Pobreza e desigualdade no Brasil: para além das políticas de redistribuição, a necessidade das políticas de reconhecimento como forma de combate á pobreza e desigualdade de gênero. Angélica Cristina Nagel Hullen1 Márcio Eduardo Brotto2 Resumo: O objetivo do presente artigo é efetuar, inicialmente, a conceituação do fenômeno de pobreza à luz de diferentes abordagens históricas, perpassando pela mensuração da pobreza e da desigualdade no Brasil e ao final, discutir sobre a necessidade de elaboração de politicas de redistribuição e reconhecimento em conjunto, para a redução da pobreza e da desigualdade no Brasil, no que se refere a gênero. Para atingir o objetivo a que se propõem faremos uma análise do Programa Bolsa Família (PBF), cuja orientação prevê que o beneficio será preferencialmente em nome da mulher e as implicâncias desta premissa na redução da pobreza e da desigualdade no Brasil, no que se refere a gênero. Palavras chave: gênero, pobreza, Programa Bolsa Família, politicas de redistribuição, politicas de reconhecimento. 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –PUC e membro do NIEPSAS- Núcleo Integrado de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social. E-mail: angé[email protected] 2 Doutor em Serviço Social PUC/RIO, Coordenador do NIEPSAS, Professor do Programa de Pós Graduação da PUC/RJ. E-mail: 1 Introdução Os programas de transferência de renda com condicionalidades têm sido adotados por diversos países, dentre eles o Brasil, como politica central para a redução da pobreza e das desigualdades sociais. Criado em 2004, como resultado da unificação de programas sociais já existentes – Bolsa Escola,Vale Alimentação, Bolsa Alimentação e Auxílio Gás- o PBF atende atualmente mais de 14 milhões de famílias, com valor mensal de repasse de R4 2.112.724.614,00 e, 93% 3 das famílias beneficiários do PBF com o benefício em nome da mulher. Além de ser focalizado, prever o cumprimento das condicionalidades, o PBF traz outra diretriz importante: a de que o beneficio deverá ser preferencialmente em nome da mulher. Isto se deve ao fato das mulheres serem vistas como as responsáveis pelo conhecimento das necessidades familiares ( alimentação, vestuário, material escolar), bem como pelo aumento do número de mulheres chefes de família, que duplicou em 10 anos, passando de 22% para 46% 4 , especialmente nas famílias em situação de pobreza e extrema pobreza ( renda per capita mensal de até R$ 140,00), que são o público alvo do Programa. Iniciativas como esta são de extrema importância, pois conferem certa autonomia financeira às mulheres que chefiam os lares, dando-lhes a possibilidade de escolhas, objetivando atender as suas privações econômicas, porém discutimos a necessidade de políticas de reconhecimento para que, de fato seja possível combater a pobreza e a desigualdade. Para compreender sobre o que aqui estamos discutindo, na primeira parte do artigo serão descritas as abordagens do fenômeno de pobreza e as concepções de pobreza ao longo do século XX. Na segunda parte, faremos um breve histórico das causas da formação da pobreza e da desigualdade no Brasil e a sua mensuração, bem como quais os critérios que são utilizados para esta, acentuando o aspecto de gênero. Na terceira e última parte, uma reflexão sobre as conceituações de Nancy Fraser no que se refere às politicas de redistribuição e de reconhecimento e a necessidade de ambas para a redução da pobreza e da desigualdade no Brasil, com as considerações de Andréia Clapp Salvador e Ângela Maria Randolpho Paiva, tendo como pano de fundo o PBF e sua relação com gênero. 3 4 De acordo com MDS, março/2013 De acordo com o censo IBGE/2012 2 Algumas concepções sobre o conceito de pobreza No decorrer do século XX, três concepções de pobreza foram desenvolvidas: a de sobrevivência, a das necessidades básicas e a de privação relativa. O enfoque da sobrevivência, mais restritivo, foi adotada na Inglaterra e exerceu grande influência na Europa e, teve origem no trabalho de nutricionistas inglesas apontando que a renda dos mais pobres não era suficiente para a manutenção do rendimento físico do indivíduo. Com estas informações, formulou-se o primeiro modelo de proteção social para o Estado de bem-estar, fundamentando algumas politicas nacionais de assistências e alguns programas. Porém, seus verdadeiros objetivos consistiam em limitar as demandas por reformas sociais e preservar o individualismo, caraterística fundante do ideário liberal. A grande critica a este enfoque consistiu no fato de que o mesmo estava atrelado aos baixos índices de assistência, ou seja, bastava manter o indivíduo no nível de sobrevivência. A partir de 1970, a pobreza tinha a conotação de satisfação das necessidades básicas como água potável, saúde, educação, saneamento básico e cultura, bem como apontando algumas exigências de consumo básico de uma família, representando uma ampliação da concepção de sobrevivência pura e simples. Vários órgãos internacionais passaram a utilizar esta concepção, especialmente aqueles que integram a Organização das Nações Unidas ( ONU). Na década de 1980, a pobreza passou a ser entendida como privação relativa, com enfoque mais abrangente, baseado em estudos internacionais, buscando uma formulação mais científica e enfatizando o aspecto social. Para esta concepção sair da linha da pobreza significava obter: um regime alimentar adequado, certo nível de conforto e o desenvolvimento de papéis e de comportamentos sociais adequados. O enfoque da privação relativa vem evoluindo e tem como um de seus principais formuladores Amartya Sen, com um conceito que introduz variáveis mais amplas, chamando a atenção de que as pessoas podem sofrer privações nas mais diversas esferas da vida. Para Sen: “Ser pobre não implica somente provação material. A pobreza pode ser definida como uma privação das capacidades básicas do indivíduo e não apenas como uma renda inferior a um patamar pré-estabelecido.”( SEN, 1999) 3 A critica a esta abordagem refere-se especialmente nas dificuldades de sua utilização, dada a necessidade de definir a extensão e a severidade da não participação das pessoas que sofrem a privação de recursos. Para compreender quais são as necessidades e as privações sofridas por determinado grupo dentro de uma necessidade é necessário que tenhamos conhecimento de como ocorre o processo histórico de formação e determinação destas. A mensuração da pobreza no Brasil e a questão de gênero Apesar de ser um país com imensos recursos naturais e com o PIB (Produto Interno Bruto) entre os dez maiores do mundo, o Brasil é um país com extremamente injusto no que diz respeito à distribuição de renda da sua população, sendo o terceiro pais no ranking da desigualdade no mundo, de acordo com a ONU (2012). Portanto, pode ser caracterizado como um país rico com pessoas muito pobres, devido ao fenômeno da desigualdade social, que é elevado. Estudiosos dessa temática como, por exemplo: Henrique (1999); Pochmann (2001; 2002; 2010); Telles (2006), Ivo (2008), entre outros, afirmam que o processo histórico da sociedade brasileira sempre foi marcado por crescentes índices de pobreza e desigualdade social. Em outras palavras, a pobreza é um fenômeno recorrente nas diferentes gerações e que persiste se expandindo até os dias atuais. E quando tratamos de gênero a questão da desigualdade no Brasil amplia-se, visto que as mulheres que são duplamente atingidas em função da escassez de renda e pelo fato de serem mulheres, sendo esta última uma variável importante e independente, criando uma correlação perversa entre a desigualdade social e a desigualdade de gênero da população brasileira. Como exemplos, podemos citar a desigualdade no acesso ao mercado de trabalho, as diferenças salariais entre homens e mulheres, bem como os cargos de chefia, na sua maioria ocupada por homens. Por isso, relacionar pobreza e a desigualdade no Brasil apenas sob a ótica econômica não supre todas as lacunas. É preciso pensar também, nos processos de formação da sociedade brasileira, de acordo com SOUZA (2010) que são geradores das mazelas e que não se referem apenas a aspectos econômicos, mas sim a outros fatores como cor, raça e gênero. 4 3. Politicas de redistribuição e politicas de reconhecimento: uma necessidade urgente No Brasil, um dos maiores desafios contemporâneos têm sido a busca por respostas para o combate às desigualdades sociais. Salvador afirma: “Nesse debate aparecem duas propostas distintas: as políticas distributivas, dirigidas para a redução das carências econômicas, e as políticas de reconhecimento, voltadas para a valorização de identidades desrespeitadas.” (SALVADOR ,2010, pág.137) A opção para as políticas públicas brasileiras centra-se nos programas de redistribuição da renda, compreendendo apenas que a redução da pobreza de cunho econômico poderá resolver a questão da redução da desigualdade, tendo como exemplo o PBF. A iniciativa é válida, porém insuficiente, visto que em larga escala há a necessidade das politicas de reconhecimento para os setores mais periféricos da sociedade. Esta necessidade é reforçada pela luta dos movimentos sociais, especialmente nas duas últimas décadas do século XX, no que se refere à defesa dos direitos dos grupos historicamente injustiçados, do ponto de vista cultural ou simbólico, com destaque especial para os movimentos feministas. É perceptível a necessidade da ampliação da discussão da espinha dorsal do processo, baseada no binômio igualdade versus diferença e que as politicas publicas necessitam estar baseadas numa nova concepção de justiça, para dar conta das novas especificidades do mundo contemporâneo, que atravessa um período de grandes desigualdades permeadas por dois tipos de injustiça: a econômica e a cultural. Pensar nestas politicas é um grande desafio, especialmente no Brasil, país em que as discussões relacionadas às politicas de reconhecimento ainda são muito prematuras 5 e ainda prevalece a concepção de que as políticas se excluem. A autora Nancy Fraser (2003) aponta as dificuldades para a harmonização dos dois tipos de políticas: “Crescentemente, (...) redistribuição e reconhecimento são retratados como alternativas mutuamente excludentes. Alguns proponentes da primeira, tais como Richard Rorty, Brian Barry, e Todd Gitlin, insistem que a política de identidade é um desvio contra produtivo das questões econômicas reais (...). Contrariamente, alguns 5 Afirmamos que são prematuras para a concepção das politicas publicas por parte do Estado, porém os movimentos sociais à décadas tem na sua pauta as busca por politicas de reconhecimento. Um dos avanços é política de cotas para mulheres em partidos políticos. 