Terra Livre
LEITURAS GEOGRÁFICAS:
multiplicidade de olhares
Desde 1934
Associação
dos
Associação dos
Geógrafos
Brasieliros
Geógrafos Brasileiros
1
Associação dos Geógrafos Brasileiros
Diretoria Execut
va Nacional
Executiva
Gestão 2008/2010
Presidente
Alexandrina Luz Conceição - AGB Aracaju
Vice Presidente
Nelson Rego - AGB Porto Alegre
Primeira Secretária
Reila Márcia Miranda da Silva - AGB São Paulo
Segundo Secretário
Djoni Roos - AGB Marechal Cândido Rondon
Primeira T
esoureira
Tesoureira
Sinthia Cristina Batista - AGB Cáceres
Segundo T
esoureiro
Tesoureiro
Augusto Castelo Branco Ramos de Assumpção - AGB Rio de Janeiro
Coordenação de Publicações
Edvaldo César Moretti - AGB Dourados
Alexandre Bergamin Vieira - AGB Presidente Prudente
Representação junto ao Sistema CONFEA/CREA
Titular: Cristiano Silva da Rocha – AGB-Porto Alegre
Suplente: Victor Alberto de Souza Junior
Representação junto ao Conselho das Cidades
Arlete Moyses Rodrigues – AGB - São Paulo/SP
Suplente: Yure Silva Lima
Correio eletrônico: [email protected]
Página na internet: http://www.agb.org.br
2
ISSN 0102-8030
Terra Livre
Publicação semestral
da Associação dos Geógrafos Brasileiros
ANO 24 – V
ol. 2
Vol.
NÚMERO 31
Terra Livre
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 1-249
Jul-Dez/2008
3
TERRA LIVRE
Conselho Editorial
Adauto de Oliveira Souza (UFGD)
Ailton Luchiari (USP)
Aldomar Arnaldo Rückert (UFRGS)
Alexandrina da Luz (UFS)
Alfredo Anselmo (USP)
Álvaro Luiz Heidrich (UFRGS)
Ana Fani Alessandri Carlos (USP)
Ângela Massumi Katuta (UEL)
Antonio Carlos Vitte (UNICAMP)
Antonio Nivaldo Hespanhol (UNESP/Pres. Prudente)
Arlete Moysés Rodrigues (UNICAMP)
Arthur Magon Whitacker (UNESP/Pres. Prudente)
Beatriz Ribeiro Soares (UFU)
Bernadete C. Castro Oliveira (IGCE/UNESP)
Bernardo Mançano Fernandes (UNESP/Pres.
Prudente)
Charlei Aparecido da Silva (UFGD)
Diamantino Alves Correia Pereira (PUC/SP)
Dirce Maria Antunes Suertegaray (UFRGS)
Douglas Santos (PUC/SP)
Eliseu Saverio Sposito (UNESP/Pres. Prudente)
Flaviana Gasparotti Nunes (UFGD)
Francisco Mendonça (UFPR)
Horácio Capel Sáez (Universidade Barcelona/Espanha)
João Cleps Júnior (UFU)
João Edmilson Fabrini (UNIOESTE/M. C. Rondon)
Jones Dari Goettert (UFGD)
Jorge Montenegro Gómez (UFPR)
José Daniel Gómez (Universidade de Alicante/Espanha)
Larissa Mies Bombardi (USP)
Marcelino Andrade Gonçalves (UFMS/Nova
Andradina)
Marcelo Dornelis Carvalhal (UNIOESTE/M. C.
Rondon)
Marcelo Rodrigues Mendonça (UFG/Catalão)
Márcio Cataia (IG/UNICAMP)
Marcos Bernardino de Carvalho (PUC/SP)
Maria Franco García (UFPB)
Maurício A. de Abreu (UFRJ)
Mirian Cláudia Lourenção Simonetti (UNESP/Marília)
Paulo Roberto Raposo Alentejano (UERJ/São Gonçalo)
Pedro Costa Guedes Vianna (UFPB)
Regina Célia Bega dos Santos (IG/UNICAMP)
Ricardo Antunes (UNICAMP)
Rogério Haesbaert da Costa (UFF)
Selma Simões de Castro (UFG)
Sérgio Luiz Miranda (UFU)
Silvio Simione da Silva (UFAC)
Valéria De Marcos (USP)
Virgínia Elisabeta Etges (UNISC)
Wiliam Rosa Alves (UFMG)
Xosé Santos Solla (Univ. Santiago de Compostela/
Espanha)
Editores responsáveis: Alexandre Bergamim Vieira (AGB-Presidente Prudente) e
Edvaldo César Moretti (AGB - Dourados/MS)
Editoração e formatação eletrônica: Tiago Bassani Rech (UFRGS – Porto Alegre/RS)
Arte da capa: Marise Massem Frainer
Tiragem: 300
Impressão: Solidus Gráfica e Editora ([email protected])
Av. Antônio de Carvalho, 2079 cep: 91430-001 - Porto Alegre - RS
Endereço para Correspondência:
Associação dos Geógrafos Brasileiros (DEN)
Av. Prof. Lineu Prestes, 332 - Edifício Geografia e História - Cidade Universitária
CEP: 05508-900 - São Paulo / SP - Brasil - Tel. (0xx11) 3091 - 3758
ou Caixa Postal 64.525 - 05402-970 - São Paulo / SP
e-mail: [email protected]
Ficha Catalográficca
Terra Livre, ano 1, n. 1, São Paulo, 1986.
São Paulo, 1986 – v. ils. Histórico
1992/93 – 11/12 (editada em 1996)
1994/95/96 – interrompida
1986 – ano 1, v. 1
1997 – n. 13
1987 – n. 2
1998 – interrompida
1988 – n. 3, n. 4, n. 5
1999 – n. 14
1989 – n. 6
2000 – n. 15
1990 – n. 7
2001 – n. 16, n. 17
10. Geografia – Periódicos
2002 – Ano 18, v.1, n. 18; v.2, n. 19
10. AGB. Diretoria Nacional
2003 – Ano 19, v.1, n. 20; v. 2, n. 21
2004 – Ano 20, v.1, n. 22; v. 2, n. 23
1991 – n. 8, n. 9
2005 – Ano 21, v.1, n. 24
1992 – N. 10
2005 – Ano 21, v. 2, n. 25
Revista Indexada em Geodados
2006 – Ano 22, v. 1, n. 26
2006 – Ano 22, v. 2, n. 27
www.geodados.uem.br
2007 – Ano 23, v. 1, n. 28
CDU – 91 (05)
ISSN 0102-8030
2007 – Ano 23, v. 2, n. 29
2008 – Ano 24, v. 1, n. 30
2008 – Ano 24, v. 2, n. 31
Solicita-se permuta / Se solicita intercambio / We ask for echange
4
SUMÁRIO
EDITORIAL
ARTIGOS
CUL
TURAS DESVIANTES: ESP
ACIALIDADES DOS POVOS
ULTURAS
SPACIALIDADES
RIBEIRINHOS DO VALE DO GUAPORÉ 17 - 31
AVACIR GOMES DOS SANTOS
MARIA GERALDA DE ALMEIDA
ESP
AÇO,
SPAÇO
O
POLÍTICA E PERIFERIA: AS POLÍTICAS SOCIAIS NA RE–
PRODUÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE PRODUÇÃO.
LUIZ ANTÔNIO EVANGELISTA DE ANDRADE
PAPEL DOS FATORES LOCACIONAIS NA CRIAÇÃO DO TECNOPÓLO
CAMPINA GRANDE-PB
ERNANI MARTINS DOS SANTOS FILHO
SERGIO FERNANDES ALONSO
A
FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA DINÂMICA TERRITORIAL DO
CAPIT
AL
CAPITAL
VALHAL
ARV
MARCELO DORNELIS CAR
ANTONIO THOMAZ JUNIOR
A RELEVÂNCIA
DO LUGAR NA INTERPRET
AÇÃO GEOGRÁFICA EM
INTERPRETAÇÃO
TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO
LUCIANO ZANETTI PESSÔA CANDIOTTO
A RENDA DA TERRA EM MARX E A QUESTÃO DA MORADIA URBANA
EM ENGELS
VA
ILV
MARCIO RUFINO SIL
METROPOLIZAÇÃO,
ÁREAS METROPOLIT
ANAS E AGLOMERAÇÕES
METROPOLITANAS
ANDO CONCEITOS.
URBANAS: REVISIT
REVISITANDO
CLEVERSON CLEVERSON ALEXSANDER REOLON
SEGREGAÇAO
SOCIOESP
ACIAL INTERURBANA: UMA HIPÓTESE?
SOCIOESPACIAL
CLÁUDIA MARQUES ROMA
A (IN)JUSTIÇA SOCIAL E A
CIDADE: NOT
AS SOBRE ACESSO E
NOTAS
EQUIDADE NO TRANSPORTE PÚBLICO URBANO
SANDRA RODRIGUES BRAGA
MURILO MENDONÇA DE OLIVEIRA SOUZA
HIDROTERRITÓRIOS
A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS NOS
TERRITÓRIOS DO SEMI–ÁRIDO NORDESTINO
AVANÍ TEREZINHA GONÇALVES TORRES
PEDRO COSTA GUEDES VIANNA
33 - 48
49 - 62
63-74
75-91
93-101
103-110
111-132
133-144
145-162
5
A AUTORIA DE
LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA EM PERNAMBUCO
NO SÉCULO XIX: UMA RELAÇÃO ENTRE A LEGISLAÇÃO E A
ELABORAÇÃO
MARIA ADAILZA MARTINS DE ALBUQUERQUE
ONDE SE
CONSTRÓI A IDENTIDADE FORMA
TIV
A DO GEÓGRAFO E
FORMATIV
TIVA
DO PROFESSOR DE GEOGRAFIA? OU AINDA, É POSSÍVEL FAZER
GEOGRAFIA NOS CURSOS DE GEOGRAFIA?
VA
ILV
JORGE LUIZ BARCELLOS DA SIL
REGINA RIZZO RAMIRES
TERRITÓRIO E POLÍTICA EST
ATAL: A INDÚSTRIA DA PESCA NO
STA
BRASIL
CÉSAR AUGUSTO ÁVILA MARTINS
163-171
173-179
181-201
203-213
TURA E GERAÇÃO DE ENERGIA
PESCA ARTESANAL, CARCINICUL
CARCINICULTURA
EÓLICA NA ZONA COSTEIRA DO CEARÁ
MARIA DO CÉU DE LIMA
RESENHA
217-219
ADAM SMITH
EM PEQUIM: ORIGENS E
FUNDAMENTOS DO SÉCULO XXI
LEANDRO BRUNO SANTOS
DISCURSO
DISCURSO DE ABERTURA NA TENDA DE REFORMA URBANA, 29
DE JANEIRO DE 2009, FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, BELÉM
221-227
VEY
HARVEY
DAVID HAR
NORMAS 229-234
NORMAS
PARA PUBLICAÇÃO
COMPÊNDIO 235-248
COMPÊNDIO
6
DOS NÚMEROS
SUMMAR
Y/SUMARIO
SUMMARY/SUMARIO
FOREWORD/EDITORIAL
ARTICLES/ ARTÍCULOS
CULTURES DEVIANTS: SPATIAL RIBEIRIÑOS PEOPLES GUAPORÉ VALLEY
CULTURAS DESVIANTES: ESPACIALIDADES DE PUEBLOS RIBEIRIÑOS DEL VALLE DEL
GUAPORÉ
AVACIR GOMES DOS SANTOS
MARIA GERALDA DE ALMEIDA
17 - 31
SPACE, POLITICS AND PERIPHERY: SOCIAL POLICIES IN THE RE-PRODUCTION OF
SOCIAL RELATIONS OF PRODUCTION
EL ESPACIO, LA POLÍTICA Y LA PERIFERIA: LAS POLÍTICAS SOCIALES EN LA REPRODUCCIÓN DE RELACIONES SOCIALES DE PRODUCCIÓN
LUIZ ANTÔNIO EVANGELISTA DE ANDRADE
33 - 48
THE PAPERS OF THE LOCATIONAL FACTORS IN THE CREATION
OF TECHNOPOLO CAMPINA GRANDE-PB
LES PAPIERS DES FACTEURS DU LOCALIZACITION DANS LA CREATION
DU TECHNOPOLE CAMPINA GRANDE-PB
ERNANI MARTINS DOS SANTOS FILHO
SERGIO FERNANDES ALONSO
49 - 62
THE TERRITORIAL DYNAMICS OF CAPITAL AND ITS EFFECTS ON THE WORLD OF WORK
LA DINÁMICA TERRITORIAL DEL CAPITAL Y SUS EFECTOS SOBRE EL MUNDO DEL
TRABAJO
MARCELO DORNELIS CARVALHAL
ANTONIO THOMAZ JUNIOR
THE IMPORTANCE OF PLACE IN GEOGRAPHICAL APROACH IN TIMES OF GLOBALIZATION
LA RELEVANCIA DEL LUGAR EN LA INTERPRETACIÓN GEOGRÁFICA EN TIEMPOS DE
GLOBALIZACIÓN
LUCIANO ZANETTI PESSÔA CANDIOTTO
63-74
75-91
THE RENT OF LAND IN MARX AND THE QUESTION OF URBAN DWELLING IN ENGELS
LA RENTE DE LA TERRE CHEZ MARX ET LA QUESTION DE L’HABITATION URBAINE
CHEZ ENGELS
MARCIO RUFINO SILVA
93-101
METROPOLIZATION, METROPOLITAN ÁREAS AND URBAN AGGLOMERATIONS: REVISING
CONCEPTS
METROPOLIZACIÓN, ÁREAS METROPOLITANAS Y AGLOMERACIONES URBANAS:
REVISANDO CONCEPTOS
CLEVERSON CLEVERSON ALEXSANDER
REOLON
103-110
SOCIO-SPATIAL INTERURBAN SEGREGATION: A HYPOTHESIS?
SEGREGACIÓN SOCIOESPACIAL INTERURBANA: ¿UNA HIPÓTESIS?
CLÁUDIA MARQUES ROMA
111-132
SOCIAL (IN)JUSTICE AND THE CITY: NOTES CONCERNING THE ACCESS AND EQUITY
IN THE URBAN PUBLIC TRANSPORT
LA (IN)JUSTICIA SOCIAL Y LA CIUDAD: NOTAS SOBRE EL ACESSO E LA EQUIDAD EN
EL TRANSPORTE PÚBLICO URBANO
SANDRA RODRIGUES BRAGA
MURILO MENDONÇA DE OLIVEIRA SOUZA
133-144
7
HYDRO-TERRITORIES THE INFLUENCE OF WATER RESOURCES IN SEMI-ARID
TERRITORIES IN THE NORTHEAST REGION
HIDRO-TERRITOIRIE L’INFLUENCE DES RESSOURCES HYDRIQUES DANS LES
TERRITOIRES DE LA REGION DEMI ARIDE NORD-EST BRÉSILIENE
AVANÍ TEREZINHA GONÇALVES TORRES
PEDRO COSTA GUEDES VIANNA
THE AUTHORSHIP OF TEXTBOOK OF GEOGRAPHY IN PERNAMBUCO IN THE
145-162
19TH
CENTURY: A RELATIONSHIP BETWEEN THE LEGISLATION AND THE ELABORATION
AUTORES DE LIBROS DIDÁCTICOS DE GEOGRAFIA EN PERNAMBUCO EN EL SIGLO XIX:
UNA RELACIÓN ENTRE LA LEGISLACIÓN Y SU CREACIÓNS
163-171
MARIA ADAILZA MARTINS DE
ALBUQUERQUE
ABOUT BUILDING THE IDENTITY OF THE FORMATIVE GEOGRAPHER AND PROFESSOR OF
GEOGRAPHY? OR, YOU CAN MAKE GEOGRAPHY COURSES IN GEOGRAPHY?
SOBRE LA CONSTRUCCIÓN DE LA IDENTIDAD DEL GEÓGRAFO DE FORMACIÓN Y
PROFESOR DE GEOGRAFÍA?
173-179
O BIEN, PUEDE HACER CURSOS DE GEOGRAFÍA EN LA
GEOGRAFÍA?
JORGE LUIZ BARCELLOS DA SILVA
REGINA RIZZO RAMIRES
TERRITORY AND STATE POLICY: THE FISHING INDUSTRY IN BRAZIL
TERRITORIO Y POLÍTICA ESTATAL: LA INDUSTRIA DE LA PESCA EN BRASIL
CÉSAR AUGUSTO ÁVILA MARTINS
181-201
ARTISANAL FISHERY, “CARCINICULTURA” AND THE GENERATION OF AEOLIAN ENERGY
IN THE COASTAL ZONE IN CEARÁ.
MARIA DO CÉU DE LIMA
203-213
DIGEST/RESENHA
ADAM SMITH EM PEQUIM: ORIGENS E FUNDAMENTOS DO SÉCULO XXI
LEANDRO BRUNO SANTOS
217-219
DISCOURSE/DISCURSO
OPENING SPEECH AT THE TENT OF URBAN REFORM, 29 JANUARY 2009 WORLD
SOCIAL FORUM, BELEM/PA-BRASIL
DAVID HARVEY
221-227
STANDARDS/NORMAS
STANDARDS FOR PUBLICATION
NORMAS PARA PUBLICACIÓN
229-234
COMPENDIUM/COMPENDIO
COMPENDIUM OF THE PREVIUS NUMBERS
COMPENDIO DE LAS ANTERIORES
8
235-248
EDITORIAL
A Terra Livre chega à edição número 31 com o mesmo dinamismo e objetivos traçados
pelo coletivo da AGB, quando da publicação de sua edição de lançamento. No decorrer deste
período, a revista foi aprimorada em sua forma sem deixar de lado sua principal característica: ser a revista dos geógrafos e por eles construída.
Em cada novo número a AGB coloca para a reflexão e a crítica artigos que expressam
as leituras e as diversidades dos olhares sobre o mundo, garantindo a pluralidade das idéias
com o sonho da possibilidade de transformação.
Nesses anos de existência a Revista Terra Livre foi organizada por diferentes diretorias nacionais, contanto com a militância de muitos geógrafos e colaboradores, que dedicaram
tempo e capacidade intelectual para sua produção.
Chegar ao número 31 de uma revista de nível nacional é um privilégio para poucas
entidades. Evoluir e conseguir manter seus objetivos, aprimorar-se e ser reconhecida como
relevante instrumento de reflexão é ainda mais raro.
Por este motivo, entendemos a importância e a responsabilidade da tarefa que assumimos na coordenação editorial deste periódico, que se pauta pela transparência no recebimento dos artigos através das chamadas públicas, na seleção destes pelos pares escolhidos
junto ao coletivo da entidade e na militância da formatação de cada exemplar visando o reconhecimento de sua qualidade.
Desta forma, a construção de cada número da Revista Terra Livre constitui-se como
um ato coletivo da Geografia brasileira, sendo, portanto, resultado final e expressão da atuação de estudantes, professores, geógrafos, além de colaboradores de diferentes áreas do conhecimento.
A presente edição, que traz como tema “LEITURAS GEOGRÁFICAS: multiplicidade
de olhares”, é um convite para reflexão e para crítica a partir da pluralidade de temas e de
idéias publicadas. Convidamos a todos para a instigante tarefa da leitura e do pensar.
OS EDITORES
9
10
EDITORIAL
Terra Livre reaches issue number 31 while maintaining the same dynamism and
objectives outlined at the time of publication of his edition of release. During this period, the
journal has been improved its format without forgetting your main characteristic: be the
geographers’ journal and built by them.
In each new edition, AGB place for reflection and critical articles that express the
readings and the diversity of views on the world, ensuring the plurality of ideas with the wish
of the possibility of transformation.
In these years of existence the journal Terra Livre was organized by various national
boards, relying on the militancy of many geographers and colleagues, who have dedicated
time and intellectual capacity to its production.
Getting to number 31 of a national journal is a privilege for few entities. Evolve and
maintain your goals, improve and be recognized as an important tool for reflection is even
rarer.
Therefore, we understand the importance and responsibility of the task that we take
on the editorial staff of this periodic, which is characterized by the transparency in the receipt
of articles by public calls, in the selection of the articles by referees chosen by the collective
entity and the militancy of the formatting of each exemplar aiming the recognition of its
quality.
Thus, the construction of each issue of the journal Terra Livre constitutes a collective
act of the Brazilian Geography and therefore, being the final result and expression of the
performance students, professors, geographers, and collaborators from different disciplines.
This issue, which carries the theme “GEOGRAPHICAL READING: multiple looks” is
a call for reflection and criticism from the plurality of themes and ideas published. We invite
everyone to the exciting task of reading and thinking.
THE EDITORS
11
12
EDITORIAL
Terra Livre llega a la edición número 31 con el mismo dinamismo y objetivos trazados
por el colectivo de la AGB, cuando se publicó su edición de lanzamiento. En el transcurso de
este período, la revista fue perfeccionada en su forma sin dejar de lado su principal característica: ser la revista de los geógrafos y por ellos construida.
En cada nuevo número la AGB coloca para la reflexión y la crítica de artículos que
expresan las lecturas y las diversidades de las miradas sobre el mundo, garantizando la
pluralidad de las ideas con el sueño de la posibilidad de transformación.
En estos años de existencia la Revista Terra Livre fue organizada por diferentes
directorios nacionales, contando con la militancia de muchos geógrafos y colaboradores, que
dedicaron tiempo y capacidad intelectual para su producción.
Llegar al número 31 de una revista de nivel nacional es un privilegio para pocas entidades. Evolucionar y conseguir mantener sus objetivos, perfeccionarse y ser reconocida como
relevante instrumento de reflexión es todavía más raro.
Por este motivo, entendemos la importancia y la responsabilidad de la tarea que
asumimos en la coordinación editorial de este periódico, que tiene como pauta la transparencia
en la recepción de los artículos a través de las llamadas públicas, en la selección de estos por
los pares escogidos junto al colectivo de la entidad y en la militancia de la formatación de cada
ejemplar buscando el reconocimiento de su calidad.
De esta forma, la construcción de cada número de la Revista Terra Livre se constituye
como un acto colectivo de la Geografía brasileña, siendo, por lo tanto, resultado final y expresión
de la actuación de estudiantes, profesores, geógrafos, además de colaboradores de diferentes
áreas del conocimiento.
La presente edición, que trae como tema “LECTURAS GEOGRÁFICAS: Múltiples formas de miradas”, es una invitación para reflexión y para crítica a partir de la pluralidad de
temas y de ideas publicadas. Invitamos a todos para la estimulante tarea de la lectura y del
pensar.
LOS EDITORES
13
14
ARTIGOS
15
16
CUL
TURAS
ULTURAS
DESVIANTES:
ESP
ACIALIDADES
SPACIALIDADES
DOS POVOS
RIBEIRINHOS DO
VALE DO GUAPORÉ
CUL
ULTURES
TURES
DÉVIANTES:
SPACIALITÉS DES
POPULA
OPULATIONS
TIONS
RIVERAINES DU VALE
DU GUAPORÉ
CUL
ULTURES
TURES
DÉVIANTES:
SPACIALITÉS DES
GENS RIVERAINES DU
VALE DU GUAPORÉ
CUL
ULTURAS
TURAS
DESVIANTES:
ESP
SPACIALIDADES
ACIALIDADES DE
PUEBLOS RIBEIRIÑOS
DEL VALLE DEL
GUAPORÉ
AVACIR GOMES DOS
SANTOS*
[email protected]
MARIA GERALDA
ALMEIDA*
DE
UNIVERSIDADE
FEDERAL DE GOIÁSUFG
[email protected]
* Programa de
Pós-Graduação em
Geografia - Instituto de
Estudos SócioAmbientais-IESA
Terra Livre
Resumo: A compressão espaço-tempo é fenômeno natural? As
consequências da modernidade são experiências universais? O
cotidiano é tempo da mesmice? O lugar é espaço alienante? Este
ensaio põe em xeque tais questões. Existem modos de viver não
convenientes e nem convincentes as leis do mercado. Esses modos
são encontrados nas cidades, vivências solitárias de práticas
desviantes. Nas comunidades ribeirinhas amazônicas, a cultura
desviante funda a existência. Caminhantes entre mundos: águas
e florestas, os ribeirinhos do Vale do Guaporé vivenciam
espacialidades fugitivas da concepção universal, totalizante e
naturalizante do capital. Buscamos compreender a lógica das
culturas desviantes no diálogo entre cotidiano, lugar, espaço
percebido, concebido e vivido; assim, recorremos à abordagem
cultural e ao exercício da hermenêutica dupla. Na lida cotidiana,
conjugada com o sentido de pertença ao lugar, indivíduos e grupos
se desviam das formas consumistas de espaço/tempo. Uma
geografia desviante, construída na totalidade do viver, pensar e
fazer geografia é o caminho proposto para nos envolvermos
nessas vidas desviantes.
Palavras – chave: culturas desviantes, comunidades ribeirinhas,
Vale do Guaporé, Geografia desviante, hermenêutica dupla..
Résumé
Résumé: La compreension space-temps est-elle un phenomène
naturel? Des consequences de la modernité sont-elles des
experiences universelles? Le cotidien est un temps de la mêmeté?
Le lieu est un espace aliénant? Ce essai a mis en échec ces
questions. Il y a modes de vie qui ne sont pas convenables et pas
convaincants pour à les lois de marché. Ces modes sont trouvés
dans les villes, les vies solitaires des pratiques déviantes. Dans
les comunités riveraines amazoniques, la culture déviante fonde
l’existence. Des passants sont entre mondes: eaus et fôrets,
riveraines du Vale du Guaporé vivent spacialités fugitives de la
conception universelle, totalisante et naturalisante du capital .
On cherche comprendre la logique des cultures déviantes dans
le dialogue entre quotidien, lieu, espace perçu, espace conçu et
espace vécu. Ainsi on appele l’abordage culturel e l’exercice de
la herméneutique double. Dans la vie de tout les jours, combiné
avec le sens d’appartenence au lieu, individus et groupes se
détournent des formes consumistes du espace/temps. Une
géographie déviante, construit dans la totalité du vivre, penser
et faire géographie est le chemim proposé pour nous engager
dans cettes vies déviantes .
Mots-clé
Mots-clé: cultures déviantes, comunités riveraines, Vale du
Guaporé, géographie déviante, herméneutique double.
Resumen
Resumen: La comprensión espacio-tiempo es un fenómeno natural? Las consecuencias de la modernidad son experiencias
universales? Lo cotidiano es tiempo de vulgaridad? El lugar, es
espacio enajenante? Este ensayo pone en duda tales cuestiones.
Existen modos de vivir inconvenientes, dudosos y conflictantes
con las leyes de mercado. Estos modos son encontrados en la
ciudades, vivencias solitarias de prácticas desviantes. En las
comunidades riberiñas amazónicas, la cultura desviante sirve
de base la existencia. Caminantes entre mundos, aguas y selvas, los riberiños del Valle del Guaporé viven espacialidades
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 17-31
Jul-Dez/2008
17
SANTOS, A. G., ALMEIDA, M. G.
CULTURAS DESVIANTES: ESPACIALIDADES DOS ...
INTRODUÇÃO
Um grupo de pessoas vivia numa caverna. Elas estavam lá desde a infância, algemadas
pelas pernas e pescoços de tal maneira permaneciam presas no mesmo lugar, não conseguiam movimentar a cabeça, por causa das correntes. A iluminação da caverna vinha da
fogueira acessa ao longe, por detrás delas. Entre a fogueira e os prisioneiros havia um
caminho ascendente, no qual fora construído um pequeno muro. Ao longo dele, homens
caminhavam e transportavam objetos. Os moradores da caverna só conseguiam ver as
sombras de si mesmos e dos vizinhos projetadas na parede pelo fogo. Eles julgavam as
sombras como seres reais e o eco das vozes vindas de fora como sendo a voz das sombras
que desfilavam a frente deles. Por acaso, um desses homens conseguiu se livrar das
correntes, virou a cabeça, levantou-se, andou, olhou para o lado da luz e caminhou na
direção da entrada da caverna. Quando, por fim, conseguiu sair, à intensidade da luz
ofuscou sua visão. Aos poucos, o homem foi se adaptando a claridade. Ele ficou maravilhado com a beleza das coisas que passou a enxergar: rios, montanhas, flores, homens,
objetos, florestas, bichos, constelações, céu, astros, lua e sol. Depois de certo tempo, o
homem se lembrou dos antigos amigos. Sentiu pena deles e resolveu voltar para lhes
contar todas as coisas extraordinárias que havia conhecido. Quando entrou na caverna,
o aventureiro teve os olhos ofuscados pelas trevas. Antes de recuperar a visão, ele falava
sem parar das novidades. Tentava convencer os amigos: as sombras não eram reais!
Existe um mundo magnífico repleto de cores, aromas, sabores e paisagens lindíssimas!
Naquele lugar, as pessoas vivem em liberdade! Os prisioneiros ficaram aterrorizados. O
amigo voltara louco, endoidecido, eles concluíram. Afinal, como poderia um cego ver
mais que eles? Como poderia existir um mundo diferente daquele onde eles viviam? De
tanto falar, pular, gritar de euforia e, simultaneamente, se bater contra a escuridão, o
homem caiu perto dos acorrentados. Enfurecidos, eles o agarram e o mataram. (Do Livro
VII - A República - Platão. Adaptação Avacir Gomes dos Santos).
No desfecho original do mito da caverna, o aventureiro permanece vivo pelo fato de os
companheiros estarem presos. Como na alegoria platônica, pessoas ou grupos sociais que
vivenciam espacialidades e relações de forma diferenciada daquilo aceito como normal estão
condenadas à ignorância da unanimidade. A morte física ou não do herói é questão secundária. O relevante é a ruptura epistemológica, o conflito cognitivo, a busca da “verdade”, a descoberta do real e o contato com o diferente provocado por operações, processos e práticas
desviantes. Os devires, sonhos, desejos, são materializados nas aventuras dos desvios, espaços incertos, indicadores de novas possibilidades.
Uma excursão interna na estrutura do mito da caverna, contextualização, conflito,
clímax e desfecho revelam sua gênese desviante. Sócrates, por meio da oralidade e, posteriormente, Platão, por intermédio da escrita, instituíram a verdade filosófica em detrimento da
verdade mítica. Ambos ensinaram a seus seguidores a relativizar o mundo apreendido pelos
sentidos. Na atualidade, é preciso filosofar sobre os discursos apregoados por Estado, religião,
escola, família, partido, sindicato, televisão, internet, instrumentos aprisionantes da
modernidade. As imagens por eles projetadas, as vozes que eles emitem, as verdades que
defendem não são reais. O mundo é diferente daquilo que por eles é transmitido. “Conhece-te
a ti mesmo”, pensa sobre tudo que é dado, espanta-te com o natural, nada é evidente. O
mundo não é apenas o espaço mensurável. A paisagem não se resume ao visível. Estas eram
lições desviantes num mundo regido pela vontade de deuses, titãs, ninfas, heróis, semideuses,
escolhidos, cavalos alados, serpentes, monstros, enigmas e oráculos.
Subjacente à lógica da alegoria da caverna, está a imposição da escrita em detrimento
à oralidade. Não sabemos se Sócrates teve uma existência física ou se Platão criou essa persona
para corroborar e proclamar o que na época a sociedade não estava pronta para aceitar, os
espaços são construções sociais realizadas pela vontade e necessidade humanas e não capricho das entidades divinas.
Além dessas operações desviantes, Plantão ensina a mais importante das lições: o
verdadeiro discípulo não segue o mestre. Não imita sua forma de ser. Ele o supera. Para
superá-lo, desvia-se do caminho ensinado. O espaço percorrido não é fonte criadora, ele apenas confirma o “cristalizado”. Sócrates pregava o caminho da moral e da ética. Platão é o
filósofo progenitor da razão, ele se volta para a comprovação das limitações das experiências
18
Terra Livre - n. 31 (2): 17-31, 2008
empíricas na busca da verdade.
Por meio da inspiração provocada pelo mito da caverna e suas lições desviantes elaboramos a escrita deste ensaio, organizado em quatro momentos. Inicialmente, o item, Culturas desviantes: primeiras aproximações teóricas é nossa tentativa de provocar uma reflexão
filosófica e um exercício interpretativo da produção do conhecimento científico e, por conseguinte, da ciência geográfica. Partimos da discussão sobre modernidade e pós-modernidade
para compreender como a ideia de cultura foi recriada no campo das ciências humanas e a
contribuição da geografia humana e da abordagem cultural ao repensar tal conceito pela
mediação das práticas e culturas desviantes.
No segundo momento, Lugar e cotidiano: espaço e tempo das culturas desviantes elegemos como elementos de análises geográficas os conceitos: cotidiano, lugar, práticas
desviantes, espaço concebido, percebido e vivido. Consideramos que, enquanto fenômeno geográfico e social, as práticas desviantes estão submersas nas ondas virtuais e verticais das
metrópoles. Mercado internacional, globalização, mundialização econômica, compressão tempo-espaço, ciberespaço, modernidade líquida, desterritorialização, exclusão sócio-espacial,
escassez tempo-espacial, as práticas desviantes se materializam nesses contextos, no espaço/
lugar e no tempo/cotidiano por meio de inúmeras operações.
No item três, Comunidades ribeirinhas do Vale do Guaporé: mensageiras de culturas
desviantes, consideramos um grupo social determinado (os ribeirinhos do Vale do Guaporé)
como exemplo de comunidade portadora da cultura desviante. Suas espacialidades, o viver
entre mundos: águas e florestas, a forma de apropriação do espaço, a convivência em comunidade e o sentimento de pertencimento ao lugar e a vivência do tempo lento são elementos
constituídores e constituintes de práticas desviantes, subversoras do espaço-tempo
mercantilizados.
No quarto momento, Geografias desviantes: metodologias possíveis, propomos um fazer geográfico desviante, capaz de compreender práticas e culturas que fogem à concepção
dominante. Uma Geografia Desviante privilegiará espacialidades cotidianas na junção
interdisciplinar, pois o espaço é vivência relacional, criadora, inventiva e formadora da concepção de mundo. Os aportes metodológicos da Geografia desviante, são apresentados por
meio da hermenêutica dupla, constituída pela interpretação crítica, radical e totalizante das
espacialidades culturais desviantes.
O conceito de culturas desviantes, a ser desenvolvido no transcurso deste ensaio, vem
de releitura da tese defendida por Certeau (2001), a “retórica do pedestre”, apresentada na
obra “Invenção do Cotidiano”. Segundo Certeau, por meio das práticas cotidianas, as pessoas
ordinárias se apropriam e recriam o espaço pensado pelas lógicas aprisionantes.
O espaço define os corpos. Os corpos materializam o espaço e recriam espacialidades.
As espacialidades ultrapassam a forma reducionista do espaço físico. Elas se manifestam,
para além dos corpos, em práticas, linguagens, pensamentos, desejos, medos, sonhos, mentes,
memória e células daqueles que vivem a aventura humana dentro dos espaços concebidos,
vividos e desviantes da caverna.
Culturas desviantes: primeiras aproximações teóricas
A modernidade! A grande promessa das revoluções liberais teria alcançado o ápice na
pós-modernidade? Vivemos o tempo e espaço das facilidades. Viagens cada vez mais rápidas e
confortáveis. Formas variadas e ágeis de comunicação. Avanços nunca antes imagináveis na
medicina, tecnologia e produção econômica. A expectativa de vida aumentou de forma significativa se comparada, por exemplo, ao início do século passado. Os intercâmbios entre culturas
e crenças se intensificam notavelmente. Mas, como caixa de Pandora, as dádivas da
modernidade se espalham junto aos elementos indesejáveis. Guerras, violências, doenças,
epidemias, fome, miséria, xenofobia, desemprego, exploração, crises econômicas, escravismo
são intensificados nos diversos espaços em graus e dimensões diferenciados.
Modernidade. Pós-modernidade. Modernidade líquida (BAUMAN, 2006). Pós-modernismo, pós-colonialismo e pós-feminismo. Segundo Bhabha: “nossa existência hoje é marcada
por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver na fronteira do presente” (1994, p. 19).
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CULTURAS DESVIANTES: ESPACIALIDADES DOS ...
No afã de se compreender os enigmas da nova ordem social são construídos paradigmas
interpretativos como o elaborado por Giddens, o sistema de pós-escassez (1991). De acordo
com o autor, “uma ordem pós-escassez envolveria alterações significativas nos modo de vida
social” (1991, p. 165), o que implicaria a aplicabilidade de quatros pilares: ordem global coordenada, transcendência da guerra, sistema de cuidado planetário e organização econômica
socialista.
A discussão referente ao fenômeno da globalização, por vez, chama à baila as questões
de identidades, culturas, territorialidades, interculturalismo, desterritorialização,
multiculturalismo, integração e formação de blocos econômicos. Moneta propõe (1991, p. 23),
[...] la búsqueda, por parte de las elites polítcas y de diversos actores sociales, de
un modelo de perfiles más endógenos, que procure incorporar y compatibilizar,
de manera más equilibrada, la diversidad étnica, las limitaciones de los recursos
econômicos, los nuevos desafios para el sistema político.
A proposta de Moneta tem como intuito promover a integração entre América Latina e
Caribe, processo incapaz, segundo o autor, de ser gerenciado pelo Estado. Contrário à ideia de
enfraquecimento das forças estatais no tangente a política interna e externa, Font (2006)
defende uma re-nacionalização dos Estados nacionais. Para Damiani, “o lugar permanece a
única coisa mensurável, em relação ao mercado mundial, este enorme espaço não mensurável”
(1999, p.171).
Subjacente às discussões políticas sobre modernidade ou pós-modernidade, está em
jogo a funcionalidade dos Estados-Nacionais no atual contexto econômico. Se o capitalismo,
em sua fase mercantilista, durante o século XVIII, expandiu-se sob a égide do Estado, agora,
na fase imperialista, teoricamente, essa instituição é vista como mal desnecessário. Resultante da globalização, surge a formação dos blocos econômicos como garantia da livre negociação. No entanto, ao primeiro sinal de crise, o Estado reaparece como guardião do capital.
Aquele nunca esteve desvinculado deste. Para Arroyo (2006, p. 183), “não se trata, então, de
um Estado ausente, mas sim de um Estado que opta por acentuar a porosidade de suas fronteiras territoriais”.
Essas propostas idealizam a reversão das consequências da modernidade, ou da pósmodernidade. O que elas têm em comum? Das macros às micros análises quais são convergentes? Qual o ponto de partida? As proposições defendem a complexidade da vida moderna
como processo homogêneo, natural e universal. Logo, elas seriam aplicáveis aos indivíduos,
grupos, povos, lugares e culturas dos mais variados espaços e tempos sociais.
Viveríamos todos os seis bilhões de seres humanos no tempo pós-moderno? As benesses,
consequências e lógicas da pós-modernidade são experiências universais? A compressão tempo-espaço descrita por Harvey (1993), seria um fenômeno vivenciado pelas comunidades indígenas amazônicas? As comunidades extrativistas, do Norte Goiano, estudadas por Almeida
(2005), caracterizadas como possuidores de identidades tradicionalistas, se deslocam para
Goiânia com a facilidade usufruída pelos frequentadores da ponte aérea Rio/São Paulo? Ou
da ponte Rio/Niterói? As notícias dos conflitos na faixa de Gaza chegam em “tempo real” aos
moradores das comunidades do Vale do Guaporé (Rondônia) onde não existe energia elétrica?
Não se vive apenas o espaço/tempo da pós-modernidade. Este espaço, como defende Almeida,
[...] além de ser produto das atividades humanas, tem múltiplas valorizações e caracteriza-se por atributos funcionais, estruturais e afetivos. Espaço pode ser, então, considerado como o lugar onde homens e mulheres, ideologicamente diferentes, procuram impor suas representações, suas práticas e seus interesses. Cada espaço, tornando-se social, está possuído de símbolos e afetividades atribuídos pelas pessoas (2003, p. 71).
Espaço, território, região, paisagem e lugar, são espacialidades vivenciadas e
experienciadas pelas pessoas e grupos sociais de maneiras diferentes. Estes conceitos são
elementos fundantes da cultura e das formas como as pessoas, no cotidiano, se apropriam dos
espaços e criam narrativas históricas. Segundo Hall (1997), as tentativas de unificação, seja
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das identidades nacionais, homogeneização de pensamento ou massificação cultural resulta,
sempre, em processos de conquista violenta.
Cultura, conceito complexo, imagético e enigmático. Qual das ciências humanas ou
sociais é capaz de ignorá-lo? Há cultura ou culturas? Estas são definidas a partir daquela? O
sistema de objetos e sistema de ações, as técnicas e tecnologias seriam categorias geográficas
infalíveis captadoras da complexidade dos grupos culturais? Existem culturas tradicionais e
modernas? Quais parâmetros devem ser utilizados para definir o nível de cultura de uma
sociedade? Que contribuições os geógrafos têm prestado à compreensão desse fenômeno eminentemente humano?
O conceito de cultura foi transformado em categoria analítica para vários campos das
ciências humanas: geografia, história, antropologia, psicologia e sociologia. Na proposta que
apresentamos, o conceito cultura é pensado além da lógica hegemônica. Esta, na tentativa de
impor apenas uma concepção de mundo como verdadeira, universal e natural, condena ao
ostracismo a ideia de culturas plurais. Como afirma Chauí (2000, p. 45),
[...] se considerarmos a cultura como ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza, entre si e
com o poder, bem como a maneira pela qual interpretam essas relações, a própria noção
de cultura é avessa à unificação.
A cultura não é unificada, homogênea, totalizante, naturalizante e universalizante.
Ela se constitui de elementos retransmitidos e reinterpretados permanentemente. “As entidades culturais do tipo americanas, indígenas, negras, são antes de tudo construções intelectuais” (CLAVAL, 2001, p. 51). Os resultados das pesquisas acadêmicas captam apenas uma
ínfima parte daquilo que determinado grupo social produz e reproduz culturalmente. Partimos do seguinte pressuposto, cultura é vida, a forma como os agrupamentos humanos
internalizam e externalizam, reciprocamente, a própria existência, a natureza, a sociedade e
demais seres humanos. A cultura especifica o humano. Ela compõe o conjunto de saberes,
crenças, valores, normas, atitudes, comportamentos, instituições, artefatos, técnicas,
simbologias materiais e imateriais que os grupos criam, de que apropriam, e que recriam
para assegurar a manutenção e preservação da espécie.
As práticas cotidianas: andar, comer, dormir, falar, vestir, lavar, ler, acordar, negociar,
escrever, passear, nascer, morrer, cantar, cuidar da higiene pessoal, trocar informações, ouvir,
realizar os ritos de passagens, comprar, nomear coisas, dançar, estudar, reproduzir, descansar, orar, morar e pensar revelam a fundamentabilidade da vida. Qual ciência, conhecimento
ou saber seria capaz de retratar a totalidade da complexidade e riqueza das vivências e experiências humanas?
Nessa tentativa, o conhecimento científico se estrutura, a partir do século XVIII, como
resultante das revoluções liberais, entre elas a revolução científica, que provoca a ruptura
epistemológica da concepção teocêntrica. Desde então, homem, sociedade e natureza são concebidos como objetos de estudos quantificáveis e qualificados, em prol do desenvolvimento e
progressos científicos e sociais.
Nesse sentido, os campos do saber procuraram se encaixar no novo paradigma. Para as
ciências humanas esse será um processo árduo, tendo em vista a dificuldade de quantificar a
subjetividade por meio dos pressupostos das abordagens mecanicistas das ciências naturais.
A ciência moderna impôs às áreas de conhecimento a definição de seus respectivos objetos de
estudos. Esta especificação era condição primeira à garantia de aceitabilidade e reconhecimento do status da racionalidade, nos cânones científicos.
A geografia e a história, no afã de se constituírem enquanto disciplinas, apostaram nas
maiores abstrações da ocidentalidade: espaço e tempo. Aprovadas no primeiro teste cientificista,
ambas, desde então, se agarram ao fio de Ariadne para não se perderem no labirinto da neutralidade e serem devoradas pelo “monstro” da subjetividade. Dessa forma a história clássica
fragmentou seu objeto, o tempo, em: pré-história, antiguidade, idade média, história moderna e contemporânea. A geografia, por seu turno, agenciou para si os conceitos: território,
região, espaço, paisagem e lugar, representados nas diversas escalas: global, mundial, continental, nacional, regional e local. É por meio destas categorias analíticas que os geógrafos se
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CULTURAS DESVIANTES: ESPACIALIDADES DOS ...
lançam a procura de compreender os mistérios do existir humano. De acordo com Cosgrove
(2000, p. 34),
[...] os geógrafos culturais compartilham o mesmo objetivo de descrever e entender as
relações entre a vida humana coletiva e o mundo natural, as transformações produzidas
por nossa existência no mundo da natureza e, sobretudo, os significados que a cultura
atribui à sua existência e às relações com o mundo natural.
O desafio proposto por Cosgrove aos geógrafos culturais é corroborado por Claval (2001),
não por meio da geografia cultural, mas da abordagem cultural, própria da geografia humana. Segundo Claval, “a abordagem cultural [...] conscientiza os geógrafos de que suas atividades fazem parte da esfera cultural e que é impossível construir uma abordagem cientifica
livre de determinação cultural” (p. 52).
A esfera cultural contempla a forma como seres humanos criam e recriam signos, significados e significantes. Neste sentido, os grupos estabelecem intrinsecamente com o espaço
relações sígnicas. Na proposta “Por uma Geografia do Poder”, Raffestin defende, “é por esses
sistemas sêmicos que se realizam as objetivações, que são processos sociais” (1993, p.144).
Tendo em vista que o espaço é relacional, Massey (2000), amplia esta visão ao apresentar as
perspectivas da Geografia das Relações Sociais. A autora convida (2000, p. 184):
[...] imagine não apenas todo o movimento físico ou toda comunicação invisível, mas
também – e especialmente – todas as relações sociais, as ligações entre as pessoas, as
experiências da compressão tempo-espaço, as relações econômicas, políticas e
socioculturais, cada qual cheia de poder e com estruturas internas de dominação e subordinação, estendem-se pelo planeta em diferentes níveis, da família à área local e até
internacional”.
Mais recentemente, a Geografia das Representações busca compreender como as pessoas expressam, por meio das operações e representações cognitivas, suas experiências nas
diferentes formas de apropriação do espaço. De acordo com Kozel, “caberia sobretudo à geografia das representações entender os processos que submetem o comportamento humano,
tendo como premissa que este é adquirido por meio da experiência (2002, p. 215).
A Geografia das Representações (KOZEL, 2002), a Geografia do Poder (RAFFESTIN,
1993), a Geografia das Relações Sociais (MASSEY, 2000) e a Abordagem Cultural (CLAVAL,
2001) ampliaram de forma significativa o campo analítico da geografia referente aos objetos,
técnicas e métodos de investigação das espacialidades. Com o intuito de também contribuir
com tal empresa apresentamos as primeiras aproximações do conceito de culturas desviantes
e construção dos aportes teóricos da Geografia, por nós denominada Desviante por meio da
abordagem cultural da geografia humana.
Segundo o Dicionário Aurélio, desvio significa: “ato ou efeito de desviar-se e afastamento da direção ou posição normal”. Definimos práticas, processos e culturas desviantes
como operações que fogem a lógica estabelecida pela sociedade capitalista. Para Certeau, são
práticas desviantes as “criações anônimas e perecíveis que irrompem com vivacidade e não se
capitalizam” (2001, p.13).
