Texto 1 Projetos Sociais: um processo que revela necessidades e demandas para as políticas públicas. A Constituição de 1988 instituiu o arcabouço jurídico que permitiu a consolidação do regime democrático no Brasil. Um conjunto de direitos sociais foi ali estabelecido como resultado de um longo e conflituoso processo de mobilizações sociais e políticas que marcaram os anos 1970 e 1980. Nessa trajetória, buscou-se ampliar o envolvimento dos atores sociais nos processos de decisão e implementação das políticas sociais, respondendo a demandas em torno da descentralização e da democratização do Estado brasileiro. A partir da nova Carta constitucional, os conselhos se institucionalizaram em praticamente todo o conjunto de políticas sociais no país, representando uma nova forma de expressão de interesses e de representação de demandas e atores junto ao Estado. Ao mesmo tempo, proliferam outras formas de participação social na prestação de serviços e na própria gestão do social, impulsionando um movimento que havia adquirido novo vigor desde ao menos o início da década de 1980. A participação social passou a representar, em suas diversas modalidades, um elemento estruturante do Sistema Brasileiro de Proteção Social (SBPS). Sua análise oferece elementos relevantes para o debate atual sobre políticas públicas, seja no que se refere à sua institucionalização e execução, seja quanto ao enfrentamento das questões sociais. Para efeitos deste trabalho, a participação social no campo das políticas sociais será analisada a partir de duas dimensões, ambas definidas pela Constituição de 1988. A primeira diz respeito à participação social nos espaços de debate, deliberação e controle das políticas, e se institucionaliza em nível federal nos conselhos1 nacionais das políticas sociais. Portanto, o texto constitucional de 1988 é um marco na democratização e no reconhecimento dos direitos sociais. Articulada com tais princípios, a Constituição alargou o projeto de democracia, compatibilizando princípios da democracia representativa e da democracia participativa, e reconhecendo a participação social como um dos elementos-chave na organização das políticas públicas. De fato, com a Constituição de 1988 a participação social passa a ser valorizada não apenas quanto ao controle do Estado, mas também no processo de decisão das políticas sociais e na sua implementação, em caráter complementar à ação estatal. Desde então, a participação social tem sido reafirmada no Brasil como um fundamento dos mecanismos institucionais que visam garantir a efetiva proteção social contra riscos e vulnerabilidades, assim como a vigência dos direitos sociais. Com maior ou menor sucesso, esta foi uma das importantes inovações institucionais ocorridas no Brasil pós-Constituinte. A garantia de direitos sociais nos campos da educação, saúde, assistência social, previdência social e trabalho foi acompanhada da consolidação de uma nova institucionalidade objetivando assegurar a presença 1 de múltiplos atores sociais, seja na formulação, na gestão, na implementação ou no controle das políticas sociais. Três enunciados sintetizam os sentidos que passa a tomar a participação no que se refere aos direitos sociais, à proteção social e à democratização das instituições que lhes correspondem: a) a participação social promove transparência na deliberação e visibilidade das ações, democratizando o sistema decisório; b) a participação social permite maior expressão e visibilidade das demandas sociais, provocando um avanço na promoção da igualdade e da equidade nas políticas públicas; c) a sociedade, por meio de inúmeros movimentos e formas de associativismo, permeia as ações estatais na defesa e alargamento de direitos, demanda ações e é capaz de executá-las no interesse público. A participação social teria, pois, papel relevante tanto no que diz a respeito à expressão de demandas como em relação à democratização da gestão e da execução das políticas sociais. A consolidação desta participação, nas últimas décadas, efetuou-se principalmente por meio dos diversos formatos de conselhos e dos diferentes mecanismos de parceria colocados em prática nas políticas sociais. A constituição de conselhos e parcerias no interior destas políticas responde a impulsos diversos que atuaram sobre sua criação e desenvolvimento. Diante desse histórico, aprofundar a reflexão sobre a relação entre o poder público e as entidades privadas torna-se relevante. No entanto, a definição de parâmetros e a elaboração de proposta direcionada as situações de déficit social e escassez de oferta é fundamental. As políticas públicas têm avançado no sentido de regular a rede privada de prestação de serviços, buscando instituir padrões básicos para a qualidade dos atendimentos e qualificação dos trabalhadores das entidades e organizações privadas, e instituir mecanismos de fiscalização dos serviços prestados. Outro ponto destaque nessa construção é a s isenção fiscal. De fato, o financiamento indireto das chamadas entidades assistenciais privadas é cercado de grande polêmica. Este é o caso, por exemplo, dos instrumentos legais que isentam entidades assistenciais da cota patronal à Previdência Social. Reconhecido no próprio texto constitucional, o financiamento público indireto a entidades privadas tem