5 proponentes do reconhecimento, tal como Iris Marion Young, insistem que uma política de redistribuição cega as diferenças pode reforçar a injustiça ao universalizar falsamente normas do grupo dominante, requerendo que grupos subordinados as assimilem, e não reconhecendo a peculiaridade dos últimos”. (FRASER; HONNETH, 2003, p. 15) Os clamores por redistribuição e as necessidade de reconhecimento estão presentes nas necessidades dos grupos sociais e muitas vezes juntos, não sendo possível fazer uma escolha de prioridades, visto que as necessidades são diferentes, porem ambas são prioritárias. Não se pode, portanto, compreender a sociedade observando uma única dimensão da vida social, o que torna insuficiente tanto o culturalismo ( reduzir a classe à status) quanto o economicismo ( reduzir o status á classe). Perceber a necessidade das politicas não apenas de redistribuição de renda, mas sim de politicas de reconhecimento para a redução das desigualdades sociais é um grande desafio do poder público e da sociedade brasileira e que demanda medidas urgentes. De acordo com SALVADOR (2010): “ O Brasil tem uma vasta experiência com politicas redistributivas, voltadas para a questão da igualdade. Com relação as politicas afirmativas, dirigidas para a diferença e inclusão, a experiência ainda é relativa. Entretanto, as políticas de ação afirmativa vêm apresentando alguns resultados positivos, que podem contribuir para a redução das diversas formas de desigualdades sociais no Brasil”. (p.151) Ainda que politicas de cunho redistributivo como o Programa Bolsa Família sejam vistas como um avanço na perspectiva de assegurar uma renda mínima às famílias pobres para que estas atendam as suas necessidades imediatas, sabe-se que tais ações ainda estão muito distantes de serem vistas como capazes de combater de fato à pobreza. O fato de o Programa prever como responsável pelo recebimento do beneficio, coloca a mulher no papel central de decisão e destino dos recursos financeiros oriundos do Programa recebidos pela família, porém não é suficiente. Só será possível enfrentar a pobreza e combater a desigualdade de gênero com medidas direcionadas para mudanças estruturais concretas e sustentáveis num longo prazo e muito, além disso, a necessidade da elaboração 6 massiva de politicas de reconhecimento ou de ações afirmativas que visem combater as desigualdades sociais não apenas de origem econômicas. Conclusão A pobreza no Brasil advém, ao longo do seu processo histórico, principalmente, de um quadro de extrema desigualdade, que desenvolveu um sistema socioeconômico tipicamente excludente e concentrador e seu agravamento se deu na mesma proporção ou acompanhado do desenvolvimento do sistema capitalista, aliado aos fatores de desigualdades originados por especificidade, como é o caso das mulheres e que são marcas da sociedade brasileira, que junto com a renda formam um quadro altamente perverso para a produção e a reprodução da pobreza e da desigualdade. Embora a questão da pobreza e da desigualdade no Brasil tenha ganhado centralidade no contexto governamental, as estratégias voltadas pares a seu enfrentamento tem se constituído em ações com prioridade para as politicas redistributivas, priorizando os programas de transferência de renda na tentativa de amenizar as consequências da mesma. Porém há a necessidade apreender que pobreza e desigualdade são fenômenos complexos e que não estão apenas relacionados com a carência de renda, mas sim com outros fatores históricos e culturais, como é o caso das diferenças entre homens e mulheres no Brasil. A pobreza e a desigualdade no Brasil estão apresentadas sob a forma de situações de empobrecimento, precariedade e de exclusão social de vastos contingentes populacionais, porém percebemos de forma acentuada sobre as mulheres, o que mostra que a sociedade parece ter “criado um muro que se torna “intransponível” separando ricos e pobres, homens e mulheres, abastados e destituídos e o que é pior, sob a aparência de normalidade, e isso somente será rompido com políticas de redistribuição de renda e de reconhecimento, em conjunto, do contrário, teremos uma sociedade cada vez mais segregada e a distância entre os extremos será cada vez maior. Referências BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 7 BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro. Ediouro, 2002. CLAPP, Andréia. Politicas de reconhecimento X politicas de redistribuição. Revista O sócia em questão, Rio de Janeiro, n.23,2010. DAGNINO, Evelina. 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