1 I A PETIÇÃO INICIAL A petição inicial é o articulado em que o autor expõe os fundamentos de facto e de direito da acção e formula o pedido correspondente introduzindo o feito em juízo, dando início à causa (artigos 151.º, n.º 1 e 467.º, ambos do Código de Processo Civil). A petição tem uma dupla função: a) - introduzir o feito em juízo, iniciando a instância (artigos 267.º, n.º 1 e 467.º, ambos do Código de Processo Civil); e b) - individualizar a acção no plano subjectivo (tribunal e partes) e no plano objectivo (mediante a exposição dos fundamentos de facto e de direito e a formulação do pedido). A petição inicial consiste no acto processual da parte demandante que desencadeia o exercício do direito de acção, traduzindo-se no acto constitutivo da relação processual e sendo o único articulado absolutamente indispensável à existência do processo. * Não existem normas legais sobre o estilo e a disposição gráfica dos dizeres a empregar na elaboração da petição. Os critérios legais serão o da inteligibilidade do pedido e da causa de pedir (artigo 193.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil) e o da articulação obrigatória dos factos (artigo 151.º, n.º 2 do mesmo Código)1. A articulação faz-se por enumeração dos factos sob números, em caracteres árabes, colocados ao centro da linha, precedidos ou não da palavra ou da abreviatura de «artigo». Cada artigo deverá conter, em princípio, um só facto e não deverá ser desdobrado em alíneas. Também não parece boa técnica fazer a ligação dos artigos por conjunções ou advérbios colocados no artigo antecedente como por vezes se verifica pois, a ter de se recorrer a esses elementos de ligação, eles deverão figurar antes no início de cada artigo (Paulo Cunha, Da Marcha do Processo Comum de Declaração, Tomo I, 2.ª edição, 1944, pgs. 138 e 144). Os factos essenciais integradores da causa de pedir bem como os factos instrumentais que a parte considere relevantes deverão ser deduzidos com subordinação a números ou artigos, visando-se proporcionar o exercício esclarecido do contraditório, por banda do demandado, tendo em conta o ónus de impugnação que sobre este impende, bem como facilitar a tarefa de selecção da base instrutória (artigos 490.º e 511.º, ambos do Código de Processo Civil). É recomendável um facto por artigo, recortando-o de forma concisa nos seus traços essenciais, sem prejuízo dos elementos acidentais que relevem para a decisão, procedendo-se à ordenação da matéria de facto de forma lógica e cronologicamente sequencial e coerente, para que não saia prejudicada a dimensão integral do litígio. * É também de toda a conveniência que o discurso utilizado seja claro, conciso, logicamente ordenado, num estilo que, não sendo literário, seja de fácil apreensão quanto às questões fundamentais suscitadas. 1 Com excepção do processo comum sob a forma sumaríssima (artigo 793.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) e algumas formas especiais de processo. 2 A linguagem utilizada deve ser sóbria e pautar-se por ditames de urbanidade, evitando as expressões desnecessárias ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da parte contrária e do tribunal (artigo 266.º-B, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil). Quanto ao emprego de fórmulas rituais sedimentadas na “praxis” forense, será útil o seu aproveitamento, desde que correspondam às actuais exigências de economia processual (artigo 138.º, n.os 1 e 2 do mesmo Código)2. * O conteúdo da petição inicial faz-se através de um intróito ou preâmbulo (contendo o endereço do tribunal onde a acção é proposta, a identificação das partes e a forma do processo) e seguindo-se depois a narração que constitui o trecho da petição inicial em que o peticionante expõe os fundamentos da acção os quais se reconduzem, de resto, aos elementos factuais integradores da causa de pedir e ao seu enquadramento jurídico. É frequente, na prática forense, terminar a narração com um artigo de enunciação genérica sobre a existência dos pressupostos processuais; tal enunciação é, em regra, desnecessária, podendo quando muito ser útil nos casos em que se pretenda especificadamente fazer sobressair determinado pressuposto processual. Estes fundamentos pode ser perspectivados em três vertentes e respeitando às afirmações dos factos úteis à boa discussão da causa, compreendendo: a) - os factos fundamentais ou essenciais à procedência da acção, ou seja, os que sejam susceptíveis de preencher directamente as previsões normativas em que se funda a pretensão do autor, sejam eles factos nucleares, indispensáveis à definição da causa de pedir (factos estruturantes da causa de pedir) sejam factos complementares que, embora dispensáveis à caracterização da causa de pedir, se mostrem necessários à procedência da acção; b) - os factos instrumentais ou indiciários que, podendo servir de base a eventuais presunções judiciais, se afigurem relevantes como meios probatórios dos factos essenciais; c) - o clima moral que se reporta ao circunstancialismo envolvente, explicativo do litígio e útil à sua compreensão que, para além do perímetro factual, lhe imprime fulgor como relação humana, podendo contribuir, de algum modo, para a convicção do julgador, favorecendo o enquadramento do contexto comportamental dos litigantes, não obstante poderem existir elementos que participem no próprio conteúdo da causa de pedir e que, nessa medida, não se limitam a figurar como meros factores de envolvência explicativa do litígio (v.g. os vícios da vontade no âmbito de um negócio jurídico). * No domínio das razões de direito, o mesmo confina-se à invocação das normas jurídicas aplicáveis ao caso, incluindo as máximas da experiência, equidade ou regras de lógica. Trata-se, em suma, do enquadramento jurídico do litígio, o qual não é vinculativo para o tribunal (artigo 664.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do dever de ouvir previamente as partes quando se pretenda convolar a qualificação jurídica para institutos que estas não tenham, de modo algum, levado em linha de conta (artigo 3.º, n.º 2). 2 É exemplo desta fórmula ritual o pedido de “costumada, serena e boa justiça” por parte do tribunal. 3 A omissão absoluta das razões de direito pode, nalguns casos, contribuir para a ininteligibilidade da causa de pedir (artigo 193.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil). A sua dedução tanto pode consistir na mera citação das disposições normativas como na reprodução das normas deles extraídas, não se exigindo a sua subordinação a forma articulada. A alegação de direito deve ser sóbria, enxuta, pois o desenvolvimento das teses jurídicas tem o seu momento próprio no quadro das alegações de direito, aquando da discussão da causa ou das alegações de recurso (artigos 508.º, n.º 1, alínea b), 653.º, n.º 5, 657.º, 790.º, n.º 1, 796.º, n.º 6 e 685-A.