fundamental dos Municípios na formulação e condução do
processo de gestão das cidades, estabelecendo diretrizes para nortear a elaboração de
políticas públicas urbanas. O Estatuto da Cidade consolida e amplia a competência
jurídica da ação municipal instituída pela Constituição Federal. 597
594
Neste sentido, veja-se relatório da auditoria realizada pelo TCU junto à Secretaria Nacional de Defesa Civil,
constante no TC 000.741/2011-6.
595
SCHENKEL, op. cit., p. 48.
596
ROSSETO, op. cit., p. 26-7.
597
OSÓRIO, op. cit. p. 21
202
Porém, para que tal ação seja realmente exercida de forma efetiva, é necessário
melhorar a estrutura organizacional dos Municípios e atribuir-lhes maiores poderes para agir
de modo a ter-se uma atuação mais eficaz nesta área.
Dada a forma como o tema foi tratado no ordenamento jurídico brasileiro, tem-se que
o Município é o principal ator (dentre os entes de direito público) nas ações de prevenção e/ou
mitigação a desastres. É ele o responsável pela execução das ações e políticas públicas a
serem implementadas, contando com o apoio financeiro de Estados e da União. A ele (com o
auxílio da Defesa Civil e da comunidade local) incumbe a tarefa de articular e intermediar tais
ações, bem como fazer a gestão dos recursos disponibilizados pelos entes púbicos e,
eventualmente, doados pela sociedade.
Conforme estabelece a Lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, compete
aos Municípios, entre outras funções, a de realizar regularmente exercícios simulados,
conforme Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil. Assim, o sistema municipal ou
local de Defesa Civil é considerado o mais importante de todos, porque é no Município que os
desastres acontecem. Por isso, a estrutura mais importante para o enfrentamento dos desastres
é a estrutura local. 598
As cidades enfrentam processos intensos de urbanização e alta densidade
populacional, sendo certo que a referida urbanização constitui-se como um fenômeno social,
econômico e ambiental extremamente significativo e que afeta significativamente todos os
aspectos do planejamento, desenvolvimento e gestão das sociedades humanas.599
É necessário que a população esteja preparada para agir na hipótese da ocorrência de
desastres e, para isso, deve o Poder Público realizar ações que possibilitem tal preparação.
Neste aspecto, a simulação dos procedimentos executados durante desastres e treinamentos
auxiliarão na diminuição do índice de mortes em casos de desastres como enxurradas e
deslizamentos. A simulação deve, ainda, contemplar a emissão de alertas à população, o
acionamento de sirenes, além da retirada da população pelas rotas de fuga previamente
traçadas. Assim, deve-se criar um sistema de alarme eficaz e informar a população sobre os
procedimentos a serem adotados na hipótese de situação de risco. E, para isso, a realização
dos simulados. A emissão de alertas pode ser feita por meio de mensagens de texto em
598
Disponível em: <http://www.defesacivil.sp.gov.br/v2010/portal_defesacivil/conteudo/documentos/ manual
DefesaCivil_patruleiro.pdf>. Acesso em: 8 out. 2013.
599
NOGUEIRA, op. cit., p. 1.
203
celulares, sirenes, etc. Basta a existência (e funcionamento) de um sistema de alarme para
avisar a população em situações de perigo, de modo que as pessoas que moram em áreas de
risco possam deixar suas casas em tempo.
O Sistema de Alerta é um meio de informar as autoridades e a população acerca dos
riscos iminentes, possibilitando-lhes a adoção de medidas que reduzam os impactos oriundos
de um desastre. Segundo ensina VENDRUSCOLO, o sistema de alerta (na hipótese de
eventos chuvosos) trata da fase de acompanhamento do evento. Assim, no primeiro nível
surge um acompanhamento por parte dos técnicos, alertando-se a Defesa Civil sobre a
eventualidade da chegada de uma enchente. No segundo nível (Nível de alerta) prevê-se a
ocorrência de um nível futuro crítico dentro de um horizonte de tempo da previsão. Nesta
fase, a Defesa Civil e administrações municipais passam a receber regularmente as previsões
para a cidade e a população recebe o alerta e instruções da Defesa Civil. Por fim, quando
ocorrem prejuízos materiais e humanos chega-se ao denominado nível de emergência. 600
Na hipótese de ocorrência de desastres, a atuação do Município deve ser a mais rápida
e efetiva possível. Cabe a ele (em parceria com a Defesa Civil) procurar abrigar e alojar as
pessoas vítimas do desastre, bem como tomar as medidas pertinentes à eventual decretação de
situação de emergência ou estado de calamidade pública, de modo a obter recursos para a
reconstrução do cenário atingido. Neste aspecto, um sistema de previsão de alerta em tempo
real pode contribuir para minimizar-se as perdas decorrentes de um evento crítico,
permitindo-se a adoção das medidas necessárias. Do mesmo modo, é importante a elaboração
de planos de ações que antevejam a possibilidade de um desastre e estabeleçam as medidas a
serem adotadas na hipótese de um desastre.601
Por fim, não se pode deixar de mencionar a importância da atuação do Município na
captação de recursos para a realização das obras necessárias para a prevenção de desastres e
reconstrução do cenário lesado, merecendo destaque a municipalização de várias políticas
públicas como alternativa viável rumo à efetiva proteção dos direitos fundamentais.602 Neste
aspecto, a municipalização das políticas publicas retirou dos governos estaduais a função de
600
VENDRUSCOLO, op. cit., p. 55.
Exemplificativamente, mencione-se o Decreto nº 17.851, de 23 de janeiro de 2013, do município de
Campinas, o qual criou o plano municipal integrado de gerenciamento de assistência humanitária para situações
de desastres. Tal plano consiste em um conjunto de medidas planejadas pela Prefeitura para socorrer com rapidez
e eficácia vítimas atingidas por Situação de Emergência ou Estado de Calamidade Pública e tem como finalidade
estabelecer diretrizes coordenadas, visando melhorar a capacidade de resposta do Poder Público em caso de
desastre, Situação de Emergência (SE) ou Estado de Calamidade Pública (ECP).
602
ROSSETO, op. cit., p. 26-7.
601
204
execução direta de diversos serviços públicos,
passando a desempenhar
coordenar, financiar ou suplementar as ações praticadas pelo poder local.
o papel de
603
A execução de políticas públicas relacionadas à proteção contra desastres (e, em
especial, os desastres “naturais” hidrológicos) exige a adoção de um novo modelo de
governança local, mais eficaz e propositivo, antecipando-se aos problemas e buscando
alternativas que evitem a ocorrência de desastres ou, minimizem os efeitos deles decorrentes.
Ademais, “o pleno desenvolvimento da função social da cidade corresponde ao efetivo
exercício do direito à cidade, o que se dará através de uma política de desenvolvimento
urbano.”604 E tal política há de ser realizada pelo Municípios, em prol da coletividade. É este
o papel que se espera dos Municípios e seus governantes.
4.2.1 Politicas públicas de ordenamento territorial e uso e ocupação do solo
A preocupação com políticas públicas habitacionais insere-se dentre as atribuições do
Poder Público. Especificamente em relação à proteção do direito à moradia, observe-se que o
Comitê de Direito Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas
emitiu, em 13 de dezembro de 1991, o Comentário Geral nº 4, o qual elencou dente os
elementos indispensáveis para que uma moradia seja considerada adequada: a construção de
políticas públicas habitacionais contemplando os grupos vulneráveis, tais como os grupos
sociais empobrecidos e vítimas de desastres naturais.
No Brasil, observa-se que, até o início do século XXI, raras foram as tentativas de
evitar o risco de desastres naturais por meio de um controle rígido do uso do solo. 605 A
primeira regulação federal sobre o espaço urbano ocorreu em 1979, com a aprovação da lei nº
6.766, de parcelamento do solo urbano.606
Assim, com o objetivo de implementar políticas públicas específicas relacionadas à
questão habitacional e de ordenamento territorial foi criada a lei 10.257/2001 – Estatuto da
cidade. Tal lei regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes
gerais da política urbana e dá outras providências. Com ele, surge uma nova concepção em
603
ABRUCIO, F L; GAETANI, F. Avanços e perspectivas da gestão pública nos estados: agenda aprendizado
e coalizão. Brasília: Consad/Fundap, 2006. p. 26.
604
JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 178.
605
SEGUN, op. cit., 2012. p. 69.
606
BUENO, op. cit.
205
relação aos processos de uso, desenvolvimento e ocupação do território urbano e que deve
orientar a ação do Poder Público e da sociedade, de modo que a gestão das cidades seja
efetivada por meio de princípios e diretrizes estabelecidos sob a ótica da justiça, democracia e
sustentabilidade.607
A Carta de princípios para a elaboração do Plano Diretor 608, elaborada pelo Fórum
Nacional da Reforma Urbana, em 1989, elencou, como princípios fundamentais: o Direito à
Cidade e à Cidadania609, a Gestão Democrática da Cidade610 e a Função Social da
Propriedade.611 Tais princípios foram posteriormente incorporados ao texto final da Lei
10.257/01 (Estatuto da cidade), o qual estabeleceu que a política urbana tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,
mediante as uma série de diretrizes gerais. Dentre tais diretrizes, destaque-se: a garantia do
direito a cidades sustentáveis;612 a gestão democrática por meio da participação da população
e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação,
execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; a
cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no
processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; o planejamento do
desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades
econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e
corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de
implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o
meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; regularização
fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o
estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação,
consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais.
607
OSÓRIO, op. cit.
DE GRAZIA, Grazia (Org.). Plano diretor: instrumento de reforma urbana. Rio de Janeiro: FASE, 1990.
609
Tal direito compreende o acesso universal aos serviços e equipamentos urbanos, à terra, à moradia, ao meio
ambiente sadio, ao lazer, transporte, saneamento, à participação no planejamento da cidade, à educação e saúde.
Enfim, acesso a condições de vida urbana digna.
610
A gestão democrática da cidade consubstancia-se na forma de planejar, tomar decisões, legislar e governar as
cidades com participação e controle social, de forma a dar legitimidade e sustentabilidade à nova ordem jurídicaurbanística de natureza social.
611
A função social da propriedade encontra-se adstrita à prevalência do interesse comum sobre o direito
individual, o que implica no uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano, de modo a
evitar sua retenção especulativa ou sua utilização inadequada ou não utilização.
612
Segundo estabelece o Estatuto da cidade, o direito a cidades sustentáveis deve ser entendido como o direito à
terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos,
ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (art. 2º, I da lei 10.257, de 10 de julho de 2001)
608
206
Além das competências legislativas a cargo da União em questões relacionadas à
política urbana, compete a ela promover, por iniciativa própria e em conjunto com os Estados,
o Distrito Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e a melhoria das
condições habitacionais e de saneamento básico. Do mesmo modo, deve a União instituir
diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e
transportes urbanos, bem como elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação
do território e de desenvolvimento econômico e social.613
Ao tratar da política de desenvolvimento urbano, a atual Constituição Federal
estabeleceu, em seu artigo 182, que tal política será executada pelo Poder Público Municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, e terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Tal preocupação
também ficou evidenciada ao atribuir-se ao Município a competência para promover o
ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da
ocupação do solo urbano, nos termos do art. 30, VIII da Constituição Federal, além de
atribuir-lhe a competência para legislar sobre assuntos de interesse local, bem como para
suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber. Desse modo, e em atendimento
às disposições constitucionais sobre o tema, o Estatuto elencou uma série de diretrizes que
nortearão a atuação da Administração Pública, sendo que algumas encontram-se diretamente
ligadas à questão ambiental, merecendo destaque aquelas descritas no art. 5º em seus incisos
I; IV; VI, g; VIII; XII; XIII; e XIV.
Do disposto nos referidos incisos, observa-se a preocupação do Estatuto da Cidade
com as denominadas cidades sustentáveis, razão pela qual primou ele pela adoção de padrões
de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites
da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de
influência.
A questão é relevante na medida em que, conforme a população urbana continua a
crescer, mais políticas públicas e reformas tornam-se necessárias a fim de atender as
populações que habitam tais áreas.614
Analisando-se tais diretrizes observa-se a existência de uma grande preocupação em se
garantir condições para que a vida continue a se desenvolver de forma harmônica, permitindo613
614
Art. 3º, III, IV e V da lei 10.257, de 10 de julho de 2001.
GIDDENS, op. cit., 2004. p. 575.
207
se o progresso, sem, contudo, eliminar os recursos ambientais. Por esta razão, a necessidade
de ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a poluição e a degradação
ambiental. Para TORRES, a transferência para os Municípios da operacionalização,
implantação e gerenciamento de políticas públicas trouxe um fortalecimento desses entes.615
Do mesmo modo, a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente e a
proteção ao patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico encontram-se
inseridas no Estatuto da Cidade.
O Estatuto da Cidade criou uma série de instrumentos para a realização de sua política
urbana. Entre eles é possível citar-se: o planejamento municipal; o parcelamento, edificação
ou utilização compulsórios; o IPTU progressivo no tempo; a desapropriação com pagamento
em títulos; a usucapião especial de imóvel urbano; a concessão de uso especial para fins de
moradia; o direito de superfície; o direito de preempção; a outorga onerosa do direito de
construir; as operações urbanas consorciadas; a transferência do direito de construir; o estudo
de impacto de vizinhança, além de outros institutos tributários, financeiros, jurídicos, etc.616
Tal atuação estatal é importante, na medida em que a garantia do direito à moradia
exige uma atuação positiva do Estado por meio da promoção de política pública urbana e
habitacional.617 Sobre o tema JAMPAULO JUNIOR conclui:
[...] a questão urbana está diretamente ligada ao poder local. As decisões no plano
urbanístico devem obediência ao princípio da Soberania Popular e a efetiva
participação da população (gestão democrática da cidade). A cidade possui caráter
instrumental para o direito à qualidade de vida.618
Dentro desta ótica, o Plano Diretor constitui-se como instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana. A Lei nº 12.608/12 introduziu importantes
modificações no Estatuto da Cidade, de modo a traçar regras para Municípios com áreas
suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou
processos geológicos ou hidrológicos correlatos. Desta forma, tais Municípios deverão
615
TORRES, M. D. de F. Estado democracia e administração publica no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
p. 67.
616
COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. Direito municipal contemporâneo: estatuto da cidade enquanto
instrumento de proteção ambiental. In: CONGRESSSO BRASILEIRO DE ADVOCACIA PÚBLICA, 15., 2011.
617
Neste sentido, veja: SAULE JUNIOR, op. cit., p. 92; e MARICATO, Emília. Política habitacional no Brasil:
crítica e perspectivas. Revista Projeto, São Paulo, p. 52-3.
618
JAMPAULO JÚNIOR, op. cit., p. 179.
208
elaborar planos diretores contendo uma série de medidas que possam contribuir na proteção
contra desastres.
