Henrique Fleming O princípio da incerteza A ’experiência de Young’ para elétrons, em particular a formação de uma figura de interferência mesmo quando o feixe de elétrons é tão rarefeito que não há dúvida de que os elétrons chegam um a um na tela, mostra que a física dos elétrons é incompatível com o conceito de trajetória. Não existe, na mecânica quântica, o conceito de trajetória. Isto é o conteúdo do princípio da incerteza, um dos fundamentos da mecânica quântica, descoberto por Werner Heisenberg em 1927. A maneira de se obter informações sobre um sistema quântico (que chamaremos, para simplificar, de elétron) é realizar interações entre ele e objetos clássicos, denominados aparelhos. Por hipótese esses aparelhos podem ser descritos pela mecânica clássica com a precisão que quisermos. Quando um elétron interage com um aparelho, o estado deste último é modificado. A natureza e magnitude dessa modificação dependem do estado do elétron, e servem, por isso, para caracterizá-lo quantitativamente. A interação entre o elétron e o aparelho é denominada medida. Um aparelho não precisa ser macroscópico. O movimento de um elétron numa câmara de Wilson é observado por meio da trajetória nebulosa que ele deixa; a espessura dessa trajetória é grande, comparada com as dimensões atômicas. Quando a trajetória de um elétron é determinada com essa baixa precisão, ele é um A mecânica quântica, ao menos em seu estágio atual, ocupa um lugar pouco usual entre as teorias físicas: ela contém a mecânica clássica como um caso limite, e, ao mesmo tempo, necessita desse caso limite para estabelecer a sua linguagem. O problema típico da mecânica quântica consiste em predizer o resultado de uma medida a partir dos resultados de um certo número de medidas anteriores. Além disso, veremos mais tarde que, em comparação com a mecânica clássica, a mecânica quântica restringe os valores das quantidades físicas medidas (por exemplo, a energia ). Os métodos da mecânica quântica permitem a determinação desses valores admissíveis. O processo de medida na mecânica quântica tem uma propriedade muito importante: a medida sempre afeta o elétron medido, e é impossível, por questões de princípio, tornar o efeito da medida sobre o elétron arbitrariamente pequeno (como pode ser suposto na física clássica). Quanto mais exata a medida, mais intenso é o efeito sobre o elétron, e é somente em medidas de pouca precisão que o efeito da medida sobre o elétron pode ser considerado pequeno. É um dos postulados fundamentais da mecânica quântica que as coordenadas, ou seja, a posição de um elétron pode sempre ser determinada com precisão arbitrária 2. Suponhamos que, a intervalos definidos , sejam feitas medidas sucessivas das coordenadas de um elétron. Os resultados não estarão, em geral, sobre uma curva lisa. Ao contrário, quanto menor o valor de , mais descontínuos e desordenados serão os resultados, de acordo com o fato de que não existe uma trajetória para o elétron. Uma trajetória razoavelmente lisa só é obtida se as coordenadas do elétron forem medidas com pouca precisão, como no caso de uma câmara de Wilson. Enquanto, na mecânica clássica, a partícula tem posição e velocidade bem definidas em cada instante, na mecânica quântica a situação é bem diferente. Se, como resultado de uma medida, determinam-se as coordenadas de um elétron, então sua velocidade é totalmente indefinida. Se, ao contrário, determina-se a velocidade de um elétron, então ele não pode ter uma posição definida no espaço. Assim, na mecânica quântica, a posições e a velocidade de um elétron são quantidades que não podem ter, simultaneamente, valores definidos. O conceito de estado Na mecânica clássica conhece-se o estado de um sistema quando são conhecidas todas as posições e todas as velocidades dos pontos do sistema, em um determinado instante. A partir desses dados é possível predizer todo o futuro, e reconstruir todo o passado do sistema. Ou seja, conhece-se o estado de um sistema quando se pode prever o futuro do sistema com a maior precisão possível (no caso da mecânica clássica essa precisão é total). Na mecânica quântica tal descrição é impossível, uma vez que as coordenadas e as velocidades não podem existir simultaneamente. Assim, a descrição de um estado na mecânica quântica é feita em termos de menos quantidades do que na mecânica clássica. Segue-se disso uma conseqüência muito importante. Enquanto a descrição clássica permite prever o movimento futuro com total precisão, a descrição menos detalhada da mecânica quântica não permite essa precisão. Isto significa que, mesmo que se conheça o estado de um elétron, seu comportamento em instantes sucessivos é, em princípio, incerto. A mecânica