º, todos do Código de Processo Civil). * Assente a necessidade de alegação da matéria de facto constitutiva do direito invocado pelo autor, de cuja prova seja possível inferir a procedência da acção, nem por isso fica facilitada a execução prática desta tarefa, até pela constatação de que não se torna fácil (ou possível) estabelecer uma cisão perfeita entre questões de facto e questões de direito. Em geral, os factos alegados já indiciam, como é natural, uma determinada solução jurídica que o autor pretenderá que faça vencimento no processo, ou seja, já vêm carregados de alguma juridicidade, envolvendo um determinado compromisso ou um pré-entendimento relativamente ao direito aplicável. Mais do que encontrar um critério universal que estabeleça a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito, importa ter em conta as questões mistas, propugnando uma distinção casuística consoante as necessidades de resolução dos problemas que, em concreto, se suscitam no âmbito dos processos. Na ocasião em que o autor promove o início da instância, pode defrontar-se com sérias dificuldades de cumprimento do ónus de alegação da matéria de facto. Se em determinadas situações, de imediato se pode inserir uma afirmação no campo da matéria de direito (v.g. má fé, abuso de direito, diligência de bom pai de família, culpa, imprevidência, inconsideração) ou no campo da matéria de facto (v.g. terreno, edifício, árvore, carta postal, escrito), com alguma frequência se suscitam dúvidas quanto ao estabelecimento de uma linha de demarcação entre os dois terrenos, particularmente nos casos em que as expressões têm, simultaneamente, um sentido técnico-jurídico, de onde o legislador retira determinados efeitos, e um significado vulgar e corrente, facilmente captado pelas pessoas comuns (v.g. arrendamento, renda, inquilino, hóspede, proprietário, possuidor, preço, lucro, empréstimo, consentimento). Não é despicienda a opção a tomar quanto à integração de determinada expressão ou afirmação no campo da matéria de facto ou na área da matéria de direito, já que dela pode depender o sucesso ou insucesso da pretensão. Numa aproximação à questão colocada, é possível antecipar que a inclusão daquelas expressões numa ou noutra das categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção. Se o seu objecto, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente e localizado no significado real daquelas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, insusceptível de ser incluída na base instrutória (artigo 511.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), de ser objecto de instrução (artigos 513.º, 552.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, 623.º, n.º 1 e 638.º, n.º 1, todos do mesmo Código) ou de integrar a decisão sobre a matéria de facto (artigos 646.º, n.º 4 e 653.º, n.º 2, ambos do citado Código)3. 3 A linha divisória entre o facto e o direito não tem carácter fixo, dependendo, em considerável medida, não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é um juízo de facto num caso, poderá ser 4 Assim acontecerá, por exemplo, com as seguintes expressões: a) - o termo “arrendamento” que seja utilizado pelo réu demandado numa acção de reivindicação relativa a um prédio por si ocupado, com o objectivo de provocar a improcedência do pedido no que concerne à entrega do prédio ao autorproprietário4; b) - o termo “proprietário” quando o autor se limite a alegar essa qualidade como fundamento de uma acção de reivindicação, sem acompanhar tal expressão de outros factos de onde possa inferir-se a titularidade do direito de propriedade, ainda que seja por remissão para o conteúdo de uma certidão de registo predial de onde resulte a presunção de titularidade. Se, pelo contrário, o objecto da acção não girar em redor da resposta exacta que se dê às afirmações feitas pela parte, as referidas expressões e outras de cariz semelhante poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efectua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnicojurídico. * São de equiparar aos factos os juízos que contenham a subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido, podendo, então, figurar, nesses próprios termos, devendo tomar-se no sentido corrente ou comum, ou no próprio sentido em que a lei os tome, quando coincidente, desde que as partes não disputem sobre eles, podendo anda figurar sempre na selecção da matéria de facto considerada como assente ou naquela que seja controvertida quando não constituam o próprio objecto da questão sujeita a discussão. É enunciado um princípio geral relativo à distinção entre facto e direito (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pg. 206): a) - é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais ou concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, determinando o que aconteceu; b) - é questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei, determinando o que pretende a lei, quer seja a lei substantiva, quer seja a lei do processo. A prova só pode ter por objecto factos positivos, materiais e concretos; tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória. Os juízos de valor são juízos sobre um complexo de factos, conclusões de facto sem a sua discriminação, embora se apresentem como factos e como factos são de considerar quando não controvertidos. Os juízos de facto podem ser nuns casos matéria de facto e noutros matéria de direito enquanto que a questão de direito é matéria, apresentada como de facto, que decide os pontos jurídicos que se pretendem demonstrar, afirmando os pressupostos legais nos temos em que estes são enunciados na norma jurídica (Abel Simões Freire, Matéria de Facto - Matéria de Direito in CJ-STJ 2003, III, pg. 5) São assim considerados como termos de uso corrente na linguagem comum ou que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido tais como direito ou juízo de direito no outro pelo que os limites entre um e outro são, assim, flutuantes (Anselmo de Castro, Processo Civil Declarativa, vol. III, pg. 270). 4 Ao contrário dos Ac. RC de 21/06/1983 in BMJ 329.º-629 e Ac. RC de 08/11/1983 in BMJ 332.º-520 em que a questão essencial não era a qualificação da relação jurídica e foi considerada como questão de facto. 5 “pagar”, “emprestar”, “vender”, “arrendar”, “dar de penhor” (Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, vol. III, pg. 426; Ac. RL de 06/07/1983 in CJ, IV, 192; Ac, RE de 21/02/1991 in CJ, I, 303). As expressões “falta injustificada” e “despedimento” foram consideradas matéria de facto (respectivamente, Ac. RL 17/05/1995 in CJ, III, 183; Ac. RE de 06/06/1995 in CJ, III, 318), embora se justifique a consideração de que não poderia ser esse o entendimento caso o significado jurídico das mesmas fosse a questão controvertida sujeita a litígio. O mesmo ocorreu com as expressões “débito” e “tomar conhecimento de uma conduta” e “consentir nela” que foram consideradas matéria de facto (respectivamente, Ac. STJ de 13/12/1983 in BMJ 332.º-.437; Ac. STJ de 23/03/1993 in BMJ 425.º-573) ou com a expressão “inquilino” que foi aceite no seu sentido comum e vulgar de arrendatário habitacional de prédio urbano (Ac. STJ de 02/05/1991 in BMJ 407.º-385).. A expressão “proveito comum do casal” é considerada matéria de direito nos casos em que tal alegação sirva precisamente para estender ao cônjuge não outorgante no contrato a responsabilidade pela dívida contraída pelo outro cônjuge, sendo necessário alegar factos de onde, de acordo com a experiência comum ou da prova directa produzida, seja lícito concluir que o cônjuge outorgante actuou tendo em vista o benefício do casal (Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pg. 410; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pg. 209; Ac. RL de 30/10/1986 in BMJ 364.º-93; Ac. RC de 27/03/1984 in BMJ 335.º-3501; Ac. RL de 06/11/1974 in BMJ 241.º-339). No mesmo sentido, estando em causa saber se foi ou não celebrado um contrato de mútuo, a expressão “empréstimo” não deveria ter sido utilizada nem deveria ter sido quesitada abertamente que “as quantias foram entregues a título de empréstimo” (Ac. STJ de 30/10/1996 in Sumários do STJ n.