Na análise sociológica, Durkheim (1999) foi o pioneiro nas formulações sobre teoria de
desvio social. Ele criou o conceito de irregularidade ou enfraquecimento das normas que asseguram a ordem social, surgidas em consequência às mudanças produzidas pela divisão de
trabalho. De tal forma, desvio social era caracterizado como todo e qualquer tipo de comportamento desviante das normas sociais. Não constituiria, necessariamente, uma transgressão
da lei, mas sim uma não observância das normas.
A preocupação de Durkheim era identificar e analisar comportamentos ou fenômenos
que poderiam colocar em desequilíbrio a harmonia social. Na atualidade, as ciências humanas, pelo contrário, buscam compreender como, apesar de todos os sistemas de controle e
vigilância, os grupos sociais criam e recriam práticas que fogem às lógicas universais. Segundo Certeau, “é mister ocupar-se com maneiras diferentes de marcar socialmente os desvio
operado num dado por uma prática” (2001, p. 15).
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Num mundo gerido pela globalização e hegemonia em todos os domínios sociais onde
encontrar espaços e lugares de vivências de práticas desviantes? As práticas desviacionistas
estão em tocaia no mundo moderno. Ao andar pelas cidades, caminhar pelas ruas, avenidas,
praças ou boulevares, espaços institucionalizados, o caminhante recria traçados espaciais
que fogem ao desejo disciplinar. A “retórica pedestre” (CERTEAU, 2001) se encontra revestida
de práticas sociais apesar da existência dos espaços disciplinares. Os movimentos corpóreos
criam espacialidades. “Nenhuma lei é inteiramente geral é absoluta” (LEFEBVRE, 2001, p.
7). Em contraposição às estratégias espaciais restam aos andarilhos a utilização de táticas
que invertam a ordem estabelecida para consumo do espaço. Andar na passarela é seguro,
mas é preciso criar caminhos desviantes e corporificar espaços proibidos.
Essa capacidade desviante e inventiva dos sujeitos andantes é aprofundada por Certeau
(2001). Apesar das estratégias de controle espacial, o ser ordinário, o homem comum, é um ser
inventivo, criativo e bricoleiro. Existem, segundo Certeau,
mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros,
caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio,
devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas. Tem
que “fazer com”. Nesses estratagemas de combatentes existe uma arte de golpes, dos
lances, um prazer em alterar as regras do espaço opressor (2001, p. 79).
Não somente o cotidiano, vivenciado no presente do imediato, está pleno de práticas
desviantes. A História brasileira oficial tem o desvio geográfico como mito fundador do país. A
esquadra, comandada por Cabral, parte do Porto de Lisboa com o caminho determinado para
chegar às Índias. Em 22 de abril de 1500, se desvia para Oeste da rota estabelecida por Vasco
da Gama (FERREIRA, 1991). Por meio de caminhos desviantes, os navegadores encontram o
Brasil. Belo mito fundador!
Durante o período de colonização, os “indígenas”, inicialmente, e, depois, os “negros”
foram submetidos à lógica de dominação do conquistador europeu, no entanto, esses marginalizados sociais, seres desviantes, se revelaram capazes, segundo Certeau, de “metaforizarem
a ‘ordem dominante’ fazendo funcionar as suas leis e suas representações ‘num outro registro’, no quadro de sua própria tradição” (2001, p. 18).
Presentemente, o cotidiano está pleno de práticas desviacionistas. Alunos gazeteiros
se jogam em aventuras desviantes para além dos muros escolares. Outra prática desviante no
cotidiano educacional é a cola - processo desviante no qual os alunos são especialistas. Escritas enigmáticas espalhadas pelas carteiras, tetos e quadro-giz; minúsculos manuscritos escondidos nas roupas, bolsas, cabelos, pernas, sapatos; códigos indecifráveis; gestos
combinatórios; quando o professor descobre uma das táticas os alunos já estão há ano-luz de
uma nova bricolagem (SANTOS, 2007).
Nos campi universitários, como em qualquer espaço controlado, as passarelas indicam
o caminho a ser percorrido. Como é instigante ver entre elas os desvios construídos por meio
das práticas caminhantes, silenciosas, incansáveis. Passarelas, desejo de controle dos corpos
transeuntes. Desvios, práticas caminhantes daqueles, que consciente ou inconscientemente,
negam a ordem estabelecida que em nome do “conforto” e “segurança”, determina “siga o
modelo”. Como afirma Certeau: “os jogos dos passos moldam espaços” (2001, p. 176).
Como desdobramento do conceito desvio social, propomos a busca da compreensão dos
grupos sociais por meio do conceito desvio cultural, práticas subversoras da ordem social. O
conjunto dessas práticas permite a construção do conceito culturas desviantes. Recorremos
aos pressupostos apresentado por Santos (2003) para a formulação do conceito comunidades
desviantes. Nas comunidades que fogem à lógica do mercado capitalista, as relações entre
setores da vida social são vivenciadas de forma mais direta, sem interferência constante dos
objetos. Existe, nas práticas cotidianas, uma territorialidade genuína,
Isto cria um sentido de identidade entre as pessoas e o seu espaço geográfico, que lhes
atribui, em função da produção necessária a sobrevivência do grupo, uma noção particular de limites, acarretando, paralelamente, uma compartimentação do espaço, o que
também produzia uma idéia de domínio. [...] A política do território tinha as mesmas
bases que a política da economia, da cultura, da linguagem, formando um conjunto
indissociável (SANTOS, 2003, p. 62).
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As relações econômicas, sociais e políticas nas comunidades desviantes são definidas
com base no sentimento de pertença ao território. Mais que porção física, o território é relacional,
pois resulta das relações que os indivíduos estabelecem entre natureza e cultura. “O território
é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo
que nos pertence” (SANTOS, 2003, p. 96).
Na atualidade, os sistemas midiáticos organizam e controlam as formas de comunicação e socialização, as quais se tornaram tanto virtuais quanto reais. É quase impossível imaginar o mundo sem computador, internet, e-mail, msn, orkut, e outras parafernálias
tecnológicas. Nas comunidades desviantes, a informação sobre os acontecimentos tem por
base a interação presencial, assim, de acordo com Santos: “o testemunho das pessoas que
vinculam o que aconteceu pode ser cotejado como o testemunho do vizinho” (2003, p. 40).
O sentimento de pertença e laços indentidários são elementos fundadores e fundantes
da comunicação estabelecida entre grupos culturais. As comunidades virtuais se constituem
por meio da internet. Nas culturas desviantes a comunidade é formada muito mais pelo testemunho, ver, ouvir, tocar, falar, caminhar junto e com o outro.
As culturas definidas por Santos como tradicionais, consideramo-las culturas desviantes,
nessas culturas a lógica da vizinhança e pertencimento, sobrepõem-se à lógica do capital. As
espacialidades são vivenciadas por meio da apropriação e uso do espaço vivido. Nesse contexto, “as pessoas não se subordinam de forma permanente à racionalidade hegemônica e, por
isso, com freqüência podem se entregar às manifestações que são a contraface do pragmatismo”
(SANTOS, 2003, p. 114).
As práticas desviantes constituem contra-racionalidade e racionalidades paralelas classificadas como irracionalidades. No entanto, as comunidades desviantes não são desprovidas
de racionalidades, mas suas concepções de mundo fogem às racionalidades ditadas pelas lógicas capitalísticas (DELEUZE, 2005). As práticas e culturas desviantes são vivenciadas em
espaços vividos não capitalizados pela lógica do mercado.
LUGAR
E COTIDIANO: ESP
AÇO E TEMPO DAS CUL
CULTURAS
ESPAÇO
TURAS DESVIANTES
O espaço é espectro da compartimentação (SANTOS, 2001). Nas culturas desviantes,
de forma contrária, o espaço é vivencial, relacional, envolve pessoas, bichos, plantas, águas,
terra e astros. O espaço é vida. Ele não é continente, país, região, território ou estado. Estas
são elucubrações teóricas. O espaço é lugar. “Eu quero uma casa no campo, onde eu possa
guardar meus amigos, meus discos e livros e nada mais”1 . Assim, o espaço é o lugar, o ínfimo
pedaço do universo onde nada das inquietações humanas pós-modernas tem sentido.
O lugar é idílico sedutor dos poetas, filósofos, apaixonados e sonhadores. Cantado em
prosas e versos, ele se constituiu no elemento de maior identificação entre pessoas. Nos encontros cotidianos e relações ordinárias, saber o lugar de onde o outro vem é a segunda, quando não a primeira informação requerida. O lugar tem conduzido os seres humanos rumo à
“terra prometida”. Os desterritorializados, definidos por Haesbaert (2002) como excluídos
sociais, são os que perderam a referência do lugar, do seu pedaço de chão, e vagam a ermo,
guiados pelo sonho de retorno à terra natal.
A busca, conquista e manutenção do lugar tem guiado os indivíduos em suas aventuras
migratórias. A geografia também buscou seu lugar no panteão das ciências. Para conquistálo, a produção geográfica desconsiderou as pessoas que ficaram penduradas no espaço, no
território, na região e na paisagem. A atitude de aceitação dessas categorias em detrimento do
lugar e cotidiano foi justificada pela imposição do cientificismo que elegera as macroestruturas
como objetos dignos de pesquisas científicas e únicos referenciais capazes de captar a realidade social ou fenômenos naturais.
O lugar, para a geografia humana, geografia cultural e abordagem cultural é um conceito apaixonante. Pela sua mediação os geógrafos compreendem as espacialidades dos indi-
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Trecho da música “Casa no campo”, composta por Rodrix e Tavito e interpretada por Elis Regina.
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víduos reais e se tornam sujeitos reais para aqueles que imaginam os geógrafos apenas trancados nos laboratórios. A subjetividade, a identidade e sentimento de pertencimento são categorias que indicam se X espaço é ou não lugar. Pois, como defende Tuan:
[...] os lugares humanos variam grandemente em tamanho. Uma poltrona perto da lareira é um lugar, mas também o é um estado-nação. Pequenos lugares podem ser conhecidos através da experiência direta, incluindo o sentido íntimo de cheirar e tocar (1982, p
149).
Pensar o lugar em Geografia implica a consciência da existência do outro. É o indivíduo que vive no/do lugar. Não se pode apagá-lo desta categoria analítica como foi apagado em
outras. Não há compreensão do outro sem conhecimento do lugar por ele constituído. O lugar
na perspectiva humanista será representado pela emoção, seguridade, estabilidade emocional, harmonia, equilíbrio; pelas relações afetivas estabelecidas no espaço. Nesta lógica, Tuan
defende: “o espaço transforma-se em lugar a medida que adquire definição e significado.”
(1983, p. 151)
Onde os geógrafos humanistas e culturais encontrariam o lugar? Onde ele está? No
campo? Na fazenda? Na metrópole? No subúrbio? “Ou numa casinha de sapé”? Carlos responde: “é o bairro, é a praça, é a rua, e nesse sentido poderíamos afirmar que não seria a metrópole” (1996, p.20).
Consideramos o lugar como espaço relacional e vivencial. Para quem nasce na metrópole, passa a infância nos playground, parques temáticos, vivencia a adolescência nos
shoppings, cinemas, teatros, shows, exposições, videogames, lan-houses, praças de alimentação, encontros diários nas praias, boates, baladas noturnas, viagens de férias no exterior, o
simples pensamento de viver numa vila, num lugarejo onde inexistem esses locais, sem acesso a energia elétrica, água encanada, computador, internet, x-burguer, o campo é uma visão
aterrorizante.
A “selva de pedra” é o lugar para os “bichos” da cidade, pessoas que estabelecem com a
cidade sentimento de pertença. Nesta perspectiva do lugar enquanto espaço relacional somos
adeptos da interpretação alternativa do lugar, proposta por Massey (2000). Para ela, o lugar,
passa ser imaginado,
[...] como momentos articulados em redes de relações e entendimentos sociais, mas onde
uma grande proporção dessas relações, experiências e entendimentos sociais se constroem numa escala muito maior do que costumávamos definir para esse momento como o
lugar em si, seja uma rua, uma região ou um continente. Isso, por sua vez, permite um
sentido do lugar que é extrovertido, que inclui uma consciência de suas ligações com o
mundo mais amplo, que integra de forma positiva o global e o local (op. cit., p. 184).
O lugar é relação, vivência, sentimento, significação. A consciência individual ou coletiva do grupo cultural vai definir em que espaços as relações de pertença serão estabelecidas.
Como afirma Santos (2001, p. 114), “o lugar não é apenas um quadro de vida, mas um espaço
vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a renovação
das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro”.
Definimos o lócus sobre o lugar com intuito de reafirmar que nas culturas desviantes
as espacialidades ultrapassam o espaço coisificado e tempo alienado. Assim, compreendemos
cotidiano como espaço/tempo da cotidianidade. De acordo com Martins (2000, p. 104), “na
cotidianidade [...] a vida se torna um modo de vida marcado por uma sociabilidade teatral,
pela representação (por fazer presente o ausente) e pela fabulação”.
Cotidianidade, tempo e espaço vivido não se configuram como conjunto alienado de
conhecimentos e práticas destituídas de lógica, ao contrário, estão repletos de significados
que exigem complexos deciframentos, para se estabelecerem as resignificações espaciais de
determinada comunidade. A cotidianidade, vivência da totalidade no espaço, comporta complexos, símbolos, fabulações, significados, teatros, narrativas, imaginários, arquétipos, ficções, histórias, realidades e sonhos. Que ciência humana, com o seu método na algibeira, está
apta à caça destas belezas voadoras da vida?
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COMUNIDADES
RIBEIRINHAS DO
CULTURAS DESVIANTES: ESPACIALIDADES DOS ...
VALE
DO
GUAPORÉ:
TURAS DESVIANTES
MENSAGEIRAS DE CUL
CULTURAS
Além de pontuar elementos, práticas e processos caracterizadores de culturas
desviantes presentes no cotidiano do mundo urbano, evidenciamos as formas pelas quais
comunidades ribeirinhas podem ser consideradas como constituídoras e constituintes das
culturas desviantes. Para tanto, especificaremos esta hipótese por meio da análise das comunidades ribeirinhas localizadas a margem direita, do Vale Guaporé, no estado de Rondônia.
A formação dos agrupamentos humanos denominados de ribeirinhos está relacionada
com a história de ocupação da Amazônia no transcorrer do século XIX. Em 1877, levas de
migrantes nordestinos foram “recrutadas” por seringalistas para áreas de seringais às margens dos rios Amazonas: Negro, Madeira, Abunã, Ji-Paraná, Acre, Mamoré, Purus e Guaporé.
Nesse primeiro momento a ocupação da região amazônica foi organizada às margens dos
rios, para em seguida, se direcionar rumo a floresta. Esse movimento de ocupação da margem
para o centro foi motivado pela presença das comunidades indígenas, não aculturadas, o que
futuramente ocorreu pelo processo de inculcação promovido pelas ordens religiosas, principalmente os jesuístas.
O final da Segunda Guerra provocou a decadência dos seringais amazônicos. As colocações de seringas formadas ao longo das margens rios em pontos estratégicos para ocupação e
controle do espaço, são esquecidas em detrimento de novos processos de exploração da Amazônia2 . Ao longo de um século de ocupação esse grupo recriou um novo modo de vida, marcado
por vivências espacias, que fogem a lógica do espaço concebido, para ordenação da cidade
urbana.
Segundo o Dicionário Aurélio, “ribeirinho é o indivíduo que se encontra ou vive próximo aos rios ou ribeiras”. Mais que uma designação semâtica o ser ribeirinho comprende uma
cultura entre mundos, cultura desviante, materializada em práticas cotidianas vivenciadas
com a natureza, no espaço criado e recriado entre o rio e a terra firme e, no lugar, à beira do
rio, onde o ato criativo interliga os dois mundos.
O rio é o elemento fundante das espacialidades na vida do ribeirinho. Ele é fonte de
sobrevivência. O rio é o espaço socializado e socializante. O lugar de todos e para todos. Dele
os ribeirinhos retiram o principal alimento. A maioria das pessoas na comunidade praticam a
atividade da pesca. O pescado pode ser comercializado ou utilizado como elemento direto de
troca com mercadorias de primeira necessidade. A plantação e a criação são atividades econômicas secundárias.
Além da sobrevivência o rio garante a mobilidade do grupo. Pelo rio, o pescado chega à
cidade; as mercadorias das cidades chegam à comunidade; pessoas se deslocam para outros
locais. Mais que espaço de separação, o rio é espaço de união e encontro. O rio é o lugar do
devaneio, sonhos e significados da vida. O rio é o elemento poético. Dele surgem as lendas,
mitos, histórias, causos. Ele se constítui como fonte socializadora entre as gerações.
Os ciclos da natureza, representados pelas cheias do rio influiem diretamente na
dimânica espacial. A cada período das cheias, de setembro a março, o desbarrancamento das
margens do rio faz com que as pessoas da comunidade reorganizem o espaço doméstico e do
cultivo. As casas de palafitas vão sendo recuadas das margens. A reorganização espacial de
casas, plantações e criações no período da seca é realizada como forma de a comunidade se
preparar para o tempo das cheias. Nessa temporada, dependendo da força das águas, o rio
leva tudo que encontra pela frente. Assim, para as comunidades ribeirinhas, o rio é repleto de
significados. Lugar de garantia da vida, destruição, encontro, desencontro, sonhos e vivências,
medos e alegrias.
2
As questões relacionadas aos processos de ocupação, colonização, territorialização e as práticas culturais dos espaços
amazônicos foram por nos apresentadas no 53º Congresso Internacional de Americanistas, “Os povos americanos: mudanças
e continuidades. A construção do próprio no mundo globalizados”, realizado na Cidade do México, no período de 20 a 24 de
julho de 2009, para maior aprofundamento ver Santos e Almeida (2009).
26
Terra Livre - n. 31 (2): 17-31, 2008
As comunidades ribeirinhas do Vale do Guaporé (Rondônia) foram capazes de recriar,
a partir das vivências espaciais, formas totalizadoras na mediação entre ser humano, cultura, sociedade e natureza. Este é o pressuposto fundante desse ensaio, que enseja compreender
como as espacialidades desviantes inferem na formação cultural e histórica desse grupo social.
Os ribeirinhos são seres viventes entre mundos. Vivem entre mundos: o mundo das
águas e mundo da terra firme; ordenam o cotidiano entre tempos: o tempo das chuvas e tempo
da estiagem; recriam o imaginário por meio dos lugares imaginários: seres das águas e seres
da floresta; dinamizam as práticas sociais entre mundos de pertencimento: lugar e não-lugar.
Essas múltiplas espacialidades (re)configuram os sentidos do esfumato. Loureiro (1995, p.
38) define esfumato como,
[...] zona indistinta, vaporosa, difusa ou esbatido no sombreado dos desenhos, na cultura
amazônica está representado pelo devaneio – atitude sem repouso, mas tranqüila do
imaginário. Provoca a interpenetração das realidades do mundo físico com as do mundo
surreal, criando uma zona difusa na qual a imaginação e o entendimento reproduzem o
jogo que possibilita a existência da beleza.
Assim é o Vale do Guaporé, planície composta de águas, florestas e gentes. Nos
interstícios dos rios, igarapés, poços e cachoeiras os povos ribeirinhos vivem a aventura do
mundo imaginário em caminhos desviantes. Sonham com a chegada do próximo barco, sonham e, muitas vezes, sofrem com a chegada das chuvas. O rio é meio de subsistência e fonte
imaginária que sustenta a cotidianidade e sentimento de pertença ao lugar.
O Vale do Guaporé é formado pelo mundo das florestas e matas quase intransponíveis.
Andar pela floresta não é fácil para um citadino, mas o é para o ribeirinho acostumado com o
tamanho e emaranhado das árvores, a diversidade de bichos, o calor amazônico, a beleza das
plantas, o cheiro do mato, o voo dos pássaros, o som e a força incontrolável das águas. A
floresta é o mundo que encanta, mas que pode apavorar quem vive fora desse lugar. Florestas
e rios se formam em amálgamas desviantes nas paisagens guaporeanas.
A diversidade de agrupamentos humanos nas planícies do Vale do Guaporé constitui a
multiplicidade e singularidade das culturas locais, sua maior riqueza, marcada pela mediação das culturas dos índios, negros, sulistas, nordestinos, caboclos, migrantes de toda a parte
do Brasil e povos bolivianos, os quais estabelecem entre si relações de reciprocidade, conflitos,
desavenças, brigas, encontros, desencontros, negociações, massacres, tréguas e ataques, fenômenos humanos próprios das disputas territoriais.
Na efervescência dos espaços amazônicos, as comunidades que vivem das e nas florestas e ribeiras, na criação e reprodução do seu modo de vida, vivenciam processos de alteridades,
entrecruzamentos, as culturas são intercambiadas, mesclam-se, superpõem-se, morrem, renascem e se revigoram-se constantemente. A vivência entre mundos: águas e florestas; povos
e culturas constitui a simplicidade e complexidade do Vale do Guaporé. Navegar por essas
águas límpidas, turvas, tumultuadas, acalentadoras é o nosso desafio e devir.
GEOGRAFIAS
DESVIANTES: METODOLOGIAS POSSÍVEIS
As pessoas e grupos sociais, apesar das instâncias e aparelhos controladores existentes no cotidiano da cidade, vivenciam práticas desviantes. Em um espaço mais singular, encontramos as comunidades ribeirinhas do Vale do Guaporé, portadoras de espacialidades
desviantes. Qual geografia e qual método seriam capazes de compreender as lógicas desviantes?
Propomos, a partir de releituras de Certeau (2001), a formação da Geografia desviante e, com
base nas contribuições de Sahr (2007), a aplicabilidade da hermenêutica dupla.
Em nossa proposta de geografia desviante, o exercício geográfico é percebido como
fazer duplo entre práticas instituídas e práticas desviantes. Neste sentido, geograficizar é
sistematizar espacialidades, sintetizar culturas, compreender as lógicas dos espaços percebido, concebido e vivido; é estar atento e predisposto a múltiplos movimentos: pensar
dialeticamente, a partir das proposições científicas, envolver-se nas vivências cotidianas e
práticas sociais, retomar a análise sistematizada a fim de fazer aflorar a riqueza, complexidade e diversidade das espacialidades humanas, representadas por meio dos arranjos e configurações espaciais, que fogem à lógica homogênea do capital.
27
SANTOS, A. G., ALMEIDA, M. G.
CULTURAS DESVIANTES: ESPACIALIDADES DOS ...
Nas Geografias desviantes, os fazeres geográficos valorizam as culturais plurais e
espacialidades portadoras de inventividades e criatividades humanas. Para geografias
desviantes, o método é instrumento apreendedor da realidade, considerada como unidade
entre natureza: humana, social, “natural”, cultural, espacial e histórica. Esse método se caracteriza como uma das possibilidades de análise geográfica. Caracterizamo-lo como
hermenêutica dupla com base nas leituras de Sahr (2007), sobre semiótica da espacialização
na geografia cultural.
A hermenêutica dupla é instrumento de apreensão da realidade que capta a totalidade
dos fenômenos e fatos na sua unidade entre signo, significado e significante, domínio e apropriação, razão e emoção, lugar e não-lugar, e demais dicotomias espaciais pensadas e instituídas pela razão iluminista de forma fragmentada. De acordo com Sahr, fazer geografia expressa, consequentemente, uma ação dupla: “a construção de um objeto científico e a compreensão
do fazer geográfico cotidiano embutido no sentido comum [...] Dessa maneira, a reflexão científica se sobressai à cotidianidade numa hermenêutica dupla” (2007, p. 58).
Nesse sentido para apreendermos os significados das vivências entre mundos das e
nas comunidades ribeirinhas, uma hermenêutica dupla, aparece-nos no horizonte acadêmico
como método de interpretação capaz de auxiliar a busca de compreensão das espacialidades
dos grupos sociais organizados por meio de práticas e culturas desviantes.
A pesquisa na geografia humana exige mais que a descrição dos lugares e modo de vida
dos grupos culturais. Por isso, a proposta de aplicabilidade metodológica da dupla
hermenêutica, a qual tem a descrição como ponto de partida, mas avança para a realização
de leitura e interpretação das espacialidades geográficas de forma radical, critica e totalizante
(SPOSITO, 2004).
Uma análise geográfica radical implica em investigar a raiz das espacialidades dos
grupos sociais em sua natureza mais profunda, sem restrições ou limites. Uma comunidade
nunca é apenas o resultado dos determinantes físicos e econômicos visíveis por meio das
paisagens geográficas. Por meio da valorização das formas é possível captar os conteúdos,
identificar as estruturas fundantes que sustentam e recriam a dinamicidade do grupo
pesquisado.
A análise radical se preocupa também em identificar e refletir sobre a forma de produção do espaço. O que prevalece nas comunidades desviantes são as imposições do espaço percebido, concebido ou vivido (LEFEBVRE, 1983; 2001; 2004). Defendemos que apesar das determinações do espaço concebido e percebido, os grupos sociais no espaço vivido, cotidiano e
lugar, são capazes de formularem práticas espaciais desviantes a fim de se libertarem das
esquizofrenias e recriarem espaços de liberdade e ludicidade.
A postura crítica frente ao desenvolvimento da pesquisa desviante não é procedimento
simples. Posicionar-se criticamente não significa estabelecer julgamentos de valores dos grupos culturais alheios ao pesquisador. Segundo Sposito a postura critica implica em: “ter cuidado de saber estabelecer critérios, e ter critérios é possuir uma norma para as tomadas de
decisões” (2004, p. 66).
Quais são os critérios que devem ser estabelecidos para se decidir sobre o que é ou não
relevante para a pesquisa? Qual o tipo de relação a ser estabelecido entre pesquisador e a
comunidade pesquisada? O que ambos esperam um do outro? O que será permitido ou não ser
“revelado” pelo pesquisador? A priori seria contrassenso indicarmos a condução destas questões. Elas estão relacionadas com a própria visão, a ética e compreensão de mundo do pesquisador, a ele cabe a decisão de suas escolhas.
Na geografia desviante, um pressuposto básico é a ideia de totalidade. A parte contém
o todo, ou este é constituído pelas partes? Estamos envoltos num dilema ontológico. De qualquer forma, por maior que seja a fragmentação do objeto de estudo é incoerência pensar o
espaço como simples forma separada de um conteúdo social, histórico, simbólico e cultural.
Pensar a materialidade espacial é a primeira etapa da pesquisa e tem importância sine qua
non para que outros atributos possam ser considerados. O espaço não é vazio, neutro ou harmônico. O espaço é totalidade construída socialmente. Ele se constitui entre mundos:
ordenamentos e desvios, ordem e desordem; rigidez e flexibilidade; heterotopias e isotopias;
inclusão e exclusão; proibido e permitido; ruptura e sutura; continuidade e descontinuidade.
Querer ver o único, o igual, a parte, a forma, a matéria, o objeto, sem considerar a lei
dos contrários é se perder nas tramas da pesquisa. As comunidades, grupos sociais, fenôme-
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Terra Livre - n. 31 (2): 17-31, 2008
nos naturais e fatos sociais são múltiplos de significados. É preciso enxergá-los, percebê-los e
compreendê-los pelo caleidoscópio das vivências sociais e, não exclusivamente pelo binóculo
da ciência. Uma geografia que segue a ordem do percurso cientificista sobrevive de
homogeneidades. Desviar-se desse caminho é proposta da geografia desviante.
CONCLUSÃO
A conclusão é uma exigência da produção acadêmica. No entanto, nada está acabado, o
caminho não está pronto, nosso intuito não é nivelar, cimentar ou cristalizar as ideias sobre
culturas desviantes. Nossa pretensão é lançar novas sementes no campo da geografia e nas
abordagens culturais, a fim de fazer reflorir o espírito de inquietude pelo desvio, o errante, o
cotidiano, o lugar, a ida ao campo, o navegar pelos rios, o caminhar entre as ondas verticais da
cidade ou no emaranhado das florestas, o encontro com o outro, as práticas e espacialidades
perdidas nos desvãos das pesquisas acadêmicas.
As práticas desviantes perpassam imaginário, poesia, arte, lendas, músicas, dramas
shakespeareanos, filmes, literatura, filosofia, ciências, religião e se materializam nas atividades, ações e comportamentos vivenciados no cotidiano. Heróis lendários, míticos, “reais”,
foram e são aqueles que descumpriram a ordem, subverteram-na, criaram novas possibilidades. A epígrafe deste ensaio, o mito da caverna, exemplifica como as práticas desviantes marcam a gênese da formação cultural no ocidente. Os caminhos percorridos são ahistóricos, os
desvios, pelo contrário, estão grávidos de possibilidades.
O sujeito portador das práticas desviantes é o homem comum, o indivíduo ordinário, o
marginalizado que por meio da lida cotidiana: fazer, andar, falar, vestir, comer, trabalhar,
conversar, inventa formas de apropriação dos espaços interditos, novos objetos e ações que
não foram pensadas e, portanto não podem ser controladas pelos sistemas disciplinares que
anseiam a homogeneidade como garantia de controle de poder. O que a geografia, a sociologia
e a história entendiam como alienação passa a ser percebido como inventividade, criatividade
e formas de resistências.
Cotidianidade e espacialidades são práticas históricas e sociais. Seus significados se
materializam nas formas, repletas de conteúdos: símbolos, imaginários, devires, desejos, signos, significados e poiésis. Os conteúdos e formas inferem dialeticamente nas configurações
espaciais vivenciadas nos lugares. Consideramos o lugar o lócus não apenas das relações
harmoniosas, mas também conflituosas. O lugar não é somente espaço de refúgio das perturbações da vida moderna. Ele é movimento e, pausa, conforme nos lembra Tuan (1983) além
disso, o lugar é uno e múltiplo, singular e diverso, harmônico e contraditório, quimérico e
simbólico, dinâmico e alienante e ofegante e poético, como nos ensina Massey (2000).
As comunidades providas e provedoras de culturas desviantes vivenciam formas diferenciadas de espacialidades e temporalidades modeladas na totalidade entre cotidiano e lugar. A temporalidade não é efêmera, virtual ou fugaz. A materialização de práticas desviantes
exige o tempo da longa duração, da repetência, o fazer repetitivo, até o momento em que se
descobre o inusitado, o diferente, o desvio. As práticas desviantes ocorrem no tempo da
cotidianidade. O cotidiano, o repetitivo, o banal, o comum, o coloquial foram concebidos pelas
ciências humanas como tempo insignificante. Recentemente, esse paradigma foi ultrapassado. O cotidiano é o tempo da repetição, mas também da inventividade e criatividade, elemento chave dos processos desviantes.
Práticas, culturas, processos e geografia desviante são os elementos que compõem a
tese desenvolvida nesse ensaio. Para corroborá-la, indicamos fazeres vivenciados no espaço
citadino caracterizadores das práticas desviantes, como andar por meio de desvios nos espaços funcionalmente instituídos. As comunidades ribeirinhas amazônicas, em especial, as do
Vale do Guaporé, são consideradas como portadoras não somente de práticas, mas de culturas
desviantes, por serem capazes de constituírem lógicas de apropriação do espaço e formas de
socialização e sociabilidades que se desviam das lógicas de produção e consumo perpetuadas
pelo modo de produção capitalista. Existem mundos diferentes da lógica excludente capitalista, a beira dos rios amazônicos é um desses lugares.
Para a busca da compreensão da simplicidade, complexidade e singularidade do modo
de viver das comunidades ribeirinhas, propusemos o desenvolvimento da geografia desviante
e hermenêutica dupla enquanto epistemologia e método de pesquisa capazes de captar tama-
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SANTOS, A. G., ALMEIDA, M. G.
CULTURAS DESVIANTES: ESPACIALIDADES DOS ...
nha riqueza na mediação entre mundos, espaços, cotidianos e lugares entre a ciência e vida
cotidiana; significado e significante; nível material do espaço e nível simbólico; reflexão sobre
o espaço e experiência no espaço; liberdade e ação; determinismos e possibilidades; sujeito e
objeto; forma e conteúdo, realidade, desvios e devaneios; sonhos e utopias.
Quiçá o sol derreta a cera das verdades cristalizadas a fim de que o sonho do voo das
culturas desviantes se materialize!
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Recebido para publicação dia 03 de março de 2009
31
32
ESP
AÇO,
SPAÇO
POLÍTICA
E PERIFERIA: AS
POLÍTICAS SOCIAIS
NA RE-PRODUÇÃO
DE RELAÇÕES
SOCIAIS DE
PRODUÇÃO
SPACE,
POLITICS AND
Y: SOCIAL
PERIPHERY
PERIPHER
POLICIES IN THE REPRODUCTION OF
RELATIONS
SOCIAL RELA
TIONS OF
PRODUCTION
EL ESP
ESPACIO
ACIO, LA
POLÍTICA Y LA
PERIFERIA: LAS
POLÍTICAS SOCIALES
EN LA RE-PRODUCCIÓN
DE RELACIONES
SOCIALES DE
PRODUCCIÓN
LUIZ ANTÔNIO
A DE
ANGELISTA
EVANGELIST
ANDRADE
UNIVERSIDADE
FEDERAL DE MINAS
GERAIS - UFMG
[email protected].
Mestrando em Geografia,
Programa de Pós-graduação
do Instituto de Geociências
(IGC)
Terra Livre
Resumo:Partindo da constatação de que as periferias metropolitanas têm se
conformado como espacialidades privilegiadas das intervenções do Estado,
sobretudo através das políticas sociais, entendemos que a compreensão mais acurada
desse fenômeno só pode se dar pela sua articulação com a re-produção das relações
sociais de produção. Nosso objetivo não é “inventariar” ou realizar um “balanço”
das políticas sociais no Brasil, seja em que instância de governo for, mas enfatizálas como o modo pelo qual o Estado vem se fazendo presente no espaço social.
Assim sendo, além de interrogarmos as estratégias e as ideologias subjacentes a tais
intervenções, procuramos compreender a cadeia de tensões entre o desejo, as
necessidades sociais e as carências, estas duas últimas como representações
mediadoras da realização da vida no mundo moderno. No seio dessas tensões
podem estar os traços presentes e potenciais de reflexão individual e/ou coletiva
acerca do modus operandi do Estado na satisfação dessas necessidades e carências,
bem como as (im)possibilidades da irrupção da política nessas espacialidades
periféricas.
Palavras-chave: Espaço; periferia; políticas sociais; relações de produção;
reprodução social.
Abstract:Starting from the fact that metropolitan suburbs have resigned as privileged
sites of state interventions, mainly through social policies, we believe that a more
accurate understanding of this phenomenon can only be given by its conjunction
with the reproduction of social relations of production. Our goal is not to make
an “inventory” or to make a “balance sheet” of social policies in Brazil, concerning
any government level, but to emphasize them as the way through which the state
has been acting in the social area. Therefore, more than question the underlying
strategies and ideologies of such interventions, our intention is to understand the
chain of tension between desire, social needs and scarcity. It is important to highlight
that social needs and scarcity function as mediating symbols of life accomplishment
in the modern world. Within these tensions we may find the real and the potential
features of individual and/or collective reflection about the modus operandi of the
state in meeting those needs and scarcity, as well as the possibilities and impossibilities
of the political emergence in peripheral sites.
Keywords: Space; periphery; social policies; relations of production; social
reproduction.
Resumen:Partiendo de la constatación de que las periferias metropolitanas se han
conformado como espacialidades privilegiadas de las intervenciones del Estado,
sobretodo a través de las políticas sociales, entendemos que la comprensión mas
precisa de ese fenómeno solo puede darse por la articulación con la re-producción
de las relaciones sociales de producción. Nuestro objetivo no es hacer un “inventario”
o realizar un “balance” de las políticas sociales en Brasil, sea en la instancia del
gobierno que fuere, pero enfatizarlas como el modo por el cual el Estado viene
haciéndose presente en el espacio social. Así, además de la cuestión de las estrategias
y las ideologías subyacentes a tales intervenciones, buscamos comprender la cadena
de tensiones entre el deseo, las necesidades sociales y las carencias, estas dos últimas
como representaciones mediadoras de la realización de la vida en el mundo moderno.
En el seno de esas tensiones pueden estar los trazos presentes y potenciales de
reflexión individual y/o colectiva acerca del modus operandi del Estado en la
satisfacción de esas necesidades y carencias, bien como las (im)posibilidades de la
irrupción de la política en esas espacialidades periféricas.
Palabras clave: Espacio; periferia; políticas sociales; relaciones de producción;
reproducción social.
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 33-48
Jul-Dez/2008
33
ANDRADE, L. A. E.
ESPAÇO, POLÍTICA E PERIFERIA...
INTRODUÇÃO
Nossa proposta neste texto segue a premissa que ora apresentamos: a reflexão acerca
das “políticas sociais” implica considerá-las como meio e condição através da qual se efetua a
re-produção das relações sociais de produção2 (LEFEBVRE, 2007, 2008). Concomitantemente,
essa re-produção, balizada por uma estratégia de classe e suas ideologias subjacentes (do
crescimento, da coerência, da organização, dentre outras), trouxe para o seu cerne o espaço,
muito embora não possamos tomá-lo como mero “continente” inerte sobre qual pesa essa
estratégia.
O exame aqui proposto se faz a partir das periferias metropolitanas3 , sem deixar de
entendê-las como mote articulador de outros níveis e dimensões de análise do fenômeno urbano. Entendemos que é pelas “políticas sociais” e pelos programas e ações definidos em seu seio
que o Estado vem atuando de modo privilegiado nas espacialidades aludidas, no sentido de
lidar com o aprofundamento das contradições advindas do processo de urbanização da sociedade. Desde já advertimos que nosso intento não é realizar um “inventário” ou “balanço” da
aplicação das “políticas sociais”. Esse procedimento sócio-técnico já vem sendo feito pelo corpo
tecnoburocrático que se ocupa dessas “políticas”, abastecendo os sempre fartos “bancos de
dados” das instituições estatais.
Já foram sobejamente discutidos os arcabouços teórico-conceituais alimentadores das
representações institucionais acerca dos meios de garantir a “inclusão social” (MARTINS,
1997 e 2002) e a “construção da cidadania” (DAGNINO, 2004) das gentes sujeitas à
“vulnerabilidade social”, sendo estes diretamente influenciadores do formato assumido pelas
“políticas sociais” no Brasil nas duas últimas décadas. Ao mesmo tempo, podemos descrevêlos como “o outro” de um par dicotômico que se completa nos modos de atuação do Estado num
cenário político-econômico mundial de retração daquilo que ficou conhecido como “direitos de
cidadania”, burocraticamente universalizados nos países europeus e, no caso brasileiro,
acessados mediante a inserção dos indivíduos no chamado “mundo do trabalho” (TELLES,
1993). Iremos ver mais adiante que o privilégio dito acima concerne à focalização dos programas e ações ligados às “políticas sociais” naqueles grupos portadores da pecha da dita
“vulnerabilidade social”, habitantes4 , em sua imensa maioria, das periferias metropolitanas
brasileiras.
Podemos inferir acerca dos aspectos da “preferência” do poder “público” por essas
espacialidades como algo referido às próprias representações sociais e institucionais sobre
elas recaídas, numa forte alusão à idéia de “precariedade” e “violência” que, supostamente,
seriam a elas inerentes. Parte-se da idéia de que a ação do Estado através de “políticas sociais” se dá em nome da “incapacidade” dos habitantes de tais espacialidades de se defrontarem
com as dificuldades cotidianas a que estão sujeitos. Trata-se, portanto, da pretensa considera-
2
Para Lefebvre (2008, p.47-8): “Essa re-produção das relações de produção não coincide mais com a reprodução dos meios
de produção; ela se efetua por meio da cotidianidade, através dos lazeres e da cultura, através da escola e da universidade,
através das extensões e proliferações da cidade antiga, ou seja, através do espaço inteiro”.
3
Cumpre enfatizar que não tomamos a noção de periferia como resultado de uma “constatação lógica” que endossa a sua
separação permanente daquilo que seriam as centralidades (de poder e de riqueza). Tais centralidades podem, inclusive,
serem redefinidas, destruídas ou criadas na esteira de acumulações primitivas do espaço mediante estratégias de valorização
que canalizam em seu favor espacialidades até então “desinteressantes” ao capital. Além dessa premissa, na nossa
perspectiva de análise a periferia é metrópole, vivendo suas contradições específicas, mas também as contradições mais
gerais advindas do curso da re-produção das relações sociais da e na metrópole. Por isso mesmo, a periferia também é
centralidade: as contradições materializam-se nos embates, podendo fazer dessas espacialidades o lugar onde a política
irrompe, ganhando e dando sentido às práticas de seus habitantes-moradores, as classes populares. Essa discussão estará
implícita (e, por vezes, explícita) ao longo desse texto.
4
O termo “habitante” difere do de “morador”, mas ambos se implicam mutuamente e revelam situações e momentos que
não são estanques. O indivíduo habitante, em princípio, vive o repetitivo da cotidianidade e suas normatizações. Entretanto,
no movimento do contingente, esse habitante pode irromper no lugar como sujeito morador, como aquele que usa, fornecendo
a esse lugar (e fornecendo a si mesmo) sentidos para além daqueles postos pela realização da ordem distante (LEFEBVRE,
2002). Os termos morador e habitante possuem, portanto, estatuto conceitual, pois procuram apreender os possíveisimpossíveis contidos no real e naquilo que, aparentemente, aparece como o “sempre igual”: os habitantes das periferias
metropolitanas como meros “objetos” da benemerência estatal e/ou privada.
34
Terra Livre - n. 31 (2): 33-48, 2008
ção da incapacidade de fazerem história, de darem um sentido e de construírem soluções
criativas para questões prementes da cotidianidade ou da organização e da mobilização políticas face à presença-ausência do Estado.
Tais programas e ações não são apenas o “reflexo” do Estado quando este se faz presente no espaço social, invadindo a vida social nas suas mais diversas instâncias. Eles são
elementos ativos na reprodução de relações. É uma presença ali onde as contradições do espaço alargam seus contornos, colidindo com a miríade de interesses procedentes das movimentações do mercado imobiliário – entre outros aspectos, motivadas pelas intervenções urbanísticas do Estado – ou mesmo com as sociabilidades de algum modo questionadoras do próprio
foco preferencial dos investimentos estatais. É neste momento que o Estado procura ampliar
o escopo da sua legitimidade, institucionalizando as práticas sócio-espaciais próprias da
cotidianidade dos indivíduos, mediante o movimento de sua captura e distensão (quando conveniente), transformando-os em “objetos” de suas intervenções5 .
Faz-se necessário – embora não seja suficiente – interrogarmos as estratégias e as
ideologias subjacentes a essas intervenções, momentos em que a razão de Estado reivindica
para si a protagonização do fazer social nas periferias metropolitanas. Fazer social que supostamente opera visando “cumprir seu papel” nessas espacialidades, produzindo novas tensões
e contradições em relação às práticas sócio-espaciais pré-existentes. Práticas essas que significam a reprodução da vida na sua acepção mais ampla, revelando suas misérias e riquezas.
Práticas ora sufocadas pelo Estado nos termos da longa tradição do clientelismo e da benemerência instituída para com o pobre, típica da nossa formação social; ora se colocando como
expressões de uma vita activa, exigentes de reconhecimento, não obstante vistas como sinônimo de “irracionalidade” frente à ordem social.
Outra faceta importante na reflexão sobre a ação do Estado como demiurgo da reprodução de relações sociais de produção é referida ao conteúdo das estratégias mediante as
quais este traga para si e dissocia as práticas sócio-espaciais, colonizando o desejo (LEFEBVRE,
1991). Ao vir à tona na forma de necessidades sociais e carências – nos termos de Agnes Heller
(1986) – a re-produção de relações dá uma nova qualidade à cotidianidade dos habitantes das
periferias metropolitanas.
Trata-se de refletir sobre a cadeia de tensões entre as necessidades sociais e carências
como representações mediadoras da realização da vida no mundo moderno e os traços presentes e potenciais de reflexão individual e/ou coletiva acerca do modus operandi do Estado na
sua satisfação. De que maneira as expectativas de satisfação dessas necessidades e carências
emergem na consciência dos habitantes dessas periferias? Qual é a medida possível para se
falar em expectativas de satisfação representadas e alicerçadas por dimensões reivindicativas?
Em que momento se pode falar da percepção do dano (RANCIÈRE, 1997) compondo – e, quiçá,
tensionando – a postura dos habitantes, movimentos sociais e organizações populares por
meio de seus discursos no ambiente que chamamos aqui de espaços e tempos institucionais?
A MODERNIZAÇÃO DO MUNDO, A ALIENAÇÃO DO DESEJO E A RE-PRODUÇÃO DO
AR CONTEMPORÂNEO
MAL-EST
ESTAR
Partimos de uma assertiva que revela uma contradição por nós entendida como crucial
para a discussão que se segue: o intenso progresso das forças produtivas – inquestionável
quando se pensa, por exemplo, na magnitude da riqueza socialmente produzida – e o caráter
privado das relações de produção capitalistas na moldura histórica e social da modernização
5
Nossa perspectiva de análise não toma o Estado apenas como instrumento criador de condições gerais de re-produção de
meios de produção (força de trabalho e maquinaria), cuja incidência sobre o “terreno” (o espaço) torna este último apenas
instrumento inerte de uma estratégia de classe, lócus de uma “falsa consciência”, mas passível de ser resgatado por uma
“consciência possível”. Embora necessária essa análise é insuficiente, pois acaba considerando o capital tão-somente como
relação econômica, envolvendo a produção, circulação e realização da mercadoria. Para além dessa qualidade, o capital,
nos próprios termos de Marx, é uma relação social feita dominante na sociedade burguesa, pois institui em seu bojo novas
e mais complexas relações à medida que destrói outras pela imposição da “lei do valor”. Assim sendo o Estado também
deve criar e recriar firmemente as condições de re-produção de relações sociais de produção. Advém daí as políticas de
espaço, as quais envolvem as chamadas políticas urbanas, sociais, ambientais, etc e se acham afeitas a ideologias e
estratégias bem definidas. Nossa questão aqui é entender como as “políticas sociais”, por trazerem no seu bojo modos de
ser e de viver que são modos de uso do espaço contendo experiências derivadas dos atributos do tempo que cortam o
espaço, contribuem para a reprodução das relações sociais de produção.
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ANDRADE, L. A. E.
ESPAÇO, POLÍTICA E PERIFERIA...
do mundo. Tal assertiva se justifica quando observamos duas óticas imbricadas: por um lado,
essa contradição reproduziu ampliadamente – ao não ser resolvida por fora das relações que
a produziram – o conteúdo dissonante entre a quantidade de meios disponíveis à satisfação
das necessidades sociais e a essência mercantil da sua distribuição seletiva; por outro, operou
tais forças produtivas como afastamento da mediação de critérios eminentemente sociais,
não obstante essa orientação tenha sido, mormente a partir do século XIX, combatida a duras
penas pelos movimentos sociais florescentes naquele momento (MARSHALL, 1967).
Um importante marco referencial, destruidor e criador de novas e crescentemente complexas relações sociais de produção deve ser acrescentado: a conformação das relações de
propriedade, as quais passam pela propriedade do solo, mas a ela não se limitam – ao contrário: estendem-nas de uma forma sem precedentes –, pois que chegam às diversas facetas da
vida social. Quando Henri Lefebvre (2007, cap. 06) aduz que “Tecnicamente, cientificamente
abrem-se possibilidades insuspeitas (...). [Mas as] relações de propriedade e de produção proíbem estas possibilidades...”, ele está nos chamando a atenção para a qualidade das realizações concretas desta sociedade, dos desencontros entre o real e o possível (LEFEBVRE, 1991,
2007) por ela promovidos. Desencontros distribuídos socialmente e com eles o mal-estar, seu
resultado e sua condição.
