UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA
JOÃO HENRIQUE DE SOUZA MORO
O IMPACTO DO CISTIANISMO NO IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO II
CURITIBA
2007
2
JOÃO HENRIQUE DE SOUZA MORO
O IMPACTO DO CISTIANISMO NO IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO II
Monografia apresentada à disciplina
Orientação Monográfica como requisito
parcial à conclusão do Curso de
História. Setor de Ciências Humanas,
Letras e Arte, Universidade Federal do
Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Renan Frighetto
CURITIBA
2007
3
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela força e inteligência que me foi dada.
Ao Professor Renan Frighetto, pela paciência e
orientação.
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................5
CAPÍTULO I ................................................................................................................6
Situação interna e externa do Império ..............................................................6
Cristianismo e Heresias ..................................................................................10
Apologias e ataques pagãos do século II .......................................................11
Autor da Apologia ...........................................................................................13
Obras de Tertuliano ........................................................................................13
Ideal de cristianismo para Tertuliano ..............................................................15
CAPITULO II .............................................................................................................19
Julgamentos dos cristãos ...............................................................................19
Cristãos e Pagãos: conflitos religiosos ...........................................................24
Pouca expressividade do cristianismo: por quê?
Situação Religiosa ..........................................................................................26
Pouca expressividade do cristianismo: por quê?
Heresia: sinônimo de confusão ......................................................................31
Cristianismo: Religião bárbara ou civilizada? .................................................33
CONCLUSÃO ...........................................................................................................34
REFERÊNCIA ...........................................................................................................35
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INTRODUÇÃO
Esse trabalho de conclusão de curso pretende responder o impacto do
cristianismo no império romano no final século II, analisando a Apologia de
Tertuliano. Nesse estudo, pretendo analisar o impacto do cristianismo no império
romano ao final do século II, identificar as caracterizações que a sociedade pagã
fazia deles, mostrar as diferentes reações dos pagãos em relação a essa nova
religião e aos seus seguidores, entendendo essas reações, analisar a política
romana para com os cristãos, determinar a visão dos imperadores sobre essa
crença e seus adeptos e determinar o que o cristianismo afetou na dinâmica da
ordem social romana e na política imperial.
No primeiro capitulo eu comentei sobre a situação política, social e econômica
do império nos governos de Marco Aurélio (161 a 180 d.C.) e Cômodo (180 a 192
d.C.), chegando até a posse de Septímio Severo ao poder imperial (192 d.C.) e a
suas relações com os cristãos. Também introduzirei sobre as heresias que havia
neste final de século, assim como apresentarei as maiores religiões mistéricas que
atraiam os olhares ocidentais. Acrescentarei as discussões historiográficas sobre
todos esses assuntos acima citados. Por último comentarei sobre os escritos pagãos
e as apologias feitas no século II, sobre o autor da apologia que foi analisada, a sua
vida, apresentar seus escritos, sua visão do cristianismo e sobre as comunidades
cristãs de Cartago e da África. No último capítulo, eu analiso quatro capítulos da
apologia que mostram as reações e as caracterizações dos pagãos acerca dos
cristãos e apresento a razão das reações dos pagãos, como também as atitudes do
governo imperial e a caracterização que os últimos dois imperadores do período
Antonino faziam dos cristãos.
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CAPÍTULO I
Esse capítulo pretende apresentar a situação política, econômica e social do
império romano no final do século II, apresentando a situação do império no tempo
de Marco Aurélio (161 a 180 d.C.) até a posse do poder imperial por Septímio
Severo (192 d.C.), expondo as discussões historiográficas acerca desse assunto.
Essa contextualização será necessária para a compreensão do mundo na época em
que aparecem os primeiros apologistas cristãos – dentre eles, Tertuliano - e a
relação entre as autoridades imperiais e a sociedade com os cristãos. Também
comentarei sobre as heresias cristãs que existiam no final do século II com o intuito
de compreender as reações e o pensamento dos pagãos acerca dos cristãos. Por
último, mostrarei um breve comentário sobre as apologias e os escritos dos pagãos
anteriores à produção da Apologeticus de Tertuliano.
Situação interna e externa do Império
Marco Aurélio é visto pelos historiadores mais antigos como o ultimo “bom”
imperador. Gibbon vê nesta “dinastia Antonina” o mais feliz período do império,
como também da história, pois ele afirma que os imperadores buscaram somente a
felicidade do seu povo governado. Olhando superficialmente a história dos
Antonianos, é possível achar isso. Olhando mais profundamente, percebemos que,
além de não ser permitido ao historiador fazer julgamentos e nem generalizações,
havia alguns governados que não eram beneficiados com esse desejo dos
imperadores. A política de Marco Aurélio foi um marco de uma importante mudança
da política imperial com os cristãos - diz o historiador Arcádio del Castillo - pois se
intensificaram as críticas e as defesas, e o cristianismo foi condenado na legislação1,
pois a opinião pública era adversa aos cristãos e porque não praticavam o culto ao
imperador. Também afirma que esta dinastia aumentou a hostilidade e o ódio aos
cristãos. Tácito, Plínio, o Jovem e Suetônio condenarão o cristianismo como uma
superstição nova e ruim ao império. Na verdade o ruim do cristianismo ao estado
1 – ROLDÁN, José Manuel; BLÁZQUEZ, José Maria; CASTILLO, Arcádio Del. História de
Roma: El Império Romano (siglos I-III). Madrid : Cátedra, 1995. p. 490
2 – ROLDÁN, José Manuel; BLÁZQUEZ, José Maria; CASTILLO, Arcádio Del. História de
Roma: El Império Romano (siglos I-III). Madrid : Cátedra, 1995. p. 489
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romano não era a sua periculosidade política, mas a periculosidade dos pagãos do
império: a opinião pública não aceitava os cristãos por motivos diversos2, aos quais
pretendo apresenta-los mais a diante. Acrescenta também Castillo que entre o
governo de Marco Aurélio até o final de Cômodo, houve três momentos distintos na
relação poder imperial-cristianismo3: o primeiro, com a condenação de Justino, os
cristãos eram condenados “por uma culpa individual”; o segundo momento é
marcado pelo processo dos mártires de Lyon (por volta de 177 d.C.). Nesta etapa a
apostasia não o salvava da condenação. Devido à difusão do montanismo nas
províncias da África é que influencia Marco Aurélio a ser mais rígido em relação aos
cristãos. Diz Castillo que a idéia de martírio era comum entre os demais cristãos e
esse grupo de sentimento anti-romano. Já a terceira fase, compreendendo o final do
governo e Marco Aurélio até a morte de Cômodo, é marcada por uma tentativa de
entendimento entre cristãos e autoridade imperial. Já para Daniélou é sobre o
governo de Antonino Pio é que começa uma mudança progressiva na relação
romano-grega com o cristianismo4.
Sobre a economia e a administração no governo de Marco Aurélio, Indro
Montanelli comenta mais do que os demais autores citados acima. Diz o historiador
que o imperador, por amar mais a filosofia, não tinha traquejo para as finanças, às
vezes tendo que ser corrigidas os seus balanços e prestação de contas, e em outras
áreas da economia, pouco era o seu conhecimento5. Também Indro comenta sobre
as invasões bárbaras para mostrar que, em seu governo, a paz não era duradoura6.
Will Durant se prenderá mais sobre as invasões também, colocando todas as
guerras que Marco travou com os bárbaros, mostrando que seu governo foi
turbulento nas fronteiras, podendo afirmar que ele governou “... num tempo em que
a rebelião e a guerra estavam no ar, em diversas províncias e em fronteiras
distantes”7. Seguiu o exemplo deixado pelo seu antecessor Antonino Pio: Quando
ele achava-se em dúvida sobre o que fazer em alguma situação – diz o historiador
2 – ROLDÁN, José Manuel; BLÁZQUEZ, José Maria; CASTILLO, Arcádio Del. História de Roma:
El Império Romano (siglos I-III). Madrid : Cátedra, 1995. p. 489
3 – ROLDÁN, José Manuel; BLÁZQUEZ, José Maria; CASTILLO, Arcádio Del. História de Roma:
El Império Romano (siglos I-III). Madrid : Cátedra, 1995. pp. 490-491
4 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São Gregório
Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 109.
5 – MONTANELLI, Indro. História de Roma. Rio de Janeiro : Record, 1969. p. 340.
6 – MONTANELLI, Indro. História de Roma. Rio de Janeiro : Record, 1969. pp. 337-343.
7 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957. p. 78.
8
Indro Montanelli – “dizia a si mesmo: Age neste caso como Antonino teria agido”8.
Além disso, o imperador prosseguiu com força na reforma da lei que Adriano
começou. Aumentou o número de horas de trabalho dos tribunais e reduziu o prazo
de julgamento. Diz Durant que até ele mesmo sentou e julgou muitos casos em seu
reinado9.
Sendo Estóico Marco Aurélio, podemos resgatar as idéias de Toynbee sobre
religião e história. Como filósofo auto-suficiente, e mais ainda estóico, o exercício
intelectual e a moral do filósofo eram levados a sério. Compartilhavam da idéia de
que era necessário extinguir as emoções humanas como o amor, a compaixão e
outros que demonstrem sentimentos não-egoístas, cultivando o desprendimento.
