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TÍTULO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ESTUDO DA ESCOLÁSTICA.
AUTOR: TEREZINHA OLIVEIRA (Professora do Departamento de Educação e do
Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
MARINGÁ/UEM/PR)
SUBTEMA: Fontes, Categorias e métodos de pesquisa em História da Educação
O maior equívoco que se pode cometer em História da Educação é analisar uma
determinada forma de pensar não pelo que representou no momento do seu surgimento e
consolidação, mas pela concepção que dela tiveram seus críticos posteriores. É o que ocorre
freqüentemente com a escolástica. No seu estudo, não podemos considerá-la a partir dos
seus críticos, em especial os do século XVII, como Bacon e Descartes. Com efeito, quando
esses autores combateram a escolástica, ela estava perdendo – ou tinha perdido – seu
impulso vital. Decorre dessa circunstância não apenas a crítica à escolástica como a
necessidade imperiosa de faze-la. Mas essa maneira de conceber a escolástica diz respeito a
um outro momento histórico, ou seja, ao modo como os homens do século XVII a viam.
Para entender o seu sentido histórico temos, ao contrário, de considerá-la em sua época, no
momento em que ela correspondia às exigências colocadas pela sociedade.
Também não podemos considerar a escolástica associando-a à Inquisição. Isso tem
acentuado o caráter negativo dela. Deve-se observar que o surgimento da Inquisição e,
principalmente, o uso que se faz dela a partir do século XVI, particularmente no século
XVII, já é um indício de que as formulações da escolástica não estavam mais sendo aceitas
pacificamente pelos homens. Surge, por isso, a necessidade de se impor pela força o que até
então era naturalmente aceito. Verificamos, assim, a transformação dessas mesmas
formulações em dogmas.
Examinar a escolástica através da época da sua crítica é analisá-la, portanto, no
momento em que esta filosofia perdeu sua vitalidade. A nós interessa a escolástica
enquanto expressão de vida dos homens, enquanto resposta para as questões que foram
colocadas aos homens no próprio movimento de suas vidas. É quando a escolástica
fecundava a vida dos homens e era por ela fecundada. Notando que as épocas realmente
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vivas nunca foram deliberadamente tradicionalistas, Sérgio Buarque de Holanda cita, talvez
não sem razão, o exemplo da escolástica. Afirma esse autor:
A escolástica na Idade Média foi criadora porque foi atual. A hierarquia
do pensamento subordinava-se a uma hierarquia cosmogônica. A
coletividade dos homens na terra era uma simples parábola e espelhava
palidamente a cidade de Deus (HOLANDA, 1995: 33).
Assim, imbuídos da concepção negativa que a escolástica recebeu posteriormente,
muitos estudiosos da educação interpretaram-na como um instrumento retrógrado de
instrução, baseado na memória, cuja preocupação maior era impedir que os alunos viessem
a pensar. No entender desses autores, os alunos deveriam apenas reproduzir o
conhecimento estabelecido e consagrado nas escrituras, seja através da memorização, seja
através do disputatio.
Todavia, considerar a escolástica sob esse prisma significa desconsiderar o caráter
histórico da educação medieval, ou seja, compreender as razões porque assumiu essa forma
e, principalmente, entender porque tinha que assumir essa forma. Com efeito, nos séculos
XII e XIII, a educação dos jovens não poderia ocorrer de outra maneira. Não havia a
imprensa, não havia os meios de comunicação que dispomos hoje e que constituem, de uma
certa maneira, o pressuposto do entendimento a-histórico que hoje se tem da escolástica.
Para que os estudantes dos séculos XII e XIII pudessem preservar o conhecimento era
preciso a memorização. A opção estava dada: ou decoravam, ou não aprendiam. Por
conseguinte, a memorização era o único recurso disponível para conservar o conhecimento.
A disputa, ou quaestio disputa, tinha uma função extremamente importante. Era a
forma de estimular o pensamento, as discussões teóricas. Não é gratuito, pois que os
estudantes universitários, para se tornarem mestres, precisavam apresentar e discutir as
sentenças de Pedro Lombardo.