sido contestado principalmente no que se refere ao cumprimento da contrapartida exigida em lei, qual seja, a oferta gratuita de serviços equivalente a pelo menos 20% da sua receita 2 bruta, em valor nunca inferior à isenção de contribuições sociais usufruídas. Neste sentido, alegase que não há clareza na legislação existente sobre quem são os beneficiários destas ações assistenciais ou sobre que tipo de ações pode ser considerado assistencial, fomentando-se dúvidas sobre o impacto social real de tal contrapartida. As experiências de participação social descritas – quais sejam, as que ocorrem nos espaços de debate, deliberação e controle das políticas e que se institucionalizam em nível federal nos conselhos nacionais das políticas sociais, assim como as que se referem à participação na execução destas políticas pela via da organização de parcerias entre gestores públicos e entidades privadas de fins não lucrativos revelam que no último quartel do século XX o Estado brasileiro ganhou permeabilidade a diferentes formas de demandas sociais, avançando-se no estabelecimento de mecanismos de concertações e de consensos sobre políticas públicas. Consolidaram-se, ainda, espaços de articulação do Estado com iniciativas sociais no que se refere à execução de ações por meio de diferentes arranjos de regulação e execução de políticas. A participação da sociedade na execução das políticas sociais também sofreu uma grande alteração a partir dos anos 1980. Na conjuntura da luta pela democratização do país, consolidouse no campo da atuação privada, até então dominada pelas entidades de cunho filantrópico, um novo elenco de atores sociais voltados à promoção da sociedade como protagonista de sua própria transformação. Movimentos sociais e organizações não-governamentais (ONGs) passam a atuar na implementação de projetos sociais de diversos conteúdos, visando dotar comunidades e grupos sociais de protagonismo social em um Estado autoritário e numa realidade social marcada pela exclusão, discriminação e pobreza. Estas experiências foram fortemente associadas às “práticas de deliberação participativas” que, como afirma Paoli, “no Brasil estiveram desde seu início ligadas à visibilidade política dos ‘novos movimentos sociais’ e à redefinição das práticas do movimento operário, nas décadas de 1970 e 1980", e que buscavam ampliar a participação popular “nos processos políticos de distribuição de bens públicos e formulação das políticas sociais”. Dessa forma, a partir de diferentes experiências político-sociais e modalidades de atuação, parece ter-se estabelecido, durante as décadas de 1980 e 1990, um amplo consenso quanto à relevância da participação social nos processos de formulação, decisão, controle e implementação das políticas sociais. Este aparente consenso, entretanto, obscurece os termos de um debate ainda marcado por ambiguidades assim como por várias tensões que pautam, inclusive, as práticas de participação social. Por trás destas dificuldades estão leituras diferenciadas sobre os princípios de referência da regulação social, que se refletem em propostas não menos diferenciadas sobre 3 • A atuação da sociedade civil I • O perfil do Estado. II III • As formas desejadas de participação social como instrumento de aprimoramento da gestão de políticas públicas. Porém, em especial na década de 1990, foi se fortalecendo um projeto de participação social ancorado menos na politização das demandas sociais e na ampliação de sua presença no espaço público de deliberação e mais no “ativismo civil voltado para a solidariedade social”. Além de organizarem demandas e pressionarem o Estado, muitos desses novos atores buscaram desenvolver alternativas autônomas de intervenção social ancoradas nas idéias de ajuda mútua e de iniciativa própria no atendimento de carências sociais. Sua ação envolveu desde a proliferação de manifestações de massa até formatos mais organizados centrados em problemas locais, passando por coletividades aglutinadas ao redor de temas como gênero, raça, paz ou meio ambiente, além de movimentos de cunho religioso. Envolvem, também, o voluntariado, as redes de solidariedade parental ou de vizinhança e as instituições comunitárias. Ainda durante a década de 1990, atores sociais continuavam a buscar desenvolver alternativas próprias no enfrentamento das carências sociais. Como exemplo de mobilização dessa natureza, merece destaque, no começo dos anos1990, o “Movimento pela Ética na Política”, que se notabilizou, em 1992, durante a campanha pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, desdobrando-se, no ano seguinte, na “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”. A “Ação da Cidadania” evocou o sentimento de solidariedade nacional em favor dos excluídos e promoveu, entre outras atividades, inúmeras campanhas de distribuição de alimentos em todo o país, impulsionadas pelo sentimento de indignação contra a fome, a miséria e a exclusão. Milhares de pessoas e de instituições participaram da campanha: indivíduos comuns, 4 ONGs, sindicatos e centrais sindicais, artistas, igrejas e grupos religiosos, empresas dos mais variados tipos – privadas e estatais – associações comunitárias e profissionais, instituições filantrópicas, escolas e universidades, entre outros. Contudo, a esta vertente somaram-se