Sêneca afirmava que a “compaixão era uma doença mental induzida pelo
espetáculo das misérias alheias...” e que uma pessoa sábia não poderia cair nessa
armadilha10. Algumas pessoas viam nele a realização da república de Platão: Marco
Aurélio seria aquele que conseguiu “sair da caverna” e levaria as pessoas para fora.
Ele percebeu que não seria possível, se contentando em melhorar um pouco a
humanidade, como lhe foi aconselhado. Mas essa fama de filósofo-rei tinha a suas
desvantagens e, principalmente, exemplificando a inviabilidade de concretizar o
sonho de Platão. Certas medidas ou leis criadas por ele chamavam a atenção da
população, como a inscrição dos gladiadores nas forças armadas, causando revolta
e comentários: ”Ele quer fazer de nós filósofos”; tirando um pouco de sua
popularidade e mostrando a pouca vontade das pessoas em tornarem-se filósofos.
De certa forma, parece não parecia ser viável em todas as questões a utilização da
filosofia na esfera política. O menosprezo das pessoas comuns, com nenhuma ou
pouquíssima instrução com a filosofia era um forte argumento para revoltas dentro
dos domínios do império, tendo como princípio norteador dessas dinastias a
manutenção da paz – tanto nas fronteiras quanto em nos domínios romanos.
Em relação a Cômodo e o cristianismo, entre Castillo e Waldir Freitas Oliveira
há um entendimento em comum sobre esse assunto. Nas palavras de Oliveira, “foi
tolerante para com os cristãos já numerosos nas terras do Ocidente...”. Castillo
afirma que no governo de Cômodo se tentou um entendimento entre os cristãos e o
8 – MONTANELLI, Indro. História de Roma. Rio de Janeiro : Record, 1969. p. 337
9 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957. p. 78.
10 – TOYNBEE, Arnold. A História e a Religião. Rio de Janeiro : Fundo de Cultura, 1961.
p.104
9
estado. Tanto Montanelli quanto Durant comenta sobre uma moça do harém de
Cômodo chamada Márcia11. Há dúvidas nos dois historiadores sobre a sua profissão
de fé cristã - Castillo e Montanelli afirmam que ela é filo-cristã. Indro indaga como ela
conciliava a sua fé com “aquele amante debochado”. Mas afirma que ela foi útil aos
cristãos, livrando-os de uma provável perseguição e participante ativa no
assassinato de Cômodo, administrando veneno a sua bebida. Juntamente com Vitor,
bispo de Roma, Márcia pediu o perdão dos cristãos exilados, que trabalhavam
forçados em minas12.
Em meio a esses governos, há toda uma dinâmica social desenrolando,
principalmente na área religiosa. Há tempos as antigas religiões locais que
satisfaziam o seu povo foi, aos poucos, sofrendo influências de outras religiões.
Parte dessa culpa vem do intercâmbio cultural facilitado pela conquista do
mediterrâneo. Dessas influências mútuas nasceu um tipo específico de religião,
chamada mistéricas: as religiões mistéricas têm em comum um individualismo
espiritual e acreditam na existência transcendente que é concedida pela deidade:
este bem lhe é dado se a pessoa tiver um comportamento moral e fizer certos rituais
durante a sua vida. Essas religiões se baseiam em certos mistérios e dogmas, de
forma semelhante ao cristianismo. Essas divindades obtiveram esses poderes
porque fizeram alguma coisa notável que as pessoas comuns não conseguem13. A
grande atração que as religiões mistéricas conseguiram na sociedade romana durou
mais ou menos um século e meio: de 150d.C. ao ano 300d.C14. Para discutir sobre
as religiões mistéricas em relação ao cristianismo, Franz König comenta sobre as
religiões helenísticas, Karl Prümm comenta especificamente sobre as religiões
mistéricas e sua relação com o cristianismo. Sobre cultos secretos mistéricos,
Klausner, em seu livro From Jesus to Paul, ele comenta sobre os ritos religiosos
mistérios, principalmente do culto a Átis. Para o presente estudo, trabalharei com
quatro grandes religiões o século II: os cultos egípcios, o culto a Átis, os cultos sírios
e o culto a Mitra. Ao que os historiadores indicam, havia semelhanças de crenças,
11 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957. p.102.
12 – ROLDÁN, José Manuel; BLÁZQUEZ, José Maria; CASTILLO, Arcádio Del. História de
Roma: El Império Romano (siglos I-III). Madrid : Cátedra, 1995. p. 491.
13 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.221.
14 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.222.
10
sendo comum a elas a idéia de que seus deuses morreram e depois de um período
ele voltou à vida, assemelhando-se a doutrina cristã. A estrutura da crença entre as
três primeiras religiões acima citadas são iguais, mudando apenas os nomes dos
deuses, a forma que morre e o porque; além disso, na estrutura da crença
percebemos que a história se desenrola em um casal e um terceiro quebra o vínculo
entre eles causando a morte do homem. Como o deus ressurgiu a vida e o tempo
que ele levou são também os diferenciais de cada uma. A cada detalhe de cada
culto percebemos uma semelhança com o cristianismo, podendo até ser confundido
para leigos que não conheçam as religiões.
Cristianismo e Heresias
Sobre a confusão dos pagãos, também é necessário aqui incluir a influência
das heresias cristãs para entender as reações dos imperadores e o “ódio popular”
que Tertuliano denuncia na apologia Para entender melhor as heresias, Paul
Johnson faz breve comentário sobre várias heresias que existiram desde o início do
cristianismo. As de Marcião, dos Montanistas e a influência do gnosticismo15. Um
maior comentário sobre as heresias do século II encontramos no livro Nova História
da Igreja, de Jean Daniélou e Henri Marrou. Essas heresias mostraram um
cristianismo diferente, às vezes perigoso ao império ou às vezes com rituais
absurdos, macabros e desumanos.
O montanismo caracteriza-se em primeiro lugar a importância atribuída às
visões e revelações. Alguns estudiosos propuseram vermos essa heresia como o
ressurgimento dos cultos frígios de Cíbele e de Dioniso, mas Daniélou aponta para
outra direção. Diz que o montanismo “aparece como um desenvolvimento do espírito
do cristianismo asiático”16, mostrando que a teologia cristã frigia e asiática
desenvolveu não em conjunto com as demais comunidades cristãs do império. O
profetismo e a exaltação da virgindade são características dessa heresia, assim
como a crença do milenarismo que pode abrir essa sede de martírio. Evidencia-se
um sentimento anti-romano, gerando muitas vezes violência contra os romanos
porque eles assimilam a cidade de Roma como se fosse a “cidade de Satanás” e se
15 – JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p. 59.
16 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 120.
11
prendiam a idéia heróica de lutar contra as “forças malignas”, que seria a luta contra
os romanos. Montano foi combatido também pelos seus inimigos por romper
casamentos e oferecer a essas mulheres divorciadas funções eclesiásticos,
deixando claro que elas deveriam unir-se a ele.
Marcião era filho do líder da comunidade cristã em Sinope, no Ponto. Ele foi
mais ortodoxo em certos traços, tais como: oração para o Oriente, salmos e hinos
compostos por cristãos e uma data diferente para a comemoração da Páscoa,
baseado no calendário samaritano. Eles foram criticados por Tertuliano por
permitirem às mulheres poderem exorcizar, por impor as mãos aos doentes e por
deixá-las batizarem. Marcião também defende a continência uma obrigação,
mostrando as influências judeu-cristãs nesta heresia17 e a diferença do Deus do
velho testamento do novo testamento: O Deus “justo” do velho não é o mesmo do
Novo testamento, mais “bondoso”. Tertuliano, em seu tratado Sobre o Batismo (De
baptismo) e o Velamento das Virgens (De virginibus velandis), aconselha e proíbe
que as mulheres exerçam qualquer função ministerial dentro da comunidade18.
Apologias e ataques pagãos do século II
Sobre a defesa dos cristãos e os ataques dos pagãos, só da metade do século
II em diante é que se encontra escritos defendendo a fé cristã, sua legalidade e seu
conteúdo filosófico. Muito dessas apologias não tem autoria, e boa parte delas não
se possui o conteúdo. Por causa de Eusébio é que sabemos que foram escritas e
até alguns trechos que ele copiou para seus escritos. Mas as apologias não são uma
coisa somente do período que analisamos aqui. Segundo Eusébio, a primeira
apologia foi no governo de Adriano, entre 124-125 d.C., mas as apologias de grande
argumentação foram produzidas depois da metade do século segundo. Temos
conhecimento dos mais importantes escritos desse período: Justino e Minúcio Félix.
A obra de Justino só foi conservada uma pequena parte. Além dos escritos sobre
doutrina e de combate a heresias (a de Marcião) ele escreveu duas apologias. A
primeira, Justino manda para Antonino, refutando as acusações que Frontão
imputava aos cristãos, mostrando os rituais cristãos e mostra que o cristianismo tem
fundamentos filosóficos. A segunda destinava-se a Marco Aurélio. Nelas, ele apela
17 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 115.