Assim, os principais recursos de aprendizagem utilizados pela escolástica, nos
séculos XII e XIII, tinham uma função histórica fundamental. Era através deles os
conhecimentos teóricos e a possibilidade de argumentação eram ensinados. Segundo Ruy
Nunes, “as aulas nas universidades medievais eram centros vivos e dinâmicos do saber,
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havia uma corrente nervosa que a perpassava. Em nada lembram as nossas aulas didáticas
atuais, exaustivas e verdadeiros monólogos, onde não há discussão, não há disputa”.
(NUNES, 1979: 212)
As críticas que nos dias de hoje são feitas à escolástica medieval não consideram o
movimento histórico de transformação no interior das próprias relações medievais. É
inevitável, pois, que venham a considerar o método educativo da escolástica a partir do que
veio a ser nos séculos XV e XVI, ou seja, venham a considerá-lo da perspectiva do
renascimento cultural, do humanismo, da imprensa e, principalmente, a partir das lutas que
a Igreja promoveu para conservar o seu poder, político, ideológico e social.
Os estudiosos que assim procedem não levam em conta que a escolástica surgiu em
decorrência de aspirações e anseios, que foi o elemento organizador da vida dos homens.
Esses estudiosos não consideram, deste modo, o aspecto extremamente progressista que
esse método teve no renascimento cultural e comercial dos séculos XII e XIII.
Desconsideram o período do seu nascimento, negando o caráter transformador das aulas de
Abelardo ou de Tomás de Aquino.
É necessário, portanto, resgatar a escolástica, mostrar que não foi um método sem
vida, mas que, ao contrário, participou ativamente da vida dos homens medievais e que é o
movimento histórico que norteia os métodos educativos. Devemos, pois, entender esses
métodos em sua historicidade, como realmente foram e não como achamos que deveriam
ter sido.
Nosso estudo sobre a escolástica faz parte do nosso atual projeto, que tem por
objetivo entender a educação nos séculos XII e XIII como resultado da ação transformadora
dos homens. Consideremos algumas questões que balizam o nosso projeto.
A principal questão a ser observada é que a escolástica constitui a maneira de pensar
própria do mundo medieval. Podemos afirmar então que a escolástica é a teologia, a
filosofia medieval. Não é casual que, como observaram seus estudiosos, tenha sido no
Ocidente cristão, justamente onde o mundo feudal adquiriu contornos mais nítidos, que se
pode acompanhar o desenvolvimento mais completo e contínuo da escolástica medieval.
Nessa região, a relação entre o mundo medieval e a escolástica é plenamente observável.
Na verdade, de acordo com alguns estudiosos da escolástica medieval, esta forma de ensino
esteve presente ao longo de toda a Idade Média. As aulas de Alcuíno podem, inclusive, ser
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consideradas como um método escolástico. Com efeito, ao tentar ensinar a Pepino, filho de
Carlos Magno, a diferença entre o concreto e o abstrato, este eminente pensador do século
IX (**verificar data) valia-se dos princípios escolásticos. Com o objetivo de mostrar a
diferença entre o sonho e o mundo real, recorria à dúvida e à afirmação. Ao tratar dos
elementos da natureza, como o fogo e o ar, utilizava do recurso das adivinhações. Estes
recursos de aprendizagem, caso despidos de preconceitos, podem ser entendidos como
escolásticos, já que intentavam o despertar da razão e da sensibilidade. Da mesma forma,
podemos considerar Jean Erigene ou Scott um difundidor da escolástica. Ao discutir, na
escola palaciana, que todo ser possui em si matéria e que toda matéria possui um ser, no
caso alma, esse autor pretende mostrar que a junção entre ser e matéria pode levar a ações
que alteram os elementos naturais e as relações entre os homens.
Estes dois pensadores estão profundamente ligados à Igreja, ao pensamento cristão.
Inclusive, apresentam Deus como o criador de todas as coisas e aquele que dava a direção
da sociedade. Entretanto, procuram mostrar que existem diferenças fundamentais entre o
homem-matéria e o homem-pensamento. Neste momento, ainda muito anárquico e
tumultuado do Império Carolíngio, onde a força presidia as relações entre os homens, a
dialética entre ser e matéria permite que os indivíduos comecem a perceber existir em suas
vidas algo que vai além do imediato, que vai além dos seus estômagos, ou seja, que existe
uma razão que distingue os homens dos animais. Esses mestres do mundo carolíngio
buscam ensinar aos bárbaros que os mesmos possuem uma sensibilidade inerente ao seu ser
e que, embora recebam tudo de Deus, o despertar desta sensibilidade, desta razão, depende
deles próprios.
