UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
ALBÉRICO SALGUEIRO DE FREITAS NETO
DO BRAILLE ÀS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
LEITURAS E VIVÊNCIAS DE CIDADÃOS-CEGOS, SUAS RELAÇÕES
COM A INFORMAÇÃO E COM A CONSTRUÇÃO DE
CONHECIMENTO
Salvador
2006
ALBÉRICO SALGUEIRO DE FREITAS NETO
DO BRAILLE ÀS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:
LEITURAS E VIVÊNCIAS DE CIDADÃOS-CEGOS, SUAS RELAÇÕES
COM A INFORMAÇÃO E COM A CONSTRUÇÃO DE
CONHECIMENTO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Ciência da Informação, Instituto Ciência da Informação da
Universidade Federal da Bahia, para obtenção do grau de
Mestre em Ciência da Informação.
Orientadora: Profa. Dra. Ângela Maria Barreto
Salvador
2006
F866
Freitas Neto, Albérico Salgueiro de.
Do Braille às tecnologias digitais de informação e
comunicação: leituras e vivências de cidadãos-cegos, suas
relações com a informação e com a construção de
conhecimento / Albérico Salgueiro de Freitas Neto.
109 f. 2006.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia,
Instituto de Ciência da Informação.
Orientadora: Profa. Ângela Maria Barreto.
1. Cegos - Sistema de impressão e escrita. 2.Tecnologia da
Informação - cegos I. Barreto, Ângela Maria. II. Universidade
Federal da Bahia. Instituto de Ciência da Informação. III. Título.
CDD 371.911
Albérico Salgueiro de Freitas Neto
DO BRAILLE ÀS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E
COMUNICAÇÃO: LEITURAS E VIVÊNCIAS DE CIDADÃOS-CEGOS, SUAS
RELAÇÕES COM A INFORMAÇÃO E COM A CONSTRUÇÃO DE
CONHECIMENTO.
Dissertação aprovada que confere o grau de Mestre em Ciência da Informação, Universidade
Federal da Bahia pela seguinte banca examinadora:
Angela Maria Barreto – Orientadora
Doutorado em Ciências da Comunicação.
Universidade de São Paulo, USP, Brasil.
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Maria Helena Silveira Bonilla
Doutorado em Educação.
Universidade Federal da Bahia, UFBA, Brasil.
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Rubens Ribeiro Gonçalves da Silva
Doutorado em Ciência da Informação.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Brasil.
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Salvador, 22 de agosto de 2006
Dedico este trabalho ao Senhor Jagannatha Swami. Que
Ele seja sempre objeto de minha visão.
AGRADECIMENTOS
Inicialmente agradeço aos sujeitos da minha pesquisa, pois eles forneceram
contribuições formidáveis e foram os responsáveis pela condução da pesquisa.
Agradeço à Professora Ângela Barreto por ter lido de forma muito carinhosa e
cuidadosa aos meus escritos e me ajudou a organizar os anseios de pesquisa e a estruturar o
trabalho.
Agradeço sinceramente ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Ciência da
Informação da Universidade Federal da Bahia. Durante os dois últimos anos pude ter acesso a
textos, informações que fundamentam minha escrita - o meu dizer; espaço que me possibilitou
diálogos com reflexões de autores que fornecem repertório para a realização dos requisitos
necessários à construção de um trabalho científico.
Agradeço à Rede de Pesquisa e Intervenção em (In)formação, Currículo e Trabalho
(REDPECT), onde tive o meu primeiro contato com a formação em pesquisa e com a Ciência
da Informação.
Agradeço também a alguns amigos que eu construí ao longo da pesquisa e outros
cuja amizade e diálogo este trabalho ajudou a consolidar.
Pela vontade divina,
Tive a sina
De nascer na escuridão
Mas se Deus, que eu não renego,
Fez-me cego,
Pôs-me um sol no coração.
Se pelas mãos tu me levas,
Eu, nas trevas,
Mais feliz do que os ateus,
Tendo a Fé, que me alumina
E que me guia,
vejo a ti e vejo a Deus.
Quando eu ouço a tua fala,
que me embala,
que me faz em Deus pensar
sinto nalma a claridade
a Saudade
de uma noite de luar!
Cego, surdo, mudo, em vida,
ó Querida,
eu quisera ser, porque:
só o cego, surdo e mudo
é que vê tudo
o que vê tudo e não vê!
Essa noite, com meu pranto,
eu roguei tanto
supliquei tanto a Jesus,
que, depois de um sono brando,
eu vi, sonhando,
todo o céu cheio de luz.
É bem justo que eu consagre
este milagre,
que dos olhos faz descrer:
quando alguém quer ver no mundo
o que é profundo,
fecha os olhos para ver.
Catulo da Paixão Cearense
FREITAS NETO, Albérico Salgueiro de. Do Braille às tecnologias digitais de informação e
comunicação: leituras e vivências de cidadãos-cegos, suas relações com a informação e com
a construção de conhecimento. 109f. 2006. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da
Bahia, Instituto de Ciência da Informação. Orientadora: Profa. Ângela Maria Barreto.
RESUMO
Sujeitos quaisquer na contemporaneidade merecem acesso à informação; não seria diferente
com os cidadãos-cegos. Na expectativa de compreender a dinâmica nas relações que se
estabelecem entre os sujeitos cegos e a informação mediada por diferentes tecnologias de
informação e comunicação, foi realizado o presente estudo orientado por procedimentos
metodológicos que priorizam uma pesquisa qualitativa, para isso, utilizou-se entrevistas com
cidadãos-cegos que possibilitaram, como resultados, opiniões e leituras destes na sua relação
com a informação mediada por diversas tecnologias. O tratamento das informações coletadas
foi conduzido numa perspectiva de análise de conteúdo, cujo resultado apontou a importância
para uma sociedade que pretende democratizar o acesso à informação conhecer o papel
exercido pelas tecnologias digitais usadas por um determinado segmento social, destacando-se
os elementos essenciais que estão sendo consolidados em sua prática de acessar informação,
produzir sentidos existenciais e construir conhecimento. Concluiu-se que o uso constante do
computador promove uma diminuição no acesso à informação por meio do sistema Braille.
Palavras-chave: Cegos - Sistema de impressão e escrita; Tecnologia da informação - cegos.
FREITAS NETO, Albérico Salgueiro de. From Braille to Information tecnology: blindcitizen readings and livings, theire relations beetween information and knowledge construct
.109f. 2006. Máster Dissertation – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Ciência da
Informação. Advisor: Profa. Ângela Maria Barreto.
ABSTRACT
Any citizens in the contemporary deserve access to the information; it would not be different
with the blind-citizen. In the expectation to understand the dynamics in the relations that if
establish between the blinds and the information mediated by different technologies of
information and communication, the present study that is guided by methodological
procedures prioritize a qualitative research, for this, one became fulfilled interviews with
blind-citizen people whom they make possible, as resulted, opinions and readings of these in
its relation with the information mediated for diverse technologies. The treatment of the
collected information was lead in a perspective of qualitative analysis, intends to democratize
the information access, to know the paper exerted for the used digital technologies for one
determined social segment, to be distinguished the essential elements that they are being
consolidated in its practical to have access information, to produce existential directions and
to knowledge construct. One concluded that the constant use of the computer promotes a
reduction in the access to the information by means of the Braille system.
Key words: Blind - reading and writing system, Information technology - blind
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABC
ABNT
AVD
CAP
CAPAZ
DV
ICB
ICEIA
OEAP
OM
PNE
LDB
REDPECT
Associação Bahiana de Cegos
Associação Brasileira de Normas Técnicas
Atividades da Vida Diária
Centro de Apoio Pedagógico
Centro de Atendimento Profissionalizante de A a Z – Idosos e Pessoas
Portadoras de Deficiência.
Deficiência Visual
Instituto de Cegos da Bahia
Instituto Central de Educação Isaías Alves
Organização de Apoio à Pesquisa pra Pessoas Portadoras de Deficiências
Visuais
Orientação e Mobilidade
Portadores de Necessidades Educativas Especiais
Lei de Diretrizes e Base da Educação Brasileira
Rede de Pesquisa e Intervenção em (In)Formação, Currículo e Trabalho
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
11
1
1.1
1.1.1
1.2
1.3
1.4
1.4.1
1.4.2
1.5
CONFIGURAÇÃO DA PESQUISA
INTRODUÇÃO
Campos de significação
JUSTIFICATIVA
PROBLEMA
OBJETIVOS
Geral
Específicos
METODOLOGIA
13
13
16
18
21
22
22
22
22
2
2.1
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
CIDADÃOS-CEGOS: SIGNIFICAÇÕES SIMBÓLICAS EM
DIFERENTES CULTURAS
TRAJETÓRIA DOS SUPORTES DE LEITURA E ESCRITA E
RECEPÇÃO DE INFORMAÇÃO
DIFERENTES SEMÂNTICAS SOCIAIS E CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADE – RELAÇÃO DE PERTENCIMENTO: INCLUSÃO
DIGITAL, INCLUSÃO SOCIAL
30
30
2.2
2.3
3
3.1
3.2
3.2.1
3.2.2
3.2.3
3.2.4
50
63
75
76
81
81
83
84
87
3.5
RESULTADOS DO TRABALHO DE PESQUISA
CAUSAS DA CEGUEIRA
FORMAÇÃO: DO BRAILLE ÀS TECNOLOGIAS DIGITAIS
Espaços de formação e domínio do Braille
Processos e espaços de formação para o uso do computador
Aquisição do computador: questão individual ou social
Espaços de acesso ao computador posteriores aos cursos de
informática
MOTIVAÇÕES E INTERESSES: DO TECLADO À INTERNET
BUSCA DE INFORMAÇÃO - ACESSO E LEITURA: MUDANÇAS
EXISTENCIAIS
PÓS DIGITAL RETORNO AO BRAILLE
4
CONCLUSÃO
100
REFERÊNCIAS
104
3.3
3.4
88
92
95
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho é fruto de um caminho de estudos a respeito do universo da cegueira,
pessoas que vivem este ser-estar no mundo e que tanto me fascinam por motivos que são
intrínsecos à minha observação e vivência com muitas destas, inclusive tendo convivido com
algumas que me são próximas ao longo dos últimos oito anos. Considero necessário ao leitor
que conheça a trajetória que foi percorrida para que o porquê do que está sendo proposto
como objeto de pesquisa seja compreendido.
O meu primeiro contato com a problemática inerente às necessidades de uma pessoa
cega, deu-se na Universidade Federal da Bahia, no ano de 1998, na graduação, quando tive
um colega cego na disciplina Percepção Musical II - que se conduz em trabalhar habilidades
de escuta e escrita musical. Portanto, pude observar as dificuldades que este sujeito viveu para
que a sua escrita fosse lida, já que estava em suporte Braille, e também para ter acesso à
leitura das partituras que nos eram dadas, já que não estavam neste suporte. Nessa
convivência, ajudava-o sendo ledor das partituras para que pudesse escrever em Braille, assim
como ele lia os seus escritos para que eu pudesse escrever no sistema gráfico. Conheci,
simultaneamente, o sistema lingüístico Braille assim como a escrita musical Braille –
musicografia Braille. A partir deste primeiro contato com este sistema pude perceber a sua
importância e grandeza na realidade de produção de sentidos – escrita e leitura – acesso à
informação. No ano de 1999 estudei o sistema lingüístico Braille no Centro de Apoio
Pedagógico (CAP), e em 2001 pude estudar o sistema musical com mais propriedade e,
conseqüentemente, pôr em prática os métodos de educação musical para o ensino da
musicografia Braille, quando no estágio supervisionado de final de curso.
Neste mesmo ano tive o meu primeiro contato com a Ciência da Informação ao
realizar pesquisas como voluntário da Rede de Pesquisa e Intervenção em (In)Formação,
Currículo e Trabalho (REDPECT), pude vivenciar, neste grupo, pesquisas e seus
fundamentos, técnicas e métodos que, posteriormente, foram aprofundados nas aulas da pósgraduação como estudante do mestrado. Durante o período de pesquisa no grupo, deparei-me
com a informática no contato com pessoas cegas em suas diferentes formações, os hardwares
e softwares específicos para este tipo de público, e desde então, despertei para o fato de que os
suportes digitais de informação e comunicação estão imprimindo grandes mudanças nas vidas
dos sujeitos. Fui movido por uma curiosidade em estudar de que forma este tipo de suporte
está sendo inserido nos espaços de formação para cidadãos-cegos permitindo sua inclusão
digital.
Durante o curso de mestrado, as questões referentes à inclusão digital foram
aprofundadas e, com isso, decidiu-se, junto com orientações de professores, estudar de que
forma o computador está se relacionando dinamicamente com a escrita Braille. E assim, o
objeto da pesquisa, ou seja, o problema foi estruturado.
13
1 CONFIGURAÇÃO DA PESQUISA
1.1 INTRODUÇÃO
Cada ser humano, ao estabelecer relações com o mundo, vivendo as suas vidas,
construindo conhecimentos, o faz por meio dos sentidos. Toda informação acessada, sentida,
faz parte do universo de conhecimento de um determinado povo ou povos. Portanto cada
pessoa está munida de uma existência encharcada de informações e identificações. O
conhecimento é construído pelo sujeito nos seus aspectos individual e coletivo, e este
conhecimento é também produzido por, e produtor de, registro de informações: saberes
(conhecimentos) adquiridos
pelos mais diversos e diferentes meios. É a dinâmica do
conhecimento primordialmente fundamentado na oralidade e o desenvolvimento do pensar
humano na construção da escrita (LEVY, 1993). Entre os diversos meios de impressão –
sejam quais forem os suportes ou ferramentas de escrita, está o resultado da relação com o
saber desenvolvido ao longo da história. É o incrível movimento de evolução da informação
gravada na pedra, nos papiros, no papel e nos meios digitais. As formas de escritas
representadas por diferentes meios – documentação, registro de saberes de um povo, a
informática, as novas tecnologias de informação e comunicação estão presentes na vida da
maioria dos cidadãos nos seus mais diferentes cotidianos. Esta diferença do cotidiano é gerada
justamente pelas individualidades destes cidadãos; que, quer pelas áreas de trabalho, locais de
moradia, quer pelas relações sociais, quer pelos usos dos meios telemáticos; são indivíduos
únicos, com habilidades, qualidades e dificuldade(s) ou deficiência(s). Quanto mais o mundo
se globaliza supõe-se que caminha para uma uniformização, porém cada vez mais o mundo
caminha para a afirmação das individualidades e das diferenças (FISCHER, 2000), e é neste
caminho de leituras subjetivas de um determinado sujeito específico (cidadão-cego) que este
trabalho se conduz.
O uso do termo cidadão se faz necessário devido ao fato de que, ao utilizarem
ferramentas de acesso à informação, fazem-se leitores, e ao poderem ler e escrever estarão
incluídos em muitos de seus direitos, pois a constituição de sua cidadania está também no
acesso e uso da tecnologia que o sujeito desejar, de acordo com os seus interesses individuais.
14
Por considerar que a condução da dissertação se faz com a fala, as opiniões e leituras de
mundo de um determinado grupo de pessoas: Portadores de Necessidades Educativas
Especiais (PNE), área de Deficiência Visual (DV). Cidadãos que nos seus cotidianos usam as
tecnologias de informação e comunicação sejam elas analógicas ou digitais - insere-se, no
caso específico o método de escrita e leitura Braille e o computador - utilizando as
ferramentas para realizarem tarefas de acesso à informação em quaisquer espaços:
instituições, no trabalho ou em casa. A inclusão do sujeito no mundo da escrita e leitura estará
também favorecendo a construção da sua identidade enquanto cidadão-cego.
Na consideração de que a realidade das tecnologias desenvolvidas para indivíduos
cegos é fato concreto e a questão sobre como é estabelecida a formação do cidadão-cego para
o acesso a esta tecnologia, ou seja, os dilemas da educação tecnológica, foram comentados no
artigo de Freitas Neto (2004)1. E assim se verificou que a inclusão de cursos de informática no
currículo de instituições de formação para DV foi fruto de uma necessidade educativa,
inclusive a partir da construção de um software específico para este tipo de usuário (DosVox).
Dessa maneira, o artigo foi resultado de um primeiro estudo para fundamentar a condução
deste trabalho, pois se verificou, com base na entrevista de três professores de informática
para deficientes visuais em instituições de Salvador, que existe a necessidade de formação
para que o cego possa acessar e saber utilizar o computador, como ferramenta de acesso à
informação. O fato das tecnologias serem parte dos cotidianos desses indivíduos não quer
dizer que seja possível acessá-las, ou compreendê-las, utilizá-las, operacionalizá-las.
(FREITAS NETO, 2004, p.94) Puderam ser respondidos alguns questionamentos que diziam
respeito aos aspectos de formação dos sujeitos, para que se pudesse entender a relação de
cidadãos-cegos e a informação como atributo na construção de conhecimento, por meio das
diversas tecnologias de informação, e, como estão se relacionando dinamicamente entre uso
do Braille e do computador, inclusive no acesso ao Braille por meio do computador.
Certificando-se que não se pode compreender a relação cego-informaçãoconhecimento sem especificar as problemáticas que a divisão social impõe a este acesso,
como também outras questões de ordem cultural, educacional, política e econômica.
Tratando-se da problemática do cidadão-cego, quando se diz que o cego pobre e o cego rico
1
A publicação foi o resultado do trabalho de uma parceria entre a Universidade de Aveiro (UA) Portugal e a
Universidade Federal da Bahia (UFBA), especificamente entre as faculdades de Comunicação e Artes da UA e a
pós-graduação do Instituto de Ciência da Informação da UFBA. Este artigo é o resultado da primeira parte da
pesquisa e conseqüentemente resultado da prospecção de campo e fundamentação do objeto de pesquisa.
15
não têm a mesma oportunidade, assim a construção histórica de habilidades na alfabetização
Braille e o domínio da informática no acesso à informação dependerão absolutamente das
questões individuais que dizem respeito a cada ser.
Ampliando a discussão, enfatiza-se que a compreensão de uma informação é
fundamentada pelos sentidos e que a ausência da visão estabelece uma forma específica de
produção de sentidos ou, ao menos, o seu processo de construção. Outra questão se impõe: de
que maneira, mediada pelas tecnologias de informação e comunicação, a sua competência
leitora atua na forma de construção de sentidos, ou seja, qual a direção que se estabelece entre
o ouvir, ler, escrever e assim construir relações com os diferentes suportes de informação: a
escrita e a leitura tátil do Braille, a escrita com o teclado e a leitura auditiva do computador?
A informação deve ser ordenada, estruturada ou contida de alguma forma,
senão permanecerá amorfa e inutilizável. A razão disso recai em nossa
qualidade de seres humanos, isto é, nas limitações do nosso aparelho
sensorial. (McGARRY, 1999, p. 11).
A informação estará sempre subordinada à capacidade humana de produzir
significado por meio dos sentidos, então, o não uso da visão por pessoas cegas,
impossibilitadas por muitos diferentes motivos e causas de acesso à informação, as fazem um
segmento de sujeitos receptores e consumidores de informação cuja abordagem deve ser
necessariamente cuidadosa.
O cidadão-cego é orientado na sua relação com a ferramenta tecnológica
(computador) pela placa de som e pela habilidade em manusear o teclado de modo que os
seus comandos táteis gerem sons para novos comandos. Desta forma, o seu processo de
inclusão digital se dará por dois processos diferentes: a aquisição de habilidades com o
teclado (tátil) e a sua habilidade como ouvinte da fala da placa de som do computador.
(FREITAS NETO, 2004) O seu processo de leitura auditiva agora, não é mais somente
mediado por ledores humanos, mas também por softwares de leitura. Assim, “[...] o ouvinte
decodifica
símbolos
do
sistema
fonológico;
o
leitor,
símbolos
do
sistema
ortográfico.”(SILVA, 1981, p.5). Isso faz com que estes indivíduos sejam ouvintes e leitores a
partir de um novo paradigma mediado pelas tecnologias de informação e comunicação. A
recepção da informação abrangerá, neste processo de leitura auditiva, um distanciamento da
16
informação impressa, no caso em questão, em Braille. Sendo esse uma combinação de signos
gráficos, organizados a significar letras, símbolos matemáticos, químicos e físicos, assim
como escrita musical e nos últimos quinze anos o Braille da linguagem de informática. Então,
que relações se estabelecem, mediadas pela informática, entre a informação documentada no
sistema Braille (sujeito como leitor do sistema ortográfico), e, informação acessada por meio
de softwares de leitura (sujeito ouvinte: leitor do sistema fonológico)?
1.1.1 Campos de significação
Optou-se por inserir um tópico na introdução desse texto, acerca da significação de
conceitos que serão fundantes da exposição que se segue, para que a leitura seja mais
elucidativa, não trazendo ambiguidades entre os termos. Chamou-se o tópico de campos de
significação, mas necessário se faz esclarecer que toda a dissertação se desenrola a partir de
leituras acerca do que está escrito sobre o objeto proposto, complementado evidentemente
com a pesquisa de campo que foi realizada. Assim, delimitar o campo de significação no uso
dos termos informação e conhecimento é necessário para esclarecer a linha de raciocínio que
é proposta pela presente dissertação. Outra questão, a título de compreensão, é que as leituras
realizadas trouxeram inconsistências e diferenciações entre muitos conceitos e usos
semânticos, principalmente o que diz respeito à maneira como os autores trazem suas leituras
a respeito da questão da informação, o que corrobora com a análise de Schrader citado por
Capurro e Højrland (2003) sobre as formas de conceituar informação.
Não se pretende, contudo, estabelecer confrontos. É o caso da revisão de conceitos
em informação e conhecimento, usados muitas vezes como semelhantes, mas que possuem os
seus próprios campos de significação, revelando-se diversos e algumas vezes contrastantes
nos diferentes autores, mas, sobretudo, o campo de significação de cada um destes termos
origina-se da perspectiva de ciência que cada autor em particular encerra. Neste caso, tratamse de termos que não são similares, ainda que se possa estabelecer diferenciação entre eles.
Optou-se, então, a discorrer a respeito das relações que se estabelecem entre os termos e os
limites conceituais de cada um deles nessas relações.
17
A escolha dessa opção se deu pelo fato de que a palavra conhecimento, enquanto sua
origem epistêmica, ou seja, originada no grego, por vezes é traduzida e confundida como
saber ou ciência. Assim, não é possível pensar as conceituações desses termos sem estabelecer
exatamente o limite de ciência que se quer atingir.
Segundo Capurro e Højrland (2003), a importante questão na relação de significação
no uso dos termos não se encontra apenas no sentido que lhe é dado dentro do campo da
Ciência da Informação, mas, também, em como esses termos se relacionam com outros
termos básicos como documento, texto, tecnologias, informação e conhecimento, ou seja, as
relações de significações que podem ser estruturas na interação dos termos. Estudos de como
os termos têm sido usados não ajudam, de fato, a entender como os termos são, em sua
gênese, significados (CAPURRO e HØJRLAND, 2003), apenas por uma análise da origem da
significação é possível estabelecer os campos semânticos para a realização de um discurso
coerente quanto ao uso dos termos e suas diferenças idiossincráticas.
As diferentes concepções de informação e conhecimento são embasadas nas
estruturas do pensamento teórico que fundamentam o campo de significação, por isso para
cada forma de compreender estes termos uma forma de estruturar um conceito. Concepções
diferenciadas do termo informação e conhecimento são melhores comunicadas quando
definidas e designadas em que campo de significação, em que teoria, em que visão de ciência
se utiliza para realizar o discurso no uso desses termos.
A primeira questão a respeito do conceito da palavra informação é a sua
materialidade e imaterialidade enquanto objeto. Ela pode ser material quando aplicada,
obviamente, a um objeto, cadeira, mesa, lápis, papel, livro, áudio, vídeo, computador
(especificamente quando referida ao número de bits, quantificada), segundo a teoria de
Shannon citada por Capurro (1991). Quando a informação é imaterial está referida a um
conceito, idéia, a uma informação, ou seja, a uma informação da informação. E a segunda é a
relação entre o sujeito e a informação (objeto). Inicia-se, então, a dura questão se o objeto é
externo ao sujeito ou é interno ao sujeito, ou, é interno e externo simultaneamente. A partir
dessa perspectiva é possível compreender que a informação, sobretudo, se apresenta enquanto
múltipla, assim com base em alguns autores propõe-se estabelecer os limites de significação
da informação na sua relação com o conhecimento:
18
™ Enquanto objeto, coisa, como, por exemplo, o número de bits
(SHANNON apud CAPURRO, 2003). Dessa maneira a informação é externa
ao sujeito, ela se apresenta como um dado, ou pode ser mensurada e
quantificada.
™ Objetiva, como no exemplo dos três mundos (POPPER, 1999). Neste
exemplo já começa a aparecer as idiossincrasias entre os termos
conhecimento, como ciência e assim saber, e, informação, como indução
lógica. O pensamento de Popper nasce de uma crítica ao que é pensamento
empírico, de que este pensamento é a base da objetividade científica,
surgindo, desta forma, os enunciados básicos (corolários) que darão origem
às teses. Dentro dessas visões, Popper reavalia o pensamento indutivo, ou
seja, à lógica indutiva, cuja lógica de investigação, segundo Popper, faz uma
crítica significativa a Hume, Locke e Russel, corroborando, assim, com a
concepção positivista que os enunciados científicos não garantem validade.
™ Tácito, subjetivo, mas objetivado na interação entre sujeitos (POLANIY,
1974). Este autor oferece a perspectiva de que o conhecimento não pode ser
objetivo, pois se trata sempre de uma produção realizada por pessoas, então,
vai sempre existir um conhecimento em um nível imaterial individualizado
em cada um, a isso Polaniy dá o nome de conhecimento tácito, mas a
informação está objetivada na interação entre os sujeitos. Explicado mais
detalhadamente na página 32.
™ Ontológico, biológico (MATURANA e VARELA, 2001). Estes autores, em
particular, oferecem uma imensa perspectiva, principalmente quando
aplicados ao campo da Ciência da Informação, pois fornecem subsídios
teóricos que comprovam que a informação encontra-se também em outras
estruturas que não somente na humana, mas entre grupos animais como as
abelhas, formigas, e também em nível celular, polemizando sobre questões
que pareciam respondidas para a Ciência da Informação, inclusive,
estabelecendo bases de significação para o que é conhecer o conhecer
(MATURANA e VARELA, 2001).
19
™ Subjetivo, simbólico, instituído no imaginário a partir do social-histórico
(CASTORIADIS, 1982). Assim é importante salientar que, a priori, não
existe informação ausente de significado, pois segundo Castoriadis (1982),
toda informação possui pelo menos o seu caráter signitivo, conforme
explicação será pormenorizada nas páginas 48, 49 e 50. Este autor afirma que
a informação é o “magma” do conhecimento, mas que o conhecer exige
necessariamente uma reflexão, pois a informação sem a reflexão continuaria
informando
apenas
“leituras
alienantes”,
ou
seja,
estabelece
uma
autonomização das instituições e sua dominância relativamente à sociedade, a
saída da alienação só é possível por meio de reconhecer no imaginário das
instituições seu próprio produto. Essa perspectiva, em particular, foi uma das
que ofereceu subsídios para fundamentar a pesquisa que foi realizada.
™ Resultado dos saberes de um povo (BURKE e ORNSTEIN, 1998). O
primeiro aspecto do campo de significação para a informação é que ela é
resultado, produto de um saber de um povo ou povos, conforme dito na
introdução - o termo saber tem a perspectiva de um conjunto de
conhecimentos: construção de ferramentas, uso delas e construção de novas,
segundo Burke e Ornstein (1998). Portanto o seu campo de significação
revela aspectos de ordem ideológica de quem o constrói, na perspectiva de
que o conhecimento estabelece as relações do poder, ou seja, as relações de
quem detêm o conhecimento de quem não detêm.
™ Enquanto objeto multirreferencial de aprendizagem (BURNHAM, 1998).