O certo é que há uma tendência predominante ao desaparecimento do qualitativo, o
que não significa tomar a contradição quantidade-qualidade por meio de uma oposição formal
(LEFEBVRE, 2007). O espaço (e o tempo) da produção, tendo passado pela “drenagem” de
seus significados mais ricos, têm de ser esquadrinhados, ordenados, quantificados e
hierarquizados. Redefinição imperativa, visto que ela pede um quadro sempre consoante com
a máxima performance dos capitais empregados e a partir daí (re)inseridos na valorização do
valor. O véu que lhes cobre tem as cores da cientificidade e da tecnicidade. Torrentes de índices e estatísticas vêm para compor o já povoado instrumental supostamente mais “preciso” e
“neutro”, no intuito de “melhor conhecer” e “melhor atuar” sobre tudo aquilo que passa indistintamente a ser denominado de “objeto”: o espaço, o tempo, o desejo, a vida individual e
social.
Neste ínterim, a reprodução tipicamente capitalista, irrevogavelmente ancorada na
sofisticação dos meios de se mobilizar o espaço como cerne da expansão das relações sociais de
produção e propriedade, constituiu-se como querer ser universal da reprodução da riqueza. A
estratégia subjacente a essa reprodução se traduziu (e se traduz) na expropriação seletiva,
desigual e calculada do espaço e dos modos de vida nele instaurados, estabelecendo um complexo lastro de mediações e interdições, resultando no avanço da modernização do mundo.
Pode-se dizer que a modernização se confunde com a história da acumulação e das violências
que deram o tom do processo pelo qual ambas foram alavancadas e se estabeleceram como
faces distintas da mesma moeda.
Desde a chamada “acumulação primitiva”6 na Inglaterra do século XVIII, descrita na
sua atrocidade por Marx (1983), o imperativo que move a acumulação do capital é a canalização das mais intensas energias e criatividades humanas no esforço de expandir relações de
produção e de propriedade divorciadas dos modos de vida pré-existentes, aniquilando-as ou
incorporando-as aos seus desígnios.
A nosso ver, a melhor maneira de percebermos a magnitude do imperativo da acumulação é voltarmos nossos olhos para o processo de industrialização, momento no qual a produção da riqueza abstrata, generalizada na forma mercadoria, debuta na história. Processo que,
para obter efetividade, solapa e redefine o conjunto das racionalidades precedentes, carreando
os aludidos modos de vida atados a elas. A racionalidade industrial impõe, na esteira do viés
economicista e produtivista que lhe dá impulso, a redefinição, destruição e produção radicais
das cidades, como bem relata Friedrich Engels, em seu livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra7 . Eis aí a urbanização da sociedade, realidade social constituída no transcur-
6
Cumpre ressaltar que a acumulação primitiva não é tão-somente o processo historicamente datado que se caracterizou
pela expropriação de terras comunais ou pertencentes à Igreja, bem como a doação ou compra por preços irrisórios de
terras estatais para transformar em pastagens para ovelhas que viriam a fornecer a lã como matéria-prima necessária à
nascente indústria da tecelagem inglesa. Ora, não obstante a forma naquele momento assumida, a produção, destruição
ou a redefinição dos espaços de acumulação é conteúdo do modo de produção capitalista, não se resumindo à sua gênese
(OLIVEIRA, 2003) e deve ser entendida como um processo contínuo e concomitante às suas feições “contemporâneas”.
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Terra Livre - n. 31 (2): 33-48, 2008
so desse processo, inicialmente por ele induzido, mas se convertendo em sua indutora
(LEFEBVRE, 2002).
Estamos falando de continuidades e descontinuidades históricas, envolvendo uma enorme confluência de processos diferenciados e esfacelando maneiras específicas de se experienciar
o espaço mediante usos peculiares do tempo. O estranhamento daí advindo gerou novas contradições no interior deste desencontro, à medida que a atividade produtora e criadora foi
submetida aos fundamentos da troca mercantil, desconsiderada enquanto pressuposto da
satisfação do homem como Ser genérico8 , tal qual nos ensina Marx (2004) nos seus Manuscritos econômico-filosóficos. Para sermos mais precisos, esses fundamentos se adjetivam nas
relações sociais a partir das quais o mundo da mercadoria, para além de mediação, torna-se a
determinação que obsedou o uso e o valor de uso ao reduzi-los a pálidas expressões do valor de
troca. A monetarização das relações, fenômeno e processo em que o dinheiro como meio de
circulação e reserva de valor progressivamente ganha centralidade, convertendo-se em equivalente universal, institui-se e institui a sociedade.
Algo que se soma aos diferentes processos aludidos e concernentes à modernização do
mundo como consolidação e aprofundamento da re-produção de relações sociais de produção,
é a colonização do desejo, traço característico do homem desde que esse se levantou de sua
animalidade, movendo-o na sua atividade produtora e criadora. Concomitantes a tal colonização são as tensões e conflitos gerados no vazio por ela deixado, local onde se instauram e se
tornam obsoletas as expectativas de realização de carências e necessidades sociais. Dito de
outro modo, na sociedade em ato, o desejo foi sendo ideologicamente confrontado com o desvio
de seus sentidos, suas finalidades e seus atributos valorativos mediante os quais era percebido e satisfeito. Sobre seus escombros assentam-se as carências e as necessidades sociais: “Ao
se delinear as necessidades, procura-se prevê-las; encurrala-se o desejo” (LEFEBVRE, 1991,
p.82).
Face às terríveis frustrações derivadas desse diametral afastamento do homem de seu
ser natural, o cotidiano9 , que se faz como organização e burocratização da vida, só pode “preencher” o vazio por ele deixado fornecendo “escapatórias” às suas pressões e repressões. O
mal-estar, e com ele as tensões sobre o vínculo social, encontram aqui um terreno fértil, precisamente porque a satisfação nessa sociedade se reduz a uma “...saturação tão rápida quanto
possível...” da mercadoria consumida, pois a “...satisfação generalizada (em princípio) faz-se
acompanhar de uma crise generalizada dos ‘valores’, das idéias, da filosofia, da arte, da cultura” (LEFEBVRE, 1991, p.89).
Com efeito, a manutenção do vínculo social se acha dentro do rol de uma estratégia de
classe. Por isso, colonizar o desejo, “preenchendo” seu vazio a partir do desvio para a composição de carências e necessidades sociais, corresponde a inscrevê-lo cada vez mais no universo
do privado como seu sentido e finalidade. Agnes Heller (1986) traz uma profícua e sistemática
reflexão sobre as necessidades e carências em seu livro A teoria das necessidades em Marx.
Muito embora não haja em sua obra uma incursão sistemática acerca das necessidades sob o
7
Engels, numa arguta descrição e análise da “oficina do mundo”, esse epicentro da acumulação capitalista em que se
tornara a Inglaterra, trouxe à cena uma face impossível de se ocultar, não obstante supostamente denotassem exceções a
um movimento que se fazia como materialidade indelével do progresso inerente ao “século das luzes”. Trata-se das terríveis
condições para a sobrevivência de hostes inteiras de imigrantes que afluíram às cidades inglesas em busca de compradores
para a sua força de trabalho – a única propriedade de que dispunham – após terem sido expropriados de suas terras. Daí
o crescimento extraordinariamente rápido das grandes cidades industriais, como atesta o próprio autor: “O grande
estabelecimento industrial demanda muitos operários, que trabalham em conjunto numa mesma edificação; eles devem
morar próximos e juntos – e, por isso, onde surge uma fábrica de médio porte, logo se ergue uma vila (...). Assim, da vila
nasce uma pequena cidade e da pequena, uma grande cidade” (ENGELS, 2007, p.64-5).
8
“O homem é um ser genérico, não somente quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do
restante das coisas, o seu objeto, mas também – e isto é somente uma outra expressão da mesma coisa – quando se
relaciona consigo mesmo como [com] o gênero vivo, presente, quando se relaciona consigo mesmo como [com] um ser
universal, [e] por isso livre (MARX, 2004, p.83-4).
9
Relegado como uma instância menor e desimportante para uma certa teoria marxista tratada como “crítica”, o cotidiano
ganha novo sentido em Lefebvre. É no e pelo cotidiano que as relações sociais fundamentais (de produção, de propriedade,
de consumo e de trabalho) se realizam e ganham vigor, tendendo a se naturalizarem como o ordinário da vida. Para esse
autor, o cotidiano: “Não é mais apenas um setor colonizado, racionalmente explorado, da vida social, porque não mais um
‘setor’ e porque a exploração racional inventou formas mais sutis que as de outrora. O cotidiano torna-se objeto de todos
os cuidados: domínio da organização, espaço-tempo da auto-regulação voluntária e planificada” (LEFEBVRE, 1991, p.82).
37
ANDRADE, L. A. E.
ESPAÇO, POLÍTICA E PERIFERIA...
capitalismo, o filósofo alemão não se furta em trazer à tona a alienação derivada da valorização das coisas mediante a desvalorização e o empobrecimento das pessoas. Nos Manuscritos,
Marx já assinalava a redução operada pela inscrição dos desejos humanos na estreiteza das
exigências de um modo de produção cujas relações de produção e propriedade, bem como a
divisão social do trabalho que ambas implicam, definitivamente se fixavam como suas relações fundamentais. Nesse modo de produção, cada homem especula sobre como “...criar no
outro uma nova carência, a fim de forçá-lo a um novo sacrifício, colocá-lo em nova sujeição e
induzi-lo a um novo modo de fruição e, por isso, de ruína econômica” (MARX, 2004, p.139).
Noutro livro, A condição política pós-moderna, Heller e Feher (2002, p.41), embora
tenham em conta que no “...estágio atual da modernidade ocidental, as imaginações sociais se
preocupam mais com as carências do que com as necessidades que não são carências”, não
podemos deslegitimar os desejos concretos das pessoas de satisfazê-las à manifestação pura
da “falsa consciência”. Mesmo porque, não só no Brasil, mas até mesmo no chamado “mundo
desenvolvido”, não se pode afirmar categoricamente que algo além das necessidades elementares das pessoas tenha sido resolvido. Isso porque em nosso país os movimentos sociais e
organizações populares que contribuíram para a conquista da “materialidade do espaço”, o
fizeram através de dolorosas lutas. E se tais conquistas podem ser relativizadas quanto à sua
radicalidade10 , temos também que pensar as pressões em contrário, partidas dos grupos dominantes e decididas a sufocar seu potencial. Em suma: podemos pensar nos direitos de cidadania para além do seu significado e querer que se ultrapasse o umbral colocado à sua frente,
mas não podemos deslegitimar seu viés positivo.
Pode-se chamar de ironia a emergência, como contraponto dialético dos processos de
modernização e acumulação capitalista aludidos, daquilo que Heller (1986) chamou de necessidades radicais. Elas são concomitantemente funcionais à modernização, criadas no curso do
formidável desenvolvimento do capitalismo, do nível amplificado do desenvolvimento das forças produtivas; mas também são a igual complexificação e amplificação das contradições sociais engendradas em seu seio. Nesses termos, sua satisfação só pode se efetivar com a transformação/superação das relações fundamentais sobre as quais se apóiam os processos
modernizantes – e a sociedade burguesa, como sua manifestação mais límpida. São as necessidades radicais que, de alguma maneira, revolvem a consciência social para as contradições
entre as forças produtivas e as relações de produção, entre a produção social da riqueza e a
sua expropriação pelo privado, em maior ou menor medida apontando para sua redefinição.
Voltaremos a essa discussão em outro momento desse texto.
Estaríamos vivendo uma enorme crise de legitimidade e de compromisso com os postulados que as gerações predecessoras assumiram em nome da modernidade como projeto de
civilização? É notável a ampliação sem precedentes das dificuldades cotidianas para se “ganhar a vida”, a qual tem se mostrado visível demais para que se acredite prontamente que,
mais cedo ou mais tarde, o “progresso” vai chegar e se objetivar, irrigando experiências individuais e coletivas. Ao contrário, o sentimento que paira no ar é aquilo que Zygmunt Bauman
(2000) noutras palavras veio a reconhecer como a progressiva onipresença da insegurança, da
incerteza e da instabilidade enquanto aspectos assoladores da vida individual e social contemporâneas. A redução das perspectivas, a possibilidade cada vez mais remota de se criar
projetos de vida a médio e longo prazo, a necessidade de se inclinar a adaptações que, tão logo
– e a duras penas – efetuadas, devem ser logo descartadas, tornam-se o cerne da rotina gerada no seio do empobrecido leque de recomendações para a (sobre)vivência na concorrida vida
privada e mercantil.
10
Francisco de Oliveira (1999), quando caracteriza o “movimento neoliberal”, marcado pela volta ao indivíduo, à prevalência
do privado nas relações sociais, articuladas ao desmantelamento do Estado e das suas instituições políticas correspondentes,
chama a atenção para a necessidade de analisá-lo tanto nos fundamentos do processo de acumulação quanto no processo
de “institucionalização do Estado de Bem-Estar” (OLIVEIRA, 1999, p.56). O autor nos fala da experiência social-democrata
européia, a qual contribuiu para a sua “naturalização”, acompanhada do esgotamento das “energias utópicas” – visto que
a política passava a ser apenas um epifenômeno da sua própria prática, já que o Estado tomava para si o “fazer social”
como totalidade. É como se esse mesmo fazer social não tivesse condições de se efetivar plenamente fora dos auspícios de
uma racionalidade técnico-burocrática e abstrata, supostamente descolada de qualquer estratégia de classe. Alcançavase o perigoso patamar da redução do político a uma prática embotada porque afastada do homem em sua universalidade.
Ou seja, grande parte do movimento operário acabou por se contentar com concessões advindas das políticas de Estado no
sentido de ampliar uma esfera de direitos composta, entre outros, pela previdência social e a garantia (que há muito
tempo já deixou de sê-la) do pleno emprego.
38
Terra Livre - n. 31 (2): 33-48, 2008
Trata-se de uma espécie de compartilhamento de responsabilidades motivado pela mesma “inexorabilidade” da ordem social comum a todos, cuja senda na história da modernização
e da acumulação capitalistas tem levado à mais completa e sistemática liberação dos movimentos de capital e de financeirização da riqueza de que se tem notícia. Na medida em que
passam a determinar as políticas dos governos nacionais e atuar incisivamente sobre os rumos das decisões das instituições estatais, cujos mecanismos de regulação desses capitais não
são mais compatíveis com seu dinamismo e fluidez, “compartilhar” as responsabilidades adquire um peso muito maior para o lado mais frágil das partes envolvidas. Leia-se aqui, mais
uma vez, as classes populares da periferia do mundo, com seus corpos já bastante doloridos
por terem que carregar o pesado fardo da precariedade dos sistemas de proteção social – nos
dias de hoje tomados pela iminente desintegração.
Deste modo, imprime-se um golpe nos projetos e propósitos outrora de alguma maneira coletivos, e as representações que os proviam de sentido vão travando um árduo embate de
permanência nos caminhos tortuosos da reprodução social contra a generalização da
individualização privatizada – como concretude da cotidianidade em ato. Daí a tarefa de observar mais precisamente as periferias das grandes metrópoles11 , os efeitos desta sociabilidade e de suas mediações na composição das subjetividades. Percebe-se o fortalecimento de uma
tensão cada vez mais irreconciliável que tende a afetar as práticas sócio-espaciais que se
forjavam como solidariedades e reciprocidades centradas nos vínculos familiares e de compadrio
(SARTI, 1996), tecidas com os fios firmes dos espaços de representação consagrados em torno
das relações de vizinhança. Preocupações objetivas, como a tarifa de energia elétrica ou de
água por vencer e os alimentos de primeira necessidade (alvo de reajustes constantes) por
comprar, contribuem para tornar nos dias de hoje o desempregado ou a desempregada na
família um problema que muitas vezes não se pode ou não se quer enfrentar.
Outrossim, a tensão aludida põe em xeque (ou pelo menos em suspenso) toda essa rede
de solidariedades e de reciprocidades entre as classes populares, a qual sempre contribuiu
para atenuar as contradições sociais de uma metropolização que se processou fragmentando
e homogeneizando os espaços e os tempos da vida social, impondo pressões em si redutoras da
apropriação. Odette Seabra (2004, p.281), ao nos apresentar a formação dos bairros na metrópole paulistana como “...uma condição necessária à urbanização porque formaram como uma
base de produção de valores de uso que integravam a reprodução capitalista da sociedade a
custo zero”, vai ao encontro da nossa afirmação, visto que a canalização massiva das diferentes instâncias da vida social às tramas reprodutivas do capital se depara com limites estruturais, pois, ao mesmo tempo, são tais solidariedades e reciprocidades que ajudam, paradoxalmente, a manter o vínculo social12 .
Some-se a tudo isso o peso das transformações da noção de bem-estar na esteira da
socialização pelo consumo. Ao se diluir no imaginário social13 e se apresentar como “vontade
social” empiricamente constatada porque “medida” por surveys, indicadores sociais e até depoimentos, as necessidades sociais e carências se disseminam na forma de valores e ideais
11
Todavia, não queremos deixar entrever com o exemplo acima a idéia de que é um atributo próprio destas espacialidades
a evidência basal no que tange à sociabilidade privatizada. Tratar nestes termos a questão é proceder de maneira semelhante
às explicações banais e banalizantes que tomam a periferia como “espaços de urgência” e cerne de toda carência material
e subjetiva, devendo ser “amparadas” por “ações concertadas” advindas do Estado ou da caridade privada. Enfim, queremos
dizer que há um processo gradual e aprofundado (o que não significa ser inexorável) de privatização da existência, o qual
desaba de maneiras variadas nos mais diferentes estratos da vida social, realizando-se por meio de um confronto intensivo
e inacabado com as diversas sociabilidades pré-existentes, seja na periferia, seja em outras espacialidades.
12
Entretanto, é necessário relativizar essa afirmação para que não caiamos nas sínteses generalizantes, por exemplo,
acerca do significado das práticas sócio-espaciais contidas nas experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo
nos anos 1970 e 1980, tornadas preocupações de pesquisa de Eder Sader (1995). De acordo com esse autor, muito do que
se produziu acerca dos movimentos e construção de práticas sociais irruptivas desses trabalhadores, quando produzidas,
as apresentavam apenas como “expressão das contradições geradas no capitalismo” (SADER, 1995, p.38). Situavam tais
movimentos e suas práticas na estreiteza das determinações estruturais orientadas por condições objetivas dadas –
materializadas como resposta a um padrão de desenvolvimento excludente. Este viés, ainda segundo Eder Sader, por si só
não dá conta da complexidade presente nos marcos de ação desses mesmos movimentos, posto que não são poucas as suas
especificidades e singularidades – embora, não raro, elas sejam consideradas apenas “traços conjunturais” (SADER,
1995, p.39).
13
Para Lefebvre, o imaginário social se inscreve na cotidianidade de modo a ocultar as pressões e opressões a que os
indivíduos se acham submetidos, embotando a apropriação ao encarcerá-la nas malhas do repetitivo. Trata-se de uma
39
ANDRADE, L. A. E.
ESPAÇO, POLÍTICA E PERIFERIA...
sobre as classes populares das nossas metrópoles. Para o pobre, nos dizeres de José de Souza
Martins (2002, p.37), “...a realidade social como máscara...”, não obstante todos os traumas a
que se está sujeito, concorre para significar a sua incorporação aos desígnios desta sociedade,
“...a sua plena e impotente integração social”. Talvez um dos conseqüentes traumas que essa
“vitória” do pobre através da sua precária incorporação à sociedade como consumidor traz, é
que, logo em seguida, ela já não faz mais sentido, pois, além de ser coagido a se manter onde
está no curso da vida social, novas e infinitas “vitórias” serão exigidas àquele(a) que participa
do jogo do consumo como “jogo da vida”.
É então possível dizer que esta se torna justamente uma das dificuldades ocultas na
consciência individual para se dar crédito às exigências de civilização, sendo que a incredulidade face às suas “recompensas” possíveis detona todo o mal-estar contra o seu projeto. Malestar não raro em nossos dias transferido para o ódio contra aquele ou aquela que padecem da
mesma situação14 , para a rebelião surda e individual, mas podendo emergir como diferenças
(LEFEBVRE, 2007) que produzem o novo.
É em meio a esse cotidiano repressivo que boa parte dos esforços do Estado brasileiro
nos últimos 10 ou 15 anos tem sido o de criar “políticas” e “programas” para lidar de maneira
mínima com as crescentes tensões sociais daí provenientes, principalmente aquelas concentradas nas periferias metropolitanas. Esta constatação nos leva a interrogar os sentidos do
discurso e da prática realizada por meio das chamadas “políticas sociais” na contemporaneidade.
Tarefa que envolve adentrar um pouco mais nos critérios de promoção dessas “políticas” e
associá-los com a “realidade da pobreza” pintada pelos promotores e pelos organismos que
ajudam a coordenar suas ações. Realidade essa inscrita no curso das transformações do Estado e o modo pelo qual elas atingem a formulação, a implementação e a avaliação das “políticas
sociais”. Em seguida, cabe demonstrar os vínculos das “políticas sociais” com a (re)produção
do espaço nas periferias metropolitanas – entendida aqui como “espacialização” da re-produção das relações de produção – e os cenários que vêm à tona, como a redefinição do “sistema”
de necessidades e suas estreitas relações com despolitização da política nas periferias aludidas.
AS
TRANSFORMAÇÕES NO
EST
ADO,
STADO
AS “POLÍTICAS SOCIAIS” E O ECLIPSE DA
POLÍTICA
É imprescindível para nossa análise ressaltar que a atuação do Estado no “combate à
pobreza” tem sido tributária das amplas transformações nas suas atribuições. Entre outros
aspectos, elas geraram a abertura de setores anteriormente instituídos como “bens sociais” –
entre eles, a educação, a saúde, a habitação e a previdência social. Tais transformações foram
operadas sob os eufemismos de “reformas” e de “inovação institucional” – dadas pela conversão do caráter administrador do Estado para o de “gestor” –, deixando-se o caminho livre para
que o setor privado abocanhasse esses “bens sociais” e os convertessem em serviços
disponibilizados no mercado. Esbarramos com as proposições de Luiz Carlos Bresser-Pereira,
um dos principais formuladores no campo teórico do reformismo estatal na era do capitalismo
neoliberal. De maneira aligeirada, pode-se afirmar que suas formulações reforçam a cantilena
ideologia (trazida à baila por meio de representações: imagens, discursos e signos) que supostamente referenda uma
“vontade social” ou presta um serviço de “utilidade pública” ao expor problemas relativos ao bem-estar material e psíquico
desses indivíduos. Vale dizer que os meios de comunicação são hoje o mais poderoso veículo de transmissão e reforço de um
cotidiano programado. Nos termos do autor: “...o imaginário, com relação à cotidianidade prática (pressão e apropriação),
tem um papel: mascarar a predominância das pressões, a fraca capacidade de apropriação, a acuidade dos conflitos e os
problemas ‘reais’” (LEFEBVRE, 1991, p.99).
14
Veja-se o noticiário do grosso da imprensa no ano de 2008, relatando os violentos distúrbios (ocasionando dezenas de
mortes) gerados pelas manifestações xenófobas por parte dos sul-africanos pertencentes aos setores empobrecidos da
população daquele país frente aos imigrantes (também pobres) de países vizinhos, como o Zimbábue, o Lesoto e Moçambique.
Tais fatos somam-se às sintomáticas observações de Paulo Arantes, no seu diálogo com o sociólogo Michel Lind acerca dos
conflitos internos à sociedade americana: “Numa sociedade mais homogênea, a atual concentração exponencial de poder
e riqueza certamente provocaria alguma reação da maioria. Porém, na atual situação (...), o ressentimento provocado pelo
declínio econômico se expressa muito mais na hostilidade entre os grupos na base do que numa rebelião contra os do topo
– tal como se viu no último motim em Los Angeles, quando negros, hispânicos e brancos amotinados se voltaram contra os
pequenos comerciantes coreanos em vez de marcharem sobre Beverly Hills (ARANTES, 2004, p.31) [os grifos são meus].
40
Terra Livre - n. 31 (2): 33-48, 2008
da “crise do Estado” e seu aprofundamento nas dimensões fiscal, das formas de intervenção e
de administração. Diante deste quadro, dever-se-ia limitar suas funções enquanto produtor
de bens e serviços e também no campo da regulação econômica (BRESSER-PEREIRA, 1998).
Entretanto, outra ressalva importante se faz necessária: as conseqüências diversas
das operações acima mencionadas não podem ser tratadas como sinais claros do “enfraquecimento do Estado”. Ora, o Estado nunca foi tão forte no atendimento às exigências para que o
melhor ambiente possível seja concedido aos interesses do grande capital, a se constatar pela
alardeada (e nem por isso submetida a um rigoroso escrutínio) “crise financeira”, tomada
como crise pontual e sucessão de eventos sem relação uns com os outros. A conseqüência dessa
primazia é o abandono de todos os interesses sociais que não possam ser convertidos em
serviços ou que o setor privado não possa “firmar parcerias” com os setores estatais na sua
provisão. Tal é o resultado da hipertrofia da economia face à pequenez da “política oficial” em
controlar seus movimentos.
Nesse mesmo ambiente, segue-se a reprodução social sob a ordem capitalista
globalizada, entre outras facetas por meio dos modelos – também globalizados – de programas e ações de “combate à pobreza” formulados pelos organismos internacionais ocupados
com essas “preocupações”, como Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID – e o Banco
Mundial – BM. Esses agentes, ao seguirem o compasso das orientações econômico-financeiras e políticas supracitadas, passam a apresentar verdadeiros “manuais”15 direcionados aos
países “afetados” pela pobreza, instando-os e coagindo-os a seguirem estratégias para sua
“superação”.
Convém fazermos uma rápida observação dos diferentes momentos da disseminação
das políticas contidas nesses “manuais”, até mesmo para compreendermos as inflexões teóricas que os perpassaram. No início da década de 1990, o “Relatório sobre o desenvolvimento
mundial” do BM focou suas recomendações em dois importantes grupos de ação: aquelas
ligadas às “reformas” do Estado, aludidas acima, e outras, ligadas às transformações na organização e controle dos processos de trabalho.
Quanto às “reformas” do Estado, cumpre acrescentar que este deveria assumir um
papel eminentemente “facilitador” e de “parceiro” dos mercados: “...os Estados devem complementar os mercados e não substituí-los” (BANCO MUNDIAL, 1997, p.18). Preconizava-se a
criação de “novas instituições”, promotoras da “boa governança”, no intuito de facilitarem
outros marcos regulatórios sobre os mercados, dessa vez privilegiando a competitividade entre eles. O “bom ambiente” macro-econômico – dado pela “solidez” e “previsibilidade” das
instituições – também se constituiria numa demanda imprescindível. O direito de propriedade deveria continuar sendo inalienável e a corrupção como chaga deslegitimadora das instituições viabilizadoras dos mercados deveria ser fortemente combatida. Já o concernente às
mudanças no trabalho, estas deveriam se dar através do apoio do Estado àqueles indivíduos
“incapazes” que, ao contrário dos “aptos” – os quais têm condição de auferirem a mesma
condição por meio da aquisição de bens e serviços no mercado –, não possuiriam a capacidade
de buscarem sozinhos sua reprodução da mesma forma. Para tanto, deveriam ser criadas
estratégias diversas para a inserção no mercado por meio da “complementação” de serviços
sociais aos que por eles não podem pagar.
Entretanto, desde o início do século XXI, outras concepções passaram a confrontar
determinados aspectos das teses do BM, sobretudo no que competia à centralidade da “geração de renda” nas políticas de “combate à pobreza”, as quais vigoraram durante toda a década
de 1990. A pobreza passaria então a ser compreendida como “fenômeno multifacetado”, verificando-se uma forte influência das formulações do economista indiano Amartya Sen. Numa
síntese apertada, as formulações deste defensor aos estribilhos das liberdades de mercado16
têm como princípio pensar a “ausência de renda” como fator intrinsecamente necessário para
que as próprias noções do desenvolvimento sejam submetidas à revisão. No entender de Sen
(2000), o desenvolvimento é um processo de “expansão das liberdades”, as quais, não obstante
15
Os informes técnicos do Banco Mundial expressam bem a tendência dos manuais: “Estratégias de assistência para
reduzir a pobreza”, de 1991, e “Manual para a redução da pobreza”, de 1993, são alguns exemplos.
16
Dentro da sua proposta de ampliar as concepções vigentes sobre o desenvolvimento, Sen chama de “exame crítico” dos
mercados a análise em torno de quão prejudiciais aos interesses sociais podem ser certas manifestações da ambição pelo
lucro privado. Tomando como exemplo o economista inglês Adam Smith, Sen atenta para o fato de que a desconsideração
41
ANDRADE, L. A. E.
ESPAÇO, POLÍTICA E PERIFERIA...
estejam imbricadas, possuem dimensões de ordem econômica, política, segurança social e
transparência jurídica. Perseguir a provisão e a ampliação dessas “liberdades” reclama também o simultâneo “alargamento” da noção de pobreza, cuja influência mais nefasta é a “privação de capacidades” (SEN, 2000). Tal noção deveria substituir a pobreza entendida tão somente como baixo nível de renda, embora esta variável não fosse desconsiderada.
Para o economista, a inovação trazida pela idéia de “capacidade” contribuiria para
“...melhorar o entendimento da natureza e das causas da pobreza e privação desviando a
atenção principal dos meios (...) para os fins que as pessoas têm razão para buscar e,
correspondentemente, para as liberdades de poder alcançar esse fim” (SEN, 2000, p.112, os
grifos são do autor). Ao estabelecer este nexo, Sen encampa a tese de que o “aumento das
capacidades” – cuja elevação dos níveis de renda deve estar em consonância com melhorias
nos serviços básicos de saúde e educação – poderia ajudar no desenvolvimento de um país, por
meio do investimento nos mais pobres – recorrentemente denominados “recursos humanos”.
E ainda: “...o aumento das capacidades humanas também tende a andar junto com a expansão das produtividades e do poder de auferir renda” (SEN, 2000, p.114)
Ao verificarmos o relatório do BM, publicado em 2000-2001, percebemos que não há
uma mudança substantiva nas atribuições do Estado, mas o seu reforço. A título de exemplo,
tomemos o documento denominado “Inclusão Produtiva de Jovens”, produzido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome a partir de um projeto-piloto iniciado em
2004 em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD. Em
sua apresentação, o Ministro Patrus Ananias evidencia o que ele chama de “desenvolvimento
integral”, o qual visaria garantir “...mais e melhores oportunidades para que todos os cidadãos possam desenvolver o seu pleno potencial...” (p.05), mormente através da “efetiva inclusão de jovens”. Já a Secretária Nacional de Assistência Social, Ana Lígia Gomes, é efusiva ao
falar das “ações de inclusão produtiva” como “...reconhecimento dos jovens como sujeitos de
direito...”, promovendo “...sua autonomia e protagonismo social, político e econômico” (p.07).
“Aumentar as capacidades humanas” dos pobres para que estes se tornem “protagonistas” de
suas ações e não mais precisem dos programas sociais, eis aí o modo pelo qual o Estado
comparece. O “protagonismo” a ser perseguido anuncia uma “realidade” pretensa e imperiosamente ausente de história, na qual a falta de possibilidades para o exercício do diferente
parece só deixar brechas para a incerta saída individual, mediada pela “inclusão social”
(ANDRADE, 2007).
Duas questões precisam ser formuladas neste momento: as concepções contidas no
projeto político da “esquerda” acerca do que é a “satisfação de necessidades sociais” não estariam circunscritas à sua consideração como satisfação de carências (ou, nos termos correntes,
como “demanda”), isto é, referidas (e reduzidas) ao quantitativo? Os arcabouços teóricos e
conceituais a partir dos quais se formulam, implementam-se e se avaliam as “políticas sociais” promovidas pelos governos de “esquerda” estariam tensionando e/ou se propondo a superar os marcos da economia política que passaram a defini-las nos últimos anos?
Talvez a grande “inovação” desses modelos para a organização das “políticas sociais” é
que a sua concepção se acha definitivamente divorciada do quadro tradicional dos direitos de
cidadania, ainda que os defensores de tais “políticas” insistam em dizer o contrário, como o fez
Sônia Draibe, clamando pelas considerações acerca do “aperfeiçoamento” e da “melhora de
de tais interesses sociais pode incorrer na própria perda de capacidade produtiva e, conseqüentemente, no bom
funcionamento da economia. Por isso, a pobreza deve ser combatida, viabilizando a extensão de estoques de trabalho
produtivo e de demanda solvável. Aduz o autor: “Esse é, em grande medida, o principal receio quando se considera a perda
social envolvida, por exemplo, nas produções privadas que acarretam desperdício ou poluição do meio ambiente e que se
ajustam bem à descrição feita por Smith da possibilidade de ‘alguma diminuição no que, de outro modo, teriam sido os
fundos produtivos da sociedade’” (SEN, 2000, p.151). No momento seguinte, o economista indiano ressalta a importância
das chamadas “oportunidades sociais” no contexto da promoção do desenvolvimento, o que, inferindo bem, possibilita os
fins da acumulação do capital: “Combinar o uso extensivo dos mercados com o desenvolvimento de oportunidades sociais
deve ser visto como parte de uma abordagem ainda mais ampla que também enfatiza liberdades de outros tipos (direitos
democráticos, garantias de segurança, oportunidades de cooperação etc.)” (SEN, 2000, p.152).
17
De acordo com Draibe (2003): “...as orientações reformistas do governo, no período de 1995 a 2002, não se pautaram por
diretrizes privatizantes dos serviços públicos. Em nenhum plano das inovações institucionais registrou-se um recuo do
Estado. Ao contrário. Indicadas nas propostas gerais, as inovações e as alterações implementadas nos serviços sociais
públicos e universais visaram a aperfeiçoamentos, reforços, aumento do seu impacto redistributivo, melhoras na eficácia,
não a sua substituição ou privatização” (DRAIBE, 2003, p.89).
42
Terra Livre - n. 31 (2): 33-48, 2008
eficácia” dos serviços “públicos” no governo Fernando Henrique Cardoso17 (DRAIBE, 2003).
Em países como o Brasil, o forte impacto da liberação dos movimentos de capital sobre a
regulação social incidiu diretamente na noção de direitos como conquista e dimensão primaz
da cidadania, a qual substituiu as “políticas sociais” como promoção desses direitos por “ações
sociais”.
Por isso, o que se chama de “universalização” parece muito mais próximo da distribuição de alguns elementos básicos de direitos sociais como saúde e educação para os grupos
sociais mais “vulnerabilizados” para, em seguida, devotar aos grandes grupos privados a provisão daquilo que era direito, agora como serviço vendido no mercado. Pode-se perceber a
aplicação dos postulados de Amartya Sen, ao se acoplar às “políticas” de “geração de renda” e
“inclusão produtiva” tais elementos básicos de saúde e de educação, consoantes com o “combate à pobreza” via “aumento das capacidades”. Nesses termos, há o deslocamento da noção de
demanda da universalidade dos cidadãos para reinscrevê-la como limitada àqueles com baixa
ou inexistente “capacidade” de consumo no mercado. Trata-se da focalização das “políticas
sociais” nos mais pobres, reduzindo aquilo que se consagrou como direitos de cidadania à
concessão a esses grupos.
Os programas e ações derivados das “políticas sociais” inscrevem-se como reposição
daquilo que seriam os novos atributos e representações da “humanidade do homem”, signos
referentes a uma temporalidade e uma espacialidade consentâneas à monetarização e à
privatização das relações sociais. Colidem com a miríade de modos próprios das pessoas do
lugar de se relacionarem entre si, os quais envolviam práticas sócio-espaciais em alguma
medida desvinculadas dos interesses ligados ao dinheiro ou aos “favores” instrumentais. É no
limiar entre a benemerência instituída, focada em grupos sociais distintos (jovens, idosos,
moradores de rua etc), e a criação de mecanismos de introjeção de uma sociabilidade
estruturada sobre a forma valor, levando os “assistidos” a aplicarem suas “capacidades” na
busca pelo “protagonismo social”, que o Estado orienta esta linha de ação específica de reprodução das relações sociais de produção: as “políticas sociais”.
Essa tem sido a tônica dos modelos de “produção solidária” que invadem as periferias
metropolitanas através de cooperativas diversas, encampadas por esses tentáculos do Estado
que são as ONGs, os “projetos de extensão” de universidades e as empresas “socialmente
responsáveis”. Paulatinamente tais modelos ajudam a redefinir o uso do espaço e as práticas
sociais a ele imanentes, embotando suas qualidades referidas ao encontro e às solidariedades
e se impondo como utilização18 , sob o viés da capitalização da produção. Da mesma forma, vão
redefinindo os empregos do tempo, “integrando-o” às cronologias exigidas pelo produtivismo –
demarcando as datas para a entrega das encomendas e o seu “controle de qualidade”. E o que
é pior: apresentando-se numa forma que expõe a suposta positividade do tempo imposto como
“ocupação” e até “diversão” para as pessoas por ele atingidas.
Caminhando pari passu com as representações estatistas que atestam a “conquista”
da cidadania e da “qualidade de vida” pela via do trabalho abstrato (e precário), estão os
programas de urbanização de vilas e favelas, compondo o “novo modelo de gestão” das “políticas sociais” – integrando ações de diversas secretarias municipais, de estado ou da União
através do chamado “princípio da intersetorialidade”19 . No caso de Belo Horizonte, trata-se
do “Vila-Viva”20 , programa intensificado com recursos do Programa de Aceleração do Cresci-
18
O termo acima utilizado está referido à redução das possibilidades do uso como potencialização dos atributos do ser
(LEFEBVRE, 1991, 2002, 2007).
19
No âmbito estrito (além de restrito e restritivo) da “ciência política”, a “intersetorialidade”, consistiria numa crítica ao
“...tratamento setorializado dos problemas públicos...”, visto serem “...considerados de acordo com a especialização dos
profissionais responsáveis pelo serviço sem envolvimento de outros setores” (CKAGNAZAROFF & MELO, 2005, p.02).
Tal setorialização tornaria insatisfatórias as políticas públicas, a “prática dos direitos” e o “controle social”, pois os problemas
vivenciados pelos cidadãos possuiriam causas diversas (CKAGNAZAROFF & MELO, 2005).
20
Segundo informações contidas no portal da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, o Vila Viva “...engloba obras de
saneamento, remoção de famílias, construção de unidades habitacionais, erradicação de áreas de risco, reestruturação do
sistema viário, urbanização de becos, implantação de parques e equipamentos para a prática de esportes e lazer. Após o
término da urbanização, a área será legalizada com a emissão das escrituras dos lotes aos ocupantes (...).O Programa Vila
Viva também engloba ações de promoção social e desenvolvimento comunitário, educação sanitária e ambiental e criação
de alternativas de geração de trabalho e renda”.
43
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ESPAÇO, POLÍTICA E PERIFERIA...
mento – PAC – do governo federal e financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social – BNDES – e da Caixa Econômica Federal – CEF.
Ao se constatar a realização dessas obras nas vilas e favelas mais bem localizadas em
relação às múltiplas centralidades de poder e de riqueza da metrópole de Belo Horizonte,
percebe-se que não se pode tomar os negócios com a urbanização referidos apenas aos grandes
projetos imobiliários. A análise das “políticas sociais” e seu acoplamento ao programas de
urbanização nos leva a reiterar que a reprodução social do espaço na metrópole atravessa a
vida, cria novas sociabilidades e necessidades pela própria alienação daquelas anteriormente
existentes – as quais passam a serem tratadas como precariedade material e “violência” que
foram “deixadas para trás” devido às intervenções do Estado.
Concomitantemente, todas as espacialidades materialmente precárias são “...novos
espaços para a valorização do capital” (DAMIANI, 2004, p.41) em potencial. Ao serem atingidas por tais programas, as espacialidades em questão e suas adjacências passam por forte
valorização, possibilitando maior capitalização das propriedades, não só pelas grandes obras
de infra-estrutura, mas pelos projetos de regularização fundiária a eles associados. Com isso,
há uma clara tendência à “saída espontânea” das famílias mais “vulneráveis”, isto é, aquelas
com menor “capacidade” de “protagonizarem” suas vidas mediante a obtenção de rendimentos para arcar com as despesas crescentes (água, energia, condomínio etc) geradas pelas novas modalidades do hábitat21 (LEFEBVRE, 2002).
Criam-se, assim, as condições objetivas para os arranjos futuros nas definições e estratégias do mercado imobiliário, devido à própria geração de demanda solvável correspondente
às exigências dos novos patamares de capitalização da propriedade e de monetarização das
relações. Com efeito, são definições e estratégias dadas em função de novas áreas a serem
incorporadas ou a sofrerem o aprofundamento das intervenções do mercado imobiliário –
municiadas por todo o escopo das políticas de espaço – que não se resumem às mudanças na
morfologia espacial. Desse modo, faz-se imprescindível articularmos tal mudança àquelas
inscritas na re-produção das relações sociais de produção, as quais progressivamente solapam as práticas sócio-espaciais constituídas no seio das vivências mencionadas acima.
Retomando a reflexão sobre as “políticas sociais” atuais, a partir da constatação dos
referenciais em torno dos quais a noção de pobreza é pensada e confrontada, podemos buscar
seus modos de objetivação. No que concerne ao discurso presente na Secretaria de Políticas
Sociais da Prefeitura de Belo Horizonte – PBH –, este alude à necessidade do “resgate” de
“vínculos familiares e comunitários”. Parte-se do pressuposto de que tais vínculos estariam se
dilacerando face à situação de ampla precariedade vivida pelas famílias moradoras das áreas
“socialmente vulneráveis”. Desta forma, o campo de ação das “políticas sociais” inscreve-se na
formulação de planos de ação para “incluir” socialmente essas famílias e fortalecer seus vínculos – tanto no âmbito da casa quanto no da “comunidade”. Ora, é nessa composição de novas
solidariedades que se absolutiza o dano, que se impõe a vontade obsessiva de que a política
seja suprimida da vida social. Aspecto semelhante é o das modalidades de implementação das
“políticas sociais” na França, dadas pela sua extensão a todos aqueles que não padecem simplesmente da falta de trabalho, de recursos ou de moradia, mas “...da falta de ‘identidade’ e de
‘vínculo social’, incapazes de ser esses indivíduos criativos e contratantes que devem interiorizar
e refletir a grande performance coletiva” (RANCIÈRE, 1996, p.118).
Dada a sintomática indiferenciação entre as “políticas” de “combate à pobreza” e aquelas com vistas à administração dos interesses do capital – sendo esta fundamentada na eficácia administrativa em seu sentido mais largo –, o “social” torna-se o terreno sobre o qual
devem ser aplicados os instrumentos e tecnologias de controle mais precisas, otimizando seus
resultados. Por sua vez, tais instrumentos e tecnologias trazem no seu bojo uma concepção
inerente da incompetência política das classes populares, cujas formas de pensar e se organizar, movimentar-se e agir seriam a sua expressão cabal. Essa “eugenia do espírito” desaba
sobre as periferias metropolitanas e se consolida como elemento importante da re-produção
21
A própria materialidade do espaço nessas áreas “socialmente vulneráveis”, quando obtida, por exemplo, na forma de
uma praça ou uma quadra de esportes, já traz consigo a contradição envolvendo as modalidades de sua utilização e o
escasseamento do tempo para tal, visto que este já se encontra deveras absorvido pelo trabalho abstrato intenso e malpago, devendo-se a renda ser complementada com mais trabalho.
44
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das relações sociais de produção e sua verve autoritária e antipolítica. Ela reduz as pessoas
habitantes a meros “receptores” de favores do Estado, de modo a dirigir e mediar seu agir
reivindicativo, entendido como uma pálida expressão da “vontade social”: aceitar o trabalho
abstrato como condição naturalizada e viver a vida como aparência capitaneada pelo consumo.
Pode-se dizer que o Estado, no seu comprometimento com as estratégias de classe que
o mobilizam no sentido de criar as condições gerais para a máxima performance dos capitais,
bem como atuar firmemente na re-produção das relações sociais de produção, ainda trata o
espaço como algo em si, uma espécie de “campo” onde uma racionalidade supostamente superior e acima dos interesses particulares deve atuar. Atuação essa que estaria devotada a
dirimir conflitos e “organizar” aquilo que aparece como “caos”, transformando-o em coerência
lógica – modalidade irmã siamesa da vontade do “Espírito absoluto” de conformar o “real” à
Idéia.
Concomitantemente, o Estado e suas instituições se legitimam frente à sociedade enquanto agentes de fato comprometidos com a implementação e efetivação de “políticas sociais” responsáveis (PAOLI, 2007). Trata-se aqui da manifestação cabal do entendimento da
sociedade e das pessoas que a compõem como coisas a serem “geridas”, no intuito de se produzir uma ordem consensual mediante os artifícios da violência institucionalizada. No entanto,
os fracassos diversos verificados nessas “políticas” no mais das vezes se colocam como justificativas do Estado em contrário à mera oscilação percentual da dimensão do visível e do contável
presente nos “indicadores sociais”, ou dos recorrentes casos de corrupção e de desvio do dinheiro público por aqueles que se dizem “comprometidos com o social”. Insiste-se em reduzir
as contradições sobressaídas da ação do Estado a disfunções no “todo coerente” (no caso da
corrupção presente no aparelho de Estado, uma simples aberração de caráter restrita ao indivíduo!).
No verão de 1844, Marx (1995) respondeu a um artigo do jornal Vorwärts, no qual o rei
da antiga Prússia, ao se informar sobre a insurreição dos trabalhadores silesianos, transpôs
o referido problema para questões relativas à “boa disposição dos corações cristãos”, tratando-se, portanto, de “desvios” nos instrumentos de gestão do Estado. Já naquele tempo Marx
aduzia que o Estado não era capaz de procurar contradições no seu próprio ordenamento e na
natureza dos interesses a que se fazia defensor. Os males sociais não passam por uma ação
substancial que atinja a natureza do próprio Estado, mas numa ação contra os males sociais
em si mesmos, fazendo com que programas e ações “sociais” “concertadas” e “intersetoriais”
sejam instrumentos eficazes no trato com a pobreza – porque agora “vão direto aos problemas” e são “poupadores” de recursos financeiros.
PARA NÃO CONCLUIR: O
ESP
AÇO E A POLÍTICA NA DIALÉTICA DO EMBOT
AMENTO
ESPAÇO
EMBOTAMENTO
DA SUA REALIZAÇÃO E AS SUAS POSSIBILIDADES
Tão importante quanto levar em conta as especificidades concernentes aos modos de
vida e à maneira como estes se consubstanciam nas práticas sócio-espaciais nas periferias e
nas diferentes maneiras pelas quais os habitantes dessas espacialidades lidam com os diversos desafios a que se encontram expostos, é operar uma prática política disposta a transpor
fundamentos arraigados na vinculação partidária e nos marcos do Estado. São os sentidos e
os significados dessa ação partidária e/ou estatista que nos levam a compreender que negar e
solapar as práticas sócio-espaciais passa pela desqualificação implícita ou explícita dos conhecimentos que nelas se congregam e que levam as pessoas a refletirem e a lidarem – com
base na sistematização dessa reflexão – com as dificuldades impostas pelo cotidiano programado. E, à medida que os desqualifica, atesta ideologicamente como legítimas suas representações.