º 4, 10/1996, pg. 63) na medida em que, aquilo que seja, em tese geral ou em princípio, um facto jurídico (ou seja, um facto material visto à luz das normas e critérios do direito) pode assumir a feição de matéria de facto quando respeite a relação jurídica condicionante da que é objecto da causa e não seja objecto de disputa ou controvérsia entre as partes. As expressões “reputação de alguém como filho” ou “tratamento de alguém como seu filho” (artigo 1871.º do Código Civil) configuram matéria de direito numa acção de filiação e não devem surgir isoladas na petição mas acompanhada de factos materiais ou psicológicos de cuja prova possam inferir-se aquelas conclusões (Anselmo de Castro, Processo Civil Declarativo, vol. III, pg. 271; Antunes Varela, ob. cit., pg. 411; Alberto dos Reis, ob. cit., pg. 211; Pereira Coelho, Filiação, pg. 120; Ac. RP de 01/07/1982 in CJ, IV, pg. 190). A expressão “subscrever o aumento do capital social” foi admitida por se considerar que na selecção da matéria de facto podem ser utilizadas palavras nos dois sentido, o corrente e o jurídico (Ac. STJ 15/06/1999 in CJ-STJ, II, 144). Afirmar-se que uma condutor seguia a “velocidade adequadamente reduzida” envolve um juízo de valor que constitui uma apreciação sobre factos e que não pode ser integrado na base instrutória (Antunes Varela in RLJ 122.º-219). A expressão “comprometimento da possibilidade de vida em comum” não é considerada um facto mas um juízo ou conclusão na medida em que já comporta em si a solução do direito sobre a gravidade dos factos, contendo a questão da resolução de direito para uma acção de divórcio (Pereira Coelho, in RLJ 116.º-214; Assento do STJ de 03/04/1963 in Diário do Governo 1.ª série de 30/04/1963). 6 Por seu turno, “haver ou não semelhança entre as marcas (ou outros sinais distintivos)” em confronto é matéria de facto enquanto que “haver ou não imitação, em presença das semelhanças e diferenças” é questão de direito (Ac. STJ de 21/01/2003 in CJ-STJ, I, 34). Contudo, existem outras expressões que têm sido consideradas matéria de direito ou juízos de valor insusceptíveis de integrar a base instrutória: a) - “regadio arvense”, “regadio agrícola” e “sequeiro” (Ac. RP de 30/05/1995 in CJ, III, 228); b) - “conduzir por conta de outrem” (Ac. RL de 25/05/1995 in CJ, III, 117); c) - “necessidade da casa para habitação” (Ac. RC de 20/03/1984 in BMJ 335.º-359.º); d) - “velocidade exagerada, excessiva ou inadequada” (Ac. RC de 18/02/1986 in CJ, I, 49); e) - “economia comum” (Ac. RL de 15/12/1981 in CJ, V, 177); f) - “acidente de trabalho” (Ac. RL de 13/01/1993 in CJ, I, 167); g) - “interpelar” para efeitos de cumprimento de um contrato (Ac. RE de 25/02/1993 in BMJ 424.º-755); h) - “residência permanente” (Ac. RE de 23/02/1984 in BMJ 336.º-484; Ac. RL de 14/04/1988 in BMJ 376.º-648; Ac. RL de 14/11/1999 in BMJ 411.º-636)5; i) - “essencialmente” quando esteja em causa o erro sobre os motivos por se considerar assumir o conteúdo da norma (Ac. RP de 10/01/2002 in CJ, I, 177); j) - “proprietário de veículo” (Ac. RL de 09/12/1993 in CJ, V, 149); k) - “necessidade de habitação própria” (Ac. RC de 20/03/1984 in BMJ 335.º-350); l) - “posse pública, pacífica e continuada” (Ac. STJ de 26/04/1994 in CJSTJ, II; Ac. RC de 13/05/1980 in CJ, III, 261). * A causa de pedir é entendida como o facto jurídico de que depende a pretensão do autor (artigo 498.º, n.º 4 do Código de Processo Civil). Cabe ao advogado estabelecer o primeiro crivo ou a primeira selecção da matéria de facto, separando os factos impertinentes dos factos relevantes, averiguando aqueles que, de acordo com o direito ou o meio de defesa escolhido, devem ser alegados e provados para que a pretensão ou defesa sejam procedentes. É por esta via que se traduzem em linguagem apropriada os acontecimentos concretos da vida real que subjazem ao litígio, sem correr os riscos inerentes a afirmações de pendor puramente jurídico ou de natureza conclusiva, sabendo-se quão difícil é, por vezes, encontrar expressões ou termos que substituam as expressões legais. É fundamental a alegação de matéria de facto, não correspondendo ao cumprimento desse ónus que impende sobre o autor a simples referência a conceitos legais ou a afirmação de certas conclusões desenquadradas dos factos subjacentes. Também não satisfaz o ónus de alegação a simples remissão para o conteúdo de documentos, não obstante essa petição inicial não se deva considerar inepta (neste sentido, Ac. STJ de 22/04/1997 in CJ-STJ, II, 60). Nem todos os factos alegados pelo autor na petição inicial integram a causa de pedir, sendo natural que o autor alegue factos meramente circunstanciais ou com simples função de enquadramento e clarificação dos factos essenciais. Vejamos a exemplificação de algumas causas de pedir: 5 Esta expressão foi considerada como de uso comum para considerar que o inquilino tem no local a sua morada habitual (Ac. STJ de 20/05/1986 in BMJ 357.º-418). 7 a) - nas acções baseadas em contratos, o núcleo essencial da causa de pedir é constituído pela celebração de certo contrato gerador de direitos pelo que, para além das cláusulas essenciais definidoras do negócio celebrado, deve o autor alegar os factos materiais indispensáveis à integração dos outros factos jurídicos ajustados à pretensão deduzida ou, pelo menos, deve o autor remeter para o conteúdo do documento que seja apresentado e que, contenha, de forma clara, a enunciação das cláusulas contratuais; b) - nas acções de anulação e declaração de nulidade, a causa de pedir é constituída pelos factos de onde o autor faz derivar a nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (teoria da individualização); c) - nas acções de responsabilidade civil extracontratual, a causa de pedir é complexa na medida em que envolve a situação de facto de onde emerge o direito a indemnização, pressupondo a alegação de matéria de facto relacionada com o evento, a ilicitude, a conduta culposa ou uma situação coberta pela responsabilidade objectiva, os prejuízos e o nexo de causalidade adequada entre o evento e o dano; d) - nas acções reais, a causa de pedir é preenchida pelos factos de onde o autor faz derivar o direito real. * Segue-se a formulação do pedido o qual se traduz no efeito jurídico pretendido pelo autor como forma de tutela do seu interesse (artigos 274.º, n.º 2, alínea c), 498.º, n.º 3 e 467.º, n.º 1, alínea d), todos do Código de Processo Civil) e que integra duas componentes: a) - uma componente substantiva que consiste na afirmação positiva do efeito jurídico material pretendido, devendo o autor precisar o facto ou o direito que quer ver reconhecido ou negado (nas acções de simples apreciação negativa), especificar a prestação em que o réu deverá ser condenado (nas acções de condenação) ou enunciar as vicissitudes que pretende operar na ordem jurídica (nas acções constitutivas) e na descrição do objecto, se o houver, sobre o qual incide aquele efeito; b) - uma componente processual consubstanciada na enunciação do tipo de actividade ou providência solicitada ao tribunal como modo de actuar o efeito jurídico pretendido. É frequente nesta parte da petição inicial aditar-se o pedido de condenação em custas e condigna procuradoria, não sendo obrigatória a formulação de tal pedido na medida em que essa condenação é obrigatória e oficiosa (artigos 446.º e 659.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil). Também não é obrigatória a indicação do pedido de citação do réu na medida em que esta é oficiosa e é efectuada sem dependência de despacho prévio, não fazendo assim sentido que se requeira a citação do réu6. Existe, todavia, uma hipótese em que incumbe ao autor requerer a citação com o fim específico de pretender que o réu seja citado em momento prévio à distribuição (artigos 234.