Há que considerar, no entanto, as diferenças existentes entre esses dois pensadores.
O primeiro, dado o fato de ser bispo, dado o momento histórico de sua existência,
estabelecia o vínculo, em todas as circunstâncias, entre Deus e os homens. Tudo nos
homens tinha sua origem em Deus. Ao apresentar, por exemplo, os ensinamentos das setes
artes liberais, o Trivium (Gramática, Retórica, Dialética) e o Quadrivium (Aritmética,
Geometria, Música, Astronomia), como um resgate das escolas antigas1, Alcuíno ressalta
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É sempre bom lembrar que a Idade Média não abandonou a sabedoria antiga como muitos pensadores do
renascimento colocaram mas sim buscaram sempre recuperá-lo. Isto está patente, no período Carolíngio, no
século X e as peças de Monja Roswita são demonstrações explicitas disto, o século XII e XIII com as obras de
Aristóteles e Platão.
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que este ensinamento, na sua época, era superior ao da antigüidade porque nela Deus
permeava o ensinamento.
Aquela, sem outro ensinamento além das disciplinas de Platão, brilhou
com a ciência das sete Artes, mas esta supera em dignidade toda a
sabedoria deste mundo, por que está, ademais, enriquecida com a
plenitude dos sete Dons do Espírito Santo. (GILSON, 1998: 230)
A busca do conhecimento, da sensibilidade e da razão estava, em Alcuíno, imbuída
do pensamento cristão. A existência humana estava, portanto, subordinada à existência de
Deus.
Em Jean Scott, o ensino e a razão estavam vinculados a Deus, mas é o homem, em
última instância, o responsável por suas ações e decisões, pois detém o conhecimento da
relação dialética entre o ser e a matéria. Para Scott, o homem estará sempre dividido entre o
seu ser e a sua matéria ou entre a sua fé e a sua razão. Esta concepção dialética do ser leva
Gilson a afirmar que Scott, foi, indubitavelmente, um dos propagadores do livre arbítrio no
mundo medieval.
Esta situação do pensamento, da razão, da dialética entre o ser e a matéria do século
IX altera-se radicalmente quando nos defrontamos com os escritos de Santo Anselmo, no
século XI. Este é o momento de consolidação do mundo feudal. Os homens passam a ter
consciência que podem alterar as coisas e, portanto, que nem tudo está anteriormente
determinado por Deus. Não é gratuito que, nessa época, a Igreja precise criar uma teoria
que legitime sua superioridade em relação aos demais segmentos da sociedade. Duby, na
sua clássica obra As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo, observa estas mudanças
que estavam ocorrendo na sociedade oriundas do feudalismo. Segundo ele, a explicação de
sociedade de São Bonifácio e, portanto, da Igreja, de uma sociedade bipartite, onde o corpo
social cristão estava dividido em duas partes, a dos que rezam e a dos demais homens, ou
seja:
a “ordem” e a plebe, conforme dizia Tertuliano. E esta estrutura
fundamental, instaurada pela lei divina, reflexo da ordenação profunda
que separa o céu e a terra, o espírito e o corpo, refractava-se, por sua vez,
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sobre a ordem dos “prelados”, dos “reitores”, dos dirigentes, impondo que
se distinguisse os chefes da Igreja, os bispos, e “vindo a seguir”, como diz
Bonifácio, os chefes do povo. (DUBY, 1982: 97)
Essa divisão ou explicação das relações sociais em duas partes não são mais
suficientes para explicar a complexidade das relações instituídas pelo feudalismo. Em fins
do século X e princípio do XI, os homens e, fundamentalmente, a Igreja Católica, precisam
explicar as “ordens sociais” de uma outra maneira. Afinal, a sociedade não é mais a dos que
oram e o povo. O feudalismo sedimentou uma “classe de homens” que passa, de uma
maneira gradativa a assumir o poder da sociedade, que são os senhores feudais. Neste
momento, o poder soberano da Igreja principia a ser dividido com estes senhores e isto
representa uma ameaça ao domínio desta instituição. Diante dessas novas condições, a
Igreja busca uma nova maneira de manter legítimo o seu predomínio sobre a sociedade.