Perspectiva que possibilita compreender que a informação está atrelada aos
campos subjetivos sociais, este aspecto permite analisar a informação na
interação entre sujeitos oriundos de canais múltiplos que estão alheios aos
aspectos formais de conhecimento, especificamente enquanto instituição de
conhecimento (escolas, universidades ou grupos de estudos). Assim o
cotidiano dos sujeitos passa a ser espaço de acesso à informação, e o
conhecimento é construído a partir da interação entre os sujeitos nesses
espaços cotidianos.
20
™ E mais especificamente na pesquisa de campo se pôde observar a perspectiva
de formação informada, cunhada como (in)formação (BURNHAM, et al,
2002), explicada na página 79.
Este subcapítulo, em particular, não pretende estabelecer a diferenciação entre os
campos conceituais dos diferentes autores, especificamente por se compreender que não se
pode falar de conceituações sem estabelecer os limites epistemológicos que geram a
construção desses conceitos (conforme explicado na página 32), mas utiliza-se da visão de
ciência de alguns autores (POLANIY, 1974; CASTORIADIS, 1982; GOFFMANN, 1988;
LEVY, 1993; BURKE e ORNSTEIN, 1998; MATURANA e VARELA , 2001; ROBREDO,
2003).
Com essas leituras constrói-se a base teórica do campo de significação que será
utilizada para a utilização de conceitos acerca do que é informação e conhecimento.
Esclarecem-se os diálogos entre a construção do conhecimento em seu campo individual e o
seu campo coletivizado no social, discutido nas páginas 61 e 62.
Um outro conceito que se aborda neste texto e que se pode perceber a sua grande
abrangência de significados refere-se ao entendimento de inclusão digital. No texto ora se
percebe o uso de inclusão digital como habilidades com o teclado, hora como ouvinte da fala
da placa de som do computador, esse conceito refere-se apenas ao aspecto técnico de acesso,
mas a inclusão digital envolve questões de ordem político-ideológicas, principalmente quando
é vista dentro de uma perspectiva formativa, o subcapítulo 2.3 é um aprofundamento da
discussão entre os aspectos técnicos de inclusão digital e outros mais abrangentes de ordem
social.
1.2 JUSTIFICATIVA
A construção de identidade das pessoas deficientes visuais na realidade da sociedade
do conhecimento tem sido considerada um valor antes impensado. Esses sujeitos recebem, do
ponto de vista social, algum respeito às suas individualidades. As políticas públicas começam
a dar espaço a eles, reconhecidos como Portadores de Necessidades Especiais. Assim, é
possível perceber que as mudanças nas sociedades humanas ocorrem e que, à medida que
21
pessoas que compõem estas sociedades também se modificam, gera-se uma relação dialética
entre as mudanças individuais e sociais. Uma influencia outra. Concomitantemente, mudam
as pessoas e muda a configuração social: mudam as tecnologias. (BURKE; ORNSTEIN,
1998).
Modificando-se as relações ideológicas, transforma-se a maneira de se perceber
o cidadão-cego, o que vai gerar mudanças no espírito individual destas pessoas diante dos
aspectos de construção da sua identidade social (BARRETO, 2006) e também alterar
estereótipos cristalizados na cultura em anos de estigma e dizem respeito ao cego
(GOFFMANN, 1988). Pode-se vislumbrar que as tecnologias de comunicação e informação,
trazidas para o cotidiano dos cidadãos-cegos, são movidas por interesses tanto intrínsecos
quanto extrínsecos aos sujeitos, possibilitando formas diferenciadas de se auto referir e
compreender o mundo.
Tendo em vista as necessidades informacionais por parte de indivíduos invisuais e a
possibilidade do uso das novas tecnologias de informação e comunicação, ferramentas
mediadoras do acesso, que potencializam os diferentes suportes de sistemas de escrita e
leitura, utilizou-se dois fundamentos que vêm ao encontro da questão: a inclusão digital
proposta nas políticas governamentais para a Sociedade da Informação, tendo como
publicação a Sociedade da Informação no Brasil (2000) e a política de inclusão social de
pessoas com de necessidades especiais, contemplada e respaldada legalmente pela Lei de
Diretrizes e Base da Educação Brasileira (LDB) (BRASIL, 1996). Torna-se importante para a
sociedade que pretende democratizar o acesso à informação, conhecer o papel exercido pelas
tecnologias digitais usadas por um determinado segmento social, até então, excluído de
participação social, para se destacar os elementos essenciais que estão sendo consolidados em
sua prática de acessar informação, produzir sentidos existenciais e construir conhecimento, o
que poderá subsidiar ações educacionais específicas para o seguimento de pessoas com
necessidades especiais.
As questões que se impõem aos estudos da relação do cidadão-cego e da informação
mediada pelas tecnologias digitais são complexas e variadas e não se tem a pretensão de dar
conta delas todas. Apenas, como parte de um programa de pós-graduação em Ciência da
Informação, apresenta-se este estudo, inserido na linha de pesquisa Informação e Contextos
Sócio-econômicos e que, neste caso específico, da história e das relações da informação,
mediadas por tecnologias digitais, com a vida cultural e social de indivíduos com
22
necessidades especiais. Especialmente, a Ciência da Informação não pode se eximir da
responsabilidade de repensar a questão da necessidade e uso da informação para usuários
distintos, já que estes justificam a sua práxis. Então, esta área do conhecimento para a
realização da pesquisa se faz importante por abordar uma questão emergente, coexistindo
diferentes suportes de documentação de informação, os sujeitos continuam fazendo uso de
todos eles, ou estão abandonando os antigos suportes e estão acessando informação somente
por meio dos novos? Os cidadãos-cegos estão se relacionando dinamicamente com o que é
antigo e o que é novo, assim estabelecem múltiplas semânticas: vivências e leituras de pessoas
que se relacionam com essas tecnologias. Momento histórico em que o novo e o velho perdem
exatamente o seu sentido temporal, pois coexistem simultaneamente: o Braille e o
computador.
Desta maneira, apresenta-se, a seguir, a configuração escolhida para a pesquisa e que
possibilitará a compreensão parcial do sentido de o que é ser cego na sociedade atual, de
como esta categoria de sujeitos recebe e significa a informação, qual o papel dos espaços
educacionais da cidade de Salvador na questão da formação para o uso e a dinâmica nas
relações com o acesso de informação por meio dos diversos suportes.
Os procedimentos adotados na execução da pesquisa tiveram o cuidado de
estabelecer uma fundamentação teórica que consiste no estudo de uma ampla literatura de
referência para fundamentar e respaldar a análise das informações obtidas da pesquisa de
campo. Desta maneira, definiu-se o quadro teórico da pesquisa, com base nas caracterizações
simbólica, histórica e social (CASTORIADIS, 1982) de “ser cego”, e com esse tripé
conceitual cria-se o lastro de análise das relações cego-conhecimento no capítulo da
fundamentação teórica dividido em três subcapítulos.
O SER CEGO, SIGNIFICAÇÕES SIMBÓLICAS (2.1) em diferentes culturas, para
poder a partir das concepções de cegueiras estabelecer as relações entre as muitas realidades
de diferentes cidadãos, inclusive refletindo sobre não ver e ser cego que são questões
diferentes. Nesta parte do trabalho, o texto é construído a partir de narrativas de personagens
míticos, da tradição oral e escrita, e de narrativas populares que permitam apreender essas
múltiplas significações no estabelecimento das bases teóricas, e, assim, realizar leituras dos
sujeitos descritos e que influência a sua deficiência visual impôs à sua relação com a
construção de conhecimento. Talvez seja preciso esclarecer a relação que existe entre os
diversos mitos narrados, concepções religiosas e a Ciência da Informação. Este trabalho
23
pertence à área porque a própria forma do trabalho está estruturada de modo a representá-la:
não nos seus aspectos de produção-uso, processamento-organização, disseminação-buscaacesso ou emissão-transmissão-recepção, mas, sim, nas múltiplas referências possíveis que
fundamentam o pensar a informação na sua forma (sujeitos) de significar um determinado
conhecimento. A concepção simbólica-histórica-social (CASTORIADIS, 1982) da cegueira
possibilita um campo de significação e análise para os ciclos da informação: uso-organizaçãoacesso e produção-processamento-recepção. Trata-se de uma análise estabelecendo as bases
de significação na concepção simbólica da informação que, apesar de não poder ser analisada
de forma isolada do histórico-social, apresenta-se focada nos aspectos mais subjetivos do
pensar e construir conhecimento: seu caráter individual, particular, pessoal da informação.
São as visões de cegos sobre o conhecer e, assim ver, sendo possível ver com o conhecer.
TRAJETÓRIA DOS SUPORTES DE LEITURA E ESCRITA E RECEPÇÃO DE
INFORMAÇÃO (2.2) faz uma abordagem histórica das diferentes ferramentas de escrita e
leitura: o nascimento da imprensa e as suas principais transformações no consumo da
informação, o nascimento da escrita Braille e as possibilidades de acesso por meio da leitura
escrita, sistemas analógicos e portáteis de gravação em áudio, aos sistemas multimídias que
oferece o computador, inclusive sendo possível abarcar todas as outras tecnologias analógicas
nos seus sistemas digitais.
DIFERENTES SEMÂNTICAS SOCIAIS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE:
RELAÇÃO DE PERTENCIMENTO: INCLUSÃO DIGITAL, INCLUSÃO SOCIAL (2.3)
trata do acesso e uso de informação do cidadão-cego, em diferentes semânticas sociais, ou
seja, influência econômico-social na construção de sua identidade, enquanto sujeitos que se
concebem detentores do direito de acesso à informação por meio dos diversos suportes e,
assim, estabelecer as relações de pertencimento construídas na sociedade do conhecimento.
2.3 O PROBLEMA
Qual a relação que cidadãos-cegos estabelecem entre a leitura tátil – Braille - e
tecnologias digitais de informação e comunicação - informática?
24
Partindo da premissa de que a recepção envolve questões de ordem pessoal do sujeito
usuário das tecnologias, então sujeitos deficientes visuais, por possuírem uma leitura
específica no acesso e uso de informação, estabelecem relações com as diversas tecnologias
influenciadas pelas especificidades de sua natureza individual (POLANIY, 1974). O que
causou a cegueira é um ponto fundamental que influencia no acesso à informação, os
processos formativos, tanto para o domínio da leitura e escrita Braille quanto de uso do
computador, assim como as motivações e interesses que o influenciaram para o estudo da
informática, são as questões que ajudam a compreender as mudanças de ordem existencial nos
sujeitos motivadas pelo cotidiano de leitura nesse suporte. Cada tecnologia é significada pelos
cidadãos-cegos envolvendo um universo de acesso e uso de cada uma delas, pergunta-se: qual
abrangência que o uso das tecnologias de informação e comunicação – informática - pelo
cidadão-cego ressignifica sua relação com a escrita e leitura tátil por meio do sistema Braille?
A partir dessas questões delinearam-se os objetivos deste estudo.
2.4 OBJETIVOS
2.4.1 Geral
Compreender a dinâmica nas relações que se estabelecem entre o cidadão-cego e a
informação mediada por diferentes tecnologias: da escrita e leitura Braille à escrita e leitura
no computador.
2.4.2 Específicos
a) Investigar as diferentes semânticas referentes ao cidadão-cego no que diz respeito às
causas de suas cegueiras: representação pessoal-social sobre a subjetividade de ser
cego;
b) Identificar os processos e espaços de formação para o uso do Braille e do computador;
c) Identificar os meios e espaços de acesso à informática pelos cegos e se o uso dos
meios de base informática são estendidos a espaços externos à instituição de sua
formação;
d) Compreender as motivações, estímulos no acesso, no uso e no domínio da informática,
estabelecendo relações entre as considerações teóricas relativas à inclusão digital e a
percepção do invisual em relação à construção da sua identidade como cidadão;
25
e) Identificar que informações acessam por meio do computador e o que o acesso à
informação por meio desta ferramenta tem promovido em suas vidas.
2.5 METODOLOGIA
Nas muitas realidades da história das sociedades, em sua composição estrutural e
assim social, surgem por meio da evolução e relações inter-pessoais, conhecimentos e saberes
que propõem transformações por ordem da técnica, dos instrumentos e dos detentores deles.
(BURKE e ORNSTEIN, 1998). Com o desenvolvimento da história e das diversas
ferramentas de escrita e de registro de informação, cada novo conhecimento gera novas
ferramentas que gera outros conhecimentos e, assim, sucessivamente. Portanto, a dinâmica
que envolve o acesso e uso das tecnologias de informação realiza severas transformações na
vida dos cidadãos-cegos, principalmente porque as muitas formas de leitura e escrita
coexistem no mundo destes sujeitos. Para entender como estão se relacionando com esta
dinâmica é que os objetivos do estudo proposto alicerçaram o objeto; assim como as
tecnologias mudam sua interface em função de sua própria evolução (LEVY, 1993), cada um
dos sujeitos usuários também muda sua relação com o mundo no uso de tecnologias antigas e
novas – que no momento histórico existem simultaneamente.
A pesquisa foi realizada numa perspectiva qualitativa (FLICK, 2004), de caráter
exploratória, ou seja, investigativa a respeito de um conhecimento (objeto de pesquisa),
representando o seu estado da arte, sua representação para os sujeitos da pesquisa. Segundo
Miranda e Simeão (2003), uma pesquisa em Ciência da Informação permite métodos oriundos
das diversas áreas do conhecimento ampliando o escopo metodológico da Ciência da
Informação.
No marco da presente argumentação, quais os limites metodológicos da
Ciência da Informação? Em princípio, nenhum. Apenas os da capacidade de
realização de seus pesquisadores, na medida em que todas as metodologias e
tecnologias podem servi-la como, por definição, servem a toda e qualquer
ciência. Sendo a Ciência da Informação uma ciência nova, sem tradição que
a engesse ou a condicione, ela pode, em tese, experimentar tudo. Os mais
puristas vão cobrar uma identidade, um espaço próprio, um campo de
exclusividade em termos de métodos e de resultados. (MIRANDA, 2003,
p.170)
26
Na tentativa de buscar uma identidade metodológica, não uma “exclusividade purista”,
mas numa análise do melhor método para o objeto proposto, ora o texto se apresenta com uma
abordagem metodológica fenomenológica/hermenêutica, como no caso da voz e vez às falas
do sujeito significar a própria cegueira, e ora a abordagem se apresenta dentro dos
pressupostos das relações de pertencimento social (CASTORIADIS, 1982), como é o caso da
compreensão que classes sociais diferentes significam de formas diferenciadas o seu processo
de inclusão-digital.
Optou-se por utilizar as narrativas individuais como fundamento dos resultados, ou
seja, sujeitos como fonte de pesquisa. Enquanto técnica de abordagem, entrevista semiestruturada, aberta à inserção de outras/novas perguntas a depender das respostas que eram
dadas.
As entrevistas semi-estruturadas, em particular, têm atraído interesse, sendo
amplamente utilizadas. Tal interesse está vinculado à expectativa de que é
mais provável que os pontos de vista dos sujeitos entrevistados sejam
expressos em uma situação de entrevista com um planejamento
relativamente aberto do que em uma entrevista padronizada ou em um
questionário (exemplos de kohli, 1978). (FLICK, 2004, p.89)
Assim, a estruturação do roteiro das entrevistas seguiu uma condução de modo que
os conjuntos de repostas nos apresente o estado da arte de um determinado saber – resposta
para o problema da pesquisa. A entrevista foi um procedimento escolhido devido ao fato das
respostas revelarem o discurso mais subjetivo dos sujeitos, o registro de histórias de vidas de
pessoas na sua relação com a informação em diferentes suportes. Entrevistas individuais
foram realizadas e uma coletiva – grupo focal (FLICK, 2004). Para o registro das informações
orais utilizou-se gravador analógico – fitas K7 (QUEIROZ, 1991), pois representa uma forma
de registro das falas, que permite, depois da sua escuta e transcrição, uma análise das
narrativas individuais sobre o ser cego e como cada um significa a sua relação no cotidiano de
leitura, tanto tátil quanto auditiva. Os procedimentos de análise das transcrições caminham
numa perspectiva de leitura objetiva das falas, sendo enfatizados os aspectos dos conteúdos
destas.
As entrevistas revelam o seu caráter vivo, humano: opiniões, leituras e vivências. Por
esse motivo, precisam ser constituídas com muito mais do que simples perguntas estruturadas
para que os sujeitos falem a respeito de suas questões (GARRET, 1988). Como o objetivo é
27
dar exatamente a fala, o discurso deste trabalho ao cidadão-cego, o registro oral impõe-se de
maneira a poder inserir este sujeito no trabalho priorizando a ética da pesquisa: respeito ao
discurso individual e subjetivo de cada um deles: exatamente, textualmente - ipsis litteris,
ipsis verbis. Portanto, a transcrição das entrevistas possui características próprias que são
recorrentes na fala, oriundas da natureza oral do discurso: incompletude de idéias, anacolutos
– figuras de linguagens próprias do coloquialismo. Pode parecer, se o texto escrito for
analisado fora do contexto deste trabalho, que existem problemáticas na ordem das normas
gramaticais, mas é utilizada a transcrição como uma forma de analisar e expor ao leitor
elementos que foram documentados em suporte áudio-oral.
Na observação realizada em campo, mapeou-se primeiro, na cidade de Salvador,
Bahia os espaços que realizam apoio às pessoas deficientes visuais em relação à sua
formação. Os espaços encontrados foram: Centro de Apoio Pedagógico (CAP), Associação
Bahiana de Cegos (ABC), Instituto de Cegos da Bahia (ICB), Vida Brasil, Setor Braille da
Biblioteca Central do Estado da Bahia, Centro de Atendimento Profissionalizante de A a Z –
Idosos e Pessoas Portadoras de Deficiência (CAPAZ), Sociedade Aliança dos Cegos e Casa
Estudantil Louis Braille. Desses oito espaços, optou-se por realizar a entrevista no CAP, ABC
e o ICB, pois são as Instituições de maior penetração no universo da cegueira e que são
também os principais espaços de formação em informática, ainda que outros espaços
forneçam acesso ao computador. Em vista dessa constatação, a pesquisa ficou restrita a essas
três instituições.
A amostragem delimitada representa os cidadãos-cegos que, com suas vivências e
opiniões, definem o que se está querendo saber: compreender o que está acontecendo com o
deficiente visual na sua relação com a informação mediada por diferentes suportes. Questão
de uma primeira proposta de análise de fenômeno complexo que envolve indicadores de
ordem mundial: o computador está redefinindo a relação do mundo com a informação, e
conseqüentemente tem redefinido a relação no uso de outras tecnologias de informação
(LEVY, 1993). Portanto, a fala dos sujeitos é uma forma de estudar um fenômeno no
momento histórico em que está acontecendo. Sabendo que a escolha das pessoas definiria a
pesquisa e sabendo, também, que toda escolha é hierarquizada pelas escolhas de valor: os
professores de informática das instituições que oferecem apoio aos cegos ajudaram na
definição dos nomes que seriam os sujeitos desta pesquisa. Tendo como objetivo, nas
escolhas, tentar abranger diferentes faixas etárias, definiu-se que seriam aquelas pessoas que
28
já haviam tido formação para uso dos diferentes suportes de informação, especificamente a
leitura e escrita Braille assim como de cursos de informática. No espaço das instituições,
verificou-se que as atividades de informática são complementares a outras de apoio ao
deficiente visual: Atividades da Vida Diária (AVD), Orientação e Mobilidade (OM)
(FELIPPE; FELIPPE, 1997), Estimulação Precoce, Alfabetização Braille, Uso do Sorobã,
técnica de Escrita Cursiva, Estimulação Visual para os portadores de visão sub-normal,
atividades desportivas, artísticas e núcleo de tecnologias através do laboratório de informática
por meio do acesso às ferramentas para a produção de textos, estudos e pesquisas. Por isso, a
impossibilidade de analisar o uso das ferramentas digitais isoladamente influenciou no estudo
das ferramentas digitais contextualizadas nos espaços de formação para cidadãos-cegos
(FREITAS NETO, 2004).
Assim, definiu-se um grupo de 10 cidadãos que já haviam tido os diversos tipos de
apoio dentro das instituições mapeadas - delimitação do espaço geográfico - e que utilizam o
computador como uma ferramenta de acesso à informação. Por conta da questão de ética da
pesquisa, optou-se por usar códigos para substituir os nomes dos cidadãos. As entrevistas dos
cidadãos de A a H foram realizadas entre junho e julho de 2005 e dos cidadãos I e J em
janeiro de 2006. O cidadão A foi o primeiro a ser entrevistado, cidadão B foi o segundo e,
assim, sucessivamente. Os cidadãos D, E, F e G foram entrevistados em grupo. Essas pessoas
estavam reunidas para uma competição de xadrez na ABC; aproveitou-se a oportunidade, já
que todos os quatro constavam na lista de prováveis entrevistados. Observou-se durante a
competição que as jogadas de cada um eram registradas em áudio analógico – gravador de
fitas K7, percebendo a importância que as antigas tecnologias ainda têm na vida dos
indivíduos.
No momento anterior, no início dos relatos, falou-se do compartilhamento das falas,
assim definindo-se um grupo focal. Antes de começar a entrevista com este grupo, ao falar
que o trabalho incorporaria uma entrevista com “grupo focal”, o cidadão D disse que: “este
grupo é cegal, porque focal envolve visão” - compreendendo uma outra semântica possível
para o que é foco, expondo um caráter de estima ao se referir sobre sua condição enquanto
sujeito coletivo: este trabalho absorve a sua fala e estabelece para a pesquisa um “grupo
cegal”.
A última entrevista com o cidadão J foi de suma importância, pois amplia o conceito
de tecnologia da informação, incorporando à leitura a lupa eletrônica. A entrevista com o
29
cidadão I foi a mais longa. Ela possibilitou um diálogo que permitiu um aprofundamento no
objeto de pesquisa. O cidadão discorreu não somente a respeito do que foi questionado, mas
também aprofundou-se criticamente nas questões que uma análise mais completa incita.
30
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 CIDADÃOS-CEGOS: SIGNIFICAÇÕES SIMBÓLICAS EM DIFERENTES
CULTURAS.
ELOGIO DA SOMBRA
A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
Pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram a tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria aterrorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.
(BORGES, 2001, p.81).
31
Eu, você, leitor, e todos os outros seres humanos possuímos em nossos corpos órgãos
sensoriais que usamos para perceber o mundo exterior e a nos relacionarmos com ele e com
os outros seres humanos que estão presentes na relação de mundo. Pelos sentidos da audição,
olfato, gustação, tato, visão e sinestesia compreendemos o mundo e podemos nos relacionar
com os outros seres humanos. Um perfume que evoca uma imagem; um som que evoca um
gosto; uma visão que evoca um aroma. Por meio destes sentidos é que adquirimos linguagens,
idéias e conhecimentos.
Segundo McGarry (1999), a nossa condição de ser humano nos faz limitados por
aparelhos sensoriais e é por meio deles que nos relacionamos com as informações que nos
circundam. O que corrobora com a definição do dicionário de Ferreira (1984, p.1066) quando
fala que perceber é “construir conhecimento por meio dos sentidos”. Percepção de sensações
por meio do corpo (tato), sabor por meio da língua (gustação), cheiro por meio do orifício
nasal (olfação), sons por meio do aparelho auricular (audição) e luz, imagem e movimento por
meio dos olhos (visão). Perceber não é conhecer, mas é processo que ajuda a construir o
conhecer. A percepção de mundo não ocorre a partir de cada um destes sentidos isoladamente,
mas sim da interação destes (GARDNER, 1994). Todavia, existem pessoas que possuem
limitações ou ausência de um destes sentidos, no caso, visão. O cego não compreende o
mundo com os sentidos remanescentes, mas sim com a sinestesia dos sentidos remanescentes.
Os sujeitos cegos constroem significados exatamente realizando vivência auditiva, tátil,
olfativa e gustativa.
Nem a criança que enxerga, nem a cega podem compreender, plenamente, a
diferença existente entre seus respectivos mundos de experiência e de
realidade. Aquelas que, enxergam, mal percebem, que a maior parte de suas
vidas consiste em experiências visuais, empregando forma visual, tamanho,
cor, luminosidade, movimento e distância espacial. Aos cegos são ensinados
esses conceitos e a maneira como eles devem ser usados e com o domínio
verbal destes uma paridade viável parece ter sido estabelecida entre o
vidente e o cego. (CUTSFORTH, 1969, p.48)
Trata-se de sujeitos que possuem qualidades próprias e específicas, e nessas
especificidades encontra-se um ser humano limitado ou ausente de compreensão do mundo
por meio de imagens visuais - a sua construção imagética está, portanto, subjugada aos seus
sentidos sinestésicos, assim a sua forma de pensar ou compreender informações de mundo
32
estão absolutamente subjetivadas por seu caráter próprio e específico de ser humano
(POLANIY, 1974). Robredo (2003, p.21) citando Polanyi fala da contribuição que este autor
oferece à fundamentação de que se existe um conhecimento impalpável, que é a maneira
própria (individual) de perceber o mundo, cada cidadão-cego irá participar de um mundo
específico, e as suas relações com a sua condição de portador de uma limitação sensorial vai
obviamente influenciar na sua produção de conhecimento, que Polanyi chama de
“conhecimento tácito”.
Apesar das Diretrizes Nacionais da Educação (BRASIL, 1994a, 1995, 1996)
especificarem como estes sujeitos devem ser nomeados, nivelando-os e compartimentando-os
numa lógica de segmento social, pois toda forma de classificar, categorizar, organizar e
conceituar parte sempre de uma lógica social-identitária; cidadão-cego acaba sendo apenas
uma das formas de significar a relação que se quer estabelecer entre a concepção de “sujeito
ativo de...” (CASTORIADIS, 1982, p.127), a realização do sujeito no que tange ao campo de
implicação significante de si, obviamente enquanto ativo: olhar e suporte do olhar, pessoal e
social simultaneamente, direcionou a escolha da classificação de como os sujeitos serão
nomeados neste trabalho. Cada história de vida faz com que as pessoas se coloquem e se
compreendam de diversas formas: deficiente visual, cego, invisual, visão sub-normal, déficit
de visão, etc... Há muitas nomenclaturas para diversos tipos de pessoas, o termo cego é
apenas uma das formas que os sujeitos se definem. Aqui, será utilizado o termo cidadão-cego,
procurando-se compreender de que maneira os sujeitos constroem significados de si mesmos,
enquanto sujeitos implicados em seus contextos sociais e atentos aos seus papéis de cidadãos
(CASTORIADIS, 1982, p.127). Dessa maneira, quando o termo cidadão-cego ou invisual
(terminologia portuguesa) é usado, significa aqueles que possuem alguma deficiência na área
visual, visão subnormal congênita ou adquirida, pessoas cegas e outras não totalmente cegas.
O texto poético que abre este sub-capítulo é um relato poético auto-biográfico de
Jorge Luís Borges sobre a sua experiência de vida, ao tornar-se cego, e de que maneira esta
experiência interfere em sua relação com o saber quem se é. Este é um dos primeiros
pressupostos da natureza humana, para tanto, pessoas desenvolvem, há séculos, formas de
saber, sobre si e sobre o outro. O conhecer-se é também uma forma de conhecer o outro,
enquanto discurso social instituído nos saberes culturais. Borges, em seu poema, fala que se
tornar cego é um retorno ao seu espelho: não objeto externo que reflete a imagem aparente,
objeto inacessível ao sujeito que é ausente de visão, mas o reflexo de sua própria essência.
33
Assim, o conceito da auto-imagem retorna a fatores endógenos, capacidades singulares e
individuais de conhecer a si mesmo, enquanto compreende que o eu é um outro Outro. É o
que torna o sujeito sempre identificado com o objeto: relação indissociável entre as partes e,
assim, se toma como referência o discurso deste Outro, enquanto sujeito:
Pois este sujeito ativo que é sujeito de..., que evoca, estabelece, objetiva,
olha e coloca a distância, que é ele – será que é puro olhar, capacidade pura
de evocação, colocação a distância, centelha fora do tempo, nãodimensionalidade? Não, ele é olhar e suporte do olhar, pensamento e suporte
do pensamento, é atividade e corpo ativo – corpo material e corpo
metafórico. [...] Este suporte, este conteúdo, não é nem simplesmente do
sujeito, nem simplesmente do outro (ou do mundo). É a união produzida e
produtora de si e do outro (ou do mundo). (CASTORIADIS, 1982, p.127)
Referenciando que este olhar e o suporte do olhar são cegos, aproxima-se do discurso
do sujeito, enquanto Outro: cidadão-cego. A relação entre estes muitos Outros e si é o que
torna o caráter intencional do sujeito; não é a visão de alguém que vê falando de um que não
vê, mas é o sujeito cego falando das formas de ver-conhecer próprias de si.