18 – JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p. 65.
12
para os sentimentos filosóficos, a sua piedade e virtude pois ele afirma que a
doutrina está de acordo com os melhores gregos: Sócrates, Heráclito e Platão.
Mostra a moral cristã e a observação destes às leis romanas, denunciando as
crenças pagãs como imorais. Essa será uma estrutura de apologia muito utilizada
pelos apologistas posteriores19.
Em relação aos escritos dos pagãos, podemos citar Luciano (160 a.C.),
Frontão, Crescênio, e até Celso. Frontão, Mestre de Antonino e Marco Aurélio,
cônsul em 143 a.C. sob o governo de Adriano, afirma que os cristãos adoram uma
cabeça de asno, que imolam e comem crianças nas cerimônias de iniciação e
uniões incestuosas após os banquetes em dias festivos. Suas acusações foram
elaboradas no começo do governo de Antonino. Luciano descreve os cristãos como
“aqueles imbecis”, que são ”desdenhosos dos bens terrenos e querendo que todas
as coisas sejam comuns a todos”20. Em sua Vida de Peregrino, narra um
personagem charlatão, que entra numa comunidade cristã e logo recebe cargos
importantes: ele finge ser profeta, depois eles o nomeiam chefe da assembléia,
começa a interpretar as escrituras, e até compõe outros. No final ele é preso. Os
cristãos lhe presenteiam na prisão e Peregrino sai da prisão, sai da comunidade e
continua a sua vida. Não vê os cristãos como criminosos, mas como pessoas
ingênuas. Também ataca o cristianismo argumentando contra o escrito de Justino.
Ainda no governo de Antinino o filósofo Crescênio possivelmente escreve, entre 152
a 153 a.C. em Roma, as mesmas acusações que Frontão havia feito anteriormente.
Mas o grande debate mesmo começou com Celso. Celso apresenta Cristo e os
apóstolos como pessoas loucas, que acham que são importantes e que a sua
doutrina são junções e empréstimos de máximas tradicionais. Alem disso defende
que o cristianismo constitui um perigo para o império. Daniélou acredita que o
cristianismo já não se apresentava mais como uma seita fanática ou superstição
sem importância, supondo que a radicalização dos pagãos intelectuais exige que
haja intelectuais cristãos21. Para os intelectuais dessa segunda metade do século II,
os cristãos faziam parte do mundo dos mistagogos orientais ao mesmo tempo
inquietantes por seus poderes mágicos e desprezíveis por seus costumes
19 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 111.
20 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957. p. 278.
21 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 108.
13
duvidoso22.
Autor da Apologia
Quinto Septímio F. Tertuliano nasceu em Cartago, por volta do ano 160 d.C.
Era filho de um centurião romano e estudou retórica na mesma em que Apuleio
cursou23. Johnson afirma que o cartaginês era um mestre da prosa retórica e do
polemista. Por vários anos advogou em Roma. A data de sua conversão ainda não
foi descoberta, mas é possível afirmar que só na maturidade de Tertuliano é que se
converteu ao cristianismo. Casou com uma cristã e (diz Jerônimo) se ordenou padre.
Ele utilizou todos os recursos de retórica e de direito romano para defender o
cristianismo da perseguição política e social que sofria e construir uma unidade entre
as comunidades através da elaboração de uma doutrina rígida; para conseguir
dissipar a caracterização que os pagãos faziam dos cristãos e conquistar a
legalidade do culto na lei. Na sua apologia ele levanta mais a fundo a questão
jurídica dos cristãos, dando pouca atenção à discussão filosófica que os antigos
apologistas debatiam. Ele utiliza muito de argumentos jurídicos ao decorrer do seu
escrito para mostrar as falhas de julgamento do caráter cristão, discute a validade
jurídica das condenações de cristãos e analisa das crenças, ritos e cultura pagã para
apontarem falhas, utilizando a razão e até a filosofia pagã.
Obras de Tertuliano
Tertuliano, junto com Minúcio Felix, foram os primeiros a escrever em latim. A
literatura cristã do Ocidente começa com esse dois personagens. A primeira obra de
Tertuliano foi o Apologeticus. Foi escrita num tempo em que os cristãos estavam
sendo condenados por Lesa Majestade e por deslealdade ao império e suas
instituições. Eles sofriam severas torturas e eram condenados a morte. Além dessa
obra, o cartaginês escreveu muitas outras: algumas condenando as heresias que
havia em seu tempo e sobre doutrina cristã, outras para admoestar sobre condutas
cristãs exemplares e outras apologias. Tertuliano foi um doutrinador muito aplicado,
escreveu intensamente a fim de defender o cristianismo e criar uma unidade nas
22 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 107.
23 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957 p. 295
14
crenças. Sobre condutas, percebemos que o autor era extremamente rígido em
alguns aspectos. Um exemplo era o seu ponto de vista sobre a mulher cristã. No seu
escrito titulado ad uxorem, Tertuliano defende que a mulher não pode passar da
segunda noite de núpcias (esse escrito é um testamento espiritual, sendo possível
acreditar que ele teve uma experiência que o levou a pensar deste jeito). Pouco
tempo depois ele irá escrever o De exhortatione castitatis: é ainda mais severo e
rígido com relação à segunda noite de núpcias e outras condutas de mulheres
cristãs. Mais radical ainda sobre as núpcias é o escrito De monogamia, proibindo a
segunda núpcias e outras condutas no casamento. A obra De Cultu Feminarum
impõe certos tipos de vestimentas e ornamentos femininos, prezando que sejam
bem modestos e discretos para não ostentarem riqueza ou não atraírem “maus”
pensamentos nas outras pessoas. Nesta mesma obra ele mostra como ele via a
mulher: ele diz que a mulher era a “porta por onde os demônios entram”, e dizia que
“por causa delas Jesus morrera”24. Tertuliano também discute sobre os véus das
virgens em De virginibus velandis. O cartaginês via a mulher como um peso nas
costas da humanidade, muito mais pecadora que o homem e canal do mal na terra.
Para conte-las, ele impunha diversas condutas rígidas, e até absurdas às vezes,
para controlar o mal que dela provinha. Possivelmente ele teve alguma experiência
com uma mulher que o levou a pensar deste jeito, sendo possível que a sua própria
esposa seja um exemplo para ele escrever assim. De forma mais geral, defende
muitas práticas morais rígidas aos cristãos como um todo na obra De spetaculis.
Existiram também outros escritos por Tertuliano. Várias foram as obras
defendendo uma doutrina cristã: Adversus Iudaecus discorre sobre as controvérsias
Judaico-cristãs. De oratione fala sobre as orações e sobre o pai-nosso; De
paenitentia trata da penitência necessária para receber o batismo; De baptismo
enfoca sobre o batismo, sua invalidade, seu efeito; Em De carne christi ele discorre
sobre a encarnação de Cristo; De resurrectione mortuorum fala sobre a segunda
vinda de Cristo, da salvação do elemento corporal, da exigência do Juízo e da
necessidade da ressurreição; De corona diz que é incompatível o serviço militar aos
cristãos; De idolatria condena toda prática de idolatria e toda atividade o profissão
que esteja em contato com ídolos; No De fuga in persecutione, Tertuliano não
admite a fuga dos cristãos em tempo de perseguição; Em De iriunio adversus
24 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957 p. 297
15
Psychicos defende a prática montanista sobre o jejum e ataque as psychia (os
futuros católicos) acusados de serem laxistas e; De pucticitia onde Tertuliano nega a
Igreja o direito de perdoar os pecados, reservando aos homens espirituais esse
direito. Sobre heresias, foram sete escritos: De praescriptione haereticorum fala mais
sobre o poder de ler e interpretar as escrituras mas comenta sobre algumas heresias
de seu tempo; Em Adversus Hermogenum, o cartaginês defende a doutrina cristã da
criação contra aqueles, entre os gnósticos, que consideravam a matéria eterna; No
escrito Adversus Marcionem condena as idéias de Marcião, que separa o Deus do
velho Testamento do novo Testamento; Adversus Valentinianos mostra as doutrinas
gnósticas valentinianas e as refuta; De anima, em que se discute sobre a natureza,
da origem, do desenvolvimento e do destino das almas e refuta doutrinas contrárias;
Scorpiace condena a influência de idéias gnósticas, mais especificamente sobre o
valor do martírio e; Adversus Praexean é contra o patripassiano (Norlo de Ermirna
acreditava que o Filho é um modo e ser e de manifestar-se do Pai-iniciador)25.
Ideal de cristianismo para Tertuliano
Paul Johnson resume a visão de tertuliano sobre o cristianismo: “...e o pessimista,
convencido da corruptibilidade básica das criaturas humanas e da necessidade do
mecanismo de danação”26. Acreditava que a Igreja era a nata valiosa de “crentes” e
que era necessário defende-la de qualquer influência pagã. O cartaginês
aconselhava que os cristãos devessem diminuir ao máximo suas relações com as
instituições romanas e locais: não prestar o serviço militar, no serviço civil ou mesmo
nas escolas romanas, não deveriam trabalhar com algum serviço relacionado com a
religião pagã. Não via com bons olhos as tentativas racionalistas de Marcião
tentando conciliar a doutrina cristã e a filosofia grega.