Tem-se aquilo que denominamos aqui como despolitização como instituição, através
da presunçosa argumentação de que a política só se faz com base em pressupostos definidos
pelos e através dos aparelhos do Estado e dos partidos políticos. Não seria esta conjunção de
atos de que se reveste a política e seus marcos regulatórios a manifestação cabal daquilo que
Lefebvre (2007) nos alerta, ao enfatizar as oposições, separações e mistificações operadas
pela Razão e que se desdobra na ciência, na política, na economia e no Estado?
45
ANDRADE, L. A. E.
ESPAÇO, POLÍTICA E PERIFERIA...
Ora, uma “política” institucionalizada só pode se dar num espaço cujos atributos e os
rumos nele tomados não sejam apanágio das pessoas, mas da constelação de especialistas que
arrogam para si as prerrogativas da sua produção. Uma “política” como essa, que ganha sentido na sua falta de sentido, gerando nas pessoas a consciência passiva ou ativa da sua
teatralidade é também a celebração do “espaço mortal”, pois “...ele mata suas condições (históricas), suas próprias diferenças (internas), as diferenças (eventuais) para impor a
homogeneidade abstrata” (LEFEBVRE, 2007, cap. 06).
Essa homogeneização que tende a suprimir as diferenças e a sua qualidade revestida
pelo conhecimento do imediato concernente ao cotidiano22 por parte das classes populares,
opera de maneira perversa naquilo que seria a construção nunca acabada de uma sociedade
forjada pelos princípios políticos que denotam a democracia radical. Sociedade essa calcada
na provisão efetiva de direitos e no direito a criá-los como condição socialmente definida na e
pela política, a qual viria a se realizar cotidianamente por sujeitos racionais e livres como
necessidades radicais. No entanto, estamos vivendo o acirramento da redução das necessidades sociais ao quantitativo, resultando naquilo que Heller (1986) chamou da “alienação capitalista das necessidades”. Tal alienação, como já dissemos, nada mais é do que a satisfação de
necessidades deixando de sê-lo para se circunscrever à provisão de alguma fatia das carências
– mediada pelas “políticas sociais”. E ao se pôr como criação das melhores condições subjetivas e cognitivas para que o indivíduo aceite sua sujeição, a satisfação de carências tende a
golpear as condições para que a democracia radical seja a regra do compartilhamento social,
fazendo com que o urbano como algo a ser alcançado por essa democracia também deixe de
estar em questão como disputa política forjada no e pelo dissenso.
Trata-se aqui de pensar as necessidades radicais como produção de estratégias
imbricadas a um projeto do conhecimento e de um projeto político, de uma utopia pensada e
vivida. Redefinição sinônima, conforme assevera Lefebvre (2004), da reorientação do processo de industrialização23 , convertendo-o em meio para alcançar a sociedade urbana, diferentemente do fim em si mesmo em que se conformou – resultante de seu encarceramento nas
malhas da racionalidade economicista e produtivista sobre a qual se erige a sociedade burguesa. E é no seio da modernização do mundo como aprofundamento das relações capitalistas, quando estas procuram lidar com suas contradições sem avançarem um palmo sequer no
restrito círculo das suas relações constitutivas – numa reprodução ampliada, em grau superior, de suas contradições –, que as necessidades radicais surgem como projeto de resgate da
apropriação – do tempo, do espaço, do corpo e do desejo.
Reiteramos, portanto, o acirramento entre a “política” entendida como “apanágio de
especialistas” e descontaminada de qualquer caráter espontâneo das ações populares e a
exaltação da questionável “democratização” do Estado nas suas relações com a sociedade
civil. Chega-se a pensar que talvez poderíamos estar próximos, e quiçá alcançado, a idéia de
sociedade civil como sociedade política, tal qual falava Marx – fruto da constatação do aparente levada a cabo por uma sociologia empírica –, dada a infinidade de instrumentos e de espaços “propícios” à participação e à deliberação populares e o controle social sobre as “políticas”
e a sua conformação como ações implementadas pelo Estado. Pois é “...a satisfação das necessidades de autodeterminação, e não de simples carências, que melhor permite a transformação de nossa contingência em destino” (HELLER & FEHER, 2002, p.46). E esta capacidade de
orientar nosso destino de maneira soberana só se constitui na medida em que os indivíduos
tornam-se sujeitos políticos de fato, que se põem num plano superior da existência social
portando um discurso produtor de sentido. Estar na sociedade de modo autônomo implica a
condição de um agir que não se circunscreve à mera existência.
Por isso, devemos alertar que aquilo que passa a compor o chamado atendimento por
parte do poder “público” às reivindicações populares somente de maneira muito forçosa não
22
De acordo com Martins (1989, p.128): “A dimensão do tempo dos movimentos sociais está no âmbito do imediato e do
cotidiano, mas de um imediato que cobra de cada um e de todos a necessidade de sua superação, porque envolve tensões
e confrontos sem retorno”.
23
Nas palavras do autor: “O duplo processo de industrialização e de urbanização perde todo seu sentido se não se concebe
a sociedade urbana como objetivo e finalidade da industrialização, se se subordina a vida urbana ao crescimento industrial.
Este fornece as condições e os meios da sociedade urbana. Proclame-se a racionalidade industrial como necessária e como
suficiente e se estará destruindo o sentido (a orientação, o objetivo) do processo (LEFEBVRE, 2004, p.141-2).
46
Terra Livre - n. 31 (2): 33-48, 2008
escapa de uma pálida representação do urbano, inscrita na distribuição restrita e restritiva
da riqueza socialmente produzida – distribuição essa que apenas reproduz o primado da economia política enquanto distribuição da escassez. E é mediante a democracia radical, dada
por aquilo que Miguel Abensour (1998) chamou de movimento de “redução” da condição do
Estado, não mais como um todo fechado e não-político que reúne para si os fragmentos das
práticas sócio-espaciais sob seu jugo, mas como um momento da universalidade da política, é
que se pode ir além da obtenção do produzido ou algo de seus despojos. Ao contrário, abre-se
a senda para se chegar à possibilidade e à capacidade de produzir de maneira ampla os sentidos e os significados da vida, não mais como resíduos de um espaço expresso pelos agentes
que o produzem com base nos interesses mercantis da vez, substituindo a apropriação pelas
pressões e opressões.
Eis aí a auto-constituição do povo, caráter inextricável à verdadeira democracia, significado maior da fuga da idéia do consenso como sacramentação daquilo que é dito com a
presunção do “conhecimento do social” e da prática política como tarefas atribuídas a um
corpo institucional, o qual seria capaz de “planejar” ações de “inclusão” sócio-econômica de
amplas parcelas sociais. Para terminar, e fazendo nossa a questão posta por Jacques Rancière
(1996, p.117), essa tecnologia não seria nada mais do que o consenso como a “...pressuposição
de inclusão de todas as partes e de seus problemas, que proíbe a subjetivação política de uma
parcela dos sem-parcela, de uma contagem dos incontados?”.
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Recebido para publicação dia 05de marçode 2009
48
O
PAPEL DOS
FATORES
LOCACIONAIS NA
CRIAÇÃO
DO TECNOPOLO
CAMPINA GRANDE-
PB
THE PAPERS OF THE
LOCATIONAL
LOCA
TIONAL FACTORS
CREATION
IN THE CREA
TION
OF TECHNOPOLO
CAMPINA GRANDE-PB
LES
PAPIERS DES
FACTEURS DU
LOCALIZACITION DANS
CREATION
LA CREA
TION
DU TECHNOPOLE
CAMPINA GRANDE-PB
ERNANI MARTINS DOS
SANTOS FILHO
UNIVERSIDADE
ESTADUAL DA PARAÍBA
– UEPB
[email protected]
SÉRGIO FERNANDES
ALONSO
DEPARTAMENTO DE
GEOCIÊNCIAS –
UFPB
[email protected]
Resumo: O modo capitalista de produção, ao engendrar
transformações nos processos produtivos e de trabalho, dialeticamente
provoca e reflete mudanças em curso no seio da sociedade. A passagem
do paradigma fordista para a acumulação flexível, expressão
imperativa dessas transformações, é reveladora da emergência dos
tecnopolos. Desta feita, este trabalho busca identificar como essas
transformações, amparadas no papel formado pelo ambiente social e
cultural, são assumidas diante das mudanças mais gerais para a
emergência de Campina Grande como tecnopolo. Nesse sentido, o
mesmo se apresenta como uma possibilidade de contribuição para o
entendimento da cidade, a partir de uma abordagem da Geografia
econômica e, mais especificamente, relacionada ao setor de
Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s). Cidade a ter um
dos cinco primeiros parques tecnológicos implantados no Brasil, ainda
na década de 1980, Campina Grande se constitui atualmente num
tecnopolo de referência em atividades de P&D de tecnologias de ponta,
para empresas nacionais e internacionais.
Palavras-chave: Campina Grande – Tecnopolo – Fatores Locacionais
– Acumulação Flexível
Abstract: The capitalist mode of production in its transformations of
labor and productive processes dialectically causes and depicts current
changes in the core of society. The origin of technopoles lies in the
turning of the fordist production paradigm into flexible accumulation.
Thus, this research aims at understanding how such transformations
– supported by the role performed by the social and cultural
environment – account for more general changes responsible for the
arousal of the city of Campina Grande as a technopole. This way, the
study presents itself as a possibility of contribution toward
understanding the city based on Economic Geography and, more
specifically, an approach related to the realm of TIC’s. Being one of
the first five cities in Brazil to have a technology park implemented,
still in the 1980’s, Campina Grande is, at present, a reference
technopole concerning state-of-the-art P&D activities, either for
national or international companies.
Keywords: Campina Grande – Technopole – Locational Factors –
Flexible Accumulation
Résumé: Le capitalisme a changé ses nuances en même temps qui’il
a causé des transformations sociales, incluant des nouveaux
paradigmes de production: d’un type fordiste à l’autre de acumulation
flexible. Tout ça est très important pour la constituition des
technopoles. Dans ce travail on veut comprendre le rôle de l’ambiance
sociale et culturelle à la formation de Campina Grande en technopole.
Ainsi, on peut contribuer à la compreension de la ville au sens de la
géographie économique, et particulièrement au rapport sur
technologies de l’information et de la communication – TIC. Campina
Grande a établi l’un des premiers centre technologique au Brésil et,
autour de 1980, la ville s’est établie comme référence em P&D au
dévelopement technologique à service des entreprises au Brésil e à
l’extérieur.
Mots-clés: Campina Grande – des Technopoles – des Facteurs Locaux
– L’acumulation Fexible
Terra Livre
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 49-62
Jul-Dez/2008
49
SANTOS FILHO, E. M. E ALONSO, S. F.
O PAPEL DOSFATORESLOCACIONAIS
INTRODUÇÃO
O surgimento de novas áreas industriais e a reestruturação de outras estagnadas, a
partir da segunda metade do século XX, expressam as transformações do modo capitalista de
produção que, ao incorporar a tríade ciência, tecnologia e inovação, dão origem aos tecnopolos.
Com exceção do Silicon Valley na Califórnia (EUA), que surgiu “espontaneamente”, os demais
tecnopolos em âmbito global representam compilações desse modelo que deu certo. Se nos
países centrais as leis de mercado são determinantes, nos periféricos1 , esse processo resulta
especialmente da atuação do Estado.
Dentro desse contexto e tendo por base as principais linhas de investigação e debates
atuais da Geografia Industrial, um dos ramos mais dinâmicos da Geografia Econômica atual,
proposta por Méndez & Caravaca (1999), este trabalho visa contribuir para a reflexão da
emergência do Tecnopolo Campina Grande. Para tanto, a identificação dos fatores locais e
daqueles mais gerais; a compreensão da importância do ambiente social e cultural; a discussão acerca do conceito de tecnopolo e o papel que o Estado e o mercado desempenham na
criação desses territórios tecnológicos se tornaram essenciais. Não se tratando de dissecar
aqui esses aspectos, anteriormente citados, a proposta é que eles possam responder aos processos engendrados na/e pela cidade.
Os argumentos que justificam este trabalho são múltiplos. Relacionemos pelo menos
dois como forma de demonstrar sua relevância. Primeiro e de acordo com Castells & Hall
(2001), de modo geral, os estudos acerca dos tecnopolos não são recorrentes, produzindo lacuna significativa na produção literária desse ramo do conhecimento. Todavia, existem trabalhos isolados, capítulos de livros e dissertações com base em estudo de caso, porém em pequena proporção. Portanto, quanto a Campina Grande, este se apresenta como o primeiro estudo
de abordagem geográfica acerca da temática: “Tecnopolo”, que se conhece. Segundo, motivações particulares, como as dedicadas ao ensino de Geografia e a Campina Grande enquanto
foco de pesquisa sobre cidades médias, propuseram uma constante reflexão sobre as transformações por que passa a cidade e os processos que a engendram, inscrevendo-a na tendência
de emergência dos novos “complexos industriais do século XXI”.
Os novos territórios industriais
Os tecnopolos emergem dentro de um contexto em que as tecnologias da informação e
comunicação – TIC’s, o estreitamento das relações exteriores entre as nações, sobretudo no
que concerne ao seu aspecto econômico, e o estabelecimento de um “novo paradigma” de produção – a acumulação flexível – assumem papel determinante. Igualmente, os processos de
reestruturação de antigas áreas industriais seguem a mesma tendência. Contudo, parece
acertado afirmar que esses fatores macroeconômicos não são determinantes em termos de
conferir um processo homogêneo de surgimento desses novos territórios. De fato, existe uma
infinidade de outros fatores das dimensões humanas e sociais locais que, geralmente, relegados a um segundo plano, são interpretados como de menor valor, por nem sempre serem vistos
a olhos nus. Essas ações aparecem na tomada de decisões desses agentes que, por motivos
diversos, e seguindo uma infinidade de caminhos diferentes, determinam a feição real dos
tecnopolos. Por isso: “Es posible que algunos tengan objetivos más ambiciosos y que otros los
tegan más modestos” (Castells & Hall, 2001, p. 31).
Entretanto, esse quadro começa a mudar, sobretudo, na última década do século XXI,
quando da publicação de vasta literatura demonstrando a tendência contemporânea para
uma abordagem da influência dos aspectos históricos locais na origem dos tecnopolos. Esclarece Michael Porter (1997, p. 34) que as produções de Cox e Stolper são exemplos de “[...]
1
A noção centro-periferia se fundamenta nas ideias germinais de Manzagol, quando de sua discussão acerca do
desenvolvimento econômico em escala planetária. Segundo ele, trata-se de “um modelo de internacionalização do capital
e da exploração das forças produtivas cuja lógica é a acumulação no centro” (ibid, 1985). É reforçada também por Cano
(2007, p.21), o qual esclarece que essa concepção só tem validade “quando aplicada ao relacionamento entre Estadosnações, e não entre regiões de uma mesma nação, em que a diferenciação de fronteiras internas não pode ser formalizada
por medidas de política cambial, tarifária e outras, salvo as relacionadas às políticas de incentivos regionais” (Cano, 2007,
p.21).
50
Terra Livre - n. 31 (2): 49-62, 2008
obras recientes interesantes de geógrafos económicos [que] están explorando la síntesis entre
globalización y el papel del lugar.”. Para ele, “Las raíces de un aglomerado2 se suelen encontrar en partes del rombo que están presentes, debido a circunstancias históricas”.
Nesse sentido, interpretar as transformações por que passam esses espaços territoriais
apenas pelo prisma de uma abordagem macroeconômica implica um entendimento superficial, em um quadro surreal como em um cartão postal. Não demonstra compreender de fato o
sentido das interações, das relações sociais que promoveram sua existência. Portanto, se quisermos verdadeiramente compreendê-lo em sua totalidade, ou seja, em sua gênese, quadro
atual e perspectivas, temos que adotar uma visão relacional, no bojo de uma conjuntura de
maior proporção, na qual as dimensões do local, do regional e do global se encontram intrinsecamente relacionadas, de tal maneira que possam ser interpretadas como um todo.
Poderíamos nos indagar o porquê de cidades aparentemente parecidas e produzidas
dentro de um mesmo contexto histórico, com estruturas produtivas inicialmente idênticas,
apresentarem-se atualmente tão diferentes, como Campina Grande-PB3 e Caruaru-PE, por
exemplo. Os agentes locais parecem explicar o questionamento. Assim, na busca por conhecer
os fatores locacionais basilares para a emergência do Tecnopolo Campina Grande4 , apoiamonos em posições teóricas há muito discutidas em estudos no âmbito da cidade. Mesmo apresentando vinculações metodológicas diferentes, essas posições parecem convergir, em alguns
momentos.
Aparece nas literaturas voltadas ao desenvolvimento econômico de Campina Grande a
importância de fatores como a localização geográfica, sua função como entreposto comercial
de algodão e atacadista, a ação dos agentes locais, a implantação da ferrovia e a atuação de
organismos de desenvolvimento regional como a SUDENE, entre outros. De modo geral, essas abordagens se enquadram basicamente em três correntes mais elementares: a posição
geográfica excepcional; o comércio do algodão e o comércio atacadista; e a estrada de ferro.
Por esse motivo, é recorrente encontrarmos divergências quanto à posição de muitos
desses autores no que diz respeito à importância desses fatores. Se, para Gurjão (1994, p.
230), Costa (2003, p. 19) e Sá (1986, p. 190), a posição geográfica é o fator determinante em
suas análises, para Aranha (1991, p. 86), é a ferrovia que tem papel de destaque, sendo responsável pelo desenvolvimento econômico de Campina Grande. A afirmação de Aranha, (1991,
p. 87), que nos faz refletir sobre a questão então colocada, pode ser então observada:
“[...] carece de fundamento a tese de que a estrada de ferro não foi a grande responsável
pelo desenvolvimento econômico de Campina Grande. O argumento de que esse desenvolvimento deva ser creditado a sua função comercial conjugada a estrutura de produção do agreste, bastante diversificada, e a sua posição geográfica, [...] perece insuficiente. Tanto isso é verdade que, antes da chegada do trem, mesmo que ela comportasse os
elementos acima mencionados e houvesse se transformado num pólo mercantil importante, Campina Grande não assumira ainda a condição de grande empório do sertão.
Essa condição, a cidade só adquire com o trem e com o trem em sua função de ponto
terminal”.
Indiferente à problematização acerca do fator, ou processo, mais ou menos importante
para a criação do tecnopolo, busca-se, aqui, apenas levantar considerações acerca dos fatores
locacionais mais importantes, de maneira a identificar a contribuição que eles desempenharam em um dado momento histórico. Não compactuando com nenhuma das correntes anteriormente explicitadas e buscando isentar-se do subjetivismo cômodo que permite essa posição,
estabeleceu-se neste artigo uma via alternativa, uma conjuntura de maior proporção, na qual
quatro fatores ou processos são visivelmente identificados e interpretados, a partir de uma
2
O conceito de aglomerado se sustenta na tese de que “[...] La proximidad, en términos geográficos, culturales e
institucionales, permite gozar de acceso especial, relaciones especiales, mejor información, incentivos poderosos y otras
ventajas en productividad y crecimiento de la productividad, que son difíciles de obtener a distancia” (Porter, 1997, p. 34).
Aqui a ideia de aglomerado tecnológico, ou de cluster, pode ser utilizada como sinônimo de tecnopolo.
3
Distante 120 quilômetros da Capital João Pessoa, a cidade de Campina Grande localiza-se na Mesorregião do Agreste da
Paraíba, em uma área de transição entre duas regiões bioclimáticas. A cidade apresenta uma área territorial total de
2
2
641,37km , uma área urbana de 75km e uma população de cerca de 365.331 habitantes (Atlas Geográfico da Paraíba e
Censo 2000 do IBGE).
4
Fundada em 1º de dezembro de 1697, foi elevada à categoria de cidade em 11 de outubro 1864.
51
SANTOS FILHO, E. M. E ALONSO, S. F.
O PAPEL DOSFATORESLOCACIONAIS
visão relacional. É certo que, dependendo da ótica adotada, alguns fatores se sobressaem
frente a outros. Em outras palavras, queremos aqui levantar algumas considerações sobre o
papel que esses fatores, abaixo discutidos, em momentos cronologicamente distintos ou não,
correlacionados ou não, desempenharam para o desenvolvimento socioeconômico e cultural
da cidade, na medida em que, na posição de processos, produziram a territorialização de
substrato responsável pela emergência do Tecnopolo Campina Grande. Desse modo, quatro
fatores historicamente construídos e relacionalmente imbricados se apresentam:
1.
Localização geográfica – posição privilegiada;
2.
Função de Empório – entreposto comercial entre a Zona da Mata açucareira e o
Sertão pecuarista, com ênfase na atividade algodoeira e comércio atacadista;
3.
Ferrovia – implantação da estrada de ferro Great Western of Brasil Railway, em
1907;
4.
Ambiente Social e Cultural – Atuação das Oligarquias Políticas e da burguesia
comercial.
A POSIÇÃO GEOGRÁFICA
Há muito estudada como fator determinante, a localização geográfica tem papel de
destaque nas teorias clássicas de localização industrial. Para Claude Manzagol (1985, p. 25),
a solução do custo mínimo de Alfred Weber “é a correspondência industrial da obra de von
Thünen, elaborada na Europa rural do início do século XIX”. A importância que esse fator
imprime, sobretudo, antes mesmo da I Revolução Industrial, em um momento em que os
meios de transporte ainda se caracterizavam por um emprego mínimo da técnica – sob a ótica
de hoje – com base em um modo de produção que privilegiava as relações de natureza rural,
dá uma ideia de sua relevância e determinação na organização do espaço.
Os modos de produção comunitário primitivo, escravista, feudal e, sobretudo, capitalista comprovam-nos como esse fator sempre fora determinante para povos e civilizações. Às
margens de grandes rios, como Tigres e Eufrates na Mesopotâmia, Nilo no Egito, Yang-tseKiang na China, ou mais tarde em uma Europa Medieval, onde o florescer das cidades ou
aglomerados urbanos estavam diretamente relacionados às rotas comerciais, caminhos por
onde o fluxo de artefatos simples, escravos e matérias-primas eram deslocados, a localização
fora estrategicamente pensada. Inseridas em uma lógica de dupla função, essas localizações
deveriam prover alimentos e proteção contra invasões. De uma forma ou de outra, a lógica da
localização continua ainda hoje emplacando sua relevância, mesmo que estabelecida em outras bases do modo capitalista de produção.
Resultado local de uma estrutura produtiva que se esboçava nos primeiros momentos
de uma internacionalização da economia, o Brasil apresentava, em meados do século XVI,
pontos de povoamento praticamente isolados ao longo de sua costa. Amparados nas necessidades de localização, esses pontos eram estabelecidos nas proximidades de mares com baías
que, naturalmente, atenderiam às necessidades de um porto, ou nas desembocaduras de rios
que singravam o interior, além de estarem próximos a regiões produtoras de matérias-primas
como o Pau-Brasil e a Cana-de-açúcar. Voltados ao mercado externo, esses pontos parcialmente apresentavam ligações entre si, uma vez que, inseridas no contexto de uma Divisão
Internacional do Trabalho (DIT5 ), essas localidades deveriam, na posição de colônia, atender
às necessidades da metrópole, não havendo necessidade de ligações entre si. Nesse sentido,
salienta Pochmann (2001, p.6) que, estabelecendo um papel centralizador, “a Inglaterra mantivera uma relação dicotômica com as demais nações, que, na posição de periferia, procuravam compensar a grande importação de produtos manufaturados ingleses, através da exportação de produtos primários, basicamente alimentos e matéria-prima”.
Esse é o contexto no qual o Brasil fora inserido na economia internacional, de maneira
5
O conceito de Divisão Internacional do Trabalho é sustentado a partir de duas noções teóricas: a que se fundamenta “[...]
nas vantagens comparativas que determinadas nações possuem ao produzir e comercializar seus bens e serviços [...] [e a]
noção teórica diametralmente oposta, que identifica a estratificação e hierarquização da economia mundial como não
associadas à simples noção de vantagem comparativa na produção e comercialização de bens, serviços e informação, mas
produto da lógica intrínseca de funcionamento do sistema econômico e social” (Pochmann, 2001, p. 3).
52
Terra Livre - n. 31 (2): 49-62, 2008
que a exportação de matérias-primas e gêneros agrícolas compreendia a pauta das exportações, seja pela economia canavieira, da Zona da Mata nordestina, pelos minérios nas Minas
Gerais, pelo café no atual Sudeste, pela borracha na Amazônia, ou, ainda, pelo algodão no
Semi-árido nordestino, em uma dinâmica de ciclos e subciclos que ocorreram, em alguns casos, concomitantemente.
Essa inserção na economia internacional produziu uma estrutura produtiva local com
base nas especificidades naturais de cada região. Dessa feita, fundada nas vantagens comparativas locacionais, foi estabelecida uma Divisão Territorial do Trabalho (DTT) entre as regiões, “[...] expressa no período colonial em dois sistemas de exploração agrária diversos, que se
complementam economicamente, mas que política e socialmente se contrapõem: o Nordeste
da cana-de-açúcar e o Nordeste do gado” (Andrade, 1986, p. 25), de maneira a facilitar a
extração de riquezas.
No Nordeste, a introdução de uma estrutura produtiva com base nas regiões geográficas torna-se fundamental para o entendimento da formação dos primeiros núcleos urbanos e
que, posteriormente, viriam a ser as principais cidades dessa região.
A estrutura produtiva empregada no período colonial estabeleceu uma Divisão
Territorial do Trabalho, na qual cabiam a Zona da Mata6 , com o cultivo da cana-de-açúcar e a
produção de derivados, em vastas áreas do litoral oriental nordestino, no regime de plantation;
e o Sertão,7 com a criação de gado bovino para utilização como alimento e força motriz nos
engenhos e moendas da Zona da Mata.
Dentro desse quadro de economias complementares, aparece o Agreste8 como área de
transição e ponto de apoio para o fluxo de pessoas, boiadas e produtos entre as sub-regiões da
Mata e do Sertão. A ele, cabia a policultura, atividade agrícola complementar, que tinha por
objetivo suprir a Zona da Mata e o Sertão de gêneros agrícolas como feijão, farinha de mandioca, fava, café e outros. Todavia, a função de entreposto comercial entre as regiões parece ser
sua principal função, com notável desenvolvimento de cidades, nessa faixa, que tinham na
atividade das feiras, sobretudo de gado, sua principal fonte de aporte de capitais. Respeitando
as especificidades de cada localidade, esse parece ser, grosso modo, o quadro da organização
do espaço nordestino.
Localizada em um ponto para onde convergiram os caminhos que cortavam o interior
da Paraíba e estados limítrofes, a aproximadamente 650 m acima do nível do mar, em área
aplainada do Planalto da Borborema, a Vila Nova da Rainha, atual Campina Grande, surge
nesse contexto de uma Divisão Territorial do Trabalho, com o desenvolvimento de economias
complementares.
Em um momento em que os meios de transporte ainda eram feitos em lombos de burros, a localização geográfica privilegiada, desfrutava de amenidades que outras localidades
não poderiam oferecer. Colocava-se como de fundamental importância (ponto optimum), por
representar uma diminuição de esforço físico no transcurso entre as cidades do sertão e as do
litoral oriental e, consequentemente, uma maior acumulação de capital, proporcionando àqueles
que faziam a travessia, descanso, abastecimento de água e de produtos de que necessitavam.
Posteriormente, a localidade, não mais, apenas, se colocava como ponto de pouso para aqueles que se deslocavam, mas como centro comercial que promovera um fluxo crescente e contínuo entre as principais cidades regionais, como João Pessoa e Souza, na Paraíba; Crateús e
Iço, no estado do Ceará; Goiana, Olinda e Pesqueira, no estado Pernambuco. Nesse sentido,
fora estabelecido uma vasta “rede comercial” que tinha na cidade do Recife seu centro irradiador
6
Segundo Andrade (1986, p.25), “A Região da Mata e do Litoral Oriental estende-se desde o Rio Grande do Norte até o sul
da Bahia, sempre ocupando as terras situadas ao leste da região nordestina. No Rio Grande do Norte e na Paraíba ela
apresenta pequenas extensões, sendo a mata propriamente dita restrita às várzeas dos rios que deságuam no Atlântico,
enquanto nas encostas e nos interflúvios planos que separam as bacias fluviais dominam associações vegetais semelhantes
e chamadas localmente tabuleiros”.
7
“O Sertão e o Litoral Setentrional são as áreas mais extensas, ocupando, aproximadamente, 55% da região nordestina.
[...] graças à sua vastidão, encontramos uma série de diversificações regionais que se exprimem não só pelas condições
naturais, como também pelas formas de atividade humana” (Andrade, ibid, p. 38).
8
O Agreste “[...] é uma região de transição entre a Mata e o Sertão. Às vezes ele é bem característico em seus aspectos,
mas em outras ocasiões pode ser confundido com a Mata em seus trechos mais úmidos e com o Sertão nos mais secos”
(Andrade, ibid, p. 31).
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SANTOS FILHO, E. M. E ALONSO, S. F.
O PAPEL DOSFATORESLOCACIONAIS
de poder, de comando, e na cidade de Campina Grande, centro do comércio do gado, seu posto
avançado para o interior paraibano e estados limítrofes, por apresentar uma imbricação relevante às malhas da rede que por Recife fora estabelecida.
Nesse momento, a Vila Nova da Rainha centralizava uma encruzilhada de caminhos
que tinham, nas Estradas do Sertão, Seridó, Brejo, Queimadas e de Alagoa Grande do Paó,
sua densa rede de fluxos. Esses caminhos, por sua vez, contribuíram para originar um significativo número de vilarejos, vilas e, posteriormente, cidades.
É de consenso entre um considerável número de autores, dentre eles Gurjão (1994),
Costa (2003) e Sá (1986), que a posição geográfica desempenhou papel determinante para o
desenvolvimento econômico e social por que passou, e ainda passa, a cidade, como pode ser
observado abaixo:
“Campina Grande, por força de sua posição geográfica entre as regiões pastoris do Sertão e do Cariri e as regiões agrícolas do Brejo e Litoral, tornou-se ponto de passagem dos
comerciantes de gado e de cereais rumo ao litoral. Resultante desse movimento estabelece-se uma feira de gado e cereais, cuja importância chega a superar nos fins do séc. XIX
os famosos centros como Areia e Mamanguape” (Sá, 1986, p. 190).
Os fatores locacionais podem atuar isoladamente, mas, de modo geral, aparecem conjugados, quase sempre, relacionados uns aos outros, como demonstra a passagem acima. O
fator localização geográfica parece justificar a função de entreposto comercial, na medida em
que a inversa também pode ser considerada, em uma mistura das ordens.
O ENTREPOSTO COMERCIAL
“[...] Campina Grande chega ao século XIX sob a influência de três elementos na composição de seu comércio: os produtos da pequena lavoura, o gado e o algodão. Mas esse
comércio não teria sido possível sem o apoio de dois importantes fatores infra-estruturais: as Estradas Gerais e o Açude Velho” (Aranha, 1991, p. 47).
O fato é que as amenidades, acima mencionadas, relacionadas com a privilegiada localização geográfica, contribuiriam, decisivamente, para sua posição de destaque. Todavia, parece que é com a farinha de mandioca que sua condição de entreposto comercial é iniciada com
o interior da capitania. Ela pode ser justificada com base na travessia dos “[...] boiadeiros que
iniciaram o comércio entre o litoral e os sertões e dada à necessidade que tinha de adquirir a
farinha, [por isso] não resta duvida que eles, ao retornarem de Pernambuco, na Campina se
abastecessem desse produto” (Câmara, 1999, p. 29).
De acordo com a ideia anterior, Sá (1986, p. 190) afirma que nesse momento “[...] operavam-se as permutas, as trocas comerciais; vendiam-se produtos do Sertão, principalmente
algodão, couros e queijos, e se comprava mercadorias para o abastecimento da zona seca, em
maior quantidade gêneros alimentícios”, tornando-se praça de escambos da Província. Se em
um primeiro momento o comércio da farinha de mandioca, dos produtos da pequena lavoura
e do gado contribuiu para a emergência da cidade como entreposto comercial, em um segundo,
as atividades do algodão e do comércio atacadista operaram, decisivamente, para sua consolidação.
Para Gurjão (1994, p. 23), o grande desenvolvimento pelo qual passara Campina Grande
resulta principalmente da “[...] sua função comercial, que por sua vez está relacionada à estrutura de produção do Agreste e a sua posição geográfica privilegiada”. Ainda complementa
a autora que “A década de 1920 assistiu à consolidação do pólo9 algodoeiro de Campina Grande. Suas exportações, que em 1919 totalizaram 81.422 sacas, em 1923, passaram a 219.587
sacas. O sucesso dos negócios algodoeiros proporcionava o crescimento da cidade”. Diferentemente da autora anterior, Aranha (1991) atribui esse grande desenvolvimento à estrada de
ferro e sua constituição como ponta de trilho na cidade.
Na constituição do entreposto, pode ser observado, segundo Aranha, dois momentos
distintos em seu comércio, que, todavia, se complementam, em sua evolução, que correspondem
9
“O pólo de desenvolvimento é constituído por um ‘conjunto de unidades motrizes que exercem efeitos geradores em
relação a um outro conjunto econômico e territorialmente definido” (Perroux apud Santos, 2003, p. 80).
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Terra Livre - n. 31 (2): 49-62, 2008
a “[...] mais ou menos, as seguintes décadas: 1910, 1920 e 1930 para a fase em que o algodão
é produto principal; e 1940 e 1950 para a fase em que o algodão é apenas um componente,
embora importante, do comércio atacadista em geral” (Aranha, ibid, p. 220).
A feira está na base da constituição do entreposto comercial. Considerada por Antonio
Albuquerque da Costa em Sucessões e Coexistências do Espaço Campinense de 2003 (p. 95)
como uma transversalidade, a feira “[...] acompanhou toda a história da cidade, adaptando-se
ao advento dos diversos meios técnicos que se sucederam, conservando elementos dos meios
pretéritos, ao mesmo tempo em que absorvia as modernidades dos meios emergentes”. Contrapondo momentos de progresso e declínio em virtude de concorrências com praças mercantis de Icó (CE), Timbaúba e Limoeiro do Norte (PE), a feira de Campina Grande foi ao longo de
sua história “[...] território de disputa não apenas dos coronéis que comandavam a política
local, mas também palco de outras disputas, a exemplo da revolta dos Quebra-Quilos, em
1874, e do Rasga-Vales, em 1895” (Costa, ibid, p. 106). Essa passagem acena para a importância que a feira, como núcleo primeiro do entreposto comercial, detinha na vida de sua população.
Interpretado pela ótica dos dois circuitos da economia10 , o entreposto comercial
campinense ampliou sua escala espacial de atuação em seu circuito superior com abrangência
para cidades como Imperatriz no estado do Maranhão e Teresina no Piauí, em decorrência do
advento do automóvel e de um redirecionamento nas políticas de transporte público no Brasil, como resultado de um “pacto” firmado entre este e as montadoras internacionais, no qual
o caminhão gradativamente ocupava o papel que os trens desempenhavam. Considera-se,
aqui, como “circuito inferior”, as manifestações advindas das atividades mercantis em sua
dimensão informal e com escala espacial de atuação reduzida; enquanto o “circuito superior”
são os estabelecimentos juridicamente constituídos, como os armazéns e lojas de venda em
atacado para cidades do Maranhão, Piauí e Ceará. Em outras palavras, “[...] cada circuito
mantém um tipo particular de conexão com a área de influência da cidade: pode-se dizer,
portanto, que cada cidade tem duas áreas de influência” (Santos, 2003, pp. 127-128).
O redirecionamento do foco dos transportes de cargas e passageiros para as estradas
de rodagem concorreu, por conseguinte, para consolidar, pelo menos inicialmente o pólo comercial campinense. Posteriormente, parece que o incremento desses novos “sistemas de engenharia” passam a dotar de autonomia o território que o circunscreve. Assim, as décadas de
1940 e 1950 conheceram seu apogeu com a diversificação das atividades comerciais e ampliação de suas áreas de influência que atingira “[...] quase todo o Nordeste (Rio Grande do Norte,
Ceará, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Piauí e Maranhão), [...] [como conseqüência de] suas
raízes na condição primeira que ela assumiu como porta oriental do Sertão e posto avançado
do Recife através da ponta de trilhos” (Aranha, op. cit., p. 220).
Outro ponto a ser ventilado diz respeito à relação existente entre o comércio e a indústria. Segundo Lima (1996), é com a atividade do algodão que as primeiras indústrias surgem
na cidade. Mas, é com o avanço das estradas de rodagem para o interior, a opção pelo transporte rodoviário e a instituição das políticas nacionais de industrialização, via SUDENE, que
a indústria campinense se notabiliza. Tirando proveito de suas condições especiais, a mesma
em 1962 se torna:
“[...] uma das cidades mais promissoras e uma das que mais crescia em toda a região. O
município havia se transformado de simples entreposto comercial do final dos anos 30,
em uma cidade com importância fundamental para todo o Estado e até para Estados
vizinhos. A importância da cidade não era medida apenas por seu comércio, pois estavam estabelecidos na cidade, 16 bancos (incluindo cooperativas que funcionavam como
bancos), sendo nove delas com matrizes na cidade [...] contava com mais de 220 estabelecimentos industriais. Destes, 24 estabelecimentos com mais de 10 operários e 12 com
mais de 50 operários” (Lima, 1996, pp. 43-44).
10
Em capítulo dedicado a “Uma Revisão da Teoria dos Lugares Centrais” em Economia Espacial: críticas e alternativas
de 2003, Santos propõe uma leitura da economia com base em dois circuitos distintos, mas que, todavia, apresentam
complementaridade. O circuito superior e o circuito inferior. (Santos, 2003, p. 126).
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O PAPEL DOSFATORESLOCACIONAIS
A FERROVIA
“A cada momento histórico os objetos modernos não se distribuem de forma homogênea, e as normas que regem seu funcionamento pertencem a escalas diversas. Isso é ainda
mais válido para o sistema ferroviário” (Santos & Silveira, 2003, p.174), que inaugurara, por
sua vez, um novo momento nas estratégias de localização do capital e, por conseguinte, de sua
acumulação, com a I Revolução Industrial.
Em sua obra: Lógica do Espaço Industrial, Claude Manzagol (1985, p. 21), afirma que
“[...] A escola de Saint-Simon enfatiza o papel das estradas de ferro”, na teoria dos fatores de
localização. Essa afirmativa demonstra como as estradas de ferro e os meios de transporte, de
modo geral, sustentaram, por muito tempo, uma considerável produção literária acerca da
localização industrial. A grande malha ferroviária implementada nos Estados Unidos da
América, ligando o Leste ao Oeste, e a notável imbricação compatível de bitolas entre as
várias malhas dos mais diversos países europeus, tornara se, em muito, tese de comprovação
do apogeu econômico vivido por essas nações, amparado no fator locacional das estradas de
ferro. Igualmente, no Brasil, a significativa malha ferroviária que cortava todo o estado de
São Paulo e sua estreita relação com o café acenam para uma explicação preliminar de uma
área core no país e, por conseguinte, da hegemonia que ela exerce frente aos demais estados
da federação.
No caso campinense, o prolongamento da ferrovia, saída de Recife, via a cidade de
Itabaiana, com ponto de trilho em Campina Grande, serviu à hegemonia inglesa na medida
em que sua “[...] dominação criou e favoreceu certos exutórios da produção exportável das
nações subdesenvolvidas, os quais assim se tornaram centros de crescimento” (Santos, 2003,
p. 76). Esses centros de crescimento, ou como quer Sá (1986), entrepostos comerciais, desempenharam uma dupla função: a de absorção, processamento e escoamento das matérias-primas regionais para o mercado internacional, assim como serviram de centro dinâmicoirradiador de distribuição de manufaturados para a região em que se inscrevera.
A implantação da estrada de ferro por si só não se explica. Ela se inscreve em um
contexto maior de inserção do Brasil em uma dada Divisão Internacional do Trabalho – DIT.
Em Campina Grande, essa se justifica:
“[...] em decorrência das vantagens que a cidade oferecia, enquanto sede pólo mercantil,
capturando a produção algodoeira sertaneja, caririzeira, brejeira e agrestina e deslocando-a para Recife de onde era exportada para os centros industrializados da Europa. A
ferrovia reforçou assim, o desenvolvimento da cidade, na medida que ela favorecia a
reprodução do capital” (Gurjão, 1994, p. 24).
Grosso modo, introduzidas em partes da América Latina, África e Ásia com capital
inglês excedente, essas malhas férreas tinham por objetivo escoar a produção local de produtos agrícolas e matéria-prima como o algodão – no caso de Campina Grande – e abrir mercados, no processo de interiorização de produtos manufaturados. Apresentando um traçado periférico, essas ferrovias foram estabelecidas em uma lógica que ligava pontos estratégicos e
isolados, a partir de entroncamentos, a portos, como o do Recife, sem, no entanto, percorrem
todo o território, possibilitando maior controle e acumulação do capital internacional. Essa
acepção pode ser observada nos escritos de Costa (2003, p.32), quando afirma que:
“Configurando-se como cidade primaz de ampla região, teve o Recife na cidade de Campina Grande o seu entreposto mais avançado na drenagem da produção do interior
paraibano. Como “porta de entrada” para o Sertão e como “ponta de trilhos”, Campina
Grande passou a representar um centro difusor do comércio e serviços recifenses, mas
também foi definindo um amplo raio de influência para si”.
A implantação em Campina Grande da estrada de ferro Great Western of Brasil Railway
produziu divergências internas entre as oligarquias paraibanas, que tencionavam a construção do ramal Itabaiana-Campina Grande. Enquanto a oligarquia açucareira do litoral postulava sua implantação via Alagoa Grande, como premissa de uma não sangria das finanças
paraibanas, a burguesia campinense algodoeira, cedo enriquecida com seu comércio, e por
sua vez, afinada com as tendências que pelo porto do Recife chegaram, sabiamente optou por
sua integração via Itabaiana. Christiano Lauritzen, dinamarquês que aqui chegara, inclinando-se para o comércio, rapidamente ocupou o posto de prefeito da cidade, desempenhando
56
Terra Livre - n. 31 (2): 49-62, 2008
pessoalmente papel crucial nessa tensão político-econômica.
Gurjão (1994) e Aranha (1991) referem-se ao embate que se travou pela oligarquia dos
senhores de engenho com a pequena burguesia campinense em decorrência da implantação
da estrada de ferro Great Western of Brasil Railway em 1907:
“[...] Os comerciantes campinenses e demais interessados no fortalecimento desta cidade eram naturalmente favoráveis a que o prolongamento se fizesse a partir de Campina
Grande. Entretanto, outro grupo rejeitava este traçado, alegando, entre outros fatores,
que o mesmo iria acarretar o agravamento da situação da capital” (Gurjão, op. cit., p.
24).
Em dissertação intitulada: Campina Grande no Espaço Econômico Regional: estrada
de ferro, tropeiros e empório comercial algodoeiro (1907-1957), Gervácio Batista Aranha dedica seu terceiro capítulo ao tratamento do impacto que a estrada de ferro produzira no seio da
sociedade algodoeira campinense. Para ele,
“A posição de que essa cidade assume como grande entreposto comercial, em particular
no setor algodoeiro, não se deve ao simples fato de ter se tornado ponta de trilho e sim às
excepcionais condições dessa ponta de trilho. Se ela prosperou nessa cidade e, por sua
vez, contribuiu para sua prosperidade econômica, isto se deve a dois fatores de fato
excepcionais. De um lado, a privilegiada posição dessa ponta de trilho, já que ficava no
mais movimentado entroncamento das principais estradas da Paraíba e dos Estados
limítrofes; de outro, sua ligação direta com o maior porto de exportação do Nordeste, o
porto do Recife” (Aranha, 1991, p. 83).
Pelo exposto, observa-se a tênue imbricação dos fatores entreposto comercial e ferrovia, em uma imperceptível dialética complementar e retro alimentar dos fatores. Deve ser
inferida, desse processo, a construção de uma expressividade, que tem na organização de seu
espaço urbano e regional o resultado da acumulação de capital.
Essa acumulação oriunda, sobretudo, das atividades algodoeiras, permitiu que seus
dirigentes (Vergniaud Wanderley) promovessem duas grandes reformas urbanísticas; uma
em 1935 e outra em 1940, que mudariam definitivamente sua configuração morfológica urbana. Assim, a cidade é “reordenada”, seguindo os projetos franceses de organização urbana.
Segundo alguns autores, a cidade foi parcialmente demolida e reconstruída seguindo padrões
da arquitetura francesa da época – o estilo art decó – que, dentre outras coisas, propunha
avenidas largas e simétricas para um fluxo cada vez maior de automóveis. Como fruto de sua
expressividade, a cidade conta, naquele momento, com uma das maiores frotas de automóveis
do Nordeste brasileiro.
O AMBIENTE SOCIAL
E
CUL
TURAL
ULTURAL
“Em contato direto com os sertões – comércio de farinha – e com o Recife – comércio de
gado –, o campinense perdia qualquer traço de afinidade com a gente do mato, com o
matuto propriamente dito; ao passo que estruturava um tipo social heterogêneo, uma
mistura de especuladores pobres e mamelucos, com maneiras sertanejas e idéias
recifenses” (Câmara, 1999, p. 32).
Essa parece ser a mística que forjou sua gente ao longo de sua história. Contudo, o
fator de entreposto comercial algodoeiro conjugado a outros, como o de sua localização geográfica e a estrada de ferro, parece se esvaziar diante do papel que o ambiente social e cultural
desempenharam para a condição atual da cidade. O papel em um primeiro momento, das
oligarquias, representadas pelos grandes coronéis, e em um segundo, por uma pequena burguesia enriquecida com o comércio do algodão e posteriormente com o comércio atacadista,
parece ter posição decisiva para a compreensão do desenvolvimento urbano e regional por que
passou a cidade, tendo resultado nos “sistemas de engenharia” que foram implementados.
Salienta Corrêa (2007, p. 29) que
“é essa elite empreendedora que marca a diferença com outras cidades com a mesma
dimensão demográfica, porque é ela que estabelece uma relativa autonomia econômica e
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O PAPEL DOSFATORESLOCACIONAIS
política numa cidade, criando interesses locais e regionais, competindo em alguns setores de atividades com as grandes cidades e centros metropolitanos”.
A função de entreposto causou um significativo aporte de influências das mais diversas, que para lá convergiam, assim como as mercadorias da atividade algodoeira e do comércio atacadista, que para o derredor regional e internacional eram disseminadas. Uma nítida
visibilidade fora criada por este processo. A cidade vivera uma sinergia de ideias que se consolidavam nas ações, sobretudo, de segmentos da sociedade civil, produzindo o que viria a ser,
posteriormente, as bases técnicas que promoveriam a emergência como tecnopolo. Em constante ebulição, essa sociedade refletia, em muito, os ideais de modernidade de uma Europa
que se transformava e que, por meio do Recife, a influenciava.
Em outras palavras, a mobilidade de dinamarqueses, franceses, italianos e, em especial, de sertanejos do interior do estado e de outros da federação, varridos das secas para lá,
colocava em confluência ideias modernas que tiveram na pequena burguesia local sua execução, amparada em modelos europeus e de grandes cidades do Sudeste do país, como os implantados no Rio de Janeiro, quando das reformas sanitaristas. De todo modo, as experiências introduzidas na cidade não representaram apenas compilações de modelos bem sucedidos
em contextos nacionais e internacionais, em muito, representavam também especificidades
de experiências locais do pioneirismo de uma gente que parece produzir um perfil empreendedor todo particular.