Segundo Duby, coube aos bispos Adalberão e Gerardo, através da teoria das três ordens, a
explicação para esta nova situação. Esses bispos explicam que uns nascem para o trabalho,
são os laboratores; outros nascem para a defesa, são os belatores, e outros, finalmente,
nascem para rezar e cuidar da alma de todos, são os oratores. Assim, a sociedade do século
XI não pode mais ser apresentada pela Igreja como bipartite, ou seja, ela e o povo. Nesse
novo contexto históricos, os senhores feudais precisam ser representados. Eis, portanto, a
funcionalidade da sociedade tripartite. É nesse momento que assistimos o surgimento dos
escritos de Santo Anselmo, ou da escolástica medieval.
Assim, as obras de Santo Anselmo expressam a luta da Igreja pela conservação do seu
poder no momento de consolidação das forças feudais. Desse modo, a forma como esse
autor aborda as questões relativas à religião, à fé e à razão está ligada ao mundo real dos
homens feudais. Ele reconhece que as mudanças na sociedade estão obrigando a Igreja a
rever suas formulações de explicação de Deus. Santo Anselmo reconhece que, para
preservar os pilares da Igreja Católica, ela também precisa identificar-se com as novas
relações que estão sendo produzidas. Em razão disso, nas suas Cartas, Santo Anselmo
discute amplamente questões referentes as profissões liberais. Ele precisa, de fato, defender
a Igreja Católica. Entretanto, sua defesa não é sectária e obscura. Reconhece ele que existe
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algo diferente que está competindo com o poder da fé e que não pode ser desprezado como
até então a Igreja o fizera com a força dos bárbaros.
Santo Anselmo principia considerando a religião, as questões humanas, da
perspectiva da razão. Existe sempre uma razão para tudo. Nele, é claro, a razão ainda está
ligada à essência divina, mas esta faz parte também dos homens. Uma passagem do
Monológio explicita com clareza esta condição do pensamento.
Assim, quando vemos alguém, de condição bastante humilde, ser elevado
por outro a grandes honras e riquezas, dizemos: - Sicrano foi feito do
nada por fulano; isto é, aquele homem, que antes era considerado um
nada chegou a ser alguém pela ação de outro. [...] É evidente, portanto,
que antes que todas as coisas fossem feitas, no sentido em que não eram
aquilo que agora são, nem existia uma matéria de que haveriam de ser
feita; todavia, elas eram algo em relação à razão de quem cria; razão pela
qual, e segundo a qual, seriam feitas. (SANTO ANSELMO, 1973: 25-26)
Desse modo, Santo Anselmo explicita, de um lado, que existe sempre uma razão
que leva a algo, portanto, divina, mas, por outro, de que os homens são capazes de alterar as
suas realidades. A nosso ver, está dada aí a grande transformação teórica da Igreja, qual
seja, a de reconhecer e legitimar que os homens podem agir independentes da vontade
divina. Os homens feudais percebem que a razão também pode conduzi-los para um
caminho que não o da destruição. A razão passa a exercer uma função que antes era a da
Igreja. É nesse campo que a razão passa a ameaçar a Igreja. Assim, os homens medievais,
com o desenvolvimento do feudalismo, começam a prescindir da Igreja. Santo Anselmo
percebe isso com muita clareza e reconhece a importância das artes liberais, da ciência e de
Hipócrates. Ele sabe que a Igreja não é mais a força histórica “natural” da sociedade.
Precisa, por isso, justificá-la.
Se em Santo Anselmo temos a Igreja colocando-se ao lado das transformações
sociais e procurando, paradoxalmente, ora combater o novo, ora assimilá-lo, com Pedro
Abelardo verificamos o florescimento de uma nova forma de pensamento e de educação
medieval. Sua época, século XII, não é apenas de florescimento das relações feudais.
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Assistimos, igualmente, o ressurgimento do comércio e das cidades. É, de fato, um mundo
novo que está emergindo no meio deste medievo e conduz ao denominado Renascimento
Cultural.
As discussões de Pedro Abelardo mostram como as questões precisam, de fato, er
discutidas no século XII. É preciso discutir o significado da fé, da razão, do amor, de Deus,
das sentenças, do Verbo, enfim, é preciso apreender como os homens fazem para pensar.