º, n.º 4, alínea f), e 478.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) incumbindo ao autor o ónus de alegar motivos justificativos de a citação depender de despacho judicial prévio. 6 Quer esta menção de citação do réu, quer a menção de condenação deste nas custas e procuradoria, vêm mencionadas nos diversos prontuários e formulários processuais, expressando uma prática forense actualmente ultrapassada mas cuja inclusão (ou não inclusão) não tem quaisquer consequências processuais. 8 II A CONTESTAÇÃO A defesa por contestação traduz-se no acto processual mediante o qual o demandado, por articulado ou por mera junção de documentos, se opõe à pretensão deduzida pelo demandante. O prazo para contestação é um prazo processual, de natureza peremptória, cujo decurso extingue o direito de praticar o acto, radicando tal natureza no princípio da preclusão segundo o qual toda a defesa deve, em regra, ser deduzida na contestação (artigos 145.º, n.º 3 e 489.º, ambos do Código de Processo Civil). O oferecimento prematuro da contestação constitui mera irregularidade processual que não implicará necessariamente a sua rejeição, devendo ficar no processo a aguardar validação, salvo se a mesma ocorrer antes do próprio acto de citação em que o juiz poderá recusá-la ou mandá-la desentranhar (artigo 265.º, n.º 1 do Código de Processo Civil). A contestação apresentada depois de estar esgotado o respectivo prazo legal, incluindo a sua eventual prorrogação, diz-se extemporânea, discutindo-se a natureza do vício que afecta a apresentação da defesa nestas condições em que se configura como nulidade decorrente da prática de um acto que a lei não admite (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, Coimbra, pg. 508) e o conhecimento oficioso da extemporaneidade do acto processual decorre directamente do princípio da preclusão e do carácter público da disciplina processual relativa à sua fixação (Alberto Baltasar Coelho, Apresentação da Contestação fora do Prazo - Sua Natureza e Efeitos, in Revista dos Tribunais, n.º 1882, pgs. 243 a 355). Em suma, poder-se-á concluir que o conhecimento da nulidade emergente da prática de acto que a lei não admite, por esgotamento do respectivo prazo peremptório, não depende de arguição da parte interessada, mas é de conhecimento oficioso. * A defesa por contestação deve obedecer a um estilo e disposição gráficas em que a expressão literal deverão pautar-se pelo critério da inteligibilidade e os factos deverão ser deduzidos sob artigos. É de boa regra que o discurso utilizado seja claro, logicamente ordenado e em estilo que, sem ser rebuscado, permita uma fácil apreensão dos meios e argumentos da defesa. A linguagem utilizada deve obedecer aos ditames da urbanidade, evitandose expressões desnecessárias ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da parte contrária e do tribunal, sendo admitido o emprego de fórmulas consagradas na prática forense, que se revelem úteis à luz das exigências de economia processual. * Na narração dos factos, podemos destacar três segmentos essenciais: a) - o plano dos factos concretos que constituem o substracto factual da matéria de impugnação ou de excepção, os quais terão que ser deduzidos por artigos, devendo seguir-se a técnica de dedução de um facto por artigo, talhando-o nos seus traços essenciais e proceder a uma arrumação lógica e cronologicamente sequencial e coerente do factualismo pertinente, de modo a permitir a fácil apreensão dos fundamentos da defesa e tendo em conta que as excepções deverão ser especificadas separadamente (artigo 488.º, “in fine” do Código de Processo Civil); 9 b) - o clima moral do qual fazem parte as considerações que, não integrando propriamente a estrutura fáctica do litígio, explicam o seu contexto psicosocial, contribuindo assim para uma melhor compreensão da acção; c) - o plano das razões de direito, cuja dedução tanto pode ser feita pela citação dos dispositivos legais aplicáveis como pela referência às normas deles extraídas, sem subordinação necessária à forma articulada e devendo ser sucinta pois os articulados não constituem o momento processualmente próprio para a discussão das teses jurídicas em confronto. * Caso sejam invocados na contestação diversos meios de defesa, e ainda que a lei não imponha uma ordem rígida para a sua dedução, será conveniente atender à seguinte ordenação: I) - as questões processuais: a) - nulidades processuais que não conduzam à absolvição da instância; b) - excepções dilatórias (em princípio pela ordem estabelecida no artigo 288.º do Código de Processo Civil), salvo se razões metodológicas impuserem decisão diversa); c) - excepção de caso julgado; II) - as questões de mérito: a) - a impugnação de facto; b) - a impugnação de direito; c) - as excepções peremptórias: - por factos impeditivos; - por factos modificativos; - por factos extintivos. * Não obstante a lei processual não o referir expressamente, a boa técnica aconselha que o réu, após a narração, formule conclusões sobre a decisão que entende dever ser proferida em face dos meios de defesa invocados, nomeadamente pela absolvição da instância ou remessa do processo para o tribunal competente (se for caso disso) ou pela improcedência da acção e pela absolvição do réu no pedido. * A defesa por excepção dilatória constitui todo o meio de defesa que obste ao conhecimento do mérito, conduzindo à absolvição do réu da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (artigos 493.º, n.º 2 e 288.º, ambos do Código de Processo Civil). Pode assentar em falta de pressupostos processuais ou em nulidade que afecte a validade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, erro na forma do processo ou falta dos requisitos legais relativos à petição. As excepções dilatórias encontram-se previstas, de forma não taxativa (na medida em que se encontram previstas outras excepções dilatórias ditas inominadas) no artigo 494.º do Código de Processo Civil e a ordem lógica da sua alegação deve ser a que consta do artigo 288.º do mesmo Código, salvo se a especificidade da situação aconselhar outra metodologia. * A defesa por impugnação consiste na modalidade de defesa em que o réu contradiz os factos articulados pelo autor com vista à absolvição total ou parcial do pedido (artigo 487.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). Os factos impugnantes inscrevem-se assim no perímetro dos factos que servem de fundamento à acção, estando para com estes numa relação de 10 incompatibilidade total ou parcial, visando, por conseguinte, refutar ou descaracterizar os factos constitutivos invocados pelo autor. Pode ocorrer por negação directa ou formal que ocorre quando o réu contraria, de forma frontal e enxuta, os factos constitutivos alegados pelo autor, traduzindo-se numa “negação rotunda ou genérica do facto visado” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pg. 126). Contudo, na larga maioria dos casos, o réu não se limita à mera negação dos factos alegados pelo autor, apresentando uma contraversão (total ou parcial), tendente a descaracterizar a versão do demandante, ainda que aceitando parte dos factos por este invocados, traduzindo-se numa negação circunstanciada, assente em elementos justificativos, operando por negação indirecta, motivada ou “per positionem”. Importa registar que a impugnação apenas é susceptível de ter efeito útil defensivo se radicar em factos pertinentes (aqueles que dizem respeito aos fundamentos de facto da acção) e relevantes (os que dizendo respeito à causa, são susceptíveis de negar total ou parcialmente o efeito pretendido pelo autor). A defesa por impugnação implica sempre uma negação dos factos, ou dos seus efeitos jurídicos, através de negação simples e directa ou de negação motivada, que se traduz na alegação de outros factos distintos e opostos àqueles, dando-se uma nova versão da realidade; a defesa por excepção peremptória consiste na invocação de factos que, embora aceitando os primeiros, se destinam a impedir, modificar ou extinguir os seus efeitos jurídicos. A distinção entre negação motivada e a excepção peremptória é susceptível, na prática, de dúvidas, devendo-se, nesse caso, qualificá-la como impugnação, pela maior garantia dada à verdade material em face dos efeitos resultantes da falta de resposta (Ac. RP de 03/04/1990 in CJ, II, 222). Neste caso, a consequência processual consistiria na eventual inadmissibilidade de eventual resposta (ou réplica) por parte do autor (artigo 502.