REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 176 ANALISANDO O CONSELHO DE CLASSE QUANTO PRÁTICA ESCOLAR SILVA, Benícia1 O presente relato teve origem a partir de uma proposta pedagógica na disciplina Estágio III do curso Ciências Biológicas – Licenciatura, na Universidade Federal do Rio Grande, FURG. Foi observada uma reunião de Conselho de Classe em uma escola estadual de ensino fundamental da cidade de Rio Grande/RS, na qual foi realizado o estágio supervisionado. Nesta observação algo foi provocado e surgiu a necessidade de refletir e escrever acerca desta prática escolar que se constitui, em algumas instituições, erroneamente como um instrumento de poder que marca fortemente sujeitos/alunos que nessa prática, são/estão indefesos posto que sua defesa seja colocada por sua ausência. Este trabalho tem como intenção discutir como os alunos são analisados, diagnosticados e avaliados de forma padronizada e classificatória, tendo posteriormente seus desempenhos registrados, sendo que as vivências que os constituíram como sujeitos até então são ignoradas e não há nenhum interesse e preocupação em investigar os resultados e tampouco criar alternativas de progresso. A ESCOLHA DA TEMÁTICA Este trabalho é fruto de uma proposta pedagógica na disciplina Estágio III do curso Ciências Biológicas – Licenciatura, na Universidade Federal do Rio Grande, FURG. Foi proposta a escrita de um artigo/relato após o término do estágio supervisionado em sala de aula. Este artigo/relato deveria ter como base um aspecto significativo vivenciado durante a experiência de estágio. O estágio foi realizado em uma escola da rede municipal localizada na cidade de Rio Grande/RS, num período de dois meses com uma turma de 5ª série do ensino fundamental. Nesta instituição a recepção foi calorosa, tanto pelas diretoras, coordenadora e professores, quanto pelos alunos. Foi perceptível o quanto os membros SABER ACADÊMICO - n º 07 - Jun. 2009/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 177 escolares queriam que eu me sentisse à vontade e como parte integrante da escola, nesse sentido, frequentemente surgiam convites para participar de atividades escolares. Durante o estágio mantive os olhos atentos em busca de um aspecto que realmente significasse e que viesse a servir como base para a produção deste artigo. Posso afirmar que incontestavelmente nenhum outro assunto revelou-se mais instigante que este que intitula o presente trabalho. A inserção no Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola (GESE), na FURG, no qual são discutidas questões de corpos, gêneros e sexualidades, fez com que instintivamente as observações no Conselho de Classe fossem vinculadas a tais temáticas e principalmente no quanto esta prática escolar influencia na constituição dos sujeitos/alunos como um marcador de corpos e identidades. No GESE, sou interpelada por discursos que admitem que os corpos, os gêneros e as sexualidades são construções sócio-históricas, assim como nossas identidades. Para Hall (2004, p. 13). a identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistema culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. Nesse sentido, desde nosso nascimento somos submetidos a regras, conceitos, esteriótipos e outras demarcações que nos cercam e acompanham por toda vida e que influenciam fortemente na constituição de quem somos e poderemos ser, admitindo que estamos em constante “produção”. A escola tem importante papel nesta construção, pois parte de nossas vidas se passa dentro desta instituição, o que inevitavelmente a torna também responsável pelo processo de produção de nossas identidades. Nessa instituição é vivenciado o Conselho de Classe como prática avaliativa na qual podemos observar o quanto os discursos dos profissionais da educação são preconceituosos, imparciais e marcantes na constituição dos alunos/sujeitos. Notas e comportamentos servem como argumento para que alunos sejam classificados e rotulados por identidades criadas e sugeridas por professores, diretores, coordenadores e demais membros que possam vir a participar de tal reunião. CONSELHO DE CLASSE: MARCANDO CORPOS E IDENTIDADES SABER ACADÊMICO - n º 07 - Jun. 2009/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 178 O Conselho de Classe caracteriza-se como uma reunião periódica que ocorre na instituição escolar, na qual reúnem-se professores, coordenadores, supervisores, diretores, orientadores e em determinadas situações alunos, para que