quântica não pode fazer previsões exatas. Para um dado estado inicial do elétron, uma medida subseqüente pode dar vários resultados. O problema típico da mecânica quântica é determinar a probabilidade de se obter cada um dos resultados possíveis, ao realizar uma medida (ocasionalmente a probabilidade de se obter um determinado valor pode ser 1, e a de todos os outros zero!). Os processos de medida na mecânica quântica podem ser divididos em duas classes. Em uma, que contém a maioria das medidas, estão aquelas que, para qualquer estado do sistema, conduzem apenas a resultados mais ou menos prováveis. A outra classe contém medidas tais que, dado um qualquer dos resultados possíveis dessa medida, existe um estado do sistema no qual a medida dá, com certeza, aquele valor. Essas medidas são ditas previsíveis, e desempenham um papel importante na formulação da mecânica quântica. As propriedades físicas do sistema que são determinadas por medidas desse tipo são chamadas quantidades físicas ou observáveis do sistema.(Ver Landau, Lifshitz) Veremos no que segue que, dado um conjunto de quantidades físicas, nem sempre é possível medi- las simultaneamente, isto é, nem sempre é possível que todas tenham valores definidos ao mesmo tempo. Vimos que este é o caso para a posição e a velocidade de um ponto material, por exemplo. Um papel fundamental é desempenhado por conjuntos de quantidades físicas com a seguinte propriedade: elas podem ser medidas simultaneamente mas, se elas têm todas valores definidos, nenhuma outra quantidade física independente pode ter um valor definido nesse estado. Tais conjuntos de quantidades físicas são denominados conjuntos completos de observáveis compatíveis. Um conjunto completo fornece uma descrição máxima do sistema, e, portanto, caracteriza um estado do sistema. O princípio de superposição Seja q o conjunto das coordenadas de um sistema quântico 3, e dq o produto das diferenciais dessas coordenadas 4. Por exemplo, se , . O estado de um sistema é descrito por uma função complexa das coordenadas. O quadrado do módulo dessa função determina a distribuição de probabilidades dos valores das coordenadas: é a probabilidade de que uma medida realizada sobre o sistema encontre os valores das coordenadas entre x e x + dx, y e y + dy , z e z + dz. A função é denominada função de onda do sistema. O conhecimento da função de onda permite, em princípio, calcular a probabilidade dos vários resultados de qualquer medida (não necessariamente das coordenadas). Essas probabilidades são expressões bilineares em e (* representando a operação de tomar o complexo conjugado), do tipo Ou por exemplo. O estado de um sistema varia, em geral, com o tempo. Em conseqüência, a função de onda é uma função também do tempo, . Se a função de onda é conhecida em um instante inicial, segue, do conceito da descrição completa, que ela está, em princípio, determinada em cada instante sucessivo. A dependência precisa da função de onda com o tempo é determinada por uma equação denominada equação de Schrödinger . A probabilidade de que as coordenadas de um sistema tenham qualquer valor, é 1. Devemos, então, ter pois a integral acima é exatamente esta probabilidade. Seja função a função de onda de um sistema. Considere a onde é um número real. Como as probabilidades dos vários resultados são expressões da forma E como vemos que é uma descrição da função de onda do sistema tão boa quanto . Diz-se , por isso, que a função de onda de um sistema está definida a menos de uma fase, ou seja, que, se é função de onda de um sistema, também é. O princípio de superposição A função de onda determina completamente o estado físico do sistema. Isto significa que, dada a função de onda ψ de um sistema no instante t, não somente todas as propriedades do sistema naquele instante estão descritas, mas também as propriedades em qualquer instante subseqüente (tudo isso, naturalmente, em termos do conceito de descrição completa admitido pela mecânica quântica). Matematicamente isto quer dizer que a derivada primeira no tempo, no instante é determinada pelo valor de no mesmo instante. Como a teoria é linear, essa relação é também linear. Vamos escrevê-la assim: onde é um operador linear a ser determinado. A maneira mais direta de descobrir a natureza de é impor que, no limite clássico, as leis de Newton sejam obtidas. Usando argumentos de mecânica avançada mostra-se que deve ser o hamiltoniano do sistema, ou seja, a energia escrita em termos dos momentos pi e das coordenadas qi do sistema, fazendo-se ainda a substituição A equação (13) é denominada equação de Schrödinger , e desempenha, na mecânica quântica, papel semelhante ao da segunda lei de Newton na mecânica clássica.