Dentre elas, destaque-se o mapeamento das áreas suscetíveis à ocorrência de
deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou
hidrológicos correlatos. Trata-se de medida importante, de modo a permitir que o Município
tenha maior conhecimento acerca dos locais nos quais o risco de desastres é maior.
Outra medida elencada, e que deve constar no plano diretor, refere-se ao planejamento
de ações de intervenção preventiva e realocação de população de áreas de risco de desastre.
Novamente, observa-se a preocupação com a prevenção contra a ocorrência de desastres e a
proteção dos moradores de determinada área de risco.
O Plano Diretor dos Municípios nos quais haja risco de desastres deverá contemplar,
também, medidas de drenagem urbana necessárias à prevenção e à mitigação de impactos de
desastres. Além disso, o Plano Diretor deverá conter diretrizes para a regularização fundiária
de assentamentos urbanos irregulares, observadas as regras estabelecidas na lei no 11.977, de
7 de julho de 2009,619 e demais normas federais e estaduais pertinentes, além da previsão de
áreas para habitação de interesse social por meio da demarcação de zonas especiais de
interesse social e de outros instrumentos de política urbana, onde o uso habitacional for
permitido.620
Registre-se, ainda, que o art. 12 da Lei no 6.766, de 19 de dezembro de 1979 (lei de
parcelamento do solo urbano) também sofreu alterações por força da lei 12.608/2012. Assim,
nos termos do parágrafo 3o do citado artigo “é vedada a aprovação de projeto de loteamento e
desmembramento em áreas de risco definidas como não edificáveis, no Plano Diretor ou em
legislação dele derivada.” Trata-se de importante medida no sentido de evitar a construção de
moradias em locais sujeitos à ocorrência de desastres. Neste sentido, relate-se, ainda, que:
a partir de abril de 2014, nos Municípios inseridos no cadastro nacional de
Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto,
inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, a aprovação
619
A lei 11.977/2009 dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária
de assentamentos localizados em áreas urbanas e dá outras providências. Tal lei também acrescentou dois novos
institutos jurídicos aos instrumentos da política urbana estabelecida no Estatuto da cidade, denominados
“demarcação urbanística para fins de regularização fundiária” e “legitimação de posse.”
620
Art. 42-A da lei 10.257/2001, com redação dada pela lei 12.608/2012.
209
do projeto de parcelamento ficará vinculada ao atendimento dos requisitos
constantes da carta geotécnica de aptidão à urbanização. 621
Tem-se, assim, que a referida lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979, expressamente
vedou o parcelamento do solo em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de
tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; terrenos com declividade
igual ou superior a 30% (trinta por cento)622; terrenos nos quais as condições geológicas não
aconselham a edificação; e em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição
impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.623
Como se vê, procurou-se criar campo propício para que os Municípios planejem suas
ações, adotando medidas de caráter nitidamente preventivo, as quais poderão contribuir para a
redução do risco de desastres nestas áreas. Deste modo, se nas décadas de 1980 e 1990 a
participação dos Municípios em relação ao direito à moradia limitava-se à doação de terrenos
e dotação de infraestrutura para programas habitacionais promovidos em parceria com
governos estaduais,624 a Constituição de 1988 procurou valorizar o papel do Município,
tornando-o o ente responsável pela execução da política urbana, contando com o apoio do
Plano Diretor, podendo desempenhar papel importante na ordenação do solo e mapeamento
das áreas de risco. A propósito, registre-se que o Plano Diretor deve levar em consideração o
mapeamento das áreas com altos riscos de desastres na realização do microzoneamento
urbano e na definição de áreas: non aedificandi; aedificandi com restrições; aedificandi em
acordo com as posturas do Código de Obras do Município; de proteção; etc. Tratam-se de
medidas relevantes e que podem contribuir significativamente para a redução de desastres
nessas localidades.
4.2.2 Poder de polícia e efetividade na proteção contra desastres
O poder de polícia traduz-se em uma atividade da Administração Pública voltada a
condicionar direitos e garantias individuais, em benefício do bem-estar da coletividade.625
621
GANEM, Roseli Senna. Gestão de desastres no Brasil. Biblioteca Digital. Câmara dos Deputados, 2012, p.
19.
Disponível
em:
<http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/10496/gestao_desastres_
ganem.pdf?sequence=1>. Acesso em 20.11.2013
622
Salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes
623
Cf. art. 3º, parágrafo único da lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979
624
ROGUET, op. cit., p. 308.
625
FERNANDES, Paulo Victor. Impacto Ambiental: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005. p. 57.
210
Segundo estabelece o artigo 78 do Código Tributário Nacional, considera-se poder de polícia
a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou
liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público
concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do
mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do
Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais
ou coletivos. Trata-se, assim, de um poder conferido à Administração Púlbica a fim de
impedir que os abusos dos direitos pessoais possam perturbar ou ameaçar os interesses gerais
da coletividade.626
Em sede de desastres “naturais” hidrológicos tem-se que o poder de polícia deve
abranger a autorização para construção de residências, retirada de pessoas de áreas de risco e
seu subsequente alojamento, etc. Neste aspecto, observe-se que o papel fiscalizatório do
Município também foi enaltecido, cabendo a ele vistoriar edificações e áreas de risco e
promover, quando for o caso, a intervenção preventiva e a evacuação da população das áreas
de alto risco ou das edificações vulneráveis. Neste sentido, o artigo 3º-B, § 1o, da lei
12.340/2010 (com redação dada pela lei 12.608/2012) estabeleceu os procedimentos
necessários para a efetivação da remoção de edificações. Assim, é necessária a prévia
realização de vistoria no local e elaboração de laudo técnico que demonstre os riscos da
ocupação para a integridade física dos ocupantes ou de terceiros e a prévia notificação da
remoção aos ocupantes, a qual deverá estar acompanhada de cópia do laudo técnico e, quando
for o caso, de informações sobre as alternativas oferecidas pelo Poder Público para assegurar
seu direito à moradia.
Neste aspecto, destaque-se a importância do poder de polícia do ente público
municipal na proteção contra desastres hidrológicos. Isso porque, cabendo ao ente municipal
o ordenamento territorial urbano, deve ele utilizar-se do poder de polícia e dos atributos a ele
inerentes a fim de coibir a instalação de pessoas em áreas de risco, bem como efetivar a
remoção da população que se encontre nestas áreas, instalando-as em áreas adequadas ou, em
último caso, em abrigos. Assim, o Município deve, aos olhos do “direito de proteção contra
desastres” ter permissão legislativa e administrativa para agir em prol desse objetivo: a
prevenção de desastres e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. Tal poder, se
626
MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno: de acordo com a EC 19/98. 4. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003. p. 394-6. BRAZ, Petrônio. Atos administrativos. Leme: LED, 1997. p. 36-7; JUSTEN
FILHO, op. cit., p 385
211
exercido de forma disciplinada e criteriosa, dentro de uma política pública preventiva pode
contribuir significativamente para a redução do número de vítimas em decorrência de
desastres hidrológicos.
Contudo, na medida em que o direito à liberdade e o direito à moradia também
constituem-se como direitos fundamentais, a atuação do Poder Público, por meio do poder de
polícia, não raras vezes, acaba sendo limitada. Isso porque a remoção de pessoas de suas casas
(não obstante o objetivo seja protegê-las contra o risco de desastres) esbarra na proteção do
direito à liberdade e moradia. Deste modo, tem-se que o poder de polícia decorre da existência
de um interesse público que justifique a limitação de um direito do indivíduo, sendo
necessário que o exercício desse poder seja balizado por princípios jurídicos que lhe dão
contorno e orientam sua atuação, respeitando-se os direitos e liberdades civis dos cidadãos.627
Assim,
é fundamental que o Poder Público tenha condições de oferecer locais
apropriados para que as pessoas que vivem em áreas de risco possam ficar na iminência de
um desastre ou após sua ocorrência, mantendo-se íntegra a dignidade da pessoa humana, sob
pena de violar-se ainda mais os direitos fundamentais do indivíduo.
Deste modo, tem-se que, com relação à atuação dos governos municipais com vistas à
resiliência das cidades contra os impactos da mudança climática, são consideradas medidas
essenciais: a redução dos riscos advindos deles e de outros perigos ambientais; a atuação em
benefício das pessoas que estão mais expostas à mudança climática e outros
perigos
ambientais; o estabelecimento de uma forte base de conhecimento local sobre as
variabilidades climáticas e prováveis impactos locais causados pela mudança climática; o
incentivo e apoio de ações que reduzam os riscos e vulnerabilidades; a atuação em parceria
entre o Município e os moradores de regiões mais suscetíveis a desastres hidrológicos,
incentivando políticas públicas governamentais voltadas à adaptação da comunidade em
relação aos efeitos da mudança do clima. 628
4.3 ESTUDO DE CASO: INSTRUMENTOS UTILIZADOS PELA PREFEITURA DE
BELO HORIZONTE NA PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES
627
LAVIEILLE, op. cit., p. 273.
A adaptação às mudanças climáticas pode atender também às metas de desenvolvimento em cidades de países
em desenvolvimento?. In: CIVIS, nº 2 - Outubro 2009, p. 7-8. Disponível em: <http://citiesalliance.org/
sites/citiesalliance.org/files/CIVIS_2_Portuguese.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2013.
628
212
A análise dos dados constantes no ATLAS 1991-2010 - Secretaria Nacional de Defesa
Civil demonstra que a maioria absoluta das mortes relacionadas a desastres naturais
hidrológicos ocorreram na Região Sudeste,629 sendo certo que o maior número de mortos
ocorreu no Estado de Minas Gerais. Desse modo, optou-se pela realização de uma pesquisa de
campo junto à capital do referido Estado.630
Outro fato importante para a utilização do Município de Belo Horizonte deve-se a
análise dos dados constantes no Atlas Brasileiro de Desastres Naturais 1991 a 2010. Segundo
os dados constantes no referido atlas, o Estado de Minas Gerais foi o Estado com maior
número de mortes em decorrência de inundações (584 mortes no período)631. A análise
demonstrou, ainda, que Belo Horizonte foi o Município que apresentou maior número de
afetados por inundações bruscas nas cinco vezes em que decretou situação de emergência por
desastres de inundações bruscas e alagamentos registradas em bairros do perímetro urbano.632
Do mesmo modo, Belo Horizonte é o Município com maior número de afetados em
decorrência de movimentos de massa: 200.000 pessoas.
Tal predominância deve-se, entre outros fatores, as grandes áreas de vilas e favelas
com ocupação irregular, aliadas às características geomorfológicas e litoestruturais, com altas
declividades.633 Deste modo, a cidade de Belo Horizonte, em consequência de sua bacia
hidrográfica e sua topografia acidentada, convive com a ocupação de algumas áreas e
encostas e baixadas, sujeitas à ocorrência de desastres hidrológicos.634
Segundo asseverou o referido atlas, a grande quantidade de afetados em Belo
Horizonte em razão de inundações (299.200 habitantes) pode estar relacionada a uma
drenagem ineficiente das águas precipitadas, aliada ao alto índice de ocupação humana, o que
629
Das 3.494 mortes ocorridas no País no período analisado (1991 a 2010), 2.436 (70%) ocorreram na região
sudeste. Do mesmo modo, das 1.069 mortes relacionadas à inundação brusca e alagamento 543 (51%) ocorreram
na região sudeste. A mesma predominância é observada nas hipóteses de inundação gradual, nas quais das 461
mortes registradas no período, 274 (59%) ocorreram na Região Sudeste. Inserindo-se as mortes decorrentes de
movimento de massa (505) observa-se que 500 (95%) das mortes ocorreram na Região Sudeste
630
Igualmente, foi efetuado contado com as secretarias municipais de defesa civil das demais capitais da Região
Sudeste, não tendo havido (até a conclusão da presente tese) o recebimento de respostas aos questionamentos
formulados
631
Desse total, o maior número de mortos ocorreu no município de Munhoz, situado na Mesorregião
Sul/Suldoeste do Estado de Minas Gerais, com 441 óbitos.
632
BRASIL, atlas... op. cit., 2011. p. 46.
633
BRASIL, atlas... op. cit., 2011. p. 69.
634
BELO HORIZONTE. Prefeitura. Plano de contingência para enfrentamento de desastres no município.
Belo Horizonte, 2011. p. 4.
213
contribui para o aumento da impermeabilização do solo e, consequentemente, para a
ocorrência de alagamentos e inundações bruscas.635
Outro fator importante para a utilização da capital Belo Horizonte como “estudo de
caso” refere-se aos resultados recentes daquela Capital, sendo certo que nos últimos três anos
houve o registro de uma morte por ano em decorrência de desastres hidrológicos. A redução
do número de vítimas em Belo Horizonte, deve-se, dentre outros fatores, à realização de
vistorias individuais nas moradias em áreas de risco, ações preventivas e corretivas. As
vistorias realizadas pela secretaria municipal de Defesa Civil também constituem-se como um
importante instrumento na prevenção contra a ocorrência de desastres. Tais vistorias
desembocam na elaboração de um relatório informando ao morador as intervenções
pertinentes e imprescindíveis em relação ao referido imóvel. Do mesmo modo, podem ser
expedidas notificações, nas hipóteses em que se constate risco de desastres, para que o
responsável pelo imóvel apresente laudo de estabilidade da edificação.636
Por fim, a Prefeitura de Belo Horizonte foi utilizada como parâmetro tendo em vista a
mesma ter sido vencedora do “Prêmio Sasakawa 2013, da ONU”, voltado para a Redução de
Riscos de Desastres. Trata-se de um prêmio de incentivo à Redução de Riscos de Desastres e
que valoriza ações relacionadas à atuação das sociedades com relação à prevenção e
planejamento em sede de desastres. A questão central é verificar como as sociedades se
organizam para mitigar os impactos.637 O Plano Diretor de Defesa Civil e o Plano de
Contingência para Enfrentamento de Desastres em Belo Horizonte foi instituído por meio do
decreto nº 14.879, de 2 de abril de 2012. Tal decreto considerou o dever do estado em
promover a proteção civil da população contra desastres naturais ou provocados pelo próprio
ser humano; a necessidade de se estabelecer diretrizes para o planejamento, coordenação,
execução e controle das atividades de Defesa Civil em Belo Horizonte, numa perspectiva de
atuação sistêmica, envolvendo todos os segmentos públicos, privados e a comunidade com o
objetivo de reduzir as ameaças e vulnerabilidade, os danos humanos, materiais, ambientais e
os prejuízos econômicos e sociais decorrentes da ocorrência de desastres; e a necessidade de
se dimensionar o Sistema Municipal de Defesa Civil - SIMDEC, capacitando-o e preparandoo para atuar em todos os tipos de desastres que ocorrem no Município.
635
BRASIL, atlas... op. cit., 2011. p. 46.