º, n.º 1 do Código de Processo Civil). Contudo, não considero ser essa a melhor solução, por um lado, porque nem sempre é possível delimitar, com rigor, essa distinção e, por outro lado, porque o princípio da verdade material aconselha a que sejam considerados todos os elementos colocados na acção pelas partes, sem prejuízo dos factos em causa virem a ser considerados irrelevantes ou improcedentes ou de que a matéria deveria ser objecto de reconvenção e não de excepção (neste sentido, Ac. STJ de 11/05/1993 in Revista Sub Judice - Novos Estilos n.º 5, pg. 99). Numa outra situação, pode ainda suceder que o réu desconheça o facto invocado pelo autor, não sendo legítimo exigir-lhe que assuma posição definida sobre o mesmo, negando-o ou contrariando-o, podendo limitar-se a dizer que não sabe nem tem obrigação de saber se o facto é verdadeiro. Esta forma de contestação é admitida pelo artigo 490.º, n.º 3 do Código de Processo Civil equivalendo a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o impugnante deva ter conhecimento ou a impugnação no caso contrário. A natureza pessoal do facto e a obrigatoriedade do seu conhecimento deverão ser aferidas segundo as circunstâncias do caso concreto, tendo em conta, nomeadamente, o âmbito da actividade do contestante7. A mera circunstância de ter decorrido muito tempo sobre o facto indagado não dispensa, por si só, o réu da obrigatoriedade do seu conhecimento; se, por acaso, o 7 É dada por confessada a matéria de facto articulada pelo autor quando o réu, na contestação, diz apenas não saber se a dívida existe e o seu montante quando o mesmo era um sócio não exonerado da respectiva gerência, o qual tinha o dever de conhecer a administração e a actividade comercial da sociedade (Ac. RL de 22/02/1974 in BMJ 234.º-336). 11 contestante tiver dificuldade na reconstituição do facto, poderá dizer que, tanto quanto se lembra, tal facto não ocorreu do modo descrito pelo autor, podendo mesmo apresentar uma versão apoiada nos elementos que recorda. O que não é lícito é limitar-se a dizer que não sabe nem tem obrigação de saber se o facto é verdadeiro por já ter ocorrido há bastante tempo pois esta atitude é violadora do ónus de impugnação especificada, equivalendo a confissão (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3.ª ed., pg. 61). * O ónus de impugnação consiste na necessidade de o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição inicial, sob pena de os mesmos serem admitidos por acordo, ónus esse que se estende aos articulados posteriores à contestação (artigo 505.º do Código de Processo Civil). Não obstante a redacção emergente da Reforma de 1995/1996 ter operado alguma atenuação deste ónus de impugnação, importa reter a seguintes regras básicas: a) - não se dispensa, em regra, a impugnação; b) - não exige que a mesma se faça, necessariamente, sob a forma especificada, facto por facto, podendo ser dirigida tanto a uma determinada espécie factual como a um conjunto fáctico, desde que assuma um recorte definido em função da densidade, heterogeneidade e extensão dos factos impugnados; c) - não implica a admissibilidade da impugnação genérica do articulado, na medida em que esta modalidade de impugnação se mostra incompatível com a exigência de uma posição definida perante os factos; d) - permite que a impugnação continue a poder ser efectivada pela menção do número dos artigos identificadores dos factos narrados, sem necessidade de reproduzir o conteúdo da alegação objecto de impugnação; e) - basta-se com a simples oposição (ainda que não manifesta) do facto com a defesa considerada no seu conjunto (artigo 490.º, n.º 2 do Código de Processo Civil); f) - é de admitir que a impugnação ambígua ou equívoca possa ser passível de despacho de convite ao aperfeiçoamento (artigos 266.º, n.º 2 e 508.º, n.º 3 do Código de Processo Civil). * A impugnação de facto pode ser efectuada: a) - por individualização, singular ou conjunta, directa dos factos que se pretendem impugnar, com referência aos seus traços essenciais, sem que seja necessária a especificação de todos os seus pormenores8; b) - pela menção, total ou parcial, do número dos artigos que identificam os factos a impugnar; c) - por junção de documento cujo teor contradiga facto narrado pelo autor; d) - por oposição resultante do confronto de facto narrado pelo autor com a defesa considerada no seu conjunto (artigo 490.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). * Na impugnação de facto e ónus de prova, importa reter que, segundo as regras basilares deste princípio (artigo 342.º do Código Civil), impende sobre o autor o ónus de provar os factos constitutivos alegados como fundamento da sua pretensão. Não cabe ao réu provar os factos aduzidos em impugnação daqueles, tanto mais que lhe basta apenas tornar duvidosos os factos constitutivos, para que a questão seja decidida contra o autor (artigo 346.º do Código Civil). 8 Sobre a impugnação dos traços essenciais do facto, sem necessidade de impugnar todos os pormenores (Ac. RE de 03/04/1987 in CJ, II, 250); sobre a impugnação de verbas contabilizadas em conta-corrente (Ac. RP de 13/12/1984 in CJ, V, pg. 268). 12 Assim, a organização da base instrutória far-se-á, em princípio, sobre a versão da parte onerada com a prova - factos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos - e que constituem o objecto de julgamento da matéria de facto. Isto não quer dizer que a matéria da impugnação fique subtraída à instrução e discussão da causa pois está implícita nos factos seleccionados, como se estivesse na sombra deles, sendo por isso objecto dos respectivos procedimentos probatórios. Nalguns casos, impõe-se mesmo levar à base instrutória a matéria da impugnação, designadamente quando seja susceptível de contribuir para uma descaracterização parcial da versão do autor, completando-a ou corrigindo-a, mas ainda com relevo para a procedência da acção, o que ocorre nas situações de factualismos complexos em que se pode vir a provar uma versão intermédia em relação às posições alegadas pelas partes (e.g. nos acidentes de viação com várias versões, nas situações em seja invocada a simulação, nas ofensas recíprocas entre cônjuges no quadro de uma acção de divórcio, na alegação de actos de posse sobre determinado prédio pelo autor e pelo réu, em que importa apurar qual deles beneficia da presunção de melhor posse). Incumbe ao juiz ponderar, conforme o contexto do litígio, sobre a conveniência ou utilidade de seleccionar especificamente, na base instrutória, a matéria de facto da impugnação, sem prejuízo da possibilidade de reclamação da base instrutória. Nas acções de simples apreciação negativa, porém, incumbe ao réu o ónus de provar os factos constitutivos do direito que se arroga (artigo 343.