REVISTA MULTIDISCIPLINAR DA UNIESP
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O CRIME ACADÊMICO
GOUVEIA JUNIOR, Sérgio Augusto1
Estava em casa, noite de descanso merecido.
A filha não lhe dava, como sempre, a importância que queria para ele: televisão,
tarefas de casa e conversas com a mãe – tudo era melhor do que a companhia do
acadêmico que se encontrava à disposição da família e convertia em sustento da casa
todo o resultado da exploração que sentia no mercado.
Sabia que havia amor entre ele e a filha: ela o respeitava, beijava-o quando
pedia, dizia sempre boa-noite.
A esposa dava sua atenção à pequena, que estava em fase de amadurecimento
emotivo e precisava muito da atenção materna. Ela também o amava: beijava-lhe pela
manhã, no almoço, no jantar e na hora de dormir; dizia-lhe palavras de amor;
acompanhava-o aos eventos sociais; tinha o ciúme típico de quem quer proteger o
relacionamento.
Ele se sentia solitário entre a gente, com a consciência de quem conhece Camões
e sentindo as dores do pior dos deuses. Distanciou-se da distância das duas e, ao
aproximar-se de si, chegou a arriscar uns versos:
“Apelo
Por favor, não me deixe rimar amor com dor.
Mas, acima de tudo, não me deixe sentir amor com dor.
Arranque-me as rimas e o poder da escrita
Mas livre-me dessa dor maldita.”
Conhecia que o ser humano é social e tende a reproduzir os comportamentos
padrões, principalmente os que são bem educados. E ele, a filha e a esposa o eram.
Sabia que a aparência pode ser bem diferente da essência e tinha a Alegoria da
Caverna como um de seus textos de cabeceira. Buscava as respostas e sentia se
aproximar do desconhecido enquanto se distanciava das certezas duvidosas da
sociedade. Confundia-se e afirmava a si que não tinha motivos para isso: profissional de
muito sucesso e bem remunerado, marido e pai exemplares, talento precoce que poderia
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– apenas com sua vontade – ser explorado; chorava ao saber que se prendia e não se
encontrava capaz de libertar-se.
A esposa não o acompanhava naquilo que mais valorizava: as reflexões
metafísicas. Conversas domésticas eram de domésticas: contas a pagar, a receber e os
problemas escolares da filha, além - obviamente – dos incômodos que a responsável
pela comodidade da casa, a empregada, trazia. As brigas eram sutis e constantes; muito
controladas; extremamente. Ouvia palavras de amor, mas não sentia os gestos dele.
Os olhares de reprovação gratuitos da filha retiravam-lhe a alegria trazida pelo
sucesso profissional. Afirmava não gostar de ler apenas para incomodá-lo. Tinha
postura discreta de desafio apenas sentido por ele e pela filha - para que a mãe não as
visse e não o apoiasse nas repreensões necessárias. A menina sabia que o silêncio da
mãe significava desaprovação às observações do pai. Recebia gestos de amor, mas não
tinha o sentimento dele.
As cobranças profissionais eram superadas facilmente. Não tinha medo de
demissões: tinha mais de uma fonte de renda e sustento e uma razoável poupança. Uma
das empresas o convocava a ser exclusivo. Devia decidir: ou continuava nela – a melhor
- e era exclusivo ou permanecia nas outras.
Decisão difícil, que deveria ser tomada com outras: tentar se aproximar mais da
Luz e distanciar-se dos padrões sociais a que obedecia (tinha família, emprego e salário;
vestia-se bem; comportava-se bem) ou manter-se na Sombra que era a sobra da alegria.
Pensou, naquele momento, no ponto final para o período composto e
(co)ordenado por sofrimento que tinha a duração prorrogada por vírgulas, reticências e
adversativas inúmeras: o suicídio. Ato de coragem e desprendimento. Libertação do
corpo e da alma. Abandono dos padrões sociais todos. Repúdio a eles. E uma grande
vantagem: abandonar a parábola da vida em seu vértice superior.
Tomou a decisão fatal: fechou a tela do editor de textos, desligou o computador,
o Sol já nascia; e ele decidiu morrer: tomou seu banho, pegou sua pasta e foi para mais
um dia de trabalho.
Personagem principal:
professor
Feliz com profissão
Duvidososo com relacionamento e fliha
Triste com cultura e sociedade
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Problema:
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Brigas constantes
Cobranças e dúvidas profissionais
Realização financeira
Perspectivas impedidas por ele e pela família
Desfecho:
1
Pensa o suicídio: ato de coragem
Continua vivendo
Professor de Língua Portuguesa do Ensino Médio.
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