BELO HORIZONTE, op. cit., p. 18.
637
Disponível em: <http://www.onu.org.br/onu-abre-inscricoes-ate-28-de-fevereiro-para-premio-de-incentivo-areducao-de-riscos-de-desastres/>. Acesso em: 01 jul. 2013.
636
214
Neste aspecto, outro diferencial existente no Município de Belo Horizonte e que,
possivelmente, contribuiu para a diminuição dos danos relacionados a desastres na capital
mineira refere-se a efetiva estruturação e funcionamento do Conselho Municipal de Defesa
Civil, se comparado a outros Municípios. Segundo consta do Relatório de Gestão 2008 da
SEDEC, apesar de 77% dos Municípios possuírem coordenadorias de Defesa Civil ou órgãos
semelhantes, estes não se encontram estruturados para atuar por ocasião de desastres, sendo
certo que, apesar da Defesa Civil estar presente em cerca de quatro mil cidades, tem-se que,
em aproximadamente três mil delas, o departamento existe apenas “no papel". 638 Tal situação
pode ser explicada em razão da necessidade de existência formal do referido órgão para que o
Município tivesse acesso a recursos da Sedec em casos de emergências causadas por desastres
naturais.639
Preocupada com a prevenção contra desastres, foram adotadas pela prefeitura de Belo
Horizonte uma série de ações em alinhamento com o Marco de Hyogo. Assim, criou-se uma
legislação que institucionaliza a prevenção de riscos, além da criação de estruturas
institucionais de redução de risco e Políticas públicas bem definidas com grandes
investimentos tanto em infraestrutura quanto na aproximação com a comunidade em risco.
Assim, a prefeitura de Belo Horizonte criou uma Central de Gerenciamento de crise,
composta por diversas secretarias. Desta central participam: o secretário de segurança urbana
e patrimonial, o se secretário de obras e infraestrutura, o secretário de políticas sociais, o
secretário de saúde, o secretário de serviços urbanos, dentre outros. 640 Frise-se, também, a
criação de um fundo municipal de calamidade pública, com recursos destinados à assistência
e resposta aos desastres recorrentes na cidade.
No que se refere às estruturas institucionais de gestão de riscos, cada Regional criou
uma gerência de gestão de riscos. Assim, com o objetivo de ter-se uma visão sistêmica acerca
das questões relacionadas ao risco de desastres, foi criado o GEAR - Grupo Executivo de
Áreas de Risco, o qual congrega todos os gestores públicos e de empresas com vocação para a
prevenção e resposta aos desastres. Tal grupo reúne-se semanalmente, são socializadas as
necessidades de recuperação dos desastres acontecidos, a previsão meteorológica para a
semana seguinte e as necessidades de intervenções preventivas para os prováveis eventos
adversos previstos. As soluções são construídas em conjunto, com contribuição técnica,
638
Neste sentido, veja-se reportagem publicada no Jornal “O Estado de São Paulo”, em 3/2/2010
Dados extraídos do relatório constante do TC 000.741/2011-6
640
BELO HORIZONTE op. cit., p. 10-11.
639
215
logística e material daqueles que tem vocação e possibilidade para atuar. Ações e prazos são
estabelecidos e na reunião seguinte são verificados os andamentos e resultados práticos
pactuados.
Em sintonia com o Marco de ação de Hyogo, o Município de Belo Horizonte tem
procurado identificar, avaliar e observar de perto os riscos dos desastres e melhorar os alertas
previamente. Tal ação tem sido realizada por meio da criação de um mapeamento de risco
geológico, identificando moradia por moradia, atualizado. Acrescente-se, ainda, a existência
de uma carta de inundação da cidade, segundo modelos matemáticos, e identificando 80
pontos de inundação e alagamentos.
A prefeitura também investiu na implantação de um moderno sistema de
monitoramento e emissão de avisos com vistas à redução dos prejuízos humanos, materiais e
sociais.641 Assim, Belo Horizonte conta com diversas estações hidrofluviométricas, que
aliadas a outras tecnologias, permitem emissão de alertas mais precisos.
Destaque-se, também, a existência de uma importante parceria com a imprensa, que
divulga os alertas emitidos, inclusive com as recomendações preventivas. Do mesmo modo, o
sistema de alertas tem evoluído com o uso de tecnologias, tais como SMS, redes sociais, etc.,
as quais têm contribuído para que a população tenha conhecimento prévio acerca de eventuais
desastres hidrológicos, tendo tempo para adotar as medidas necessárias à proteção de sua vida
e outros direitos fundamentais.
Com vistas à redução dos riscos de desastres, o mapeamento de risco tem sido feito em
parceria com a comunidade, aproveitando o conhecimento e a percepção do risco daqueles
que moram em áreas vulneráveis. Registre-se, ainda, que o mapeamento de riscos tem
constatado a diminuição do número de residências construídas em áreas de risco “alto” ou
“muito alto” de desastres.642 Tal diminuição traz consequências diretas para a redução do
risco de desastres, na medida em que afasta as pessoas de tais áreas.
Outra ação em alinhamento com o marco de Hyogo refere-se à utilização do
conhecimento, da inovação e da educação para criar uma cultura de segurança e resiliência em
todos os níveis. Assim, a elaboração de planos de contingência em conjunto com a
641
BELO HORIZONTE, op. cit., p. 5-6.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Defesa Civil havia, na década de 1990, 15.650 residências em
áreas de risco “alto” ou “muito alto” de desastres. Em 2011 esse número há havia sido reduzido para 2.671
residências.
642
216
comunidade possibilitou maior alcance dos alertas prévios e melhoria nas ações preventivas
nas áreas de risco. Do mesmo modo, o treinamento das comunidades, em conjunto com outros
atores que podem contribuir para a prevenção e resiliência das comunidades em risco (tais
como Associações de Profissionais especializados em geologia, engenharia e perícias) e a
formação de parcerias com universidades para que alunos participem das vistorias e
pesquisem sobre as questões do risco na cidade têm contribuído para a criação dessa cultura
de segurança e resiliência. A inserção da comunidade na formulação de políticas públicas e
ações protetivas possibilita um maior envolvimento dessa comunidade com os problemas
enfrentados e, consequentemente, estimula o surgimento de uma “cultura de proteção contra
desastres” na qual Poder Público, cidadãos e sociedade civil organizada se unem na busca de
soluções eficazes para os problemas vivenciados.
A Redução dos fatores fundamentais de risco também se constitui como uma ação em
alinhamento com o marco de Hyogo. Assim, observa-se em Belo Horizonte uma robusta
política de redução de risco, com intervenções estruturais simples com mutirões comunitários
e também com intervenções complexas através de obras estruturantes nas áreas de risco
geológico.643
A quinta ação praticada em sintonia com o Marco de Hyogo refere-se ao
fortalecimento da preparação contra desastres para uma resposta eficaz em todos os níveis.
Nesse aspecto, ganham destaque: a) a existência de um Plano de Contingências atualizado e
distribuído à comunidade. b) a capacitação e o treinamento de comunidades em áreas de
Risco; c) a organização e o abastecimento de depósitos de assistência humanitária. d) a
capacitação e a atualização dos Gestores das Regionais e do Sistema de Políticas Sociais. e) o
Investimento em aquisição de novas viaturas para a Defesa Civil; f) a atuação sistêmica com
Corpo de Bombeiros e Defesa Civil Estadual e nacional fortalecida através de capacitação e
definição de processos de integração. g) A manutenção dos recursos destinados ao Fundo de
Calamidade Pública.
Os resultados alcançados por Belo Horizonte são explícitos na ausência de mortes em
deslizamentos de terra desde 2003 e o baixo índice de mortes nas inundações nos últimos 3
anos.644 Os resultados são ótimos em função do pensamento sistêmico de proteção civil, de tal
643
Segundo informou o Coordenador Municipal de Defesa Civil, os investimentos previstos por ano para
redução do risco de inundações têm ultrapassado a cifra de R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais)
644
Segundo registros da Secretaria Municipal de Defesa Civil de Belo Horizonte, houve uma morte por ano no
período.
217
forma que todos os órgãos públicos municipais pensam em políticas de redução e gestão de
riscos. Há estruturas institucionais específicas, com orçamentos específicos para redução e
gestão de risco. Mapeamentos de riscos e monitoramento com emissão de alertas são ações
importantes. Plano de contingências para desastres na cidade é robusto e atualizado
anualmente.645
Registre-se, ainda, outra medida adotada pela prefeitura de Belo Horizonte: a
elaboração do Plano Diretor de drenagem urbana, o qual subdividiu o território do Município
em diversas bacias elementares, além de propor novos conceitos e diretrizes para o
enfrentamento das inundações na cidade. Criou-se, também, núcleos de alerta de chuva, os
quais traduziram-se em um canal de dialogo direto com a população atingida pelas
inundações, visando sua proteção.646
Segundo informação obtida junto ao Secretário Municipal de Defesa Civil de Belo
Horizonte, Coronel Alexandre Lucas Alves, há uma forte mobilização comunitária, com
aproveitamento da percepção de risco dos moradores para construção de medidas de auto
proteção, proteção comunitária e intervenções estruturais. Todas as recomendações do Marco
de Hyogo são cumpridas com sólidas políticas públicas consolidadas.
Assim, a adoção de políticas públicas voltadas para a prevenção contra desastres,
eliminando (ou mitigando) os fatores de risco, é um mecanismo importante para a efetiva
proteção do direito fundamental de proteção contra desastres. Assim, no início da década de
1990, Belo Horizonte contava com 15.000 moradias localizadas em áreas de risco alto ou
muito alto. Por meio do Programa Estrutural em áreas de risco esse número diminuiu para
2.700 no ano 2010.
Todavia, tendo em vista a existência de uma tendência mundial em relação ao aumento
dos desastres em razão do desenvolvimento da sociedade de risco (consoante argumentos
apresentados na presente tese) tem-se como de suma importância a implementação de
medidas preventivas, de modo a procurar mitigar a ocorrência de desastres (e, em especial,
dos desastres hidrológicos – que são os mais recorrentes no território brasileiro).
645
Informações fornecidas pelo Secretário Municipal de Defesa Civil de Belo Horizonte, Cel. Alexandre Lucas
Alves.
646
BELO HORIZONTE, op. cit., p. 5.
218
Assim, o Município de Belo Horizonte indicou como medidas necessárias: a
manutenção de uma cultura sistêmica de proteção civil, com a efetiva participação de gestores
e comunidade nas reuniões. Dentre os fatores que dificultam a efetiva proteção do direito
fundamental de proteção contra os desastres destacam-se as dificuldades orçamentárias e o
planejamento deficitário. São fatores que precisam ser levados em conta pelo administrador
público a fim de permitir a adequada proteção dos direitos fundamentais. Aliás, o problema da
eficácia dos direitos fundamentais e, principalmente, dos direitos sociais prestacionais, deve
merecer relevante atenção no âmbito dos três Poderes, para que comece a se produzir no
mundo dos fatos o que já se garantiu normativamente na Constituição.647 Proteger os direitos
fundamentais de forma efetiva é um dever do qual o Poder Público não pode imiscuir-se.
É certo que os resultados positivos obtidos pela Prefeitura de Belo Horizonte não
garantem ser essa a melhor solução para a proteção dos cidadãos contra a ocorrência de
desastres naturais hidrológicos. Contudo, tais medidas demonstram uma diminuição no
número de vítimas em decorrência de tais desastres, não obstante o aumento na ocorrência de
tais eventos seja uma tendência mundial, consoante os dados apresentados na presente tese.
Assim, a atuação proativa da municipalidade, aliada à participação da sociedade na proteção
contra a ocorrência de desastres demonstrou ser medida eficaz na manutenção da dignidade da
pessoa humana e preservação dos direitos fundamentais.
Ainda com relação à proteção dos direitos fundamentais, o coordenador da Secretaria
Municipal de Defesa Civil relatou um caso emblemático: existe em Belo Horizonte uma área
com alto risco de deslizamentos, com 69 famílias ameaçadas. A prefeitura ingressou com uma
medida liminar para retirada compulsória de tais famílias. Tal liminar foi cassada pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o risco de um desastre nesta área ainda persiste. E o
mais interessante: tramita em Belo Horizonte uma ação civil pública contra o munícipio
pleiteando a retirada dessas famílias da referida área, em razão de degradação de área de
preservação permanente. Trata-se de uma discussão complexa, na medida em que envolve
diferentes direitos fundamentais em colisão no caso concreto, uma vez que o exercício de um
direito fundamental colide com o exercício de outro direito fundamental também protegido
pelo ordenamento jurídico.648 Por esta razão predomina o entendimento de que deve-se obter
647
PESSANHA, Érica. A eficácia dos direitos sociais prestacionais. Revista da Faculdade de Direito de
Campos, ano 7, n. 8, jun. p. 307, 2006. Disponível em: <(http://fdc.br/Arquivos/ Mestrado/
Revistas/Revista08/Discente/Erica.pdf)>. Acesso em: 8 out. 2013.
648
ALEXY, op. cit., 2012. p. 93.
219
o consentimento livre e informado daqueles que serão deslocados.649 Ademais, rememore-se
que toda e qualquer restrição à eficácia de normas de direitos fundamental só será possível na
hipótese de colisão com outros direitos da mesma natureza, ou seja: na hipótese de colisão
entre direitos fundamentais.650 Para isso é necessário, além de um juízo de oportunidade e
conveniência, de uma análise de razoabilidade e proporcionalidade na medida a ser
implementada.
Neste aspecto, ressalte-se que o Principio nº 6 dos Princípios Orientadores relativos
aos Deslocados Internos, relativo aos Deslocados Internos, estabelece que todo o ser humano
tem o direito de ser protegido contra a deslocação arbitrária da sua casa ou do seu local de
residência habitual. Assim, mesmo em casos de calamidades, a deslocação (ou retirada) do
indivíduo daquele local não será admitida, salvo se a segurança e a saúde dos afetados
exigirem sua pronta evacuação, devendo, ainda, tal deslocação restringir-se ao tempo mínimo
exigido pelas circunstâncias. Tal deslocamento só poderá ocorrer quando todas as alternativas
exequíveis já tiverem sido analisadas, de modo a se evitar a deslocação e, mesmo assim,
devem ser tomadas todas as medidas disponíveis para minimizar a deslocação e os seus
efeitos adversos.