coletivamente reflitam e avaliem o processo de ensino-aprendizagem. Neste encontro o objetivo não deve ser apenas saber se o aluno foi aprovado ou não nas disciplinas, mas sim encontrar as dificuldades deste e/ou da turma e desenvolver estratégias para que os obstáculos sejam vencidos. Importante ressaltar que não apenas os alunos possam apresentar dificuldades, mas também os professores, que “representam” a instituição de ensino na sala de aula. O Conselho de Classe observado é referido ao primeiro bimestre de 2008 da escola na qual foi realizado o estágio supervisionado. O convite para esta reunião, a qual não se encaixou perfeitamente nas descrições feitas nos parágrafos acima, foi realizado pela coordenadora da escola. Quando aluna, eu imaginava como deveriam ser os conselhos e, infelizmente, a imaginação não falhou. Sentados em volta de uma grande mesa professores falam de seus alunos como se fossem pessoas distantes, comentam rapidamente sobre suas atitudes, fazem diagnósticos e os classificam por meio de conceitos de cunho avaliativo que posteriormente são fixados aos seus boletins. O método de avaliação foi um dos aspectos que considerei como mais “defeituoso” desta prática escolar. O primeiro ponto observado foi que os alunos são vistos como se fossem objetos imutáveis, pois não é discutida nenhuma forma de investigação do porque um aluno tira notas baixas, porque é tão agitado, porque é tão agressivo, porque é apático, porque não participa. Além das notas/conceitos, no boletim também são registradas frases que verificam o desempenho do aluno durante o bimestre. A forma com que esta conferência se dá foi outro ponto relevante que cabe ser discutido. Um pedaço de papel é entregue a cada professor presente na reunião. Neste papel estão enumeradas algumas frases – 1. Continue assim; 2. Demonstra crescimento; 3. Precisa vencer algumas dificuldades; 4. Precisa diminuir a conversa; 5. Precisa de mais estudo; 6. Precisa melhorar a falta de atenção; 7. Precisa rever as atitudes. – e a partir de uma média entre as notas tiradas em todas as disciplinas, estas frases vão sendo encaixadas aos boletins. SABER ACADÊMICO - n º 07 - Jun. 2009/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 179 Isto pode ser melhor entendido nas frases abaixo que foram transcritas do Conselho de Classe observado2. Professora A: Vamos começar! A.B.! Para mim ela é frase 3 pra baixo. Pois ela ficou com nota 3,2 comigo. Professora B: Ah, comigo também, ela é péssima. Fora aquela carinha nojentinha. Professor: E é abusada! Eu: É mesmo! Ela já me enfrentou duas vezes dizendo que eu não entreguei material para ela, sendo que eu tinha certeza que sim. Mas a postura dela é incrível. Ela é bastante petulante. [...] Professora A: G.M.! Pra mim é só frase 3! Eu: Comigo ele é frase 2! Professor: Mas que nota ela ficou contigo? Eu: 6,7! Professor: Então não pode ser frase 2! Porque frase 2 é só para quem tirou entre 8 e 9. [...] Eu: K.M.! Para mim é frase 3 pra baixo! Professora C: Comigo também! Professora E: Quem é esse? Alguém me alcança a foto da turma! Ah, é esse! É muito fraquinho... Eu: Na minha aula ele nem respira. Professora E: Pois é. Tanto que eu nem lembrava dele! (Risos) [...] Professora D: P.G.! É frase 2! Eu: Mas ele é ótimo! Por que não frase 1? Professora A: Ele tirou mais que 9 contigo? Eu: Não. Tirou 8,5. Mas ele é um dos melhores da turma. Professora A: Mas não pode... Professora E: Quem é esse mesmo? Ah, o gordinho! Ele é muito chatinho, peguento! Tem sempre que dá beijinho... SABER ACADÊMICO - n º 07 - Jun. 2009/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 180 Analisando o conjunto dessas falas mencionadas é fato que a escola só avalia o desempenho a partir de notas e é só isso que realmente importa. Este tipo de avaliação padroniza os alunos e faz parecer que o aluno nota 9 “não tem nenhuma dificuldade”, ou que o 8, mesmo sendo um ótimo aluno, “não deve continuar assim”. No Conselho de Classe os professores classificam os alunos construindo identidades escolarizadas e robotizadas, pois todos devem se adequar ao que é conferido pela escola e professores, “através de múltiplos, sutis e refinados mecanismos e estratégias, as marcas da escolarização são inscritas nos corpos dos sujeitos”(SILVA, 2007. p. 30). Ao sair do Conselho de Classe me remeti ao tempo de escola. Para Quadrado (2007), a escola é um espaço social que apresenta determinadas representações culturais que nos constituem e habilitam