Toma-se, então, o aspecto ativo do olhar cego: o querer conhecer - o querer ver. E
este conhecer retorna ao conhecer-se e assim também ao Outro (ou ao mundo). O objeto que
faz relação com o sujeito é este Outro: pessoa, coisa, conceito e idéia, e, na relação do sujeito
outro com o outro sujeito, existem as formas de construção dos saberes fundamentados nas
formas de identificação estruturadas nas linguagens, idéias e conhecimentos, compondo, desta
maneira, em relações sociais, que por sua vez gera novos significados de relações que geram
linguagens, idéias e conhecimentos. Assim, também nascem as ferramentas, ou segundo
Burke e Ornstein (1998) o “presente dos fazedores de machado” - objetos criados pelo
conhecimento, com o conhecimento – mas não representam somente resultado puro da relação
entre o conhecer-se e conhecer o outro (ou o mundo), mas representam também variadas
formas de poder instituídas pela ferramenta, isto é: “À medida que os fazedores de machados
mudavam o mundo e nos mudavam com seus instrumentos, alteravam também radicalmente
nossa percepção desse mesmo mundo” (BURKE; ORNSTEIN, 1998, p.31). A ferramenta
muda e é mudada constantemente pelas relações de mundo entre as pessoas, assim a pedra de
lascada vira polida, e a língua puramente falada fica também escrita. Dessa maneira, a
34
geração, produção de conhecimento e recepção se mutualizam, se reciprocam mediadas pelas
formas de linguagem: conhecimento oral ou escrito, sobre si e sobre o outro (ou o mundo).
Não existe objeto (informação, conhecimento, conceito, idéia) sem sujeito, assim
também não existe ferramenta (objeto social) ausente de significado, sem ter sido produtor e
produto de uma lógica social-identitária.
Enquanto ser social na relação com outros sujeitos ou com objetos sociais, imprimese uma lógica social-identitária mediatizada por formas instituídas de linguagens (língua e
signos) e que se articulam por significantes: formas de significação designadas por sistema
conjuntista-identitário. (CASTORIADIS, 1982, p.213). São as formas de identificação que
ajudam a construir os níveis de significação: práticas de articulação simbólica se instituem por
meio de vidas de pessoas em suas práticas cotidianas na relação com os símbolos; assim o ser
social pertence a uma lógica identitária: maneiras de classificar, organizar, categorizar um
determinado sujeito ou objeto pertencente a uma lógica recorrentemente social-simbólica.
Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está
indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os
atos reais, individuais ou coletivos – o trabalho, o consumo, a guerra, o
amor, a natalidade – os inumeráveis produtos materiais sem os quais
nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre,
não diretamente ) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma
rede simbólica. (CASTORIADIS, 1982, p.142).
No pressuposto de que todo ser é essencialmente social-histórico, e que com base
neste raciocínio as diferentes sociedades imprimem significados a seus símbolos, ser uma
pessoa cega em diferentes lógicas identitárias impressas por diferentes momentos históricos e
lógicas culturais é fundamentada por um caráter pessoal, subjetivo de ser cego, porque não
dizer, ontológico, e, por uma lógica social que corresponde à concepção pessoal-social do
símbolo da cegueira.
As pessoas cegas possuem uma forma própria de se compreender enquanto sujeito
histórico-social: simbólico. O que faz o sujeito único, o momento, o tempo em que ele vive e
a dinâmica que se estabelece na vida dos sujeitos se intercomunicam com a dinâmica que se
estabelece no mundo em que ele vive. Em todas as culturas e realidades do mundo existem
pessoas portadoras deste tipo de deficiência e em cada uma das culturas existem significações
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simbólico-sociais instituídas por meio de mitos, religião, histórias familiares, histórias de
vidas e símbolos sobre cegueiras. Assim o imaginário social sobre o cidadão-cego é passível
de múltiplas significações.
Uma maneira de se entender, ou tentar entender, o que é ser cego no mundo ou o
universo que envolve a cegueira, é possibilitada pelos relatos destas pessoas ou pelos mitos
que as envolvem; ou, o fenômeno mais agudo: tornar-se cego. A cegueira é um universo
complexo de se adentrar. Mesmo se pretendêssemos adentrar à experiência do não uso da
visão, por meio de uma venda nos olhos ou tapa-olhos, vivenciaria-se, apenas, um mundo
ausente de visão, mas não se vivenciaria o ser cego. Existem muitos relatos na literatura de
pessoas que se cegaram, como Édipo, mas o cegar-se não é categoria que este trabalho se
propõe. Ser cego não é apenas estar ausente de visão, assim como ter visão subnormal não é
somente ter dificuldades no acesso à informação por meio deste sentido, mas uma condição
específica de um grupo de seres humanos que se revelam ao longo da história com uma
dinâmica própria de significados.
Dentro desta concepção de cego sob o ponto de vista simbólico-social encontram-se
aspectos absolutamente próprios da natureza do ser cego, eminentemente sensoriais e
emocionais, e sabendo que a cegueira interfere em aspectos psicológicos e também culturais e
sociais, os mitos e símbolos ajudam a compreender estas concepções, motivações e questões
que dizem respeito ao ser cego socialmente.
O escritor José Saramago, no belíssimo Ensaio sobre a cegueira, expôs um
mundo de pessoas sem luz, obrigadas a olhar para dentro de si mesmas e
enxergar com os olhos da alma a sua própria condição humana. No universo
criado por Saramago, a cegueira despertou o que havia de pior e de melhor
nas pessoas, funcionando como instrumento de transcendência. (FREITAS,
2005, p.1)
Assim, ser cego é antes de tudo uma condição que não é puramente física, mas
emocional, cultural e social. Saramago com a sua obra revela que o deficiente visual é um ser
como qualquer outro, onde a cegueira não o faz melhor nem pior, mas o obriga a refletir sobre
a sua “condição humana”. Cegos bondosos, cegos perversos, vítimas e algozes: no livro de
Saramago existem muitas pessoas deficientes visuais, todas perdem a sua visão acometidas
por um surto de cegueira, Saramago também expõe o medo social que se instala pela
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iminência das pessoas ficarem cegas; pode-se afirmar que os cidadãos-cegos são muitos e de
muitos tipos e que estes constroem significados à leitura de mundo a partir de suas
perspectivas pessoais, culturais e sociais: obviamente, simbólicas.
Pretende-se se aproximar da compreensão do que é ser cego, pelo menos sob o ponto
de vista simbólico-cultural-pessoal-subjetivo, tomando como base histórias de pessoas
narradas em livros sagrados de diferentes religiões, assim como de personagens míticos
narrados também em livros, mas que foram compiladas do conhecimento oral de
determinadas culturas. Porque em algumas culturas, os pensamentos religiosos e míticos sobre
pessoas cegas ou sobre cegueiras são apenas formas diferenciadas de estabelecer
significações, nem piores nem melhores, apenas simbólicas. O caráter que se toma na escolha
dos relatos destas vidas procura estabelecer relações entre a lógica identitária de cidadãoscegos com o campo de significação que estes relatos exercem sobre a construção de conceitos
sobre o ser cego em diferentes culturas.
Como cada ser humano é único, cada história de vida com a história de sua própria
cegueira resultará em um tipo de leitura que ele fará de si enquanto cidadão-cego.
Habilidades, adaptações, formações e informações resultarão em tipos de pessoas. Alguns
personagens míticos ajudam a entender algumas das leituras possíveis do que é ser então este
cidadão-cego. Somente através de histórias de vidas de pessoas cegas encontradas nos mitos
poder-se-á adentrar na complexidade que é ser cego. Os mitos revelam a sua concepção mais
simbólica de uma determinada cultura sobre um arquétipo humano. Lurker (1997), promove
uma exposição de algumas pessoas, e que visões simbólicas são possíveis de se fazer destes,
enquanto portadoras de cegueira:
Em mitos e contos de fada, a falta física da visão pode ser uma premissa
para a visão interna, para a divinação. O cego Tirésias recebe de Zeus o dom
de prever o futuro. Para atingir a mais alta sabedoria, o deus germânico Odin
penhora um olho. Quem for cego para os deuses deste mundo (terreno) verá
Deus no céu; dessa maneira devem ser entendidas as curas por Jesus (→
Doença). Segundo Isidoro de Sevilha (allegoriae), a cura dos cegos é
símbolo da iluminação da humanidade, mergulhada nas trevas espirituais e
nas sombras da morte. Os infiéis e os pecadores são atingidos pela cegueira;
ela é sinal externo do ofuscamento interior. Um símbolo atributivo utilizado
em diferentes personificações da cegueira é a → venda nos olhos.
(LURKER, 1997, p.124).
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A partir de narrativas de vida de algumas pessoas cegas, descrever-se-á sua história
para fundamentar o que é ser cego enquanto sujeito simbólico-histórico-social. Cada história
de vida resultará em um tipo de cidadão-cego, pois é ela que o define. A descrição das
histórias se faz necessária devido ao fato de representarem mais intimamente as múltiplas
visões e variantes semânticas possíveis da concepção simbólica sobre pessoas que foram ou
tornaram-se cegas. Por isso a necessidade de uma construção de pontes associativas –
emprestando um sentido de alegoria por meio das narrativas dos sujeitos para poder dizer
melhor o que ainda não está dito. A alegoria é apenas uma estratégia de construção de
parâmetros para falar de um Outro - cidadão-cego - que é o que se quer conhecer.
Os mitos são formas simbólicas instituídas nas sociedades como uma forma de
explicar determinados fenômenos do mundo, trazendo em sua essência profundos
ensinamentos dos povos, conhecimentos que foram herdados, presenteados pelos fazedores de
machados – xamãs, pajés, sacerdotes, sacerdotisas, pessoas detentoras dos saberes mais
profundos e secretos de um povo (BURKE; ORNSTEIN, 1998). Era por meio dos mitos que a
maior parte dos ensinamentos sobre a relação do homem com a sua origem, com os seus
ancestrais, com a história de vida dos seus pares se dava. Os mitos imprimem no caráter mais
íntimo de sua cultura verdade. Não uma verdade em si, mas uma forma específica de ver o
mundo; não representam uma lógica diferenciada de significar um conhecimento, a essência
do mito está na sua representação enquanto forma de significação simbólico-social-histórica,
apenas uma forma a mais de leitura, nem melhor nem pior. “Em que a religião e o mito estão
sendo tomados de modo tão significativo como outras formas, mas não formas inferiores de
saber (como queria a postura cientificista)?” (BURNHAM, 1998, p.37).
Mais do que nunca é necessário dialogar com as muitas formas de significar da
informação, diálogos entre os saberes construídos a partir das múltiplas referências: oriundas
dos campos simbólico, imaginário e social-histórico. Alguns mitos são tão importantes nas
narrativas das histórias de determinados povos que representam a própria base do
conhecimento destes, ou seja, as formas de construção de sentido de uma determinada cultura
sobre o conhecimento construído de um objeto social – informação, conhecimento, conceito,
idéia.
Muitos e muitos são os mitos e personagens míticos que são portadores desta
Necessidade Especial. Um dos principais símbolos que corrobora com a diferença entre o não
ver e o ser cego são os três macacos: aquele que não fala, o que não ouve e o que não vê. O
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que não vê, tapa os olhos com as mãos, mas, não é cego, o que o permite ver quando quiser.
Estes personagens simbólicos estão presentes em muitas culturas com o uso de diferentes
animais e também personificações, e, geralmente, o sentido dos macacos está ligado à
sabedoria. A questão não é falar, ouvir ou ver tudo, mas se calar, não ouvir e não ver o que
não se deve ou não se quer. É sábio não se ver o que não se quer ver, em determinados
momentos. O cego muitas vezes vê, assim como uma pessoa que vê pode fazer-se de cega,
tapar os olhos para não enxergar determinadas questões. Desta maneira, adentra-se no
universo da cegueira, tentando enxergá-la por dentro, sem tapar os olhos para ela mesma. Ou,
como diria Borges (2001), é o retorno ao centro, ao reflexo da essência: o espelho interno.
Um outro símbolo que se pode relacionar à questão da diferença entre o não ver e o
ser cego é a Justiça, um símbolo representado é uma mulher de venda nos olhos segurando
uma balança significando, a grosso modo, que a sua visão não irá interferir ao pesar os objetos
na balança que segura, ou, o seu julgamento pelos sentidos não influenciará o seu julgamento
racional. Claro que essa é uma descrição superficial, pois junto com a personificação vem a
célebre frase: “a Justiça é cega.” Que campo semântico caminha este substantivo – justiça?
Será conforme o dicionário Aurélio “A virtude de dar a cada um aquilo que é seu”?
Tratamento igual em um julgamento às partes, independente do que estão nos sentidos
aparentes?
Encontra-se em uma das concepções gregas de cegueira, Tirésias, cego que possui o
dom de prever o futuro exatamente porque a ele foi dada esta habilidade por Zeus, que
segundo a mitologia grega é o maior dos deuses, o pai de todos. Zeus, apesar de ser um Deus,
ou aquele que junto com outros Deuses controla o mundo, é também uma pessoa com vontade
e desejo próprios da natureza humana e é ele quem possibilita que Tirésias possa ser capaz de
ler as informações de mundo segundo percepções que vão além da visão física. A habilidade
de Tirésias como adivinho ou vidente do futuro só é possível graças à sua percepção apurada
dos fenômenos da natureza, ou observância dos acontecimentos que ocorrem ao seu redor.
ÉDIPO: Tirésias! Tu que tudo percebes, / Do mais claro ao mais denso dos
mistérios / Alto nos céus ou rasteiro na terra, / Hás de sentir, mesmo sem
poder ver, / A desgraça que assola esta cidade... [...] Agora, tu: fica atento
aos avisos / das aves, e a quaisquer outros sinais, / e aguça os teus poderes de
adivinho! [...] Em tuas mãos estamos, / e a mais nobre missão do ser humano
/ é prestar sua ajuda ao semelhante / por todos os meios ao seu alcance.
(SÓFOCLES, 1976, p.22).
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Édipo é uma pessoa que vê pedindo ajuda a um cego. O primeiro não consegue
enxergar o que o segundo vê. Apesar de ser cego, Tirésias percebe a diferença entre o que é
claro do que é denso. Ele é um homem que vê os mistérios mesmo sem poder enxergar.
Revela-se assim a sua clarividência, a sua visão interna, na qual Édipo clama para que relate
sobre os acontecimentos futuros que estão prestes a acontecer na cidade de Tebas, já que ele é
o rei da cidade e sofrerá as conseqüências mais diretas dos acontecimentos. Édipo afirma que
Tirésias é capaz de “sentir, mesmo sem poder ver”, desta maneira Tirésias se revela como
uma pessoa que faz leituras do mundo que o circunda e do futuro que está prestes a acontecer,
pois a desgraça da cidade, segundo Édipo, irá se realizar e só ele sabe quais são os
acontecimentos que irão se concretizar.
Veja-se que no imaginário popular trazido pela tragédia de Sófocles o cego se mostra
como pessoa sábia, mas que faz críticas à sabedoria do outro - Édipo foi o homem capaz de
desvendar os mistérios da Esfinge afirmando a inteligência humana, mas não é capaz de
desvendar os mistérios de sua própria vida. Tirésias não lhe diz o que deseja ouvir e Édipo
aproveita para menosprezá-lo por sua condição de cego:
ÉDIPO: Pensas que vais continuar falando assim, / impunemente?
TIRÉSIAS: Se algum valor tem a verdade, sim! ÉDIPO: Tem, mas não para
ti, pobre coitado: / cego dos molhos, dos ouvidos e do espírito! TIRÉSIAS:
Pobre coitado de ti! Pobre de ti, / a quem todos em breve hão de execrar /
como zombando vens até aqui! ÉDIPO: Olho de sombra sem fim: / não tens
nenhum poder de malefício / contra quem pode ver a luz do dia!
(SÓFOCLES, 1976, p.26-27)
Em uma das concepções judaico-cristãs, existe uma pessoa chamada Tobit, pai de
Tobias do livro bíblico de Tobias. Este livro é um dos seis que não se encontra na Bíblia
protestante, somente na Bíblia Católica. Ele foi abolido por conter fatos místicos, ou mágicos
que durante o processo da Reforma Protestante foram questionados pela Igreja que acabara de
nascer. O livro narra a vida de Tobit que é um homem que realiza várias austeridades, dentre
elas estão as providências aos pobres por meio de esmolas, assim como de alimentos para
pessoas que sentem fome. Tobit foi um homem que realizou muitos sepultamentos, inclusive
era conhecido por não temer o contato com os mortos. Um certo dia, estando Tobit
preparando-se para um grande almoço, avisaram-no que existia um homem que precisava de
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sepultamento, e, imediatamente, sem nem realizar a sua refeição, foi em caminho a ajudar o
homem que precisava ser sepultado. Desta maneira um encontro festivo transformou-se em
um momento de luto. E assim:
Naquela mesma noite, depois de ter terminado o sepultamento do cadáver,
lavei-me e entrei no pátio interior de casa e deitei-me rente ao muro, com o
rosto descoberto por causa do calor, e não adverti que havia passarinhos no
muro, acima de mim. Seus excrementos, ainda quentes, caíram-me dentro
dos olhos e me produziram a albugem. Recorri aos médicos para tratar-me,
mas quanto mais ungüentos me aplicavam, mais se me ofuscavam os olhos
por causa da albugem até que acabei por ficar completamente cego. Fiquei
privado da vista durante quatro anos. Todos os meus irmãos afligiram-se por
causa da minha desventura e Aquicar sustentou-me durante dois anos, até
que partiu para Elimaida. (TOBIAS 2, 9-10, 1976, p.515)
Tobit se lavou, já que o se lavar, depois do contato com os mortos, era uma prática
que só se realizava na Palestina. Ele trazia consigo os saberes adquiridos do lugar de onde
vinha. Tobit era um homem que conhecia métodos de higiene, portanto sabia dos riscos de
contaminação ao contato com cadáveres. Apesar disso em nenhum momento temia, pois
acreditava que estava cumprindo uma tarefa que lhe tinha sido dada por Deus. Quanto ao fato
de ter sido vítima da cegueira causada por excrementos de passarinho, o texto grego não traz,
conforme o uso hebraico, distinção entre as várias espécies de pequenas aves. Porém a
Vulgata (texto latino) especifica que são andorinhas que costumam nidificar na beirada das
sacadas das casas. As notas do Pontifício do Instituto Bíblico de Roma no livro de Tobias
referenciam sua vida com vida de Jó, ambos foram homens que sofreram tormentos em suas
vidas e apesar de todos os sofrimentos permaneceram fiéis e não se revoltaram contra a sua
condição humana, no caso de Tobit, na sua condição humana de cego. Que segundo as
mesmas notas:
O senhor permitiu esta provação (a cegueira de Tobi), para que sua
paciência servisse de exemplo às gerações vindouras, como a do santo Jô.
Efetivamente tendo Tobi vivido no temor de Deus e observado os seus
mandamentos desde a infância, não se rebelou contra o senhor por ter sido
atingido pela cegueira; pelo contrário, perseverou firme no temor de Deus,
louvando ao senhor em todos os dias de sua vida. (TOBIAS, 1976, p.514 15).
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A história segue narrando os passos do filho de Tobit: Tobias segue em busca de um
antigo crédito que seu pai tinha com um primo distante. Seu caminho, não o sabem nem
Tobias nem o seu pai, está sendo guiado pessoalmente pelo anjo Rafael disfarçado de Azarias.
E no caminho acontece na beira do rio Tigre que um peixe morde o pé de Tobias, mas ele
consegue capturar o peixe. Azarias lhe recomenda que guarde o fel, o coração e o fígado. O
coração e o fígado servirão, quando queimados em defumador, para afastar demônios ou maus
espíritos que porventura invadam homens ou mulheres, e o fel, esfregando ou soprando nos
olhos de quem sofre de “albugem, ficará curado” (TOBIAS 6, 1-9, 1976, p.519). Assim, por
estes meios Tobias consegue desenrolar a história: afastar o demônio Asmodeu e se casar com
Sara, e também, quando retorna para casa, curar Tobit da albugem e devolvê-lo a visão. Ao
final, Azarias se revela como o anjo Rafael e desaparece. Analisando toda a história sabe-se
que a cegueira de Tobit foi um ponto fundamental para o desenvolvimento dos
acontecimentos da história. Foi por causa da cegueira que ele roga até Deus e lhe é enviado o
anjo Rafael para guiar os passos de seu filho.
Tobit, pai de Tobias, representa o modelo da pessoa justa. A essência da
pessoa justa é viver conforme a verdade e a justiça, que se representam não
como algo acabado, mas como um caminho a ser percorrido. O texto procura
mostrar em que consiste viver conforme a verdade e justiça. (STORNIOLO;
BORTOLINI, 1994, p.15).
A mitologia nórdica, baseada nos mitos escandinavos dos povos Vikings, conta
muitas histórias sobre como o Pai de Tudo conseguiu sua grande sabedoria e poderes
mágicos. Para cada conquista houve um preço a pagar:
A FALA DO MAIS ALTO
Vi-me suspenso naquela árvore batida pelo vento,
Ali dependurado por nove longas noites,
Por minha própria lâmina ferido,
Sangrando para Odin,
Eu, uma oferenda a mim mesmo:
Atado à árvore
Que nenhum homem conhece
Para onde vão suas raízes.
Ninguém me deu de comer.
Ninguém me deu de beber.
Perscrutei as mais terríveis profundezas
Até vislumbrar as runas.
Com um grito estentório as ergui,
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E então, tonto e desfalecido, caí.
Bem-estar eu conquistei
E também sabedoria.
Cresci, alegrando-me de meu crescimento:
De uma a outra palavra,
Fui levado a uma palavra,
De um fato a outro fato.
Do Escandinavo Antigo a Edda Poética (cerca de 1200 d.c.)
(BLUM, 1993, p.13).
A Árvore do Mundo, Yggdrasil, que tem uma de suas raízes mergulhada, e assim
regada pela fonte da Sabedoria, cujo líquido, Odin, de muitos nomes, sábio e mágico
poderoso, se entregou, ávido por conhecer todas as coisas, para que pudesse beber percepção
e conhecimento desta fonte; para tanto, Mímir, seu tio, o guardião da fonte, sábio e prudente,
só lhe concedeu o favor com a condição de que Odin lhe desse um de seus olhos. Ele ofertou
não somente um de seus olhos, mas também a si mesmo entregando o seu corpo em oferenda
a si mesmo, dependurou-se na árvore da vida para poder avistar as Runas: o conhecimento
dos mundos. Então, encontrou na água da fonte milagrosa tanta sabedoria e poderes secretos
que pôde, logo que Mímir foi morto na guerra ente os Æsir e os Vanir, lhe conferir a
faculdade de renascer pela sabedoria: sua cabeça, graças aos cuidados dos deuses,
embalsamada, é capaz de responder a todas as perguntas que lhe dirigem. Assim nasce a
origem do mito do oráculo das Runas, cuja leitura (mística) realizadas por profetisas e
visionárias das letras que formam palavras; o diálogo entre o leitor místico das Runas e a
resposta que Odin lhe confere às perguntas ocorre exatamente por meio deste oráculo. Isso só
foi possível porque após vislumbrar as Runas e se levantar da morte, Ele adquiriu tantos
conhecimentos: sabia de muitas coisas que os homens desconheciam e assim poderia ensinálos por meio dos saberes que agora ele detinha, bebidos direto da fonte da Sabedoria - oráculo
das Runas; ele sabia como curar os doentes, como cegar a espada de seus inimigos e, como
agarrar uma flecha em pleno vôo. Os povos nórdicos têm em Odin sinônimos de bravura, da
altivez e do valor que são todos resultados da sua sabedoria: passou a enxergar as Runas
depois que entregou um de seus olhos, e foi exatamente com o olho cego que as visualiza. As
Runas representam símbolos mágicos com os quais os homens podem registrar e compreender
suas vidas: as palavras oriundas do conhecimento das palavras: “De uma a outra palavra, / Fui
levado a uma palavra,” a informação oriunda das Runas é a vidência interna, é uma leitura
absolutamente simbólica, e é nisso que reside a sua questão mais interessante: representa
formas de conceituar, significar símbolos; cada letra representa não somente um conjunto de
significados, mas um complexo conjunto de conceitos que podem se modificar a depender da
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ordem em que ela apareça no momento da leitura do oráculo. Não existe significado isolado
da pedra contendo o desenho da letra, ou o seu signo, mas no conjunto de algumas pedras –
possível dizer que é das letras que vêm o conhecimento - pois é um diálogo entre o
conhecimento vindo do Pai de Tudo e o leitor das Runas, os povos vikings acreditam que é
por meio Delas que se conhece o que se tem a conhecer: relações de diálogos entre o eu e o
Eu – Deus interior que fala por meio delas. (BLUM, 1993).
Quando se fala de uma cultura, é importante que se tente ao máximo se aproximar da
lógica própria de cada uma delas. Assim, quando se diz da cultura hindu, é uma visão
instituída pelos ingleses, ao estabelecer rota para a Índia, os indianos se auto referem como
vedas ou vedantas. Toma-se como referencial dos vedas a cultura vaisnavas: da região da
Bengala. Os vaisnavas referem-se como adoradores do Deus supremo - a Verdade Absoluta –
Senhor Visnu. A história destes povos é absolutamente extensa, documentada em vasta
literatura contendo o relato de diversas pessoas cegas; porém, a pessoa, talvez, de maior
destaque seja Dhrtarastra – o rei cego. Em uma compilação de mais de dez mil conjuntos de
versos conhecidos como MahaBharata, conta a história de todo um povo e a sua derrocada ao
se travar uma guerra entre os Kurus, os filhos de Dhrtarastra, e, os Pandavas, os filhos de seu
irmão Pandu. Foi exatamente nesta batalha, nos campos de Kurukstra, que foi narrado o livro
vaisnava mais famoso: Bhagavat Gíta, ou a canção dos Bhagavans. Tudo começa quando o
avô dos Kurus, Bísma, faz um severo voto de castidade, e não podia, desta maneira, continuar
a sua linhagem. Para tanto, resolveu convidar Viasadeva, um dos maiores sábios, o
compilador de um outro conjunto de livros chamado Srimad Bhagavatam para conceber os
seus filhos nas suas três esposas. Todavia, Viasadeva, realizando penitências no meio da
floresta, chega ao palácio com as unhas enormes, com bichos pelos cabelos, em um estado
físico horrível, e assim, a primeira esposa fica com nojo e a criança nasce fisicamente muito
frágil: Pandu. A segunda, sabendo do estado físico de Viasadeva, e iludida ao não ver a
essência do homem santo que era ele, tapa os olhos ao conceber o filho; nasce desta maneira o
rei cego – Dhrtarastra. É importante entender que todas as questões que envolvem este
homem ao longo do relato estão sempre recorrentes aos aspectos de um caráter austero, e
muitas vezes arrogante que ele tinha, e após a morte de seu irmão: Pandu, não deu aos seus
sobrinhos o direito ao trono do povo Bharata: dessa desavença surge a guerra. Viasadeva
propõe a Dhrtarastra conceder-lhe visão da batalha, assim permitindo que ele possa
finalmente enxergar, mas sabendo que os seus filhos iriam ser derrotados, pois do outro lado,
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junto com os seus sobrinhos estava Sri Krshna, a própria pessoa de Deus apoiando os seus
exércitos, prefere continuar cego. Sanjaya, o seu secretário particular, é quem recebe a visão
divina de Viasadeva e assim lhe narra a batalha. É muito instigante a personalidade deste
homem, primeiro porque a sua cegueira congênita é fruto de uma ilusão da sua mãe ao estar
com Viasadeva, portanto ele estava fadado a uma dupla cegueira: física e espiritual, e é por
este motivo que ele é tão especial. Esta é a única das histórias que foram pesquisadas cuja
cegueira verdadeiramente é o “sinal externo do ofuscamento interior”, como afirma Lurker
(1997, p.124).