BUENO, analisando a questão da sustentabilidade urbana apresenta uma série de
propostas voltadas para o planejamento e gestão urbana e orientação das políticas públicas
relacionadas com a adaptação do espaço intraurbano, de modo a diminuir sua vulnerabilidade
e permitir uma melhoria das condições de conforto ambiental, com um enfoque
socioambiental. Dentre as medidas por ele relacionadas, cite-se: a elaboração de planos de
ação nas microbacias urbanas, com a promoção de retenção, reuso e infiltração das águas
pluviais, requalificação dos fundos de vale urbanos, preservação dos fundos de vales
periurbanos e rurais; a urbanização e adequação de assentamentos precários e saneamento das
cidades;
produção de habitação social para promover as necessárias remoções; a
disseminação do uso da energia solar, sobretudo para aquecimento de água, direcionando-se a
energia elétrica para outras demandas que utilizam energia suja; políticas de controle da
expansão urbana; enriquecimento da arborização urbana – vias, paisagismo, equipamentos
públicos, quintais e jardins; a requalificação das áreas centrais e ociosas; a reciclagem de
649
Princípios Orientadores relativos aos Deslocados Internos.
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 195.
650
220
entulho para a construção civil, como forma de diminuir o uso de novos minérios e energia; a
reciclagem e correta destinação dos resíduos sólidos;651
4.4 CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO DE PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES
ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL
A luta pelos direitos surge em razão da existência de injustiças, tornando-se necessário
criar-se condições (materiais e imateriais) concretas que possibilitem o acesso aos bens
necessários para uma existência digna.652 Assim, tratando-se de um direito fundamental do ser
humano, a proteção contra desastres exige que a interpretação de suas normas e princípios
paute-se por uma hermenêutica concretizadora, com vistas à efetiva proteção de tal direito.
Deste modo, em razão das normas constitucionais estarem no ápice do ordenamento jurídico,
deve-se realizar uma atividade interpretativo-concretizadora em relação às mesmas.653
Nesta perspectiva, o “direito de proteção contra desastres” constitui-se como um
direito fundamental que tem por objetivo garantir a proteção da dignidade da pessoa humana
por meio de medidas que evitem a ocorrência de desastres ou (quando não for possível evitar
tal ocorrência) que possam mitigar os efeitos danosos decorrentes, garantindo a manutenção
de tal dignidade, defendendo os interesses fundamentais dos cidadãos. Ademais, tal proteção
abrange não apenas a vida e a saúde, mas “tudo aquilo que seja digno de proteção a partir do
ponto de vista dos direitos fundamentais.”654
Assim, surge para o ente público a tarefa de criar normas e regular situações jurídicas
tendentes a evitar e/ou minimizar o risco de desastres, sendo certo que “a principal
característica dos direitos fundamentais é o escopo de concretização do principio da dignidade
da pessoa humana.”655 E mesma autora ainda conclui no sentido de que qualquer direito que
seja essencial à concretização dos valores em pauta deve ser considerado como direito
fundamental.656
651
BUENO, Laura Machado de Mello. Reflexões sobre o futuro da sustentabilidade urbana a partir de um
enfoque socioambiental. Cadernos Metrópole (PUCSP), v. 19, p. 99-121, 2008.
652
FLORES, op. cit., p. 36
653
GALINDO, op. cit., p. 26.
654
ALEXY, op. cit., 2012, p. 450.
655
DALLARI, op. cit., p. 3-38.
656
Ibidem.
221
Contudo, tratando-se de direito de caráter nitidamente prestacional, a regulação
normativa nesta área é extremamente difícil. Sobre o tema, PINHEIRO elenca quais seriam,
em sua opinião, os três principais obstáculos para a eficácia e a efetividade dos direitos sociais
prestacionais. O primeiro deles refere-se ao conteúdo aberto e indeterminado dos preceitos
constitucionais que consagram tais direitos. Para o autor, a eficácia de tais normas
fundamentais dependerá da análise cautelosa das peculiaridades da situação posta, devendo-se
procurar a realização do direito em seu grau máximo. O segundo refere-se a cláusula da
reserva do financeiramente possível e, finalmente, a falta de legitimidade democrática dos
juízes para interferir na formulação e execução de políticas públicas.657
No tocante à proteção contra desastres observe-se que, apesar de muitos defenderem
que a proteção do direito à moradia (e, por interpretação constitucional, o direito a uma
moradia digna, protegida contra a ocorrência de desastres) constitui-se como mera norma
programática, há de se ter em mente que tal proteção constitui-se como direito fundamental do
indivíduo, devendo o Estado buscar instrumentos e alternativas que possibilitem a efetivação
desse direito. Isso porque, conforme apresentado nesta tese, o direito de proteção contra
desastres constitui-se como um direito fundamental do ser humano, sendo certo que o
surgimento de novos direitos encontra-se relacionado ao aumento da demanda da cidadania,
exigindo-se uma maior intervenção do Estado no domínio econômico.”658
Por outro lado, não obstante o direito de proteção contra desastres seja um direito
fundamental diretamente relacionado a outros direitos (tais como o direito à vida, saúde e a
dignidade da pessoa humana) é impossível evitar a ocorrência de todo e qualquer desastre.
Isso porque os desastres encontram-se relacionados a diversos fatores, tais como aspectos
geográficos, geológicos, climáticos, etc. Do mesmo modo, seu surgimento ou agravamento
deriva de interferências decorrentes da ação da natureza e da ação humana sobre o meio
ambiente. Assim, a depender da forma como esses elementos se relacionam os riscos de
desastres poderão ser maiores ou menores, porém a eliminação total do risco é algo
praticamente inatingível. Neste aspecto, CARVALHO ressalta a “importância das condições
ambientais essenciais para a concretização dos direitos a vida, à propriedade e à saúde”659
A proteção contra desastres guarda relação com diversas outras áreas do conhecimento
(jurídico e extrajurídico). No que tange aos aspectos jurídicos, observe-se sua relação com o
657
PINHEIRO, op. cit., p. 182-3.
BUCCI, op. cit., 2006. p. 5.
659
CARVALHO, op. cit., 2008. p. 29.
658
222
direito de proteção ao meio ambiente, o direito urbanístico, o direito administrativo, o direito
constitucional, o direito civil, etc.
Com relação ao direito ambiental, a primeira aproximação entre o meio ambiente e os
desastres refere-se à dimensão internacional dos mesmos. Os desastres, em sua maioria,
encontram-se diretamente relacionados às ações da natureza (podendo-se citar o efeito estufa,
o aquecimento global, etc.) e ações antrópicas que, não raras vezes, desrespeitam os limites
territoriais dos países. Assim, em razão da “transfronteiricidade” dos danos decorrentes de
desastres, princípios de direito internacional também devem ser a ele aplicados. Tal
“transfronteiricidade” decorre do fato de que ações praticadas por indivíduos ou instituições
em determinado local podem trazer consequências importantes sobre a vida de pessoas que
vivem em outros pontos do mundo.660
Assim, não é possível limitar os efeitos de um desastre a aspectos puramente
geográficos. Nessa linha, não obstante não se possa afirmar com certeza as causas do
aquecimento global, acredita-se que o aumento da temperatura terrestre têm causado as
principais catástrofes naturais no planeta.661. Neste aspecto, ganham relevância na proteção
contra desastres os princípios da proteção internacional da pessoa humana (princípio
nitidamente de caráter de direito humanitário) e da colaboração internacional (também
denominado de princípio da cooperação entre os povos). Por meio de tais princípios,
indivíduos e organismos internacionais procuram prestar imediata ajuda a autoridades locais
na defesa de cidadãos vítimas de algum tipo de desastre. Neste aspecto, é preciso o
desenvolvimento de políticas de defesa humanitária, propiciando segurança na entrega de
alimentos, materiais, medicamentos, e outros tipos de auxílios aos que necessitam.
Do mesmo modo, o direito à moradia e o direito à propriedade privada guardam
estreita relação com a proteção contra desastres e a dignidade da pessoa humana. Nesta linha,
cite-se o princípio da função socioambiental da propriedade, segundo o qual a propriedade
não pode oferecer riscos às demais pessoas, surgindo para o pode público o dever de intervir
com vistas à proteção dos interesses da coletividade. Acrescente-se, ainda, que os princípios
da precaução, da prevenção, do poluidor pagador, da responsabilidade, da cooperação
internacional, do meio ambiente equilibrado, dentre outros, também são aplicáveis às questões
relacionadas ao direito de proteção contra desastres. Deste modo, o princípio da consideração
660
661
GIDDENS, op. cit., 2004. p. 575.
GIDDENS, op. cit., 2004. p. 67.
223
da variável ambiental também deve ser aplicado no processo de tomada de decisão que
implique riscos para o meio ambiente ou que possa contribuir para a ocorrência de desastres.
No que se refere ao direito administrativo brasileiro, também é possível encontrar-se
diversos pontos de contato com o direito de proteção contra desastres. Dentre eles,
destaquem-se as medidas de caráter preventivo, tais como a fiscalização, vistoria, ordem,
notificação, autorização, licença, outorga de direito de uso, desocupação, retirada de famílias
de áreas de risco, etc. São medidas adotadas com o objetivo de eliminar ou mitigar o risco de
ocorrência de desastres futuros. O direito dos desastres também contempla medidas punitivas
(ou repressivas) tendentes a punir aqueles que desrespeitem suas regras e diretrizes.
Em sede de direito urbanístico, tem-se que este também possui vários pontos de
contato com o direito de proteção contra desastres. Isso porque a forma de ordenação da
cidade contribui para a ocorrência (ou não) de acidentes e desastres. Observe-se, também que o
direito urbanístico constitui-se como um conjunto de normas jurídicas, notadamente de natureza
administrativa, incidente sobre os fenômenos no Urbanismo e que tem como objeto o estudo das
normas que visem impor valores convivenciais na ocupação e utilização dos espaços
habitáveis.662Assim, o uso e ocupação do solo, bem como sua forma de utilização, são temas
que interessam tanto ao Direito Administrativo, quanto ao Direito urbanístico e ao Direito dos
Desastres.
Do exposto, observa-se que as normas jurídicas constituem-se como um instrumento
por meio do qual se estabelece caminhos para satisfazer, de um modo “normativo”, as
necessidade e demandas da sociedade.663 Nessa esteira, o direito de proteção contra os
desastres pode ser conceituado, sob o ponto de vista jurídico, como o conjunto de normas
jurídicas destinadas a prevenir, mitigar e evitar a ocorrência de desastres, bem como
destinadas a possibilitar o adequado socorro às pessoas afetadas e reconstrução da área
atingida, de modo a evitar desastres futuros, garantindo-se a manutenção da dignidade da
pessoa humana.
Outra peculiaridade inerente ao direito de proteção contra desastres refere-se a sua
característica multidisciplinar, dialogando com diversas áreas do conhecimento, tais como
engenharia, geografia, geologia, climatologia, etc. Deste modo, dadas as características e
662
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao direito ecológico e ao direito urbanístico:
instrumentos jurídicos para um futuro melhor. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 56.
663
FLORES, op. cit., p. 46
224
peculiaridades a ele inerentes, não é possível tratar-se a questão sob o viés exclusivo de um
único ramo do conhecimento científico. Desse modo, aspectos relacionados à geografia,
arquitetura, geologia, meteorologia, economia, sociologia, etc. também devem ser observados
na busca de soluções para o problema atinente aos desastres. Trata-se, assim, de um sistema
complexo e inter-relacionado, com princípios oriundos de diversos ramos da ciência,
requerendo, portanto, uma teoria própria, tendo o indivíduo como o centro das suas
preocupações.
Com base neste pensamento, tem-se que a proteção contra os desastres (e, em especial,
os desastres “naturais” hidrológicos) coaduna-se com os princípios e regras atinentes à
proteção dos direitos fundamentais. Aliás, observe-se que, quando o titular de um direito
fundamental possui um direito em face do Estado, no sentido de que este realize determinada
ação positiva, é correto dizer-se que o Estado tem, em relação ao indivíduo, o dever de
realizar determinada ação. Assim, sempre que houver uma relação constitucional desse tipo
poderá o cidadão exigir judicialmente o cumprimento desse direito.664
Os direitos fundamentais possuem como característica um alto grau de evolutividade,
ou seja: os direitos fundamentais tendem a se ampliar e a se expandir ao longo do tempo.
Tanto que um dos princípios a eles relacionados refere-se à proibição de retrocesso. Em outras
palavras, na medida em que os direitos fundamentais se constituem como direitos
conquistados pelo ser humano, tendem eles a serem ampliados na medida em que a sociedade
se desenvolve e evolui.
Tratar o direito de proteção contra desastres como um direito fundamental do ser
humano constitui-se em medida salutar para a maior eficácia de sua adequada tutela jurídica.
Ademais, a proteção contra desastres (por meio de medidas preventivas e recuperativas) visa,
em última análise, resguardar a dignidade da pessoa humana, que é o princípio central em
torno do qual a teoria dos direitos humanos e dos direitos fundamentais foi construída. Logo,
criar mecanismos que permitam a adequada proteção do cidadão diante da possibilidade da
ocorrência de um desastre natural hidrológico, dentre outros, constitui-se em alternativa válida
e eficaz para a efetividade de tal proteção.
A atuação do Poder Público e o planejamento realizado em parceria com a sociedade
podem contribuir imensamente para a efetiva proteção do ser humano contra a ocorrência de
664
ALEXY, op. cit., 2012. p. 445.
225
desastres. Logo, pode-se afirmar que a concretização dos direitos sociais exige uma atuação
eficaz do Poder Público, bem como da implementação de políticas eficazes, a serem
elaboradas e realizadas pelo Estado, em parceria com a sociedade civil. 665 No mesmo sentido
tem-se que, para enfrentar os desafios ambientais, deve-se procurar ultrapassar a atuação
estritamente legislativa passando-se a utilizar uma abordagem estratégica.666 Tal atuação visa
aglutinar esforços em prol da proteção contra o risco de desastres hidrológicos e protegendo
os direitos fundamentais dos indivíduos.
A concretização do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental
do ser humano exige, não apenas, o seu reconhecimento jurídico e a criação de normas
específicas para sua proteção (com a aplicação de princípios correlatos), mas, também, exige
uma reflexão sobre como assegurar a proteção dos direitos fundamentais em momentos de
crise, tal como ocorre nas hipóteses de desastres hidrológicos.
O decreto no 592, de 6 de
julho de 1992, promulga, no Brasil, a obrigatoriedade de observância e cumprimento do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, no âmbito do território brasileiro. Assim, em
conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, determinou-se a
necessidade de se criar condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e
políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais. Neste aspecto, frise-se
que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana, sendo certo que não se
admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou
vigentes em qualquer Estado.667 É importante também mencionar que, mesmo na hipótese em
que situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente
(tal como ocorre nas hipóteses de estado de defesa e estado de sítio, entre outras) apesar do
Estado poder adotar medidas extremas, tais medidas devem restringir-se ao mínimo exigido
pela situação não podendo, em nenhuma hipótese, autorizar qualquer suspensão do direito à
vida, liberdade, segurança e integridade física. Porém, fica a questão: como assegurar a
proteção dos direitos fundamentais em momentos de desastre? Como conferir concretude e
efetividade à proteção contra desastres?