Mais, apreender como os homens existem, qual a razão e definição de Universal. O pensar
e o questionar estão imbricados com a forma de ser de Abelardo. Exatamente por isso pode
ser considerado o pai da dialética. Se na sua História das Calamidades critica as aulas de
Anselmo de Laon2, máxima autoridade no ensino da “doutrina sagrada”, por considerá-las
vazia de espírito e de razão e por desconhecer, confessa ele, as escrituras sagradas,
principia sua Lógica para Principiantes discutindo e apresentando seu entendimento de
filosofia. Abelardo é mestre em filosofia. É preciso observar, inclusive, que sua concepção
de filosofia parte dos princípios de Boécio.
Boécio não denomina qualquer ciência filosofia, mas só aquela que
consiste no estudo das coisas mais elevadas. De fato não damos o nome
de filósofos a quaisquer estudiosos, mas apenas aos sábios cuja
inteligência se aprofunda na consideração das questões mais sutis. Boécio
distingue três espécies de filosofia, isto é, a especulativa, que investiga a
natureza das coisas; a moral, que considera a questão da vida honesta; e a
racional, denominada lógica pelos gregos e que trata da argumentação.
(ABELARDO, 1973: 207)
A filosofia é o conhecimento. Todos os elementos de que tratam os homens estão
inseridos na filosofia e não na religião. Existiria a filosofia que trata das questões mais
profundas da natureza humana; a filosofia que investiga os fenômenos e as ações da
natureza e a filosofia que trata da razão. Ou seja, tudo que pode e deve ser investigado
pelos homens nascem no interior dos próprio conhecimento humano. É a natureza e o
conhecimento humano que estudam tudo o que faz parte da relações humanas.
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As aulas de Abelardo são consideradas dialéticas exatamente porque nelas prevalece a
dúvida sobre todas as coisas. Todo conhecimento entendido como tendo originado no
divino passa a ser questionado pelo conhecimento lógico da razão humana. Toda
argumentação desenvolvida na Lógica procura colocar em xeque as questões mais gerais do
conhecimento. Abelardo discute o que é a palavra, o que é o singular, o que é o universal, o
que é o ser predicado, o sentido, o intelecto, a alma. Eis um exemplo da amplitude de suas
discussões ao tratar da inteligência e dos sentidos.
Ora, uma vez que tanto os sentidos quanto o intelecto são próprios da
alma, a diferença entre eles é que os sentidos são exercidos apenas através
de instrumentos corpóreos e só percebem os corpos ou as coisas que neles
estão, tal como a vista percebe uma torre ou as qualidades visíveis. O
intelecto, entretanto, assim como não precisa de um instrumento
corpóreo, também não tem necessidade de um corpo por sujeito no qual
esteja situado, mas está satisfeito com a semelhança da coisa que o
espírito (animus) elabora para si mesmo, e para a qual dirige a ação da
sua inteligência. (ABELARDO, 1973: 230-231)
Esta passagem evidencia com clareza a forma dialética como Abelardo ministra
suas aulas de filosofia. Ele sempre procura colocar em discussão a ordem vigente das coisas
do pensamento. Afinal, discutir no século XII que os sentidos e a inteligência fazem parte
da alma é colocar em discussão qual é o sentido ou a razão da alma. O sentido só pode
existir se os homens puderem materialmente sentir, ou seja, se verem, se tocarem, mas se a
alma é invisível e intocável, porque é a parte que mais nos torna semelhantes a Deus, como
pode então serem o sentido e a inteligência componentes de uma mesma coisa, a alma?
Para além disso, Abelardo apresenta a inteligência como a responsável pela razão. Ora, se
os seres humanos podem ser conduzidos pela sua inteligência, que é a razão,
necessariamente podem prescindir da fé, da religião, para viveram. Eis, por conseguinte,
para onde a dialética de Abelardo conduzia os homens do século XII, ou seja, a questionar a
2
Não se pode confundir Anselmo de Laon com Santo Anselmo de Cantuária, considerado o fundador da
escolástica.
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importância da religião. Não é gratuito, pois, que precisou queimar seu livro em praça
pública.
Todavia, devemos ressaltar que por mais revolucionário que o mestre Abelardo
tenha sido no século XII, não deixou de estar vinculado a Igreja. A Igreja era ainda um
grande centro de saber e era nela ou a partir dela que todo o conhecimento circulava na
sociedade.