Desde a implantação da estrada de ferro Great Western of Brasil Railway, postulada
por Christiano Lauritzen, e que aqui chegou em 1907, passando pelas reformas urbanísticas
das décadas de 1930 e 1940, amparadas em tendências francesas do estilo Art Decó e permitidas pela acumulação de capital advinda da atividade comercial algodoeira, da qual Wergnuod
Wanderley deu conta, até a implantação da Escola Politécnica, demandada por um grupo de
engenheiros do Laboratório de Produção Mineral, demonstram o poder que o ambiente social
e cultural engendrara na cidade.
Seguindo essa abordagem, Diniz, Santos & Crocco (2004,) acenam para “[...] o papel
que o ambiente social e cultural assume, em relação ao processo de desenvolvimento regional
ou local”. Para demonstrar a atualidade dessa abordagem, esses autores ressaltam trabalhos
de diversos estudiosos, como os assim especificados:
“[...] Storper [...] demonstra a importância do ambiente social e cultural no processo de
desenvolvimento regional ou local, por ele denominado ‘ativos relacionais’ (relational
assets) e de ‘interdependências não comercializáveis’ (untraded interdependences).
Putnam [...] demonstra o papel da sociedade civil e suas tradições no desenvolvimento
econômico regional diferenciado da Itália, também identificado como capital social.
Saxenian [...] interpreta a força da cultura no desenvolvimento do Vale do Silício, comparativamente a Boston. Amin e Thriff [...] argumentam que a vida econômica local ou
regional depende das relações cognitivas entre as instituições culturais, sociais e políticas, por eles identificados como robustez institucional. Hodgson [...] afirma que as instituições possuem certa estabilidade, determinada pelo peso das interações cumulativas e
da herança histórica, as quais estabelecem certos padrões de dependência (path
dependence). Nessa mesma linha, a concepção evolucionista mostra que o sistema se
move através de um processo contínuo de inovação, porém dentro de um ambiente de
seleção e rotinas, resultantes dos condicionantes históricos e sociais (Nelson and Winter,
[...])” (Diniz, Santos & Crocco, ibid, p.4).
Frente às ações engendradas pela sociedade campinense em escala cronológica, optouse por contemplar, mesmo que arbitrariamente, as produzidas a partir da existência do Laboratório de Produção Mineral (LPM). Isso pode ser explicado em decorrência da forte técnicocientifização do espaço campinense a partir daquele momento. Esses “sistemas de engenharia” produziam sinergias que engendrariam as tendências de um Estado Nacional que se
modernizara.
Em 1951, a capital paraibana contava com três Escolas Superiores, todas privadas,
fato que fez a população campinense reivindicar a instalação de uma pelo governo estadual.
Paralelamente, foram surgindo algumas na cidade, como resultado do esforço do poder público municipal e da articulação coletiva de segmentos da sociedade de classe. Esforços que
resultaram na criação das Faculdades de Ciências Econômicas, criada pela Prefeitura Muni-
58
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cipal de Campina Grande; a de Filosofia, criada pela Diocese de Campina Grande; a de Serviço Social, fundada pela Congregação Religiosa das Filhas de Caridade de Campina Grande
(São Vicente de Paula); a de Medicina, fundada por sua Associação de Médicos e a de Odontologia, fundada pela Associação de odontólogos.
Contudo, a ideia do Governador da época, José Américo, era criar, na cidade, uma
Escola de Química, o que ia ao encontro dos ideais de criação de uma Escola Politécnica,
vislumbrada pelo grupo de engenheiros do Laboratório de Produção Mineral - LPM. Em todo
caso, o pensamento de José Américo de Almeida pode ter sido influenciado pela existência
desse bem aparelhado laboratório.
Assim, foi fundada em 06 de outubro de 1952, pela lei nº. 792, a Escola Politécnica da
Paraíba, atual Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, vindo a funcionar um ano
depois com o curso inicial de Engenharia Civil. Esse fato teve por base o numeroso grupo de
engenheiros e técnicos em Campina Grande. Os do Laboratório de Produção Mineral, “[...] os
do Laboratório de Solos e Concreto do DNOCS, os dos Departamentos Nacionais de Estrada
de Ferro e de Rodagem e os engenheiros independentes ligados ao ramo das construções e
indústria” (LOPES, 1989, p.4). Concordante com a opinião, acima esboçada, Lynaldo Cavalcante de Albuquerque11 , quando perguntado sobre a origem do tecnopolo Campina Grande,
concisamente respondeu que sua origem repousa sobre o Laboratório da Produção Mineral.
A gestão de Lynaldo como reitor, que se iniciou em 13 de Janeiro de 1964, logrou êxito
significativo para a consolidação da Politécnica. No mesmo ano, a Escola foi inserida no Projeto RITA – Rural Industry Technical Assistence, com o California State College at Los Angeles
(EUA), e estabeleceu programas de intercâmbio com instituições nacionais e internacionais.
No Brasil, a Escola de Engenharia de São Carlos, a PUC do Rio e, sobretudo, o Instituto
Tecnológico Aeronáutico, situado em São José dos Campos, foram algumas das instituições
conveniadas. No exterior, as Universidades de Dundee, na Escócia, a de Toulouse, na França
e a de Laval, no Canadá, ilustram três de uma dezena. Além de serem criados os laboratórios
de Física e Química, foi criada em “[...] 1962, a ATECEL (Associação Técnica Científica Ernesto
Luis de Oliveira Junior), como sociedade civil, a primeira entidade de apoio a uma instituição
universitária em nosso país” (LOPES, 1992, p. Notas Introdutórias).
Os programas de intercâmbio, apoiados em uma política nacional de autonomia científica e tecnológica e por ações de visão do reitorado de Lynaldo, produziram um fluxo de capital
humano estrangeiro para a Paraíba, em especial para Campina Grande, o que repercutiu
internacionalmente. Dessa feita, os levantamentos indicam a presença de 343 professores de
34 nacionalidades diferentes, com 6 deles sem identificação de origem no período de 1970 a
1980. Vieram para a então UFPB, 47 indianos, 47 canadenses, 34 franceses, 33 alemães, 29
argentinos, 24 chilenos, 22 ingleses e 20 norte-americanos. “O dado, porém, mais importante
é que do total de 11 Centros e 4 Laboratórios e Núcleos Tecnológicos Autônomos existentes na
Universidade, o CCT (Centro de Ciências e Tecnologias), sediado em Campina Grande, absorveu 158 dos 343 Professores estrangeiros (46,06%)” (Pereira12 apud Lopes, ibid, p. 128).
Ao que tudo indica, o primeiro laboratório da Politécnica foi o de Hidráulica, inaugurado em 30 de dezembro de 1966, seguido de outros, como o de Física, o de Eletrônica e o de
Análises Minerais.
Nesse mesmo momento, a atuação dos sócios da ATECEL, que, por sua vez, eram professores da Politécnica, em coalizão com ex-alunos e segmentos da sociedade civil, a partir da
rifa de um novilho holandês puro sangue e posteriormente de um carro Volkswagen, permitiu
a aquisição de um computador ultra-moderno, em 1967, um “sistema IBM 1130 com 8 palavras de memória, um disco de 512.000 palavras, uma leitora perfuradora de cartões e uma
impressora”; (Lopes, 1992, p. 82), o primeiro do Nordeste.Também neste momento:
“[...] veio instalar-se em Campina Grande o laboratório de solos e concreto que havia
11
Quando do Encontro de História da Ciência e Tecnologia: desafios para o Nordeste, realizado de 03 a 05 de Outubro de
2007, na Universidade Federal de Campina Grande – campus I, Lynaldo Cavalcante de Albuquerque, que orientou a
criação dos cinco primeiros parques tecnológicos no país, ainda em 1984, por ocasião de sua presidência no CNPq, se
dispôs a conceder uma entrevista rápida acerca da temática “Tecnopolo Campina Grande”.
12
PEREIRA, Rosália Barros. A Presença Estrangeira no Ensino Superior Brasileiro: o caso da UFPB. Dissertação de
Mestrado, 1985.
59
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O PAPEL DOSFATORESLOCACIONAIS
servido durante a construção do Açude Curemas. [...] Aqui sediado, pôde o laboratório
prestar assinalados serviços técnicos ao DNOCS, em todas as construções que estiveram
sendo levadas a efeito no Ceará, na Paraíba, no Rio Grande do Norte, em Pernambuco.
[...] O laboratório tinha vários engenheiros e técnicos nele trabalhando, e alguns daqueles [...] eram professores da Escola Politécnica” (Lopes, 1989, pp. 146-147).
Ainda acrescenta o autor acima referido que, quando da desvinculação do DNOCS do
Ministério da Viação e Obras Públicas para se transformar em autarquia, a população
campinense “[...] não se deu conta de que o novo DNOCS trazia para Campina Grande, além
da sede da 2ª Residência do Distrito de Engenharia Rural, uma seção do Laboratório de Solos
e Águas, sediado no Recife, e uma Unidade de Recuperação de Máquinas de todo o DNOCS no
Nordeste”. 13
O certo é que a confluência de ideias auspiciosas fizera as décadas de 1950 a 1970
representarem a constituição, e por vezes, a já consolidação de entidades e instituições de
relevo. Sob influência do grupo inicial de engenheiros do LPM, e em confluência com a Politécnica e a ATECEL, foi criada, ainda em 1956, “[...] a FUNDACT (Fundação para o Desenvolvimento de Ciência e da Técnica), que teve papel decisivo no desenvolvimento do ensino superior em Campina Grande, até sua extinção em 1966”, (Lopes, 1992, p. 1).
Ao que tudo indica, contribuiu para a criação da Universidade Regional do Nordeste –
URN, que, posteriormente, veio a ser a Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Na década de 1960 foi criada, ainda, a Saneamento de Campina Grande Sociedade Anônima (SANESA)
e a Companhia Telefônica de Campina Grande (TELINGRA), que posteriormente foram absorvidas pelas companhias estaduais de águas e esgotos – CAGEPA e Telecomunicações da
Paraíba S/A – TELPA, respectivamente. Também nesse momento originam-se na cidade o
SEBRAE e o Banco do Nordeste. Enfim, é nesse ambiente institucional, formatado em uma
rica historiografia que se gesta o tecnopolo Campina Grande.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece certo afirmar, após as ponderações apontadas anteriormente, que a combinação de fatores ou processos endógenos, vistas, portanto, a partir da leitura do local, contribui
para explicar a emergência do que passamos a denominar de tecnopolo Campina Grande. Por
certo, os fatores exógenos – a terceira revolução tecnológica, a formação de uma economia
global e o aparecimento de uma nova forma de produção e gestão econômica – dão o tom e o
revestimento a essa realidade.
Os fatos então apresentados e explicitados representam em si pequena parte das ações
produzidas no bojo do ambiente social e cultural campinense, demonstrando, de acordo com
Porter (1997, p.51), como associações e entidades configuram-se como uma ferramenta para
institucionalizar os vínculos de um aglomerado, também servindo de ambiente central no
sentido de identificar necessidades, restrições e oportunidades comuns ao seu desenvolvimento.
As institucionalidades conformadas ao longo do tempo, constituídas, reconstituídas,
vivificadas e tendo em seu bojo os fatores locacionais, permitem considerar, finalmente, a
importância que os mesmos passam a revelar, quanto à explicação da existência de um tecnopolo
incrustado em pleno semi-árido nordestino.
13
“A 2ª Residência de Engenharia Rural ficou com a incumbência da construção e recuperação de pequenos açudes,
perfuração de poços tubulares e outras obras típicas. O laboratório de solos e águas realiza análises de solos para fins
agrícolas, análises físicas, químicas e físico-químicas de águas para fins agrícolas e industriais, executando trabalhos não
só para a Paraíba, mas também para os Estados vizinhos. A Unidade de Recuperação ficou com o encargo de manter em
condições de uso praticamente toda a maquinaria pesada do DNOCS no Nordeste” (Lopes, ibid, p. 148).
60
Terra Livre - n. 31 (2): 49-62, 2008
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61
SANTOS FILHO, E. M. E ALONSO, S. F.
O PAPEL DOSFATORESLOCACIONAIS
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Recebido para publicação dia 20 de fevereiro de 2009
62
A DINÂMICA
TERRITORIAL DO
AL E SEUS
CAPIT
CAPITAL
EFEITOS PARA O
MUNDO DO
TRABALHO*
THE TERRITORIAL
CAPITAL
DYNAMICS OF CAPIT
AL
AND ITS EFFECTS ON
THE WORLD OF WORK
LA DINÁMICA
TERRITORIAL DEL
CAPIT
AL Y SUS
CAPITAL
EFECTOS SOBRE EL
MUNDO DEL TRABAJO
MARCELO DORNELIS
CAR
VALHAL
ARV
UNIOESTE MARECHAL CÂNDIDO
RONDON.
[email protected]
ANTONIO THOMAZ
JUNIOR
UNESP PRESIDENTE
PRUDENTE
[email protected]
* Artigo extraído de Tese
de Doutorado - PPG Geografia
- (FCT)/UNESP de Presidente
Prudente. Defendida em 09/
2004
Terra Livre
Resumo: A dinâmica territorial do capital enseja um conjunto
diversificado de transformações no mundo do trabalho, cuja expressão
espacial é a contínua adequação dos territórios às suas necessidades
expansivas. Dessa forma como componente espacial do
desenvolvimento desigual capitalista o trabalho também deve ser
adequado, desde a transformação radical do sujeito trabalhador em
trabalhador para o capital até as adequações em termos das
habilitações técnicas, face à reestruturação produtiva. Nesse aspecto
diversas ações estatais contribuem para essa adequação, como o
sistema público de formação profissional e os programas de natureza
assistencialista como o PLANFOR (1995 a 2002) e o PNQ (a partir de
2003), capturando inclusive parcelas significativas do movimento
sindical. Esse artigo procura apresentar algumas discussões sobre o
contexto dessa captura e os significados dessa participação sindical
no âmbito da formação profissional.
Palavras-chave: Trabalho; Território; Formação profissional;
Sindicalismo; PLANFOR/PNQ;
Abstract: The territorial dynamics of capital originate a diversified
set of transformations in the world of the work, whose space expression
is the continuous adequacy of the territories to its expansive needs.
So, the labour as a component of the capitalist unequal development,
it must be adjusted too. Since the radical transformation of “the
worker” in “the capital’s worker”, up to the adjustments relative to
the technical qualifications to the productive restructuring. Diverse
state actions have contributed for this adjustment, as the Public
System of Professional Formation and Welfare Programs as
PLANFOR (1995 - 2002) and PNQ (2003-), capturing even significant
groups of the union movement. This article aims to present some
questions about the context of this capture and the meanings of the
syndical participation in the professional formation.
Key W
ords: Work, Territory, Professional Formation, Unionism,
Words:
PLANFOR/PNQ
Resumen: La dinámica territorial del capital origina un sistema
diversificado de transformaciones en el mundo del trabajo, cuya
expresión espacial es la continua acomodación de los territorios a
sus necesidades expansivas. De esta forma, el trabajo como
componente espacial del desarrollo desigual capitalista, también debe
ser adecuado , desde la transformación radical del sujeto trabajador
en trabajador para el capital hasta los ajustes relativos a las
habilitaciones técnicas, cara a la reestructuración productiva. Diversas
acciones del Estado contribuyen para este ajuste, como el sistema
público de la formación profesional y los programas del cariz
asistenciales como el PLANFOR (1995 -2002) y el PNQ (2003 -),
capturando incluso parcelas significativas del movimiento sindical.
Este artículo busca presentar cuestiones para el debate de tal captura
y los significados de la participación sindical en el ámbito de la
formación profesional.
Palabras-clave: Trabajo; Territorio; Formación profesional;
Sindicalismo; PLANFOR/CPNQ.
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 63-74
Jul-Dez/2008
63
CARVALHAL, M. D. E THOMAZ JUNIOR, A.
AS
A DINÂMICA TERRITORIAL DO CAPITAL E...
TRANSFORMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS NO CAPIT
ALISMO
CAPITALISMO
Ao consolidar seu domínio sobre a totalidade social, pode o capital ampliar a sua influência pelo mundo, pois a expansão quer seja a mercantil, entre os séculos XVI a XIX, quer a de
suas diferentes etapas de produção, durante os séculos XIX e XX, é inerente à sua lógica.
A necessidade de acumulação do capital leva a uma franca expansão geográfica da sociedade capitalista, conduzida pelo capital produtivo. A mobilidade do capital circulante
durante surtos de desvalorização rápida torna-se um meio não para a igualização geográfica, mas uma diferenciação sobre a qual a sobrevivência do capital é firmada (SMITH,
1988, p. 188).
Para avançarmos em nossa discussão sobre o território como instrumento de controle
sobre o trabalho, em que a dinâmica territorial diferenciada do capital e do trabalho é o
pressuposto da efetividade da hegemonia do capital, é fundamental compreendermos de que
forma e quais as razões da necessidade de tal domínio para a realização dos ditames do capital. Nesse sentido, é importante ressaltar que essa necessidade de controle tem no território
apenas uma das dimensões da hegemonia4 e que, efetivamente, o capital tende a apresentar
sinais de controle da totalidade da reprodução social.
A internacionalização de etapas produtivas tem o objetivo de reduzir substancialmente os custos de produção, através da baixa remuneração dos trabalhadores, fragilidade da
legislação trabalhista e degradação ambiental.
Além disso a atração dos investidores estrangeiros requer a formação profissional dos
trabalhadores adequada à exploração do capital, o que significa habilidades técnicas e um
comportamento produtivo adequado, ou seja, que o saber-fazer operário seja um componente
indissociável dessa força de trabalho.
A própria distribuição territorial do trabalho acontece em consonância com os equipamentos fixos no território, com a consolidação de meio técnico-científico-informacional, assim
como também das qualidades da força de trabalho, que são distribuídas desigualmente no
território.
Assim, a velocidade de introdução de inovações e as transformações na divisão espacial
do trabalho estão associadas tanto à estrutura produtiva subjacente em cada região
quanto à natureza de sua força de trabalho, no que se refere ao nível de qualificação e de
escolaridade formal (KON, 1998, p.15).
A exportação de capitais, nesse sentido, assume maior importância do que a exportação de mercadorias, já que o investimento estrangeiro direto possibilita a internalização da
reestruturação produtiva nos países periféricos, com efeitos sobre a força de trabalho tanto
dos países investidores, quanto dos países investidos. Além disso, a importância crucial assumida pelos fluxos de capitais pelo globo redireciona, de forma mais hábil e dinâmica, os investimentos financeiros para os países que sejam mais fiéis à “cartilha do consenso” e pune os
países que desafiam a nova ordem mundial. Isso faz com que muitos países sejam “obrigados”
a aceitar as determinações do capital mundializado sob pena de minguarem os recursos para
financiamento do balanço de pagamentos, inclusive em áreas além da esfera econômica, como
atestam as intervenções do Banco Mundial na seara ambiental e educacional.
Por essas razões a globalização aparece para os trabalhadores como um discurso conformista, para que tenham uma adaptação favorável aos humores do capital, tornando-se
sinônimo de processos e mecanismos sobre os quais os políticos, empresários e sindicalistas
reconhecem ter cada vez menos controle, recaindo sobre o trabalho a intensidade da exploração capitalista.
Por outro lado, a circulação internacional do trabalho obedece às severas restrições
legais - que não impedem o fluxo crescente de trabalhadores dos países não-desenvolvidos
para os países desenvolvidos -, e garantem um suprimento considerável para o “submundo do
4
Em trabalho anterior, tivemos a oportunidade de discutir amplamente sobre hegemonia e território, tendo como mote a
comunicação sindical, ver: Carvalhal (2000)
64
Terra Livre - n. 31 (2): 63-74, 2008
trabalho”. A flexibilidade das leis trabalhistas é recorrente e intensificada, inclusive com os
casos de trabalho escravo.
Com o que expusemos, pretendemos deixar claro que a dinâmica territorial do capital
e do trabalho está submetida aos parâmetros próprios do sistema do capital, implicando num
desenvolvimento desigual da expansão territorial do capitalismo, ou seja, sua expansão promove simultaneamente a transformação radical na composição orgânica do capital, recriando
em outros lugares os patamares técnicos existentes no centro do sistema. Desigualdade da
composição orgânica do capital que, simultaneamente, processa um conjunto de avanços
regulatórios e tecnológicos no processo produtivo em determinados locais e, em outros, promove o deslocamento de processos produtivos superados para a acumulação capitalista das
regiões desenvolvidas para países e regiões em relativo atraso produtivo.
O desenvolvimento desigual promove concomitantemente uma reconfiguração do trabalho, quer onde o avanço tecnológico é mundialmente inédito, quer onde se trata de aplicação de processos produtivos desenvolvidos em outras regiões, mas importados para regiões
menos desenvolvidas.
Em ambos os casos, o trabalho é constrangido a se adequar a essas modificações, tanto
em relação ao cumprimento das obrigações que o capital impõe, quanto em termos da organização coletiva que os trabalhadores precisam redefinir para resistirem de algum modo à ofensiva do capital.
Tais transformações não se resumem aos lugares de inovação tecnológica; estão também nos lugares que importam tecnologias de produção ou formas de organização do trabalho
presentes em países desenvolvidos. Assistimos, assim, a transformações profundas na organização do trabalho, com a implantação de novos parques produtivos ou avanço de determinadas tecnologias e organização produtiva que promovem um conjunto não menos importante
de mudanças.
Essa dinâmica territorial diferenciada do capital e do trabalho é, portanto, capaz de
prover o capital de possibilidades aparentemente ilimitadas, de realocar os fragmentos das
etapas produtivas em locais convenientemente escolhidos segundo suas necessidades. Não é
outra a razão de, com o advento da empresa mundial, a situação de desemprego e/ou emprego
precarizado globalizar-se, ganhando dimensões jamais vistas.
Essa maior liberdade de circulação do capital potencializa sua lógica irracional em
nível mundial, já que o processo de intensificação de trocas comerciais entre os países, acompanhado de aumento dos investimentos estrangeiros pelo mundo e o ritmo alucinante de
trocas financeiras pelo globo, promove uma acelerada incorporação de capacidade produtiva,
remodelando a produção das grandes corporações e intensifica o processo de concentração de
capitais e de superprodução mundial.
Isso só foi possível com a ruptura dos limites de intermediação financeira, que garantiu
lucros extraordinários para as corporações com a financeirização de seu lucro. Tal
financeirização é promovida, de um lado, pelas possibilidades concretas de intercâmbio mundial das diversas praças financeiras em tempo real e, de outro, pela enorme sangria de recursos dos orçamentos públicos, principalmente com a dívida dos países do Terceiro Mundo.
A organização de mercados financeiros, escancarados para fora e largamente abertos
aos investidores institucionais, permitiu que os governos procedessem à securitização
(titularização) dos ativos da dívida pública, isto é, ao financiamento dos déficits orçamentários mediante aplicação de bônus do Tesouro e outros ativos da dívida, nos mercados financeiros. Os interesses capitalistas, especialmente os de caráter rentista, saíram
ganhando em todas as instâncias. Beneficiaram-se de mudanças no regime fiscal, inspiradas pela ‘revolução conservadora’, bem como das oportunidades de evasão oferecidas
pela liberalização dos fluxos financeiros, ao mesmo tempo que enriqueciam detendo títulos públicos de curto prazo, no quadro dos fundos mútuos de investimento ou SICAVs.
Quanto mais se aprofundaram os déficits orçamentários, mais aumentou a parte dos
orçamentos reservada para o serviço da dívida pública, mais forte se tornou sua pressão
sobre os governos. (Chesnais: 1996, p. 256)
A dinâmica da acumulação capitalista, nas duas últimas décadas, aponta para a relativa autonomia que a esfera financeira adquire, em termos de acumulação de capital, pois não
somente as instituições financeiras realizam grandes lucros como também as grandes empresas do setor não-financeiro têm parcelas significativas de sua lucratividade, através de apli-
65
CARVALHAL, M. D. E THOMAZ JUNIOR, A.
A DINÂMICA TERRITORIAL DO CAPITAL E...
cações financeiras, substituindo sua função precípua de centralização/investimento para função de manutenção da própria atividade acumulativa, isso, porém, não ocorre sem promover
uma crescente instabilidade sistêmica.
É o mesmo Chesnais (1996) que nos aponta para os efeitos sistêmicos da mundialização
do capital rumo a um padrão de depressão profunda.
Se considerarmos os elementos decorrentes da análise que apresentamos, pode-se sustentar a hipótese de que as formas assumidas pela mundialização dos grupos industriais, dos grandes grupos de distribuição (comércio atacadista e varejista) e do capital
monetário exercem, de modo estrutural, um efeito depressivo sobre a acumulação. Esse
efeito é global, embora seu impacto sobre os países e os conjuntos ‘regionais’(isto é,
continentais) permaneça diferenciado, de modo que o caráter mundial da depressão não
comportou uma sincronização das conjunturas dos três pólos da Tríade (antes pelo contrário). (p. 304)
Portanto, com a alternativa capitalista de regulamentar a “autonomização” da esfera
financeira, o sistema econômico mundializado ganha força para impor aos Estados nacionais
o regramento que considera seguro para sua circulação; entretanto à medida que amplia a
liberdade de circulação, acirra, ainda mais, a concorrência inter-capitalista, levando a reboque os Estados nacionais. O resultado é uma sangria de recursos para a acumulação financeira que, por sua vez, é o porto seguro para as grandes corporações implantarem métodos e
técnicas de produção que ampliem a lucratividade e a exploração do trabalho.
A hipertrofia financeira é particularmente parasitária em países não-desenvolvidos.
Conforme aponta Salama (1999), nos países da América Latina, o setor financeiro expande-se
sem promover o investimento produtivo. Esse baixo investimento aliado à concorrência internacional, em decorrência da abertura comercial e valorização cambial, não é capaz de promover ciclos sustentáveis de crescimento; pelo contrário, a saída para combater a vulnerabilidade
externa do balanço de pagamentos é o incremento da mais-valia absoluta, através da redução
da massa salarial e da reorganização do trabalho que atende, então, muito mais ao ciclo
vicioso financeiro do que às inovações técnicas, embora estas também estejam presentes.
E como a insuficiência do investimento se explica em parte pela arbitragem a favor das
atividades financeiras, o peso maior das finanças no balanço das empresas aumenta a
importância da busca de uma flexibilidade maior do trabalho. (SALAMA, 1999, p.78)
Há, portanto, uma relação direta entre acumulação de tipo financeiro com flexibilidade do trabalho – eufemismo para precarização do emprego. Ao se tornarem referência de
lucratividade as atividades financeiras estimulam o setor produtivo a avançar sobre garantias trabalhistas, conquistadas no contexto da luta de classes do Pós-Guerra, principalmente
na Europa Ocidental, com o objetivo de redução de custos e conseqüente aumento dos lucros.
Porém, isso também é possível porque as empresas têm parcelas significativas de seu lucro
obtidas com as atividades financeiras, sentindo-se mais seguras para promoverem inovações
tecnológicas e organizacionais no processo produtivo5 .
Essa tendência é particularmente visível nos países desenvolvidos, embora não consigamos reunir argumentos para sermos conclusivos quanto a essa expressão do desenvolvimento desigual capitalista, já que em outros países a hipertrofia financeira é um sério obstáculo para o desenvolvimento capitalista local.
Nesse sentido, Salama (1998) busca explicações quanto ao retorno de formas regressivas de extração de mais valia na América Latina. Para isso aventa a hipótese de que a forte
queda nos investimentos (em parte para atender aos serviços da dívida externa) e a preferência por atividades especulativas, leva à uma impossibilidade de aumento da produtividade
através da modernização tecnológica ou mesmo organizacional do trabalho, promovendo uma
desigualdade crescente entre a remuneração do trabalho e a valorização do capital. Este modelo baseado em formas arcaicas de trabalho tem seus limites na sustentabilidade política e
social e, pelo fato de ser pouco eficaz para a acumulação capitalista, não permite obter meios
suficientes para investimentos produtivos ou financeiros.
5
Conforme Salama (1998 e 1999).
66
Terra Livre - n. 31 (2): 63-74, 2008
Isso explica parcialmente a sobrevivência (e até mesmo o retorno) de formas arcaicas
de exploração do trabalho na América Latina, no entanto, observamos uma combinação de
diferentes estratégias do capital que tem na esfera financeira um sustentáculo importante
para a implementação de formas avançadas de exploração do trabalho, convivendo com as
formas regressivas (trabalho escravo, trabalho infantil, trabalho domiciliar e outros) tanto
pela incapacidade de absorver o estoque de mão de obra disponível nas formas avançadas de
exploração, quanto pela “operacionalidade” dessas formas regressivas na acumulação do capital.
De qualquer forma, o que pretendemos frisar, neste momento, é o aumento da mobilidade do capital devido à mundialização do sistema financeiro, em que a articulação da
hipertrofia financeira com o desenvolvimento desigual e combinado do capital provoca tendências de precarização do emprego, quer nos locais de recente inovação produtiva, quer nos
locais tradicionais de produção capitalista. De outro lado, o trabalho não acompanha a rapidez dessa mobilidade e, embora os fluxos migratórios sejam significativos dos países do sul
rumo aos países desenvolvidos, os constrangimentos legais e precarização generalizada dos
empregos impedem o fortalecimento de laços de solidariedade entre trabalhadores nativos e
trabalhadores migrantes.
A destruição de postos de trabalho, muito superior à criação de novos empregos, não é só
uma espécie de fatalidade atribuída “à tecnologia” em si mesma. Ela resulta, pelo menos
em igual medida, da mobilidade de ação quase total que o capital industrial recuperou,
para investir e desinvestir à vontade, “em casa” ou no estrangeiro, bem como da
liberalização do comércio internacional. O efeito desses fatores, por sua vez, é acentuado, de forma crescente, pela mudança de propriedade do capital industrial. Mesmo em
grupos onde foi restabelecida a rentabilidade do capital, constata-se, por parte dos novos
proprietários do capital (fundos de investimento, fundos de pensão, companhias de seguros) uma fortíssima pressão para reduzir ainda mais os custos, “eliminando gorduras de
pessoal” e automatizando em velocidade máxima. É aí que se situa o ponto de partida de
um encadeamento cumulativo e realimentador, cujos efeitos são depois agravados ainda
mais pelas operações do capital monetário (CHESNAIS, 1996, p.306)
O setor financeiro favorece o deslocamento do capital, tanto em sua forma monetária
quanto dos investimentos produtivos. Através dele há a combinação entre a instabilidade no
mundo do trabalho e a vantagem estratégica de maior mobilidade do capital. O resultado é o
contexto da mundialização do capital (ampla liberdade de deslocamento) e a manutenção das
restrições à mobilidade territorial dos trabalhadores.
Assim, as grandes corporações transnacionais exercem direta ou indiretamente (através das diversas instituições multilaterais como o FMI, OMC e Banco Mundial) pressão sobre
Estados fragilizados pela dependência de recursos externos - como o caso brasileiro - para
constituírem regras favoráveis ao seu estabelecimento nesses territórios, incluindo legislação
ambiental menos restritiva (se possível regras mínimas de proteção ambiental) e trabalhadores devidamente enquadrados na devoção ao “Deus capital”, seja através de alterações na
legislação trabalhista, seja no desmantelamento de estruturas sindicais permeáveis à
combatividade dos trabalhadores.
EFEITOS
REGRESSIVOS DA ORDEM CAPIT
ALIST
A TRANSNACIONALIZADA PARA O
CAPITALIST
ALISTA
MUNDO DO TRABALHO
No Brasil, discute-se atualmente a reforma sindical e trabalhista e sua repercussão
direta na adequação do ordenamento jurídico brasileiro à fase atual do capitalismo
mundializado.
Disfarçada sob o leque da “necessidade” ou da “justiça social” a atual reforma sindical e
trabalhista proposta pelo governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva persegue um
objetivo claro: atender, acima de tudo, aos interesses do capital em seu estágio globalizado.
(SANTOS, 2003, p.7)
Promovendo, em instâncias nacionais e supranacionais, a necessidade de revisão do
67
CARVALHAL, M. D. E THOMAZ JUNIOR, A.
A DINÂMICA TERRITORIAL DO CAPITAL E...
ordenamento jurídico dos diversos países para se adequarem às regras da livre circulação do
capital, tornam-se os Estados nacionais mais ou menos livres para a circulação do capital; e,
através da homogênea tendência de planificar os territórios nacionais, o capital mundializado
vai, na verdade, articulando as diferentes porções do planeta de acordo com seus desígnios,
utilizando-se das vantagens oferecidas por alguns Estados nacionais para pressionar os mais
relutantes a aceitarem a nova ordem mundial.
Todavia, não se encerra no reordenamento jurídico-institucional a estratégia do capital de articular desigualmente as territorialidades nacionais e regionais; com a possibilidade
de optarem por diferentes locais para estabelecimento de unidades de acumulação, as
corporações transnacionais estimulam a concorrência entre os Estados nacionais (em suas
diferentes escalas de organização política) para proverem de ofertas generosas o capital
mundializado, seja através da garantia de investimentos na infra-estrutura necessária à realização das atividades, seja pelos subsídios fiscais oferecidos.
Um dos elementos que compõem o rol de exigências dessas corporações está relacionado diretamente à capacidade dos trabalhadores locais de executarem as atividades propostas
de acordo com o escopo tecnológico que a empresa pretende instalar. Isso remete diretamente
à necessidade de adequação da força de trabalho local à formação profissional exigida pelo
capital mundializado.
Assim, o esforço, ou pelo menos a retórica, do Estado brasileiro em promover um
abrangente programa de qualificação profissional através do PLANFOR (Plano Nacional de
Qualificação do Trabalhador), posteriormente renomeado de PNQ (Plano Nacional de Qualificação), mas com o mesmo objetivo, está vinculado intimamente à vontade de que a qualificação da mão de obra local torne-se um atrativo interessante para definir as escolhas de investimento.
Esses elementos reforçam a dinâmica territorial do capital em sua ofensiva acumulativa,
levando consigo seu efeito destrutivo, contraditoriamente favorecendo sua expansão como,
por exemplo, a dilapidação dos direitos sociais do Estado do Bem Estar Social nos países
desenvolvidos, limitando sua acumulação, com a diminuição dos salários do trabalhador.
Por outro lado, o movimento sindical, de forma geral, ainda está organizado sob o
marco da divisão profissional e territorial dos empregos, o que dificulta ações mais abrangentes
para o estabelecimento de formas não-regressivas de exploração do trabalho.
No caso brasileiro, o controle territorial sobre a representação política aparece claramente na legislação trabalhista que, entre outras coisas, propugna a delimitação do município como limite da ação sindical, prevalecendo a fragmentação territorial da representação
sindical. Mesmo que isso possa ser subvertido pela existência de sindicatos de abrangência
territorial mais ampla (regional, estadual ou mesmo nacional) ou pelas próprias centrais
sindicais, a existência dessa limitação impõe obstáculos e preserva uma diferenciação importante em termos da dinâmica territorial do capital e a dinâmica territorial do trabalho. A
polêmica instalada sobre a unicidade sindical, no bojo das discussões sobre a reforma sindical, é um exemplo importante de arraigamento – em alguns segmentos sindicais - de proposições baseadas em modelos europeus de representação sindical, ao mesmo tempo que outros
segmentos têm, na unicidade, a possibilidade de monopólio da representação e o exercem
encastelando-se nos sindicatos6 .
Entretanto, a participação do território na delimitação da ação sindical vai além do
regramento institucional. É importante considerar que a imposição legal não teria efeito se
não tivesse um mínimo de legitimidade entre as próprias organizações sindicais, a despeito
do caráter autoritário que historicamente marcou a constituição dos sindicatos no Brasil,
principalmente após a CLT (1943). O que pretendemos frisar é que os sindicatos e os trabalhadores estão, em maior ou menor grau, sujeitos à fragmentação, em grande parte devido às
identidades forjadas sob determinadas territorialidades, ou seja, identificar-se como pertencentes a algum lugar/categoria/corporação faz mais sentido para os trabalhadores e para os
sindicatos do que identificar-se como classe social.
Segundo Thomaz Jr. (1997), a gestão territorial das entidades sindicais renova as
fissuras corporativas, desestimulando a identidade de classe, combinando a dimensão
6
Referente à discussão recente sobre a unicidade sindical ver Santos (2003)
68
Terra Livre - n. 31 (2): 63-74, 2008
territorial e categorial na estrutura sindical e na própria ação sindical, no caso referenciado
pelo autor das entidades sindicais dos trabalhadores rurais, cuja dinâmica vertical (FETAESP
e FERAESP) estimula ainda mais o corporativismo com a busca de manutenção de suas estruturas através da conquista territorial, pela via da criação de sindicatos de categorias diferenciadas – permitida pela legislação sindical – ou através da conquista de direções sindicais,
sem isso, muitas vezes, significar mudança expressiva para os trabalhadores.
Nem sempre se pode estabelecer a relação direta e mecânica entre a centralização
progressiva e a concentração do capital com a densidade física da produção. Para Murray
(apud Antunes: 1995), a descentralização produtiva, articulada ao avanço tecnológico, adquiriu, no caso italiano, o sentido de combate à autonomia e coesão dos trabalhadores italianos,
pois utilizou a característica estruturante do sindicalismo italiano (trabalhador coletivo de
massa) para dificultar as mobilizações sindicais que incorporam esse novo trabalhador coletivo: mais fracionado e segmentado.
Para Bihr (1998), o proletariado apresenta-se fragmentado em três seções articuladas
pela exploração do trabalho, tornando-se um obstáculo importante para a unidade política
dos trabalhadores.
Um primeiro segmento, - caracterizado pelo emprego estável e com todas as garantias
que o direito social e trabalhista existente lhes preserva - é o setor que apresenta diminuição
crescente, com o prolongamento da crise.
Outro segmento caracteriza-se pelo desemprego de longa duração; são os trabalhadores excluídos do trabalho, o que significa para muitos deles a pobreza e a miséria, por ficarem
distantes da seguridade social, cada vez mais restrita.
Um terceiro segmento ocupa uma posição intermediária entre o núcleo estável e os
trabalhadores excluídos do emprego; compõe-se de uma massa flutuante de trabalhadores
instáveis; são os trabalhadores de empresas terceirizadas ou que operam por encomenda,
trabalhadores em tempo parcial, sem muitos dos benefícios garantidos aos que não são estáveis das mesmas empresas, ou ainda, temporários, estagiários, trabalhadores da economia
subterrânea.
Os efeitos disso são as dificuldades para agregar tais situações heterogêneas do trabalho à construção da unidade política. A ampliação do espectro da segurança social exige a
articulação dos diversos sujeitos do trabalho, independentes de sua inserção diferenciada no
processo de reprodução do capital.
[...] todos os estudos efetivados sobre o desenvolvimento do desemprego e da instabilidade mostram que estes tendem a reativar e a reforçar as antigas divisões e desigualdade
de status no seio do proletariado (BIHR, 1998, p. 86).
A nova configuração da produção capitalista significou profundas alterações no modelo
da fábrica fordista. Isso repercutiu diretamente na capacidade de mobilização e organização
dos trabalhadores. Essa nova configuração, segundo Bihr (1998) caracteriza-se de três formas:
Como fábrica difusa, na concentração típica do padrão fordista, à medida que se ampliava tal concentração acima de certo nível, os custos excedentes tornavam inviáveis a concentração; além disso, a concentração facilitou a organização sindical. Aos poucos, estabeleceu-se
a necessidade de tornar as fábricas menores, articulando um leque maior de fornecedores ou
de unidades fabris, porém, em tamanhos menores.
Em segundo lugar como fábrica fluida, com a produção tendo como perspectiva o contínuo ideal, sem tempo morto, o que representa uma certa evolução do taylorismo. Isso resultou
na exclusão de algumas categorias profissionais, como os operários especializados,
desestabilizando algumas categorias, como os antigos operários qualificados, e também ascendendo outras, como os operários em sistemas automatizados.
E, finalmente, como fábrica flexível, com a capacidade produtiva ajustada a uma demanda variável, tanto em volume quanto em composição. A flexibilidade do processo produtivo requer uma organização flexível do trabalho, isso faz com que a mão-de-obra tenha que se
tornar polivalente, com ampliação das qualificações. Não se trata de qualificação no sentido
de especialização, mas sobretudo qualificações diferenciadas, reorganizando o paradigma da
produção em linha para a produção em equipe. Isso aumentou a cisão entre os trabalhadores,
devido à flexibilidade da força de trabalho; com o afrouxamento das condições jurídicas do
69
CARVALHAL, M. D. E THOMAZ JUNIOR, A.
A DINÂMICA TERRITORIAL DO CAPITAL E...
contrato de trabalho (trabalho parcial e temporário), subcontratação e trabalho por encomenda.
Segundo Moreira (1997), a técnica age unindo a diversidade ao seu padrão uniforme, o
que significa dizer que ela suprime e redimensiona os segmentos da vida em simples frações
da divisão territorial do trabalho, fragmentando e articulando os locais (de produção e circulação) num espaço uniformizado pelo modo de produção capitalista. Essa uniformidade técnica é orientada para a hegemonia de classe, convertendo as diferenças em unidade da função
econômica, apresentando a desigualdade social como forma natural da diferença.
Relacionam-se a estas mudanças técnicas as mudanças no mundo do trabalho; no entanto, a análise torna-se mais complexa quando nos reportamos à dimensão territorial desta
repercussão, pois, em termos de sociabilidade transformam-se alguns padrões no mundo do
trabalho, diluindo a perspectiva do pleno emprego nos países desenvolvidos ou, no caso brasileiro, destruindo a possibilidade de inserção no consumo através do emprego. Em termos
territoriais, o padrão sindical de identificação regionalizada e a baixa articulação entre os
trabalhadores de diferentes categorias profissionais agem contra as alternativas de resistência dos trabalhadores. Além disso, a articulação territorial que o capital enseja, significa a
articulação da totalidade social, o que implica a hegemonia do pensamento burguês em todas
as esferas da vida social; isso permite pensar a totalidade territorial do trabalho hegemonizada
pelo capital como a fragmentação das dimensões da vida do trabalhador, o que permite o uso
do território fetichizado como instrumento de controle do capital.
Diversas são as dimensões com as quais os trabalhadores se identificam, fragmentando inclusive sua representação política: os sindicatos restringem-se à confrontação direta com
o capital no plano da circulação da força de trabalho, ou seja, estão majoritariamente restritos
às demandas da venda da força de trabalho, não promovendo a articulação espacial do trabalhador, ora pelos próprios sindicatos nas reivindicações por melhores salários e condições de
trabalho, ora são representados por associações de moradores para reivindicarem melhorias
no bairro, ora articulam-se às igrejas para demandas sociais como o combate à fome. Enfim,
sem representação unitária e classista, pois os partidos de trabalhadores que reivindicam
essa unidade são também fragmentadores da representação, pois acomodam-se ao sistema
sócio-metabólico do capital, não se constituindo verdadeiramente em partidos operários,
classistas e anticapitalistas.
Nesse sentido, a participação dos sindicatos na formação profissional poderia ampliar
o leque de inserções dos sindicatos nas esferas da vida social, porém, tal participação é
parametrizada pelas necessidades do capital, e os sindicatos, em sua grande maioria, acomodam-se à uma participação assistencialista com algumas contribuições para o indivíduo, ampliando sua esperança de emprego, mas sem construir a unidade de classe.
A norma social de consumo também é alterada com as transformações do capital, repercutindo nas identificações que o trabalhador faz de si mesmo, principalmente no caso do
consumo coletivo, com a substituição do Estado pelo mercado nas áreas de saúde, educação,
assistência social, o que contribuiu ainda mais para a fragmentação dos trabalhadores. Isso
estipula uma divisão entre os que podem pagar por tais benefícios privatizados e outros que,
não tendo essas condições, ficam dependentes da assistência estatal, em franca deterioração,
esvaziando o debate político sobre os serviços estatais.
A fragmentação dos trabalhadores provoca o enfraquecimento do sentido de pertencer
a uma classe, pois, aparentemente, a distância entre trabalhadores inseridos em condições
desiguais no processo produtivo é de tal ordem que não se justifica identificarem-se como tais,
já que os interesses são diferentes entre eles ou, às vezes, até contraditórios, como na perspectiva das identidades territoriais, com os trabalhadores de determinados lugares reivindicando a instalação ou manutenção das empresas em seu território, lutando contra os trabalhadores do “território inimigo”.
Isso se torna mais grave quando nos reportamos ao papel que a mundialização do
capital tem na separação entre a esfera econômica e política da sociedade, pois à esfera estatal restringe-se o campo da ação social e política na gestão do capital, ficando a gestão econômica sob as determinações diretas dos agentes do capital, sem que essa dupla forma de gestão
sinalize para qualquer tipo de enfraquecimento do controle de classe exercido pelo capital.
70
Terra Livre - n. 31 (2): 63-74, 2008
O cenário sindical da dinâmica territorial capitalista
Para Smith (1988) o desenvolvimento desigual mais evidente com a mundialização do
capital é a marca própria da geografia do capitalismo, pois é a expressão geográfica sistemática das contradições inerentes à própria construção e estrutura do capital.
A lógica do desenvolvimento desigual deriva especificamente das tendências opostas,
inerentes ao capital, para a diferenciação, mas com a simultânea igualização dos níveis
e condições da produção. (SMITH, 1988, p. 19)
Nesse contexto, o movimento sindical, de forma geral, tem, no território nacional, os
limites de sua atuação, pois há, de um lado, o regramento jurídico institucional delimitando o
território da ação que, no Brasil restringe ainda mais os limites à escala municipal ou
intermunicipal, para muitas categorias profissionais, provocando uma atomização da representação sindical, que se intensificou com a maior democratização do controle estatal sobre os
sindicatos a partir da Constituição de 1988; por outro, o movimento sindical, principalmente
sob a influência social-democrata, pautou sua ação pela conquista dos Estados nacionais,
como estratégia de luta.
Assim, o desenvolvimento transnacional do capital torna inoperante todas as estratégias de luta experimentadas, no quadro do Estado nação, pelo movimento operário ocidental, sob hegemonia social-democrata. Ao mesmo tempo, os modelos organizacionais atuais do movimento operário também são colocados em questão. (BIHR, 1998, p. 119)
A dinâmica territorial do capital, que articula as instituições do Estado nacional no
controle social da classe trabalhadora, juntamente com as instituições transnacionais do capital, retira dos sindicatos a posição privilegiada que haviam conquistado com a manutenção,
por certo período, do Estado-nação como escala territorial de estratégia do capital. Com a
transterritorialização deste Estado pelo capital transnacional, os sindicatos perdem as conquistas obtidas no âmbito do Estado nação e, a partir do desmonte de suas estratégias centrais, o capital consegue rearticular-se nas diferentes escalas sua hegemonia territorial, ora
fazendo prevalecer a competitividade transnacional como justificativa para o rebaixamento
das exigências dos trabalhadores, ora reiterando os particularismos locais como forma de
evitar a unidade política dos trabalhadores em âmbito planetário.
Dessa forma, a força de trabalho, desvalorizada pelas transformações profissionais e
ocupacionais da reestruturação produtiva, migra para os locais de concentração de riqueza
(mesmo que relativa), enquanto a força de trabalho valorizada migra para gerir a produção
em diversas partes do mundo, ou seja, a força de trabalho move-se segundo a lógica do capital
(DEL ROIO, 2002).