FLORES critica a concepção usual no sentido de que os direitos humanos se
consubstanciariam no “direito a ter direitos”. Para ele, mais do que ter direitos é necessário
discutir-se quais bens tais direitos devem garantir, além das condições materiais necessárias
665
SMANIO, op. cit., 2013. p. 3.
SILVA, Solange teles da. Aspectos da futura política brasileira de gestão de resíduos sólidos à luz da
experiência européia. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, ano 8, n. 30, p. 61, abr./jun. 2003.
667
Cf. artigo 5, 2 do decreto no 592, de 6 de julho de 1992
666
226
para exigir ou colocar tais direitos em prática, bem como as lutas sociais que devem ser
colocadas em prática para que se possa garantir um acesso mais justo para que todos possuam
uma vida digna.668 Nesta mesma linha, BOBBIO entende que o problema central a ser
enfrentado refere-se às medidas a serem implementadas para a efetiva proteção dos direitos
fundamentais.669 Tal concretização exige a criação de condições que permitam o gozo de seus
direitos civis e políticos, podendo-se falar em quatro grupos de direitos humanos: direitos
referentes à segurança e integridade física e proteção contra agressão ou violência; direitos
relativos às necessidades fundamentais da vida (alimentação e água); direitos relativos as
outras necessidades de proteção econômica, social e cultural e; direitos referentes a proteção
dos outros direitos civis e políticos (direito a documentos pessoais de identificação, o direito a
participação política).670
Assim, a visualização da proteção contra desastres enquanto um direito fundamental
do indivíduo pode contribuir para a redução dos efeitos dos desastres, na medida em que se
passa a exigir do estado uma preocupação maior com a situação enfrentada e,
consequentemente, uma maior atuação em relação aos desastres, contribuindo para sua
concretização enquanto direito de tal natureza. Contudo, em que pese a importância do
reconhecimento de tal atributo ao direito de proteção contra desastres, sua simples inclusão no
rol de direitos fundamentais, não é suficiente para sua adequada proteção jurídica. Há, assim,
a necessidade de atribuir-se maior eficácia e efetividade na sua tutela jurídica, possibilitando
uma maior resiliência dos Municípios em relação a eventos dessa natureza, o que pode ser
obtido por meio de políticas públicas, planejamento, participação popular e medidas concretas
em prol da proteção contra desastres hidrológicos. Ademais, consoante assevera FLORES, os
direitos fundamentais devem ser garantidos não apenas por meio de normas jurídicas, mas,
também, por políticas públicas e por uma economia aberta às exigências da dignidade.671
4.5 A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO E DA PREVENÇÃO PARA A PROTEÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
668
FLORES, op. cit., p. 33
BOBBIO, op. cit., p. 37
670
HUMAN RIGHTS AND NATURAL DISASTERS. Operational Guidelines and Field Manual on Human
Rights Protection in Situations of Natural Disaster. Washington, DC: Brookings-Bern Project on International
Displacement, 2008. Disponível em: <http://www.brookings.edu/~/media/research/files/reports/2008/5/
spring%20natural%20disasters/spring_natural_disasters.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2013.
671
FLORES, op. cit., p. 39
669
227
Tratando-se de um direito fundamental do indivíduo, de caráter prestacional, a atuação
estatal em defesa do mesmo é medida crucial para a efetiva proteção do indivíduo contra a
ocorrência de desastres. Assim, as ações preventivas são, sem dúvida, as que podem trazer
maiores benefícios para toda a sociedade, eis que evitam a ocorrência de desastres ou
minimizam seus efeitos (na hipótese de não ser possível evitá-los). Segundo SILVA, em razão
da incerteza científica, o princípio da precaução tem como objetivo direcionar o Poder
Público e a sociedade a buscarem o conhecimento aprofundado do que já se sabe com vistas a
desvendar o que ainda não se sabe. 672
As medidas preventivas constituem-se como ações relativas à prevenção de desastres,
buscando promover a redução da vulnerabilidade de determinada comunidade ou região ao
risco de desastres. Já as denominadas medidas recuperativas abrangem as ações de resposta e
reconstrução, as quais encontram-se relacionadas com a reconstrução da situação de
normalidade, isto é, referem-se ao momento do evento e após sua ocorrência.
Segundo a Representante Especial da ONU para a Redução do Risco de
Desastres, Margareta Wahlström, chefe da UNISDR (United Nations Office for Disaster Risk
Reduction - Escritório da ONU para a Redução de Riscos de Desastres), o principal obstáculo
para a prevenção de catástrofes é o reconhecimento de que os desastres ocorrem dentro de
cenários previsíveis, razão pela qual as Nações devem planejar e estar preparadas para sua
ocorrência.673 Assim, para a eficácia da proteção contra desastres é necessário que as ações
sejam realizadas antes da ocorrência de desastres, de modo a preparar a população para lhe
dar com um evento futuro. Neste aspecto, “a redução dos riscos de desastres gera muitos
benefícios econômicos, ambientais e sociais”.674Logo, deve-se dar preferência para as ações
de prevenção, em razão dos benefícios delas advindos. Fala-se, assim, em medidas
preventivas.
RIBEIRO ensina que o planejamento é um processo contínuo e dinâmico que tem
como objetivo orientar a transformação da realidade atual, em rumos predeterminados. Assim,
utilizando-se das informações existentes, passasse a analisar as possibilidades e alternativas,
refletindo-se acerca do caminho a ser seguido. Segundo o mesmo autor, “os produtos
672
SILVA, Solange Teles da. Ato administrativo ambiental. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein.
Os caminhos do ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 361.
673
Disponível em: <http://www.onu.org.br/onu-abre-inscricoes-ate-28-de-fevereiro-para-premio-de-incentivo-areducao-de-riscos-de-desastres/>. Acesso em: 01 nov. 2013.
674
RIO+20. op. cit.
228
resultantes do planejamento são os planos, isto é, propostas contendo os tipos de
transformações pretendidas e como levá-las a efeito”.675
Deste modo, tem-se que o planejamento traduz-se em um conjunto de ações
intencionais, coordenadas e orientadas para tornar realidade um objetivo almejado, de forma a
antever situações e permitir a tomada de decisões com antecedência. Do mesmo modo, o
planejamento urbano também deve levar em conta os serviços públicos urbanos a serem
prestados, bem como a forma de otimizá-los, atendendo aos princípio da eficiência. E, para
solucionar tais problemas deve o Poder Público planejar sua atuação, disciplinando a forma
como o espaço urbano será utilizado. Do mesmo modo, observa-se que, na área ambiental, o
planejamento é importante para a proteção, preservação, recuperação ou melhoria da
qualidade do meio ambiente. Logo, o planejamento exerce função fundamental no controle
dos riscos ambientais e dos problemas ambientais vividos em nossa sociedade e, para cumprir
essa missão, vários aspectos precisam ser observados a fim de se impedir o surgimento (ou
agravamento) de problemas ambientais decorrentes da falta e/ou da gestão inadequada por
parte do Poder Público. Para isto é importante o alinhamento e inter-relação entre diversas
políticas públicas na intervenção em caso de desastres naturais.676
A prevenção é constituída por um conjunto de ações que tem a finalidade de
minimizar desastres pela avaliação de riscos de desastres e a redução das ameaças e/ou
vulnerabilidades.677 No tocante à redução dos riscos, pode-se citar a redução da
vulnerabilidade às secas e às estiagens, a redução das vulnerabilidades às inundações e aos
escorregamentos em áreas urbanas, a redução da vulnerabilidade aos demais acidentes
naturais e aos desastres humanos e mistos, entre outros.
A simulação dos procedimentos executados durante desastres (e, entre eles, a emissão
de alertas à população, o acionamento de sirenes, a retirada dos moradores de casas
localizadas em terrenos vulneráveis e o cadastramento das famílias em abrigos) são medidas
eficazes na preparação da população para agir em momentos de desastre. Assim, os
treinamentos auxiliam a diminuir o índice de mortes em casos de desastres naturais, como
enxurradas e deslizamentos. Tais ações terão simulação dos procedimentos executados
durante desastres e, durante os procedimentos, os moradores são retirados das casas e
675
RIBEIRO, Benjamin Adiron. Noções de planejamento urbano. São Paulo: O Semeador, 1988. p. 57.
LAVIEILLE, op. cit., p. 265.
677
LOPES, op. cit., 2009. p. 56.
676
229
direcionados para as rotas de fuga até um ponto de encontro. Depois seguem para um abrigo,
onde participam de palestras.
Reitere-se, finalmente que as ações preventivas e os programas de preparação para
emergências e desastres devem ter prioridade sobre as ações de resposta aos desastres e de
reconstrução, por se constituírem como medidas mais eficazes e menos onerosas. Neste
sentido, “o princípio da precaução afirma a necessidade de uma nova postura, em face dos
riscos e incertezas científicas”678
A adoção de ações ou medidas preventivas encontra-se diretamente relacionada aos
princípios da precaução e da prevenção, ou de um princípio da prevenção lato sensu.
O princípio da precaução tem como fundamento o fato de que, em razão da
dificuldade em se reconstituir uma área que tenha sofrido um dano ambiental, deve-se evitar,
ao máximo, que o dano chegue a ocorrer. Isso porque, em geral, a grande maioria dos danos
causados ao meio ambiente são irreparáveis. É esta, aliás, a orientação traçada pela
Declaração do Rio, a qual estabelece que quando houver ameaça de danos sérios ou
irreversíveis devem ser tomadas medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a
degradação ambiental. (Princípio 15). Tal princípio tem como objetivo impedir o dano
ambiental, ainda que sua ocorrência futura seja incerta, ou seja, sua aplicação deriva do fato
de não se saber, ao certo, quais as consequências e reflexos que determinada conduta poderá
gerar ao meio ambiente, por incerteza ou imprevisibilidade.
Em trabalho específico sobre o tema, MARTINS679 defende que a implementação do
princípio da precaução gira em torno de sete ideias fundamentais. Dentre elas destaque-se
que, ainda que não existam provas científicas que estabeleçam um nexo causal entre uma
atividade e os seus efeitos ao meio ambiente, devem ser tomadas as medidas necessárias para
impedir a sua ocorrência; do mesmo modo, na hipótese de conflito entre interesses
econômicos e interesses ambientais, deve-se adotar a decisão em benefício do ambiente.
678
SILVA, op. cit., 2004. p. 75.
MARTINS, Ana Gouveia e Freitas. O principio da precaução no direito do ambiente. Lisboa: Associação
Acadêmica Faculdade Direito Lisboa, 2002. 54-60.
679
230
CAVALCANTE680 ressalta que o princípio da precaução ambiental na Administração
Pública se caracteriza por um sistema de estudos, devendo ser utilizado para atividades que
possam causar significativo impacto adverso ao meio ambiente. Para MARTINS681 “o
princípio da precaução deve ser assumido como um princípio jurídico-político orientador da
política ambiental”, constituindo-se como um importante argumento para a atuação estatal na
hipótese de inexistência de comprovação científica acerca do potencial de degradação em
relação a determinado empreendimento ou obra. Nestas hipóteses, o princípio da precaução
justifica-se em razão da relevância dos bens jurídicos tutelados, de tal forma que qualquer
ameaça (ainda que não comprovada) em relação a tais bens deve ser combatida antes que
possa vir a causar algum dano, razão pela qual a atuação estatal, com vistas à proteção do
meio ambiente, há de ser exigida. Logo, o principio da precaução pode ser definido como
“uma nova dimensão da gestão do meio ambiente na busca do desenvolvimento sustentável e
da minimização dos riscos.”682
Paralelamente ao princípio da precaução (e a ele diretamente relacionado) tem-se o
princípio da prevenção, o qual foi inserido na Declaração do Rio/92, devendo ele ser
observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Tal princípio relaciona-se à ideia
da existência de um perigo comprovado cientificamente ou facilmente previsível e que com
ele guarda relação de causalidade, devendo-se eliminar tal risco.683
Importante deixar claro que, apesar de muitos autores utilizarem as expressões como
sinônimas, o princípio da prevenção não se confunde com o princípio da precaução. Com base
nesta característica, MILARÉ traça o principal fato diferenciador entre os referidos princípios.
Segundo o citado autor, a prevenção trata de riscos ou impactos já conhecidos pela ciência, ao
passo que a precaução se destina a gerir riscos ou impactos desconhecidos684. Para AMOY685,
o princípio da prevenção refere-se ao perigo concreto, enquanto o da precaução refere-se ao
perigo abstrato. Assim, no princípio da prevenção, as consequências de determinado ato são
previamente conhecidas, devendo, portanto, ser evitadas. Já no princípio da precaução, a
680
CAVALCANTE, Sérgio Ribeiro. Princípio da precaução ambiental: uma diretriz política, constitucional,
administrativa e jurisdicional nas presunções científicas. Monografia (Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em
Direito Ambiental) - Faculdade SENAI de Tecnologia Ambiental, São Bernardo do Campo, 2006. p. 87.
681
MARTINS, op. cit., p. 93.
682
SILVA, op. cit., 2004. p. 84.
683
BARREIRA, Péricles Antunes. Direito ambiental. Goiás: Ibama, 2004. p. 19-31.
684
MILARÉ, op. cit., 2007. p. 142.
685
AMOY, Rodrigo de Almeida. A proteção do direito fundamental ao meio ambiente no direito interno e
internacional. Disponível em:
<http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/ bh/rodrigo_de_almeida_amoy.pdf > Acesso em: 21 dez. 2008.
231
proteção decorre do fato de não se saber quais danos poderão ser causados ao bem jurídico
tutelado.
A
diferença
entre
os
referidos
princípios
também
é
apontada
para
FENSTERSEIFER686 para quem o princípio da prevenção traria consigo a ideia de
conhecimento completo acerca dos efeitos de determinada intervenção no meio ambiente, ao
passo que, o princípio da precaução possuiria um universo maior, por procurar atuar na
proteção de um bem jurídico ambiental sobre o qual ainda não se sabe, com exatidão, quais
serão as consequências danosas que podem vir a lhe ocorrer. Porém, não são todos os autores
que fazem essa diferenciação.
Ante o exposto, tem-se que a aplicação do princípio da prevenção (bem como do
princípio da precaução) permite que a Administração Pública se antecipe à lesão ambiental e
realize condutas atinentes à prevenção do dano, permitindo uma maior efetividade na proteção
ao meio ambiente. Por esta razão passa-se a falar de um princípio da prevenção lato sensu, de
modo a abranger essas duas vertentes.