Muitas histórias míticas têm a sua gênese no conhecimento oral, assim as culturas
africanas, especificamente as de origem Yorubá, Banto e Angola se mantiveram afirmadas na
oralidade como forma de construção de conhecimento: formas de subsistência e o culto às
suas divindades – orixás. Desta maneira nem todos os conhecimentos eram acessíveis a todos,
principalmente os de origem mística e mágica, estes eram de acesso somente àqueles “filhos
iniciados”, ou os que participaram de algumas cerimônias - ritos de passagem. É possível hoje
encontrar uma vasta bibliografia narrando os mitos, ensinamentos, mas a parte mais secreta
continua sendo inacessível por parte de não “iniciados”. Este conhecimento ainda permanece
oral, e sendo ensinado no dia-a-dia do terreiro.
A importância do mito para estas culturas é tão imprescindível que a maior parte dos
seus ensinamentos, do conhecimento mais profundo de sua cultura é realizado por meio de
narração de histórias. A primeira conta como Erinlé foi curado da cegueira por Logum Edé;
indo caçar juntos desconhecendo que eram pai e filho. Erinlé, sem saber, acaba matando um
dos pássaros das feiticeiras - Ia Mi Oxorongá; em resposta, Elas lançaram um feitiço que
cegou a ambos. Logum Edé, porém, havia feito um pacto com Elas e assim levava a tiracolo
um adô que ganhara das velhas bruxas, “um bornel repleto de fórmulas mágicas e mistérios.”
(PRANDI, 2001, p.138). Com a magia que tinha ganho de presente pôde curar da cegueira
Erinlé, mas não a si mesmo; caminharam juntos até uma lagoa onde encontram Oxum.
“Logum Edé aproximou a mãe do companheiro e dentro d’água um amor antigo renasceu.
Dessa nova união de Erinlé e Oxum nasceu um novo rio, o rio Inlé.” (PRANDI, 2001, p.139).
Logum Edé monta em um peixe e desce pelo rio Inlé até o mar onde encontra Yemanjá que
lhe adotou e lhe deu riquezas.
Uma outra história conta como “Obatalá tem o poder de trazer fortuna às pessoas,
tem o poder de devolver a visão a um homem cego” (PRANDI, 2001, p.516) Obatalá, certa
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vez, precisou de peixes para realizar um ebó (sacrifício, oferenda, despacho) que lhe traria
enormes poderes, para isso acabou furtando-os de um pescador cego de nome Ojiá. Assim, ele
consultou Ifá que lhe ensinou uma canção que descrevia as roupas e aparências de Obatalá.
Ojiá deveria cantar esta canção quando percebesse que estava sendo furtado; quando Obatalá
ouviu Ojiá cantando a canção que lhe descrevia pediu ao pescador que não contasse a
ninguém sobre a sua atitude. “O pescador disse que nada contaria desde que Obatalá lhe
devolvesse a visão. Obatalá assim o fez e sua fama de honesto e poderoso foi preservada.”
(PRANDI, 2001, p.516).
Na concepção da Igreja Católica Apostólica Romana, o santo correspondente às
curas da visão é Santa Luzia:
Vem, Santa Luzia
De noite e de dia
Trazer-me esta luz
Dos braços da cruz
Se é nuvem de sangue,
E de água formada,
Pelo Cristo enxágüe
Será desmanchada.
Por Santa Luzia
Vais ter a alegria
De ver que esta luz
No céu se produz. 1
Luzia foi uma mulher, que ao viajar com a sua mãe até o túmulo de Santa Águeda,
teve uma visão da Santa, inclusive porque a sua mãe havia sido curada de uma enfermidade.
Assim ela decide se dedicar à caridade, vendendo todos os seus bens e fazendo um voto de
castidade (FREITAS, 2005, p.3); não pode assim desposar o seu noivo, que irritado decide
denunciá-la como cristã. Em Siracusa, foi submetida a um intenso interrogatório e motivada a
não abandonar o seu pretendente para seguir os cristãos, que eram chamados de infames por
repudiarem as divindades romanas. Conta-se então que a tentaram matar de muitas formas
mas que foram todas inúteis (ALVES, 2003), até que acabou sendo martirizada. Essas
histórias apresentam muitas contradições, mas os fatos da sua morte não são mais importantes
do que sua história de vida acabou representando: símbolo de resistência aos opressores,
forma de destituir a crença estabelecida impondo a sua forma subjetiva de encarar sua fé.
1
Oração a Santa Luzia observada na pesquisa de campo registrada do conhecimento oral.
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Segundo uma lenda do final da Idade Média, o pretendente de santa Luzia havia
ficado fascinado pela beleza e brilho de seus olhos. Então ela arrancou e os ofertou a
ele. Entretanto, para espanto de todos, seus olhos se restabeleceram milagrosamente.
Daí ela ser representada trazendo os olhos em uma bandeja. (ALVES, 2003, p.42).
É muito comum se ver diversos cegos na igreja do Pilar no dia 13 de dezembro.
Muitos vão até a fonte de água lavar os seus olhos com o intuito de pedir à Santa proteção aos
males da visão assim como visão espiritual. Luzia significa “lugar de luz”, portanto tem sido
cultuada nesta perspectiva. (ALVES, 2003; FREITAS, 2005).
De todas as histórias bíblicas talvez a cura do cego de Betsaida por Jesus Cristo seja
a mais interessante, primeiro porque a própria figura de Jesus já é bastante polêmica, e,
polêmica também é a operação de oftalmologia mágica, mística, capaz de devolver a visão a
um cego; segundo, que essas narrativas possuem muitas interpretações diferentes a depender
da compreensão que se tenha, obviamente, do próprio Jesus. Este milagre faz parte de um
conjunto de milagres que Jesus realizou e que estão narrados no livro de Marcos. Outro fato
importante é que este milagre só é descrito neste livro, os evangelistas Mateus e Lucas não o
narram.
Chegaram a Betsaida. E trouxeram-lhe um cego, suplicando-o que o tocasse. Ele,
tomando cego pela mão, levou-o para fora da povoação; e depois de pôr-lhe saliva
nos olhos e de impor-lhe as mãos, perguntava-lhe: ‘vês alguma coisa?’ E ele abrindo
os olhos e olhando para cima, disse: ‘Vejo os homens como árvores, e os vejo
caminhar.’ Impôs-lhe de novo as mãos sobre os olhos, e ele começou a ver
distintamente e ficou curado, tanto que de longe via bem e claramente todas as
coisas. Mandou-o então para sua casa e disse-lhe: ‘Não digas nada na povoação.’
(MARCOS 8, 22-26, 1976)
Em um outro momento, em que um surdo-mudo foi curado, está escrito que Jesus
“mandou-lhes que não o contassem a ninguém. Mas quanto mais lho mandavam, tanto mais
eles o divulgavam.” (MARCOS 7, 36, 1976). Teria interesse, Jesus, de propagar a sua
capacidade de realizar milagres? Analisando o texto, não era interessante que se fizesse alarde
dos milagres, nem que os propagasse, mas é natural que acontecimentos, como a cura de um
surdo-mudo e de um cego, deixem as pessoas atordoadas, maravilhadas; é natural também que
se conte a outras pessoas sobre acontecimentos dessa ordem. O que pode ter acontecido com o
homem de Betsaida, antes cego, depois do encontro com Jesus capaz de ver? Que mudanças,
transformações ocorreram na vida deste homem depois que foi capaz de enxergar?
Concepções de povos diferenciados apresentam concepções diferentes sobre o que é
ser cego. Narrou-se resumidamente a história de vida de algumas pessoas e assim imprimiu-se
47
diferenciadas formas de concepções de cegueiras; muito mais do que de cegueiras, todas
narram algum fato que permite que o cidadão-cego seja capaz de enxergar ou algum fato que
verdadeiramente devolveu-lhe a visão.
O macaco que põe a mão nos olhos para não ver pode também abrir os dedos e
deixar passar a imagem pela sua vista. A Justiça usa vendas, não é cega, pode tirá-las quando
desejar. Tirésias é um homem que é vidente do invisível, leitor das informações do inatingível
– futuro. Tobit foi capaz de ver depois que a sua cura foi ensinada a seu filho pelo próprio
Anjo Rafael. Odin pode visualizar o “conhecimento” – o conhecimento do conhecimento –
materializado pela cultura nórdica como as Runas, depois que penhorou um olho e se
entregou em sacrifício de si para si; Dhrtarastra, o rei cego, poderia ter tido visões, todavia a
nega, pois não é capaz de suportar assistir a derrota e morte de seus filhos numa batalha. Santa
Luzia representa a protetora dos males da visão: símbolo de resistência e perseverança – dar
“luz” à cegueira espiritual. Erinlé, amaldiçoado, torna-se cego; a mesma magia que o cega, o
cura. Logum Edé, apesar de conhecer a cura da cegueira do outro, não é capaz de se curar,
mas mesmo assim acaba ganhando as fortunas do reino de Yemanjá. Ojiá volta a enxergar
graças aos poderes que Obatalá conseguiu ao realizar um ebó com os peixes que lhe furtou. E
finalmente o homem de Betsaida pode diferenciar com a visão árvores de homens por meio de
uma cirurgia mística que Jesus lhe realizou.
Dentro da concepção de cegueira de cada um deles existe a possibilidade da visão.
Também, nestas concepções, o sujeito é constantemente correlacionado com um outro sujeito
ou objeto social que lhe imprime a cegueira e/ou lhe imprime também a possibilidade da visão
ou a própria vidência.
Se analisarmos o macaco, a Justiça e Odin, perceberemos que este Outro sujeito, ou o
objeto é si mesmo. Comprovando a teoria de que não existe distinção entre o objeto e o
sujeito; apesar do objeto poder ser o próprio sujeito, assim o objeto não poder ser em si, mas é
um estar-sendo no sujeito. A mão do macaco que não o deixa ver pode ser o mesmo objeto
que permita que ele veja, basta que ele assim deseje; não enxerga porque o seu símbolo
imprime esse significado – o desejo de não ver. A Justiça também, a sua venda é necessária
para a sua compreensão do que vai julgar, mas também a sua venda pode ser retirada; a sua
intencionalidade está no uso que fará dela ao tender a sua balança para o lado do mais justo. E
Odin é o exemplo mais claro de todo argumento de que o conhecer é um conhecer-se e um
conhecer o outro (objeto, coisa, idéia, conceito, conhecimento). Somente leituras dos mitos
48
são capazes de conceber as abstrações necessárias para se falar de um determinado saber: as
Runas são ao mesmo tempo signo-objeto, símbolo, significado e significante. Mas em si
representa o próprio conhecimento. É a tripla relação signitiva – relação de um para um, onde
o signo, simbolizado pela letra, representa um e somente um significado, ela representa ela
mesma – relação de quid pro quo – isto por aquilo; signifitiva – as Runas passam de signo
para símbolo – relação de um a muitos, concepção de significado estruturado pela linguagem
da representação social possibilitando mais de um conceito, significado; e significativa – as
Runas passam a representar bem mais do que si mesmas, a relação passa a ser de muitos
significados que Elas podem conceber, pois representam o próprio conhecimento em si, a
representar o conhecimento pelo conhecimento - conhecimento de uma cultura sobre o seu
próprio saber – o seu fazer social (CASTORIADIS, 1982). Só se vê (faz leitura, concebe
significação) das Runas porque se conhece o conhecimento que dá acesso a esta leitura - fazer
parte do grupo histórico-social – é na concepção significativa que se concebem as formas
mais próximas de entender o sujeito neste fazer social, “[...] é o que traz o sujeito ao mundo, é
o que o coloca permanentemente na rua” (CASTORIADIS, 1982, p.127), porque não dizer
que é o que faz este sair à rua: conhece porque faz parte de um fazer histórico-social onde
constrói as bases de significação da informação neste contexto cultural, mas sobretudo porque
tem vontade de conhecer, é o que Castoriadis fala do “ativo de...”, na “intencionalidade de...”
Na intenção do sujeito de conhecer está o conhecer o seu conhecer. Formas subjetivas de
interpretação do que em si é subjetivo, portanto permanentemente susceptível de múltiplas
leituras – interpretações. Por este motivo o subtítulo do presente trabalho: leituras de
vivências, pois está na atitude (intenção) que se realiza o conhecer (MATURANA, 2001). O
conhecer não é um ato passivo, isolado, solipsista, , mas um ato efetivo, uma ação. Um fazerser social. como afirma Castoriadis e Maturana. O conhecimento não está isolado no sujeito,
como afirmam os solipsistas, ou se dá, e se concretiza no sujeito. Porque o sujeito é sempre
coletivizado por seu caráter simbólico-histórico-social; se pensarmos até mesmo um eremita,
um ser isolado, faz parte de um grupo de seres isolados, recai em seu caráter biológicoontológico: nasceu da união de pessoas. Toda apreensão da realidade está nesta relação do
conhecer – sobre si e sobre o outro (ou o mundo) - com o conhecer (conhecimento de um
povo, uma cultura). “[...] todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer.”
(MATURANA, 2001, p.32).
49
Formas de subverter o conhecer instituídos socialmente por meio do conhecer de si:
subjetividades, intencionalidade do sujeito ao contato com conhecimentos. Portanto a forma
da informação é representada no sujeito; a informação, desta maneira, é resultado do
conhecimento de um povo, cultura (de si com o outro). A intenção é que move o conhecer, é o
macaco que tira as mãos dos seus olhos para enxergar-conhecer. É a Justiça que retira a venda
para pesar o que é justo.
A proposta é captar impressões simbólicas dos sujeitos descritos e fazer uma análise
deste simbólico numa lógica de recorrência simbólica: os sujeitos só são capazes de enxergar
graças a algum conhecimento; na realização de análise que permita descobrir que o ver para
os cidadãos-cegos é um conhecer, então eles vêem, ou conhecem, por meio de algum outro
conhecimento que permite que eles vejam, ou conheçam; concretizando o dito de que o
sujeito está em constante relação com outros sujeitos: assim toda informação nasce de um
conhecer instituído nas relações entre os sujeitos – vêem (conhecem) por meio de um outro
conhecimento, de um outro sujeito. Tirésias conhece porque vê, este ver é uma leitura de
realidade impalpável, conhece o futuro porque tem acesso ao conhecimento que permita este
conhecer. Tobit vê por meio do conhecimento no uso do fel para a retirada da sua “albugem”;
o conhecimento veio de Rafael. Erinlê volta a enxergar na ação do conhecimento dado a
Logum Edé pelas feiticeiras. Ojiá também vê pelo conhecimento de Obatalá, representado na
história como o poder de Obatalá. Percebe-se que se pode realizar uma leitura de vivências de
pessoas na sua ação de conhecer, representado simbolicamente neste trabalho como o ver,
diferentes perspectivas de retorno ao uso da visão são somente possíveis por meio do
conhecimento. O conhecimento é base da relação entre os sujeitos, porque todo conhecimento
é instituído no ser social, e todo conhecer como ação também se confirma com o homem de
Betsaida. Jesus usou um conhecer-fazer, uma ação: pegou a saliva e colocou nos olhos depois
impostou as mãos para que o outro pudesse voltar a enxergar, e assim continuar o seu
conhecer como um outro conhecer: por meio de um sentido a mais.
A informação só existe porque existe o conhecimento para dar a ela sua forma.
Assim o conhecimento: forma da informação é construída no sujeito. Todavia a informação
não é em si, é produto de um saber – conhecimento oriundo de uma concepção subjetiva,
simbólica – do sujeito, intenção pessoal; e a informação oriunda do outro – outros sujeitos,
conhecimento construído por meio da instituição social deste mesmo conhecimento. Essa
indissociabilidade é inerente aos sujeitos (CASTORIADIS, 1982). Assim o conhecimento
50
como formas do conhecer, não é o conhecimento como transmutação de uma informação, um
transporte mágico realizado pelos sentidos, mas uma ação que denota necessariamente uma
reflexão, senão a intenção de ver-conhecer continuaria impondo aos sujeitos suas cegueiras,
não seria capaz de fazê-los ver, mesmo sem ver.
Essa situação especial de conhecer como se conhece é tradicionalmente
esquiva para nossa cultura ocidental, centrada na ação e não na reflexão, de
modo que nossa vida pessoal é, geralmente, cega para si mesma.
(MATURANA, 2001, p.30).
2.2 TRAJETÓRIA DOS SUPORTES DE LEITURA E ESCRITA E RECEPÇÃO DE
INFORMAÇÃO
Enquanto isso, o livreiro juramentado da Universidade, mestre Andry
Musnier, se pendurava ao ouvido do peleteiro dos trajes do rei, mestre Gilles
Lecornu.
- É o que lhe digo, senhor, isto é o fim do mundo. Nunca se viram tais
excessos da estudantada; são as malditas invenções do século que põem tudo a
perder. As artilharias, as serpentinas, as bombardas, e sobretudo a imprensa, essa
outra peste da Alemanha. Nada mais de manuscritos, nada mais de livros! A
imprensa mata a livraria. É o fim do mundo que está chegando.
- Bem me apercebo disto, pelos progressos dos panos de veludo – disse o
negociante de peles. (HUGO, 1973, p.26-29).
O mundo da cegueira é bastante complexo. Muito pouco se conhece e do que muito
se fala há informações equivocadas, indevidas, como, por exemplo, acreditar que a ausência
da visão aguça os outros sentidos. Aqui trataremos de um aspecto concreto sobre a dinâmica
que se estabelece entre esse mundo e os diversos suportes de informação.
A história que apresentaremos tem início com a capacidade humana de conviver com
o conhecimento imanente, novo, originado na base da construção de novas ferramentas
intelectuais. Nesse contexto, surgem novos conhecimentos e assim conseqüentemente outras
formas de significação que acabam gerando as ferramentas, técnicas no uso destas e sistemas
que compõem o conjunto das técnicas: formas de uma cultura no seu fazer-ser histórico-social
51
(BURKE; ORNSTEIN, 1998). As pessoas contemporâneas às novas invenções humanas são
sempre as que mais se impactuem com as mudanças em suas vidas, para alguns
positivamente, para outros negativamente.
No entendimento de que o histórico-social só se concebe numa tríade pessoalhistórico-social, a natureza mais íntima, talvez, que resuma a tríade, é sua concepção
embasada no fato de que cada sujeito é único, diverso. Assim sujeitos diferentes geram
diferentes significações, mesmo que possuam quaisquer deficiências; muito se fala desta
diversidade, mas as muitas formas de pensar dentro das sociedades a respeito dos Portadores
de Necessidades Especiais tiveram muitos aspectos por demais desfavoráveis para os sujeitos,
com exceções sempre constatadas em diversas situações, mas sobretudo uma complexa rede
de significações culturais entre os chamados de “normal e anormal”. As anomalias físicas e
psiquícas sempre foram aspectos norteadores das maneiras dos sujeitos representarem as
informações sociais. Principalmente porque estes aspectos tornam os sujeitos diferentes, mas
pertencente ao grupo dos seus iguais (GOFFMANN, 1988).
As mudanças nas sociedades humanas ocorrem, à medida que as pessoas e as
ferramentas que compõem estas sociedades estão também se modificando (BURKE;
ORNSTEIN, 1998).
Muito comum que pessoas contemporâneas às mudanças técnico-
científicas de seu tempo se espantem ou se admirem com estas mudanças. No texto de Hugo
(1973), que abre este sub-capítulo, o livreiro e o reitor são as pessoas que mais se espantam
com as possibilidades que nascem da imprensa. Uma nova forma de acesso à informação, a
saída de uma informação absolutamente particular e restritas aos letrados e aos universitários,
conservada em Bibliotecas e com cópias raras e únicas para um acesso de um texto copiado
em milhões de unidades e mais contemporaneamente o compartilhamento de textos em rede
por meio da internet. Apesar da existência de um conhecimento disponível em rede, nem
sempre é acessível a todo tipo de público. Mudanças que facilitam o acesso à informação por
parte de pessoas com deficiência visual têm ocorrido paulatinamente à medida que se
desenvolvem técnicas de cadastro e registro de informação assim como de recuperação desta
informação. São as formas simbólicas desenvolvidas ao longo da história instituindo
ferramentas, técnicas e sistemas de representação do conhecimento humano.
52
A representação do mundo através de sua redução a símbolos e números
abstratos é um componente fundamental da nossa moderna maneira de
pensar, mas não faz parte da coleção de talentos humanos naturais. Falar e
ouvir são coisas que vêm naturalmente para quase todos os seres humanos,
mas escrever e ler não são coisas fáceis de aprender. A inovação préhistórica da representação de quantidades, e mais tarde de palavras,
desenvolveu-se em um período de tempo culturalmente longo, ainda que
biologicamente curto. As mudanças sociais que tornaram os seres humanos
aptos a representar o mundo dos objetos e quantidades por meio de sinais
abstratos (e nesse sentido distinguir três objetos de quatro, e mais tarde
“três” de qualquer coisa de “quatro” de qualquer coisa) levaram cerca de 10
mil anos para se completar. (BURKE; ORNSTEIN, 1998, p.61)
Assim também foram construídas as bases do conhecimento no caminho histórico,
não apenas aquele pautado numa seqüência de tempo, mas a legitimidade e a ilegitimidade do
conhecimento social, instituía-se, então, na organização e no acesso do conhecimento outras
formas de conhecer, e assim as formas de poder pelo conhecimento. Cada cultura possui a sua
forma particular de organização da informação, segundo Burke (2003) esta organização era
fruto do compartimentar do conhecimento, seguindo uma lógica de organização resultante da
lógica instituída: estabelecimento de critérios do conhecimento como válido, útil e necessário.
Assim, se deu a história do conhecimento centrada no conhecimento da Europa,
representando, de certo modo, maneiras de instituir as divisões do conhecimento próprias da
disciplinarização (divisão em disciplinas) e maneiras de organizar o conhecimento em
currículos. (BURKE, 2003, p.87).
Também, a obra de Eco (1986) mostra claramente a forma de organizar a informação
da biblioteca de um mosteiro, revelando com isto as formas próprias de conhecer da época em
que os construtores da biblioteca pensavam o acesso à informação. As muitas salas com que
se organizavam os acervos dos papiros e livros continham os textos subjacentes à categoria
proposta pelo nome da sala.
A julgar pelas decorações deveria ser um corão, mas infelizmente não
conheço árabe.
O corão a bíblia dos infiéis, um livro perverso...
Um livro que contém uma sabedoria diferente da nossa, mas entendes por
que o puseram aqui, onde estão os leões, os monstros. Eis porque ali vimos
aquele livro sobre as bestas monstruosas onde encontraste também o
unicórnio. Esta zona dita LEONES contém aqueles que para os construtores
da biblioteca eram os livros da mentira. O que há lá embaixo?
53
Estão em latim, mas a partir do árabe. Ayyub al Ruhawi, um tratado sobre a
hidrofobia canina. E este é um livro de tesouros. E este o De aspectibus de
Alhazen...
Vê, puseram entre os monstros e as mentiras também obras de ciência de que
os cristãos têm muito a aprender. Assim se pensava nos tempos em que a
biblioteca foi construída... (ECO, 1986, p.360)
O não acesso aos livros, assim como da aprendizagem das línguas (na sua maioria
textos em grego ou latim) que permitisse o acesso ao conhecimento contido nestes suportes,
sempre na mão de uma pequena elite intelectual: pessoas da corte letradas, pessoas da igreja
por meio das bibliotecas dos mosteiros; sempre secretas e inacessíveis a externos, e,
estudantes universitários que também faziam parte de uma pequena elite letrada.
Neste mesmo mosteiro morava um monge bastante respeitado. Chamado Venerável
Jorge, também cego é este sujeito, mas apesar de viver em uma época onde o acesso à
informação escrita, autonomamente falando, era unicamente por meio da visão; este cidadão
tinha acesso a um número vastíssimo de livros por meio de outros sujeitos que o liam para ele,
além disso, a habilidade de locomover-se por um complexo sistema de salas que se
organizavam em forma de labirintos lhe era absolutamente familiar e simples. Então, mesmo
em uma circunstância que aparentemente dificultava o acesso à informação, ou talvez até a
impossibilitasse; a habilidade e a vivência, além é claro das relações sociais na leitura dos
textos por outros sujeitos, serem os motivos que permitiram este acesso. Portanto ele não
tinha acesso à informação escrita, mas sim à informação oral. Dentro desta perspectiva tem-se
a recepção auditiva, por meio de leitura oral de outra pessoa ou de ferramentas que
reproduzem vozes, o importará na relação estabelecida com o outro sujeito, e assim a uma
circunstância de relações sociais. É importante salientar o uso de ledores (pessoas que lêem)
para o acesso à informação gráfica visual por parte de deficientes visuais que era a principal
forma de acesso à informação no momento histórico anterior ao método Braille.
Na Idade Média, os diversos espaços de acesso à informação fornecem subsídios
para compreender que se as leituras eram realizadas em voz alta, em ambientes públicos ou
privados, era possível que o cidadão-cego tivesse acesso à informação.
54
No começo da Idade Média eram comuns as reuniões em casas de autores,
para leitura coletiva de suas criações. As leituras eram feitas em voz alta.
Reunia-se para ouvir os autores e “as leituras públicas tornaram-se quase
inevitáveis para quem quisesse ser conhecido como autor” (MANGUEL,
1999, p.281). Nos mosteiros, lia-se, normalmente, à hora das refeições. Um
leitor semanal era escolhido e devia se preparar para tal missão. O espaço de
leitura era o refeitório. Na sociedade moderna, já se notam alterações no
ambiente onde a leitura é realizada. (BARRETO, 2006, p. 110)
Em cada momento histórico a sociedade vive um avanço no que diz respeito à relação
com o conhecimento, às formas de propagação-difusão e os seus respectivos suportes.
A narrativa do presente sub-capítulo iniciou-se baseada na ferramenta de maior
importância para a divulgação, propagação da história moderna, que foi a imprensa:
representada por possibilidades de transformações radicais na vida dos cidadãos, exatamente
porque modifica a relação com o acesso a um grande número, volume, quantidade de
informação.
Os impressores estabeleceram suas editoras em todas as cidades
universitárias e centros comerciais importantes e produziram, entre os anos
de 1500 e 1600, de 150 a 200 milhões de textos. Em um sentido muito
especial, o livro foi a primeira mercadoria industrial produzida em massa no
sentido moderno. Nenhuma invenção se havia difundido tanto e tão
rapidamente na história. (BURKE, 1998, p.138)
No que diz respeito especificamente ao cidadão-cego, a sua recepção é baseada na
informação auditiva, leitura oral e capacidade de ouvir e discernir nesta leitura; a leitura tátil,
que possui todo um sistema próprio de compreensão, e um método ou técnica da escrita e
leitura baseada no sistema Braille e, ainda, em conhecimentos sutis vindos de leituras,
análises, discussões, vivências de conhecimentos oriundos de livros ou pessoas.
Não se pode deixar de analisar a condição da criança cega, ou na qual seja
diagnosticada quaisquer formas de deficiência visual, pois é necessário o atendimento
precoce, quer dizer, a criança cega ser estimulada a andar, vasculhar objetos com o tato e o
olfato, explorar as texturas das coisas: os cheiros, os aromas, os sabores. Mas quando uma
pessoa fica cega na vida adulta o processo não é necessariamente diferente, pois esse mesmo
tipo de exploração se dará no sujeito que ficou cego, o difícil é o distanciamento com o que
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agora passa a conhecer ausente da visão, é um novo conhecer, ou melhor, é uma nova forma
de conhecer, a adaptação com que passará a usar os outros sentidos para realizar as atividades
e tarefas que a sua habilidade, de agora em diante, passará a apresentar. É a saída do mundo
visual, uma vivência de retirada da possibilidade de conhecer por meio deste sentido, a
entrada em um outro mundo. Não se pode deixar de abordar nesta pesquisa a respeito de
pessoas que se tornaram cegas na vida adulta, essa é uma questão muito específica onde
alguns se adaptam bem e outros nem tanto.