Em relação à doutrina alguns podem acreditar que ele era anti-paulino, mas
há várias semelhanças entre eles. Acreditava piamente no poder irresistível da fé, da
dádiva divina da eleição e no “mover do espírito”: via a comunidade cristã sendo
guiada pelo Espírito Santo, via os cristãos sendo movidos pelo Espírito. Achava
importante a comunicação direta entre a divindade cristã e o cristão e exaltava a
25 – BERARDINO, Angelo Di. (org.) Dicionário Patrístico e de antiguidades cristãs.
Petrópolis :Vozes, 2002. pp. 1347-1351
26 – JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p. 62
16
coragem dos mártires27. Johnson acredita que Tertuliano tinha uma visão elitista da
Igreja. Tertuliano condenava os lideres espirituais das comunidades cristãs de
“brandura” nos pecados dos pecadores e decaídos. Apesar de seu apelo e sua
natureza universalista, ele acreditava que a eleição era um processo estrito:
qualquer um poderia ser batizado, mas depois de seu batismo, a pessoa deveria se
abster dos pecados graves (adultério, apostasia, ...), senão não tinha valor algum
sua profissão de fé. Ele afirmava que se ele cometeu era porque nunca tinha
aceitado verdadeiramente e, principalmente, cria que a Igreja não poderia fazer nada
diante desse acontecimento. O cartaginês também introduziu na teologia um
vocabulário jurídico, que marcará a teologia ocidental até hoje, mostra a relação
entre Deus e os homens baseado por leis, em que Deus as faz e o homem tem que
cumpri-las: o pecado seria a desobediência da lei, chamada culpa ou reatus. Já o
contrário, a “ação virtuosa satisfaz (satisfacit) a lei e constitui obra meritória
(promereri)”28.
Mas nem sempre ele defendeu a mesma tese. Houve também mudanças de
opinião no defensor das ortodoxias. Sobre as funções do sacerdócio, ele defendia
uma centralização de funções ao líder espiritual da comunidade (alguns
historiadores chamam de bispados, mas nesse tempo não havia uma generalização
da utilização do título), mas, nos últimos anos de sua vida, ele muda a sua opinião
escrevendo no De Exhortatione Castitatis essas palavras:’... Pois, onde houver três,
existirá uma igreja, ainda que sejam leigos (...) você tem direitos de um sacerdote
em sua própria pessoa, quando surgir necessidade’. Analisando essa situação,
podemos perceber que esses líderes afirmavam poder perdoar pecados graves com
o intuito de manter o seu status dentro da comunidade e legitimar mais ainda o seu
ofício29. O cartaginês acreditava que dava para viver pacificamente com a sociedade
pagã, mesmo tendo diferenças que chegavam a ser opostas, contraditórias, mas
depois Tertuliano compartilhou o ideal de um cristianismo de combate, que não
aceitasse o mundo pagão e ter nenhuma relação com ele.
Nos seus escritos, percebemos que tem a influência de vários clássicos: “o
vigor e a virulência de Cícero, a veia satírica de Juvenal e às vezes rivalizava com
27 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 167
28 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 170
29 – JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p.100
17
Tácito na ácida concentração do estilo”30. Daniélou afirma que Tertuliano possui
umas reminiscências de Lucrécio (na verdade ele cita o clássico autor no escrito De
Anima). Também afirma que Tertuliano também foi filósofo, mas menos profundo do
que u Orígenes. Ele conheceu o médio-platonismo (que foram as influências dos
antigos apologistas), ele utiliza algumas expressões do estoicismo mas com o tempo
tenta colocar na teologia cristã a filosofia estóica em partes iguais, tem influências de
Albino em seus pensamentos e de Platão (mas futuramente ele não a utiliza mais).
Recusa qualquer idéia do meio alexandrino31.
Sobre a comunidade e a região em que o apologista viveu, há algumas
considerações a fazer. Daniélou acredita que o cristianismo chegou a Cartago em
fins do primeiro século. Ele coloca essa possível data porque utiliza Tertuliano que
diz: “Enchemos vossas praças, vossos mercados, vossos anfiteatros”. O fenômeno
de a comunidade cristã ter um número considerável de adeptos só é possível se
houvesse um grande período de tempo de proselitismo cristão32, afirma ele. Aquela
região tem grandes quantidades de comunidades judias, facilitando um pouco as
primeiras conversões. Não se sabe como a evangelização se processou na África,
mas Johnson coloca evidências de que o proselitismo cristão nessa região e no
litoral da África tenha sido feito por essênios e zelotes cristãos, assimilando uma
tradição de militância e resistência à autoridade33. Antes que o cartaginês e
convertesse, a África apresentava: um povo cristão de origem acentuadamente
latina, povo numeroso, mas com uma cultura que é praticamente só grega34.
Tertuliano vivia num Cartago nas últimas décadas do séc. II muito peculiar:
entusiasmada,
grandemente
corajosa,
inteiramente
desafiadora
perante
as
autoridades romanas, intolerante, intransigente, perseguida e violenta. Em relação à
Igreja em Cartago, ela tornou-se um baluarte de resistência púnica às idéias
romanas. Desde seu início, era um repositório da cultura cartaginesa, além de
sempre constituir um forte elemento judaico.
Nos anos finais de sua vida, Tertuliano entre para o grupo herético montanista.
30 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957 p. 295
31 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 170
32 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 165
33 – JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p.63
34 – DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a São
Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973. p. 166
18
Olhando rapidamente para o fato, parece incoerente, ou parece que o doutrinador
implacável perdeu a razão por causa de sua velhice. Mas temos que levar em conta
de que muitas coisas aconteceram, muitas críticas foram feitas, não somente as
comunidades heréticas e seus líderes, mas também as demais comunidades cristãs
que eram “normais”. Houve sim muitas críticas aos montanistas, mas Tertuliano via
nela coisas em que ele admirava. Uma delas é a valorização do martírio. Outra é de
que Tertuliano, sendo cartaginês, tinha suas desavenças com as autoridades
romanas, já demonstrando bem antes em seus escritos. Acrescenta-se a isso a
rígida moral montana, que também Tertuliano admirava e as desavenças com as
outras comunidades por causa de doutrina - como o caso da centralização das
funções do sacerdote, das questões do direito de poder perdoar pecados graves e
da tentativa de incorporar elementos da filosofia grega - faz com que ele opte pelos
montanistas. Vale aqui afirmar que esse grupo herético tem algum mérito moral, pois
fez com que Tertuliano, uma pessoa da envergadura de Tertuliano, com prática e
ideal de uma fé ardente e moral rígida, uni-se a eles35.
35 – JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p.65
19
CAPÍTULO II
Tertuliano escreve essa apologia em defesa da profissão da fé cristã no
império, argumentando sobre as qualidades dos cristãos e os defeitos dos pagãos.
Em alguns capítulos, o cartaginês denuncia as injustiças feitas pelos juizes aos
cristãos nos julgamentos, argumenta que os cristãos não são responsáveis pelas
calamidades que acontecerem por pedidos deles e mostrar como é essa religião
realmente: seus ritos, crenças e doutrinas, diferenciando ela das demais religiões
existentes no Império e fora dele. Ele utiliza-se muito de analogias e de
comparações para argumentar a favor da religião cristã.
Julgamentos dos cristãos
Ao longo do texto, percebemos que ele denuncia uma atitude dos pagãos:
aos cristãos eram-lhes imputados crimes que vão desde pequenos delitos até crimes
abomináveis: “por ventura dirá você que não apura outros crimes nas torturas exceto
o nome cristão, porque se presume que todos os pecados caminham atados nele”1.
Também é possível notar argumentos mostrando que os cristãos não são criminosos
ou para negar denúncias dos pagãos tais como: homicida, de sacrílego, de
incestuoso, de público inimigo2 e de praticarem orgias. No capítulo II, Tertuliano
condena as injustiças cometidas pelos juizes romanos por não investigarem as
denúncias dos pagãos contra os cristãos, não fazerem o processo correto do
julgamento e cerceiam os direitos deles. Diz o autor que os juizes viam os cristãos
como criminosos, passíveis de fazerem qualquer tipo de delito. Com essa crença,
eles somente tiravam deles a confissão de sua fé: “Você pensa que o cristão é
criminoso de toda a maldade? Que é homem tão mau que ele transgrediu contra os
deuses, contra imperadores, contra leis e que é o inimigo público do mundo e da
natureza, ...”3. Retirado do acusado a confissão de sua fé, eram condenados como
1 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.20.
2 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.19.
3 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.22.