4.6 PARTICIPAÇÃO POPULAR E EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Não obstante o planejamento e a prevenção sejam mecanismos úteis para a proteção
contra desastres, a participação popular também se traduz como medida necessária para a
adequada proteção desse direito fundamental, na medida em que amplia as possibilidades de
ações com vistas à proteção dos moradores de determinada localidade sujeita à possibilidade
de ocorrência de desastres naturais hidrológicos. Ademais, tratando-se de direitos
fundamentais, a atuação do Estado e de todo o corpo social em sua proteção são medidas que
podem potencializar tal proteção, garantindo sua real efetividade na proteção contra eventos
dessa natureza.
Acrescente-se, ainda, que a partir do momento em que o ser humano passa a ser visto
como sujeito de direito, há um rompimento o modelo anterior, valorizando-se a participação
686
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da
dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 81-2.
232
ativa da pessoa humana na condução da sociedade e passando-se a ver o ser humano como
razão final de toda a ordem social.687
A participação popular constitui-se como uma necessidade inerente à vida em
sociedade. Durante todo o seu período de existência o indivíduo relaciona-se com os demais
seres humanos, manifestando sua opinião e interferindo nas decisões do grupo. Assim, o
denominado Estado da democracia participativa tem como pressuposto a ampliação da
participação política, a qual acaba por conduzir “ao encorajamento da participação direta de
indivíduos e cidadãos e à ampliação da representação política, para além da mera
representação eleitoral.”688 Neste aspecto, o envolvimento da população atingida, por meio de
uma atuação mais efetiva e participativa na busca de soluções para os problemas existentes,
pode contribuir para uma maior proteção de seus direitos fundamentais.
No que se refere à importância da participação popular na proteção dos direitos
fundamentais, FLORES afirma:
Não podemos entender os direitos sem vê-los como parte da luta de grupos sociais
empenhados em promover a emancipação humana... Os direitos humanos não são
conquistados apenas por meio das normas jurídicas que propiciam seu
reconhecimento, mas, também, e de modo muito especial, por meio das práticas
sociais de ONGs, de Associações, de Movimentos Sociais, de Sindicatos, de
Partidos Políticos, de Iniciativas Cidadãs e de reivindicações de grupos... que de um
modo ou de outro restaram tradicionalmente marginalizados do processo de
positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas. 689
Tendo em vista os riscos em relação aos quais a população encontra-se sujeita na
sociedade atual é necessário propiciar-se ao cidadão condições de atuar de forma efetiva em
relação à proteção contra desastres. Neste contexto, ganha relevância a participação popular,
enquanto mecanismo para mitigar a mudança climática.690 Contudo, parafraseando BECK e
GIDDENS, NUNES e SERRA esclarecem que a ciência, a tecnologia e o conhecimento
especializado tendem a gerar novas formas de incerteza e de risco, cujas consequências
acabam afetando de forma desproporcional os cidadãos. Assim, cidadãos “comuns” acabam
sendo excluídos da participação efetiva nos debates e deliberações relacionadas a esses
687
LOPES, op. cit., op. cit., 2003. p. 196.
MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, processo civil e defesa do meio ambiente no direito
brasileiro. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 75.
689
FLORES, op. cit., p. 77
690
GIDDENS, op. cit., 2010. p. 26.
688
233
“riscos manufaturados”.691 E, para proteger-se os direitos dessa comunidade, a participação
popular deve ser incentivada e estimulada.
Assim, a participação popular, por meio de suas diversas formas de manifestação,
encontra assento na ordem constitucional, caracterizando-se como direito fundamental. Deste
modo, o direito de participação passa a ser visto como uma forma de democratização da
Administrativa Pública. Ademais, o direito de participação, segundo Marcos Augusto Perez é
inerente ao Estado Democrático de Direito. Com efeito, aduz o autor:
Ora, se o administrado possui o direito de requerer da Administração informações
que lhe interessam particularmente e de peticionar ao Poder Público contra
ilegalidades ou abusos, como forma de garantia de sua liberdade individual, tem esse
mesmo administrado, por outro lado, numa dimensão coletiva, o direito de participar
da tomada de decisões da Administração Pública, exercitando o direito de receber
informações que sejam do interesse da coletividade e de apresentar suas sugestões,
críticas, protestos, em prol do interesse geral, obtendo as respectivas respostas e uma
decisão administrativa devidamente motivada”. 219
Frise-se, por oportuno, que o Estado Democrático de Direito caracteriza-se em função
da participação dos cidadãos, ou seja: pela possibilidade conferida ao particular de, individual
e pessoalmente, influenciar na administração, gestão, controle e decisões do Estado, como
decorrência do princípio democrático.692
Como bem salienta SILVA693 “O próprio sistema constitucional estabeleceu a
participação popular indireta como regra, prevendo expressamente as hipóteses em que a
participação direta seria necessária ou admitida, tudo em consonância com o sistema
democrático e os princípios de direito público consagrados constitucionalmente”.
Discorrendo sobre a Poliarquia Diretamente Deliberativa defendida por Cohen,
FARIA destaca as possibilidades de operacionalização do pressuposto deliberativo em
sociedades, partindo da ideia de que “é possível institucionalizar soluções de problemas
691
NUNES, João Arriscado; SERRA, Nuno. Casas decentes para o povo: movimentos urbanos e emancipação
em Portugal. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia
participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 258
692
SOARES, Evanna. A audiência pública no processo administrativo. Revista de Direito Administrativo, Rio
de Janeiro, n. 229, p. 263.
693
SILVA, Alessandra, op. cit., 2010.
234
diretamente pelos cidadãos e não simplesmente promover a discussão informal com
promessas de influências possíveis na arena política formal.”694
A participação popular constitui-se como um dos fundamentos do Estado
Democrático, na medida em que corresponde ao exercício de cidadania proativa. Isso porque,
no Estado Democrático de Direito, a participação do particular se dá na própria gestão e
controle da Administração Pública. Segundo DI PIETRO695 “É nesse sentido que a
participação popular é uma característica essencial do Estado de Direito Democrático, porque
ela aproxima mais o particular da Administração, diminuindo ainda mais as barreiras entre o
Estado e a Sociedade”
TÁCITO também defende que o Direito administrativo contemporâneo caminha rumo
ao abandono da vertente autoritária e, consequentemente, para a valorização da participação
de seus destinatários finais na formação da conduta administrativa.696 Assim, quando se fala
em democracia participativa e papel do cidadão há que se mencionar a gestão democrática das
cidades, estabelecida no Estatuto da Cidade. Neste aspecto, tem-se que a gestão democrática,
apesar de mencionada em outros capítulos do referido Estatuto, é objeto de análise específica
no capítulo IV, artigos 43, 44 e 45.
Com relação à gestão, contudo, é necessário observar que tal termo abrange tanto a
participação política direta e indireta dos cidadãos na formulação das políticas urbanas quanto
o controle social. Assim, a gestão democrática das cidades implica na “participação dos seus
cidadãos e habitantes nas funções de direção, planejamento, controle e avaliação das políticas
urbanas.”697 Do mesmo modo, o Estatuto também previu a gestão orçamentária participativa,
a ser realizada por meio de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do
plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual.698 Tem-se, assim,
que o Estatuto da Cidade criou uma serie de instrumentos destinados a permitir a participação
da população no processo de tomada de decisões. Dentre eles, temos: os órgãos colegiados de
694
FARIA, Cláudia Feres. Democracia deliberativa: Habermas, Cohen e Bohman. Lua Nova: revista de cultura e
política, São Paulo, n. 50, 2000.
695
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Participação popular na administração pública. Revista de Direito
Administrativo, p. 32, n. 191.
696
TACITO, Caio. Direito administrativo participativo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.
209, p. 2.
697
BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão democrática da cidade. In: ESTATUTO da cidade: comentários à lei
federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 336.
698
Destaque-se qua a realização de debates, adiências e consultas públicas constitui-se como condição
obrigatória para a aprovação do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual pela
Câmara Municipal, nos termos do art. 44 do Estatuto da Cidade.
235
política urbana; os debates, audiências e consultas públicas; as conferências sobre assuntos de
interesse urbano; e a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano.
Observe-se, entretanto, que tal rol é meramente exemplificativo. Aliás, MARTINS
JÚNIOR preleciona:
Os instrumentos de participação e gestão democrática da cidade (previstos no rol
exemplificativo do art. 43) são institutos de participação orgânica não corporativa,
que abarcam todas as matérias relacionadas ao desenvolvimento urbano, ordenação
do uso e ocupação do solo urbano, políticas urbanas, serviços públicos, etc.699
Procurando prestigiar a participação popular no processo de tomada de decisão, tem-se
que esta foi expressamente prevista no Estatuto da Cidade, o qual obriga a promoção de
audiências públicas e debates com a participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade no processo de elaboração do Plano
Diretor e na fiscalização de sua implementação. Assim, tem-se que tais questões podem e
devem ser discutidas nos movimentos populares, entidades de classes, universidades, de modo
a criar-se políticas sociais articuladas envolvendo os diversos atores envolvidos.700
Importante ressaltar que as audiências públicas determinadas pelo Estatuto da Cidade,
no processo de elaboração de Plano Diretor têm por finalidade informar, colher subsídios,
debater, rever e analisar o conteúdo do Plano Diretor Participativo. Com isso, o processo de
elaboração, implementação e execução do Plano Diretor passa a ser participativo, nos termos
dos artigos 40, § 4º e 43, ambos do Estatuto da Cidade. Tal participação é importante na
medida em que possibilita que o cidadão expresse sua opinião ao Poder Público, apresentando
novas opções de atuação.
Do mesmo modo, o Estatuto exige a audiência do Poder Público municipal e da
população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com
efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente ou sobre o conforto ou a segurança
da população. Assim, tem-se que o estatuto possibilita a participação dos vários seguimentos
699
MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Participação popular no estatuto das cidades. Temas de Direito
Urbanístico, São Paulo, n. 4, p. 264, 2005.
700
ROGUET, op. cit., 2013. p. 320.
236
sociais preocupados com a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável das
cidades.701
Dentre as formas de participação popular, cite-se a coleta de opinião, por meio da qual
possibilita-se à Administração valer-se dos meios de comunicação em geral para recolher
subsídios, em forma de tendências, preferências e de razoes, dos segmentos sociais
interessados na decisão.702
Há, também, o debate público, no qual a participação dos interessados é mais intensa,
possibilitando-se à Administração não apenas conhecer as tendências, preferências e razoes
dos interessados como abrir uma instancia de negociação.
Outro instrumento de participação popular consiste na audiência pública, a qual (da
mesma forma que o debate público) amplia a participação dos interessados na decisão,
inclusive com instância de negociação. Contudo, a audiência pública submete-se a maior
“formalidade processual” podendo servir tanto a uma atuação coadjuvante como a uma
atuação determinante por parte de interessados regulamente habilitados à participação. Neste
sentido, a audiência pública pode ser conceituada como um procedimento de consulta à
sociedade ou a grupos sociais interessados em determinada questão ambiental. 703 No mesmo
sentido, MOREIRA NETO explica a noção de audiência pública da seguinte forma:
O instituto da audiência pública é um processo administrativo de participação aberto
a indivíduos e a grupos sociais determinados, visando ao aperfeiçoamento da
legitimidade das decisões da Administração Pública, criado por lei, que lhe preceitua
a forma e a eficácia vinculatória, pela qual os administrados exercem o direito de
expor tendências, preferências e opções que possam conduzir o Poder Público à
decisões de maior aceitação consensual704.
As audiências públicas possuem diversas vantagens, na medida que são canais de
participação direta da população, garantindo-se o exercício do direito de informação e de
manifestação de pensamento a respeito de assuntos determinados, com vistas a informar e a
701
COUTINHO, op. cit., 2010. p. 155.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 231, p. 148, 2003.
703
MILARÉ, op. cit., 2007, p. 964.
704
MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Audiências públicas. Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, n. 210, p. 14, out./ dez. 1997.
702
237
orientar os órgãos públicos nas tomadas de decisões políticas e administrativas705. Uma das
vantagens da audiência pública refere-se ao fato da participação popular contribuir para a
tomada de decisão por parte da Administração Pública; do mesmo modo, a audiência pública
propicia maior transparência do procedimento administrativos, além de apresentar um forte
conteúdo pedagógico, como técnica social de acesso ao poder e de exercício do poder.706
Com a audiência pública surge um novo espaço para interlocução e debates. BUCCI
destaca que tais espaços possuem uma legitimidade substantiva, que lhes dá amparo. 707 Tal
interlocução é importante, pois permite que os participantes obtenham maiores informações
sobre a situação existente, bem como conheçam melhor os posicionamentos e problemas
enfrentados pelos demais atores envolvidos.
Não raras vezes, os projetos desenvolvidos para determinada região não são
executados em razão da existência de problemas de natureza orçamentária, financeira ou
jurídica. Do mesmo modo, a falta de adesão popular aos projetos acaba dificultando a sua
efetivação. Assim, tais espaços de discussão acabam exercendo um caráter pedagógico e
socializador. Neste sentido, ressalte-se o caráter pedagógico das audiências públicas em razão
de propiciarem uma real oportunidade de conscientização e educação da população sobre as
diretrizes e políticas públicas.708
Há, ainda, que se observar as conferências sobre assuntos de interesse urbano e a
iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento
urbano, que também se constituem como medidas atinentes à ampliação da participação
popular. Ademais, o desenvolvimento includente requer a garantia do exercício dos direitos
civis cívicos e políticos.709
Contudo, não obstante as diversas formas de participação popular existentes no
Estatuto da Cidade e em outros diplomas normativos, parte da doutrina destaca a existência de
diversos empecilhos para a ampliação da participação popular. Neste sentido, DI PIETRO
afirma que a Constituição de 1988 trouxe alguns avanços no que se refere à participação
705
DIAS, Solange Gonçalves. Democracia representativa x democracia participativa: participação popular
no plano local e emergência de um novo paradigma democrático. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p.148.
706
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Revista de Direito
Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 20007. p. 211.
707
BUCCI, op. cit., 2010. p. 344.
708
OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. As audiências publicas e o processo administrativo brasileiro.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 209, p. 153-67, jul./set. 1997.
709
SACHS, op. cit., p. 81.
238
popular na gestão e no controle da Administração Pública. Porém, segundo a autora, há vários
problemas que dificultam o avanço de tal participação, eis que muitos dos instrumentos de
participação encontram-se previstos em normas programáticas, acrescentando o desinteresse
de grande massa da população, a qual encontra-se preocupada com a própria sobrevivência,
além do desinteresse do Poder Público em implantar esses mecanismos participativos.710
Como justificativa para os entraves que dificultam a implantação de mecanismos efetivos de
participação ALCÁZAR aponta o desinteresse dos próprios políticos, os quais, ao assumirem
o poder não têm interesse no surgimento de novos grupos participativos que poderiam
estabelecer poderes rivais aos interesses daqueles.711
Contudo, na medida em que a proteção do ser humano e a manutenção da dignidade da
pessoa humana constitui-se como direito fundamental do indivíduo, a participação popular na
tutela de tais direitos deve ser incentivada e fomentada pelo Poder Público. Aliás, com a
constitucionalização da proteção do meio ambiente, enquanto direito fundamental do
indivíduo, surge para o particular o dever de preservar e defender o meio ambiente. 712 E, para
que haja a efetiva participação da sociedade na proteção contra desastres é necessário
garantir-se que esta tenha acesso à informação e educação ambiental, sob pena de não ter
condições de desempenhar seu papel em defesa dos direitos fundamentais. Assim, o acesso à
informação constitui-se como um requisito essencial para que os cidadãos tenham condições
de se defender e se preparar em relação à ocorrência de determinado desastres. Ademais, o
acesso à informação encontra-se incluído entre os direitos e garantias fundamentais, expressos
no art. 5º da Constituição Federal, in verbis:
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao exercício profissional
(...)