Essa transição do mundo visual para o mundo não visual, ao adentrar para o mundo
da cegueira o sujeito terá que passar por um processo de reabilitação muito grande.
Evidentemente a ausência da visão é muito impactante para quem sempre viu, toda mudança
brusca e radical provoca, traz uma complexidade própria de superação de traumas e desafios,
uma reorganização da cabeça, do mundo e da vida.
Se antes andava normalmente, agora terá que usar uma bengala longa ou cão-guia. Se
antes escrevia com caneta, lápis, ou quaisquer ferramentas de escrita e lia com os olhos, agora
terá que escrever com o método Braille por meio de um pulsão e reglete, máquina Perkings,
Braille falado ou sistemas multimídia de registros de informação; precisará aprender a ler com
o tato e observará que este sentido não é tão desenvolvido o quanto será necessário para a
realização deste tipo de leitura. Inclusive se antes digitava no seu computador, terá que
aprender a digitar sem o auxílio da visão. É um processo de reeducação dos sentidos, e todo
ele é um repensar sobre si mesmo na sua relação de mundo, relação com a informaçãoconhecimento.
As Atividades da Vida Diária e a Orientação e Mobilidade têm relações com
organizações cognitivas próprias da primeira infância, estrutura neuro-fisiológica, maneira
como o sujeito constrói a sua representação corporal (FELIPPE; FELIPPE, 1997), tem
também relações com as circunstâncias de vida de cada um. As habilidades cognitivas que a
pessoa traz em si antes de se tornar cega influenciarão muito nas habilidades que ele
desenvolverá, mas não necessariamente determinarão essas habilidades. Existem muitos
exemplos de pessoas que se habilitaram a tarefas com melhor desempenho depois que se
tornaram cegas. Mas não é uma questão somente de desenvolvimento de habilidades, técnicas,
como o uso da bengala longa ou do Braille, mas é uma forma própria – individual - de se
relacionar com o saber. Ainda se atribui à habilidade de pessoas cegas motivações místicas ou
míticas, as habilidades cognitivas são historicamente construídas; o uso dos sentidos
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remanescentes e principalmente da memória é fruto de um exercício constante do sujeito na
relação com o conhecimento na sua vida, construídas a partir de sua vivência e leitura de
mundo.
É preciso saber como os sujeitos se compreendem enquanto pessoas limitadas ou
ausentes do sentido da visão, para poder a partir daí tentar entender como eles estabelecem
significados enquanto “sujeitos ativos de...” (CASTORIADIS, 1982, p.127). A construção de
significados, portanto, é estabelecida sócio-historicamente por sujeitos que se colocam,
sujeitos ativos: que possuem uma forma específica de compreender o seu próprio olhar (um
olhar cego), que na visão de Castoriadis é o olhar e o suporte do olhar, portanto é o cego quem
vai dizer o que é ser cego no acesso à informação. Assim, se formas de construir significado
dependem eminentemente da relação entre sujeitos e Outros sujeitos, então a construção de
significados ocorre na interação dialética entre o tempo, o lugar e o momento, circunstância
do conhecimento. As formas de construir significados dependem eminentemente da relação
entre sujeitos e mediadores da informação que podem ser outros sujeitos ou mesmo
ferramentas como o Braille e a informática, ou quaisquer outros suportes.
Existem maneiras próprias de se relacionar com a informação, seja auditiva, escrita
ou digitalizada e assim percepções de linguagem que estruturam sua forma de conhecimento,
começando a desenvolver e criar formas de construir o pensar. (McGARRY, 1999). Há
também, então, formas subjetivas de construção de significado e para isso construções de
ferramentas de linguagens (BURKE; ORNSTEIN, 1998); no acesso à informação escrita
visual só ocorre por meio de um outro sujeito que fará a leitura para ele, além da informação
adquirida por meio da audição, a informação escrita só será acessível por meio de um método
ou sistema que possibilite sua leitura usando o tato – método Braille.
A recepção da informação, tratando-a como da condição humana e por isso
subjugada aos sentidos humanos, faz-se uma tentativa de entender de que forma são
construídos ou se constroem significados à informação sendo ela recepcionada por sujeitos
ausentes de um dos sentidos: a visão. Obviamente existe uma gama imensa de níveis de
deficiência visual, desde sujeitos com problemas oculares cujo uso de lentes corretivas
(óculos) os tornam não portadores de Necessidades Educativas Especiais (BRASIL, 1995), até
pessoas com total incapacidade de uso da visão para adquirir informação através deste
sentido. Abordar-se-á questões da informação não visual, mas em dois aspectos básicos: a
informação auditiva (sistemas de áudio) e a informação tátil através do sistema Braille. A
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partir desta perspectiva aborda-se, evidente, a informação que é necessariamente estruturada
(McGARRY, 1999), subjetiva, simbólica (CASTORIADIS, 1982; BURNHAM, 1998), mas
objetivada (POLANIY, 1974), vivenciada (MATURANA; VARELA, 2001), e com isso
revela-se na sua condição eminentemente humana. Informação como veículo do
conhecimento é uma ação do próprio conhecer, que segundo Robredo (2003), é uma ação
individual, e assim a produção de significado como processo da ação do conhecer é mediada
pelos sentidos, pessoas cegas estarão sujeitas às suas habilidades cognitivas no acesso à
informação, “que independente da tecnologia” (ROBREDO, 2003, p.12), e conseqüentemente
na ação do conhecer.
O cidadão-cego terá acesso à informação auditiva na proporção que não possua
limitações no seu aparelho auricular. Seja a informação gravada em sistema de áudio
analógico (fitas K7) ou sistema digital, a audição é sentido primordial na recepção. É objetivo
deste trabalho entender o que acontece com o sujeito na sua relação com uma ferramenta
depois do domínio de outra, já que significa subjetivamente a construção do seu próprio saber
por meio de informações arquivadas nos diversos suportes. Independente do suporte que
esteja a informação, esta será a mesma, o suporte só diferenciará a forma que toma a
informação, e também o suporte determinará qual será o canal de recepção (ROBREDO,
2003). Como estes cidadãos-cegos significam o acesso à informação por meio da informática,
das tecnologias de informação e comunicação, possuem eles sua forma própria de significar o
uso deste suporte no acesso à informação, construções imagéticas individuais, maneiras de ler
tatilmente e ler auditivamente: leituras subjetivas nos mais diferentes cotidianos.
O sistema Braille é a impressão gráfica pela qual uma pessoa cega lê e escreve.
Criado em 1825 pelo professor e músico francês Louis Braille, constitui-se na combinação de
seis pontos em alto relevo combinados em duas linhas paralelas com três pontos cada linha,
perfazendo um total de sessenta e quatro combinações incluindo a cela vazia. Cela é o espaço
onde se combinam os pontos que designam as letras do alfabeto, sinais de pontuação,
números, notações científicas (química, física e matemática) e notações musicais. Nos seus
processos de significações os sujeitos são sempre novos intérpretes do mundo que os circunda
e com isso estão sempre imprimindo significado aos signos, por isso o mesmo signo Braille
pode ter diferentes significados a depender do que seja instituído ao signo, e também quem
será o leitor dessa escrita. (CASTORIADIS, 1982) Portanto a leitura Braille é dinâmica (no
sentido de imprimir ao leitor um caráter próprio enquanto leitor, a dinâmica de significações
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está na sua compreensão enquanto cidadão-cego e como ele se compreende na sociedade do
conhecimento).
A pessoa de Louis Braille é sempre uma referência de cidadão-cego, a sua educação
aconteceu em um momento histórico conturbado, cujo método educativo ainda era baseado na
reprodução e memorização, com todas as idiossincrasias próprias da educação na primeira
metade do século XIX. Caso o estudante cego conseguisse memorizar longos textos era
premiado com comida e socialização, mas caso o sujeito não correspondesse às maneiras da
educação era punido com o isolamento e alimentado apenas com pão e água. São narradas
verdadeiras atrocidades na história da educação para deficientes visuais, mas estes fatores não
podem ser nem esquecidos, nem super enfatizados, mas, sobretudo, refletidos, e com isso
pôde-se transformar a história da educação. Braille foi antes de tudo um cidadão que com o
seu modo de encarar as limitações da pessoa cega, modificou as maneiras do cidadão de
compreender a sua imagem corporal realizando acesso à informação por meio de um dos
sentidos – o tato – e com isso promoveu profundas reflexões que dizem respeito ao uso das
mãos: revisão de toda uma relação histórica do cego com a sua psicomotricidade, com a sua
coordenação motora, do uso do corpo como antes não se pensava possível para o cego –
especificamente no uso da ponta dos dedos para a realização de acesso à informação, assim
surgiu o desenvolvimento do sistema e método Braille, não foi uma invenção particular e
genial de um único sujeito, mas um desenvolvimento de técnicas em uma circunstância
histórica propícia à sua realização. E assim também surge um processo específico de
desenvolvimento dos sistemas de alfabetização no sistema Braille.
Cidadãos que nas suas construções de significados no contato com informações em
diversos tipos de suportes também utilizam a tecnologia, o computador nas suas muitas
possibilidades de acesso às informações, de comunicação com pessoas no mundo
contemporâneo globalizado por meio da internet, e utilizando as ferramentas de hardware e
software para realizar tarefas de trabalho, lazer, informação e tudo mais que eles desejarem
fazer e o que a tecnologia permitir.
Ainda há dificuldades no acesso à informação e também na compreensão de mundo,
pois os meios de comunicação priorizam e apelam para o gráfico, o visual, principalmente a
televisão. Esse avanço tecnológico tem possibilitado o acesso à informação não visual. Não é
uma questão de fazer televisão ou um filme para cegos, já que ambas as linguagens de
comunicação ocorrem especificamente a partir de uma perspectiva visual, mas possibilitar que
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os sujeitos cegos tenham acesso à informação não visual por meio de suportes escritos em
Braille assim como de livros falados e arquivos digitais que a máquina possa ler para os
sujeitos. Os telefones celulares já possuem programas que transmitem a informação por áudio,
existem os meios tecnológicos, existem as possibilidades de acesso à informação. Mas
existem alguns fatores que impossibilitam.
Hoje toda essa tecnologia existe também só que em formato digital. O relógio, o
telefone, o Braille – impressora Braille. A tecnologia digital engloba o todo da tecnologia para
o deficiente. Em todas as tecnologias, o dígito permite o seu acesso. Mas como o cidadãocego está vivendo toda esta tecnologia em sua vida enquanto usuário? Estará ele sendo
formado, conduzido, estruturado para que saiba usar, manipular, ou será que ele está sendo
arrebatado pelo movimento da sociedade no uso deste tipo de ferramenta? Assim como o
surgimento de ferramentas, suportes de informação imprimem um caráter próprio de
significações em seu momento histórico, o conhecimento tem se mostrado cada vez mais
cíclico: diante de cada ferramenta uma organização específica, um conhecimento que
estrutura e é estruturado pela tecnologia.
O ideal acadêmico moderno poderia ser visto como a rotinização dessas
aspirações dos séculos XVII e XVIII. A inovação intelectual, mais que a
transmissão da tradição, é considerada uma das principais funções das
instituições de educação superior e, assim, espera-se que os candidatos aos
graus mais elevados façam “contribuições ao conhecimento.” (BURKE,
2003, p.105)
As mudanças históricas são muito rápidas. Não faz mais de 20 anos que surgiu o
DosVox, os primeiros sintetizadores de vozes, transformações por demais inovadoras na vida
do cidadão-cego. A possibilidade de estar de frente a uma máquina e o computador estar
lendo. Numa reflexão mais aprofundada, numa perspectiva de analisar as transformações da
sociedade contemporânea diante da realidade do cego hoje, apesar de todo o avanço no
processo de evolução de tecnologias de informação, o acesso a ela faz parte de uma pequena
minoria com acesso ao computador com sintetizador de voz. É o Braille falado, tecnologia de
ponta no que se refere ao registro e recuperação da informação, todavia muitos nem tiveram a
oportunidade de conhecer o método Braille, há cegos que nem sabem que o Braille existe.
60
A importância da educação Braille para o deficiente é algo insubstituível. A leitura
Braille vai justamente explorar um dos sentidos mais importantes para a construção do saber;
assim como a visão é importante para o sujeito que enxerga, o tato tem a mesma importância
para o acesso à leitura escrita. A habilidade tátil é para o cidadão-cego imprescindível como
resultado do desenvolvimento da sua formação enquanto leitor. A formação para o uso do
Braille vai representar, antes de tudo, um resgate da própria auto-estima do cidadão; vai
começar a explorar o mundo tendo contato com a escrita e a leitura, a possibilidade da
independência no que diz respeito à grafia das palavras.
O Braille ainda nem teve a sua expansão dentro do universo da cegueira, sobretudo
nos países de língua comum, no Brasil ainda nem foi largamente difundido, ainda não é
utilizado por grande parte da população cega e já é possível perceber o fenômeno da
desbrailização. Este é um processo que está verdadeiramente acontecendo, sobretudo este
fenômeno se percebe naqueles sujeitos que possuem computador: a opção da leitura por este
suporte, já que promove um outro tipo de velocidade, principalmente por pessoas que
necessitam realizar um grande volume de leitura, muitas vezes exigido pelas escolas e
faculdades. Todavia, muitos dos textos exigidos não são acessíveis em Braille, mas se
estiverem em formato digital é acessível à informação. A leitura Braille, conforme se pode
perceber pela própria forma como ela é construída, ponto a ponto, letra a letra, acaba tendo
uma velocidade menor no acesso à informação do que a leitura auditiva, é cansativa também
para os principiantes, pois vai exigir um outro tipo de memória operacional, no que diz
respeito às habilidades cognitivas: memória tátil. Para que o indivíduo consiga ler Braille com
desenvoltura, se o próprio cego não tiver contato com o Braille constantemente, ele perde essa
habilidade. O Braille sempre exige do cidadão-cego uma reflexão sobre a sua importância,
principalmente sobre o ponto de vista histórico de independência no acesso à informação.
É preciso que os próprios deficientes visuais se conscientizem da importância da
leitura Braille como parte de sua formação constante, mas isso tem a ver com uma questão
interna, com algo próprio da natureza de cada ser que determinará as relações com os diversos
suportes.
Existe uma corrente que acha possível exclusivamente o uso do computador - já que
este comporta em si, enquanto ferramenta multimídia, todas as outras técnicas de registro da
informação - dentro do processo educacional da pessoa cega, mas não se pode destacar a
61
importância das tecnologias multimídias sem compreender a sua complexidade e as outras
questões de ordem econômica, cultural e social que envolvem o seu acesso.
É possível perceber que muitas pessoas que enxergam prefiram a leitura impressa no
papel a de uma tela de computador, pois a leitura visual numa tela exige do olho uma forma
diferente de contato com a informação do que uma folha de papel em branco com as letras em
negro. Olha-se para o livro com a parte central inferior do olho e a luz está incidindo sobre o
objeto, o olho percebe o reflexo da luz sobre o papel. No computador olha-se com a parte
central superior e a luz vem do objeto em direção ao olho. Torna muitas vezes a leitura no
computador muito mais cansativa do que no livro, com o cidadão-cego observa-se o inverso.
Com a leitura tátil é exigido um tipo de concentração, pois lendo letra por letra vai precisar
estar atento, assim o primeiro contato com o Braille é lento, tornando a leitura também
cansativa, pois só a prática vai permitir poder ler um texto mais longo em menos tempo.
Existem também as outras linguagens em Braille: como a matemática, química, física,
biologia; para cada língua estrangeira existe o seu próprio sistema de significação; Braille da
informática e o sistema musical – musicografia Braille. Diante de toda essa complexidade do
sistema, assim como das múltiplas significações que cada uma das 64 combinações de signos
gráficos podem vir a significar, é necessário um uso constante para não se esquecer dos
sentidos de cada um deles.
Sendo a escrita um dos principais domínios da evolução humana, que impactos,
então, ocorrem na vida dos sujeitos que se distanciam do suporte escrito e preferem os
auditivos? Isto está tão próximo historicamente do que está acontecendo que talvez seja uma
pretensão querer analisar um fenômeno que somente o tempo dirá qual será o destino da
leitura Braille em relação à leitura auditiva do computador. Mas se pode observar que assim
como a cultura digital, com a sua linguagem própria desse tipo de ferramenta: web blogs, emails e salas de bate-papo estão imprimindo um determinado tipo de escrita e leitura, assim
não seria diferente com o deficiente visual. Eles estão também sofrendo mudanças na sua
relação com a escrita Braille, a partir de um outro suporte de acesso à informação, e assim
com a leitura auditiva dos textos e livros, distante do seu aspecto ortográfico da escrita, os
cidadãos-cegos estão cada vez menos habilitados ao domínio gráfico das significações do
Braille.
A recepção da informação do cidadão-cego, no entanto, é mais complexa do que
apenas a disponibilização das tecnologias. Desta forma, o respeito à individualidade dos
62
sujeitos e aos seus processos de significação e aprendizagem são essenciais para compreender
que a tecnologia foi e ainda será ferramenta de poder e controle político e econômico. A
maneira como se estabelece o acesso a ela corrobora com a intencionalidade política nas
questões de divisão de trabalho e acesso à informação, ou seja, a educação mediada pela
tecnologia estabelece novas fronteiras sociais no acesso à informação enquanto dinâmica das
relações de poder instituídas socialmente. (CASTORIADIS, 1982; BURKE; ORNSTEIN,
1998)
Desde o nascimento do sistema Braille até os dias atuais, pode-se afirmar que
ocorreu em aproximados 150 anos uma catapulta no que diz respeito ao registro, acesso e
recuperação da informação para cidadãos-cegos. Os caminhos da tecnologia imprimem cada
vez mais formas rápidas de informação, informações coloridas, com ícones que aparecem e
desaparecem da tela: seja ela de televisão ou computador – o momento histórico revela, a
partir do paradigma da informação na sociedade do conhecimento, que as informações estão
se tornando cada vez mais visuais, os apelos visuais das propagandas, e os milhões gastos em
marketing e pesquisa de cores e formas para chamar a atenção exatamente pelo sentido mais
apelativo: a visão. Assim é possível com uma única olhadela num outdoor, ou em um site da
internet comportar com o sentido um vastíssimo número de informações – todas estruturadas
e organizadas simultaneamente pelo cérebro por meio da visão: mas o que fica da cascata de
informações que os sujeitos tem tido acesso diariamente? Todo este apelo visual não tem
significado para os sujeitos que não podem perceber por este sentido, mas paradoxalmente
sofrem influências do mundo visual, pois são sujeitos sociais e acabam tendo acesso a estas
informações por meio de pessoas videntes que estão ao seu redor. Construindo significados
principalmente a partir do tipo de relação social que vivenciam, e têm compreensões do
mundo visual, construção de conceitos e opiniões próprias sobre forma, cor, volume e
comprimento, também conceitos mais complexos como o de significações de gestos visuais e
beleza: e assim poder realizar um gesto em um diálogo com um vidente querendo expressar
uma determinada informação, e, fazer escolhas nos seus cotidianos sobre que roupa usar para
que ocasiões e qual corte de cabelo escolher.
Recursos para deficientes visuais existem de todos os tipos para a preferência do
cidadão, mas a disponibilidade e o acesso é uma outra questão. Afirma-se que existe muita
tecnologia capaz de realizar muitas coisas, desde o Braille falado, a linha Braille, a impressora
Braille, e os softwares de leituras altamente avançados, todas tecnologias de ponta, caras, às
63
quais poucos cegos têm acesso e no cotidiano dos cidadãos o seu custo tornam-nas acessíveis
apenas às instituições. E ainda no caso do cidadão com um texto impresso em negro for em
alguma das instituições que transfere o material para o Braille, essa transferência não é
imediata, demanda algum tempo; enquanto se o material estiver digitalizado o cidadão tem
acesso auditivamente no mesmo instante, interferindo radicalmente na velocidade de
recuperação da informação, assim como na escolha do suporte que utilizará para realizar a sua
leitura.
2.3 DIFERENTES SEMÂNTICAS SOCIAIS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE –
RELAÇÃO DE PERTENCIMENTO: INCLUSÃO DIGITAL, INCLUSÃO SOCIAL.
2
Cego em Haiderabade
O cego vai sendo levado pelo menino.
O cego sorri, de olhos fechados, dentes nítidos:
e a mulher que passa, de seda vermelha
e adereço de prata.
Como se visse os bois de chifres dourados
Que atravessam a rua, flacidamente.
O cego caminha para onde o menino leva.
Há o Tchar Minar, a mesquita.
A cidade é igual às moedas de prata
que passam de mão em mão.
A mão do cego vai na mão do menino.
Suas barbas são do vento.
Seus olhos são do sonho.
Talvez esteja vendo o cavalo do Profeta
no meio do paraíso.
(Valerão nossos olhos lúcidos
essa miragem de secreta delícia?)
Cecília Meireles
Este cego em Haiderabade passa pela mesma dificuldade que qualquer cego –
locomoção - independente de ser rico ou pobre; mas similarmente vivendo sua circunstância
social e sendo “guiado” pelo menino que lhe leva pela mão...
2
Este poema faz parte de um conjunto de poemas de Cecília Meireles que foram escritos na Índia, Haiderabade é
uma cidade.
64
Essa descrição poética de um cego promove uma observação sobre a condição que
vive um cidadão-cego e, reflete sobre a limitação deste tipo de sujeito, mas, sobretudo, que
sujeitos em diferentes lugares, em diferentes condições sociais, constroem sua identidade
enquanto cidadão participante das relações de pertencimento social.
A identidade possibilita ao sujeito imprimir sua marca no mundo ao mesmo
tempo em que concede ao mundo o direito de torná-lo como seu pertence.
Todas as pessoas estão no mundo, mas nem sempre são no mundo. Isto
porque estar no mundo é um processo natural, basta nascer, porém ser no
mundo exige conquista, transcender a condição natural do existir. Daí, não
ser a identidade um simples dado biológico, mas uma construção históricocultural complexa, implicando as várias esferas que nos constituem.
(BARRETO, 2006, p.84)
Cidadãos-cegos passam a ser no mundo no momento em que conseguem construir
identificações que “transcendem a condição natural de existir”, são no mundo enquanto
sujeitos ativos (CASTORIADIS, 1982) Então, ocorrem com estes sujeitos, com respeito às
suas individualidades, repercussões em suas vidas com a inserção de tecnologias digitais na
sua relação de pertencimento nesta sociedade.
Há duzentos anos atrás pareceria impossível pensar em registros auditivos como se
tem acesso hoje, e também a ferramentas, sobretudo a impressora Braille, que é capaz de
imprimir um número de cópias em um determinado tempo que promove transformações no
acesso à informação comparável ao nascimento da imprensa por Gutenberg. Quando Louis
Braille desenvolveu o sistema de leitura e escrita, ocorreram expressivas transformações na
vida de muitas pessoas deficientes visuais. As tecnologias mudam porque mudam as pessoas e
o mundo muda. Assim sendo quando se fala de sociedade do conhecimento, apesar de que
todas as sociedades humanas são formadas socialmente pelas relações de conhecimento
intermediadas pela informação e comunicação, fala-se de um discurso contemporâneo ao final
do século XX e início do século XXI abordado por alguns autores e representado na sua
forma mais significativa: ideológica. E a ideologia é a base da estrutura econômica e política.
A expressão ‘economia baseada no conhecimento’, recentemente cunhada,
expande ainda mais os horizontes da expressão ‘sociedade da informação’
que, vamos esperar, venha num próximo futuro a ser definitivamente
65
substituída, no conceito e na realidade, para todos, pela expressão ‘sociedade
do conhecimento’. (ROBREDO, 2003, p.24).
Desta forma os cidadãos-cegos sofrem as demandas desta sociedade, exatamente
aqueles que sofrem os impactos mais diretos da inclusão de tecnologias de informação e
comunicação – inclusão digital - nos seus espaços cotidianos de aprendizagem.
Entendendo que a inclusão digital promove os sujeitos, tornando-os construtores de
sua própria identidade, entende-se inclusão digital na perspectiva educacional que vai incidir
sobre base econômica, política, social e cultural de um país.
Por identidade, entendo o processo pelo qual um ator social se reconhece e
constrói significado principalmente com base em determinado atributo
cultural ou conjunto de atributos, a ponto de excluir uma referência mais
ampla a outras estruturas sociais. (CASTELLS, 1999, p.39).
No Brasil, país onde a exclusão social tem enormes proporções, a formação de
indivíduos invisuais se faz necessária para a sua construção de identidade. Até então, entendese que a tecnologia tem sido uma forma de exclusão educativa. (HERF, 1993) O acesso à
tecnologia pode ser, no entanto, um elemento de inclusão social ou de exclusão social, a
depender de como cada indivíduo significa o seu processo de formação e como os governos e
lideranças lidam com a questão dos cidadãos usuários das novas tecnologias (CASTELLS,
1999).
Falar de sociedade do conhecimento é entrar num universo de transformações antes
de tudo técnico-científicas que modificaram as relações que os indivíduos têm com o saber,
que segundo Bell citado por Webster (2002) modifica as relações de trabalho e produção.
Webster (2002) aborda uma análise desta sociedade como fundamentada nos avanços
tecnológicos de comunicação e informação, mudanças nas relações de trabalho, informação
como valor econômico e gerando expansões de símbolos e signos. Discurso este que
corrobora com Kumar (1997, p. 24) quando diz que: “A sociedade de informação, segundo
seus teóricos, gera mudanças no nível mais fundamental da sociedade. Inicia um novo modo
de produção.” A sociedade da informação modificou a força de trabalho produtiva à medida
que foram surgindo avanços tecnológicos que permitem a substituição de força de trabalho.
66
Todavia, essa mudança social ocorreu de forma que a informação não é somente
fundamentada nas novas tecnologias de informação e comunicação, mas sim na medida em
que transforma as relações sociais e modifica ideologicamente esta sociedade através de
paradigmas de experiências e educação (WEBSTER, 2002). Kumar citando também Bell diz:
“A teoria do valor do trabalho, da maneira formulada por uma sucessão de pensadores
clássicos, de Locke e Smith a Ricardo e Marx, é obrigada a ceder lugar a uma “teoria do valor
do conhecimento”. Agora, “o conhecimento, e não o trabalho, é a origem do valor” (BELL,
1980a, p.506 apud KUMAR, 1997, p.24). Sendo a informação a base ideológica o que
acontecem com os processos educativos que são a base do acesso à informação? E de que
forma os cidadãos-cegos-trabalhadores sentem na sua própria pele as mudanças de caráter
educativo influenciadas pela inserção nos espaços de trabalho tecnologias de informação e
comunicação? Nasce assim a demanda de formação em instituições para cegos de tecnologias
digitais de informação e comunicação. A crença numa sociedade global, somente pelo fato de
acesso à informação é uma ilusão, existem, ainda, aspectos ligados à leitura de mundo e
compreensão de linguagem, além obviamente das barreiras culturais.
Modificar as relações ideológicas e a maneira como o cidadão-cego é formado, gera,
assim, mudanças no espírito individual destas pessoas diante dos aspectos de construção da
sua identidade social e dos paradigmas que ser “deficiente visual” numa sociedade que
estigmatiza os portadores de necessidades especiais gera (GOFFMAN, 1988). Para este autor
o sujeito estigmatizado é aquele que não participa da relação de pertencimento a um grupo
devido à sua condição social individual. Assim, a inserção de tecnologias digitais de
informação e comunicação no cotidiano destes sujeitos provavelmente modificará também a
relação destes com uma sociedade que também se modifica aos estigmas. Mudando-se os
estigmas, modificam-se os discursos individuais e sociais de sujeitos. Essa dialética entre a
ideologia e os modos de produção social se estrutura e é estruturada pelo discurso. “O ponto
de articulação dos processos ideológicos e fenômenos lingüísticos é, portanto, o discurso. A
linguagem enquanto discurso e, portanto, o texto enquanto discurso suportado na escrita,
constitui um modo de produção social.” (BARRETO, 2006, p.32)
Relatou-se, até então, as questões ligadas aos deficientes visuais diante da sua
realidade enquanto sujeito social, da construção de sua identidade a partir de acesso ao
conhecimento mediado por tecnologias digitais de informação e comunicação. Na
organização social os processos de associações de pessoas que possuem um mesmo estigma
67
ocorrem como uma forma de autoproteção (GOFFMANN, 1988, p.30), à medida que ocorrem
mudanças sociais ocorrem também mudanças individuais, assim como as mudanças sociais
são também frutos das mudanças individuais. A quebra do estigma em nada se modifica com
o acesso à informação, esta pode ser uma forma de tornar familiar o diferente, mas preserva a
indiferença. Assim, como cidadãos-cegos se colocam frente a esta sociedade mediada por
uma tecnologia que permite esconder certas deficiências físicas através de uma tela de
computador? O sujeito consegue ser o seu avatar e tornar-se alguém sem qualquer anomalia
física, criando, portanto, mais um paradigma da sociedade do conhecimento.