20
criminosos somente por isso. Diz ele ainda que os juizes aplicassem torturas para
eles negarem as suas crenças e assim inocentá-los de qualquer acusação; e que os
juizes são forçados a julgar contra as leis por forças políticas e sociais. Tertuliano
acreditava que a falta de uma investigação maior do governo imperial em relação
aos cristãos e as suas práticas religiosas conduz a um pensamento superficial dela,
assim reproduzindo essas idéias ao povo romano. Temos que ter em mente que
esse tratamento diferenciado dos juizes era uma conseqüência. Lembremos que o
culto imperial era a religio civilis, religião oficial do império e obrigatória a todas as
pessoas do império de praticá-la. Quem não cultuava o imperador, era acusado de
Lesa Majestade e quem não adorava os deuses era acusado de sacrilégio.
Em todo o império havia culturas diversas, cada uma com as suas expressões
culturais, com várias religiões e crenças múltiplas. Os romanos adoravam
principalmente as suas instituições como ídolos, uma adoração por demais remota,
impessoal e distante para conquistar afeição das pessoas4, pois não despertava
neles uma emoção semelhante a adorar a deusa Atenas Políade, ou cultuar o sol,
ou a um deus local. Indro Montanelli acredita que Antonino Pio foi um dos últimos
romanos a acreditar sinceramente nos deuses romanos5. Numa “babel” de culturas,
a lealdade ä autoridade imperial e as instituições romanas eram fracas: a falta de
semelhanças entre os cultos locais e a cultura romana geravam conflitos, podendo
causando tumultos e revoltas nas cidades. Também era incumbência de Roma
trazer a civilização, a paz e a segurança a todos aqueles que estivessem em seus
domínios. Os romanos sentiam a presença de muitos estrangeiros em seus
domínios, e cada um deles com a sua cultura, com a sua religião e estio de vida. O
senado combatia as mais diversas crenças religiosas as quais eles achavam ser
abjetas e perversas, mas na maioria das vezes concedia aos seus praticantes o
direito de cultuar seus deuses6. Ao império era fundamental alguma expressão
cultural que unisse as pessoas com Roma, algo que os fizesse sentir parte do
império e que fosse comum a todos7; enfim, que gerasse cooperação, concórdia e
paz entre as pessoas e as instituições romanas.
4 – TOYNBEE, Arnold. A História e a Religião. Rio de Janeiro : Fundo de Cultura, 1961.
p.76.
5 – MONTANELLI, Indro. História de Roma. Rio de Janeiro : Record, 1969. p. 337.
6 – GIBBON, Edward. Declínio e queda do império romano. São Paulo : Companhia das
Letras, 1989. pp.49-50.
7 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.214.
21
Para os romanos a alternativa de lealdade, num tempo em que a religião
invadia todas as esferas da vida pública e privada8, um dirigente endeusado era uma
forma mais eficaz de atingir esse objetivo. Há muito tempo essa política de
unificação cultural era implantada, começando o processo de divinização do
imperador desde Tibério. Ao longo do processo, o culto ao imperador tornou-se um
dever cívico, uma obrigação que os cidadãos deveriam cumprir. No inicio do
processo de deificação, no oriente, o culto teve uma receptividade maior. Cada vez
que a cultura oriental influenciava o império, o culto ao imperador era mais praticado.
A legitimação do culto ao imperador foi tirada das idéias orientais: a idéia persa de
hvarenó9; ou o imperador identificando-se com algum deus antigo ou novo já
existente; ou ainda identificar-se como representante de algum deus. Entrando em
conflito de crenças, os cristãos recusavam-se a praticar o culto ao imperador pois
eles adorariam um humano e só Deus era divino ou porque eles sacrificariam aos
deuses pagãos pela saúde do imperador, num tipo de idolatria. Quando não
praticavam o culto ao imperador, implicitamente a pessoa estaria contra o imperador
e contra as instituições romanas. A tudo isso, Tertuliano argumenta porque os
cristãos não praticavam o culto ao imperador e a razão pela qual eles não admitiam
que a autoridade imperial fosse divina, dedicando dois capítulos10. Pela recusa de
cultuar o imperador, os cristãos não eram considerados cidadãos; não sendo
cidadãos, não tinham direitos. Por isso tinham aquele tipo de tratamento que o autor
da apologia denunciava. Eram tratados como estrangeiros; Além disso, o que
pesava mais nos julgamentos é que eles eram passíveis de sofrerem a flagitia: a
condenação por participarem de rituais contrários à moral. E mesmo que
conseguissem a absolvição como inocentes de praticarem coisas imorais, poderiam
ser submetidos a atos culturais que não poderiam fazer por causa de sua doutrina
que era sacrificar aos deuses. Não cumprindo essa ordem, eles eram condenados
por pertinacia. Até quando o cristão era acusado de ter cometido outros crimes a
utilização de torturas para retirar do réu a confissão11 e depois da confissão era
8 – TEJA, Ramón. El Cristianismo Primitivo em la Sociedad Romana. Madrid : Istmo, 1990.
p. 30.
9 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.214.
10 – Nos capítulos XXXIII e XXXIV, Tertuliano argumenta porque os cristãos não acreditam
que o imperador era divino e porque não o adoravam.
11 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.22.
22
permitida por que os cristãos não cultuavam o imperador.
Sobre a política imperial devemos aqui comentar sobre a relação de Marco
Aurélio e os cristãos, acrescentando as suas diferenças. Marco Aurélio foi desde
cedo iniciado em várias ciências: retórica, filosofia, direito romano, gramática e
outras ciências, como também nas artes e desde cedo foi iniciado no serviço dos
templos, conseguindo até decorar todas as palavras da antiga e ininteligível
liturgia12. Mas ele sempre gostou muito de seu professor de filosofia. Desde cedo já
adotava os ideais estóicos: diz Durant que ele preferia dormir no chão, usava
somente os capotes que os filósofos vestiam; deixando claro que ele levava a sério
esse estilo de vida e sua ‘devoção’ a filosofia13. Em seu mandato imperial, ele nunca
largou seus ideais estóicos aprendidos em sua infância, influenciando as suas
decisões. Amor e Compaixão eram emoções extinguidas de um filósofo estóico14,
sendo visível nas atitudes de Marco Aurélio. O cristianismo é justamente o oposto,
sendo grandes virtudes a demonstração de amor e compaixão, entrando em conflito
no campo das idéias com a filosofia.
Sobre a influencia de grupos sociais e de forças políticas nos julgamentos dos
cristãos, Tertuliano acusa que há grupos sociais que influenciam os julgamentos:
“(...) deveria causar suspeita em homens sábios pensar que há um pouco de força
de domínio escondida aqui que furiosamente agarra você para julgar contra a
natureza da justiça, contra o estilo dos tribunais, contra a disposição das leis”15. No
início da fé cristã ela era perseguida pelas autoridades religiosas judias que não
queriam que essa seita conseguisse adeptos entre os judeus. Naquele tempo eles
tinham alguma força política nas províncias. Dependendo da localidade, eles
usufruíam de maior influência com as autoridades romanas. No final do século II, a
força política dos sacerdotes judeus era pouco significativa, pois desde a revolta
judia em Jerusalém perderam o seu direito de culto, além dos romanos terem
destruído o templo. No tempo do autor da Apologia, os judeus resumiam-se em
pequenos grupos nas grandes cidades comerciantes do império. Se havia algum
grupo influenciando qualquer julgamento, só era possível grupos locais organizados
12 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957. p.75.
13 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957. p.76.
14 – TOYNBEE, Arnold. A História e a Religião. Rio de Janeiro : Fundo de Cultura, 1961.
p.104.
15 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.21.
23
que foram prejudicados pelos cristãos é que reclamavam e poderiam ter influência
política para induzir julgamentos parciais.
Neste mesmo capítulo, Tertuliano mostra-se pasmo e confuso com a resposta
de Trajano a Plínio, o Jovem, não respeitando os processos judiciais da época, não
respeitando os direitos e indo contra o Senado-consulto16; dando assim a entender
que se os juizes não respeitarem as leis promulgadas pelo senado, estão contra o
império; e ao imperador, se não obedecer ao senado-consulto, tirará o domínio civil
e implantará um poder tirânico. Tertuliano afirma que eles não investigam o caso,
indo contra as leis; e depois da confissão, os absolve se abjurassem, novamente
contrariando as leis que previam que fossem condenados e pagassem as penas
impostas. No caso da abjuração, a pessoa renegava a suas crenças e deveria
sacrificar aos deuses como prova de que havia de fato não seria mais cristão. Era
por causa disso que a pessoa era liberada da punição, pois o que o juiz cobrava era
uma forma de pena. Interessante notar que parece que os juízes ainda utilizam esse
texto como lei para os processos dos cristãos. Aqui Também podemos perceber que
os cristãos eram conhecidos pelas autoridades romanas, pois Plínio, o Jovem já
tinha julgados vários cristãos em sua província. Os governadores de província
sabiam da existência dos cristãos, mas desconheciam seus cultos e crenças. Nas
resposta de Trajano percebemos que eles já admitem que os cristãos sejam
culpados, e somente há a dúvida em relação ao procedimento do julgamento e
sobre a pena de sua condenação, deixando indignado Tertuliano, pois ele defende
que o nome cristão não é criminoso. Mas nos julgamentos, a condenação era certa
para os cristãos, pois eles realmente não cultuavam o imperador e admitiriam isso
perante a autoridade romana se fossem inquiridos. E se admitiam o crime, não era
necessária mesmo uma investigação porque já conseguiram uma confissão do
acusado. Na verdade parece que os juizes tentam perder menos tempo possível
com os julgamentos dos cristãos.