Ainda que possamos rastrear as origens da escolástica ao longo dos séculos, como
vimos com Alcuíno, Jean Scott, Santo Anselmo e Abelardo, o fato é que verificamos ser
concomitante a consolidação do mundo feudal, no século XIII, e a constituição de fato da
escolástica. É nesse século que a escolástica adquire sua foram mais completa e acabada.
Podemos, portanto, afirmar que o século XIII é o momento de formação da escolástica.
Como observa Gilson, em A Filosofia na Idade Média,
O século XIII é a era da teologia escolástica propriamente dita e, também,
o tempo em que se elabora a filosofia que mais tarde será designada pelo
mesmo nome, que formará, nos séculos XVI e XVII, o fundo do ensino
filosófico nas escolas (GILSON, 1998: 511).
Há entre os historiadores aqueles que colocam o século XIII como o século de
consolidação do mundo feudal. Le Goff, por exemplo, em O apogeu da cidade medieval,
afirma que, de meados do século XII até cerca da metade do século seguinte, o
desenvolvimento da cristandade latina atinge o seu apogeu. Acrescenta, ainda, que a França
ocupou o primeiro lugar nesse apogeu, assinalando que o movimento de urbanização estava
então no auge: “As cidades são uma das principais manifestações e um dos motores
essenciais dessa culminação medieval” (LE GOFF, 1992: 1).
A partir do momento em que a vida passa a ter sua mobilidade nas cidades,
tudo se transforma. É nas cidades que surgem os ofícios comerciais ou artesanais, que
surge a divisão do trabalho. O renascimento das cidades e o surgimento dos mais
diferentes ofícios rompem com a idéia das três ordens sociais definidas e imóveis do
mundo feudal.
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Nas cidades florescem as corporações de ofícios. É preciso salientar que as
corporações medievais representaram um marco no processo de liberação pessoal dos
homens. Os homens das corporações - aprendizes e jornaleiros - não dependiam
estreitamente de seus mestres, como os servos e vassalos dependiam de seus
senhores. Sem dúvida, havia uma submissão social entre essas diferentes categorias
profissionais, mas ela não impedia que ocorressem mudanças quanto aos lugares que
cada um ocupava na escala social, diferentemente das relações estabelecidas entre
servos e senhores.
Para além disso, todas as relações se modificam no momento em que a vida,
aos poucos, vai se tornando mais urbana, principalmente no que diz respeito ao
dinamismo do mundo. Em função de uma produção em escala sempre crescente, em
função de um comércio cada vez mais longínquo, o horizonte dos homens se alarga.
A vida não está mais restrita ao castelo e à propriedade do senhor feudal. As pessoas
começam a perceber que os limites de suas relações não são tão estreitos.
Segundo Le Goff, nesse momento os intelectuais vêem o mundo e a si
mesmos como um prolongamento das cidades, desta vasta fábrica borbulhante de
ruídos e de ofícios. O intelectual, como qualquer outro artesão, percebe que a vida se
realiza neste ambiente agitado de mudanças. Em função dessas transformações tornase necessário criar um novo ensino, não apenas com novas disciplinas como, a
dialética, a física e a ética. Os homens das cidades também precisam de novas
técnicas científicas e artesanais. Em última instância, o renascimento das cidades
“exige” dos homens não só uma nova forma de ensinar. Eles precisam,
fundamentalmente, aprender. Pertence a esse período a famosa frase de Hugo de
Saint-Victor: O exílio do homem é a ignorância; sua pátria a ciência.
O profissional do saber, o intelectual, precisa vir em socorro dos demais
profissionais. Sendo um homem de ofício, ele tem que saber e fazer a ligação entre a
ciência e o ensino. O intelectual tem clareza que o conhecimento não pode ser
entesourado. Ao contrário, precisa ser divulgado na sociedade. O ensino deve,
também, ter uma razão, cumprir uma função na sociedade. As escolas são oficinas de
onde se exportam as idéias, como se fossem mercadorias (LE GOFF: 1984, 65-6).
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Com o renascimento das cidades, com todas as suas implicações, o intelectual
precisa aliar o conhecimento à prática. O intelectual, como qualquer outro
profissional, deve ligar-se ao mundo prático, ou, como coloca Le Goff, à grande
fàbrica que é o universo: “[...] o intelectual, no seu lugar, com as suas aptidões
específicas, deve colaborar no trabalho criador que se elabora. Não tem como
instrumento apenas o espírito mas também os livros que são a sua ferramenta de
operário. Como nos afastamos, com eles, do ensino oral da Alta Idade Média!” (LE
GOFF, 1984: 66).