outras no processo de construção do que aqui se chama participação social na execução de políticas sociais. Durante a década de 1990 fortaleceu-se no Brasil uma leitura e uma prática da participação social associadas menos à questão da democratização do processo de deliberação das políticas sociais e mais à problemática da gestão e da descentralização das ações. Em reação ao diagnóstico que identificava a baixa capacidade estatal de implementação de políticas sociais – seja em seus aspectos gerenciais, seja no que se refere ao seu uso político –, fortaleceram-se experiências de execução de projetos sociais pelo chamado “terceiro setor”, identificado enquanto detentor de maior competência técnica alternativa à capacidade de mobilização de recursos privados. A crise econômica, as dificuldades em alocar novos recursos e em gerir o Estado também estimulam os governos a demandar a parceria das entidades privadas. Em âmbito federal, esse chamamento iniciou-se, ainda que timidamente, no governo Itamar Franco (1993 e 1994), no contexto do esforço nacional de combate à fome; prosseguiu com mais intensidade na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), particularmente liderado pelo Conselho da Comunidade Solidária (1995 a 2002) no que se refere ao combate a pobreza; e, agora, no governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, estrutura-se no bojo da mobilização nacional contra a fome no âmbito do “Fome Zero”. No governo FHC, contudo, o movimento de participação da esfera privada na execução das políticas sociais ganhou densidade específica, impulsionado por um amplo projeto de reforma do Estado que pleiteava a ação pública assentada na reformatação do Estado e em uma ação de cooperação entre ele e a sociedade na implementação das políticas sociais. Em sua proposta de um modelo público não estatal de regulação social, no qual o Estado estaria marcado por uma forma subsidiária de atuação, o governo FHC estimulou a transferência de funções do Estado para a sociedade nas formas de privatizações, concessões, terceirizações, contratos e também parcerias, incluindo aquelas que aqui interessam, quais sejam, as que se desenvolveram entre o Estado e as instituições privadas sem fins lucrativos. Apregoando a melhor qualidade dos bens e serviços prestados pela iniciativa privada, as limitações observadas na capacidade do Estado em gerar receitas públicas passam a proliferar em nível federal experiências de parceria entre instituições governamentais e institucionais privadas não lucrativas na área social. Foram várias as experiências de parcerias realizadas, após 1995, entre o governo federal e entidades privadas não lucrativas, cobrindo as políticas de educação, saúde, trabalho, assistência social, alimentação e nutrição. Destaque-se, contudo, que existem outras motivações para o exercício da participação da sociedade na provisão de bens e serviços sociais. A sociedade pode participar associando-se ao poder público para ampliar direitos. A proposta de celebrar arranjos público-privados inspira-se numa concepção ampliada de cidadania nascida no âmbito de ONGs e dos novos movimentos sociais e ancora hoje algumas propostas de políticas públicas, em especial na nova política de 5 assistência social. Esta concepção ganha espaço, por exemplo, dentro da política de Assistência Social. Assentada em experiências já realizadas em alguns municípios de reestruturação da relação do Estado com as entidades sociais sem fins lucrativos organizando-a sob a forma de parcerias.A Política nacional de Assistência Social - PNAS, aprovada em setembro de 2004 pelo Conselho Nacional de Assistência Social, chama as entidades prestadoras de serviços de assistência social a participar, como co-gestoras e co-responsáveis, da política pública, integrando ações e recursos dentro de uma ação planejada com o objetivo de garantir os direitos de proteção assistencial. A cidadania ampliada, ou a cidadania com iniciativa (Gohn, 1997), pode ser ainda potencialmente produtora de uma nova cultura política; assim, a sociabilidade dela decorrente seria de reciprocidade, isto é, operando num espaço de trocas sancionadas por um novo contrato social no qual a cidadania se constitui na obrigação política vertical entre os cidadãos e o Estado como na obrigação horizontal entre cidadãos. Ou seja, a cidadania é ampliada à medida que acrescenta aos direitos sociais básicos a solidariedade social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA DA SILVA, F.; ABREU, Luis E. de l. Saúde: capacidade de luta – a experiência do Conselho Nacional de Saúde. Brasília: Ipea, 2002 (Texto para discussão, n. 933). BARBOSA, Frederico; JACCOUD, Luciana. Levantamento sobre conselhos municipais na área social. Nota Técnica, Disoc/Ipea, 2003. BEGHIN, Nathalie. A filantropia empresarial: nem caridade, nem direito. São Paulo: Cortez, 2005 (Coleção questões da nossa época, v. 122). BRESSER PEREIRA, Luis Carlos; GRAU, Nuria Cunill. Entre o Estado e o mercado: o público não estatal. In: BRESSER PEREIRA, Luis Carlos; GRAU, Nuria Cunill (Orgs.). O público não-estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: FGV, 1998. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis/ Vozes, 1998. CHAGAS et al. 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