Uma das maiores revoltas que Tertuliano demonstra no capítulo II é dos
pagãos acusarem os cristãos de homicidas, incestuosos, infanticidas, de inimigos
públicos e de praticarem rituais “bárbaros”, desumanos e as autoridades romanas
não investigarem. O texto deixa claro que na região do apologista, os cristãos tinham
essa má fama. Cristão era sinônimo de criminoso. Os juizes acreditavam que todos
16 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.21.
24
os cristãos cometiam esses crimes em suas reuniões, só precisando tirar do
acusado a confissão de ser cristão. Tertuliano acredita que essa má fama é gerada
pelo ódio popular; e o ódio popular era gerado pelo desconhecimento a religião
cristã: “bem se infere que os que detestam a religião cristã a aborrecem porque não
a conhecem,...”17. Ao povo, o cristianismo ainda era um culto misterioso. Praticado
fora da vista das demais pessoas e em lugares pouco visíveis (cavernas, nas casas
e em galerias subterrâneas), os pagãos levantavam dúvidas em relação à conduta
deles e as suas práticas religiosas. Dessa maneira, não seria anormal pensar que os
cristãos praticavam ritos “macabros” em suas reuniões; e boa parte das reuniões era
feita nas casas deles, sendo possível a mentes mais humildes achar que faziam
orgias, incestos e de até matar crianças. Devido a essas suposições, os pagãos
poderiam crer que os cristãos invocavam as desgraças naturais e sociais contra as
pessoas18; que eles oravam para trazer catástrofes. Não era difícil acreditar nisso,
porque desde Nero já ouve uma tentativa de culpar os cristãos, fazendo deles como
“bodes expiatórios”. Ao longo desses dois séculos a seguir, não seria impossível crer
que algum outro governador de província utilizasse a mesma tática ou até a própria
sociedade, encabeçada por algum agitador, culpá-los.
Cristãos e Pagãos: conflitos religiosos
Mas creio que a imputação da culpa aos cristãos pelas desgraças naturais e
sociais era por causa da depreciação dos deuses pagãos e dos cultos tradicionais19.
Aqui é válido lembrar que as divindades pagãs tinham os seus poderes e que eles
representavam alguma força da natureza ou apresentavam algum caráter humano
ao extremo. Alguns exemplos eram: Ceres, deusa romana, que cuidava das
plantações; Netuno, deus dos mares, Júpiter, deus romano da guerra; etc. A cada
um era “incumbido” algum poder sobre a natureza. A adoração a eles era uma forma
de agradá-los para que ele os abençoasse com boas colheitas, com mares
tranqüilos, com vitórias nas guerras e etc. A adoração a esses deuses era
fundamental para a manutenção da ordem da natureza, da prosperidade dos
17 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.16.
18 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.105.
19 – TEJA, Ramón. El Cristianismo Primitivo em la Sociedad Romana. Madrid : Istmo, 1990.
p.30.
25
trabalhos humanos e da permanência do império. A não adoração aos deuses
deixaria as divindades irritadas; e irritados, trariam alguma desgraça: más colheitas,
mares turbulentos, derrotas nas batalhas e outros. Em algumas cidades, era público
que os cristãos não adoravam os deuses pagãos nem sacrificavam a eles. Quando
acontecia alguma desgraça, ao povo era imediato, no seu pensamento, culpar os
cristãos por não terem adorado os deuses. Juntando a isso, a reprodução do
sentimento anti-judeu que já havia no tempo do fundador da religião cristã, ao longo
do tempo, foi passando para os cristãos20). Além desta questão, e analisando a
situação moral e religiosa do império, conseguimos perceber que há uma
depreciação em relação à antiga religião romana. Ela já não mais satisfazia as
necessidades e nem lhes causava nenhuma emoção ao cultuar os antigos deuses.
Há muito tempo à sociedade romana vivia numa atmosfera em que pouco a pouco
os valores e proposições tradicionais começavam a se evaporar. Boa parte desse
fenômeno se deve a grande atração pelas coisas orientais: as trocas culturais com o
oriente: tanto as diferentes formas culturais como as religiões e até bárbaras.
Além disso, algumas práticas religiosas cristãs eram semelhantes as dos
pagãos, sendo possíveis algumas comparações: “...Esta suspeita nasceu de nos ver
rezando para o Oriente, e que nós celebramos no dia do sol nossa festa”21. Também
essas relações nasceram de pagãos que diziam quem eram os cristãos: “Mas uma
impressão nova de nosso Deus mostrou nesta cidade estes dias, depois de um
gladiador que foi condenado escapou dos animais selvagens, (...), ele tirou uma
imagem com esta inscrição: "O deus dos cristãos: Ononichites "”22, fazendo uma
caracterização errônea dos cristãos ou reproduzindo idéias já existentes no
pensamento pagão. Frontão afirmava que o Deus dos cristãos era uma cabeça de
jumento, por causa da relação existente entre o cristianismo com o judaísmo. Essa
idéia parecia que ainda era forte no final do século II porque Tertuliano ainda refuta
essa afirmação, falando que Cneo Pompeyo, quando conquistou a cidade, não viu
nenhuma imagem de jumento quando entrou no lugar sagrado do templo de
Jerusalém23. Essas muitas suposições dos pagãos e o reforço de idéias existentes
20 – TEJA, Ramón. El Cristianismo Primitivo en la Sociedad Romana. Madrid : Istmo, 1990.
p.30.
21 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.56.
22 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.56.
23 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.55.
26
criavam uma confusão em relação aos cristãos e suas crenças, sendo difícil aos
próprios praticantes a exposição das crenças.
Interessante notar que o cristianismo ainda não tinha uma identidade formada
no pensamento social romano, mas ele era conhecido ou pelos menos os pagãos
sabiam da sua existência. Intrigante notar que o cristianismo já era conhecido, mas
era visto superficialmente e eram feitas comparações simples com as demais
crenças existentes. As diferentes correntes teológicas dentro do cristianismo e a
reprodução de preconceitos conduziam os pagãos a acreditar em práticas religiosas
que chegavam até ser absurdas ou não conhecerem mesmo seus rituais. Neste
aspecto, o cristianismo ainda não era uma religião demasiado conhecida pela
sociedade romana do século II. Mas porque ela era analisada superficialmente?
Pouca expressividade do cristianismo: por quê?
Situação Religiosa
Alguns aspectos auxiliam a compreensão da pouca expressividade do
cristianismo no final do século II. A primeira é que o contexto religioso da época não
era propício para a difusão de uma religião que acredita em um único deus. O
mundo mediterrânico passou séculos acreditando no politeísmo. Em quase todas as
religiões da antiguidade percebemos um panteão de deuses para a explicação de
sua origem e da natureza. No contexto de Tertuliano, até a filosofia apoiava a
existência de vários seres divinos para poder explicar o que rodeava o homem. As
pessoas estavam acostumadas à idéia de haver outros deuses e não viam
problemas em adorar outros deuses, pois os deuses eram, no final das contas, os
mesmos, mas com nomes diferentes.
Vale a pena aqui expor um pouco as religiões existentes no império, mostrar
qual era os grupos sociais e econômicos que praticam e as semelhanças de ritos e
de crença com as cristãs. No mundo imperial romano do século II, havia três tipos de
religiões: Os cultos greco-itálicos; os cultos tradicionais locais e; os cultos mistéricos
dos deuses orientais24. Apesar de poucas pessoas ainda praticarem, os cultos aos
deuses romanos e gregos eram praticados nas suas terras natais, sendo ainda
23 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.55.
24 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.213.
27
cultuados pelos senadores romanos. Para muitos senadores, as crises políticas e
sociais eram causadas pela abstenção dos romanos e das autoridades imperiais de
cultuar os antigos deuses romanos do tempo da República. A influência pagã
romana no cristianismo é expressiva com os escritos de Platão. Da religião dos
romanos, algumas poucas coisas foram incorporadas naquele tempo, somente
tendo bastante influência depois do século IV d.C. Não eram bem vistos pelos
cristãos os cultos greco-itálicos pois ainda estavam relacionados com a autoridade
imperial romana, sendo combatido qualquer idéia provinda dessas culturas
religiosas. Os cultos tradicionais locais trabalham com a coletividade, com a ordem
da comunidade local em geral, Os praticantes eram de grupos trabalhadores como
artesãos, pescadores e outros grupos e corporações, sendo assim minorias no
conjunto da sociedade imperial romana no século II.
O mais interessante notar é que no meio do século II inicia-se uma maior
influência das religiões orientais no império, principalmente as mistéricas. Karl
Prümm afirma que as religiões mistéricas nasceram num processo de individualismo
unilateral e a relação com o problema existencial do homem25. As religiões
mistéricas têm em comum um individualismo espiritual e acreditam na existência
transcendente que é concedida pela deidade: este bem lhe é dado se a pessoa tiver
um comportamento moral e fizer certos rituais durante a sua vida. Essas religiões se
baseiam em certos mistérios semelhantes as do cristianismo. Essas divindades
obtiveram esses poderes porque fizeram alguma coisa notável que as pessoas
comuns não conseguem. A grande atração que as religiões mistéricas conseguiram
na sociedade romana durou mais ou menos um século e meio: de 150d.C. ao ano
300d.C26. No tempo de Tertuliano, elas tinham uma grande força social e política.