É nesse momento que verificamos o surgimento das universidades. Esta
instituição constitui um desdobramento, se assim podemos dizer, das mudanças que
estavam acontecendo na sociedade: “A estes artesãos do espírito, arrastados pelo
surto urbano do século XII, faltava organizarem-se no interior de um grande
movimento corporativo, coroado pelo movimento comunal. Essas corporações de
mestres e de estudantes serão, em sentido estrito, as universidades. Será essa a obra
do século XIII” (LE GOFF, 1984: 67).
Assim, a organização das universidades não é um acontecimento isolado, um
“grande feito” dos intelectuais. Os profissionais do saber organizam-se da mesma
forma que as demais profissões, isto é, na forma de corporação, cujo nome é
universidade. É sob este aspecto que podemos entender a afirmação de Le Goff de
que o século XIII é o século das universidades exatamente porque é o século das
corporações de ofício.3
É nesse momento que se tem a consolidação das cidades medievais, o
surgimento das universidades, que o pensamento escolástico se consolida. Pertence à
essa época um dos maiores pensadores da medievalidade, cujo nome é sinônimo de
universidade e da escolástica. Estamos nos referindo a São Tomás de Aquino.
As discussões de Tomás de Aquino ficaram para sempre no pensamento da
modernidade. Sua Suma Teológica e seus Escritos Políticos permanecem até os
nossos dias como obras indispensáveis ao conhecimento da filosofia, da educação ou
da história. Ele foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores responsáveis pela difusão
do pensamento aristotélico no Ocidente.
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É, todavia, o homem, por natureza, animal sociável e político, vivendo em
multidão, ainda mais que todos os outros animais, o que se evidencia pela
natural necessidade. Realmente, aos outros animais preparou a natureza o
alimento, a vestimenta dos pêlos, a defesa, tal como os dentes, os chifres,
as unhas ou, pelo menos, a velocidade para a fuga. Foi, porém, o homem
criado sem a preparação de nada disso pela natureza, e, em lugar de tudo,
coube-lhe a razão, pela qual pudesse granjear, por meio das próprias
mãos, todas essas coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cuja
causa, não poderia um homem levar suficientemente a vida por si. Logo,
é natural ao homem viver na sociedade de muitos (TOMÁS DE
AQUINO, 1995: 127).
O princípio desta discussão de Tomás de Aquino está em Aristóteles, na Política, no
primeiro capítulo do Livro I. Esse grande pensador grego coloca: “... o homem é por
natureza um animal social em seguida continua é evidente que o homem, muito mais que a
abelha ou outro animal gregário, é um animal social” (ARISTÓTELES, 1985: 15). A
semelhança entre a passagem de Tomás de Aquino e a de Aristóteles é evidente. À época
de Tomás de Aquino, o trato das questão humanas não pode mais serem embasado somente
na fé. É necessário mostrar aos homens que existe na natureza humana, desde sempre, uma
razão que os leva a viver em sociedade. Daí a necessidade de se retomar o pensamento
aristotélico. É preciso buscar no passado antigo os elementos que possam permitir aos
homens reordenar suas vidas. No passado é que encontra-se o entendimento dos fenômenos
da natureza e das relações sociais. A religião, por si só, não é mais suficiente para explicar
o emaranhado de relações que as cidades, as universidades, a corte, as corporações de
ofícios trouxeram. É preciso buscar nos pensadores antigos um caminho, um exemplo, para
que os homens do século XIII prossigam suas trilhas. Tomás de Aquino retoma Aristóteles
porque o filósofo trata da razão humana e da natureza.4
3
Acerca das origens da universidade é imprescindível ver a obra de VERGER, J. As Universidades na Idade
Média. São Paulo: UNESP, 1990.
4
Ë preciso salientar que não desconhecemos o quanto o pensamento aristotélico foi condenado pela Igreja no
século XIII e pela Inquisição nos séculos XV e XVI mas não vamos tratar desta questão agora por considerar
que desviaríamos de nosso tema.