Como nos lembra Bihr (1998), o cimento ideológico do sindicalismo social-democrata forjado durante o período do compromisso fordista, em que o fetichismo de Estado e o nacionalismo ganharam proporções significativas na práxis sindical - fez com que o movimento sindical e os partidos a ele articulados ficassem atados quando o Estado nação foi redimensionado
a partir da ofensiva neoliberal e das amarras construídas pelo capital transnacionalizado e
financeirizado, pois as conquistas eleitorais de partidos de esquerda mostraram-se frustradas pela incapacidade de reverter o quadro geral de precarização7 .
Enfim, a DIT hierarquiza severamente os diferentes espaços econômicos mundiais, coloca-os em concorrência e pode, em certos casos, tornar contraditórios os interesses imediatos de diferentes partes do proletariado mundial (BIHR, 1998, p. 121)
Estimular a identificação territorial, como se estivesse acima do sentido de
pertencimento de classe, favorece bastante a concorrência dos locais na atração de investidores, e o controle sobre esta identificação territorial garante ao capital um instrumento refina-
7
No Brasil, só a partir da eleição de Lula essa frustração pode ser sentida de forma contundente no movimento sindical,
particularmente no âmbito da CUT, face à perplexidade inicial – depois transformada em adesão - desta Central quanto
às ações que deveriam ser realizadas para obstruir o avanço das medidas neoliberais do governo Lula.
71
CARVALHAL, M. D. E THOMAZ JUNIOR, A.
A DINÂMICA TERRITORIAL DO CAPITAL E...
do de bloquear tentativas de solidariedade entre os trabalhadores, mantendo-os politicamente fragmentados. Tal uso do território vai além da materialidade que o próprio território
possui para compor um dos instrumentos de controle social, tendo em vista os impactos que a
proposta de formação profissional do Estado brasileiro tem sobre os sindicatos.
O território é uma das dimensões de controle, que, simultaneamente, busca disciplinar
o tempo e o espaço da vida às necessidades da produção capitalista (MOREIRA, 1997), o que
é perceptível com a similitude de organização de todas as esferas da vida social ao padrão de
organização do trabalho fabril - fragmentação e adequação do tempo diário, periodizando-o
em tarefas previamente qualificadas como a hora de dormir, a hora de levantar, a hora de
trabalhar, a hora de almoçar; estanquização do espaço em locus diferenciados de viver, de
trabalhar, de lazer, com a própria divisão rígida do trabalho espelhada na divisão do lar em
cômodos, a padronização de locais distantes e simultânea diferenciação em padrões produtivos e de consumo.
Portanto, ao nos referenciarmos no território como dimensão de controle, estamos nos
reportando diretamente ao exercício do domínio da produção do espaço em suas diferentes
escalas, o que só é possível considerando-se a dimensão do controle que o capital exerce sobre
a sociedade (SMITH, 2000).
O capital realiza continuamente transformações no regramento institucional que ora
parcelizam o território, tornando-o descontínuo em seu fato econômico, com os diversos protecionismos mercantis e regionalismos produtivos, ora subvertem esta parcelização retirando
as “artificialidades” advindas com as políticas econômicas nacionais e/ou regionais, globalizando
seu fato econômico e homogeneizando sua geografia. Assim é que vivemos no atual momento:
uma fase de expansão das forças transnacionais, expressa nas grandes corporações; porém, é
preciso cautela ao eleger o movimento do capital entre nações como a face exclusiva da
globalização, fornecendo uma falsa impressão de que estas trocas ocorrem sob a tendência de
equalização dos países, ignorando o fato de que se trata de uma mundialização majoritariamente marcada pela presença das grandes corporações dos países desenvolvidos, mais precisamente com a marca hegemônica do capitalismo estadunidense, num arroubo caracterizado
por alguns como imperialista.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS: A FORMAÇÃO PROFISSIONAL COMO COMPONENTE DA
A DO CAPIT
AL
LÓGICA DESTRUTIV
DESTRUTIVA
CAPITAL
Podemos, enfim, tecer algumas considerações sobre as amarras da formação profissional com a ofensiva do capital sobre o trabalho, estabelecendo a partir das respostas do capital
à sua crise estrutural um conjunto de medidas e ações que tem, no uso do território, um trunfo
importante para tentar assegurar a controlabilidade de seu sistema sócio-metabólico.
A reestruturação produtiva, de certa forma, criou a necessidade de uma nova qualificação dos trabalhadores para o capital. Assim, há o esforço realizado pelos Estados nacionais de
promoverem a rápida adequação da força de trabalho às exigências da reestruturação produtiva, incluindo os esforços de qualificação e requalificação no rol de políticas públicas voltadas
para garantir o investimento.
A qualificação que se deseja do trabalhador está voltada para a flexibilidade de funções que pode desempenhar, além do treinamento com maquinário e equipamentos
informatizados que, no Brasil, relaciona-se mais à internalização dos processos de gestão do
trabalho do que necessariamente ao uso da automação, o que requer, de forma geral, uma
adaptação do trabalhador à gestão flexibilizada do trabalho, exercendo várias funções.
Assim, a vantagem competitiva, em termos de força de trabalho, está de alguma forma
relacionada a esse “acúmulo” de qualificações do trabalhador, funcionando como atributo a
ser considerado nas decisões sobre possíveis investimentos, articulado a variáveis como o
custo da mão de obra. Isso ganha dimensão particularmente interessante em nosso debate,
considerando a qualificação da mão de obra como componente importante na decisão de investimentos das empresas; é, portanto, um fator territorializado, pois são trabalhadores que
habitam determinado local, e a distribuição territorial dessa mão de obra qualificada permite
maiores facilidades para a mobilidade do capital.
Dessa forma, a participação dos sindicatos volta-se contra os trabalhadores na forma
72
Terra Livre - n. 31 (2): 63-74, 2008
de maior liberdade do capital em seu deslocamento territorial, pois amplia o leque de alternativas territoriais, em que a qualificação profissional surge para ampliar o território da força
de trabalho adequada à exploração pelo capital. Disso tudo resulta o aumento de lugares
capazes de abrigar o capital em mobilidade, vantagem transformada em chantagem contra os
lugares/trabalhadores.
Uma das evidências pode ser constatada na estratégia do PLANFOR ao incentivar a
participação dos sindicatos nos cursos de qualificação profissional, ampliando com isso a rede
de educação profissionalizante, intensificando-lhe a capilaridade no território. Os municípios
em que houve presença de sindicatos nos cursos de formação profissional, como no PEQ/SP
(Plano Estadual de Qualificação de São Paulo) de 1999, apresentaram expressiva disseminação.
O capital, portanto, enseja dinâmicas territoriais, mas não é por elas limitado, a não
ser pontualmente ou, quando isso envolve disputas inter-capitalistas, tem à sua mão a livre
movimentação de sua representação política, vinculados unicamente ao seu próprio fato econômico (Thomaz Jr,. 2002). Quanto ao trabalho, o que vemos é o contínuo esforço de mantê-lo
preso a limitações territoriais rígidas, que se não o mantém fixo enquanto força de trabalho,
delimita seu campo de ação política, fragmentando sua representação nas corporações sindicais ou criminalizando-os como imigrantes ilegais, aproveitando e fomentando o componente
cultural do preconceito racial e sexista para manutenção de taxas diferenciadas de exploração
do trabalho.
Assim, os trabalhadores têm esferas da representação política que se fragmentaram
em categorias profissionais. Além disso, a representação sindical transmuta-se em localismos
diversos, desde a escala municipal até a escala nacional, quando o que está em jogo é a capacidade de resistência à exploração do trabalho sob o capital mundializado. Isso tudo compromete a compreensão de pertencimento de classe, pois os trabalhadores identificam-se como
componentes parciais do processo de trabalho, na razão direta da divisão técnica, cada vez
mais territorialmente divididos.
Esse despertencimento tem papel fundamental na aceitação por parte dos sindicatos
das formulações mais gerais do PLANFOR/PNQ, a partir de 1995, e no contexto da década de
1990, batizada por alguns autores como a década neoliberal, pelo predomínio de políticas
econômicas inspiradas no liberalismo econômico que farão os sindicatos declinarem de posturas agressivas, inclinando-se para o concertacionismo social e propositivismo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
rabalho? São Paulo/SP: Cortez, 1995.
ANTUNES, Ricardo Adeus ao T
Trabalho?
BIHR, Alain Da grande noite à alternativa São Paulo/SP: Boitempo, 1999.
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CHESNAIS, François A mundialização do capital São Paulo/SP: Xamã, 1996. (1ª edição).
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MOREIRA, Ruy. “Da região à rede e ao lugar (a nova realidade e o novo olhar geográfico sobre
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73
CARVALHAL, M. D. E THOMAZ JUNIOR, A.
A DINÂMICA TERRITORIAL DO CAPITAL E...
ção);
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escala geográfica” In: ARANTES, Antonio A. (org.) O espaço da diferença Campinas/SP:
Papirus, 2000. (1ª edição).
THOMAZ JÚNIOR, Antonio “A presença das centrais na agroindústria paulista” In: Debate
Sindical, São Paulo/SP: CES, n. 24, Fev-Abr/97.
Sindical
THOMAZ JÚNIOR, Antonio Por T
Trás
rás dos Canaviais os (Nós) da Cana. A relação capital x
paulista.
trabalho e o movimento sindical dos trabalhadores na agroindústria canavieira paulista
São Paulo/SP: AnnaBlume/FAPESP, 2002. (1ª edição).
Recebido para publicação dia 05 de marçode 2009
74
A RELEVÂNCIA DO
LUGAR NA
AÇÃO
INTERPRET
INTERPRETAÇÃO
GEOGRÁFICA EM
TEMPOS DE
GLOBALIZAÇÃO
IMPORTANCE
THE IMPORT
ANCE OF
PLACE IN
GEOGRAPHICAL
APROACH IN TIMES OF
GLOBALIZATION
GLOBALIZA
TION
RELEVANCIA
LA RELEV
ANCIA DEL
LUGAR EN LA
INTERPRETACIÓN
INTERPRET
ACIÓN
GEOGRÁFICA EN
TIEMPOS DE
GLOBALIZACIÓN
LUCIANO ZANETTI
PESSÔA CANDIOTTO
UNIOESTE FRANCISCO BELTRÃO –
PR
[email protected]
Membro do Grupo de Estudos
Territoriais (GETERR/
UNIOESTE).
Terra Livre
Resumo:
Resumo:Considerando a pertinência da proposta teórico-metodológica
de Milton Santos (1996), bem como as reflexões de outros geógrafos e
cientistas sociais em torno dos conceitos de globalização e de lugar, o
presente artigo tem por objetivo discorrer sobre os fundamentos e as
implicações socioespaciais da globalização, e sobre o lugar como um
conceito fundamental para a interpretação geográfica no contexto da
globalização. Nesse sentido, abordamos a importância da relação
dialética entre espaço e tempo para a teoria social crítica e a
contribuição de Milton Santos para essa teoria; os pressupostos da
globalização, considerando o mercado global e o neoliberalismo; e a
relevância do lugar como categoria de análise geográfica, com destaque
para os conceitos de evento, verticalidades e horizontalidades.
Palavras-chave: globalização; lugar; Milton Santos; Geografia; espaço.
Abstract: Considering the pertinence of Milton Santos´ theory and
methodological proposal (1996), as well as another geographers’ and
social scientists reflections around the concepts of globalization and
place, the present article discuss the concept of globalization and its
social and spatial implications; and the place as an important concept
of geographical analysis in the context of globalization. In that sense,
we focused on the importance of dialectical relationship between space
and time for the critical social theory and Milton Santos contribution
for that theory; the presuppositions of globalization, considering the
global market and the neoliberalism; and the relevance from place as
a category of Geography´s analysis, with prominence for the event,
verticalities and horizontalities concepts.
Keywords: globalization; place; Milton Santos; Geography; space.
Resumen:
Resumen:Tomando por base la pertinencia de la propuesta de Milton
Santos (1996), así como las reflexiónes de otros geógrafos y cientistas
sociales acerca del conceptos de globalización y de lugar, el presente
artículo objectiva discurrir los fundamentos y las implicaciones
socioespaciales de la globalización y sobre el lugar como concepto de
análisis geográfica en el contexto de la globalización.
Para eso, abordamos la importancia de la relación dialéctica entre
espacio y tiempo para la teoría social crítica y la contribución de Milton
Santos para esa teoría; los presupuestos de la globalización, con énfasis
en el mercado global y el neoliberalismo; y la importancia del lugar
como categoría de análisis para el geógrafo, con realce para los
conceptos de evento, verticalidades y horizontalidades.
Palabras clave: globalización; lugar; Milton Santos; Geografía;
espacio.
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 75-91
Jul-Dez/2008
75
CANDIOTTO, L. Z. P.
A RELEVÂNCIA DO LUGAR NA INTERPRETAÇÃO ...
INTRODUÇÃO
A partir da década de 1990, as reflexões e debates em torno da globalização e de suas
implicações socioespaciais, passaram a fazer parte das preocupações da Geografia mundial e
brasileira. Consequentemente surgiram novas orientações teórico-metodológicas com o intuito de apreender a influência da globalização na dinâmica do espaço geográfico.
Um dos pesquisadores brasileiros a debruçar-se sobre a temática da globalização e de
suas conseqüências foi Milton Santos, que, através de sua longa e ampla trajetória como
geógrafo, pode conhecer o pensamento de vários cientistas sociais, e vivenciar diversos lugares do mundo.
Ao buscar desenvolver um arcabouço teórico, metodológico e conceitual para apreender o espaço geográfico, e, por conseguinte, contribuir para o avanço da Geografia como ciência, Milton Santos atribui fundamental importância para o lugar como objeto de pesquisa do
geógrafo, sem, contudo, ignorar a influência de ações extralocais, sejam elas regionais, nacionais ou globais.
Considerando a pertinência da proposta de Milton Santos, bem como as reflexões de outros geógrafos e cientistas sociais em torno dos conceitos de globalização e de lugar,
o presente artigo tem por objetivo discorrer sobre os fundamentos e as implicações socioespaciais
da globalização, e sobre o lugar como conceito de interpretação geográfica no contexto da
globalização.
Nesse sentido, abordamos a importância da relação dialética entre espaço e tempo
para a teoria social crítica e a contribuição de Milton Santos; os pressupostos da globalização,
com destaque para o mercado global e o neoliberalismo; e a relevância do lugar como categoria de análise para o geógrafo, com destaque para os conceitos de evento, verticalidades e
horizontalidades.
A IMPORTÂNCIA
DA RELAÇÃO ESP
AÇO-TEMPO PARA A TEORIA SOCIAL CRÍTICA
ESPAÇO
Podemos afirmar que estamos vivenciando um período histórico de intensas transformações espaciais e de muitas dúvidas em relação ao futuro da humanidade e do próprio planeta. Concomitante à hegemonia do capitalismo, e aos avanços científicos e tecnológicos, muitas
foram as conquistas que nos permitiram evoluir como a espécie que dominou e continua dominando a natureza. Todavia, esse domínio trouxe graves conseqüências para o funcionamento
dos ecossistemas, para a organização da sociedade e para a conservação da biodiversidade,
pois aumentou a degradação ambiental, manteve a concentração de riqueza nas mãos de
poucos, e ampliou a desigualdade social pelo mundo.
Frente a esse contexto, onde a própria produção científica é comandada por interesses
econômicos dos agentes hegemônicos do capital (corporações transnacionais e outras firmas),
entendemos que cabe às ciências humanas manter uma análise crítica e comprometida com a
realidade, que possa desmascarar estratégias de exploração da força de trabalho e dos recursos naturais, implícitas nos discursos de progresso, desenvolvimento e globalização.
Após um período caracterizado pelo capitalismo industrial, onde a maior parte da maisvalia era obtida através da produção de bens materiais dentro do modelo fordista, passamos
nas últimas décadas para uma nova fase do capitalismo, onde predomina o capital financeiro
e a acumulação flexível de capital, de modo que a informação, o conhecimento e os serviços se
tornam tão ou mais importantes e lucrativos do que a própria produção de bens materiais.
Modificam-se algumas características do capitalismo, porém este se mantém fundamentado
na especulação.
O capital é um processo de reprodução da vida social, por meio da produção de mercadorias em que todas as pessoas do mundo capitalista avançado estão profundamente
implicadas. [...] é um modo dinâmico e revolucionário de organização social que transforma incessantemente a sociedade em que está inserido. O processo mascara e fetichiza,
[...] cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do desejo
humanos, transforma espaços e acelera o ritmo da vida. [...] Sua trajetória de desenvolvimento sempre se baseou na especulação – em novos produtos, novas tecnologias, no-
76
Terra Livre - n. 31 (2): 75-91, 2008
vos espaços e localizações, novos processos de trabalho. (HARVEY, 1989, p. 307).
Nessa nova fase do capitalismo, além do capital financeiro emerge um processo de
globalização da economia, pautado no livre mercado, na ideologia neoliberal e no poder concentrado das corporações transnacionais. Por sua vez, essas corporações dominam as
tecnologias da informação, que são fundamentais para disseminar modismos e consumismos,
bem como para garantir a hegemonia econômica de seus produtos pelo mundo.
Segundo Harvey (1989), vivemos numa fase de compressão do tempo-espaço, decorrente da transição do modelo fordista para a acumulação flexível do capital, caracterizada por
novas formas organizacionais e tecnologias produtivas com controle eletrônico. Assim, há
uma aceleração no tempo da produção, distribuição e consumo, influenciados pela dinamização
da circulação, de sistemas aperfeiçoados de comunicação e do fluxo de informações.
Milton Santos ressalta a informação como elemento primordial de integração do espaço geográfico nos dias atuais.
Antigamente, sobretudo antes da existência humana, o que reunia as diferentes porções
de um território era a energia, oriunda dos próprios processos naturais. Ao longo da
história é a informação que vai ganhando essa função, para ser hoje o verdadeiro instrumento de união entre as diversas partes de um território. (SANTOS, 2002, p. 17).
Para Milton Santos, o processo de globalização é decorrente do meio técnicocientífico-informacional, que intensifica a produção/transformação do espaço e abre novas
possibilidades de expansão do capitalismo, universalizando-o. Os avanços da ciência, da técnica e da informação permitem a globalização do espaço, porém o autor não acredita na existência de um espaço mundial, advertindo que “o espaço se globaliza, mas não é mundial como
um todo senão como metáfora. Todos os lugares são mundiais, mas não há um espaço mundial. Quem se globaliza, mesmo, são as pessoas e os lugares.” (1994, p. 16). Existem, sim, os
espaços hegemônicos, que abrigam atividades de produção e troca de alto nível (mundial),
assim como os espaços hegemoneizados, sob forte influência dos espaços hegemônicos.
Harvey (1989) utiliza o conceito de pós-modernidade para referir-se à compressão tempo-espaço e à nova lógica do capitalismo globalizado. Para o autor, a partir da década de 1970,
vivenciamos um período de passagem do consumo de bens para o de serviços, pois estes não
duram muito (são efêmeros). Essa transição é favorável ao capital, pois, com o aumento do
consumo, cresce a necessidade de renovar produtos e serviços. Nesse contexto, a produção de
mercadorias (materiais e simbólicas) passa a caracterizar-se pela instantaneidade e pela
descartabilidade.
O desenvolvimento de novas técnicas foi de suma importância para essa compressão
tempo-espaço, pois as tecnologias de informação e comunicação via satélite, e a maior rapidez
dos meios de transportes, permitiram “acelerar” o tempo e “reduzir” o espaço.
[...] as inovações (técnicas) voltadas para a remoção de barreiras espaciais têm tido imensa
significação na história do capitalismo, transformando-a numa questão deveras geográfica – as estradas de ferro e o telégrafo, o automóvel, o rádio e o telefone, o avião a jato
e a televisão, e a recente revolução das telecomunicações são casos em tela. (HARVEY,
1989, p. 212)..
Esse novo momento histórico-geográfico que a humanidade enfrenta necessita de
reformulações teóricas no campo das ciências humanas e sociais. Assim, diversos teóricos
vêm propondo novas bases teóricas, conceituais e epistemológicas para a apreensão dos fenômenos contemporâneos. Conceitos como globalização, meio técnico-científico-informacional,
pós-modernidade, espaço, território, redes, firmas, entre outros, passam a ser bastante discutidos, sobretudo entre os geógrafos, que, influenciados por essa “nova ordem mundial”, procuram avançar no debate sobre o papel da Geografia como ciência. Dentre esses conceitos, o de
espaço se destaca na Geografia, pois se constitui no seu mais amplo objeto de estudo.
Nesse sentido, Soja (1993) assevera que o espaço, como categoria de análise da Geografia, ganha força na construção da teoria social crítica, através de abordagens propostas por
pesquisadores como Harvey e Castells, que, a partir da década de 1970, passam a refletir
sobre uma análise marxista do espaço. Soja considera que, para se compreender o social, é
preciso remeter-se ao espacial, pois ambos têm suas origens no modo de produção, mas tam-
77
CANDIOTTO, L. Z. P.
A RELEVÂNCIA DO LUGAR NA INTERPRETAÇÃO ...
bém são dialeticamente inseparáveis.
Para Soja (1993, p. 103), a noção base da dialética socioespacial vem com Henri Lefebvre,
ao afirmar que “o espaço e a organização política do espaço expressam as relações sociais, mas
também reagem contra elas. [...] o espaço sempre foi político e estratégico” (ideológico), pois
mesmo “formado e moldado a partir de elementos históricos e naturais”, constitui-se em um
produto social, que, por sua vez, é influenciado pelo processo político. Acreditando na relevância da dialética tempo-espaço, Soja (1993) propõe que haja uma transição teórica do materialismo histórico para um materialismo histórico e geográfico, que incorpore, no campo das
ciências sociais, uma abordagem que busque aproximar o conhecimento histórico com o geográfico.
No Brasil, um dos principais pensadores a enfatizar o espaço como objeto central da Geografia, e a importância da abordagem dialética espaço-tempo para a teoria social
crítica, foi Milton Santos.
A CONTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DE MIL
TON SANTOS
ILTON
PARA A TEORIA SOCIAL
CRÍTICA
Assim como Harvey e Soja, Santos é outro geógrafo que atribui fundamental importância para a relação dialética existente entre espaço e tempo. Na busca por uma epistemologia
da Geografia, Milton Santos centrou sua abordagem no espaço geográfico, porém não deixando de vinculá-lo ao tempo. Em “Por uma Geografia Nova”, de 1980, Santos propõe uma abordagem fundamentada na dialética espaço-tempo, que posteriormente vai sendo aperfeiçoada.
O fato de que os eventos sejam ao mesmo tempo espaciais e temporais não significa que
se pode interpretá-los fora de suas próprias determinações ou sem levar em conta a
totalidade da qual eles emanam e que eles reproduzem. O espaço social não pode ser
explicado sem o tempo social. (SANTOS, 1980, p. 206).
Inserido entre os renomados geógrafos contemporâneos, Milton Santos é referência bibliográfica obrigatória na Geografia brasileira. Após anos de dedicação à reflexão
geográfica, Santos deixa claro, na obra “Natureza do Espaço”, sua intenção de, além de descrever, interpretar o espaço geográfico. “Nosso desejo explícito é a produção de um sistema de
idéias que seja, ao mesmo tempo, um ponto de partida para a apresentação de um sistema
descritivo e de um sistema interpretativo da geografia.” (SANTOS, 1996, p. 18).
Buscando apontar caminhos para uma epistemologia eminentemente geográfica, Santos publica, em 1996, a obra “Natureza do Espaço”, que apresenta uma proposta teóricometodológica para a apreensão da dinâmica do espaço geográfico na contemporaneidade. O
autor, mostrando uma preocupação similar à de Soja, deixa claro que o referido livro deseja
ser uma contribuição geográfica à produção de uma teoria social crítica.
Para Santos (1980), o objeto de estudo da Geografia é o espaço, que é um produto
histórico da relação sociedade/natureza. Em 1985, no livro “Espaço e Método”, Milton Santos
afirma que o espaço deve ser considerado como totalidade, e define as principais categorias de
seu método geográfico, sendo a forma, função, estrutura e processo. Ainda nesse livro, o autor
indica que o espaço é constituído pelos seguintes elementos: homem, firmas, instituições,
meio ecológico e infra-estruturas (equivalentes aos objetos técnicos).
Nesse sentido, o ato de produzir é igualmente o ato de produzir espaço, e a
produção supõe uma intermediação entre o homem e a natureza, que se dá por meio das
técnicas e dos instrumentos de trabalho inventados para o exercício desse intermédio. Por
conseguinte, “cada vez que o uso social do tempo muda, a organização do espaço muda igualmente.” (SANTOS, 1980, p. 163).
Santos (1985) ressalta que, para analisar o espaço, é preciso fragmentar o todo espacial, e que cada elemento do espaço tem um valor diferente segundo o lugar em que se encontra.
O autor (1980) afirma, portanto, que cabe ao geógrafo procurar a partir do lugar, verificar a
produção/transformação do espaço geográfico, pois o lugar (particular) carrega consigo influências e determinações gerais/universais do espaço, sendo decorrente de objetos e ações pretéritos e atuais de uma determinada formação socioespacial. “O que passa em um lugar depende da totalidade de lugares que constroem o espaço.” (p. 122). “O espaço total e o espaço
local são aspectos de uma única e mesma realidade – a realidade total.” (p. 167).2
78
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Globalização e Lugar
Milton Santos procura relacionar o local e o global de forma conjunta, e considerando
também a influência dos subespaços, ou seja, de outras escalas geográficas3 . O autor atribui
grande importância ao lugar como um conceito de interpretação geográfica, entendendo que o
local carrega consigo manifestações materiais (objetos) e imateriais (ações) de outras escalas
geográficas, que chegam até a escala global. Contudo, apesar de ser construído sob influência
de forças exógenas, e de fazer parte da totalidade, cada lugar possui suas particularidades,
sejam elas naturais, socioculturais, econômicas, políticas ou históricas. São esses elementos
particulares dos lugares que relativizam a entrada de objetos e ações exógenos, provenientes,
sobretudo, das intencionalidades dos atores hegemônicos do capitalismo global.
Para Santos, há uma ordem universal e uma ordem local4 , de modo que “o mundo da
globalização doentia é contrariado no lugar”. (SANTOS, 1994, p. 20). Tais conceitos pressupõem uma relação dialética entre o global e o local. Existe “uma razão global e uma razão
local que em cada lugar se superpõem e, num processo dialético, tanto se associam, quanto se
contrariam. É nesse sentido que o lugar defronta o mundo, mas, também, o confronta, graças
a sua própria ordem.” (SANTOS, 1996, p. 267). Desta forma, “a ordem global busca impor, a
todos os lugares, uma única racionalidade”, ao passo que “os lugares respondem ao mundo
segundo os diversos modos de sua própria racionalidade.” (p. 272).
Essa ordem universal seria decorrente de uma racionalidade hegemônica que se
universaliza com o processo de globalização contemporânea. O que é, porém, essa globalização?
Como ela surge? Quais são os principais responsáveis por sua disseminação? Quais são as
implicações socioespaciais desse “novo” período da história da humanidade?
Globalização
Durante a década de 1990, o termo globalização foi cristalizado tanto no meio acadêmico brasileiro, como no setor empresarial, nos meios de comunicação, até chegar à sociedade de
forma geral. Muito se falou de um novo período da história, caracterizado por uma “sociedade
global”, ou que vivemos em uma “aldeia global”. A possibilidade de estabelecer contato – real
ou virtual – com qualquer lugar ou grupo social do planeta, de adquirir e consumir produtos
das áreas mais distantes, e de tornar-se um “cidadão do mundo” alterou a percepção das
firmas e das pessoas, e, conseqüentemente, alterou o modo de agir destas, desencadeando
várias conseqüências na produção e no consumo do espaço geográfico.
Ao discorrer sobre a globalização, urge inicialmente associar o processo de globalização
contemporânea à esfera da economia e da política, e, conseqüentemente, ao sistema capitalista, pois o principal elemento motivador da globalização é a expansão da territorialização do
capital, tanto nos países centrais, mas principalmente em áreas pouco “desenvolvidas”, como
os países periféricos já vinculados ao capitalismo, e aqueles países que foram socialistas até a
década de 1990, mas que, com o fim da guerra fria, com a queda do muro de Berlim e com a
dissolução da União Soviética, passaram a abrir suas economias ao livre mercado.
Segundo Ianni (1996, p. 240), “na medida em que se globaliza, o capitalismo tanto abre
novas fronteiras de expansão como recria espaços nos quais já estava presente. [...] A
globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de
produção e processo civilizatório de alcance mundial.” (p. 11).
Chesnais (1996 apud Candiotto e Saquet, 2000) entende que a globalização não altera
– e até intensifica – a desigualdade social do sistema capitalista, pois ela carrega consigo a
concentração de capitais. As contradições e as desigualdades, inerentes ao desenvolvimento
2
Ianni (1996) é outro pensador que, ao centrar sua preocupação no processo de globalização, reforça a importância dos
subespaços como receptores de determinações da escala global. “Na medida em que os processos e estruturas de poder que
se desenvolvem em escala global se tornam predominantes, cabe buscar sempre os significados práticos e teóricos das
determinações globais, em tudo o que é local, nacional ou regional.” (p. 299).
3
“Entre o lugar e o mundo, as outras escalas são regionais, supra-regionais, nacionais e continentais.” (SANTOS, 1996, p.
287).
4
Essa ordem universal é também denominada razão global, enquanto a ordem local corresponderia à razão local. (SANTOS,
1996).
79
CANDIOTTO, L. Z. P.
A RELEVÂNCIA DO LUGAR NA INTERPRETAÇÃO ...
do capitalismo como modo produtivo, não desaparecem. Poucos se tornam ricos ou enriquecem mais, enquanto muitos empobrecem.
Apesar de o processo de globalização ter seu motor em objetivos macroeconômicos,
questões geopolíticas relacionadas à queda do socialismo abriram caminho para a
universalização do capital como processo civilizatório (IANNI, 1996). A ampliação do capitalismo no mundo é decorrente da transnacionalização do capital, facilitada pela dissolução do
socialismo, dissolução que possibilitou a hegemonia mundial do capitalismo (SCHIFFER,
2002). Conseqüentemente, aumenta o poder dos Estados Unidos como potência econômica do
capitalismo global.
No plano geopolítico, a globalização caracteriza-se, portanto, como uma estratégia de
dominação do mundo por parte dos países centrais, sobretudo por parte daqueles que compõem a Tríade (EUA, Japão e Europa) formada após a Segunda Guerra Mundial e liderada
pelos Estados Unidos. Na visão de Amin (2001), objetiva-se um mundo unipolar calcado na
ditadura do capital e no domínio militar norte-americano.
Nos dias atuais, é possível identificar facilmente esta estratégia, já cristalizada no
plano econômico por meio da globalização da economia e do mercado global, e em andamento
no plano geopolítico, através do ímpeto norte-americano em iniciar guerras questionáveis,
como no Afeganistão e no Iraque, e em criar embargos econômicos e ameaçar outros países
que não sigam suas determinações geopolíticas, como Irã, Cuba, Coréia do Norte e Venezuela.
Assim como Ianni e Chesnais, Sunkel (2001) também concorda com a idéia de que a
globalização corresponde a uma fase notável de aceleração e de ampliação do processo de
expansão do capitalismo. Candiotto e Saquet (2000, p. 71) também relacionam a globalização
com uma nova etapa do modo de produção capitalista:
A globalização é, a nosso ver, um momento inerente ao processo de expansão do capitalismo; é resultado de um salto, ou de saltos, quantiqualitativos, onde o velho não é
suprimido, mas superado, a partir da aceleração no movimento de rotação do capital a
nível mundial. Movimento em cuja base estão as inovações técnico-científicas subordinadas aos interesses do capital.
Com a globalização, “o desenvolvimento do modo capitalista de produção adquire outro
impulso, com base em novas tecnologias, criação de novos produtos, recriação da Divisão
Internacional do Trabalho e mundialização dos mercados.” (IANNI, 1996, p. 14). Paradoxalmente, modifica-se a configuração do espaço geográfico, afetando de forma interdependente
as técnicas, a economia, a política, a cultura e o meio ambiente. Sunkel (2001) destaca o
transporte aéreo, as corporações transnacionais, e a revolução nas comunicações e na
informática, como aspectos impulsionadores da globalização contemporânea.
Benko (2002) coloca a globalização dentro de um contexto maior, denominado
mundialização, a um ponto em que a globalização corresponderia à terceira etapa do processo
de mundialização. Benko é enfático, ao colocar que a mundialização é desordenada, mal regulada e aumenta os riscos de exclusão social em todos os países, de modo que eficácia econômica e justiça social deverão ser repensadas. Para o autor (2002a), o processo de mundialização
cobre três etapas, intimamente vinculadas a fenômenos econômicos e a avanços técnicos: 1) a
internacionalização – vinculada ao desenvolvimento dos fluxos de exportação; 2) a
transnacionalização – ligada aos fluxos de investimento e à implantação de firmas em diversos países periféricos/estrangeiros; 3) a globalização – ligada à instalação das sedes mundiais
de produção e de informação.
Já Ramonet (1999) parece usar o termo mundialização como sinônimo de globalização,
porém também reforça a variável econômica no processo. Para ele, a dinâmica dominante é a
mundialização da economia, que se baseia na ideologia de que só é possível uma única política
econômica; e de que os critérios do mercado e do neoliberalismo (competitividade, produtividade, livre-comércio, rentabilidade) permitem a uma sociedade sobreviver em um planeta
que se tornou selva de concorrência. Na visão do autor (1999), a situação contemporânea se
caracteriza por uma tríplice revolução: - tecnológica: substituição do cérebro pelo computador,
acelerada pelas novas redes de telecomunicações; - econômica: mundialização das economias
em decorrência das exigências de livre-comércio / domínio do setor financeiro; - sociológica:
crise do conceito tradicional de poder, ancorado no poder político. A democracia perde
credibilidade porque os cidadãos não podem intervir na economia.
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Terra Livre - n. 31 (2): 75-91, 2008
Essa tríplice revolução é acompanhada por mudança de paradigmas, onde o progresso
e a máquina são substituídos pelos paradigmas da comunicação e do mercado. Para Santos
(1996, p. 163), “agora, tudo se mundializa: a produção, o produto, o dinheiro, o crédito, a
dívida, o consumo, a política e a cultura. Esse conjunto de mundializações, cada qual sustentado, arrastando, ajudando a impor a outra, merece o nome de globalização.”
Percebe-se que, enquanto Benko (2002 e 2002a) entende a globalização como uma parte do processo de mundialização, Santos (1996) afirma que o conjunto de mundializações
conduz à globalização. Apesar de abordagens distintas sobre os termos globalização e
mundialização, - influenciadas pela própria semântica das palavras conforme o idioma –,
optamos por utilizar o termo globalização como algo mais amplo que a mundialização, conforme a perspectiva de Milton Santos. Percebemos, contudo, que os dois termos apresentam
semelhanças. Cabe a ressalva de que, ao usarmos o termo globalização, estamos considerando as causas e as conseqüências dos aspectos econômicos, técnicos, geopolíticos e socioespaciais
de forma interdependente e, na medida do possível, integrada.
Entendendo que a globalização está ligada à expansão do capitalismo, e que tem na
tecnologia, sobretudo nas redes de comunicações (informação) e transportes, seu instrumento
de disseminação e cristalização, fica claro que os agentes hegemônicos do capital constituemse nos atores mais importantes desse processo, pois detêm o controle das tecnologias de ponta. Para Rattner (1994, p. 103), “os agentes mais atuantes e poderosos desta fase da economia
mundial são as corporações e conglomerados transnacionais.”
Cabe ressaltar que essas corporações globais são firmas com controle nos países centrais, e interesses vinculados à manutenção do domínio geopolítico dos governos da Tríade.
Por outro lado, os próprios governos dos países da Tríade representam os interesses das firmas globais, demonstrando o vínculo existente entre poder político e poder econômico.
Ianni (2002) alerta que a transnacionalização corresponderia à última fase do fordismo,
que, por sua vez, passa por uma crise econômica, social e cultural. Devido a essa crise do
fordismo, este passa a combinar-se com ou passa a ser substituído pela flexibilização dos
processos de trabalho e produção, flexibilização essa voltada às novas exigências do mercado
mundial, que combina produtividade, capacidade de inovação e competitividade.
Para Benko (2002), a partir do começo dos anos 1970 ocorre a organização do sistema
de capital financeiro, crucial para a globalização contemporânea. Com a emergência do capital financeiro, a ”finança se torna global, constituindo a principal alavanca das atividades
econômicas internacionais, mediante os processos conjugados de multinacionalização e
transnacionalização.” (SANTOS, 1996, p. 165). Santos mostra como o capital financeiro predomina sobre a produção material, pois cada vez que se troca um dólar de mercadoria, trocam-se quarenta no mercado financeiro.
O mais forte dentre os poderes privados que tendem a regular os setores essenciais da
vida internacional é provavelmente o setor financeiro (bancos, sociedades de investimento, companhias de seguro e cambistas) e notadamente o setor bancário, que assegura o essencial dos empréstimos internacionais e desempenha, nos domínios monetário e
financeiro, um papel ainda mais importante que o do FMI. (BADIE & SMOUTS, 1992,
apud SANTOS, 1996, p. 167).
Pochman (2001) ressalta que as empresas multinacionais transformaram-se em
corporações transnacionais, com capacidade de ter o mundo como espaço de investimento e
produção, provocando a reorganização do processo produtivo.
Tal reorganização também é flexível, pois as corporações transnacionais abrem e fecham suas plantas produtivas conforme as oportunidades lucrativas. Assim, essas firmas não
apresentam vínculo ou preocupação com os lugares onde se instalam, de modo que a decisão
de sair de determinado país, região ou cidade, é determinada pelos seus rendimentos financeiros, ignorando as conseqüências socioespaciais desse processo. Nesse sentido, além de possuir cada vez mais capital e poder, as corporações transnacionais produzem o espaço e o território de forma totalmente descompromissada com os interesses sociais, pois visam somente
seus lucros, tornando o capital extremamente volátil, sobretudo nos países periféricos.
Além da presença/atuação física das corporações transnacionais pelo mundo, estas
acumulam riqueza e conquistam lucros e influência sobre os mais diversos territórios, mesmo
não estando fixadas nestes. Através de fluxos, como as redes de comunicação e informação, é
81
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A RELEVÂNCIA DO LUGAR NA INTERPRETAÇÃO ...
possível divulgar seus produtos e serviços, comercializá-los, efetuar negócios e transações,
etc.
Beneficiadas pelos organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional
(FMI), o Banco Mundial (BIRD) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), as corporações
transnacionais, geralmente com comando nos países centrais, vão se instalando em áreas
estratégicas dos países periféricos, mantendo a exploração e o domínio sobre estes. Segundo
Clague (1997 apud Arbix e Zalbovicius, 2001, p. 59), a partir de 1970, o FMI passou a associar
desempenho econômico de ponta à existência de “mercados competitivos, direitos contratuais
e de propriedade protegidos, estabilidade macroeconômica e serviços públicos eficientes”.
Por conseguinte, os países periféricos e semiperiféricos, no intuito de atrair as
corporações transnacionais, aceitam o programa de agências multilaterais como FMI e BID
(Banco Interamericano de Desenvolvimento), que acabam provocando o rebaixamento do custo do trabalho e a desregulamentação dos mercados de trabalho. Além da piora na distribuição de renda, não há garantias da permanência das corporações transnacionais na localidade.
(POCHMAN, 2001).
Assim, governos e empresas, setores públicos e privados, agem de acordo com os movimentos do capital orquestrados principalmente pelas transnacionais (IANNI, 2002). Esse
movimento modifica territórios, territorialidades e lugares, pois faz do espaço mundial um
grande tabuleiro para jogos de especulação e para busca de lucros intermináveis.
São justamente essas corporações transnacionais as maiores interessadas em consolidar um mercado livre global que permita a circulação e a aquisição de mercadorias (materiais
e simbólicas) em todos os países. “A essência do processo de globalização é a ampliação, a
intensificação e o aprofundamento da economia de mercado.” (SUNKEL, 2001, p. 276).
Sabendo que a defesa do mercado global é uma das marcas da globalização e uma das
estratégias de domínio das corporações transnacionais, discorreremos sobre a idéia de um
mercado global, idéia que, por sua vez, é impulsionada por políticas de cunho neoliberal.
Mercado global e neoliberalismo
O chamado livre mercado global é regulado pelo capital financeiro internacional e dominado pelas corporações transnacionais, corporações que, para Sunkel (2001, p. 282), observam “todas as oportunidades de lucro em qualquer parte do mundo”. Santos (1996) considera
que o mercado global é o campo de ação da mais-valia universal.
O discurso do livre mercado global é disseminado pelas corporações transnacionais,
pois interessa a elas propagar ideais neoliberais tais como a competitividade, a redução do
papel do Estado e o crescimento econômico ilimitado. Tais ideais estão vinculados a discursos
de defesa da democracia, porém a democracia propagada pelos agentes hegemônicos do capital não é aquela democracia que busca o entendimento entre visões diferentes e o atendimento às necessidades básicas da sociedade, mas, sim, a democracia da produção e do consumo,
ou seja, do mercado.
Na visão de Milton Santos (2002), a versão política dessa globalização é a democracia
do mercado. Mercado das coisas, inclusive a natureza; mercado das idéias, inclusive a ciência
e a informação; mercado político. O neoliberalismo seria o outro braço dessa globalização
perversa, e, em nossa opinião, corresponde à versão ideológica da globalização.
Santos (1994) entende que a idéia do livre mercado global mascara a verdadeira face
tirânica do mercado, onde o discurso da competitividade toma lugar ao do desenvolvimento.
“A competitividade é um outro nome para a guerra, desta vez uma guerra planetária, conduzida,
na prática pelas multinacionais, as chancelarias, a burocracia internacional.” (p. 19).
Para o autor (1996, p. 177), “não é a técnica que exige aos países, às empresas, aos
lugares serem competitivos, mas a política produzida pelos atores globais, isto é, empresas
globais, bancos globais, instituições globais”. Essa afirmação demonstra como determinadas
ações macroestruturais, provenientes das intencionalidades dos agentes hegemônicos do capital, são disseminadas e incorporadas em subespaços como os países, Estados, municípios e
lugares. Como conseqüência para o espaço geográfico, “a competitividade faz com que equipamentos e lugares se tornem rapidamente envelhecidos e sejam declarados incapazes ou insuficientes para fornecer novos esforços úteis”. Essa “incapacidade” justifica a substituição de
objetos e ações “ultrapassados”, por inovações cientificas e técnicas, ampliando assim a produção e o consumo de mercadorias. Por conseguinte, “a possibilidade atual de mundialização
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Terra Livre - n. 31 (2): 75-91, 2008
de um grande número de ações acarreta, para muitos lugares, o problema da superposição
neles, de ações com escalas diversas, portadoras de contextos com diversa abrangência geográfica e força ativa (ou reativa) diversa.” (SANTOS, 1996, p. 179).
Desta forma, as ações das firmas globais são disseminadas em todos os lugares do
mundo, superpondo-se aos objetos e às ações endógenas desses lugares, bem como às ações
determinadas pelos Estados nacionais e pelas outras instituições de atuação nacional ou regional. Certamente essas ações se materializarão através de objetos técnicos, hábitos e normas,
que, por sua vez, transformarão a configuração dos lugares, territórios e do espaço geográfico.
Segundo Ianni (1996, p. 79), “enquanto o liberalismo baseava-se no princípio da soberania nacional, ou ao menos tomava-o como parâmetro, o neoliberalismo passa por cima dele,
deslocando as possibilidades de soberania para as organizações, corporações e outras entidades de âmbito global.” O FMI, o Banco Mundial (BIRD) e a OMC seriam os guardiões do
neoliberalismo e da economia global.
O neoliberalismo revela como se desenvolve a globalização pelo alto, ou de cima para
baixo. Sempre privilegia a propriedade privada, a grande corporação, o mercado livre de
restrições políticas, sociais ou culturais, a tecnificação crescente e generalizada dos processos de trabalho e produção, a produtividade e a lucratividade. (IANNI, 1996, p. 283).
Sunkel (2001) vê o discurso neoliberal como único e dominante, onde a democracia
liberal se impõe no âmbito político e o sistema de mercado se impõe no âmbito econômico. “O
ideal de um Estado mínimo e de um mercado máximo, assim como a identificação da
globalização e do neoliberalismo com modernização, progresso e desenvolvimento, é uma armadilha ideológica perigosa.” (p. 270).
No neoliberalismo, o mercado – dominado pelas corporações transnacionais – busca
reduzir o papel do Estado através de privatizações de empresas estatais, enxugamento da
máquina pública e ampliação da territorialização do capital financeiro internacional. As funções inerentes ao Estado, como saúde, educação, habitação, entre outras, ao passarem para o
controle do mercado, deixam de beneficiar aqueles que não podem pagar, pois o mercado é
movido pelo lucro, não tendo nenhuma obrigação social, ao contrário do Estado, que, teoricamente, tem o dever de governar para a coletividade.
Ortega e López (1994, p. 179) também tecem críticas às conseqüências do neoliberalismo
na América Latina.
A política neoliberal imposta no mercado de trabalho pelo FMI e o Banco Mundial, com
seus postulados de privatização, Estado subsidiário, abertura comercial total e liberdade de mercado, estendeu uma nova malha de desequilíbrios econômicos e sociais sobre
os habitantes da região sem conseguir deter o avanço da pobreza.
Frente ao fortalecimento do mercado, os Estados vão se tornando impotentes e submissos aos interesses das corporações transnacionais, pois, com as privatizações, com a força
do capital financeiro e com as exigências de órgãos internacionais como o FMI e o Banco
Mundial, os governos nacionais vão perdendo sua soberania e ficando cada vez mais dependentes das determinações do especulativo mercado global. “[...] como resultado da globalização
da economia, o espaço nacional é organizado para servir às grandes empresas hegemônicas e
paga por isso um preço, tornando-se fragmentado, incoerente, anárquico para todos os demais
atores.” (SANTOS E SILVEIRA, 2001, p. 258). Gonçalves (1992) também enfatiza a perda de
poder do Estado frente o capital financeiro, pois o Estado não tem conseguido acompanhar a
dinâmica do mercado financeiro, que está nas mãos de empresas privadas.
Desse modo, o discurso ideológico do neoliberalismo ganha impulso, em detrimento da
soberania e da autonomia dos Estados nacionais, que eram, até então, os atores sociais de
maior expressão, tanto no plano político como no econômico. “As corporações transnacionais
são atores ativos, enquanto os Estados nacionais são receptores passivos das mercadorias
produzidas por intermédio dos sistemas globais de produção.” (IANNI, 1996, p. 57).
A pressão das empresas transnacionais frente aos Estados nacionais é também destacada por Rattner (1994, p. 103/104):
A globalização em curso é comandada por e realiza-se no interesse das corporações e
conglomerados transnacionais, que exigem a privatização das empresas públicas, a
desregulação, a eliminação das tarifas alfandegárias e a liberação total dos fluxos de
83
CANDIOTTO, L. Z. P.
A RELEVÂNCIA DO LUGAR NA INTERPRETAÇÃO ...
comércio e investimentos, criando assim obstáculos à atuação do poder público, no esforço de planejar e executar estratégias alternativas de desenvolvimento, em escala nacional ou regional.
Cabe, contudo, ressaltar que essas corporações transnacionais geralmente têm suas
sedes nos países centrais, e atuam para a manutenção da hegemonia econômica, técnica e
política desses países de capitalismo avançado. Dreifuss (1996) esclarece que os agentes produtivos responsáveis diretamente pela globalização produtiva são em torno de 40.000 grupos
transnacionais oriundos de 38 países, sendo que, desses, 90% se localizam nos países centrais.