Essas religiões abrangiam grande parte dos grupos sociais romanos: desde os
mercadores, comerciante, soldados, burocratas, trabalhadores rurais, até para as
autoridades locais e imperiais; enfim, elas eram praticadas por quase todos os
grupos sociais. Entre essas muitas crenças mistéricas, destaco aqui as mais
praticadas no tempo da produção da apologia: os cultos egípcios, o culto a Átis, os
cultos sírios e o culto a Mitra. Esses quatro cultos são interessantes porque, além de
25 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.185.
26 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.222.
28
terem muitos adeptos, tem semelhanças com o cristianismo em seus rituais e/ou nas
suas crenças.
Nos cultos egípcios há como maiores expoentes o culto a Ísis ou a Osíris.
Para os antigos adoradores, a crença nesses deuses não incluía em um princípio de
idéias de cerimônias mistéricas. O mistério baseia-se no episódio antigo do
assassinato de Osíris e da busca de Isis pelos pedaços de Osíris espalhados pelas
margens do Nilo. Em um dos ritos, a pessoa que queria iniciar-se deveria
apresentar-se em público como um deus e chamava a ele mesmo de renascido27.
Assim como acreditavam os cristãos que quando eles eram batizados, diziam que
foram renascidos, no culto a Ísis podemos perceber semelhanças nesse ritual, além
de acreditarem que o seu Deus e os seus deuses voltaram a viver depois de mortos.
Alguns historiadores acreditam que essa crença é anterior a era cristã, sendo
possível ver a prática dessa cerimônia no Império Médio28, mas as cerimônias
chamadas “descoberta de Osíris” eram celebradas no ocidente na época helenísticoromana.
O culto sírio mais praticado era uma versão “nacional” do mito do “achado de
Osíris”, em que o herói é Adonis, esposo da mãe natureza chamada Atargates. Um
pouco diferente é a história: ele morre não por um rival mas por um javali que invade
a sua casa. As mulheres choravam a morte de Adonis todos os anos em duelos
violentos entre elas, ferindo a si mesmas. Ao final encontrava-se a imagem de
Adonis que havia sido escondida especialmente para aquela cerimônia e enterravam
a imagem do deus. Esses adoradores acreditavam que um dia depois do
sepultamento, Adonis voltava a viver29 e, depois de alguns dias, os adoradores de
Adonis celebravam alegremente a sua volta.
O culto a Átis, vindo da frigia, é semelhante ao sírio, porém Átis não foi morto
por um animal, mas por ter mutilado a sua própria genitália, por ter sido infiel a
Cibeles, sua esposa. Alguns historiadores afirmam que os seus adoradores
acreditavam que Átis havia voltado à vida, mas não há um escrito daquele tempo
que confirme.
Em todos esses cultos orientais, percebemos semelhanças entre eles que
27 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.193.
28 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.192.
29 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.195.
29
são interessantes: primeiro, Osíris, Átis e Adonis não eram exatamente deuses, mas
semi-deuses. Eles eram humanos que ou conseguiram fazer coisas fora do alcance
dos humanos comuns, ou um dos pais era um deus e o outro um humano. A esses
semi-deuses não era possível, depois de mortos, viverem no lugar onde os deuses
moravam. A eles é dado algum crédito por terem ressuscitado e conseguirem ter
uma existência além dessa. Ao conseguirem voltar a viver, eles possibilitam aos
humanos comuns uma existência depois da morte ou no mundo dos deuses ou em
outro lugar (Campos de Eliseu por exemplo) através deles. Para eles conseguirem
uma vida após a morte, era preciso adorar esses deuses em cerimônias e praticar
certos rituais para ingressar nesses cultos. Alguns desses cultos eram até secretos,
como o culto a Átis. Também compartilhavam da crença que nos banquetes os
adoradores acreditavam que comiam coisas magicamente simbólicas dos seus
deuses. Creio que para alguns pagãos, o cristianismo era somente mais uma
religião que acreditava num herói que morreu, mas no fim ressuscitou e garante aos
seus seguidores uma existência após a morte, como as demais religiões mistéricas
orientais diziam, dificultando a sua visualização na sociedade.
Não sendo muito diferente, o culto a Mitra é desenvolvido com essas
características peculiares acima mostradas. Ela é construída com as bases míticas
indo-germânicas (procede do círculo cultural dos agricultores30) com grande
influência grega. O centro do mito de Mitra é que Apolo pede que o jovem deus rapte
o touro da lua e sacrifique o touro e ele faz isso. A representação da cena do
sacrifício mostra uma forte influência helenística através do leão que simboliza a
força e da serpente que representa a encarnação da terra. É imputado ao deus Mitra
o poder da salvação, por ter raptado o touro lunar que contem em si a fertilidade
cósmica, capaz de dar vida aos mortos. Ao final da lenda, Mitra luta com o deus sol,
Hélios, em que no final termina com uma reconciliação: Hélios leva Mitra consigo no
seu carro solar e leva-o às alturas. Esse culto é mais semelhante às crenças cristãs
porque não é só possível fazer uma analogia da ascensão de Cristo aos céus com a
de Mitra, mas também do poder de Cristo de dar vida aos seus seguidores como
esse jovem deus poderia. Além disso, o mitraísmo tinha uma crença escatológica
que seguramente se baseava nos mistérios persas e nos mistérios de Mitra os
adoradores recebiam o pão e a água consagrados, de forma semelhante ao
30 – PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las religiones de la
tierra. Madri : La editorial catolica, 1956. p.203.
30
simbolismo da carne e sangue de Cristo pelo pão e vinho. Essa religião cresceu
muito na sociedade romana, principalmente dentro do exército, através dos
soldados, sendo difundida a muitos lugares, principalmente nas fronteiras do
império. Além disso, por ter bastante de seus adeptos nas fileiras do exército,
usufruía de certo poder político na época vivida por Tertuliano.
Tertuliano nega algumas crenças imputadas pelos pagãos sobre os cristãos e
sua religião, nos aspectos ritualísticos e de doutrinas: “Por isso eu acredito que não
há nenhuma coisa ruim dentro de nossa religião...”31. Percebemos que era possível
aos pagãos confundem o cristianismo com outras religiões por causa de certos
rituais ou crenças semelhantes às demais, mostrando que o cristianismo ainda não
está solidamente formado como uma religião, mas ainda é encarado ou como uma
seita judaica ou um segmento de uma outra religião mistérica. Acrescentando a isso
os “preconceitos” estabelecidos pelos romanos aos judeus são reproduzidos aos
cristãos, como se fossem da mesma religião e tivessem o mesmo caráter. Também
era comparado com religiões orientais, ou filósofos ou pessoas que tinham práticas
espirituais (bramares, gimnosofistas32), tidas pelos romanos como “bárbaras”.
Tertuliano tenta entender o porquê “censuram por absurdas”, feitas pelos
adoradores de imagens e objetos, a adoração da cruz de madeira dos cristãos. A
adoração da Cruz era a devoção mais freqüente na Igreja Primitiva. Tertuliano
compara a adoração cristã com a veneração a Palas Atenienses33. Diz que a cruz de
madeira era semelhante a das palas que representavam a deusa: um tronco de
madeira, bruto, colocado nas hortas para a deusa Ceres Farrea era igual a dois
troncos de madeira cruzados. Eram somente troncos de madeira dispostos em
formas diferentes. Além disso, A cruz era somente uma representação do seu Deus,
e não a divindade própria; Pelas palavras do autor, os romanos não toleravam esse
tipo de adoração: era algo repugnante e mórbido essa veneração, pois a cruz era o
instrumento de punição para crimes de alta gravidade. Eram ali que criminosos
penavam, sofriam e agonizavam até morrer pendurados nelas. Essa veneração a
morte só é encontrada no século II na religião hindu, religião “bárbara” para as
autoridades imperiais. Nos cultos hindus, as divindades necessitavam de sacrifícios
31 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.20.
32 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.109.
33 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.56.
31
para elas ficarem satisfeitas. Neste tempo, ainda era comum os sacrifícios humanos.
No culto a morte funcionava assim também. As pessoas poderiam utilizar essa
veneração a cruz para explicar os rituais macabros que imputavam aos cristãos
acima citados, como também acreditar que os cristãos eram como esses adoradores
hindus da morte ou até eram hindus.
Pouca expressividade do cristianismo: por quê?
Heresia: sinônimo de confusão
Se na sociedade romana o cristianismo era confundindo com outras religiões
por ter semelhanças em suas cerimônias e crenças, até para os próprios cristãos era
difícil saber quais eram os rituais praticados, pois não havia uma unicidade de ritos
em todas as comunidades cristãs. Paul Johnson afirma que os líderes das
comunidades cristãs ainda “exerciam sua autoridade mediante dons do Espírito, não
em virtude do ofício”34. Os dons mais bem quistos eram o da profecia e da pregação.