Tomando-se como base para o sujeito incluído digital aqueles que estão acessando
informação através das tecnologias digitais de informação e comunicação – os incluídos na
sociedade do conhecimento, tenta-se então compreender o conceito de inclusão digital e por
conseguinte o de inclusão social.
Segundo o dicionário on line Priberam, inclusão vem do Latim “Inclusione, s. f.,
acto ou efeito de incluir”, e, incluir é “v. tr., encerrar; inserir, meter dentro; abranger, conter
em si; compreender” (FERREIRA, 1984). Portanto a inclusão supra referida designa-se pela
inserção num determinado universo dos cidadãos invisuais. Estar dentro de, não somente
fazer parte ou estar inserido, mas “envolver, implicar” (FERREIRA, 1984) Dessa forma, o
estar inserido no digital pode ser genericamente: “relativo aos dedos; que tem analogia com
os dedos”; ou, no sentido da informática: “relacionado com dígitos; relativo aos dados
codificados ou convertidos em valores numéricos, utilizando o sistema binário (os dígitos 0 e
1, associados a impulsos eléctricos)”. Tomando como base os significados diferenciados da
palavra digital: quando nos referimos ao primeiro significado, inclusão digital significa estar
apto, implicado e contendo em si habilidades com os dedos, manuseio das mãos, digitus: “de
membro manus.” Porém, quando referido ao termo no seu sentido de informática: inclusão
digital designa-se pelo acesso aos dígitos, que codificados e movidos por impulsos elétricos
gera informações. Incluí-los (indivíduos invisuais e portadores de visão sub-normal) no
mundo digital significa, portanto, permitir que estes indivíduos possam fazer parte dos que
possuem habilidades no uso da tecnologia para acessar informações através destas
ferramentas.
Mas acessar informações é diferente da aquisição de linguagem e construção de
conhecimento, estes são legitimados nos sujeitos usuários da linguagem e da informação. Para
68
ter acesso ao registro da informação - sendo ele tátil ou auditivo - é necessário que os sujeitos
tenham a habilidade e o conhecimento para realizar a decodificação desta informação.
A informática, como o Braille, entrou na vida das pessoas cegas como um
vertiginoso meio de mudança social, criando um horizonte de informação, educação, cultura,
mercado de trabalho e comunicação. Se a informática modifica o cotidiano destes indivíduos
e o Braille também: é preciso entender qual a abrangência no uso das tecnologias de
informação e comunicação para o processo de leitura: podendo ser auditiva ou tátil. “[...]
aprender a ler e a escrever é construir um complexo sistema de representação simbólica: as
letras representam sons” (SILVA, 1981, p.vii). Salienta-se que os indivíduos cegos precisam
ser formados para ter acesso à tecnologia (FREITAS NETO, 2004), por isso entende-se que é
preciso compreender a sua formação a partir de suas próprias perspectivas.
Sendo portador de deficiência visual congênita, gostaria de passar um pouco
da minha experiência como usuário da informática, o que é possível através
de Softwares específicos desenvolvidos para facilitar a interação do
deficiente visual com o computador. Estes mesmos Softwares têm sido
agentes proporcionadores da integração dos deficientes numa sociedade que
tende a ser ainda bastante excludente. Todavia, existem pessoas que
compõem esta mesma sociedade que se preocupam e acreditam no
crescimento de todos, inclusive com aqueles que necessitam de atendimentos
especiais. (SANTA ROSA, 2001, p.195).
No texto aparece o termo excludente, palavra que tem relação de oposição com o
termo inclusão. Exclusão: “pôr fora de; exceptuar; ser incompatível com; não admitir; omitir;
eliminar.”; excludo: “non admitto, prohibeo“. O significado original da palavra não sofreu
mudança de significação durante a história. Estar excluído continua excluído (GOFFMANN,
1988). No contraste de significações entre a exclusão e a inclusão, Abbagnano (1982) oferece
significado, do ponto de vista filosófico que permite reflexões sobre as relações de
pertencimento, assim, inclusão é:
Na lógica das classes, a relação de Inclusão entre duas classes α e β (símbolo
“α ⊃ β”) subsiste quando todos os elementos da classe α pertencem também
à classe β, mas não necessariamente o inverso (a Inclusão é reflexiva e
transitiva, mas não simétrica). À relação de Inclusão corresponde uma
relação de implicação entre os conceitos-classe correspondentes. Por ex., a
classe homem está incluída na classe mortal porque todos os homens são
mortais. (ABBAGNANO, 1982, p.522)
69
Tomando esse texto como base e considerando a classe incluídos digitais como
contida na classe incluídos sociais e considerando ainda, a classe cegos como contida na
classe dos excluídos sociais, busca-se, neste trabalho, fundamentar possibilidades de analisar
a situação da classe cegos em relação à inclusão digital, considerando o compromisso de
algumas instituições de promover oportunidades para acesso às tecnologias digitais a
indivíduos da classe cegos. Desta forma, estariam os cegos incluídos digitais contidos na
classe incluídos sociais? Seria a inclusão digital uma possibilidade de minimizar a exclusão
social? Estes questionamentos se fazem presentes justamente para tentar entender, a partir dos
processos de formação que sujeitos cegos recebem em espaços institucionais, como eles
significam a sua inclusão digital, e por extensão, inclusão social.
A inclusão digital pode promover nos sujeitos elementos na construção de sua
identidade que, está intimamente relacionada com a maneira na qual o próprio indivíduo
significa a sua relação de pertencimento, o acesso à tecnologia pode ser um elemento de
inclusão social ou exclusão social, a depender de como cada indivíduo significa o seu
processo de formação e como os governos e empresários lidam diante dos cidadãos usuários
desta mesma tecnologia (CASTELLS, 1999).
A recepção da informação do cidadão-cego é mais complexa do que apenas a
disponibilização da informação auditiva ou da informação não-visual. Existem as
idiossincrasias próprias de ser cego ou de tornar-se cego. Desta forma, o respeito à
individualidade dos sujeitos e os seus processos de significação e aprendizagem são essenciais
para compreender que a tecnologia foi e ainda é ferramenta de poder e controle político e
econômico, a maneira como se estabelece o acesso a ela corrobora com a intencionalidade
política nas questões de divisão de trabalho e acesso à informação, ou seja, a educação
mediada pela tecnologia estabelece novas fronteiras sociais no acesso à informação na relação
de pertencimento social. (HERF, 1993; BURKE; ORNSTEIN, 1998)
A raiz do acesso à informação está na maneira como a sociedade está estruturada,
cada cultura possui o seu processo próprio de produção de conhecimento. Há um impacto na
vida dos cegos, sobretudo os que tem poder aquisitivo, pois muito da questão do acesso à
informação por meio de tecnologias caras está no seu âmbito econômico, estrutura material,
financeira que irá definir as adaptações ao mundo do trabalho e assim também os processos de
70
inclusão. Não há como negar que a expansão das tecnologias de informação estão redefinindo
as relações de poder econômico e da relação de pertencimento - estar incluído na sociedade do
conhecimento.
Existe lugar para a pessoa cega nesta sociedade, ela não está excluída, mas a
referência deste lugar já é pré-estabelecida, porque ao se pensar sociedade, indo nas raízes que
a constituem, adentra-se na concepção de projeto da sociedade moderna. Hoje existem
inúmeras leis em vários países do mundo que protegem a pessoa cega, que lhe dão suporte,
mas o seu lugar já está reservado. O verdadeiro lugar de cada cidadão-cego, no que diz
respeito às conquistas pessoais de cada cidadão, não é conseguido nem com leis nem com
decretos.
A construção da sociedade do conhecimento, enquanto sociedade de consumo da
informação, está alicerçada nos aspectos mais agudos das diferentes semânticas sociais.
Nestas semânticas entre o cego rico e o cego pobre faz-se uma enorme diferença no que diz
respeito ao consumo e acesso das diversas tecnologias de informação. Algumas são muito
caras, mas é o que a base material – econômica - pode proporcionar. O cego rico ao querer
acessar informação por quaisquer tecnologias, a compra: sua reglete pra escrever em Braille,
uma máquina Perkings, um Braille falado, e um computador com impressora Braille.
O cego pobre, que não tem acesso, precisa do apoio institucional para realização de
uma impressão Braille ou utilização de tecnologia multimídia para acessar textos
digitalizados. Mas o apoio institucional para promoção dos serviços é permeado por uma série
de fatores: disponibilidade de funcionários, de material, fora o tempo médio de espera para
recebimento do material solicitado. A instituição pública também vai fornecer a formação
para a utilização dos diversos recursos de informação.
A LDB (BRASIL, 1996), no Art.58, define a educação especial como modalidade de
ensino oferecida preferencialmente pela rede regular de ensino e, no Art.59, expressa sobre os
recursos a serem disponibilizados para que os PNE possam ter acesso à educação. A lei é um
documento que aponta alguns encaminhamentos para a Educação Especial, ela não define
responsabilidades, não define especificamente como estará sendo estruturada a Educação
Especial. Os documentos subseqüentes continuaram tendo este mesmo direcionamento. As
estratégias de adaptações curriculares que foram publicadas à parte dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, apesar de fazerem parte da mesma proposta, revelam, assim, o caráter
71
de apêndice que a Educação Especial é tratada em relação à educação nacional regular.
Diretrizes Nacionais da Educação Especial na Educação Básica que junto com a LDB,
Adaptações Curriculares (CARDOSO, 1997) e o Decreto 3298 são os documentos que vão
compor e estruturar esta modalidade de educação no Brasil.
A política mundial de inclusão, no que diz respeito ao diferente, tem ocorrido
exatamente pelo contato intercultural que a globalização impõe. Em um mundo pensado para
refletir sobre o diferente, tem se tornado cada vez mais sectário e tribalizado: as pessoas se
associam não com os diferentes, mas com os quais houve algum tipo de identificação – lógica
identitária do grupo social ao qual pertença. (CASTORIADIS, 1982; GOFFMANN, 1988) O
mundo está passando exatamente pelo paradigma da diversidade, ainda incapaz de realizá-la,
mas caminhando para concretizar-se nesta diversidade. A tecnologia está também a serviço de
um projeto social, político-econômico hegemônico em que está se configurando: onde quem
não consome a informação por um determinado tipo de suporte é considerado como excluído
de uma forma de estruturação social denominada de sociedade da informação, ou para outros
autores de sociedade do conhecimento. E, para o acesso à tecnologia, a possibilidade de ter
dinheiro para adquiri-la é significativa. As formações – as escolas e instituições de ensino
acabam refletindo também a mesma lógica social, ou seja, acabam sendo reproduções de uma
lógica que se revela na verdadeira diferença das semânticas sociais, no que diz respeito ao
acesso à informação. Se uma sociedade é transformada tão drasticamente por uma tecnologia,
como, por exemplo, com a imprensa; elas também refletem a lógica instituída, e o conceito de
se ser um incluído afirma a lógica identitária própria da sociedade estudada. Assim é possível
se cair em algumas ciladas, caso não se faça uma análise mais cuidadosa e crítica: estar
incluído é participar de uma sociedade mercadológica, em que a posse de ganhos permite
conquistar os desejos materiais? Ser um incluído na medida em que se usufruem as benesses
que o dinheiro pode proporcionar? Será que é possível pensar em inclusão em uma sociedade
que se estrutura pela lógica da exclusão? Onde o cego rico não se mistura com o cego pobre?
Enfim, deixar de ser um cego pobre e sonhar em ser um cego rico?
Na realidade, todo ser humano está incluído, até mesmo aqueles cidadãos que vivem
em situações extremas, estão incluídos; não existe processo de exclusão pura e simples, pois
até mesmo os cegos que vivem em situação miserável ou injusta, não é uma posição isolada
desses sujeitos, mas, sim, uma condição inerente a uma determinada classe. Como se pode
falar em equidade social, igualdade social se a lógica do mercado é a que estrutura as
72
diferenças de semânticas sociais, assim como da concentração de renda, pela exploração do
trabalho humano, e ainda pelo domínio da burguesia no comando do Estado? A questão é
muito mais séria e complexa do que apenas se tratando de cidadãos-cegos, espalha-se entre as
diversas classes e públicos e se revela como concreta. E, então, se percebe que as questões
sociais que envolvem o cidadão-cego não são, sob nenhuma hipótese, diferentes da questão
que envolve os outros PNE, nem outros tipos de públicos. Assim, a tecnologia tem refletido
esta mesma lógica social instituída pela história moderna. Se a sociedade não melhorar como
um todo ela não vai melhorar para ninguém.
Um empresário tem na sua empresa uma cota dos empregos para a Pessoas
Deficientes, necessário por causa da lei que regulamenta esta cota. Mas por que um
empresário mudaria todo um sistema de acesso à informação dentro de um espaço somente
para adaptar ao deficiente visual se ele pode contratar alguém sem esse custo adicional? Ou
então, é possível verificar que os PNE acabam realizando um determinado tipo de trabalho
nestes empregos exatamente para atender à cota. A lógica da exclusão é muito sutil e revela as
próprias bases do pensar moderno. Dentro desta lógica as pessoas têm necessidade de se sentir
boas, caridosas e precisam acreditar que estão fazendo algo relevante e de bom para o outro
cidadão, e, essas atitudes acabam indo nas aparências que se estabelecem nas relações sociais,
especificamente no que diz respeito ao uso das diversas tecnologias de informação, pois a
lógica instituída enquanto incluídos no uso de tecnologias digitais, penetra e causa mudanças
no âmago das perspectivas sociais dos cidadãos-cegos. Cada cidadão já é incluído dentro da
lógica que dá a cada grupo social o seu lugar.
Por um lado, é possível constatar que as pessoas são excluídas e
marginalizadas por diversos motivos. Quem é muito alto sente na pele as
conseqüências desta diferença, a começar pela dificuldade de pentear o
cabelo nos espelhos ajustados para as alturas medianas. A pessoa obesa é
alvo dos mais variados apelidos. Segue-se uma lista enorme de motivos para
que uma pessoa se sinta excluída: ser índio, ser negro, ser mulher, ser fraco,
estar doente, estar desempregado, estar solteiro, estar divorciado. Há também
condições permanentes ou temporárias que por elas mesmas excluem e
marginalizam: ser dependente de álcool e drogas, ser abandonado, ser pobre,
ser presidiário, ser homossexual, ser velho, ser deficiente... (CORRER, 2003,
p.117)
73
Há dez anos, a LDB (BRASIL, 1996) foi promulgada e se pode observar ainda um
despreparo estrutural para receber alunos com Necessidades Especiais, em sala de aula
comum. (COIMBRA, 2003) A proposta de inclusão tem acontecido paulatinamente, com
todos os seus problemas típicos, ainda se concretiza de forma muito insipiente: tão pouco
vivenciada pelos professores, pelos projetos pedagógicos. Uma análise mais apurada é capaz
de compreender os riscos que se assumem ao se trabalhar com conceitos de inclusão, pois
esse termo tem sido utilizado de maneiras equivocadas, assim como a inclusão tem sido
utilizada com um certo modismo nos meios de comunicação.
Muitos trabalhos têm falado a respeito e sugerido propostas de realização de políticas
de inclusão, mas estas questões são muitas, e formas de conduzir um determinado trabalho
podem não refletir a respeito do que é concreto e real na vida de um cidadão-cego. A
construção de identidade por cidadãos-cegos não pode cair em um idealismo niilista, nem em
um discurso que incorpora sonhos, devaneios ou fantasias em relação à realidade do sujeito,
cuja realidade concreta é absolutamente dura e cheia de melindres. Fica-se sempre no discurso
da inclusão de que: os cegos são capazes, eles podem, mas uma análise coerente afirma que
eles às vezes não podem. Os discursos nem sempre conduzem ao contato de informações
coerentes e corretas diante do poder público e ações que verdadeiramente modifiquem as
situações de manutenção da lógica social excludente. Vê-se o Estado apoiando e subsidiando
ações das organizações não-governamentais que estão ocupando o papel e realizando as
políticas de inclusão que deveriam ser dele: educação, trabalho, saúde, assistência social.
Porque a escola vai melhorar especificamente para a pessoa com deficiência se ela não
melhorar como um todo? Como vai melhorar uma sociedade onde não se tem trabalho para o
deficiente visual e que a atitude do governo ainda tem sido de assistencialismo? Somente o
deficiente é quem é excluído da escola ou dos suportes caros de acesso à informação?
Diante desta lógica de pertencimento na construção de identidade de cidadãos-cegos,
Lima Barreto (1995) promove em uma crônica escrita em 1918 uma profunda reflexão sobre a
condição social de um cidadão-cego pertencente a uma classe de excluídos sociais: mendigos.
A crônica fala a respeito do caso do mendigo-cego que encara a sua mendicância como um
trabalho, e assim consegue economizar uma pequena fortuna para a época, conjeturando
Barreto a respeito da condição que o mendigo vivia sendo capaz de sair de sua condição de
pobre, mas não de mendigo. Movido por uma relação de pertencimento dentro da lógica da
exclusão, se não foi possível sair da sua condição de mendigo, pelo menos deixou de ser um
74
mendigo pobre e passou a ser um rico pela sua própria ação, pela sua atitude, pela sua
habilidade em economizar. Mas os comentários de Barreto (1995) analisam as atitudes
sociais, especificamente da sociedade carioca, a respeito do fato de existir um mendigo que
não seja pobre. E este fato interferiu nas opiniões de algumas pessoas, relatadas pelo autor,
sobre o seu ato de dar esmolas.
Muitas vezes não é que seja o sujeito excluído, mas ele é incluído em uma
determinada lógica, é construído socialmente para ser fixado em um lugar, para fazer parte
deste lugar. É a lógica da instituição social de pertencimento – lógica conjuntista-identitária
(CASTORIADIS, 1982) Por isso parece que políticas de inclusão, enquanto projetos de
mudanças na vida de pessoas com deficiência, não estão na caridade, na solidariedade, no
amor ao próximo; é necessário mudar a lógica do sistema, porque se o indivíduo foi bem
nascido ou mal nascido, ou seja, em estruturas financeiras que dão suporte ao acesso de
informação pelas mais diversas tecnologias, assim como de formação e base intelectual, ele
estará fadado ao sucesso ou insucesso, respectivamente revelam-se todas as problemáticas que
a inclusão digital promove.
Uma coisa é incluir a tecnologia num grupo de sujeitos, outra coisa é incluir sujeitos
em uma tecnologia específica. Se afirmar que a tecnologia hoje promove acesso à informação
como antes não era possível é verdadeiro, mas os sujeitos são incluídos no mundo digital,
porque tiveram, antes de tudo, acesso a uma formação que lhes prepararam para poder ter
acesso às tecnologias, sem essa preparação própria e constante, adaptação ou readaptação, e
reflexão sobre ser cego no mundo, a tecnologia, por si só, não irá promover nenhum tipo de
inclusão.
Se o ser cego não vive esta sua condição de forma positiva, bem construída e bem
estruturada, quando ele for se relacionar com o mundo não vai se entender neste mundo.
Tentar compreender como seres humanos cegos se colocam diante do mundo está na
proporção de tentar entender como estes constroem significados na sua relação com o outro.
Assim cidadãos-cegos não são iguais, e as suas especificidades são muitas e muitas
semânticas: os cidadãos se definem não de acordo exclusivamente com as suas questões
individuais, mas também com outras de ordem social, das classes sociais. Não se podem
deslocar as reflexões da pessoa cega da realidade social à qual ela pertence.
75
3 RESULTADOS DO TRABALHO DE PESQUISA
BRAILLE
Escrevendo o fugidio
O som na luz, sombrio
A sombra do vento na idéia
Espelha sua face de panacéia
A arte, o som resplandece
O fio, a rede se tece
O corpo se prolonga, mudo
A escrita como espada e
A língua como escudo.
Albérico Salgueiro de Freitas Neto
O primeiro passo do trabalho de pesquisa consistiu na definição dos
espaços - na cidade de Salvador, Bahia - que oferecem apoio e formação a
pessoas deficientes visuais. O mapeamento, como referido, limitou-se somente a
espaços de formação ao uso da informática, atendendo aos objetivos propostos.
São eles:
ƒ
ABC – Associação Bahiana de Cegos.
Entidade não governamental, fundada em 1985 por um grupo de portadores de
deficiência visual. Tem como missão, principal, fornecer apoio a esse público e a seus
familiares, trabalhando para a garantia de direitos básicos, assim como de sua cidadania.
Promove cursos, palestras, seminários. Ajuda na qualificação profissional e na inserção social
de cegos no mercado de trabalho.
ƒ
CAP - Centro de Apoio Pedagógico.
Instituição criada pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, no ano de 1999,
promove apoio a portadores de deficiência visual das redes de ensino ou oriundos da
comunidade por meio do seu Núcleo de Apoio Didático Pedagógico. O CAP é resultado da lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro de 1996, que cria esses
espaços como uma forma de centralizar o Apoio Pedagógico a PNE, antes realizado por
professores itinerantes, em salas de recursos especiais. (BRASIL, 1994a, 1994b, 1994c,
1995). A criação dos centros foi fundamental para a expansão do apoio especializado a
76
deficientes visuais, além da criação de uma instituição governamental que fornecesse suporte
pedagógico aos estudantes e atividades de complementação curricular para pessoas em fase de
adaptação profissional.
ƒ
ICB - Instituto de Cegos da Bahia.
Organização não governamental é a mais antiga das instituições para cegos em
Salvador, fundada em 1933 foi a primeira e por muitos anos a única referência para a
educação de cegos no Estado da Bahia. Realiza apoio a crianças e jovens deficientes visuais,
que são o seu principal público. Realiza atividades lúdico-pedagógicas como esportes, cursos
de música e coral e outras formações básicas. Existe uma parceria com a prefeitura que
permite que alguns dos professores sejam oriundos da rede municipal. A parceria promoveu
um suporte ao quadro de professores, já que a instituição se mantém por meio de doações.
Atualmente não funciona mais em regime de internato, mas ainda costuma receber muitas
crianças e jovens cegos oriundos de diferentes cidades da Bahia.
3.1 CAUSAS DA CEGUEIRA.
Essa categoria se faz importante numa pesquisa sobre relação sujeito/informação,
pelo fato de que, neste caso específico, se referir à relação do sujeito com a informação que
tem de si próprio em relação às causas de sua cegueira, é um fenômeno importante para
entender como o sujeito constrói significado conhecendo as suas limitações e possibilidades,
ou seja, inclusive sua própria cegueira. Nesse sentido, faz jus à representação individual dos
sujeitos, a compreensão de cada um sobre si mesmo enquanto sujeito cego.
O subcapítulo Cidadãos-Cegos: Significações Simbólicas em Diferentes Culturas
(2.1) abordou obras que compõem o universo de saberes de diferentes povos e com isso
construiu-se um esboço sobre a representação social do sujeito cego enquanto concepção
simbólica definida pelos mitos e personagens religiosos. Essa representação social é uma via
de mão dupla: o sujeito se constrói enquanto ser social influenciado pelas concepções do
pensamento instituído socialmente sobre o ser cego e se constrói enquanto ser que
efetivamente é cego. Neste momento, os sujeitos não são míticos ou fazem parte do
imaginário de um determinado povo, mas, sim, agentes do mundo. Nos mitos o ser cego é
77
envolto de natureza mágica, fantástica; os sujeitos cegos voltam a enxergar utilizando-se de
magia ou alquimia, ou a ausência da visão possibilita um tipo de leitura de mundo que
somente é possível, pelo fato de eles estarem cegos. Na realidade dos sujeitos da pesquisa, a
fala sobre as causas de suas cegueiras define como cada um se define, enquanto cidadão: sua
auto-aceitação e as condições especiais de que necessitam. Então, quando cada um diz quais
as causas e como se sente ao falar sobre isto, revela quais informações eles têm a respeito de
si mesmos para poder falar sobre a sua própria condição. As respostas, portanto, são as
informações sobre o porquê que cada cidadão pode ser definido como cidadão-cego. Pode-se
observar que os cidadãos absorvem a informação da representação médica, confirmando
assim que a cegueira é antes de tudo uma condição especial: sempre resultado de formação
genética ou congênita, algum acidente, ou enfermidade causada por bactéria ou vírus.
O primeiro cidadão a falar é J, pois foi o único que revelou não se relacionar bem
com a sua condição enquanto deficiente visual.
Às vezes eu não me sinto à vontade em falar sobre o que causou, e também como é que
é estar deficiente. (Cidadão J)
Essa pessoa, apesar de não se “sentir à vontade” para falar, diz que:
Já foram definidos de várias formas, já disseram que foi meningite, já disseram que
foi neurite. Quando foram ver correspondência à tênia solium, a do porco. Já
disseram que foi pombo, fezes de pombo. Agora como foi, eu não sei. Ninguém até
hoje, nenhuma médica... (Cidadão J)
É possível verificar que a falta de informação sobre as causas de sua cegueira, ou
seja, a falta de precisão médica unido ao fato do sujeito ter ficado cego na vida adulta, depois
dos 36 anos, promove uma dificuldade na sua aceitação. Longe de querer definir um padrão
de comportamento quanto à auto-aceitação, mas, sim, definir o fato de que a medicina não foi
capaz de precisar o seu diagnóstico. Assim, o sujeito não teve acesso à informação construída
socialmente: a definição do médico, ou médica; sabe apenas o que é estar deficiente visual e o
que isso significa, sabe o quanto ainda possui de resíduo visual e o que é e não é capaz de
realizar.
78
O cidadão B fala de como a informação, sobre o ponto de vista de fundamentar a
auto-aceitação, é capaz de fazê-lo compreender a sua limitação.
Me sinto, porque através da informação que eu vim tendo com o passar do tempo, eu
vim aprender diversas coisas. A cegueira não foi suficiente para bloquear as minhas
habilidades, tanto motora quanto... [...] Com certeza uma pessoa que enxerga, ela
pode fazer quase o mesmo que a pessoa com deficiência visual, também.(Cidadão B)
A medicina também não foi capaz de definir a sua cegueira, ainda não existe
tecnologia capaz de realizar os exames necessários para “descobrir qual era realmente o
problema”.
São ocultas, os médicos não conseguiram descobrir, até porque é um problema muito
interno da minha visão. Na verdade a minha visão, os médicos não tiveram aparelhos,
fizeram exames, agora só que o aparelho, eles não conseguiram através do exame,
descobrir qual era realmente o problema que eu tinha na visão. (Cidadão B)
O cidadão I fala da sua deficiência visual utilizando-se do resquício de visão que
possui para realizar algumas atividades. Refere-se também ao seu convívio com esta
deficiência desde o seu nascimento:
Eu sou portador de deficiência visual desde que nasci, tenho uma glaucoma no nervo
ótico e possuo resíduo visual que me possibilita me locomover em alguns espaços, me
livrar assim de alguns obstáculos, a depender do local onde não exista muita
claridade. E convivo com a deficiência visual desde que nasci com muita
tranqüilidade. Até porque os meus familiares me possibilitaram condições de eu ter
acesso a uma educação onde eu pudesse me desenvolver, desenvolver as minhas
habilidades, sobretudo a partir do meu convívio no Instituto de Cegos da Bahia
durante sete anos. (Cidadão I)
Percebe-se que, tanto o cidadão B quanto o I falam respectivamente que: “a cegueira
não foi suficiente para bloquear as minhas habilidades” e “educação onde [...] desenvolver as
minhas habilidades”.