Santos (1997) ressalta que o poder das firmas é econômico, mas também político. Esse
domínio das firmas globais, afeta e reestrutura a divisão internacional do trabalho, porém
continua mantendo a dependência dos países periféricos em relação aos do centro do capitalismo. Benko (2002a) reforça a informação de que a divisão internacional do trabalho é determinada por companhias transnacionais que operam em vários países.
Para Santos (1996, p. 105), a divisão do trabalho é uma condicionante da produção do
espaço geográfico, pois ela “atribui, a cada movimento, um novo conteúdo e uma nova função
aos lugares.” É preciso, contudo, considerar que diferentes divisões do trabalho são sobrepostas num mesmo momento histórico, desencadeando uma relação intrínseca entre trabalho
vivo e trabalho morto. “O trabalho morto, na forma de meio ambiente construído, tem um
papel fundamental na repartição do trabalho vivo. Aliás, as feições naturais do território têm
ainda hoje, influência sobre a maneira como se dá a divisão do trabalho.” (p. 112).
Ao remeter-se à distribuição espacial das divisões do trabalho e a suas diferentes implicações nos lugares, Santos (1996) prefere usar o conceito de divisão territorial do trabalho
(DTT). Um aspecto diferencial da divisão territorial do trabalho é justamente a consideração
das formas herdadas, sejam elas provenientes da natureza ou da técnica. “O processo social
está sempre deixando heranças que acabam constituindo uma condição para novas etapas.”
(p. 113). A divisão social do trabalho não pode ser explicada, portanto, sem a explicação da
divisão territorial do trabalho, que depende, ela própria, das formas geográficas herdadas,
chamadas por Santos de rugosidades. A DTT “[...] cria uma hierarquia entre lugares e, segundo a sua distribuição espacial, redefine a capacidade de agir de pessoas, firmas e instituições.” (p. 108).
Na visão de Carlos (2002, p. 192),
O aprofundamento da divisão social e espacial do trabalho busca uma nova racionalidade,
uma lógica subjacente pelo emprego do saber e da técnica, da supremacia de um poder
político que tende a homogeneizar o espaço através do controle, da vigilância, apoiado
pela mídia que reproduz uma realidade vivida e imposta através da utopia e da tecnologia
que tende a programar e simular o futuro.
Após o resgate das posições de alguns autores, podemos afirmar que os elementos
fundamentais para efetivar a globalização estão ligados à transnacionalização de firmas (empresas, conglomerados e corporações); a sua política de pressão pela liberalização do mercado
global, inspirada pela ideologia do neoliberalismo; à lógica de especulação do capital financeiro; à perda de poder econômico e político dos Estados nacionais; e, principalmente, aos avanços da ciência e das técnicas na segunda metade do século XX, refletidos no fortalecimento e
na expansão das tecnologias. Por sua vez, as técnicas dinamizaram a circulação de pessoas,
mercadorias e informações, e modificaram a divisão internacional do trabalho, a dinâmica
econômica, as relações sociais, os valores culturais, e, conseqüentemente, a produção e o consumo do espaço geográfico.
Apesar da força da globalização na produção do espaço geográfico, já vimos que Santos
(1996) atribui ao lugar um papel central na interpretação das transformações espaciais, pois
entende que o lugar é o receptáculo de objetos e ações, que podem ser globais, nacionais,
regionais ou mesmo locais. Não obstante, apreender o lugar, permitiria ao geógrafo considerar os reflexos de ações globais e de outras escalas, pois o universal se manifesta concretamente no particular. Além disso, considerando que a razão local influencia a penetração da
razão global, o lugar tem um papel fundamental na cristalização de determinações exógenas,
pois são os atores endógenos, aqueles que irão receber, incorporar, resistir e até negar tais
determinações.
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A RELEVÂNCIA
DO LUGAR PARA APREENDER A TOT
ALIDADE
TOTALIDADE
Os lugares reproduzem o país e o mundo segundo uma ordem unitária que cria a diversidade, pois as determinações do todo se dão de forma diferente para cada lugar. “A cada
momento, cada lugar recebe determinados vetores e deixa de acolher muitos outros. É assim
que se forma e mantém a sua individualidade. O movimento do espaço é resultante deste
movimento dos lugares.” (SANTOS, 1996, p. 133). “A história concreta do nosso tempo repõe a
questão do lugar numa posição central, conforme, aliás, assinalado por diversos geógrafos.”
(p. 252).
O lugar é, pois, o resultado de ações multilaterais que se realizam em tempos desiguais
sobre cada um e em todos os pontos da superfície terrestre. Daí porque os fundamentos
de uma teoria que deseje explicar as localizações específicas deve levar em conta as
ações do presente e do passado, locais e extralocais. O lugar assegura assim a unidade
do contínuo e do descontínuo, o que a um tempo possibilita sua evolução e também lhe
assegura uma estrutura concreta inconfundível. [...] Cada lugar é, a cada momento, um
sistema espacial, seja qual for a “idade” dos seus elementos e a ordem em que se instalaram. Sendo total, o espaço é também pontual. (SANTOS, 1980, p. 211).
Além da ênfase ao lugar como conceito fundamental para a interpretação geográfica
concreta sobre o espaço, do ponto de vista metodológico, Santos busca, a partir do lugar, apreender a totalidade de determinado evento. “O desafio está em separar da realidade total um
campo particular, suscetível de mostrar-se autônomo, e que, ao mesmo tempo, permaneça
integrado nessa realidade total.” (SANTOS, 1996, p. 20). Esse campo particular seria o evento, que, apesar de se manifestar concretamente em determinado lugar, apresenta uma origem
global.
Na mesma linha de Santos (1996), Maria Laura Silveira (1994) aponta que, a partir
das transformações contemporâneas, o dado empírico deixa de ser um momento explicado a
priori pela totalidade, para ser o eixo da nova epistemologia. Nesse sentido, a realização de
uma possibilidade da totalidade é o evento, que se manifesta de forma concreta nos lugares,
ao passo que a totalidade concreta é a trama dos eventos.
Cada evento é uma totalidade parcial que, no processo de totalização, vai se fazendo o
todo. Mas o evento não tem autonomia de significação, ele retira seu significado da
trama. Portanto, a partir dessa concepção da realidade não é possível falar em fragmentação, senão ao nível da aparência empírica. (SILVEIRA, 1994, p. 203).
Os eventos são decorrentes das ações, e contribuem para o exercício da periodização,
ou seja, para empiricizar o tempo. A noção de evento pode representar uma contribuição da
Geografia à formulação de uma teoria social, pois “é através do evento que podemos rever a
constituição atual de cada lugar e a evolução conjunta dos diversos lugares, um resultado da
mudança paralela da sociedade e do espaço.” (SANTOS, 1996, p. 124).
Assim como Santos (1996), Silveira (1994) entende que os eventos passam a ser o
objeto objetos e ações que produzem o espaço geográfico. “O método não pretende conhecer
todos os aspectos da realidade, atingir um quadro total, mas o que se busca é entender o
evento como um momento do todo.” (p. 203). “O lugar não é um fragmento, é a própria totalidade em movimento que, através do evento, se afirma e se nega, modelando um subespaço
global.” (p. 204).
Em consonância com sua abordagem pautada na relação global-local, Santos (1996),
diferencia a escala da origem das variáveis envolvidas na produção do evento, geralmente
vinculada a interesses hegemônicos globais; da escala da realização do evento, correspondente às escalas inferiores, mas, sobretudo ao lugar. “No primeiro caso, temos a escala das forças
operantes e no segundo temos a área de ocorrência, a escala do fenômeno” (p. 152). “Uma
coisa é um evento dando-se num lugar e outra é o motor, a causa última desse evento” (p. 179).
Nesse sentido, fica claro que existem dois níveis de existência do evento, sendo o global
e o local, que são interdependentes. “Os eventos operam essa ligação entre os lugares e uma
história em movimento. A região e o lugar se definem como funcionalização do mundo e é por
eles que o mundo é percebido empiricamente” (SANTOS, 1996, p. 165).
Em virtude da interdependência entre a escala global de origem do evento, e a escala
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A RELEVÂNCIA DO LUGAR NA INTERPRETAÇÃO ...
local de realização deste, é insuficiente considerar, apenas o universal ou o particular. “Cada
evento é um fruto do Mundo e do lugar ao mesmo tempo” (SANTOS, 1996, p. 131). O destino
do evento “é realizar a totalidade na particularidade, viver plenamente e ativamente essa
particularidade e assim contribuir à permanência do todo deixando-o renascer com novas
características.” (p. 127).
Nesse sentido, identificar a escala de origem de um evento e procurar apreendê-lo no
lugar (escala de realização/materialização) permite ao geógrafo considerar a influência de
fenômenos de outras escalas espaciais nesse lugar. Por outro lado, ao mesmo tempo em que o
evento se manifesta em um lugar, as possibilidades deste são, portanto, limitadas conforme a
dinâmica socioespacial local, ou, como diria Santos (1996), pela ordem local, fazendo com que
os fenômenos universais se cristalizem de formas diferentes conforme o lugar que os recebe.
Silveira (1994) chama a atenção para ir além da descrição, para ir além da materialidade
do lugar, procurando entender o significado deste, pois, como indica Santos (1996), o espaço
não é apenas constituído por objetos, mas também por ações.
Santos (1980 e 1996), Silveira (1994), Santos e Silveira (2001) e Castro (1995) colocam
que é no lugar que podemos apreender as diferenças entre a aplicação das técnicas, hoje
globalizadas. Para Santos (1996, p. 70), “os eventos, as ações, não se geografizam indiferentemente”.
Carlos também se apóia no lugar como uma concreção analítica do espaço, que permite
considerar a relação com outras escalas geográficas, com destaque para a global.
O lugar se produz na articulação contraditória entre o mundial que se anuncia e a
especificidade histórica do particular. [...] Enquanto parcela do espaço, enquanto construção social, o lugar abre perspectiva para se pensar o viver e o habitar, o uso e o
consumo, os processos de apropriação do espaço. Ao mesmo tempo, posto que preenchido
por múltiplas coações, expõe as pressões que se exercem em todos os níveis. (CARLOS,
1994, p. 303).
Saquet (2003), ao relacionar tempo, espaço e território, não deixa de atribuir relevância ao lugar como objeto para estudos empíricos em Geografia, pois entende o lugar como
receptáculo de dinâmicas gerais, que irão se materializar de formas particulares.
O lugar está intimamente ligado ao viver e ao estar no espaço, aos laços do homem com
seu habitat. O lugar é a dimensão do espaço onde o universal manifesta-se, singularizase, é abstrato, mas também é concreto. [...] É resultado e condição dos processos sociais,
dos diferentes tempos sob as articulações econômicas, políticas e culturais da totalidade
e, por essa razão, é um território e um espaço onde se materializam diferentes modos de
vida e múltiplas territorialidades e temporalidades. (p. 25).
Segundo Saquet (2003), “o espaço é local e, ao mesmo tempo, através do produto do
trabalho e das redes de circulação e comunicação, é geral.” (p. 22). “Cada momento do espaço
geográfico possui especificidades subordinadas à dinâmica geral da sociedade, às peculiaridades de cada lugar e ao tempo histórico.” (p. 23). Para Luchiari (2000, p. 107), “o lugar é o
resultado de um feixe de relações que soma as particularidades (políticas, econômicas, sociais, culturais, ambientais) às demandas do global que o atravessa.”
Entendendo o lugar como receptor de ações e objetos, e como emissor de valores e
intencionalidades, Santos (1996) procura demonstrar a atuação de forças exógenas e endógenas
no lugar, destacando o papel da sociedade local na produção do espaço geográfico.
O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vem solicitações
e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das
paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas
manifestações da espontaneidade e da criatividade. (p. 258).
As abordagens que buscam inter-relacionar aspectos exógenos e endógenos são bastante peculiares para as pesquisas em Geografia5 , pois o espaço é decorrente de objetos e
ações, e que, apesar de estarem materializados em localidades específicas (no lugar), são
5
Machado (2000) busca estabelecer os nexos entre o local e o global, destacando determinações da escala nacional, através
da categoria “Formação Social e Econômica”. Swingedouw (1997) trabalha o local e o global numa perspectiva integrada,
de modo que propõe o termo “glocal”. Benko (2002a) também usa o termo glocalidade.
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influenciados por lógicas macroestruturais do modo de produção capitalista. Buscando diferenciar as ações dos atores exógenos ao lugar, das ações dos atores endógenos, Santos (1996 e
2002) utiliza os conceitos de verticalidades e horizontalidades.
VERTICALIDADES
E HORIZONT
ALIDADES
HORIZONTALIDADES
Para Milton Santos (1996), a racionalidade hegemônica global6 se apresenta como
uma ideologia comandada pelos atores hegemônicos do capitalismo, sobretudo as
macroempresas. Essa racionalidade é transmitida para a sociedade através das verticalidades,
que se espacializam no território como um conjunto de pontos formando um espaço de fluxos,
e que estão profundamente adequados às tarefas produtivas hegemônicas.
O sistema de produção que se serve das verticalidades é constituído por redes, estas a
serviço daqueles atores que, de fora da área, determinam as modalidades internas de ação
nos lugares, organizando o trabalho de todos os outros atores. “As decisões essenciais,
concernentes aos processos locais são estranhas ao lugar e obedecem a motivações distantes”,
tendo como conseqüência a alienação das pessoas presentes nos lugares. (SANTOS, 2000, p.
107).
Sob essa perspectiva, a dialética no/do território se afirma mediante um comando local
da parcela técnica da produção e um comando remoto (global) da parcela política da produção.
Assim, há um conflito que se agrava entre um espaço local e um espaço global, este último
com um conteúdo ideológico de origem distante, que chega em todos os lugares (SANTOS,
2002).
Acreditando que as redes estão a serviço dos atores hegemônicos do capital, sendo
territórios das formas e normas a serviços de alguns, Milton Santos (2002) usa o conceito de
espaço banal para contrapor ao conceito de redes, entendendo-o como o território de todos. “As
redes constituem uma parte do espaço e o espaço de alguns. Já o espaço banal7 é o espaço de
todos, todo o espaço.” (p. 16). Na visão de Santos (1996), as redes estão profundamente ligadas
ao poder, e “são os mais eficazes transmissores do processo de globalização a que assistimos”
(p. 212), pois “são globais, e transportam o universal ao local.” (p. 268). “Mediante as redes, há
uma criação paralela e eficaz da ordem e da desordem no território, já que as redes integram
e desintegram, destroem velhos recortes espaciais e criam outros.” (p. 222).
Segundo Saquet, uma rede é
[...] resultado não apenas da relação capital-trabalho e da circulação de mercadorias,
mas é fruto de relações sociais, objetiva e subjetivamente, na territorialidade cotidiana.
[...] A formação de redes de circulação e de comunicação contribui para o controle do e no
espaço; elas agem como elementos mediadores da re-produção do poder da classe
hegemônica e interligam o local, o singular, ao global, ao universal, interferindo diretamente na territorialidade cotidiana dos indivíduos e grupos sociais. (SAQUET, 2003, p.
26).
Assim como Milton Santos (1996, 2002) e Marcos Saquet (2003), Theotonio dos Santos
(2002) acredita que as redes servem aos interesses globais, de modo que, através do domínio
das redes, domina-se a ligação entre as várias partes do mundo. “Neste mundo de redes, o
local, o regional e o nacional aparecem simplesmente como um dos elementos destas redes,
que penetram por todos os lados estabelecendo as relações que, do ponto de vista global, lhe
interessam.” (p. 75).
Além da forte influência das redes, nas verticalidades predomina o tempo rápido/universal, e os interesses corporativos sobressaem-se sobre os interesses públicos.
As frações do território que constituem esse espaço de fluxos (verticalidades) constituem
o reino do tempo real, subordinando-se a um relógio universal, aferido pela temporalidade
6
Existe uma racionalidade sistêmica nas ações e nos objetos. (SANTOS, 1996).
7
Santos (2002) usa o conceito de espaço banal, proposto por Perroux, onde o espaço banal se constitui como oposição ao
espaço econômico. O espaço banal, entendido também como espaço total, caracteriza-se por sua extensão continuada, em
que os atores são considerados na sua contigüidade. Para Santos (2000), a tendência de difusão da racionalidade hegemônica
faz com que o espaço banal seja residual. O fortalecimento do espaço banal seria, porém, fundamental para a emergência
de mudanças profundas na organização da sociedade e do espaço.
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A RELEVÂNCIA DO LUGAR NA INTERPRETAÇÃO ...
globalizada das empresas hegemônicas presentes. (SANTOS, 2000, p.107).
Por serem produzidas em rede, as verticalidades não dependem de um território físico
específico para serem criadas. Contudo, as verticalidades8 somente se manifestam concretamente no espaço geográfico através de sua irradiação nos lugares. É no cotidiano dos lugares,
no espaço banal, que as verticalidades são incorporadas e até contrapostas pela sociedade
local. Assim, para Santos (2000, p. 113), a ”possibilidade de cidadania plena das pessoas depende de soluções a serem buscadas localmente.”
Como contraponto às verticalidades, Milton Santos utiliza o conceito de horizontalidades,
referindo-se à contigüidade dos lugares, ao espaço banal. Enquanto as verticalidades se caracterizam pela ação dos atores hegemônicos em redes, e por um tempo único (rápido), nas
horizontalidades todos os agentes são implicados, e os respectivos tempos, mais rápidos ou
mais vagarosos, são imbricados.
Nesse sentido, as horizontalidades correspondem ao contínuo. As verticalidades, por
sua vez, são eventos separados no espaço, que asseguram, por meio de normas rígidas, o
funcionamento global da sociedade e da economia. As verticalidades “aparecem como vetores
da modernidade mais moderna, transportadores de uma racionalidade superior, veículos do
discurso pragmático dos setores hegemônicos.” (1996, p. 105). As verticalidades geralmente
traduzem os interesses das macroempresas, juntamente com o apoio/subordinação dos Estados. Essas verticalidades formam um espaço de fluxos, que ordenam o espaço total. (SANTOS, 2002).
Ao contrário das verticalidades, as horizontalidades carregam diversas temporalidades,
e o meio geográfico tem um papel central. “As horizontalidades serão os domínios da contigüidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as
verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as
formas e processos sociais.” (SANTOS, 2002, p. 16). Ocorre, contudo, que as verticalidades
penetram nas horizontalidades, de modo que ambas são confrontadas no lugar.
Além das racionalidades típicas das verticalidades que as atravessam, as
horizontalidades admitem a presença de outras racionalidades, denominadas contraracionalidades. Santos (2000) acredita que as contra-racionalidades permitem a expansão da
consciência. ”As contra-racionalidades são formas de convivência e de regulação criadas a
partir do próprio território e que se mantêm nesse território a despeito da vontade de unificação e homogeneização, característica da racionalidade hegemônica típica das verticalidades.”
(p. 110).
Nesse sentido, as horizontalidades “[...] podem ser o lugar da finalidade imposta de
fora, de longe ou de cima” e/ou o da contrafinalidade, onde haveria um forte protagonismo da
sociedade local. (SANTOS, 1996, p. 105). Nas horizontalidades é possível, portanto, confrontar os valores globais hegemônicos (verticalidades) com aspectos de aceitação e/ou resistência
locais.
Com a presente democracia de Mercado, o território é suporte de redes que transportam
as verticalidades, isto é, regras e normas egoísticas e utilitárias (do ponto de vista dos
atores hegemônicos), enquanto as horizontalidades levam em conta a totalidade dos
atores e das ações. (SANTOS, 1996, p. 207).
A união vertical traz desordem às regiões, pois busca seu próprio benefício. Já a coesão
horizontal que se dá ao serviço do mercado tende a corroer a coesão horizontal que está a
serviço da sociedade. A eficácia dessa união vertical só sobrevive, porém, com normas rígidas,
adotadas por governos nacionais e seguidas através do sacrifício da nação, como no caso do
Brasil (SANTOS, 2002). Vale ressaltar a idéia de dois tipos de coesão horizontal conflitantes,
sendo uma a serviço do mercado, e outra a serviço da sociedade. Quanto menos atuante e
coesa for determinada sociedade, mais fácil será para o mercado predominar sobre estas
horizontalidades e suprimi-las.
No uso do território, as verticalidades vêm sendo mais fortes do que as horizontalidades.
A força das verticalidades se dá em função das normas determinadas por firmas transnacionais
8
Santos (1996) cita, como exemplos de verticalidades, o comércio internacional, as demandas da grande indústria, as
necessidades de abastecimento metropolitano, e as políticas públicas ditadas nas metrópoles nacionais e estrangeiras.
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e aceitas pelos governos nacionais, e das redes de circulação de informações, mercadorias e
pessoas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A complexidade e atualidade do pensamento de Milton Santos para a Geografia contemporânea demonstra a pertinência de sua abordagem para a apreensão do espaço geográfico por meio de um referencial teórico e metodológico que enriquece a Geografia como ciência.
Com o predomínio do meio técnico-científico-informacional, amplia-se a influência de
ações globais sobre os lugares, de modo que identificar e analisar um evento manifestado no
lugar obriga o geógrafo a investigar a influência de outras escalas geográficas no lugar da
pesquisa. Assim, o local carrega consigo o global, e a totalidade acaba se manifestando em
cada lugar, que por sua vez, ainda guarda algumas particularidades.
Nesse sentido, achamos pertinente trabalhar empiricamente com o lugar, isto é, com a
manifestação de um evento na escala local. No entanto, faz-se necessário procurar relacionar
as escalas espaciais do fenômeno pesquisado, buscando apreender as relações entre as diversas escalas espaciais. Como aponta o próprio Milton Santos (1996), todo o evento tem uma
escala de realização/materialização, que é local, e por sua vez, uma escala de origem que é
global. Portanto, para apreender os eventos manifestados nos lugares, é preciso também buscar analisar os objetos e as ações globais, nacionais e/ou regionais, que desencadearam a
origem do evento. É a partir das ações e intencionalidades que conduzem à origem do evento
como verticalidade, que diversos eventos locais irão se materializar no espaço. Todavia, as
implicações de cada evento local dependem da dinâmica socioespacial de cada lugar onde o
evento se instala.
Considerando a importância da relação global-local para o estudo do espaço geográfico,
Silveira (informação verbal), ressalta que como os objetos e as ações se dão em escalas diversas, é preciso considerá-las de forma integrada. Conseqüentemente, seria plausível ao geógrafo,
a partir da escolha de um evento manifestado na escala local, verificar a escala de origem
desse evento, e como se dá essa relação entre as determinações exógenas globais
(verticalidades), com as ações desencadeadas pelos agentes endógenos no espaço banal
(horizontalidades), considerando o contexto econômico, político, ambiental e sociocultural local.
Desta forma, seguindo as ponderações de Milton Santos, a apreensão do lugar como
objeto de pesquisas empíricas, permite estabelecer relações com o global e outras escalas
espaciais, sem cairmos em análises dualistas, que, ou entendem que tudo é macroestrutural
e determinado por uma lógica exógena global, ou atribuem demasiada relevância ao lugar
como espaço isolado, e restrito às dinâmicas endógenas.
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EM MARX E A
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MORADIA URBANA
EM ENGELS
THE RENT OF LAND IN
MARX AND THE
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DWELLING IN ENGELS
LA RENTE DE LA
TERRE CHEZ MARX ET
LA QUESTION DE
L’HABIT
ATION URBAINE
HABITA
CHEZ ENGELS
MARCIO RUFINO
SIL
VA
ILV
UNIVERSIDADE DE SÃO
PAULO - DG/FFLCH/USP
[email protected]
Doutorando em Geografia
Urbana
Terra Livre
Resumo: O estudo da renda da terra em Marx conduz a alguns
questionamentos importantes no que diz respeito à análise da renda
fundiária no meio urbano. Neste texto, o paralelo estabelecido entre
o pensamento marxiano, proposto em duas de suas obras – O capital
e Manuscritos econômico-filosóficos – e o texto de Engels –
Contribuição ao problema da habitação – visa contribuir com o
pensamento geográfico acerca do urbano. A renda da terra, ao lado do
salário e lucro, dá origem à fórmula trinitária aventada por Marx no
livro III d’O Capital: as três formas do capital são inseparáveis e,
juntas, são a espinha dorsal da reprodução da sociedade capitalista
como um todo. Em relação ao solo urbano, o texto de Engels conduz
aos desdobramentos do modo de produção capitalista na questão da
moradia e na concepção geral do urbano dentro desse modo de
produção.
Palavras-chave: renda da terra, moradia urbana, propriedade privada
da terra, segregação urbana, modo de produção capitalista.
Abstract: The study of the rent of land conducts us into some important
questions which concerns in the analysis of the rent of land in urban.
In this paper, the confrontation established between the marxian
thought, proposed in two of his works – The capital and Economic
and philosophical manuscripts of 1844 – and the Engels’ text – The
housing question – aims to contribute with the geographic thought
about the urban. The rent of land, beside the salary and profit,
originates the trinitarian formule suggested by Marx in the part III
of The capital: the three forms of capital are inseparable and they are
together the dorsal column in the reproduction of the capitalist society
as a whole. In respect to the urban soil, the text of Engels conduct us
to the unfolding of the way of capitalist production into the housing
question and it also conducts to the general conception of urban inside
this way of production.
Key words: rent of land, urban dwelling, private property of land,
urban segregation, way of capitalist production.
Résumé: L’étude de la rente de la terre chez Marx nous conduit à
quelques questionnements importants à ce qui concerne à l’analyse
de la rente de la terre au milleu urbain. Dans ce texte, le parallèle
établit entre la pensée marxiènne, qui est proposé en deux de ses
oeuvres – Le capital et Manuscrits économico-philosophiques – et le
texte d’Engels – Contribution au problème de l’habitation – vise
contribuer avec la penseé geographique concernant à l’urbain. La
rente de la terre, à côté du salaire et du profit, origine la formule
trinitaire annoncée par Marx dans le livre III de Le capital: les trois
formes du capital sont inséparables et elles sont ensembles l’épine
dorsale de la réproduction de la societé capitaliste en général. Par
rapport au sol urbain, le texte d’Engels nous conduit aux
dédoublements de la forme de production capitaliste dans la question
de l’habitation urbaine et il conduit aussi à la conception général de
l’urbain dans cette forme de production.
Mots-clés: rente de la terre, habitation urbaine, proprieté privée de
la terre, ségregation urbaine, forme de production capitaliste.
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 93-101
Jul-Dez/2008
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SILVA, M. R.
A RENDA DA TERRA EM MARX E...
INTRODUÇÃO
A análise da renda da terra tem uma considerável importância no que diz respeito à
compreensão dos processos sócio-espaciais como um todo. Tanto no meio rural quanto no meio
urbano o pressuposto da existência da propriedade privada da terra coloca, nos termos do
modo de produção capitalista, a produção do espaço e, também, de sua raridade. Ocorre, portanto, uma evidente necessidade de encontrarmos os nexos possíveis entre esses processos,
tal como sua inerente complexidade.
Neste texto, pretendemos encontrar alguns caminhos possíveis ao entendimento da
questão da moradia urbana, tendo um aporte em Karl Marx – O capital ((MARX, 1972) e
Manuscritos econômico-filosóficos (2004) – e Friedrich Engels – Contribuição ao problema da
habitação (ENGELS, 1976). Neste momento, objetivamos encontrar um amparo na relação
existente entre a renda da terra, na perspectiva da análise marxiana, e a questão da moradia
urbana, em Engels, assim como a produção da cidade e do urbano nos termos da economia
política. Ao final, ensaiamos uma tentativa de transposição do exposto pelos autores aos dias
atuais no caso das metrópoles brasileiras, de forma a ilustrar a potência crítica do pensamento de ambos os autores na elucidação dos inúmeros processos intrínsecos à produção e reprodução do espaço urbano no seio da economia capitalista.
MARX E A RENDA DA TERRA
A renda da terra, tal como analisada em Marx, une-se à questão do solo urbano e à
localização e qualidade das moradias urbanas, em Engels. Aqui, não objetivamos um
aprofundamento da discussão a respeito do pensamento teórico de Marx e Engels; visamos,
contudo, colocar algumas questões que, ao serem postas em conjunto, potencializam a compreensão das múltiplas facetas da economia política no meio urbano, por intermédio justamente da crítica a essa economia política.
Em relação à análise marxiana da Renda da Terra, é necessário salientar que o autor
a coloca como uma das três formas do capital, tal como está expresso a seguir:
“Capital-lucro (lucro do empresário mais juros); terra-renda do solo; trabalho-salário:
está aqui a fórmula trinitária que engloba todos os segredos do processo social de produção. […] Capital-juros, propriedade territorial, propriedade privada sobre o solo e, concretamente, propriedade privada moderna, ajustada ao regime capitalista de produçãorenda; trabalho assalariado-salário.” (MARX, 1972, pp. 754-755, grifo e tradução nossos)
Dessa forma, quando Marx indica essas faces enquanto sociais, é possível perceber
quão materiais essas formas se apresentam, de acordo com a sua suposta “fórmula trinitária”.
Tudo é o capital, tudo está na base do modo de produção capitalista: terra (renda da terra),
capital (lucro e juros) e trabalho (a força de trabalho, a que produz a mais-valia). Tal tríade
marxiana aponta para a unidade, pois a união dessas categorias demonstra uma totalidade,
importante na reprodução dessa economia; a partir desse momento, encontramos também
uma alusão ao papel do espaço nessa reprodução: a terra como fonte de renda, ela mesma
enquanto materialidade a serviço do processo social de produção. A terra é a base, a précondição essencial de qualquer modo de produção; dentro do capitalismo, ela é ao mesmo
tempo vendável (uma mercadoria como as demais no mundo das mercadorias) e a renda
auferida pela terra é também a pré-condição essencial para a realização do capital enquanto
totalidade.
Em relação à renda da terra, especificamente, é preciso colocá-la nos mesmos termos
marxianos da análise: a renda da terra se constitui enquanto a mais pura forma de remuneração, pois é dada pela simples propriedade, pelo monopólio, pelo exclusivo do proprietário da
terra. Esse exclusivo confere um grande poder ao proprietário fundiário, assim como
potencializa a instituição da propriedade privada. Esse monopólio é remunerado em si, sem
ter havido, necessariamente, a criação de valor pela extração da mais-valia gerada pelo trabalho alheio.
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Terra Livre - n. 31 (2): 93-101, 2008
“A propriedade territorial pressupõe o monopólio de certas pessoas, que lhes dá direito a
dispor sobre determinadas porções do planeta como esferas privativas de sua vontade
privada, com exclusão de todos os demais.” (1972, p. 574, tradução nossa)
Este exclusivo sobre a terra, sua demarcação enquanto uma esfera privativa, produz
um descolamento entre posse e a propriedade, e isto já fora sinalizado por Marx em outro
momento. Nos Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004), a questão da renda da terra
é posta num frutífero diálogo com os economistas políticos, sobretudo Adam Smith. Nesse
diálogo, outras preposições são aventadas, dentro dos termos da inversão posta no modo de
produção capitalista: segundo Marx, as proposições de Smith “[...] demonstram, [...] com toda
a clareza, a inversão dos conceitos na economia nacional, que transforma a fertilidade da
terra num atributo do possuidor fundiário” (2004, p. 64). Eis a potência da propriedade privada da terra, que confere ao proprietário todo poder sobre a produção social inscrita na economia capitalista. Ao tratar, mais adiante, da relação feudal do senhor com a terra – que aparece como uma relação aristocrática, baronial, condal com a terra (2004, p. 74) – e compará-la
com a relação capitalista com a terra, o autor discorre que,
“É necessário que esta aparência seja supra-sumida, que a propriedade fundiária, a raiz
da propriedade privada, seja completamente arrastada para dentro do movimento da
propriedade privada e se torne mercadoria; que a dominação do proprietário apareça
como a pura dominação da propriedade privada, do capital, dissociado de toda coloração
política; que a relação entre proprietário e trabalhador se reduza à relação nacionaleconômica de explorador e explorado; que toda a relação pessoal do proprietário com sua
propriedade termine, e esta se torne, ela mesma, apenas riqueza material coisal; que no
lugar do casamento de honra com a terra se instale o casamento por interesse, e a terra,
tal como o homem, baixe do mesmo modo a valor de regateio. [...] Finalmente, é necessário que [...] a propriedade fundiária mostre, sob a figura do capital, a sua dominação
tanto sobre a classe trabalhadora, quanto sobre os próprios proprietários, na medida em
que as leis do movimento do capital os arruínem ou promovam.” (2004, p. 75, grifo do
autor)
Este é o domínio de uma outra relação social, de uma relação impessoal, abstrata,
distante: a propriedade privada da terra, na representação social geral, torna-se uma instituição de fato. Ela expressa toda a questão envolvida no cerne da reprodução capitalista,
ratifica os termos da alienação e das relações contratuais abstratas. Quando a terra está sob
o domínio do capital privado, toda a sociedade está dessa forma submetida. Neste momento,
no interior do pensamento marxiano, o capital tem todas as condições estabelecidas de total
domínio sobre as relações sociais: ele é o grande sujeito de todo este processo.
Em relação ao solo urbano, quais seriam os significados desta espécie de “criação” de
valor por intermédio da renda da terra? É importante salientar que Marx (1972), nos capítulos d’O capital no qual se refere exclusivamente à renda da terra (seção VI do Livro III, capítulos 37 a 47), teve seu principal aporte na análise da renda da terra agrícola; neste ínterim,
Marx parece não ter tido uma grande preocupação em desenvolver sua análise a respeito da
renda da terra no meio especificamente urbano. Embora Marx não tenha colocado uma cisão
entre o rural e o urbano em seu texto, tal como a propomos aqui, reiteramos essa separação,
de forma a construirmos a nossa arquitetura analítica em relação ao solo urbano: trata-se de
um fim metodológico para análise. Contudo, Marx lança alguns importantes exemplos em
relação ao urbano, tal como está a seguir:
“A renda urbana aumenta necessariamente, não somente com o crescimento da população, que conduz implícita a necessidade crescente de moradia, mas também com o desenvolvimento do capital fixo, que se incorpora à terra ou finca raízes nela, ou descansa
sobre ela, como ocorre com todos os edifícios industriais, com as ferrovias, os armazéns,
os edifícios fabris etc.” (1972, pp. 717-718, tradução nossa)
A incorporação do capital fixo ao solo é uma importante preocupação em Marx, já que
entende a renda da terra enquanto uma forma do capital que, além de ter seu caráter autoremunerável (remuneração pela propriedade pura), tem seu quantum de renda (o preço da
terra, ou o “valor” a ser restituído) variável de acordo com as leis gerais do mercado (taxa de
lucro e de juros). Assim, a terra incorpora a situação geral de desenvolvimento das forças
produtivas e constitui-se, ao mesmo tempo, a base da reprodução social total. E é neste ponto
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SILVA, M. R.
A RENDA DA TERRA EM MARX E...
que aparece a importância dos atributos do urbano para a reprodução do capital. O capital
fixo é correspondente a todas as formas de construção de infra-estruturas dentro da cidade,
voltadas às funções urbanas. Quando nos reportamos à atualidade, por exemplo, verificamos
que a cada novo “melhoramento” urbano, a cada avenida construída, a cada implantação de
um sistema de transportes etc., uma nova situação de “valorização” espacial está em jogo.
Resta elucidar as raízes dessa “valorização” e as conseqüências práticas de tudo isso na vida
social urbana como um todo. Como essa “valorização” afeta a vida de todos os habitantes da
cidade?
Em relação ao urbano, tal como ocorre no meio rural, melhoramentos de qualquer
sorte incorporados pelo solo são a base da regulação do preço da terra. O específico do urbano
seria o uso do solo mais voltado para a base física enquanto tal, o chão da reprodução social
total; no urbano, o solo não se apresenta enquanto um instrumento direto de trabalho, da
forma como ocorre numa produção agrícola ou numa área de mineração, por exemplo; estes
últimos são os exemplos mais utilizados por Marx em sua análise quantitativa e qualitativa
da renda da terra e seus desdobramentos no processo de reprodução social total nos termos do
modo de produção capitalista. Além disso, ocorre a existência de uma imensa densidade espacial no meio urbano: fluxos de pessoas e informações que pontuam o espaço intra-urbano de
forma mais intensa pressupõem uma organização espacial muito diferente da organização
espacial do meio agrário; no entanto, são costumeiramente apontadas para o meio agrário
significativas transformações no que diz respeito aos ritmos espaço-temporais da produção
agrícola, basta observar a evolução do meio agrário brasileiro após o paulatino processo de
industrialização durante o século XX, bem como a configuração do espaço agrário brasileiro
neste início do século XXI. Dentro da sociedade urbano-industrial, a cidade é uma clara amostra da maneira como esta sociedade produz e organiza sua produção e reprodução; o espaço
urbano é a expressão dessa forma de organização social, sobremaneira invadida pelos atributos da economia política em sua produção e reprodução física.
Marx coloca, a partir desse momento, a questão da habitação, a moradia no espaço
urbano enquanto uma problemática importante. O autor aponta para a situação da moradia
urbana mesclada à situação geral da cidade de Londres, em meados do século XIX:
A demanda de terrenos para construir faz com que aumente o valor da terra, considerada como espaço e como base, acrescentando ao mesmo tempo a demanda de elementos
procedentes da terra e empregados como materiais de construção. […] nas cidades de
rápido desenvolvimento, especialmente naquelas em que, como em Londres, a construção se explora por métodos fabris, não são as casas o verdadeiro objetivo fundamental da
especulação urbana. (1972, p. 718, tradução nossa).
Na Londres de 1850, cresce cada vez mais a demanda de terrenos no solo urbano, tanto
para instalação de indústrias e casas comerciais quanto para a moradia das classes trabalhadoras. O desenvolvimento da indústria implica em uma necessidade cada vez maior de mãode-obra, uma população que necessita estar próximo da indústria, portanto, na cidade. Habitar a cidade implica na evidente necessidade de maior oferta de meios para a moradia urbana, cuja necessidade quase nunca é sequer parcialmente suprida.
A mudança social e a mobilidade espacial compõem uma nova teia de relações sociais:
o modo de produção capitalista está se urbanizando, está ampliando o urbano para uma parcela cada vez maior da humanidade. A partir desse momento, entra em questão o urbano,
enquanto tal, nos termos da reprodução da sociedade capitalista.
A QUESTÃO DA MORADIA URBANA EM ENGELS
É nesse ponto que Friedrich Engels (1976), no texto intitulado Contribuição ao problema da habitação, faz um frutífero diálogo, num primeiro momento, com um autor supostamente proudhoniano, que não havia sequer assinado o artigo ao qual Engels dirige suas violentas críticas. Este autor seria, segundo Engels, adepto de Pierre-Joseph Proudhon (18091865), com quem Marx teve sérias divergências em relação ao que este autor produziu. Engels
se refere a Proudhon, inclusive, como um adepto do “socialismo pequeno-burguês”. Essa controvérsia entre Marx e Proudhon está descrita logo a seguir:
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Terra Livre - n. 31 (2): 93-101, 2008
O tema da obra então escrita por Marx, Miséria da Filosofia (de 1847), deve ser tomado
a sério na dupla direção encoberta no título, só compreensível a partir do seu caráter de
obra de combate político. [...] em sentido muito mais direto e acessível, Marx dirigia-se
contra a obra de Proudhon muito bem acolhida na França sob o título inverso ao de sua
própria obra, Filosofia da Miséria. Segundo Marx, os socialistas utópicos teriam querido
projetar uma nova sociedade mais justa e equilibrada, sem destruir os fundamentos da
velha, isto é, seguindo sua análise mais recente, sem atacar o tema do trabalho alienado.
Por isso, opunha-se-lhes com todo seu cinismo, atacando neles, sobretudo, a ingenuidade política. (FLICKINGER, 1986, p. 88, grifos do autor).
Essa contestação de Engels e Marx contra as idéias de Proudhon tem origem nos idos
de 1844, quando ocorre o primeiro encontro entre Proudhon e Marx. O primeiro já era um
pensador reconhecido na França, enquanto o segundo ainda estava buscando um aporte teórico para construção de sua própria estrutura crítica. Portanto, “a crítica da Philosofie de la
Misère marcou o fim da preocupação marxiana com um pensador a quem tinha valorizado
muito nos anos anteriores.” (1986, p. 178).
O texto de Engels (1976) está dividido em quatro partes: a) Prefácio à segunda edição,
publicada em 1887, tendo sido a primeira edição publicada em 1872; b) Como Proudhon resolve o problema da habitação, onde dialoga com uma série de artigos publicados por um autor
anônimo, supostamente seguidor dos ideais de Proudhon, de forma intensamente crítica; c)
Como a burguesia resolve o problema da habitação, onde disserta sobre a resolução burguesa
para a questão da habitação; e, finalmente d) Suplemento sobre Proudhon e o problema da
habitação, onde dialoga mais uma vez (ainda de forma muito crítica) com o autor dos artigos,
que desta vez se identificara como A. Mülberger, no momento em que respondera às criticas
de Engels em outro artigo. Todos esses artigos, tanto de Engels quanto de Mülberger, foram
publicados no jornal Volkstaad, entre 1872 e 1873.
Em todo o corpo de seu texto, Engels apresenta a “questão da habitação” não enquanto
algo conjuntural, que poderia ser resolvido com uma solução também conjuntural: era a estrutura da sociedade que deveria ser posta em questão. Era posta em dúvida até mesmo a
validade do termo “crise da moradia”: a crise era da sociedade capitalista como um todo,
insuperável dentro deste modo de produção vigente.
Nesta sociedade, a crise de moradia não é de modo algum um fenômeno casual; é uma
instituição necessária, onde não poderá desaparecer, com suas repercussões sobre a saúde, etc., senão quando toda a ordem social que a faz nascer seja transformada pela raiz.
(1976, p. 71).
Portanto, a querela entre uma vertente reformista e uma estritamente revolucionária
se coloca diante da perspectiva da questão da moradia no urbano. Faz-se necessário ir além
da contingência da situação, da aparência do fato, e ir em direção à estrutura material e
social, ao que move toda a reprodução social. Na opinião do autor proudhoniano, a questão da
moradia no urbano seria resolvida no momento em que a classe trabalhadora, ao invés de
pagar mensalmente o aluguel, pagasse pelo título de propriedade definitiva da casa. Os trabalhadores seriam, portanto, proprietários de sua moradia.
A solução proudhoniana para o problema da habitação, na medida em que encerra um
conteúdo racional e aplicável na prática, já está sendo realizada hoje em dia. E, em
verdade, não surge do ‘seio de uma idéia revolucionária’, mas da própria grande burguesia. (1976, pp. 60-61)
Engels se apóia na idéia marxiana que a terra, tal como outras mercadorias, possui um
preço; no entanto, não tem valor, pois não advém de trabalho humano. Entretanto, a instituição da propriedade privada da terra implica no funcionamento dessa relação que a sociedade
capitalista constrói com o solo, e que, neste momento, anseia pela generalização da propriedade privada da terra; essa generalização implica no não-questionamento dessa importante
instituição capitalista, mesmo dentro de uma solução aparentemente revolucionária.
Existem outros problemas nessa concepção apontada como proudhoniana por Engels.
Em relação à moradia urbana, o aluguel (forma predominante de moradia naqueles tempos
em Londres) não contempla apenas o terreno, mas também a casa, sua área construída. Assim, o reembolso advindo de uma venda está pressuposto no aluguel como um valor de uso
vendido por partes, tal como se demonstra a seguir:
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SILVA, M. R.
A RENDA DA TERRA EM MARX E...
Para as mercadorias cujo desgaste exige muito tempo, surge a possibilidade de vender o
seu valor de uso por partes, cada vez por um período determinado ou, em outras palavras, de alugá-la. A venda por partes, desse modo, realiza pouco a pouco o valor de troca;
essa renúncia ao reembolso imediato do capital adiantado e do lucro correspondente,
importa para o vendedor numa indenização pelo aumento do preço, pelo juro cujo nível é
determinado pelas leis da economia política e de nenhum modo arbitrariamente. Ao fim
de cem anos, a casa foi consumida, desgastada, tornou-se inabitável. (1976, p. 101, grifo
do autor)
A casa, assim como qualquer outra mercadoria, tem uma obsolescência, tem um tempo
determinado para uso, antes de depreciar-se e mudar sua qualidade: um amontoado de materiais em lugar de uma casa habitável. É exatamente aqui onde reside a crítica de Engels ao
autor proudhoniano: é um grande engano acreditar que a questão da habitação se resolve com
a propriedade da terra conferida ao trabalhador, onde o pagamento das “prestações” da casa
seria mais útil e menos dispendioso ao trabalhador que o pagamento do aluguel. Mesmo
porque o aluguel, que poderia cobrir “cinco ou dez vezes mais o custo da produção da casa”, na
verdade está cobrindo, ao largo de um grande período de existência da casa, o aumento da
renda do solo e os custos com a própria manutenção da casa. Tanto que, ao final do processo,
nem o inquilino e nem o proprietário possuem mais a casa, o que resta é o terreno e os materiais que compunham a casa. (1976, p. 102)
Aqui, temos mais uma questão importante a ser colocada, pois dentro de uma economia capitalista, onde a renda da terra contém um ingrediente no tocante à reprodução dessa
economia – bem como no aumento do montante de capital sem a produção de valor, apenas
com a remuneração pura da propriedade – ocorre a existência da especulação. Em relação à
terra urbana, remete-se à especulação imobiliária, já sinalizada por Marx na Londres da
década de 1850. Essa especulação tem sua raiz fincada na propriedade privada da terra, esta
que vai auferir a renda da terra ao proprietário, o detentor desta porção do planeta enquanto
sua instância privativa.
Esta renda da terra assim capitalizada é a que constitui o preço de compra ou o valor da
terra, categoria prima facie irracional, tão irracional como a do preço do trabalho, toda
vez que a terra não é produto do trabalho nem pode, portanto, ter um valor. Por outra
parte, por trás desta forma irracional se esconde uma relação real de produção. [...] Deve
ter-se em conta que o preço de coisas que não têm um valor em si, ou seja, que não são
produto do trabalho, como acontece com a terra, ou que, pelo menos, no podem se reproduzir mediante o trabalho, como ocorre com as antigüidades, as obras de arte de determinados mestres etc., podem obedecer a combinações muito fortuitas. Para vender una
coisa, basta que esta coisa seja monopolizável e alienável” (MARX, 1972, pp. 581 e 590,
grifo e tradução nossos)
A terra, o solo é a base física da existência social humana. E quais os significados disso
em relação à renda da terra? O que significa essa apropriação privada de uma parte do planeta? Como já fora assinalado anteriormente, com a renda da terra aumenta-se o poder,
potencializa-se a instituição da propriedade privada, bem como potencializa a obtenção do
lucro e dos juros da produção social total, que se assenta sobre o solo.
Agora, partimos para outra sorte de considerações a respeito da renda da terra e a
questão da moradia no urbano: não é possível dissociarmos ambas as questões da produção do
urbano dentro do modo de produção capitalista. A produção total do urbano inclui o processo
de exploração potencializado por uma segregação sócio-espacial, visível nos termos da produção alienada. A alienação, coluna vertebral de todo esse processo, se coloca espacialmente na
separação entre o local da produção e local da moradia, além de imprimir uma clara separação e fragmentação da fisionomia sócio-econômica da cidade. Engels, inclusive, qualifica a
especulação imobiliária tal como um engodo comercial, ou seja, uma espécie de fraude necessária para obtenção de uma fatia adicional da taxa média de lucros. No caso do espaço urbano, o engodo acontece em relação a algumas áreas específicas, como o centro da cidade, por
exemplo.