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu
interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo
da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
O princípio da informação permite que toda pessoa obtenha do Estado informações
relativas ao meio ambiente. Assim, qualquer interessado pode participar em questões relativas
710
DI PIETRO, op. cit., p. 38.
ALCÁZAR, Mariano Baena. Curso de ciência de la administración. Madri: Tecnos, 1985. p. 392.
712
LEMOS, op. cit., 2011. p. 47.
711
239
à defesa e/ou proteção do meio ambiente713. Tal princípio objetiva fazer com que toda a
sociedade tenha conhecimento acerca da exata situação ambiental, abrangendo tanto a sua
preservação quanto a sua degradação. O acesso às informações relativas ao meio ambiente foi
previsto pela Declaração do Rio em seu Princípio 10.
O direito à informação ambiental se justifica em razão do direito conferido a todos os
cidadãos de viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Tal direito se encontra
previsto na lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, a qual permite que qualquer pessoa
legitimamente interessada tenha acesso aos resultados das análises efetuadas pelos órgãos
responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, bem como das respectivas
fundamentações. Ademais, o meio ambiente constitui-se como um direito fundamental,
pertencente a toda sociedade, de tal modo que, devem os cidadãos ter acesso a todas as
informações relacionadas à proteção desse bem jurídico. Neste aspecto, recorde-se, ainda, que
a informação ambiental é um pré-requisito para que determinada comunidade tenha condições
de se manifestar acerca de determinado evento ambiental. Por esta razão, MACHADO714
destaca que a informação ambiental deve ser transmitida de forma a possibilitar tempo
suficiente para que os interessados possam analisar a matéria e agir em defesa de seus
direitos, procurando a Administração Pública ou mesmo o Judiciário.
No âmbito do direito de proteção contra desastres, observa-se que o direito à
informação também foi assegurado às pessoas vítimas de desastres, encontrando-se prevista
nos princípios Orientadores Sobre os Deslocados Internos.
Segundo consta, as pessoas
atingidas por desastres devem receber informações relacionadas aos motivos e procedimentos
para tal deslocamento, bem como aquelas relacionadas ao realojamento, caso este venha a ser
necessário. Do mesmo modo, as autoridades competentes devem esforçar-se para envolver as
pessoas afetadas nas ações relacionadas ao planeamento e gestão do seu realojamento.
Paralelamente ao princípio da informação, tem-se o princípio da educação ambiental,
o qual se constitui como um dever do Poder Público em relação à sociedade. Aliás, uma das
obrigações impostas ao Poder Público em relação ao meio ambiente refere-se à promoção da
educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a
preservação do meio ambiente (art. 225, §1º, VI). Neste sentido, SILVA entende que o
principio da informação em matéria ambiental, bem como o principio da participação dos
713
Neste aspecto, lembre-se que a lei de ação civil pública (lei nº 7.347/85) permite que associações, obedecidas
as exigências legais, promovam ações de prevenção e reparação de atos lesivos ao meio ambiente
714
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 94.
240
cidadãos nos processos decisórios constituem a melhor maneira de se trataras questões
ambientais.715
No que se refere à educação ambiental observe-se que, segundo disposto na lei
9.795/99, esta se refere aos processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade
constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para
a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à qualidade vida e
sua sustentabilidade. Assim, a fim de propiciar a adequada proteção ao meio ambiente, a
Constituição Federal de 1988 também estabeleceu que a educação ambiental deverá fazer
parte dos currículos escolares, conscientizando-se a sociedade acerca da necessidade de
preservação do meio ambiente.
A definição legal deixa claro que, por meio da educação ambiental, pretende-se formar
uma consciência ambiental, de modo a propiciar o melhor gerenciamento e utilização dos
recursos ambientais em benefício da humanidade. Segundo LANFREDI716, o modelo de
educação ambiental criado “propõe posturas de integração e participação, de tal maneira que
cada pessoa é incentivada a exercitar sua cidadania em plenitude”. No mesmo sentido,
LEMOS ressalta que a solução para o problema da não efetividade da proteção ambiental,
não pode advir apenas do Poder Público ou da norma. Para ela é fundamental que haja um
maior engajamento da sociedade neste sentido, destacando a importância da educação
ambiental nesse processo. 717
Observe-se, por oportuno, que a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei
9.394/96) inseriu a educação ambiental em sua proposta de Parâmetros Curriculares
Nacionais, passando a fazer parte do currículo do ensino Fundamental. Tais medidas visam
conscientizar os cidadãos acerca da importância da proteção do meio ambiente, face às
consequências danosas que a sua violação pode trazer a todos os seres vivos. Sobre o tema,
FREITAS718 afirma que a educação ambiental é o mais eficaz meio preventivo de proteção ao
meio ambiente.
Em sede de direito dos desastres registre-se que a lei 12.608/12 incluiu um parágrafo
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para o fim de estabelecer que “os currículos do
715
SILVA, op. cit., 2003. p. 52.
LANFREDI, Geraldo Ferreira. Política ambiental: busca de efetividade de seus instrumentos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007. p. 142.
717
LEMOS, op. cit., 2011. p. 167.
718
FREITAS, op. cit., p. 66.
716
241
ensino fundamental e médio devem incluir os princípios da proteção e Defesa Civil e a
educação ambiental de forma integrada aos conteúdos obrigatórios”.719 Tal inclusão visa
estimular uma cultura de prevenção em relação a desastres, propiciando a reeducação do
cidadão em relação a questões ambientais. Neste aspecto, observe-se que a falta de educação
ambiental, em grande parte da população, constitui-se como agravante para a ocorrência de
eventos naturais negativos, pois os depósitos de lixo em lugares inadequados ou às margens
de rios causam entupimento de córregos, de bueiros e, consequentemente, o assoreamento de
leito dos rios.720
Porém, não basta que haja acesso da informação à coletividade. É necessário que essa
tenha condições de compreender o significado daquelas informações, bem como que haja
instrumentos jurídicos para que esta possa buscar a proteção de seus direitos, na hipótese de
abuso, violação ou mesmo de má utilização dos recursos disponibilizados. Assim, é
necessário que o cidadão deixe de ser visto como simples vítima de um desastre. Todos têm
direitos e deveres relacionados com a segurança da comunidade contra desastres e é preciso
obedecer e respeitar tais direitos e deveres. O cidadão possui direito à incolumidade e à vida e
deve agir para a garantia de tais direitos. Concluindo, tem-se que a preocupação com a
prevenção de desastres deve ser uma tarefa de toda a comunidade, de tal forma que a proteção
contra desastres, enquanto direito fundamental, exige um melhor aprimoramento do Estado
em termos de planejamento e políticas públicas, sob pena de ineficácia da proteção do direito
de proteção contra os desastres. Do mesmo modo, o cidadão, enquanto membro da
coletividade, precisa colaborar para a efetivação desse direito, sendo certo que, para que o
indivíduo possa, de fato exercer sua cidadania e participar do processo de tomada de decisão
em questões ambientais e/ou urbanísticas, bem como contribuir significativa na proteção
contra desastres, é necessário que o Estado propicie condições materiais para que os
indivíduos exerçam esse direito. Assim, o cidadão deve “esforçar-se na conquista desse
direito fundamental, agindo ativamente nas atividades ligadas à tutela do meio ambiente”.721
Tais ações são importantes, na medida em que possibilitam a atuação do cidadão no
processo de tomada de decisão e contribuem para a proteção dos direitos fundamentais,
pertencentes a toda a sociedade, nos quais a proteção contra desastres hidrológicos encontrase inserida. Ademais, a participação popular propicia o desenvolvimento da cidadania e da
719
Cf. art. 26, §7º, da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996
PEITER, op. cit., p. 69.
721
DUARTE, Tiago Vieira de Sousa. A responsabilização civil do dano ambiental futuro. Dissertação
(Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica, Goiânia, 2011. p.42.
720
242
conscientização, instrumentos úteis para o surgimento de uma cultura de proteção e prevenção
contra desastres “naturais” hidrológicos.
243
CONCLUSÕES
O ser humano interage cotidianamente com o meio ambiente e essa interação tem
causado, além do crescimento econômico e do surgimento de novas tecnologias, impactos
negativos para toda a sociedade, tais como o agravamento dos efeitos decorrentes da mudança
climática, os quais tem se intensificado nas últimas décadas e contribuído para o aumento dos
riscos aos quais essa sociedade encontra-se sujeita. Do mesmo modo, com o crescimento do
capitalismo, criou-se um campo propício para o surgimento e solidificação de uma sociedade
de risco, na qual a mesma passa a conviver com ameaças de eventos negativos e prejudiciais,
decorrentes do seu desenvolvimento.
Contudo, observa-se que esses eventos negativos não atingem todos os indivíduos de
forma igualitária, sendo certo que as comunidades economicamente hipossuficientes são mais
vulneráveis aos efeitos decorrentes de eventos climáticos negativos. Tal vulnerabilidade
decorre, dentre outros fatores, da falta de conhecimento e informação sobre os riscos aos
quais essa comunidade encontra-se sujeita, bem como em razão da falta de estrutura dessa
comunidade para prevenir-se e proteger-se contra a ocorrência de desastres. Acrescente-se,
ainda, o despreparo do poder público para atuar na proteção dessa comunidade, em razão da
falta de políticas públicas específicas voltadas para uma maior resiliência dessa comunidade,
bem como em razão da falta de planejamento e de implementação de ações preventivas que
possam, de fato, proteger os cidadãos.
Para mitigar os efeitos decorrentes dos riscos aos quais essa comunidade encontra-se
sujeita, desenvolvimento econômico e proteção ambiental devem caminhar juntos, de modo a
garantir-se um desenvolvimento sustentável, que permita ao ser humano suprir suas
necessidades sem por em risco os bens jurídicos ambientais. Assim, faz-se necessária a
criação de políticas públicas preocupadas com estes aspectos.
Os desastres, a depender de sua intensidade e consequências, podem acarretar danos
de considerável magnitude e dar causa a situações excepcionais, tais como a situação de
emergência ou o estado de calamidade pública e, em situações mais críticas, o estado de
defesa e o estado de sítio. Do mesmo modo, os desastres “naturais” (com destaque para os
desastres hidrológicos) continuarão a existir, tendo em vista tratar-se de fenômenos inerentes
à natureza. Acrescente-se, também, que em razão do aumento populacional, com a
244
subsequente necessidade de mais áreas para edificação de moradias, plantio de alimentos,
pastagens de animais, indústrias, etc. a intervenção do ser humano na natureza será cada vez
maior, o que aumentará, ainda mais os efeitos da mudança climática, contribuindo para a
ocorrência de desastres hidrológicos, dentre outros.
O crescimento populacional e o desenvolvimento econômico trazem consigo uma
outra consequência relevante, qual seja: o surgimento de núcleos habitacionais em locais
impróprios, com condições de habitabilidade precárias e com maior probabilidade de
ocorrência de desastres, surgindo as chamadas áreas de risco.Tais fatores fazem com tais
desastres tendem a se tornar cada vez mais frequentes e com maior intensidade, fazendo-se
necessário buscar instrumentos e alternativas que possam contribuir para a proteção do
indivíduo, enquanto sujeito de direitos.
No âmbito legislativo, observa-se que o legislador entendeu que a competência para
legislar sobre calamidades públicas (incluindo-se os desastres hidrológicos) encontra-se
relacionada à proteção de um interesse geral (e não regional ou local). Assim, tal competência
foi atribuída à União, cabendo a ela a implantação de uma política nacional voltada para a
proteção dos cidadãos face o risco da ocorrência de desastres.
No que se refere aos danos decorrentes de desastres, observa-se que a não regulação
antecipada dos riscos pelo direito (e, em especial, pelo direito fundiário, urbanístico e
ambiental), tem contribuído para a eclosão de desastres com maior frequência e com
consequências de grande magnitude. Para tanto, é necessário conscientizar governo e
população acerca dos benefícios advindos da implementação de medidas preventivas como
instrumento protetivo. Quanto mais cedo medidas dessa natureza forem adotadas, maiores
serão as chances de efeitos positivos, reduzindo o número de perdas humanas e materiais.
As consequências decorrentes da eclosão de um desastre costumam atingir propoções
enormes, causando prejuízos econômicos, materiais e, também, humanos. Proteger o cidadão
contra os efeitos decorrentes de um desastre constitui-se em medida essencial para a
manutenção da dignidade da pessoa humana. Assim, sob a ótica da teoria dos direitos
fundamentais observa-se que a proteção contra desastres hidrológicos possui todas as
características inerentes aos direitos fundamentais. Trata-se de um direito atribuído
universalmente a todos os seres humanos e reconhecido pelo ordenamento jurídico. Ademais,
a Constituição Federal optou por explicitar sua preocupação em relação à proteção contra as
245
calamidades públicas, com destaque para as secas e as inundações, muito embora o rol de
direitos fundamentais mencionados na Constituição Federal seja meramente exemplificativo.
Observe-se, ainda, que os direitos fundamentais são dotados de uma
série de
características que se encontram presentes na proteção contra desastres hidrológicos. Assim,
não é possível para o indivíduo que se encontre sujeito ao risco da ocorrência de um desastre
dispor, renunciar ou alienar seu direito à proteção. Trata-se de um direito de conteúdo
extrapatrimonial, imprescritível, inviolável, vitalício, oponível erga omnes, intransmissível,
indivisível e irrevogável do indivíduo. Do mesmo modo, para que tal direito seja respeitado e
exercido de forma efetiva, possui ele uma serie de outras características, consubstanciadas na
proibição de retrocesso, autoaplicabilidade, complementariedade, interdependência e não
taxatividade.