A cegueira não foi uma impossibilidade para desenvolver
“habilidades”, porque ambos tiveram acesso à: “informação que eu vim tendo com o passar
do tempo”, ou seja, da sua vida, e “convívio no Instituto de Cegos da Bahia”. Ambos mostram
como o processo de formação/educação é imprescindível no desenvolvimento pessoal
79
enquanto seres sociais, mostram de que forma a sociedade – família, escola e grupo de
convivência – são importantes neste aspecto; pois o desenvolvimento de habilidades move-os
a melhor se aceitarem e terem melhor estima de si. Dessa maneira, verifica-se que a
informação, no seu conceito mais amplo de “formação informada”, conceito que vem sendo
desenvolvido na REDPECT e expresso como (in)formação (BURNHAM, et al, 2002) é o
substrato da vida e da educação, e o acesso à informação é uma forma do sujeito estar no
mundo, se conhecer.
Os cidadãos D e G ficaram cegos pela mesma causa patológica: atrofia do nervo
ótico. Ambos ficaram cegos na vida adulta. Discurso absorvido também da anamnese médica.
Eu sim...meu problema de visão é cegueira total devido à atrofia no nervo ótico
proveniente do que os médicos chamam de Varicela que veio junto com a catapora.
(Cidadão D)
Minha cegueira foi causada pel’ uma má formação no nervo ótico que causou
glaucoma neo vascular e aí veio ao processo de atrofia do nervo ótico, né, que
descolou a retina. (Cidadão G)
O cidadão H fala da sua dificuldade de auto-aceitação no período da adolescência, o
que não o faz diferente da maior parte dos adolescentes, este é um período amplamente
conhecido como aquele em que muitas pessoas têm crise com a sua auto-aceitação, com as
transformações do corpo e também com as relações sociais.
[...] eu lido bem hoje com a minha cegueira. Tive assim uma rápida dificuldade de
conviver com essa cegueira na minha adolescência, mas foi coisa rápida, depois
passou e hoje eu não tenho nenhuma dificuldade de lidar com a cegueira. Foi rubéola,
minha mãe estava grávida quando teve rubéola. (Cidadão H)
Os cidadãos A, C e E são deficientes visuais congênitos. Todos os três cidadãos
nasceram assim devido a um motivo relacionado com a sua genética e ambos sabem disso. O
cidadão A não se coloca como cego, mas sim como portador de “deficiência visual parcial”, o
que impõe que sua condição se constrói enquanto ser social num ambiente com pessoas
portadoras de todos os tipos de deficiência visual. Quando o sujeito fala da sua condição,
percebe-se no discurso do sujeito uma semântica sobre estar deficiente visual como “ter um
80
problema”. Isso ocorre devido ao fato de que sua mãe também é deficiente visual e, a maneira
como vem perdendo a visão num processo lento.
[...] minha cegueira não, eu tenho uma deficiência visual parcial que devido à
degeneração de células da retina, um processo genético e hereditário, já vem de pai
pra filho. Na minha casa minha mãe tem, eu tenho e eu tenho três irmãs que não têm o
problema: o processo da degeneração das células vão morrendo e eu vou perdendo a
visão lentamente. Eu venho perdendo a visão ao longo de nove anos, desde os quinze:
hoje eu tô com vinte e quatro, desde os quinze eu tô perdendo lentamente, hoje eu tô
enxergando muito pouco. (Cidadão A)
O cidadão C fala também da sua cegueira como um “problema”: sabe que é uma
questão genética oriunda da “combinação do sangue” de seus pais. Mesmo podendo enxergar
claridade diz que é cego: “eu sou cego”. Há uma forte relação de pertencimento quando o
sujeito se coloca desta maneira, não há enganos sobre sua própria condição. Isto potencializa
a sua auto-aceitação e facilita sua formação por conhecer as suas limitações. O cidadão E
nasceu cego devido a uma doença rara, esta é a informação médica que lhe foi dada: sabe que
não é pela combinação de sangue de seus pais. O que causou a cegueira do cidadão E é
diferente do que causou ao cidadão C, apesar deles terem se tornado cegos por motivos
genéticos.
[...] minha cegueira é o seguinte, eu já nasci assim, meu problema é o seguinte: minha
mãe e meu pai o sangue deles não combina, certo, aí todos os filhos que minha mãe
tiver com o meu pai vai nascer deficiente visual. E o meu problema é retinose, só eu
enxergo claridade, mas de qualquer forma eu sou cego. (Cidadão C)
O meu é glaucoma congênito, o meu pai e minha mãe não são parentes, mas eu é um
tipo de glaucoma raro. (Cidadão E)
O cidadão F foi o único dos colaboradores da pesquisa que se tornou cego por causa
de “acidente”. O sujeito é simples e direto na sua fala, denotando não ser necessário
apresentar maiores explicações para compreender porque ele é cego.
Outro aspecto
interessante é que ele não traz o conceito médico na sua fala, mas acaba sendo redundante,
enfatizando assim, a causa: “automobilístico de carro”.
Meu, foi problema de acidente automobilístico de carro, pra arredondar. (Cidadão F)
81
Nesta leitura sobre a auto-referencia à cegueira, pode-se concluir que a subjetividade
se impõe quando existem realidades de vidas tão distintas (CASTORIADIS, 1982;
BURNHAM, 1998) É possível afirmar que essa subjetividade, ou seja, a natureza única de
cada ser, auto-compreensão, auto-aceitação, estima, condições sociais e habilidades
construídas definem o ser no mundo, numa construção contínua através de suas relações
(CASTORIADIS, 1982). Nesta perspectiva, pode-se também dizer que a leitura e escrita
Braille, assim como o acesso e o uso de informação por meio da informática são também
condicionadas por esta subjetividade. Esta primeira análise é a condição prerrogativa para a
condução que o trabalho toma, pois esta análise condiciona o trabalho a observar cada um dos
sujeitos em particular. No capítulo 2.1 adentrou-se no universo da cegueira por meio de
narrativas de vidas de pessoas retiradas da literatura de algumas religiões e personagens
míticos de diferentes culturas. Estas narrativas definiram conceitos sobre o ser cego, mas
agora tem-se a fala de pessoas concretas A condição sensorial dos sujeitos marca as suas
compreensões, mas as condições psicológicas, culturais e sociais influenciam efetivamente na
ampliação das compreensões.
3.2 FORMAÇÃO: DO BRAILLE ÀS TECNOLOGIAS DIGITAIS
3.2.1 Espaços de formação e domínio do Braille
Dos cidadãos entrevistados somente o cidadão J disse não ter domínio da escrita e
leitura Braille:
Não consegui. Há uma limitação, uma seqüela no braço esquerdo. (Cidadão J)
Como é então que você acessa a informação escrita. Como você lê? (Entrevistador)
Através de fontes a partir de 22 sem utilização de nenhum recurso. (Cidadão J)
Certo, letra de tamanho 22 você... (Entrevistado)
A partir de... (Cidadão J)
Tamanho 22 você acessa normalmente na sua leitura (Entrevistado).
Sem uso de recurso nenhum. (Cidadão J)
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Mas textos normais, livros, revistas, você tem acesso a eles? (Entrevistador)
Através da lupa eletrônica. (Cidadão J)
Me fale da lupa eletrônica, o que é a lupa eletrônica? (Entrevistador)
A lupa eletrônica é um aparelho que ele é acoplado à televisão. (Cidadão J)
A lupa eletrônica é uma tecnologia que você acopla à televisão e ela permite que você
leia livros normalmente? Ela amplia isso? (Entrevistado)r
Exato, aí aparece ampliado na televisão em quarenta vezes. Funciona como uma
filmadora que vou deslizando sobre as letras do que eu estou querendo ler. Aí aparece
na televisão as letras ampliadas quarenta vezes. Pode ser com o fundo preto e com as
letras brancas ou o inverso com as letras pretas e o fundo branco.(Cidadão J)
Portanto o método Braille não se aplica a todos os deficientes visuais. O tipo de lesão
do cidadão J provocou também uma dificuldade de percepção tátil da mão esquerda, e perdeu
também uma parte da capacidade de audição, em função da necessidade de remédios, o
cidadão acaba ficando sob determinado estado psíquico que lhe dificultou o acesso ao método
Braille. Assim, o que o cidadão J nos propõe é pensar diversos tipos de suportes para os
diversos usuários, considerando as suas idiossincrasias e, portanto, relevando os resquícios de
visão que porventura alguns cidadãos ainda possuam. Como o próprio cidadão fala, muitas
vezes para o seu acesso à leitura é necessário apenas ter tecnologias para aumento das letras,
tais como a lupa eletrônica, que é uma tecnologia específica para os portadores de visão subnormal.
Todos os outros cidadãos, ao serem perguntados se tinham conhecimento do sistema
Braille, disseram fazer uso deste sistema e alguns se referiram aos seus espaços de formação.
Conheço o método Braille, aprendi há quatro anos, cinco anos atrás, e uso
normalmente. (Cidadão A)
Tenho domínio da leitura Braille. Me formei no Instituto de Cegos da Bahia. (Cidadão
B)
Tenho. No Instituto de Cegos da Bahia. (Cidadão C)
Eu comecei, eu me readaptei à escrita Braille no Instituto de Cegos da Bahia e logo
em seguida continuação no Centro de Apoio Pedagógico, no CAP. (Cidadão D)
Sim. Eu fui no ICEIA, com três anos de idade. (Cidadão E)
Sim. Eu, Braille, aqui na ABC. (Cidadão F)
Sim. Eu, no CAP. (Cidadão G)
83
Domino. No instituto de cegos da Bahia. (Cidadão H)
Eu leio e estudo pelo método Braille. Eu leio e escrevo o método Braille, além de
utilizar alguns recursos em paralelo. Estudei no Instituto de Cegos da Bahia.
(Cidadão I)
É possível afirmar que os cidadãos foram formados a usar o método Braille nas
instituições mapeadas para esta pesquisa, com exceção do cidadão E que foi formado em uma
sala de apoio especial na escola ICEIA. Assim se confirma que o estudo do sistema Braille é
uma atividade que integra a formação necessária para o desenvolvimento de habilidades e
socialização do sujeito cego.
3.2.2 Processos e espaços de formação para o uso do computador.
De acordo com as falas dos sujeitos, são basicamente três softwares que fornecem
acesso à informação digitalizada: DosVox, Virtual Vision e Jaws. Informação que corrobora
com falas dos professores de informática apresentadas em trabalho anteriormente publicado
(FREITAS NETO, 2004, p.96).
DosVox, Virtual Vision, Jaws, que na verdade são programas, não programas
específicos, no caso do Jaws e do Virtual, ele faz o trabalho de interação com o
Windows 95 lendo a tela possibilitando ao portador de deficiência visual a interação.
(Cidadão I)
Cada um deles fornece um tipo de interação com o computador, mas tem
basicamente o mesmo intuito: fornecer acesso à informação digitalizada. Confirma-se que
todos os cidadãos tiveram formação em informática nos espaços delimitados para a pesquisa
de campo: ABC, CAP e ICB. Alguns dos sujeitos foram formados em mais de um único
espaço, muitas vezes chegaram a fazer o mesmo curso em diferentes instituições.
No CAP, uma das formações no CAP depois eu recebi outra formação do DosVox na
ABC, depois do DosVox curso básico eu recebi um convite pra fazer um curso de
informática para multiplicadores, pra ser professor, aí eu fiz esse curso, aí já pra ser
o Virtual Vision não DosVox, aí eu fiz esse curso pra professores. Dei aula durante
84
um ano, eu dei aula de informática durante um ano, depois eu tive que sair da área
porque eu estava perdendo a visão muito rápido, eu tava usando a visão ao invés de
usar só o sistema multimídia, usava os olhos em vez de estar usando só os ouvidos,
acabei que, um processo de perda muito rápido. (Cidadão A)
Eu estudei na Associação Bahiana de Cegos. Fiz o curso lá básico de informática. O
curso do sistema operacional DosVox. (Cidadão H)
Primeiro eu aprendi a datilografia através do sistema operacional DosVox, e tomei
após a essa datilografia o curso básico de DosVox e finalmente o curso pra
aperfeiçoar, do próprio programa. Aprendi no Instituto de Cegos o DosVox e ele foi
uma ferramenta muito importante pra mim ao início, para mexer no computador.
Após isso aprendi a mexer na internet, ou melhor, aprendi a mexer no Windows
através do Virtual Vision, e depois aprendi o Word, aprendi também através agora do
Jaws a mexer, a navegar na internet. (Cidadão B)
Esta questão já foi mais comentada por Freitas Neto (2004), quando tratou de
dilemas da educação tecnológica tomando como parâmetro a fala de três professores de
informática para cegos nas instituições delimitadas. Portanto esta parte do trabalho tem o
intuito de representar as observações previamente feitas sobre os processos de formação de
cidadãos-cegos em informática. Não se tomou as falas de todos os sujeitos pois as falas
citadas já representam o que se pretende identificar.
3.2.3 Aquisição da ferramenta - do computador: questão individual ou social?
Por se identificar que, de certa forma, a amostra da pesquisa refere-se a um grupo
selecionado de pessoas que faz uso do computador, e também tem domínio da leitura e escrita
Braille, percebe-se que a seleção dos cidadãos revela um grupo específico de sujeitos que
puderam ter acesso ao computador e obviamente à informação a que este tipo de suporte dá
acesso. Os sujeitos A, B, C, D, F, G, I e J adquiriram o computador com recursos financeiros
próprios. O que faz esta amostra ser uma exceção à grande maioria das pessoas cegas, pois,
segundo a fala do cidadão I, a grande maioria das pessoas com deficiência visual é oriunda de
classe de baixa renda.
Começa-se a análise das entrevistas com o cidadão J, exatamente por ele ser um
cidadão que apesar de ter a oportunidade de possuir um computador não chegou a usá-lo.
Assim se confirma a diferença entre o que é ter computador, usá-lo, ter domínio sobre a
85
máquina. São três coisas distintas que às vezes acontecem simultaneamente outras vezes não.
O cidadão diz que começou o contato com o computador, mas:
Eu não dei continuidade porque na época que eu fiz o curso eu não possuía
computador. Fui possuir depois, só que eu não me recordava mais... Eu já tinha
algum tempo que tinha feito o curso e não me recordava de muita coisa e também
levei algum tempo até conseguir instalar o programa. Foi o tempo pra adquirir
associado ao tempo de adquirir o programa. Esqueci boa parte. (Cidadão J)
O cidadão J realizou o curso antes de possuir o computador, possuiu um que acabou
não fazendo uso, algum tempo depois, por estar com o computador parado, resolveu dar de
presente para o sobrinho.
O cidadão G estava com o computador quebrado no momento da pesquisa.
Tenho, tenho, embora ta até quebrado agora, mas tenho. (Cidadão G)
Os sujeitos E e H adquiriram computador através de outros meios, especificamente
por meio de uma ONG:
Eu tenho computador. Ainda que em uma situação precária, mas eu vou agilizar bem
melhor. (Cidadão H)
Ele foi adquirido com recursos próprios? (Entrevistador)
Não, esse computador foi uma atuação da OEAP, que é a Organização de Apoio à
Pesquisa pra Pessoas Portadoras de Deficiências Visuais. Essa organização, eles têm
um... na verdade tem um diretor da organização que é o Marcos Freire, que trabalha
na DAW química, já lançou dois livros de informática. E ele fez um projeto e ele
conseguiu junto a DAW química, e se eu não me engano outras empresas também, e eu
tenho certeza que a DAW química, e à medida em que a empresa vai renovando os
computadores, eles vão doando esses. Eles pegam duas máquinas vai tirando peças de
uma, de outra, vão montando as máquinas quando é preciso, e ele faz a distribuição
com o intuito de colocar o cego, incluir o cego nessa, no mundo digitalizado. (Cidadão
H)
Apesar do cidadão E já haver adquirido um computador anterior com recursos
próprios, o segundo ele adquiriu por meio da mesma ONG.
86
O primeiro foi, o segundo não. Foi adquirido pela OEAP. (Cidadão E)
É possível perceber, segundo o cidadão I, a questão social que se abordou no final do
sub-capítulo 2.3 sobre as relações de inclusão social relacionadas à posse de recursos
financeiros para aquisição dos diversos tipos de tecnologias que se necessite.
Você falou anteriormente que você tem computador. Esse computador foi adquirido
com recursos próprios? Entrevistador
Com recursos próprios. Uma coisa que foge à realidade da maioria da pessoa cega.
Eu sei que eu sou um portador de deficiência visual privilegiado. As contingências da
vida me possibilitou condições materiais em chegar ao mestrado. Não cheguei no
mestrado por uma perspectiva meritocrática. Eu não consegui fazer duas
especializações por méritos pessoais, não consegui fazer uma graduação por méritos
pessoais. Mas sim eu tive condições, eu fiz a minha história mas não conforme a
minha própria vontade, mas com condições que eu tive pra fazer essa minha história.
O que de fato foge à maioria das pessoas cegas. (Cidadão I)
Mesmo tendo méritos próprios não conseguem por falta de condições. (Entrevistador )
Sem dúvida. (Cidadão I)
Em que níveis, intelectuais ou financeiros? (Entrevistador)
Financeiros, olhe, eu digo a você o seguinte: (bate na mesa com a mão), a maioria
das pessoas cegas são oriundas de famílias pobres. A grande maioria. Eu digo a você,
Albérico. Um cego que nasce numa família que lhe possibilite condições de ter uma
educação adequada à sua especificidade, que tenha sido estimulado precocemente,
ainda que cego de nascença, qual esse cego que não vai lograr êxito? Ele tendo
condições materiais: vai lograr êxito. O preconceito existe? Existe, mas ele vai estar
incluído entre aspas. Incluído nisso aí. Porque quando se fala em inclusão eu sempre
me pergunto: inclusão em quê? Incluir onde? Nessa sociedade que ta aí? [...]
(Cidadão I)
De acordo com a fala dessa pessoa, possuir o computador com recursos próprios não
faz parte da vida de uma grande parcela de cegos, com isso, esse cidadão revelou os seus
questionamentos sobre os aspectos de inclusão digital e social, confirmando o que foi dito no
sub-capítulo 2.3: possuir capital, possuir condições financeiras, ou seja, fazer parte da lógica
identitária, relação de pertencimento a uma determinada classe social, irá necessariamente
interferir no acesso e uso das tecnologias de informação.
87
3.2.4 Espaços de acesso ao computador posteriores aos cursos de informática
Nas respostas dos cidadãos que tiveram a chance de possuir um computador e de ter
sido formado em espaço institucional de educação, refletiu-se uma questão de grande
relevância: o uso do computador não se limita apenas a ambientes domésticos: “em casa”,
mas se estendem às instituições em que foram formados.
Tem a biblioteca Central, Setor Braille, tem a ABC – Associação Bahiana de Cegos,
que lá tem o laboratório de informática, tem internet gratuita pros sócios, então a
gente pode acessar a internet, fazer nossos trabalhos, redigir, enfim pra vários fins.
(Cidadão A)
Acesso somente aqui [Associação Bahiana de Cegos] e em casa. (Cidadão B)
Ah! Aqui na ABC, no Instituto de Cegos, em casa . (Cidadão C)
No caso, têm hoje três espaços. Um é o CAP. O Outro é a Associação Bahiana de
Cegos, que tem computadores disponíveis, e o outro é em casa mesmo. (Cidadão D)
CAP, ABC e em casa. (Cidadão E)
Somente em casa. Não por falta de espaços, por uma questão de comodidade.
(Cidadão F)
Eu, casa e no CAP. (Cidadão G )
Eu utilizo o espaço daqui [Setor Braille da Biblioteca Central], do próprio setor
Braille, utilizo na faculdade, lá tem um programa também no computador de lá.
Basicamente utilizo o espaço daqui e da faculdade. (Cidadão H)
Conforme havia mencionado, o Cidadão J não faz uso do computador, mas utiliza
uma outra tecnologia:
Eu adquiri, na minha própria residência: a lupa fica acoplada lá na televisão,
acoplada. (Cidadão J)
O fato do uso de computadores por estes cidadãos se restringir apenas a ambientes
domésticos e a instituições de formação está diretamente relacionada com a disponibilização
dos softwares apropriados para os cidadãos-cegos.
88
3.3 MOTIVAÇÕES E INTERESSES: DO TECLADO À INTERNET
“Quais motivações foram geradas no sujeito para a aprendizagem do uso de
ferramentas digitais?” É uma questão interessante, pois ela se apresenta sob forma intrínseca e
extrínseca ao sujeito. Como não fazer parte do movimento em que o mundo todo está
passando? Existem as motivações próprias do desejo de pertencimento que é inerente ao
sujeito social – lógica conjuntista identitária (CASTORIADIS, 1982). Porque não ter acesso a
algo que todos estão tendo ou desejando ter?
A questão do acesso à tecnologia digital pelo cidadão-cego é algo anterior aos
softwares de leitura de tela. Os sujeitos confirmavam os comandos no computador baseados
em sua memória dos programas, para isso eles precisavam estudar os programas, e assim
conseguiam realizar gravações de arquivos, salvar e recuperar documentos etc...
Na verdade, quando eu comecei a estudar informática foi sem o auxílio de ledores de
tela, eu fui com a cara e a coragem pra escola de informática, onde eu tive eu comecei
a... aprender os assuntos de forma bastante teórica eu já tinha domínio do teclado
dada à minha experiência com a máquina de datilografia. E a realizar algumas
operações mesmo sem o ledor de tela, conseguia salvar um arquivo, enfim, gravando
comandos, sobretudo naquela transição do MS-Dos para Windows. Onde se digitava
bastante comando. Aí eu comecei naquela perspectiva auto-didata. Já se falava muito
em alguns sintetizadores de voz que ainda não estava bastante assim em evidência,
mais assim pra a elite de deficientes visuais que tinham acesso, sobretudo em algumas
empresas onde programadores cegos atuavam. E eu comecei a ter foi quando entrou
no mercado o DosVox. Acho que foi em 93 ou 94, que eu tive contato pela primeira
vez. E aí me despertou ainda mais interesse. Primeiro pelas minhas pretensões
acadêmicas desde aquela época eu comecei a perceber que a utilização do
computador ele ia me ajudar bastante. (Cidadão I)
E você tava falando aqui agora na questão de uma elite de cegos que tinha acesso a
esses programas em ambientes empresariais que possibilitassem esse acesso. Antes o
acesso de deficientes visuais às ferramentas digitais era mais difícil, ou inacessível?
(Entrevistador)
Praticamente inacessível. Hoje ainda é muito difícil. Se você for analisar o universo
de pessoas cegas hoje, existentes na Bahia, no Brasil. A gente sabe que menos de 10%
das pessoas cegas têm acesso à qualquer tipo de recursos que lhe possibilite o
desenvolvimento. Mas hoje, o acesso da pessoa cega ao computador até neste
momento se dá nas instituições. No caso daqui de Salvador, No Instituto de Cegos, no
CAP, Associação Bahiana de Cegos, Setor Braille da biblioteca pública, até porque a
89
gente sabe que a grande maioria de pessoas com deficiência, a incidência de pessoas
com deficiência é de famílias pobres onde o computador ainda não é uma realidade.
(Cidadão I)
O que você designa como possibilidade de, possibilidade não, probabilidade da maior
parte dos cegos serem pobres? (Entrevistador)
Primeiro porque estudos vêm, comprovam isso. E depois a minha experiência com
pessoas cegas comprova isso. Sem dúvida! O pessoal geralmente é de família pobre,
oriundos, vindos de família de baixa renda. (Cidadão I)
O cidadão A vê na tecnologia uma possibilidade de mudança de vida, ou seja,
trabalhando por meio dessa ferramenta pode desenvolver-se socialmente e lograr um outro
tipo de realidade financeira para a sua vida, e no que diz respeito às suas motivações percebese que o objeto em si, muitas vezes já é suficiente para promover o contato com ele.
A tecnologia em si. Acho que a informática facilita a nossa vida em muitas coisas em
diversas áreas, a gente pode utilizar o computador pra digitar uma redação, guardar
informações, fazer uma agenda, pode usar a internet pra fazer pesquisa, tem diversas
utilidades, a informática pra mim isso me atrai, me prende muito. (Cidadão A)
Curiosamente o cidadão B fala de um tempo futuro que é ao mesmo tempo o
presente. A tecnologia é a que todos nós estamos vivendo, é a que está contemporânea a nós e
se confirma o que havia sido dito no capítulo 2.2, de que a influência do momento histórico é
fundamental na relação com os objetos e outros sujeitos sociais. E também, pode-se verificar
a influência social nas decisões pessoais dos cidadãos. Principalmente se compreendermos
que o cidadão fala que a informação pode ser uma forma de melhorar a sua vida social: “como
você deve lidar com o ser humano”.
A curiosidade pela tecnologia do computador, foi o que me fascinou porque eu ouvia
pessoas comentarem que o computador era a informação e seria o futuro, como está
sendo. Eu me interessei a fazer o curso de informática, porque a minha própria
família me sugeriu isso, achando que eu ia progredir na informação com relação à
internet, e até corrigir erros ortográficos que eu tinha por causa da própria cegueira.
[...] Através da internet, através dos programas de voz, eles me informam notícias,
novidades que aparecem, programas atuais, informações como páginas de dicas de
como você deve lidar com o ser humano etc... E também através do próprio correio
eletrônico no sistema DOSVOX você pode acessar através também do próprio
Outlook. (Cidadão B)
90
A tecnologia é imposta de uma maneira tão sutil que não tem porque o sujeito ficar
fora do que lhe é contemporâneo.
O que me motivou foi que eu via bastante pessoas mexendo no computador. E há um
tempo atrás eu só via falando de internet, a galera só vivia falando nisso. Daí, rolou
um curso de Windows com o programa Virtual Vision, que é um programa que lê a
tela pra gente ouvir. Ele fala também tudo o que está escrito na tela. Daí, me motivou,
eu peguei, como tinha dado este curso, me inscrevi, aprendi mais ou menos algumas
coisas. [...] Eu passo acessar internet, pela tecnologia do programa, uma tecnologia
nova aí que desenvolveram, acesso internet, acesso o Windows, acesso os programas
[...] (Cidadão C)
Ao ser indagado sobre o que acessa na internet, o cidadão C fala da relação com a
máquina para o acesso à informação e realização de pesquisa. O mais interessante que para o
cidadão C o livro em formato digital é algo tão cotidiano à sua realidade que ele simplesmente
fala que “eu leio livro, gosto muito de ler livros”, assim os livros não são em papel mas sim
em formato digital.
Eu faço pesquisa escolar, quando tem, passa na sala eu faço a pesquisa e depois
imprimo. Às vezes eu jogo quando tenho tempo, às vezes eu leio livro, gosto muito de
ler livros, aí eu faço várias coisas. (Cidadão C)
O cidadão D já fazia uso do computador antes de ficar cego e precisou se readaptar
para poder acessar novamente. É um relato de um cidadão do seu processo de tornar-se cego e
assim adaptar-se ao uso da tecnologia.
Eu por eu ter perdido a visão aos 19 anos, eu já tinha computador em casa, e eu
praticamente fiquei com o computador parado por um ano, foi quando eu entrei no
Instituto de Cegos e eu vi a oportunidade de estar trabalhando com a informática de
novo, com os programas. Passei a conhecer o que eu já tinha acesso, e foi com o
professor João Bosco que eu me readaptei a trabalhar com o computador. O primeiro
curso. E depois eu tomei cursos avançados na área também pra deficiente visual de
outros programas como o Jaws, o Linux, mais o Jaws. E o Virtual Vision no CAP.
(Cidadão D)
Quando o cidadão F fala do que “a vida nos impõe”, é a necessidade de estar
acompanhando o desenvolvimento do mundo, não ficar alheio a este movimento. Sem perder
de vista que este tipo de discurso é também um discurso social, na medida em que os que não
91
estiverem acompanhando o desenvolvimento estarão excluídos dos processos sociais mais
ampliados, mas não deixa de permitir que os sujeitos possam refletir a respeito do uso das
tecnologias. O cidadão E fala de uma circunstância educativa também que lhe impõe um outro
tipo de velocidade na recuperação da informação: “a chegada ao ensino médio”, sobretudo
com a “necessidade de aprender”, assim como o cidadão G fala da sua preparação para o
vestibular. De forma geral os sujeitos fazem usos motivados pelo caminho de estudos que
estão trilhando.