º, n.º 1 do Código Civil) pelo que, nestas hipóteses, a impugnação do réu tem uma natureza equivalente à da petição inicial, devendo ser seleccionada, na base instrutória, como se de factos fundamentantes da acção se tratassem. * A impugnação de direito consiste na modalidade de defesa através da qual o réu se limita a afirmar que os factos alegados pelo autor não são susceptíveis de produzir o efeito jurídico por este pretendido (artigo 487.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código de Processo Civil) em que o impugnante aceita o quadro fáctico alegado pelo autor mas contradiz o respectivo enquadramento jurídico. Tem sido motivo de alguma controvérsia a hipótese de arguição, pelo réu, da nulidade de um contrato, existindo a tendência a considerar tal arguição como defesa por excepção. Há que distinguir diversas situações: - a nulidade absoluta pode resultar das características mesmas do acto em confronto com a lei (v.g. falta de forma) e então deduz-se por impugnação de direito ou de algo acidental que acresce ao acto (v.g. a simulação) e, neste caso, é objecto de excepção (neste sentido, Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, pg. 112). A impugnação de direito pode projectar-se: a) - no plano da previsão normativa, contrariando a qualificação dos factos dada pelo autor; ou b) - no domínio da estatuição, afrontando os efeitos que o autor pretende fazer derivar dos factos alegados. A mera impugnação de direito obsta à revelia mas não interfere com a eficácia decorrente da inobservância do ónus de impugnação, considerando-se os factos confessados e podendo a acção ser julgada logo que findem os articulados (artigos 510.º, n.º 1, alínea b), e 795.º, n.º 1 do Código de Processo Civil). A falta de impugnação de direito não importa qualquer cominação na medida em que o juiz tem de julgar a causa em conformidade com as normas legais aplicáveis (artigo 484.º, n.º 2, “in fine”, do Código de Processo Civil). * 13 A defesa por excepção peremptória consiste na invocação, por parte do réu, de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico derivado dos factos alegados pelo autor e que conduzem, por consequência, à absolvição total ou parcial do pedido (artigos 487.º, n.º 2, “in fine” e 493.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil). Na defesa por impugnação de facto, o réu, põe, frontalmente, em causa os factos alegados pelo autor, negando-os ou procurando descaracterizá-los, total ou parcialmente, invadindo assim o campo factual traçado no petitório. Na defesa por excepção peremptória, o réu não questiona esses factos, mas flanqueia-os, alegando, paralelamente, factos susceptíveis de produzir um contra-efeito neutralizador ou modificador da pretensão do demandante. Por conseguinte, na defesa por impugnação de facto, há uma incompatibilidade total ou parcial, no plano factual, entre a versão do autor e a do réu. Na defesa por excepção peremptória, não se verifica incompatibilidade ao nível dos factos - que podem coexistir lado a lado - mas sim no plano jurídico, na medida em que os factos excipientes produzem por si efeitos que obliteram ou modificam o efeito pretendido pelo autor. Na impugnação de direito, o réu aceita os factos alegados pelo autor, mas nega que tenham a virtualidade de produzir o efeito jurídico que este lhes atribui. Na defesa por excepção peremptória, o réu admite que os factos articulados pelo autor sejam susceptíveis de produzir o efeito pretendido, mas visa obstruir ou alterar este efeito pelo contra-efeito derivado de outros factos (os factos excipientes). Vejamos o seguinte exemplo: O autor alega que celebrou com o réu um determinado contrato, sujeito a forma especial, pedindo que este seja obrigado a pagar a respectiva contrapartida emergente das prestações sinalagmáticas do negócio. O réu poderá: a) - negar, de todo, a existência de tal contrato (impugnação do facto por simples negação); b) - alegar que a contrapartida acordada é inferior ao pedido formulado (impugnação de facto “per positionem”); c) - limitar-se a afirmar que o contrato é nulo por falta de forma (impugnação de direito); d) - deixar intactos os factos invocados pelo autor mas acrescentar que a sua vontade estava viciada, arguir excepção de não cumprimento ou invocar outro facto conducente à resolução do contrato (defesa por excepção). * Numa análise estrutural da excepção peremptória, poderemos destacar duas vertentes: a) - por um lado, o suporte fáctico susceptível de preencher a previsão de uma norma impeditiva, modificativa ou extintiva da que sustenta a pretensão do autor (Ac. STJ de 30/01/1986 in BMJ 353.º-396); b) - por outro lado, uma dimensão normativa consistente na qualificação daquele substracto factual e no consequente efeito impeditivo, modificativo ou extintivo potenciado por aquela norma. Em suma, a excepção peremptória não se confina a um singular fundamento de facto nem se reduz à invocação de meras razões jurídicas, constituindo antes uma questão a resolver (artigo 660.º, n.º 2 do Código de Processo Civil) integrada por elementos de facto e de direito susceptíveis de conduzir à absolvição total ou parcial do pedido. 14 Assim, só constitui defesa por excepção a alegação de factos mediante a qual o réu, não atacando frontalmente a causa de pedir ou o efeito que o autor dela pretende tirar, traz à colação uma questão nova, com vista a diferir ou impedir o conhecimento do pedido, tendo em conta que as excepções não são factos, são questões e a argumentação factual não é questão pelo que, estando articulados factos que poderão significar erro e mesmo dolo relativamente à declaração negocial, tal integra matéria de excepção peremptória quando os pedidos do autor assentam na validade e vigência da situação concreta decorrente dessa declaração (neste sentido, Ac. STJ de 11/05/1993 in BMJ 427.º-462 / Revista Sub Judice - Novos Estilos n.º 5, pg. 99). 15 III SANEAMENTO E CONDENSAÇÃO Cabem na condensação da matéria de facto não apenas os factos controvertidos mas ainda os factos que, nesse momento, já possam considerar-se provados, pela interferência dos diversos factores de ordem substantiva ou processual que a isso conduzem: - a confissão judicial ou extrajudicial expressas, confissão ficta ou tácita, acordo das partes ou por documentos com força probatória suficiente. Assim, serão considerados provados os factos que estiverem expressa ou tacitamente confessados, salvo se a confissão não for admissível ou for insuficiente (artigo 490.º do Código de Processo Civil)9. A par desses factos, serão considerados assentes aqueles sobre os quais exista acordo, desde que a vontade das partes seja suficiente para vincular o tribunal. Por último, são de considerar provados os factos comprovados por documento com força probatória suficiente. * O bom advogado deve submeter a um paciente trabalho de selecção e depuração os materiais fornecidos pelo seu constituinte mas, mesmo quando esta operação de filtragem seja efectuada com escrúpulo, cuidado e apuro técnico, sempre fica alguma matéria que pode considerar-se estéril e inerte, dada a natural tendência do advogado para reputar importantes e úteis factos que se lhe afiguram favoráveis ao ponto de vista do mandante. Na verdade, os articulados deveriam servir para colocar a questão ao tribunal e para definir e delimitar os termos precisos do litígio; convertê-los num longo arrazoado jurídico, num debate de argumentos, considerações e razões de direito, é adulterá-los e desvirtuá-los, transformando-os em alegações jurídicas (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pg. 355). Na fixação da base instrutória, o juiz deverá atender aos factos relevantes para a decisão final, segundo as várias soluções plausíveis de direito e que devam considerar-se controvertidos (artigo 511.