O direito de proteção contra desastres constitui-se como um direito fundamental do
indivíduo e que, portanto, deve ser tutelado e protegido pelo Estado. Aliás, o fato de um
direito possuir o atributo de “fundamental” dá ao seu titular o direito de obrigar o Estado e os
demais indivíduos a respeitarem tal direito. Ressalte-se que a defesa da inclusão da proteção
contra desastres enquanto direito fundamental do indivíduo decorre do fato desta possuir as
características inerentes a essa categoria jurídica e, também, em razão da sua íntima ligação
com a proteção da dignidade da pessoa humana. Acrescente-se, ainda (no caso dos desastres
hidrológicos) o tratamento dado pela Constituição Federal a essa modalidade de calamidade,
exigindo-se uma preocupação especial por parte do ente público. Tem-se, assim, a emergência
do direito de proteção contra desastres enquanto direito fundamental autônomo e diretamente
relacionado a outros direitos fundamentais, tais como o direito à vida, o direito à moradia, o
direito à saúde, à qualidade de vida, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à
assistência aos desamparados. Logo, tratando-se de um direito fundamental do ser humano,
surge para o Estado uma série de deveres relacionados à sua proteção.
A proteção contra desastres “naturais” hidrológicos guarda íntima relação com o
direito à moradia digna, saúde e qualidade de vida, constituindo-se, portanto como um direito
fundamental em suas diversas acepções e formas de visualização. Acrescente-se, ainda, que
tal direito pode ser observado enquanto direito fundamental em todas as suas dimensões,
justificando a atuação estatal em relação a ele. Neste aspecto, a Administração Pública não
pode imiscuir-se do seu papel de gestor dos interesses da coletividade, devendo atuar de modo
a possibilitar a adequada proteção do direito fundamental de proteção contra desastres. Para
246
tanto, os governos devem ter como meta a proteção contra a ocorrência de desastres e,
principalmente, a redução do número de vítimas de tais eventos. E, para o atingimento de tal
objetivo, faz-se necessário o estabelecimento de um plano de ação no qual sejam inseridas
ações preventivas em seus programas de governo, por meio de políticas públicas previamente
planejadas e voltadas para a proteção contra desastres, segundo os princípios que regem os
direitos fundamentais.
Dadas as características e circunstâncias relacionadas aos desastres, tem-se que o
Estado não consegue, sozinho, desempenhar de forma satisfatória as atividades de proteção e
Defesa Civil. É necessário que as diferentes esferas administrativas (União, EstadosMembros, Distrito Federal e Municípios) juntem-se ao voluntariado na busca da prestação de
um serviço público mais eficiente e com maior qualidade. Assim, o Brasil precisa desenvolver
uma estrutura administrativo-operacional e logística em preparação e resposta a desastres
naturais, da mesma forma que os países desenvolvidos têm realizado.
Para evitar a ocorrência de desastres é necessária uma ação governamental efetiva (por
meio de medidas de possibilitem inclusão social, educação, segurança, estímulo à participação
comunitária, construção de habitações adequadas e longe de áreas de risco) além de políticas
públicas que estimulem o fortalecimento das capacidades locais de enfrentamento dos
problemas relacionados aos desastres, criando comunidades resilientes. Neste aspecto, a
fiscalização e regulamentação dos locais nos quais a construção de moradias não se apresenta
viável constitui-se como importante mecanismo de combate
aos desastres “naturais”
hidrológicos. Isso porque, tratando-se de locais nos quais a possibilidade de eventos nocivos é
mais provável, deve-se impedir a realização de edificações nestes locais, ou então, deve-se –
primeiramente – adotar as medidas urbanisticoambientais necessárias para mitigar os riscos de
desastres nos locais que não possuam a infraestrutura adequada para impedir a ocorrência de
desastres ou mitigar-lhes os efeitos.
Do mesmo modo, para que os desastres possam ser evitados ou, pelo menos,
minimizados, é necessário que a população se encontre informada e preparada para enfrentálos. E, para isso, deve o Poder Público investir mais eficientemente em políticas públicas
preventivas, o que somente será possível com planejamento e adoção de medidas que
impeçam o surgimento (ou agravamento) dos riscos de desastres. Em outras palavras: é
necessário formular estratégias de longo prazo para fazer frente aos desafios advindos das
mudanças climáticas e demográficas.
247
Nesta perspectiva, é fundamental o envolvimento da população nesse processo, de
modo a ter-se, de fato, uma gestão democrática dos riscos decorrentes do desenvolvimento e
dos efeitos da mudança climática, dentre outros fatores. Tal gestão democrática implica na
união dos diversos setores envolvidos na busca de alternativas viáveis e eficazes na proteção
contra desastres e desenvolvimento da cidadania. Desta forma, tem-se que, no que se refere à
participação popular, o Poder Público deve realizar e incentivar atividades de educação
ambiental, com o objetivo de conscientizar a população acerca da importância da proteção ao
meio ambiente e da atuação dos cidadãos nas ações a ela relacionadas. Assim, para que tal
participação da sociedade na proteção do meio ambiente seja efetiva é necessário que esta
tenha acesso à informação e educação ambiental, além da possibilidade efetiva de se
manifestar e atuar como protagonista na proteção contra desastres hidrológicos. É necessário
que a população tome consciência acerca de seu papel na prevenção a acidentes e desastres
naturais, adotando uma postura proativa em sede de proteção e Defesa Civil.
Em relação ao Poder Público, o Município é o ente responsável pela execução e
atuação direta em sede de desastres, a teor do descrito no artigo 182 da Constituição Federal.
Logo, o Município constitui-se como figura essencial neste processo, eis que compete a ele
executar as principais políticas públicas relacionadas à proteção contra desastres. Assim,
deve-se fornecer aos Municípios condições técnicas que lhes permitam aperfeiçoar o
planejamento da expansão urbana, bem como fazer o adequado mapeamento de desastres,
estabelecendo protocolos de resposta a eles, criando e aprimorando procedimentos de
monitoramento e emissão de alertas. Do mesmo modo, o poder de polícia (enquanto
mecanismo destinado a limitar e regular o exercício de direitos por parte dos cidadãos) deve
ser utilizado, de modo a coibir ações que possam vir a contribuir para a ocorrência de
desastres, tais como a prática de condutas em desacordo com as regras urbanísticas ou que
possam causar danos ao meio ambiente, contribuindo para a eclosão de desastres
hidrológicos.
Observa-se, assim, que o Município tem papel fundamental na defesa da população em
sede de desastres hidrológicos, bem como na “construção” de cidades mais resilientes a
eventos dessa natureza. Assim, é necessária a existência de um órgão de proteção civil local
forte e estruturado, que possibilite a proteção dos direitos fundamentais do indivíduo em
situações de calamidade. Do mesmo modo, é necessário que os diversos órgãos e secretarias
discutam medidas preventivas que possam colaborar para evitar a ocorrência de desastres
248
hidrológicos. Tais medidas podem abranger obras estruturais, políticas públicas específicas,
campanhas comunitárias voltadas para a conscientização da população, etc.
Sob outra ótica, é essencial que os Municípios contem com o apoio dos demais entes
federados para o adequado desempenho de tal função, o que pode se dar por meio de auxílio
tecnicofinanceiro e parcerias que possibilitem uma atuação mais efetiva do ente público
municipal nessa seara.
No que se refere ao tratamento jurídico dado ao tema “desastres”, observa-se que,
apesar da relevância de tal direito, a proteção contra desastres encontra-se, atualmente, como
um mero capítulo ou apêndice de outros ramos jurídicos (tais como o Direito Constitucional,
o Direito Administrativo, o Direito Ambiental e o Direito Urbanístico). Assim, por não
possuir, ainda, estruturação jurídica e dogmática suficientes, que possam elevá-lo ao status de
ramo autônomo do Direito, o direito de proteção contra desastres tem extraído seus princípios
de outros ramos do Direito que lhe são mais próximos, utilizando-se dessas e outras fontes
jurídicas para se estruturar e buscar fundamentos que permitam um melhor tratamento
jurídico das questões jurídicas relacionadas aos desastres hidrológicos.
Realizar pesquisas sobre o tema, tratando a proteção contra desastres enquanto direito
fundamental do ser humano, constitui-se como medida primordial, de modo a contribuir para
que o tema passe a ser tratado pelo Poder Público e pela sociedade com a relevância que lhe é
inerente. Do mesmo modo, o direito de proteção contra desastres possui relação com diversos
ramos do conhecimento (jurídico e extrajurídico) tendo em vista que a proteção contra
desastres se relaciona a questões sociais, econômicas, urbanísticas, geográficas, etc.
Tratando-se de direito fundamental do ser humano, a proteção contra desastres exige a
união do Poder Público, da sociedade em geral e do cidadão individualmente considerado,
com vistas à redução do número de vítimas (mortos, desabrigados, desalojados e afetados) de
um desastre hidrológico. Nesta perspectiva, a atuação deve se dar nas mais diversas vertentes,
garantindo-se a efetividade da proteção desse direito fundamental.
Os direitos sociais e econômicos, vistos durante muito tempo como normas meramente
programáticas, lidos a partir da teoria em estudo, passam a ser encarados como normas
dotadas de eficácia, de tal forma que geram deveres e obrigações para as autoridades públicas,
as quais devem agir de forma a proteger de forma efetiva o direito fundamental de proteção
contra desastres, enquanto direito fundamental do ser humano.
249
É preciso reduzir-se os riscos de desastres através de esforços sistemáticos na busca de
alternativas aptas a combater os fatores causais dos desastres. Assim, a redução da exposição
a riscos, diminuindo a vulnerabilidade de pessoas e bens, a gestão prudente da terra e do meio
ambiente e a melhoria dos sistemas de monitoramento e alerta, permitindo-se uma atuação
precoce em relação a eventos a adversos, são exemplos de ações voltadas para a redução do
risco de desastres, as quais, entretanto, não excluem outras medidas que possam contribuir na
proteção deste direito fundamental.
As alternativas aqui apresentadas visam contribuir para a efetiva proteção contra os
desastres, enquanto direito fundamental do ser humano, garantindo-se a manutenção da
dignidade do indivíduo e o adequado tratamento jurídico da questão. Assim, implementação
de políticas públicas inter-relacionadas e voltadas para a eliminação (ou mitigação) de fatores
causadores de desastres devem ser estimuladas e nas mais diversas áreas, incluindo as
políticas públicas de ordenamento territorial e uso e ocupação do solo, bem como as políticas
voltadas para os recursos hídricos, resíduos sólidos, etc. Enfim, deve-se atuar nas mais
diversas frentes, de modo a obter-se um resultado eficiente na proteção
deste direito
fundamental.
Deste modo, observa-se que a concretização do direito de proteção contra desastres
enquanto direito fundamental traz consequências diretas em relação ao papel do Estado e da
sociedade na sua proteção, valorizando-se a importância do planejamento, das medidas
preventivas e da participação popular na proteção contra desastres “naturais” hidrológicos,
com vistas à salvaguarda deste e de outros direitos fundamentais (tais como o direito à vida,
saúde, moradia, etc.) e, em última análise, da manutenção da dignidade da pessoa humana.
250
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ANEXOS
Quadro 7 - Distribuição das vítimas de inundações bruscas e alagamento dentro do território brasileiro
INUNDAÇÃO
BRUSCA
E
sudeste
%
norte
%
nordeste
%
sul
%
centroeste
%
TOTAL
100%
Afetadas
9571893
34%
951875
3%
6273247
22%
8348277
29%
3295464
12%
28440756
100%
Mortas
543
51%
47
4%
242
23%
228
21%
9
1%
1069
100%
Enfermas
8387
8%
13102
12%
78085
74%
4603
4%
655
1%
104832
100%
gravemente feridas
439
4%
161
1%
10962
92%
353
3%
7
0%
11922
100%
levemente feridas
6704
17%
708
2%
24921
62%
7257
18%
604
2%
40194
100%
desaparecidas
159
11%
6
0%
1104
73%
242
16%
1
0%
1512
100%
Deslocadas
96121
30%
9211
3%
82101
26%
125581
40%
2630
1%
315644
100%
desabrigadas
140981
27%
18392
4%
210387
40%
141393
27%
10973
2%
522126
100%
Desalojadas
488453
36%
36203
3%
440458
32%
389038
28%
20624
2%
1374776
100%
ALAGAMENTO
Fonte: Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010
Quadro 8 - Distribuição das vítimas de inundações graduais dentro do território brasileiro
INUNDAÇÃO
sudeste
%
norte
Afetadas
3230081
32%
1424117
14%
4190308
41%
1096840
11%
288894
3%
10230240
100%
Mortas
274
59%
55
12%
71
15%
60
13%
1
0%
461
100%
Enfermas
5667
4%
60028
44%
69830
51%
1467
1%
919
1%
137911
100%
gravemente feridas
151
28%
115
21%
222
41%
48
9%
3
1%
539
100%
levemente feridas
7327
54%
3028
22%
1846
14%
1165
9%
137
1%
13503
100%
desaparecidas
103
39%
6
2%
142
54%
11
4%
0%
262
100%
Deslocadas
31980
11%
33035
11%
205303
70%
23379
8%
1423
0%
295120
100%
desabrigadas
72234
15%
92609
20%
192232
41%
97260
21%
14946
3%
469281
100%
Desalojadas
341353
29%
239012
20%
408859
34%
185007
16%
11248
1%
1185479
100%
GRADUAL
nordeste
sul
Fonte: Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010
centroeste
280
Quadro 9 - Distribuição das vítimas de movimentos de massa dentro do território brasileiro
Movimento
de
sudeste
%
norte
%
nordeste
%
sul
%
Afetadas
1829710
91%
4798
0%
54414
3%
115561
Mortas
500
99%
0%
5
1%
Enfermas
774
94%
0%
12
1%
gravemente feridas
115
100%
0%
levemente feridas
1428
92%
0%
desaparecidas
54
100%
0%
deslocadas
7795
89%
107
1%
96
1%
desabrigadas
31045
86%
143
0%
4186
desalojadas
58754
92%
282
0%
3305
massa
%
total
%
6%
0%
2004483
100%
0%
0%
505
100%
5%
0%
827
100%
0%
0%
115
100%
1%
0%
1550
100%
0%
0%
54
100%
743
9%
0%
8741
100%
12%
748
2%
0%
36122
100%
5%
1470
2%
0%
63811
100%
41
0%
106
7%
16
0%
centroeste
Fonte: Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010
Quadro 10 - Quadro resumo
Quadro resumo
afetadas
Inundação brusca e
inundação
Movimento
alagamento
Gradual
de massa
TOTAL
28.440.756
3.230.081
1.069
274
505
2.105
104.832
5.667
827
262.353
gravemente feridas
11.922
151
115
16.271
levemente feridas
40.194
7.327
1.550
57.070
1.512
103
54
5.552
deslocadas
315.644
31.980
8.741
1.556.893
desabrigadas
522.126
72.234
36.122
638.149
1.374.776
341.353
63.811
1.864.962
mortas
enfermas
desaparecidas
desalojadas
Fonte: Atlas brasileiro de desastres naturais 1991 a 2010
2.004.483 82.111.925
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Desastres, cidadania e o papel do estado - início