O dom da profecia tem por característica a revelação: tanto do futuro ou do passado
e/ou revelações de palavras de uma divindade, Tendo isso como referência, é
possível acreditarmos que os rituais cristãos não eram iguais em todos os lugares
por terem diferentes “revelações”, sendo possível a afirmação de que o culto cristão
ainda era desorganizado (apesar de alguns ritos serem comuns), pois não havia um
controle específico35. Em muitas comunidades cristãs havia um ritual chamado ‘beijo
do amor’: na grande maioria delas era de homem a homem, e mulher a mulher; Em
algumas não havia essa distinção. Muitos participantes sentiam um prazer nada
teológico, fazendo com que Tertuliano ficasse na oposição à prática nesta cerimônia,
afirmando que isso tinha um fundo sexual36. Depois do século III esse ritual foi
gradualmente desaparecendo. Com esse tipo de ritual, os pagãos tinham
argumentos para afirmar que os cristãos praticavam orgias em seus ajuntamentos.
Também os pagãos acusavam os cristãos de infanticidas; diziam que eles utilizavam
as crianças para sacrificarem nos seus cultos. Essa prática era comum em religiões
secretas. Provavelmente essa crença do povo nasceu por causa de algumas
comunidades cristãs que tinham uma espécie de orfanato: Os cristãos recolhiam as
34 – JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p. 59.
35 – JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p. 59.
36 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957. p.279.
32
crianças abandonadas, batizavam-nas e criavam-nas com os recursos próprios37.
Aqui podemos perceber que as denúncias não eram geradas do nada, como
Tertuliano dá a entender, mas eram pouco ou bastante fundamentadas em rituais ou
em serviços: as heresias eram o que mais davam razões para os pagãos afirmarem
e suspeitarem de cultos absurdos e imorais praticados pelos cristãos.
Neste mesmo tempo, surgiram grandes heresias dentro do cristianismo: as de
Marcião, dos Montanistas e a influência do gnosticismo38. Destaco aqui um traço
ritualístico que poderá exemplificar que as heresias confundiam os pagãos em
relação à doutrina cristã: Em Marcião, entre outros aspectos doutrinários
divergentes, exigia da sua comunidade que fizessem oração para o oriente. Essa
era uma prática religiosa da Persa, comum dos adoradores do sol, como afirma
Tertuliano: “Por ventura estes quiseram nos fazer Persas (...)? Esta suspeita
nasceu de nos ver rezando para o Oriente, e que nós celebramos no dia do sol
nossa festa”39. No todo das comunidades cristãs, não era um ritual utilizado pela
maioria. Aqueles que seguiam as normas de Marcião poderiam fazer com que os
pagãos acreditassem que os cristãos adorassem deuses bárbaros com os dos
persas, assim como outras heresias tinham semelhanças com os rituais de outras
religiões. Nas heresias percebemos que seus adeptos utilizam-se de rituais de
outras religiões, ou incorporam crenças no credo cristão. (Tertuliano combate às
idéias de Marcião em seu escrito adversvs Marcionem e outras heresias do seu
tempo: adversvs hermogenvm em que busca defender a doutrina cristã da criação
contra aqueles, entre os gnósticos, que consideravam a matéria eterna e outras40),
dificultado aos pagãos saberem ao certo em que os cristãos acreditavam. Em
Montano evidencia-se um sentimento anti-romano que precisa ser combatida. Assim
como na vida religiosa os cristãos não se misturavam com o mal, assim as pessoas
repudiavam o império. Montado mostrava um cristianismo perigoso ao império, e
mais ainda a paz nas outras comunidades cristãs. Defendia que os cristãos não
poderiam lutar nas fileiras do império, trazendo problemas ao império. Se eles
37 – DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York : Companhia
Editorial Nacional, 1957. p.280.
38 – Um comentário mais profundo é feito por Paul Johnson. JOHNSON, Paul. História do
Cristianismo. Londres : Imago, 1976. p. 59.
39 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p.56.
40 – Para saber quais outras obras Tertuliano escreveu, consultar o Dicionário Patrístico e de
antiguidades cristãs
33
recusassem a ser soldados, diminuiria o efetivo militar romano, não podendo
defender as fronteiras do império, já tão extensas. Para a política imperial, isso traria
problemas. Também esse sentimento anti-romano caminhava contra a política de
unificação cultural, gerando mais revoltas e muitas preocupações com a
manutenção da ordem e do domínio romano.
Cristianismo: Religião bárbara ou civilizada?
Essas afirmações prejudicavam a visão dos romanos com respeito ao
Cristianismo. Com essas suposições, Tertuliano acreditava que não era possível
uma avaliação justa e correta sobre os cristãos. O autor tenta separar o cristianismo
das demais religiões e refuta essas suposições e crenças populares com o intuito de
mostrar quem são. Na apologia ele apresenta o Cristianismo como religião civilizada,
diferente das demais religiões existentes, em que muitas delas eram praticadas ou
provinham de fora dos domínios romanos, sendo considerado bárbaro o que estava
fora dos domínios das instituições romanas. Utilizando dessa idéia, o cartaginês
separa o culto cristão das demais religiões provindas das demais regiões que eram
consideradas “bárbaras”, como o culto ao sol, provinda dos Persas, ou os cultos aos
deuses germânicos e indianos e até de práticas religiosas e espirituais de “bramares
selvagens”41 da Índia, como o próprio cartaginês o denomina. Ele joga com esses
conceitos romanos de forma sutil, afirmando que os cristãos nasceram nos domínios
romanos, dando um ar de religião civilizada e menosprezando as demais, imputando
elas de bárbaras. Além disso, Tertuliano escreve mostrando que as idéias que as
pessoas tinham dos cristãos não eram verdadeiras, refutando qualquer coisa que
apresente o cristianismo como sendo não civilizada: praticarem homicídios, sacrificar
crianças, ter relações sexuais com seus parentes e outras práticas. Analisando isso,
podemos crer que as autoridades romanas e a sociedade ainda imaginavam o
cristianismo como uma religião “bárbara” no século II.
41 – TERTULIANO, Quinto Septimio. Apología contra los gentiles. Buenos Aires : Espasa,
1947. p. 109.
34
CONCLUSAO
Ao analisar a fonte, percebi que o cristianismo ainda não tinha uma identidade
formada no pensamento social romano. Ao ver as reações dos pagãos - as
acusações, a violência e as condenações influenciadas por grupos sociais - é notório
que a povo sabia da existência dos cristãos mas é visível que a sociedade pagã em
geral desconhecia o culto e a doutrina cristã. As reações dos pagãos era a resposta
das atitudes dos cristãos: pelas semelhanças com religiões mistéricas mais
praticadas, pela confusão que causava as heresias e pelo mistério que envolvia os
cultos cristãos, praticados fora da vista das pessoas e em lugares pouco
apropriados. Isso contribuía como reforço às caracterizações já existentes no
imaginário social e também político.
Apesar da pouca expressividade, em algumas áreas os cristãos mudaram a
dinâmica das relações sociais e políticos. Na política, Marco Aurélio mudou a
relação entre os cristãos e as autoridades imperiais, sendo mais rígido e menos
tolerante por causa da hostilidade da heresia montana. Na área social, vemos que
os cristãos, de alguma forma, prejudicavam alguns grupos sociais ou adeptos de
alguma religião local. As alterações nas dinâmicas não afetam o império como um
todo mas somente a dinâmica local, tendo pouca repercussão. Com todas essas
considerações, concluo que o cristianismo causou pouco impacto no império romano
no século II.
35
REFERÊNCIAS
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Roma: El Império Romano (siglos I-III). Madrid : Cátedra, 1995.
- TEJA, Ramón. El Cristianismo Primitivo em la Sociedad Romana. Madrid : Istmo,
1990.
- DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova História da Igreja: dos primórdios a
São Gregório Magno. Petrópolis : Vozes, 1973.
- DURANT, Will. História da Civilização: de César a Cristo. Nova York :
Companhia Editorial Nacional, 1957
- OLIVEIRA, Waldir Freitas. Antiguidade Tardia: De Marco Aurélio a Romulus
Augustulus. Salvador : Ática, 1990.
- JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Londres : Imago, 1976.
- PRÜMM, Karl. La religión del helenismo. In : König, Franz. Cristo y las
religiones de la tierra. Madri : La editorial catolica, 1956.
- TOYNBEE, Arnold. A História e a Religião. Rio de Janeiro : Fundo de Cultura,
1961.
- BERARDINO, Angelo Di. (org.) Dicionário Patrístico e de antiguidades cristãs.
Petrópolis :Vozes, 2002.
- MONTANELLI, Indro. História de Roma. Rio de Janeiro : Record, 1969.
- GIBBON, Edward. Declínio e queda do império romano. São Paulo : Companhia
das Letras, 1989
- LISSNER, Ivar. Os césares: Apogeu e Loucura. Belo Horizonte : Italiana, 1964
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