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A tarefa, se podemos colocar dessa forma, de Tomás de Aquino não era das mais
fáceis. Ele precisava entender, explicar, ensinar e, fundamentalmente, justificar as novas
relações que tinham emergido do feudalismo, mas que ele próprio também já não estava
mais dando conta.
Se no seu nascimento o feudalismo foi, como afirmara Guizot na sua Histoire
générale de la civilisation en Europe, o momento em que a humanidade dera seu primeiro
passo fora da barbárie, após pelo menos cinco séculos de anarquia; se a transformação de
tudo em feudo, desde o batismo até o funeral fora a condição para os homens do Ocidente
europeu se desenvolverem e “recriarem” as cidades, as universidades como centro de
saberes no século XIII, momento de seu ápice enquanto sistema político, é também nesse
momento que essa relação social começa a não corresponder mais às condições de
existência dos homens.
As diferentes atividades desenvolvidas nas cidades e, por conseguinte, as
divergências causadas por estas, levam Tomás de Aquino a analisar a sociedade a partir
destas diferenças e a salientar que elas são importantes.
O homem, no entanto, possui somente em geral o conhecimento natural
do que lhe é necessário à sua vida, como quem possa chegar, dos
primeiros princípios universais, ao conhecimento das coisas particulares
necessárias à vida humana. Ora, não é possível abarcar um homem todas
essas coisas pela razão. Por onde é necessário ao homem viver em
multidão, para que um seja ajudado por outro e pesquisem nas diversas
matérias, a saber, uns na medicina, outro nisto, aqueloutro noutra coisa.
(TOMÁS DE AQUINO, 1995: 127)
Tomás de Aquino legitima, assim, as diferenças sociais, a divisão do trabalho, a
divisão do conhecimento, ao reconhecer os limites de cada ser humano. Mas ele não
reconhece isso apenas para legitimar o domínio da Igreja ou a supremacia do
conhecimento. Reconhece para demonstrar que cada indivíduo nasce com uma função na
sociedade.
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É este mesmo vínculo com as questões reais que o leva a considerar as condições
políticas de sua época. O governo dos senhores feudais, as suseranias, não conseguem mais
ordenar a vida agitada e turbulenta das cidades. Os conflitos entre os senhores e seus
vassalos, sejam os da cidade, sejam os do campo, tornam-se constantes. A inexistência de
um governo geral, de leis gerais que conduzissem as relações entre as “ordens sociais” faz
com que Tomás de Aquino retome uma vez mais a Aristóteles.
Tomás de Aquino defende, de forma contundente, a necessidade de um governo
único. Se existe um único Deus, que ilumina a terra e tudo o que há nela, é preciso,
também, que exista um único governante que conduza os homens.
[...] o mais bem ordenado é o natural; pois em cada coisa, opera a
natureza o melhor. E todo regime natural é de um só. Assim, na multidão
dos membros, há um primeiro que move, isto é, o coração; e, nas partes
da alma, preside uma faculdade principal, que é a razão. Têm as abelhas
um só rei, e em todo o universo há um só Deus, criador e governador de
tudo. E isto é razoável. De fato, toda multidão deriva de um só. Por onde,
se as coisas de arte imitam as da natureza e tanto melhor é a obra de arte,
quanto mais busca a semelhança da que é da natureza, importa seja o
melhor, na multidão humana, o governar-se por um só. (TOMÁS DE
AQUINO, 1995: 131)
É preciso mostrar aos homens que o natural na sociedade não é o governo de muitos
sobre muitos. Tomás de Aquino insiste que isso é o governo da tirania, ou seja, o governo
dos senhores feudais está introduzindo a tirania na sociedade. A natureza humana pede que
seja governada pelo mais apto. É o mais apto que poderá governar com justiça e produzir o
“bem comum”. Na verdade, Tomás de Aquino está defendendo o governo único da realeza.
Assim, os escritos de Tomás de Aquino estão comprometidos com a realidade. Se
ele é, por sua vez, a expressão da escolástica, então esse pensamento não é dogmático, nem,
tampouco, vazio de espírito. Ao contrário, traz em si a vida e as questões dos homens
medievais. Dogma e vazio de espírito são daqueles que não vêem esta forma do
conhecimento dentro da sua época histórica.
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TEREZINHA OLIVEIRA (Professora do Departamento de Educação e