º, n.º 1 do Código de Processo Civil). Se o juiz entender que a matéria de facto releva para uma decisão final que as partes não equacionaram deve dar-lhes a oportunidade de completarem ou corrigirem as suas posições, para evitar as denominadas decisões-surpresa, o que não ocorre, como é óbvio, em caso de desnecessidade (artigo 3.º, n.º 2 do mesmo Código). * Os factos controvertidos deverão ser reunidos numa peça processual que a lei designa por base instrutória. No preenchimento do conteúdo desta expressão normativa, parece-nos que deve ser afastada uma interpretação que considere suficiente o isolamento da matéria de facto através de “grandes temas”, correspondentes a outras tantas questões jurídicas que no processo se suscitem. Correspectivamente, parece ser dispensada a necessidade do preenchimento da base instrutória com factos funcionalmente instrumentais, indiciários ou probatórios, a não ser naquelas situações em que tal selecção se revele útil para a boa decisão da causa, na perspectiva da matéria de facto ou da matéria de direito. 9 Se a contraparte impugnou o facto principal, estão igualmente impugnados os respectivos factos instrumentais eventualmente alegados pela outra parte; se a contraparte não alegou o facto principal, este facto considera-se admitido por acordo, pelo que os factos instrumentais alegados, porque se destinavam apenas a realizar a prova do facto principal, tornam irrelevantes. 16 É o que acontece, por exemplo, nos casos em que se revele necessária a utilização de presunções judiciais que, através dos factos instrumentais dados como provados, permitem ao tribunal a retirada de conclusões quanto a factos cuja prova directa é difícil ou inacessível ao conhecimento humano. Inequivocamente, devem ser inseridos na base instrutória os factos essenciais, isto é, aqueles que, de acordo com as normas aplicáveis ao caso, exerçam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou, pelo contrário, tenham natureza impeditiva, modificativa ou extintiva de tal direito, de acordo com alguma das soluções plausíveis da questão de direito. Quanto aos factos instrumentais, circunstanciais ou probatórios, é certo que da respectiva prova não deriva imediatamente a solução jurídica do caso mas razões ligadas a um mais correcto apuramento da verdade material podem conjugar-se e aconselhar a sua inserção na base instrutória. * Nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil a selecção da matéria de facto deve ser antecedida - ou acompanhada - do debate necessário para que da discussão o juiz possa retirar os frutos necessários o que não afasta, é claro, que o juiz ou as partes se munam de um projecto de base instrutória como forma de marcar os respectivos pontos de vista e tornar mais eficaz e célere a tarefa. Não obstante a permanente centralização na figura processual do juiz, a verdade é que a selecção factual na audiência preliminar deve, tanto quanto possível, ser levada à prática por consenso das partes, circunstância que lhe vai conferir maior eficácia e celeridade, na medida em que se evitam as reclamações da selecção da matéria de facto e podem permitir que a instrução seja limita às questões que sejam efectivamente controvertidas e que constituem o cerne do litígio submetido a julgamento10. Nada na lei obriga a que a exista a atomização da matéria de facto, parecendo-nos mais conveniente a junção de diversos factos que, entre si, estejam numa relação de proximidade, de modo a facilitar a compreensão do objecto do litígio, a condução da audiência de julgamento e a elaboração da sentença na parte do relatório. Os factos controvertidos e os considerados como provados, devem ser ordenados, não de acordo com a sua entrada no processo ou a sua localização nos articulados das partes, mas numa determinada ordem lógica ou cronológica, que facilite a produção de prova e evite contradições na decisão do tribunal quanto à matéria de facto que considere provada e não provada. Sendo diversas as questões de facto suscitadas pelas partes e com interesse para a decisão da causa, parece-nos mais correcta a sua ordenação por “blocos”, independentemente da origem dos respectivos factos, nomeadamente: a) - numa acção de responsabilidade extracontratual, o processo causal do sinistro, as circunstâncias de tempo e de lugar, os factos relativos à culpa efectiva ou presumida ou ao risco, os danos patrimoniais e os não patrimoniais; 10 Nalguns casos, a realização da audiência preliminar tem permitido diminuir o conteúdo da instrução e do enunciado dos factos controvertidos, o que pode trazer vantagens acrescidas para ambas as partes, não apenas pela celeridade e menor duração das diligências de instrução mas também porque liberta as partes das preocupações subjacentes ao respeito pelos limites da prova que podem produzir. Basta pensar nas situações de limites de testemunhas por cada facto, para mais tendo em consideração que o advogado não pode ter quaisquer contactos com as testemunhas. 17 b) - numa acção de resolução de contrato de arrendamento, a invocação da qualidade de senhorio, a existência de contrato de arrendamento e os factos constitutivos do direito de resolução do arrendamento; c) - numa acção de responsabilidade contratual, a invocação do contrato e dos factos que justificam a culpa do devedor; d) - numa acção real, a invocação do direito real e dos factos que consubstanciam a violação desse direito. Devem ser erradicadas a condensação as alegações com conteúdo técnicojurídico, de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham, simultaneamente, uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem (v.g. renda, contrato, proprietário, residência permanente)11. Por constituir matéria de facto, nada obsta à integração na base instrutória de tudo quanto respeite à vontade conjectural ou hipotética das partes para efeito de interpretar o conteúdo negocial [neste sentido, Ac. STJ de 04/03/1969 in RLJ 103.º-211 (anotado por Vaz Serra); Ac. STJ de 25/03/1969 in RLJ 103.º-281 (anotado por Vaz Serra); Ac. STJ de 17/01/1985 in RLJ 122.