Comecei primeiro no CAP com o Dosvox, o Virtual e o Jaws.
E é o que a vida nos impõe, né, de estar acompanhando o desenvolvimento. (Cidadão
F)
Eu, na verdade quando minha irmã comprou um computador em casa, eu ficava
parado, então devido a ir chegando ao ensino médio, enfim, chegou a necessidade de
aprender e de ir ao CAP. Comecei com o Dosvox, depois o Virtual Vision. Fiz o curso
avançado lá no SENAI. E aí a internet também. Devido mesmo a necessidade de você
aprender. (Cidadão E)
O que me motivou a buscar a informática, a aprender, na verdade foi as minhas
dificuldades. A gente tinha dificuldade em agenda de telefone. Na questão da
digitação. Na questão de buscar informação, a partir do momento que você tem o
acesso à informática, você tem acesso à diversos tipos de informação. (Cidadão G)
Que informações exatamente você acessa, você utiliza? (Entrevistador)
Eu to me preparando pra fazer vestibular, então eu tô buscando conhecimento em
diversos tipo de matérias, né que, e conhecimento gerais, me atualizando pra assim
estar realmente preparado pra fazer o vestibular. (Cidadão G)
O desejo de conhecer, o desejo de produção intelectual mescla-se com a
representação de que é necessário estar utilizando uma ferramenta que seja a mais moderna,
ou que possibilite a maior recuperação de informação no menor tempo. A fala do Cidadão H
revela prontamente um discurso próprio de um determinado grupo social – representação
social do discurso - os que fazem parte da “academia”. Quais são as necessidades que se
impõem academicamente? Estudar, conhecer cada vez mais? Ou, consumir informação?
As necessidades acadêmicas. A própria... os estudos, eles os impulsiona à gente estar
sempre buscando recursos que possibilite, que facilite a nossa permanência, as
nossas pesquisas. Então por conta do estudo eu me senti voltado a procurar o curso, a
entidade tava oferecendo. Com a parceria que eles fazem com o FAT, financiamento
do FAT. A entidade tava oferecendo o curso. (Cidadão H)
92
O que é o FAT? (Entrevistador)
É o Fundo de Amparo ao Trabalhador. Então juntamente com o governo do Estado
que é a SETRAS, né, Secretaria de Trabalho, Secretaria do Estado de Trabalho, então
eles disponibilizam esse fundo e as entidades vão e oferecem os cursos. (Cidadão H)
O cidadão J estudou informática, motivado pela readaptação ao mundo do trabalho,
mas como acabou se aposentando, unido com os seus interesses pessoais, deixou de fazer uso
desta ferramenta conforme foi dito anteriormente, já que utiliza a lupa eletrônica. O que
motivou o sujeito a estudar informática foi:
Que eu iria utilizar no trabalho. (Cidadão J)
E você utiliza? (Entrevistador)
Não porque por questões burocráticas o órgão necessitaria de comprar os programas.
(Cidadão J)
Que órgão? (Entrevistador)
O órgão onde eu trabalhava.Tribunal do Trabalho. (Cidadão J)
Você não trabalha mais? (Entrevistador)
Me aposentaram por invalidez. (Cidadão J)
Cada um dos sujeitos foi motivado por questões individuais e sociais no uso do
computador, mas basicamente o principal motivo está no interesse em ampliar a possibilidade
de acesso à informação e com isso realizar transformações em suas vidas, mas o que tem
mudado será infra exposto.
3.4 BUSCA DE INFORMAÇÃO: ACESSO E LEITURA: MUDANÇAS EXISTENCIAIS.
O que de fato os cidadãos passam a acessar com tecnologias digitais de informação e
comunicação, depois que foram formados para usá-las? E depois que passam a acessar
informação por meio da informática, o que de fato acontece na vida dos cidadãos-cegos?
Ainda no subcapítulo 2.1 as referências culturais sobre a história de vida de pessoas
cegas são abordadas em sua relação direta do acesso à visão por meio de um conhecimento
93
que permita essa visão. Voltam a enxergar por terem acesso ao conhecimento que lhes
devolve a visão. Percebe-se, contrastando a construção teórica com as falas dos sujeitos, que o
discurso simbólico se movimenta na representação social, ganha corpo, se materializa. A
ferramenta digital pode vir a ser os olhos, os que lêem para os cegos, o que dá permissão para
acessar o que antes só era possível por meio de Outro sujeito. Agora, o sujeito “humano” pode
ser substituído por outro “máquina”: é o amigo robô que lê os textos, é o que faz possível o
acesso. Entretanto, para alguns, é na relação com este amigo que se constroem várias
transformações de ordem pessoal e social.
Abriu uma nova... [...] eu tive uma nova perspectiva de vida, uma nova perspectiva
profissional também, eu...depois que eu fiz os cursos básicos, depois que eu recebi o
convite pro curso pra professores, eu vi como mais uma área de atuação profissional
mesmo, eu atuar na área como profissional, pra ter uma fonte de renda, mais uma
fonte de renda, eu resolvi investir nisto, resolvi estudar, e isso mudou radicalmente
minha vida porque até então, eu nunca tinha trabalhado, nunca tinha tido um
emprego, nunca tinha tido carteira assinada, nunca tinha... é, bom, enfim, trabalhar e
ganhar, ter um retorno financeiro, entendeu? Então, a informática foi um primeiro
emprego, assim, foi um primeiro, como é que eu vou dizer? um instrumento que eu tive
pra ter um retorno financeiro, assim, como profissão. (Cidadão A)
Através da internet, através dos programas de voz, eles me informam notícias,
novidades que aparecem, programas atuais, informações como páginas de dicas de
como você deve lidar com o ser humano, etc... E também através do próprio correio
eletrônico no sistema DOSVOX você pode acessar através também do próprio
Outlook. Passei mais a ocupar o tempo, porque praticamente só estudava e ia para
casa, depois que eu aprendi esses cursos eu agora procuro lugares que tenham
internet, com acesso à internet, como aqui a própria Associação Bahiana de Cegos, e
através dessa internet acesso a todas essas informações que eu acabei de lhe falar.
(Cidadão B)
Eu passo acessar internet, pela tecnologia do programa, uma tecnologia nova aí que
desenvolveram, acesso internet, acesso o Windows, acesso os programas e aí... Eu
faço pesquisa escolar, quando tem, passa na sala eu faço a pesquisa e depois
imprimo. Às vezes eu jogo quando tenho tempo, às vezes eu leio livro, gosto muito de
ler livros, aí eu faço várias coisas. O que mudou é que realmente eu não sabia muito
de informática, que não deixam de dizer: “rapaz, não faça não, continue lendo
Braille”. Resolvi por mim mesmo fazer esse curso pra avançar mais, pra eu aprender
mais coisas. O que mudou foi que eu gostei, e cada dia que passa eu aprendo mais
coisas. (Cidadão C)
Uma das coisas a princípio eu usava mais pela questão de pesquisa pra escola, depois
que eu concluí o segundo grau, a gente hoje tem muito mais facilidade de baixar
livros, e já é complicado por não vim em Braille então tudo pelo computador já é mais
fácil a gente estar baixando esses livros. Pela questão de que, acho que o Brasil ficou
pequeno com informática, a gente tem acesso mais rápido a todos os Estados aqui do
nosso Brasil,todas as pessoas, pode ser a distância que for a gente tem mais facilidade
de trocar informações, de ter acesso mesmo ao conhecimento, a determinados
assuntos que no nosso meio na questão esportiva, na questão de profissional, fica tudo
94
muito mais fácil com o acesso à informática. Então é isso basicamente que eu busco
com a informática. (Cidadão D)
internet, pesquisa, até porque agora que eu vou precisar mesmo que eu estou
ingressando na faculdade. (Cidadão E)
Você está estudando o quê agora? (Entrevistador)
Agora, comunicação na FTC. É o pro-Uni. (Cidadão E)
Quer dizer então que você é um estudante do pro-Uni da FTC? (Entrevistador)
Sou... Então, você tem uma necessidade por não ter livros, como o próprio [cidadão
D] disse já disso, você buscar a internet pra você poder ler alguma coisa. Tornar um
pouco independente de alguém pra ler um livro. Com a internet com alguns
programas que temos você passa a ler algumas coisas. (Cidadão E)
Com o cidadão F percebe-se que o uso do computador basicamente ocorre como uma
forma de lazer.
Eu uso mais como hobby, mas passo a ler livros e escrever algumas coisas que gosto
de escrever. Tipo poesias, cartas, peças de teatrais. (Cidadão F)
Tanto o cidadão H quanto I precisavam sempre de alguém para poder acessar a
informação escrita, agora, por meio da tecnologia, é promovida uma mudança na relação com
o saber, pois deixam de necessitar desta pessoa para acessar a informação: a autonomia,
segundo os cidadãos, é uma das situações que a informática promove. É o distanciamento da
necessidade de uma outra pessoa para poder ter acesso a um texto gráfico, e se estiver
digitalizado é ainda mais fácil.
O que facilita pra mim, o ganho que eu tive com isso é pelo fato de agora eu ter uma
certa autonomia, não plena, mas eu tenho agora uma certa autonomia. Posso pegar
meu... acessar a internet, buscar minha informação sem ter que depender de alguém
que acesse pra mim. O programa como é um programa em que ele vai falando, vai
dizendo pra mim o que tá ali na tela, então eu posso manusear o computador
tranqüilamente. Então eu acho que a criação desses Softwares como é o caso do
DosVox, de outros leitores de tela, o caso do Virtual e do Jaws, dá pra gente essa
autonomia, de você poder manusear um computador. (Cidadão H)
Depois, veja bem. O grande avanço da informática na minha vida o que se refere a
informações, eu poder ler meus textos, eu poder ter independência. Por exemplo: eu
estou com um artigo, eu pego lá o Jaws que é pra mim ler super bem. Tem pessoas
que quando você não tem o ouvido acostumado, treinado, a pessoa não entende, mas
eu leio, o jaws lendo é como se você tivesse lendo. Isso, de uma certa forma, me dá
condição de estar tendo acesso à leitura. No mesmo momento em que a pessoa, lá no
95
mestrado, por exemplo, eu tendo um texto digitalizado eu posso tá tendo acesso no
mesmo momento, em pé de igualdade com os outros companheiros, com os outros
colegas, então, basta o texto estar digitalizado, então pra mim o grande avanço do
computador... (Cidadão I)
Somente o texto estando digitalizado é suficiente para você ter acesso a este texto.
(Entrevistador)
Estando digitalizado, acabou as barreiras. (Cidadão I)
E se esse texto não está digitalizado, você tem acesso à digitalização deste texto?
(Entrevistador)
É complicado. Você tem que ter, ele tem que ser escaneado, tem que passar por um
processo, que eu particularmente não tenho scanner aqui em casa, tenho computador
com todos os programas necessários, impressora, não impressora Braille, impressora
comum. O scanner eu ainda não tenho não, também não saberia utilizar. (Cidadão I)
Então isso significa que mesmo tendo acesso à informação através do meio digital,
mesmo dominando a técnica da máquina de informação digital, ainda assim textos em
negros são de difícil acesso, a não ser que eles esteja digitalizados. (Entrevistador)
Só digitalizados. Hoje ainda um grande número de cegos que ainda não utiliza o
computador. (Cidadão I)
O cidadão J não acessa computador, utiliza uma outra tecnologia de informação.
Você não acessa computador, você não acessa a internet? (Entrevistador)
Não! (Cidadão J)
Geralmente o que é que você lê na lupa eletrônica? (Entrevistador)
Jornal, revista. (Cidadão J)
Que revistas? (Entrevistador)
Eu leio o almanaque Abril, eu leio mensagens, jornais quase que diariamente,
mensagens de... e livro espírita. Como no almanaque Abril a parte de geografia.
(Cidadão J)
3.5 PÓS DIGITAL RETORNO AO BRAILLE.
No momento em que uma pessoa acessa informação por meio da visão, seja ela
escrita em um papel ou em uma tela de computador, sua visão abarca, quando o sujeito tem
uma habilidade construída de leitura e escrita (produção de sentidos), o signo, o símbolo e o
96
significado simultaneamente à palavra ou frase. O deficiente visual não. Quando a leitura
ocorrer em sistema Braille, ele necessitará ler letra por letra e depois compor a estrutura da
palavra ou frase em sua mente. Quando uma pessoa que enxerga lê uma simples palavra,
como “bola”, por exemplo, estejam as letras escritas em quaisquer formas ou cores de fontes,
necessariamente constrói significados de ordem gráfica (visual), sonora (auditiva), tanto
ortográficos quanto fonéticos. Uma pessoa que é cega, ao ler utilizando o sistema Braille,
sensação tátil para leitura de signos gráficos em pontos de alto relevo, conseguirá produzir
sentidos ortográficos e fonéticos; mas quanto acessa informação por meio da informática,
sendo esta leitura auditiva, irá acessar o sistema fonético e não terá acesso ao sistema
ortográfico. A única maneira do cidadão vivenciar a estrutura ortográfica da informação é por
meio do sistema Braille. É necessário um contato constante com essa leitura para que o
cidadão não perca sua habilidade, então, segundo os sujeitos da pesquisa, o distanciamento do
Braille promove um “esquecimento” dos seus significados. Portanto, a ausência de contato
com a leitura Braille, provavelmente, interferirá na habilidade de reconhecimento dos signos
Braille, já que, o mesmo signo pode ter vários significados a depender da circunstância em
que o sistema estiver inserido.
Assim como acontece com pessoas que enxergam, que muitas vezes lêem um texto
que não compreendem, pode acontecer o mesmo com pessoas cegas; diferentes sujeitos
estarão habilitados a ler diferentes textos, a depender do arcabouço de informações e
formações que os habilitem ao acesso. Mas muito mais do que percepções, simplesmente no
que diz respeito à grafia de palavras ou ao som delas, a construção de significado do cego tem
a ver com suas concepções próprias, ou seja, suas vivências, leituras de mundo, construções
de habilidades e adaptações.
O que tem mudado na vida de cidadãos-cegos, em relação ao uso do sistema Braille,
depois que foram formados no uso do computador e realizam constantemente acesso à
informação por meio dessa ferramenta?
Mudar, eu acho que mudou pouco, eu continuo usando todos eles. Assim... O Braille é
muito importante porque a gente tem a grafia das palavras, então é muito importante
a gente estar lendo em Braille pra não perder a grafia de como as palavras são
escritas. Já com outra pessoa lendo você perde isso, é mais um recurso, você adianta,
faz alguns trabalhos. Já o computador te dá autonomia pra você ficar mais
independente, pra você não depender de outra pessoa pra poder digitar um texto: ao
mesmo tempo você digita e lê. Você fica sabendo também como é a grafia das
palavras. Já a informática te dá um leque maior, assim, já te dá mais recursos. O
Braille, você vai ter o Braille, assim, no, no, na gravação a pessoa lê mas você perde
97
a grafia das palavras, e no computador você lê, escuta, sabe como é a grafia das
palavras. É algo que veio acrescentar, mudou, mas, mudou pra melhor. [...] Menos, é,
passei de fato, concordo com isso, mas continuo lendo, mas passei a usar menos o
Braille. (Cidadão A)
Eu não posso mudar a minha relação com o Braille, porque através do Braille você
consegue corrigir os seus erros ortográficos, você não pode abandonar o Braille só
porque você está lendo livros através do computador, um computador tem um defeito
para o cego muito grande, infelizmente o cego ouve, ele não lê, dessa forma não fica
possível ele saber como está escrito tais palavra. (Cidadão B)
Então a grande questão é ortográfica? (Entrevistador)
Exatamente. (Cidadão B)
Não é que interfere, é que o pessoal dizia que como eu era pequeno demais, eu fiz o
curso com dez anos, colocando meio que um preconceitozinho pela idade, mas que
não era pra mim fazer porque eu estava pequeno, e eu resolvi fazer, e daí eu fiz vários
cursos, e fui aprendendo, e aí aprendi alguma coisa. (Cidadão C)
A respeito dos comentários do cidadão A, é necessário esclarecer que quando ele diz:
“no computador você lê, escuta, sabe como é a grafia das palavras”, não é absolutamente uma
informação verdadeira. Existe uma diferença entre a leitura e a escrita no computador
utilizando softwares para este tipo de público. Na leitura, necessariamente auditiva, o leitor
não terá acesso à ortografia, mas quando o sujeito escreve, o computador lê as letras e depois
a palavra que o sujeito digitar, se ele digitar a palavra errada o computador irá soletrar e vai
corrigir o erro. O cidadão B
Do “grupo cegal” serão trazidos os diálogos completos devido ao fato de que as falas
de alguns interferiram e complementam a fala de outros.
Eu vou falar pelo que eu ouço falar que o Braille ficou esquecido, e o Braille não
pode ser esquecido porque é uma coisa muito fascinante. (Cidadão F)
[...] Você diz que dizem que ficou esquecido. Ficou mesmo ou não ficou esquecido?
(Entrevistador)
Ficou esquecido. Infelizmente. (Cidadão F)
A tecnologia digital fez com que o Braille ficasse... (Entrevistador)
Em segundo plano, ações hoje que tem o acesso à informática, mesmo que seja pouca,
mas ela está esquecendo o Braille. Você tem hoje pessoas que chegam na
Universidade, e vira pra você e diz oh, Albérico, não precisa você levar a reglete não,
chega na sala e pede à professora o CD-rom ou o disquete, joga lá no computador, só
faz aquilo ali e pronto. (Cidadão E)
E às vezes a culpa que a gente podia estar... Como têm alguns grupos hoje que eu até
conheço pessoas assim, Brailllistas de carteirinha, eles estão fazendo um movimento
98
pra que isso não acabe, estão ensinando em algumas escolas. Mas uma coisa que a
gente vê, não é culpa nossa enquanto deficientes que tá acabando com o Braille. Você
chega na escola regular, a primeira coisa que o professor diz assim: eu quero um
trabalho digitalizado. Nem à mão os professores aceitam mais, então não vai a gente
escrever em Braille que é muito pior. Chega na faculdade, A gente não pode, Ah, não,
não, não, não eu tenho o disquete aqui. É por isso que o Braille hoje ta se tornando
obsoleto em relação à informática, como a máquina de escrever também virou, né.
(Cidadão D)
Aí o professor já sabe já no próprio colégio, tem a sala de informática ali. Eu vou lhe
entregar o disquete, você leva pra casa, como já aconteceu comigo o professor
chegar, aí, ó o disquete aqui. Eu entregar pra professora a sua aulinha e levar o
disquete pra casa pra ler. Você, eu cheguei em casa e li, imprimi em tinta e entrega a
ele. Eu não aprendo o Braille com isso. (Cidadão E)
Agora na questão prática ainda está muito longe do Braille acabar. Pra o estudo,
tudo bem você tem a informática, mas pra responder os questionário, pra responder
prova, você precisa ainda porque o Braille, querendo ou não... (Cidadão F)
[...]
A informática é muito importante, tem um valor assim, formidável. Mas assim, eu não
troco o Braille pela informática, pelo seguinte: na informática você tem assim para o
cego um aprendizado meio que abstrato, por exemplo: costumo separar assim, a
questão da física, matemática, química e português, eu estudo no Braille porque tem
que ser aquele aprendizado mais concreto. Entendeu, e aí eu deixo uma coisa mais
voltada pra informática mesmo pra questão da história, geografia, biologia,
entendeu? Então, o Braille assim, pra mim que estou me preparando pra fazer o
vestibular, no meu caso, tá em primeiro lugar. (Cidadão G)
Interessante quando a gente pensa isso porque vocês falam de tecnologias, da
informática como algo para se ler, mas a gente não pode se esquecer que a
impressora Braille também é uma tecnologia de informação e comunicação, e trouxe
uma transformação ao Braille inacreditável, imensa, porque se pensar que aquelas
cópias eram tiradas com as copistas e que se levava meses e meses, pra transcrever
uma quantidade de livros que tudo isso era feito na mão, ponto por ponto. Parece
mentira você pensar nisso. (Entrevistador)
Eu queria dizer o seguinte: O cinema está pro o livro assim como o computador está
para com o Braille. (Cidadão F)
Mas sabe uma coisa que acontece, vê o preço de uma impressora dessa, então o alto
custo eu acho que é uma coisa que... (Cidadão E)
A base de uma impressora hoje uma daquelas , que a gente pode, que muitos
consideram como uma impressora descartável é dezesseis mil. Aí é mais fácil você
comprar um computador ou só comprar uma impressora, porque você tendo uma
impressora e não tendo um computador. Muita gente hoje só paga no computador. Ter
uma impressora só as instituições hoje têm. E se a impressora quebrar você não pode
consertar aqui não você tem que pagar um valor X pra levar pra Santa Catarina, pro
Rio Grande do Sul pra consertar. As impressoras hoje não compensa ter uma
impressora, então por isso que a gente não fala tanto na impressora.Braille. É uma
tecnologia mais ao nível de Japão, que lá tudo é fácil. (Cidadão D)
99
Os cidadãos do “grupo cegal” forneceram opiniões muito preciosas, pois somente as
suas vivências com a informação mediada em diferentes tecnologias puderam dar subsídios
para entender de que forma estão se relacionando dinamicamente com a informação mediada
no Braille e no computador.
100
4
CONCLUSÃO
MADRUGADA DO TEMPO
Albérico Salgueiro de Freitas Neto.
Jagannatha svami nayana-patha-gami bavatu me.
Que Jagannatha Svami seja sempre o objeto de minha visão.
O porquê? Pergunta
À pergunta sobre o quê?
Seduz-me. É tão bonita!
E se mantém e interdita.
O segredo da vida?
Um só caminho: o de ida.
Ide-vos! E se impõe.
Pensares e humanidades me recompõem.
Exatos humanos, exatos pensares.
Sujeito implicado e consciente
Sei que os sentidos, limitadamente,
Também é cheio de azares.
Um texto antigo em latim
Me ensinou que a vida é assim:
Não se pode confiar na sorte.
Pois a lua, tão logo muda seu norte.
Sem ver a lua minguando sei que se renova.
E depois vem o sol: numa manhã nova.
A sorte e o azar caminham em comunhão.
Assim como a lua muda sua estação.
Como não posso nos sentidos confiar.
Porque sei que estão sempre a enganar.
Busco na eterna modernidade humana.
A que sabe, clama, se contradiz e ama.
Este é o porquê!
De escrever, grande ganho do dizer.
Que até mesmo um cego pode ver.
Presente em si, no outro, sua humanidade.
Sua reflexão conserve, assim, sua hombridade.
Alguns a enganar ou no enganar-se.
Alguns a se ver, a se amar, a dar-se.
Paixão arfante no peito.
A faz demasiada humana em seu direito.
Resquícios da história de muitos povos.
Ensinam-me, chocam-se os ovos.
Nasce saberes que ganho comigo.
Compartilho-vos, meu caro amigo.
101
Na madrugada do tempo um ancestral.
Disse-me, acredite, é sem igual.
Cada um cumpre seu destino, afinal.
Meus olhos estão sempre a ludibriar.
Logo vem o sol a lhes brilhar.
A escuridão também a lhes cegar.
Os saberes e os sentidos têm estreita ligação.
A vida e sua dinâmica, a cada ser, faz relação.
Não posso ver com os meus olhos em vão.
Se tantos irmãos, com eles conseguem não.
Pois os olhos não vêm assim.
O que no coração do homem está, e fim.
O meu amor é o que posso ofertar, então.
As lágrimas que caem dos meus olhos
Não alteram minha visão.
As subjetividades próprias de cidadãos-cegos, com respeito às causas de suas
cegueiras, interferem no acesso à informação; cada tipo de deficiência, além dos processos de
auto-aceitação de sua condição de deficiente visual, implicará em uma produção de sentido,
em um tipo de leitura de mundo e consequentemente na produção de conhecimento. Usuários
distintos imprimem formas específicas de acesso à informação fundamentadas nas
subjetividades dos cidadãos, já que nem todas as tecnologias são acessíveis a todos os tipos de
usuários.
Os espaços e processos formativos de cidadãos-cegos, tanto em sua aprendizagem
Braille quanto aprendizagem no uso do computador, restringem-se aos espaços
institucionais/organizacionais para este tipo de público. Assim, tornou-se possível verificar
que o sujeito não está sendo incluído no mundo digital em espaços externos aos de sua
formação, já que estendem, segundo os resultados da pesquisa, o uso do computador apenas a
ambientes domésticos; com exceção de alguns sujeitos em nível universitário, que possuem
acesso a computadores com softwares específicos em seus espaços acadêmicos.
Assim como é necessário que pessoas que enxergam sejam alfabetizadas para ler e
escrever, o cidadão-cego também precisa da alfabetização Braille e o seu constante uso para o
desenvolvimento de habilidades nesse sistema.
O que motiva e estimula cidadãos-cegos no uso do computador, basicamente são os
aspectos referentes à relação de pertencimento social, ou seja, serem cidadãos na sociedade do
102
conhecimento. Isso significa que as motivações ocorrem pela busca de uma melhoria da
qualidade de vida - lazer, estudo e trabalho - proporcionada pela produção de conhecimento.
A tendência da informação ao longo da história foi tornar-se cada vez mais acessível
por meio de novas tecnologias. Da escrita Braille surgem as possibilidades do acesso por meio
do tato, e o sistema de áudio analógico permitiu um desenvolvimento significativo no registro
da informação. Mas foi principalmente com o computador que o avanço no acesso à
informação ocorreu de forma contundente, pois reuniu em um corpo tecnológico digital várias
tecnologias, sistema de áudio e impressão de material em Braille. Porém, constatou-se que a
aquisição de ferramentas tecnológicas está atrelada aos aspectos de divisão social.
A tecnologia digital está impondo um outro tipo de relação com as diferentes formas
de registro e acesso à informação. O mesmo que está acontecendo com o vidente, está
acontecendo com o deficiente visual na escrita, mas na capacidade de ler o texto escrito, já
que o vidente lê o que está na tela, enquanto o cego ouve o texto. Os sujeitos que vêem estão
escrevendo cada vez menos com a caneta ou lápis e papel, algumas crianças já crescem
basicamente escrevendo muito mais no computador; com os cegos está acontecendo o mesmo
efeito, inclusive, pôde-se verificar que está ocorrendo o fenômeno da “desbrailização”, apesar
de alguns dos sujeitos da pesquisa afirmarem que não estão ocorrendo mudanças na sua
relação com a escrita Braille a partir do constante uso do computador. Os cidadãos-cegos, que
acessam informação por meio dessa ferramenta, estão cada vez menos utilizando a leitura e
escrita Braille, não que uma ferramenta esteja sobrepujando a outra, mas, sobretudo, devido à
velocidade de recuperação da informação, ritmo de vida na sociedade atual, ritmo acelerado
de registro, difusão e recuperação da informação, conduz os cidadãos a optarem por
tecnologias que sejam compatíveis com a velocidade da sociedade na qual eles pertencem.
Sem colocar a questão da visão em evidência, não se pode ingenuamente achar que,
pelo fato dos sujeitos serem cegos, desenvolverão, naturalmente, os outros sentidos. A prática
da pesquisa percebeu que, na ausência da visão, os sujeitos necessitam, fundamentadas nos
sentidos remanescentes, construir historicamente suas habilidades.
O computador está, de fato, redefinindo relações de cegos com os diversos suportes,
promovendo, segundo os sujeitos da pesquisa, independência e autonomia no acesso à
informação. Cada vez mais, a informática permite uma leitura distanciada da figura do ledor
que, durante a história, especificamente no período anterior ao nascimento da escrita Braille,
103
foi a principal forma de acesso à informação. Todavia, é necessário que o cidadão-cego utilize
criticamente o computador e não abandone a escrita Braille, pois, o fenômeno da
desbrailização, percebido nas falas dos sujeitos da pesquisa, é uma questão que não se sabe
quais serão os impactos que afetarão no nível cognitivo, já que a leitura tátil é de suma
importância no desenvolvimento de habilidades de cegos. As diversas tecnologias podem
coexistir, não sendo uma excludente da outra.
104
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