e delimitam o que podemos ser. Tudo o que foi colocado no meu boletim não mostrava quem eu realmente era, mas sim como os professores me viam e quanto suas significações ao meu respeito me influenciaram e ainda hoje sugerem muito a respeito da minha personalidade. Nas vésperas de buscar o boletim a ansiedade prevalecia e no dia o caminho até a escola era longo. Silêncio absoluto na ida e o oposto na volta. O carro se transformará num tribunal e o boletim a prova do delito. Mil explicações e argumentos eram dados pelos registros no boletim sem nem imaginar que um dia estaria do outro lado, passando de vítima à acusação. Pensando no Conselho de Classe e observando novamente as falas acima mencionadas percebo o erro cometido. Com minha participação frases prontas foram fixadas aos boletins dos alunos da 5ª série e nenhuma estratégia investigativa para compreender melhor as atitudes deles foi lançada. A última coisa que eu gostaria de fazer como professora é marcar meus alunos negativamente. Mas a sensação que tenho é que ao participar do Conselho de Classe acabei fazendo isso de alguma forma. CONSIDERAÇÕES FINAIS Seguindo a profissão de professora certamente passarei por outros conselhos de classe. Talvez eu não mude a escola, não mude os outros professores, mas a mim eu SABER ACADÊMICO - n º 07 - Jun. 2009/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 181 posso mudar. Minha postura será outra. Para mim não haverá vítimas nem promotores. Mas sim pessoas, seres humanos, em que o fato de um ser mais experiente do que o outro não o torna mais poderoso, mas sim responsável em fazer o melhor possível para que os menos experientes dêem o melhor de si, tornem-se pessoas melhores, passem por mudanças/transformações positivas e principalmente enxerguem a escola como um lugar bom onde as mentes, os olhares e os corpos devem brilhar, serem vivos e não reprimidos. As análises e reflexões apresentadas neste artigo não devem ser generalizadas a todas as instituições de ensino. O objetivo deste trabalho não é julgar a atuação desta ou das demais instituições escolares e suas práticas de Conselho de Classe, mas sim chamar atenção dos profissionais da educação de como e quanto nós influenciamos na produção/constituição dos sujeitos/alunos de nossas instituições. Esta é a proposta que fica. Devemos garantir que esta influência seja a mais positiva possível e que contribuamos para um desenvolvimento natural não robotizado, sem pressões seletivas, sem padrões e sem classificações, pois a vigilância constante sobre os corpos acaba por silenciar suas histórias, suas constituições, as quais certamente serviriam como pistas para melhor compreendê-los. Quanto profissionais do ensino precisamos admitir que nossos alunos são sujeitos constituídos sócio-historicamente a partir de uma visão de mundo que lhes foi oferecida e passada por suas famílias e pela cultura na qual estão inseridos. A escola faz parte desta construção que é contínua, portanto, é preciso pensar que tipo de contribuição queremos e devemos oferecer. Queremos realmente marcar esses sujeitos com esteriótipos e normas preconceituosas? Por isso, acredito que para que esses obstáculos sejam superados é necessário, antes de tudo, conhecer nossos alunos. Saber para quem estamos falando e de onde vêem esses indivíduos. A investigação de comportamentos, a análise de resultados e a criação de alternativas de progresso devem ser consideradas ferramentas riquíssimas para uma construção positiva. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONSELHO de Classe. Disponível em: Conselho_de_Classe>. Acesso em 26 mai. 2008. <http://pt.wikipedia.org/ wiki/ SABER ACADÊMICO - n º 07 - Jun. 2009/ ISSN 1980-5950 REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP 182 CONSELHO de Classe. Disponível em: <http://www.gleisinho. palestras.nom.br /Downloads/Letras/O%20CONSELHO%20DE%20CLASSE.doc>. Acesso em 26 mai. 2008. HALL, Stuart. A identidade Cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. MARCO, Regina e MAURÍCIO, Wanderléia. O Conselho de Classe: Momento de reflexão para estratégias pedagógicas e a aprendizagem do estudante. Disponível em: <www.icpg.com.br/hp/revista/dowload.exec.php?rpa_chave=52d293bea09601deeef6 >. Acesso em 14 mai.2008. QUADRADO, Raquel. 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Relato de Experiência Recebido em 07 de novembro de 2008 Aprovado em 27 de fevereiro de 2009. SABER ACADÊMICO - n º 07 - Jun. 2009/ ISSN 1980-5950