º-301 (anotado por Antunes Varela)]. * De entre as versões da matéria de facto controvertida (a afirmação do facto e a sua negação ou a alegação de uma versão dos acontecimentos e a alegação de outra versão em sentido inverso), cabe ao juiz seleccionar aquela que, de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova, deva ser provada para que a acção proceda ou para que o efeito jurídico pretendido pelo autor seja impedido. Nesta medida, nada obsta a que determinado facto, alegado na versão negativa, por integrar um dos pressupostos normativos de que depende a procedência da acção ou da excepção seja isolado e colocado, assim, na base instrutória. As dificuldades de prova inerentes a tais realidades não devem determinar a inversão das regras sobre a distribuição do ónus probatório. A procedência das acções pressupõe precisamente a prova de factos com função constitutiva dos direitos potestativos pelo que, encarando o ónus da prova em termos objectivos, como emerge do nosso sistema, significa que tais factos, se não se provarem, a acção improcede pelo que é a versão que beneficia o autor aquela que deverá ser transposta “prima facie” para a base instrutória. * Em princípio, deve ser evitada a dupla quesitação, salvo nas situações em que também determinados factos alegados pelo réu em sede de impugnação podem ter interesse para a correcta e completa integração jurídica ou no apuramento da litigância maliciosa, em que se impõe a pronúncia específica sobre a versão oposta, uma vez que a simples resposta negativa a determinados pontos de facto não tem o significado de se dar como provada a versão contrária. * O juiz deve restringir-se à matéria de facto alegada pelas partes, não parecendo que o sistema consinta que o juiz se substitua às partes nessa tarefa, alterando, ainda que apenas formalmente, as afirmações dos factos feitas pelas partes ou inserindo factos nem sequer alegados. A alegação de matéria conclusiva ou de conceitos jurídicos, não acompanhada dos necessários factos concretizadores, não pode ser suprida, ex officio, 11 Nada vale a integração na base instrutória de questões de direito na medida em que, se tal ocorrer e o tribunal, depois de produzida a prova, lhe der resposta, considera-se não escrita (artigo 646.º, n.º 4 do Código de Processo Civil). 18 pelo juiz, substituindo-se às partes, mas através do despacho de aperfeiçoamento ou da intervenção das partes em audiência preliminar (artigos 508.º, n.º 3 e 508.º-A, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil) ou, em último lugar, na audiência de julgamento (artigo 264.º, n.os 2 e 3 do mesmo Código). Nada obsta, porém, a que determinada questão de facto reúna elementos retirados de diversos pontos do articulado ou de diversos articulados, desde que a mesma represente, com fidedignidade, o sentido das alegações, constituindo esta uma forma de ordenar aquilo que, por vezes, é alegado pelas partes, sem respeito pelo disposto nos artigos 467.º e 488.º do citado Código. O juiz não está vinculado a respeitar a ordem pela qual os factos foram alegados, nem sequer está impedido de concentrar, numa só questão, diversos factos disseminados pelos articulados, desde que não extravase dos limites materiais da alegação. Mas isto não pode ser entendido como uma forma de o juiz se substituir às partes no ónus de alegação e ajeitar os factos da forma que lhe pareça mais conveniente, tendo em conta a futura integração do caso. * Deve evitar-se a selecção de factos por remissão para o conteúdo de documentos na medida em que os documentos não são factos, mas simples meios de prova dos factos alegados (neste sentido, Ac. RC de 21/09/1993 in CJ, IV, 37; Ac. RL de 17/01/1991 in CJ, I, 133; Ac. RL de 24/06/1993 in CJ, III, 139). Se, eventualmente, a alegação dos factos tiver sido feita por remissão para os documentos, considerados estes como uma simples extensão dos articulados, deve o juiz seleccionar dentro dos referidos documentos os factos que importem à decisão da causa12. * Devem ser seleccionados os factos articulados que interessem à decisão da acção de acordo com alguma das soluções plausíveis da questão de direito. Neste campo, não tem o juiz que guiar-se por critério meramente subjectivo, orientado pela qualificação jurídica, pelas normas e pela solução que tem em mente nesta fase processual, antes deve acautelar a prova de todos os factos que tenham alguma relevância para correcta e, eventualmente, divergente integração jurídica. Com efeito, nada garante que o juiz que realiza a condensação da matéria de facto seja aquele que se vai incumbir da realização do julgamento e da elaboração da sentença, nem estando afastada a possibilidade de as partes recorrerem da decisão final e de os tribunais superiores entenderem que a correcta resolução do litígio implica o alargamento da matéria de facto (artigo 712.º, n.º 4 do Código de Processo Civil). São estas razões mais do que suficientes para que o juiz se paute por um critério mais objectivo, que aproveite factos que sejam, em abstracto, relevantes para a correcta integração jurídica do caso. O juiz deve ter a humildade necessária para admitir que, em matéria de integração jurídica dos factos alegados pelas partes, podem existir diversas soluções defensáveis, não parecendo legítimo que, apeando-se na sua interpretação pessoal, coarcte o leque de soluções razoavelmente defensáveis. Contudo, deve evidenciar-se que a utilização de um critério que não tenha ponderado toda a matéria de facto relevante não obsta a que o juiz, na audiência de 12 Sobre esta questão, existe jurisprudência que entende inadmissível a remissão para documentos relativamente aos factos integradores da causa de pedir (Ac. RL de 11/01/1981 in CJ, III, 93; Ac. RL de 27/09/1988 in CJ, IV, 115) e outra que entende admissível, podendo suscitar a prolacção de despacho de aperfeiçoamento (Ac. RL de 24/02/1994 in CJ, I, 137; Ac. STJ de 08/02/1994 in CJ-STJ, I, 85; Ac. RL de 23/02/1989 in CJ, I, 141). 19 julgamento, acrescente à base instrutória os factos que, estando controvertidos, possam ter a virtualidade de interferir na correcta solução do caso (artigo 650.º, n.º 2, alínea f), do Código de Processo Civil). A instrumentalidade da base instrutória e o consequente afastamento das regras gerais sobre o caso julgado formal a isso conduzem, apesar de não se encontrar na letra da lei apoio expresso a esta solução. * A parte que discorde da selecção da matéria de facto efectuada pelo juiz pode reclamar por deficiência, excesso ou obscuridade e a mesma pode incidir sobre a matéria de facto considerada assente ou aquela inserida na base instrutória (artigo 511.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). As reclamações contra a selecção da matéria de facto são, após contraditório, logo decididas (artigo 508.º-B, n.º 2 do Código de Processo Civil, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março) o que significa que deixaram de ser apresentadas no início da audiência de julgamento, caso não tivesse sido realizada audiência preliminar. Não existe recurso autónomo da decisão sobre a reclamação, a qual apenas pode ser impugnada com o recurso da decisão final (n.º 3 do citado artigo). O juiz não deve temer as reclamações nem indeferi-las injustificadamente na medida em que, sendo a condensação uma peça processual com simples função instrumental, destinada a facilitar a realização do julgamento, é preferível corrigir uma falha imediatamente detectada e reclamada pela parte do que persistir no erro e, com ele, afectar os direitos substanciais envolvidos ou motivar que, em sede de recurso, o tribunal superior tenha de ordenar a ampliação da base instrutória e determinar a repetição parcial do julgamento. * A reclamação da selecção da matéria de facto apenas pode ser considerado um incidente tributável naqueles casos em que a mesma viola frontalmente o direito adjectivo ou substantivo e corresponde, de modo inequívoco, a uma forma de entorpecer o andamento do processo, com manobras de puro teor dilatório, reflectindo anormalidade relativamente ao desenrolar da lide em concreto, manifesta falta de fundamento legal da reclamação e clamorosamente injustificada e destinada a protelar o normal desenvolvimento da lide (Ac. RC de 12/07/1978 in CJ, IV, 1132). Tratando-se de reclamações ponderadas e razoáveis, ainda que delas discorde o juiz e a parte fique vencida, não deve existir tributação autónoma na medida em que a reclamação deve ser entendida como o exercício de um direito de natureza processual enquadrado na tramitação normal da acção. Barreiro, 4 de Novembro de 2009 António José Fialho (Juiz de Direito)