“A extensão das grandes cidades modernas dá aos terrenos, sobretudo nos bairros do
centro, um valor artificial, às vezes desmesuradamente elevado; os edifícios construídos
sobre esses terrenos, longe de aumentar o seu valor, ao contrário o diminuem, pois já
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Terra Livre - n. 31 (2): 93-101, 2008
não correspondem às novas condições, e são derrubados para serem substituídos por
novos edifícios.” (ENGELS, 1976. p. 51).
Conclui-se, mais uma vez, que o valor do imóvel não é o determinante no preço da
terra: é a localização, no contexto urbano, que influencia o quantum da renda da terra, o
poder de apropriação do dono da terra da fatia da totalidade da produção social. E é justamente a localização que influencia, em outro patamar, o processo de produção e reprodução da
cidade. Deduz-se dessa passagem que não é de nada custoso à classe burguesa, aquela que
controla o espaço por possuir este poder, construir e demolir edificações em áreas dadas como
“valorizadas”, já que a casa já não se realiza mais enquanto valor, por ser inutilizável ou não
condizente, em sua estrutura, ao uso que terá em um momento posterior. O “valor” do terreno
implica uma estrutura que suporte as atividades decorrentes desse valor, que as construções
sejam condizentes à “valorização” do espaço. Decorrem deste ponto todas as requalificações e
remodelamentos urbanos dentro da concepção burguesa, que nada mais fazem do que reproduzir a “crise da moradia” em outros patamares e outros lugares...
O “problema da habitação”, impossível, portanto, de ser “equacionado” dentro do capitalismo é apenas mitigado, e ainda muito parcialmente, pela classe burguesa. Engels coloca o
cerne da solução burguesa para a questão da habitação:
Em realidade, a burguesia não conhece senão um método para resolver à sua maneira o
problema da habitação, isto é, para resolvê-lo de tal sorte que a solução crie sempre de
novo o problema. Esse método chama-se Haussmann. [...] O resultado é o mesmo em
toda a parte, qualquer que seja o motivo invocado: as travessas e becos sem saída desaparecem e a burguesia se glorifica com um resultado tão grandioso; mas... travessas e
becos sem saída aparecem em outra parte, e com enorme freqüência em lugares muito
próximos. [...] Todos esses focos de epidemia [habitações precárias da classe operária],
esses buracos e sótãos imundos, nos quais o modo de produção capitalista encerra nossos
operários, noite após noite, não são liquidados, mas somente... transferidos. (1976, pp.
93 e 95, grifos do autor)
O “método Haussmann” se refere ao Barão de Haussmann (Georges-Eugène
Haussmann, 1809-1891), administrador da cidade de Paris na segunda metade do século
XIX. Ele foi responsável por uma completa reestruturação urbana nessa cidade: abriu inúmeras e largas avenidas, fazendo derrubar centenas de casas em localidades operárias no centro
de Paris. Segundo Engels, “[...] sua finalidade, ao lado da de caráter estratégico visando tornar mais difícil a luta de barricadas, era formar um proletariado da construção especificamente bonapartista [refere-se a Napoleão III] e dependente do governo, assim como transformar Paris numa cidade de luxo.” (ENGELS, 1976, p. 93). Trata-se, portanto, nos termos assinalados por Henri Lefebvre, de uma estratégia de classe, de produção da cidade enquanto um
monumento vivo, mas morto para a grande maioria dos seus habitantes. É o espaço da opressão, espaço amnésico, espaço sem sujeitos históricos, onde não há espaço senão para
monumentalidade burguesa (LEFEBVRE, 1991, pp. 15-17).
O mais interessante em toda essa concepção burguesa do urbano é constatar que o
“método” de Haussmann torna-se um paradigma para o urbanismo em todo o mundo, tendo
influências também, por exemplo, no processo de remodelação urbana do centro da cidade do
Rio de Janeiro, no início do século XX, à época do prefeito Pereira Passos, assim como nas
inúmeras intervenções urbanísticas no centro da cidade São Paulo, no mesmo período; dentre
essas intervenções, destacam-se as inúmeras remodelações do Vale do Anhangabaú e Parque
Dom Pedro II, assim como o “Plano de Avenidas” do prefeito Prestes Maia, idealizado e executado entre as décadas de 1930 e 1940. Esses dois planos tiveram causas e conseqüências
muito semelhantes ao ocorrido na Paris de Haussmann, embora com suas especificidades
espaço-temporais locais.
A classe burguesa constrói e reconstrói a cidade à sua maneira, ora como campo estratégico de luta de classes direta (a luta de barricadas, mencionada por Engels), ora como lócus
de valorização e reprodução do capital, via especulação imobiliária. Dentro desta economia,
não há uma solução para a questão da moradia, ocorre apenas uma transferência desta “questão” para outras localidades, longe demais dos olhos das classes dominantes. Além disso, no
plano da vida cotidiana, o qualitativo se transforma, a cidade é outra, a apropriação, concepção e percepção do espaço pelos habitantes da cidade se modificam gradativamente. A cidade
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A RENDA DA TERRA EM MARX E...
se torna, antes de tudo, o local de valorização do capital, muito mais que o lugar do encontro,
do fluxo da vida. É nestes termos, da alienação, da separação, do estranhamento, que se
coloca a grande cisão do mundo contemporâneo, já muito bem percebida por Engels na análise da Londres do século XIX.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: POSSÍVEIS PARALELOS COM A ATUALIDADE
Como forma de conclusão, resta fazer algumas considerações a respeito do que fora
tratado por Marx e Engels nestes dois textos, fazendo um pequeno paralelo à situação das
cidades do mundo contemporâneo. Em relação às cidades do chamado terceiro mundo, na
atualidade, encontramos também uma “questão da moradia” a ser “equacionada”; e o mais
interessante é observar que a “solução” para a questão da moradia se apresenta praticamente
nos mesmos moldes que Engels descreve a solução “proudhoniana” (ou pequeno-burguesa) e a
solução “burguesa”. Ambas visam estender a propriedade privada da terra a todos os carentes
de moradia; não se põe em questão, em momento algum, a própria existência da propriedade
privada da terra.
Em relação ao Brasil, basta observar a quantidade e a qualidade de políticas públicas
promovidas pelo Estado para o “equacionamento do déficit habitacional”. Desde o Governo
Vargas, pelo menos, passando pelos governos do chamado “período democrático” de 1946 a
1964, indo pelo período da Ditadura Militar (1964-1985) e chegando até o período atual, de
“redemocratização”, houve várias ações, em todos os níveis de governo, no sentido de se resolver a questão habitacional nas cidades brasileiras. Podemos citar a criação do BNH (Banco
Nacional de Habitação), em 1965 e sua posterior extinção, em 1986, a criação de Companhias
de Habitação em nível estadual (CDHU, entre outras) e municipal, tal como a COHAB-SP
(pertencente ao município de São Paulo), etc. Todas essas alternativas, muito estudadas – ora
criticadas, ora contra-criticadas – nos seus termos qualitativos e quantitativos, pareceram
não ser muito suficientes para suprirem o tão afamado déficit habitacional das cidades brasileiras, sobretudo nas maiores; a existência de moradias precárias nas metrópoles brasileiras
parece ser uma chaga permanente, de solução quase impossível. No caso de São Paulo, por
exemplo, é notável a quantidade de estudos acerca das chamadas “hiper-periferias”, ou seja,
o insistente surgimento de loteamentos clandestinos, favelas e demais formas de moradia
precária, que a partir da década de 1990, momento de grande desestruturação e
desregulamentação da economia brasileira, começaram a surgir de forma mais intensa a mais
de 40 quilômetros do centro de São Paulo. Trata-se, nesse caso, de uma urbanização não
condicionada diretamente pelos empregos industriais, tal como as análises dos estudiosos de
São Paulo da década de 1970 indicavam naquele período o crescimento das periferias urbanas
paulistanas; as “hiper-periferias” crescem alheias a qualquer promessa de emprego imediato,
são filhas legítimas do desemprego estrutural e de todas as outras mazelas deste período da
economia capitalista mundial.
Enquanto o cenário londrino de 1850, indicado por Marx e Engels, aponta para a existência de um forte incremento populacional urbano por conta do advento da industrialização,
a São Paulo do início do século XXI – pós-industrial e pós-moderna nos seus ares de cidade
mundial e pós-moderna cidade de serviços, expressa nos blocos envidraçados dos “prédios
inteligentes” que se erguem na rica porção sudoeste da cidade – conhece um significativo
incremento dessas áreas longínquas e precárias, destituídas quase que completamente de
qualquer atributo possível do urbano. Muito além das chamadas infra-estruturas básicas –
saneamento básico, escolas, hospital e postos de saúde, redes de transporte de massa – o
urbano se refere à real possibilidade de apreensão da cidade; trata-se do direito à cidade,
indicado por Lefebvre (1991), em sua maior amplitude. É a negação do urbano em ato, para os
pobres que insistem em viver na cidade dos grandes empreendimentos imobiliários de alto
luxo que grassam a todo instante no espaço intra-urbano paulistano: trata-se, portanto, da
urbanização crítica, pela mais pura expressão do crítico do modo de produção capitalista. Não
há possibilidade do urbano para todos, dentro dessa perspectiva.
A propriedade privada da terra, paralela à renda fundiária e todos os seus desdobramentos no espaço urbano e rural, é a mais pura expressão das instituições contidas na “fórmula trinitária” proposta por Marx, nos termos da sua analogia com a instituição cristã da
100
Terra Livre - n. 31 (2): 93-101, 2008
Santíssima Trindade e de sua inabalável sacralidade. Os termos da cisão, da separação, da
alienação, postos no mundo contemporâneo, conhecem sua raiz e sua principal força a partir
dessa unidade na tríade marxiana. É neste momento que urge a elaboração de uma crítica
que realmente dê conta de todo esse perverso processo para a grande maioria da humanidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Friedrich. Textos: volume II. São Paulo: Edições Sociais, 1976.
FLICKINGER, Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social. Porto Alegre: L&PM
e CNPq, 1986.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Moraes, 1991.
MARX, Karl. El Capital: Crítica de la Economía Política – Libro III. Ciudad del México: Fondo
de Cultura Económica, 1972.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
Recebido para publicação dia 02 de março de 2009
101
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METROPOLIZAÇÃO,
ÁREAS
METROPOLITANAS
ANAS E
METROPOLIT
AGLOMERAÇÕES
URBANAS:
ANDO
REVISIT
REVISITANDO
CONCEITOS *
METROPOLIZA
ETROPOLIZATION
TION,
METROPOLIT
AN AREAS
METROPOLITAN
AND URBAN
AGGLOMERATIONS
AGGLOMERA
TIONS:
REVISING CONCEPTS
METROPOLIZACIÓN,
ÁREAS
METROPOLITANAS
METROPOLIT
ANAS Y
AGLOMERACIONES
URBANAS: REVISANDO
CONCEPTOS
CLEVERSON
ALEXSANDER REOLON
UNESP PRESIDENTE
PRUDENTE
[email protected]
Membro de: Grupo de Estudos
Territoriais (GETERR); Grupo
de Pesquisa Produção do
Espaço
e
Redefinições
Regionais (GAsPERR); Rede de
Pesquisadores sobre Cidades
Médias (ReCiMe).
Bolsista da Fapesp.
Resumo: No Brasil, contrapor a teoria à pratica metropolitana
equivale, sob certos aspectos, à comparação entre a realidade e o
fetiche, o fato e a crença. Chocam-se questões científicas, inerentes
ao estudo da realidade, às vontades políticas, que dizem respeito ao
ato de instituir regiões administrativas. De um lado, têm-se conceitos
e, de outro, apenas termos constitucionais. No entanto, à teoria
metropolitana também cabe uma parcela de desencontros, resultando
uma pletora de conceitos polissêmicos. Sendo assim, propõe-se, neste
artigo, a realização de uma análise e revisão histórica de alguns
conceitos comumente utilizados em trabalhos da geografia urbana e
regional brasileira (metropolização, área metropolitana e aglomeração
urbana), visando-se chamar atenção à necessidade de reflexão sobre
o assunto.
Palavras-chave: Metropolização; áreas metropolitanas; aglomerações
urbanas; metrópoles; regiões metropolitanas.
Abstract: In Brazil, to compare the metropolitan theory with the
metropolitan practice is, in some aspects, equivalent to the comparison
between the reality and the fetish, the fact and the credence. Scientific
questions, that came from the study of the reality, runs into the
political wishes, related to the act of to institutionalize administrative
regions. On the one hand there are concepts and on the other hand
only constitutional terms. However, it can be noticed divergences in
the metropolitan theory, which results in some polysemous concepts.
This way, the objective of this article is to analyze and to make a
historical review about some concepts that are commonly used in the
Urban and Regional Brazilian Geography projects (metropolization,
metropolitan areas and urban agglomerations), aiming to call
attention to the need for reflection about this subject.
Keywords: Metropolization; metropolitan areas; urban
agglomerations; metropolis; metropolitan regions.
Resumen: En Brasil, contraponer la teoría a la práctica metropolitana
equivale, bajo determinados aspectos, a la comparación entre la
realidad y el fetiche, el hecho y la creencia. Chocanse, así, cuestiones
científicas, inherentes al estudio de la realidad, a las pretensiones
políticas de instituir regiones administrativas. Por un lado, existen
conceptos y, por otro, solamente trámites constitucionales. Sin
embargo, en la teoría metropolitana también se puede observar
divergencias, resultando en algunos conceptos polisémicos. De esta
forma, el objetivo de este artículo es analizar y realizar una revisión
histórica de algunos conceptos comúnmente utilizados en trabajos de
la geografía urbana y regional brasileña (metropolización, áreas
metropolitanas y aglomeraciones urbanas), con la finalidad de llamar
atención a la necesidad de reflexión con respecto a este asunto.
Palabras clave: Metropolización; áreas metropolitanas;
aglomeraciones urbanas; metropolis; regiones metropolitanas.
* Artigo derivado da
dissertação do autor.
Terra Livre
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 103-110
Jul-Dez/2008
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REOLON, C. A.
METROPOLIZAÇÃO, ÁREAS METROPOLITANAS E...
INTRODUÇÃO
Contrapor a teoria à pratica metropolitana equivale, sob certos aspectos, à comparação entre a realidade e o fetiche, o fato e a crença. A metropolização é um fenômeno que
impulsionou a concentração espacial tanto da riqueza quanto da pobreza, ou ainda, da ordem
e do conflito, em seus limites. Pelo fato de as unidades regionais estarem, de certa forma,
relacionadas a este processo, já que representam um mecanismo utilizado para se fazer frente às questões metropolitanas2 , elas próprias passaram a ser fetichizadas à medida que as
regiões metropolitanas institucionalizadas foram “associadas ao peso simbólico que as relaciona ao progresso e à modernidade”, ao status, portanto (FIRKOWSKI; MOURA, 2001). Não
obstante, no âmbito da gestão das unidades regionais, as questões metropolitanas ainda representam um grande desafio, denotando as dificuldades de equacionamento dos problemas
que extrapolam os limites municipais e se acumulam em escala regional.
Eis, então, que se chocam questões científicas, imanentes ao estudo da realidade, às
vontades políticas, que dizem respeito ao ato de instituir regiões administrativas. De um
lado, têm-se conceitos (metropolização, área metropolitana, região metropolitana, aglomeração urbana, questões metropolitanas) e, de outro, apenas termos constitucionais (unidade
regional, região metropolitana, aglomeração urbana, microrregião, região integrada de desenvolvimento, funções públicas de interesse comum). É por isso que Lencioni (2006, p. 55-56)
afirma:
[...] perguntar se tal ou qual região metropolitana instituída apresenta as características de espaços metropolitanos é não compreender a diferença entre o processo de
metropolização – que desconhece vontades políticas – e a institucionalização de regiões
metropolitanas como expediente para o planejamento territorial.
Entretanto, é necessário admitir que o processo de metropolização é, em essência, o
elemento motivador da instituição de unidades regionais (FIRKOWSKI; MOURA, 2001) –
visão compartilhada por Silva (2006), ao afirmar que as questões metropolitanas somente
podem ser resolvidas diante de uma gestão metropolitana. Está claro que o equacionamento
de problemas metropolitanos não depende, exclusivamente, da criação de uma unidade regional3 , mas este é um artifício legal que, atualmente, os estados federados dispõem para tanto.
Pretende-se chamar atenção ao fato de que, dessa forma, seria pertinente questionar se os
limites de uma unidade regional são ou não condizentes com a espacialidade da metropolização.
Ainda que a criação de unidades regionais tivesse como objetivo o planejamento
territorial, os processos de integração regional ratificados por lei, ou mesmo de fragmentação
legal de espaços em metropolização – a exemplo de casos em que os limites das áreas metropolitanas não condizem com os limites das regiões administrativas instituídas –, não devem
ser negligenciados. Nestes casos específicos, seja por propósito ou equívoco, as questões sociais metropolitanas são claramente preteridas em relação aos interesses políticos e/ou
corporativos.
Outra questão que deriva da instituição de unidades administrativas para atender
interesses alheios ao equacionamento dos serviços comuns é a possibilidade de criação de
uma superestrutura político-administrativa, originalmente destinada a suprir as demandas
metropolitanas, inadequada para tratar do planejamento territorial. Essa criação
indiscriminada de unidades regionais, não obedecendo aos seus princípios, seria mais um
agravante em meio à uniformidade no trato do tema metropolitano, por parte das constituições dos vários estados brasileiros, apontada por Moura et al. (2003).
2
Para Silva (2006, p. 400), “do ponto de vista da vida metropolitana, que envolve o cotidiano da vida coletiva, a questão
metropolitana abrange problemas de saneamento, violência, habitação, educação, saúde e transporte [...]”
3
Veja-se o caso das experiências embrionárias de administrações metropolitanas, implementadas antes da existência de
uma base jurídica para a criação das regiões metropolitanas federais, como o Grupo Executivo da Grande São Paulo
(GEGRAM) e o Grupo Executivo da Região Metropolitana de Porto Alegre (GERM) (GUIMARÃES, 2004; ROLNIK;
SOMEKH, 2004).
104
Terra Livre - n. 31 (2): 103-110, 2008
Conforme Azevedo e Guia (2004) e Davidovich (2004), a instituição de regiões metropolitanas não está prevista nas constituições do Acre, Roraima, Tocantins, Rio Grande do Norte,
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Dos estados restantes, Azevedo e Guia (2004) asseveram
que apenas em quatro se estabelecem critérios para instituí-las (Amazonas, Goiás, São Paulo
e Santa Catarina). No que diz respeito às aglomerações urbanas, Braga (2005) certifica que a
situação é semelhante: seis estados não mencionam a possibilidade de sua instituição (Acre,
Amapá, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Roraima e Tocantins) e apenas dois definem critérios para sua delimitação (São Paulo e Espírito Santo). Imagina-se que o caso das microrregiões
seja ainda mais alarmante. O resultado dessa falta de critérios são mosaicos regionais legais
que pouco se ajustam à realidade urbano-regional do país.
No entanto, à teoria também cabe uma parcela de desencontros. Um fato que parece
polêmico é o reconhecimento da metropolização enquanto fenômeno contemporâneo também
ao interior do território nacional. Sob esta perspectiva, questões metropolitanas não seriam
mais exclusivas das aglomerações urbanas milionárias4 , situadas, sobretudo, nas proximidades do litoral brasileiro e cujas economias estão predominantemente assentadas sob a produção industrial.
Vários estudos têm contribuído para reforçar esta tese, incluindo a publicação do IPEA,
IBGE e Unicamp (2001), fazendo, aos poucos, com que se reflita sobre a necessidade de se
resgatar velhos conceitos forjados a partir do estudo do fenômeno metropolitano, como o de
metropolização e de área metropolitana, pois parecem ter adquirido novos e marcantes contornos a partir da instituição do primeiro conjunto de unidades regionais do Brasil, na década
de 1970.
Sendo assim, o objetivo deste artigo é realizar uma análise e revisão histórica de alguns conceitos usualmente utilizados em trabalhos da geografia urbana e regional brasileira,
derivados de discussões que abordam o fenômeno metropolitano, quais sejam, metropolização,
área metropolitana e aglomeração urbana. Na primeira parte, são abordados os conceitos de
metropolização e de área metropolitana, já que parecem ter surgido simultaneamente no
país. Posteriormente, discorre-se sobre o conceito de aglomeração urbana, seguido das considerações finais.
OS
CONCEITOS DE METROPOLIZAÇÃO E DE ÁREA METROPOLIT
ANA
METROPOLITANA
Tal como afirmam Lencioni (2006) e Teles e Amora (2006), o conceito de metropolização
é polissêmico. Basicamente, podem ser interpretadas duas vertentes conceituais em sua abordagem, sendo que uma delas exprime a dimensão socioespacial do processo, enquanto, à outra, cabe a dimensão territorial. Esta parece ser a razão pela qual este conceito possui certa
dificuldade de delimitação. Contudo, não há meios de se optar em tratar a metropolização,
exclusivamente, sob uma ou outra perspectiva, à medida que elas são complementares. Desse
modo, o que parece ocorrer é a variação dos conceitos conforme os objetivos de cada autor,
assumindo, de modo mais marcante, uma ou outra característica.
Algo comum parece ser o fato de o processo de metropolização ser interpretado como
um fenômeno que transcende a urbanização, sendo mais complexo (LENCIONI, 2006;
FIRKOWSKI; MOURA, 2001). Pode-se pergunta, até que ponto, então, a metropolização é um
fenômeno que pode ser mensurado a partir do processo de urbanização? Qual seria a relação
entre a metropolização e a metrópole?
A resposta não é simples. Lencioni (2006) lança um questionamento semelhante ao se
indagar se a metropolização representaria uma fase do desenvolvimento urbano. Para ela, é
e não é. É, porque a metropolização não deixa de ser continuidade da urbanização e, não é,
porque tem uma natureza diferente. Mais adiante, a autora explica:
Não se trata mais de criar cidades, de desenvolver a rede urbana ou a urbanização em
sentido restrito; trata-se de desenvolver condições metropolitanas que são imprescindíveis para a reprodução do capital, subvertendo toda a lógica urbana herdada e negando
a cidade (LENCIONI, 2006, p. 48).
4
Refere-se ao número de habitantes.
105
REOLON, C. A.
METROPOLIZAÇÃO, ÁREAS METROPOLITANAS E...
A metropolização é um fenômeno que se situa, portanto, na esteira da urbanização e da
reestruturação socioespacial5 . Sob esta perspectiva, Lencioni (2006, p. 48) prossegue em sua
abordagem:
O processo de metropolização dos espaços implica, portanto, um território no qual os
fluxos de pessoas, de mercadorias ou de informações são múltiplos, intensos e permanentes. Aí é comum a presença de cidades conurbadas bem como a concentração das
condições gerais necessárias às particulares condições da reprodução do capital nos dias
atuais.
Lencioni (2006) sintetiza suas proposições ao afirmar que a metropolização consiste
um processo socioespacial de fato, cuja possibilidade de apreensão é disposta por Limonad
(2004, p. 57):
No presente, a produção do espaço social e concomitante estruturação e ordenamento
territorial teria por base a urbanização do território [...] e a distribuição espacial das
atividades produtivas, em que interviriam diversos agentes em múltiplas escalas articuladas e que teria por corolário a conformação de novas territorialidades, novas regiões
e novas formas de regionalização [...].
É por esta razão que Firkowski e Moura (2001) argumentam que a metropolização se
situa além da morfologia da cidade, referindo-se também à cultura urbana, isto é, aos modos
de vida e de produção da sociedade.
Carlos (2003, p. 83) possui uma percepção bastante original a respeito do processo de
metropolização, definindo-o como sendo a “hierarquização do espaço a partir da dominação de
centros que exerce sua função administrativa, jurídica, fiscal, policial e de gestão”. Dessa
maneira, pode-se dizer que, dependendo da maturidade e intensidade desse processo, a
metropolização poderia se manifestar em escala regional, nacional ou global. Com efeito, a
metropolização constituiria um fenômeno cuja dinâmica é proporcional à complexidade
socioeconômica do núcleo urbano que o anima, sendo, a escala regional, a primeira a se manifestar, denotando sua gênese.
O processo de metropolização emerge, portanto, das relações entre a cidade e a região,
encerrando-se em fluxos cotidianos de pessoas, mercadorias e informações, tornando a dinâmica socioeconômica regional progressivamente mais densa e complexa.
Analisando-se trabalhos que se referem ao tema metropolitano, percebe-se, conforme
indica Abreu (1994), que um dos primeiros a tratar do processo de metropolização, no Brasil,
foi a tese Nova Iguaçu, Absorção de Uma Célula Urbana pelo Grande Rio de Janeiro, de Maria
Therezinha de Segadas Soares, publicada em 1962. Neste trabalho clássico da geografia urbana brasileira, apesar de o termo metropolização não ser mencionado, fica claro que diz
respeito à formação de um espaço regional, representado pelos municípios do Rio de Janeiro
e Nova Iguaçu, dotado de intensas relações econômicas e sociais, caracterizando a chamada
área metropolitana do Rio de Janeiro. Esse espaço, parafraseando-se Soares (1962), fundamentalmente marcado pelos movimentos alternantes, ou pendulares, no sentido subúrbiocentro, já evidenciava, dentre as múltiplas funções assumidas por Nova Iguaçu no contexto
da área metropolitana a que pertencia (e ainda pertence), sua função de subúrbio-dormitório.
Abreu (1994) destaca que foi também de Maria Therezinha de Segadas Soares o primeiro trabalho a tratar, explicitamente, da questão das áreas metropolitanas no Brasil.
Autora enumera que a noção de área metropolitana resultou da necessidade de reconhecimento dos limites das aglomerações de certo vulto, dotadas de um núcleo urbano principal que “projetam sua população e suas atividades sobre as áreas vizinhas, com as quais
passam a formar um todo integrado econômica e socialmente” (SOARES, 1968, p. 92).
Paralelamente, Rybczynski (1996, p. 204) certifica que “o termo área metropolitana foi
adotado formalmente pelo Departamento do Censo dos Estados Unidos em 1949 para reconhecer a urbanização que ultrapassava os limites tradicionais da cidade”. Em definição mais
recente, o United States Census Bureau (2007) declara que área metropolitana se refere a um
5
Lencioni (1999) definiu, como reestruturação socioespacial, as transformações industriais e urbanas por que se vem
passando nos últimos anos, o que, pode-se dizer, implica a reorganização do espaço num sentido amplo, abrangendo os
objetos geográficos em geral, a população e os fluxos de toda ordem.
106
Terra Livre - n. 31 (2): 103-110, 2008
espaço composto por um ou mais núcleos populacionais com mais de 50.000 habitantes e que
possuem um alto nível de integração econômica e social com as localidades adjacentes.
Em síntese, nota-se que a noção de área metropolitana deriva do processo de
metropolização, ou seja, do ato de metropolizar, ou de intensificar-se as relações espaciais
entre cidades. Tem-se, portanto, o fato metropolitano, algo que, conforme Lopes (1995 apud
LOPES, 2006, p. 139), se expressa
pelo derramamento da espacialidade dos elementos do meio ecológico, das infra-estruturas, dos sistemas urbanos e dos próprios sujeitos sociais para além das fronteiras municipais, em um contexto geográfico de progressiva conurbação [...] e interdependência
sistêmica de funcionamento do conjunto.
Assegurando a adequação da expressão área metropolitana à realidade brasileira,
Soares (1968) argumenta sobre a possibilidade de sua aplicação a qualquer cidade do país,
independente do gigantismo da mesma, desde que se leve em consideração os laços que a
prendem às áreas circundantes. A palavra metropolitana, segundo a autora, teria assim, o
seu significado original – cidade-mãe –, correspondendo àquilo que está filiado ou àquilo que
depende ou que está estreitamente relacionado com a cidade-mãe.
Portanto, segundo o conceito de área metropolitana incorporado à literatura brasileira
por Soares (1968), não existe correlação entre tais espaços regionais e as metrópoles, ao contrário do que sustentam Galvão et al. (1969, p. 55), num estudo desenvolvido pelo Grupo de
Áreas Metropolitanas (GAM) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):
[...] uma área metropolitana seria um conjunto de municípios integrados econômica e
socialmente a uma metrópole, principalmente por dividirem com ela uma estrutura
ocupacional e uma forma de organização do espaço característica e por representarem,
no desenvolvimento do processo, a sua área de expansão próxima ou remota.
Além disso, esses autores entendem, ainda, que a metropolização, que dá origem às
áreas metropolitanas, é um processo de que está vinculado à existência de uma metrópole.
Porém, segundo Lencioni (2006, p. 47), quando a referência é a metropolização, está-se
falando “tanto de um processo que transforma as cidades em metrópoles como de um processo
socioespacial que impregna o espaço de características metropolitanas”. Em primeiro lugar,
torna-se importante chamar atenção à distinção implícita entre a metrópole e aquilo que a
autora denomina de espaço com características metropolitanas. Em segundo lugar, cabe ressaltar que apesar do fato de a metropolização resultar na formação de uma metrópole, isto
não quer dizer que exista uma correlação exclusivamente positiva entre estes termos. É esta,
também, a interpretação que se deve fazer da afirmação de Carlos (2003), quando atesta que
a metropolização desvela a constituição da metrópole.
Nesse mesmo sentido, ainda mais complexa é a proposição de Firkowski e Moura (2001),
pois assinalam que a metropolização resulta da metrópole ao mesmo tempo em que a pressupõe. Isto é, além de alegarem que a metropolização constitui um processo de formação da
metrópole, as autoras também defendem que a metrópole engendra um processo de
metropolização. Ainda assim, no entanto, é possível sustentar a tese de que a metropolização
prescinde a metrópole para se realizar. Em outras palavras, a metropolização não é um processo condicionado apenas a espaços regionais presididos por uma metrópole.
Teses contrárias, particularmente como a de Galvão et al. (1969), não se caracterizam
como fruto da complexidade literária. Esses próprios autores admitem a parcialidade política
que permeia seu estudo:
Todo o processo de metropolização até aqui descrito nada mais é do que o próprio processo de urbanização que, a partir de certo ponto, atinge um estágio de maior complexidade, gerando graves problemas de integração entre o núcleo central da área e os municípios vizinhos. Pesquisas de campo indicam que em torno de cidades não-metrópoles tais
problemas também existem, porém em escala menor. É o caso das demais capitais estaduais, e mesmo outras cidades brasileiras não-capitais, que apresentam o fenômeno de
integração com municípios vizinhos, gerando os mesmos problemas de transporte, habitação, favelização, etc.
Todavia, como no estabelecimento do anteprojeto de lei complementar [para a definição
do estatuto legal das regiões metropolitanas a serem criadas] um dos critérios se refere
107
REOLON, C. A.
METROPOLIZAÇÃO, ÁREAS METROPOLITANAS E...
à importância macro-regional do núcleo central, nesta primeira etapa o GAM restringiu
suas pesquisas às 9 metrópoles consideradas no Plano Estratégico do Governo, além de
Brasília, deixando para uma fase posterior o estudo das aglomerações urbanas em torno
de cidades não-metrópoles, aglomerações estas que poderão ser denominadas de A Grande
Vitória, etc. e não área metropolitana propriamente dita (Grifo dos autores) (p. 59).
Com efeito, conforme alerta Souza (2006), é muito difícil colocar na berlinda autores
que atuaram e, conseqüentemente, se expuseram durante o regime militar brasileiro, quanto
mais ao se considerar que atuavam para o IBGE, que constituía um “eixo importante de
sustentação do sistema brasileiro de planejamento territorial”, conforme indica Abreu (1994,
p. 40). Não obstante, levando-se em consideração a exceção de trabalho, o conceito de área
metropolitana parece se identificar com o que, atualmente, se compreende por aglomeração
urbana, indiferente às suas desinências: aglomeração urbana de caráter metropolitano (quando
é polarizada por uma metrópole, sendo, assim, sinônimo de região metropolitana) e aglomeração urbana de caráter não-metropolitano (quando não é polarizada por uma metrópole).
O
CONCEITO DE AGLOMERAÇÃO URBANA
No entendimento de Souza (2005), aglomeração urbana corresponde a uma espacialidade
composta por uma ou mais cidades, cujos vínculos passaram a ser muito fortes, engendrando
fluxos de diversas naturezas, sendo, o mais significativo, o de trabalhadores assalariados
que, por residirem em uma cidade e exercerem sua profissão em outra, acabam promovendo o
que se denomina movimentos pendulares.
Já para Moura e Ultramari (1994, p. 125), uma aglomeração urbana “representa o
espaço de comutação diária entre cidades, isto é, o desenvolvimento de relações
interdependentes entre duas ou mais áreas urbanas, compondo um fenômeno único”. Essa
definição torna ainda mais eloqüente o apontamento de Cunha (2005, p. 191), ao defender
que “a integração metropolitana se dá como uma via de mão dupla”. Sob tal perspectiva, o
autor alerta sobre a necessidade de não se confundir área metropolizada – que, segundo
Firkowski (1999), seria uma área dinamizada pelo processo de metropolização –, com área de
influência de uma cidade – o que também pode ser interpretado como área polarizada.
Não obstante, Moura e Ultramari (1994) afirmam que há relação entre a espacialidade
de uma aglomeração urbana e a área polarizada pelo núcleo desta aglomeração. Comentando
os resultados do estudo Região de Influência das Cidades (REGIC), eles asseveram que o
espaço polarizado por um núcleo qualquer pode ser muito grande, no entanto, relatam que a
definição dos limites de uma aglomeração urbana “não deve refletir apenas o alcance de uma
extensa polarização, mas, antes, a forma complexa que tal polarização configura” (MOURA;
ULTRMARI, 1994, p. 126).
Posto dessa forma, percebe-se que há grande semelhança entre o que se entende por
metropolização e por polarização complexa. Ponderando-se as afirmações de Cunha (2005) e
Moura e Ultramari (1994), pode-se concluir que a área metropolitana, cuja espacialidade
reflete a área metropolizada, por via de regra, se sobreporia à área polarizada, contudo, os
limites da área metropolizada se definiriam aquém dos limites da área polarizada, restringindo-se ao espaço polarizado em extrema complexidade. Dedutivamente, jamais se constataria um fato contrário, isto é, a área metropolizada, de forma alguma, seria maior que a área
polarizada.
Por fim, é importante ressaltar que há quem assegure que uma aglomeração urbana
reflita apenas um fenômeno físico-territorial, expresso pela continuidade de manchas urbanas, ou seja, pela conurbação (MOURA; ULTRAMARI, 1994). Tanto Moura e Ultramari (1994)
quanto Souza (2005) e Soares (1968) concordam que a conurbação não é imprescindível para
caracterizar uma aglomeração urbana.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Revistos os conceitos de interesse para esta discussão, pode-se inferir que o processo de
metropolização diz respeito a um fenômeno vinculado à dinâmica das relações econômicas e
108
Terra Livre - n. 31 (2): 103-110, 2008
sociais estabelecidas entre municípios, ou cidades, geralmente caracterizando uma relação
hierárquica. Esta concepção, porém, pode ser pouco esclarecedora tendo em vista certos objetivos, de modo que se torna mais interessante considerar que o processo de metropolização se
refira à formação de uma aglomeração urbana, presidida por um ou mais núcleos dinâmicos,
sejam metrópoles ou não, que projetam sua população e atividades sobre sua hinterlândia.
Por aglomeração urbana, portanto, entende-se tratar de um espaço regional dotado de
intensas e recíprocas relações sociais e econômicas entre as unidades político-administrativas que o compõem. Um dos elementos concretos que representam a possibilidade de caracterização da aglomeração urbana é o movimento pendular, pois sua natureza contempla o transbordamento ou projeção da população e atividades de uma cidade, ou município, sobre áreas
vizinhas.
REFERÊNCIAS
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– contribuição à história do pensamento geográfico brasileiro. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, v. 56, n. 1, p. 21-122, jan./dez. 1994.
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Recebido para publicação dia 01 de fevereiro de 2009.
110
SEGREGAÇAO
ACIAL
SOCIOESP
SOCIOESPACIAL
INTERURBANA: UMA
HIPÓTESE? *
SOCIO-SPATIAL
INTERURBAN
SEGREGA
EGREGATION
TION: A
HYPOTHESIS?
SEGREGACIÓN
SOCIOESP
OCIOESPACIAL
ACIAL
INTERURBANA: ¿UNA
HIPÓTESIS?
CLÁUDIA MARQUES
ROMA
UNESP –
PRESIDENTE
PRUDENTE
[email protected]
* Este texto faz parte da
dissertação de mestrado
defendida junto ao PPG em
Geografia. Financiada pela
FAPESP, sob orientação da
Profª Drª Maria Encarnação
Beltrão Sposito.
Terra Livre
Resumo: O presente artigo analisa o processo de segregação
socioespacial apreendido como resultado das contradições inerentes
às relações sociais, expressas e apoiadas no processo de urbanização.
Entendendo a segregação socioespacial como fruto das contradições
sociais e estruturada a partir do processo da urbanização, por que,
então, restringir sua análise ao espaço intraurbano, sendo que a
urbanização transcende os limites da cidade? A partir dessa indagação
realizamos uma interlocução entre os espaços intra-urbano e
interurbano levantando indicadores que nos permitem indagar a
existência do processo de segregação socioespacial interurbano. Pois,
da mesma forma que o processo de urbanização não está restrito às
cidades, entendemos que, a partir da justaposição ou superposição de
relações interurbanas, no bojo da globalização, o processo de
segregação socioespacial, expressão do aprofundamento das
desigualdades socioespaciais levadas aos seus limites, não deve ser
apreendido somente na escala intra-urbana, mas também a partir
das relações interurbanas.
Palavras chaves: Urbanização, produção do espaço, segregação
socioespacial interurbana, globalização.
Abstract: This paper analyses the process of socio-spatial segregation
that could be understood as a result of the inherent contradictions of
social relations which are expressed by and based on the process of
urbanisation. The socio-spatial segregation is an effect of social
contradictions and it is structured from the process of urbanisation.
Then why must its analysis be restricted to the intra-urban space if
urbanisation transcends the limits of city? Starting from this question,
we made an interrelation between the intra-urban and the interurban
spaces by constructing indicators that permitted us to question the
existence of a socio-spatial interurban segregation process. This
process is an expression of the deepening of socio-spatial inequalities
taken to their limits in a context of globalisation, juxtaposition and
superposition of interurban relations. Considering that urbanisation
is not restricted to the cities, we understand then that the socio-spatial
segregation process must not be apprehended only by the intra-urban
scale, but also from the interurban relations.
Keywords: urbanisation, production of space, socio-spatial interurban
segregation, globalisation.
Resumen: Este artículo analiza el proceso de segregación socioespacial
comprendido como resultado de las contradicciones inherentes a las
relaciones sociales, expresadas y apoyadas en el proceso de
globalización. La segregación socioespacial es un fruto de las
contradicciones sociales y está estructurada a partir del proceso de
urbanización; ¿por qué entonces se debe restringir su análisis al
espacio intraurbano si la urbanización trasciende los límites de la
ciudad? A partir de esa cuestión, realizamos una interrelación entre
los espacios intraurbano e interurbano construyendo indicadores que
nos permitieran discutir la existencia de un proceso de segregación
socioespacial interurbano. Este proceso es una expresión de la
intensificación de las desigualdades socioespaciales, llevadas a sus
límites en el contexto de globalización, yuxtaposición y superposición
de las relaciones interurbanas. Tal como el proceso de urbanización
no está restringido a las ciudades, comprendemos también que la
segregación socioespacial no debe ser aprehendida sólo en la escala
intraurbana, sino también a partir de las relaciones interurbanas.
Palabras clave: urbanización, producción del espacio, segregación
socioespacial interurbana, globalización.
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 111-132
Jul-Dez/2008
111
ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
A complexidade nos aparece, à
primeira vista e de modo efetivo,
como irracionalidade, incerteza,
confusão, desordem.
Edgar Morin
ALGUNS
APONT
AMENTOS INICIAIS
APONTAMENTOS
O conceito de segregação socioespacial é utilizado para explicar processos decorrentes
da urbanização, referentes à separação entre diferentes segmentos sociais nas cidades. A
aplicação desse conceito sempre deu-se para explicar processos na escala intra-urbana.
Desde as análises realizadas pela Escola de Chicago, entre as décadas de 1930/
1940, aos estudos marxistas a partir das décadas de 1960/1970, o tema “segregação urbana”
era pensado para o espaço intraurbano das cidades, notando-se aplicações diferenciadas do
conceito pelas diferentes correntes de pensamento.
Segundo Vieira (2005, p. 8-9), resumidamente, a diferença entre essas duas correntes
de pensamento é a seguinte:
A Escola de Chicago, ou melhor, alguns dentre seus vários pensadores, em estudos urbanos, entendiam que a segregação urbana era uma característica comum das cidades
capitalistas, ou seja, o que lhes interessava era constatar, a partir da simples observação da paisagem da cidade, se realmente a segregação urbana se confirmava, a partir da
localização dos diferentes grupos/indivíduos ou classes de renda em lugares distintos e
separados apontando e destacando, dessa forma, a0 segregação como um processo espontâneo, decorrente das preferências individuais de cada um.
(...) ao contrário dos pensadores da Escola de Chicago, para os quais a segregação
socioespacial era um fator natural da urbanização, os autores marxistas “promovem
uma espécie de ‘desnaturalizacão’ da análise da produção do espaço urbano” (SOUZA,
2002, P.25-26), utilizando a segregação não como uma mera constatação da localização
das diferentes classes sociais no espaço urbano, pelas suas afinidades e gostos individuais, mas sim, compreendendo que a segregação socioespacial é resultado das contradições das relações sociais, das lutas de classes no sistema capitalista, refletidas e expressadas na organização e estruturação do espaço urbano.
Nosso objetivo não é analisar as correntes do pensamento urbano existentes, mas uma
breve diferenciação entre ambas é necessária para percebermos que, mesmo com apreensões
diferentes, desde a primeira metade do século XX, o conceito de segregação socioespacial foi
adotado para entender a estruturação do espaço intra-urbano das cidades.
Nossa compreensão da segregação socioespacial apóia-se na corrente de análise dos
pensadores marxistas, que o apreendem como resultado das contradições inerentes às relações sociais, expressas e apoiadas no processo de urbanização.
Se a segregação socioespacial, fruto das contradições sociais, é estruturada a partir do
processo da urbanização, por que, então, restringir sua análise ao espaço intraurbano, sendo
que a urbanização transcende os limites da cidade?
A partir dos fatos que, devido a funções urbanas deficientes, a população de uma localidade precisa se deslocar para outros lugares para ter supridas suas necessidades básicas e
que essa população não se sente inserida em uma realidade urbana, não estaríamos frente a
um processo de segregação socioespacial interurbana? Ou seja, uma “cidade” toda não poderia estar segregada socioespacialmente?
Indicadores que nos levam a formular essas questões foram elencados a partir da análise da cidade de Mariápolis, na qual nos apoiaremos para defender a hipótese levantada
nesse trabalho.
No entanto, para aprofundar esses apontamentos, é necessário compreender as relações que ocorrem na escala das redes urbanas.
Lojkine (1981, p. 149-150) apresenta-nos a seguinte hipótese:
112
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
A “armação urbana”, no estágio monopolista, aparece então antes de tudo através de sua
rede de cidades médias, de metrópoles provinciais, nacionais e internacionais, como uma
distribuição social e espacial das diferentes condições gerais da produção, em função do
tipo de atividade que dela faz um uso privilegiado: zonas industriais – portuárias para a
indústria pesada (siderurgia, petroquímica); universidades, centros de pesquisa, centros de atividade intelectual e de formação de dirigentes, centros de gestão, de informática,
etc., nas metrópoles mundiais, para as atividades de direção geral; extensões regionais
das universidades, dos centros de pesquisa, de gestão e de informática nas metrópoles
provinciais ou nas cidades novas, para as atividades de direção, de exploração, etc.
Mas, bem mais do que descrever rigorosamente a correlação entre formas de urbanização e formas da divisão social do trabalho, essa problemática permite, a nosso ver, substituir uma sociologia da estratificação social, por uma sociologia da segregação social.
Enquanto toda sociologia urbana que reduz seu campo à reprodução da força de trabalho
só pode revelar os conflitos sociais sob a forma de oposição entre “estratos” de consumidores, podemos, ao contrário, formular a hipótese de uma segregação espacial e social
fundamental entre o espaço urbano “central” monopolizado pelas atividades de direção
dos grandes grupos capitalistas e do Estado e as zonas periféricas onde estão disseminadas as atividades de execução assim como os meios de reprodução empobrecidos, mutilados, da força de trabalho. (grifo nosso)
Na hipótese levantada, contemplamos os apontamentos de (LOJKINE, 1981), ao indagar a existência do processo de segregação espacial e social entre áreas centrais, destinadas
às atividades de direção, e zonas periféricas, voltadas para a execução e a reprodução da força
de trabalho, como também ao investigar as relações entre o espaço intra-urbano e interurbano, ou seja, os deslocamentos realizados pela população para ter acesso aos meios de consumo
coletivo e privado, reforçando o grau de dependência interurbana.
Nesse sentido Endlich (2006, p. 288) afirma que:
Sobre a convergência entre o municipalismo e as pequenas cidades, é conveniente lembrar que não é possível estudar as pequenas cidades de maneira isolada do seu entorno
territorial, fundamental para explicar as dinâmicas nelas existentes. Enquanto cidades
maiores são estudadas com recorte intra-urbano, as cidades menores devem ser compreendidas na sua relação com o entorno e de acordo com a sua inserção na rede urbana.
REDE
URBANA
Em inúmeros trabalhos, verificamos que os estudos das redes urbanas tiveram início
com a teoria dos lugares centrais, formulada pelo alemão Walter Chistaller, em 1933. Santos
(1981 e 1996) e Corrêa (2001), entre outros autores, aprofundam-se na explicação e análise
dessa teoria para a realidade dos países subdesenvolvidos.
Corrêa (2001) desenvolve a idéia apresentando três modos organizacionais: - rede
dendrítica de localidades centrais, mercados periódicos e redes em dois circuitos, este último
apoiado na teoria dos dois circuitos da economia, elaborada por Milton Santos. O autor afirma
que os três modos organizacionais não são excludentes, podendo coexistir e, também, ser
pensados separadamente, dependendo da realidade em questão. Nesse sentido, entendemos
que o modo organizacional que mais se adéqua ao nosso objetivo é a teoria dos dois circuitos
da economia.
A teoria dos lugares centrais pressupõe uma hierarquia entre os diferentes níveis de
cidades. Segundo Geiger (1963), a hierarquia entre as cidades pode ser apreendida segundo a
seguinte estrutura: “metrópole; metrópole regional; capitais regionais; centros regionais de
primeira categoria; centros regionais de segunda categoria; centros de terceira categoria; centros locais e elementares”. Para Rochefort (1961), essa hierarquia apresenta-se da seguinte
forma: “Capitale du reseau; Grand port de la capitale; Grand centre regional de 1er ordre;
Centre regional de 1er ordre; Grand centre regional de 2ème ordre; Centre regional de 2ème
ordre; Centre regional de 3ème ordre; Centre local de 1er ordre et Centre local de 2ème ordre”.
Camagni (1993) desenvolve a idéia de uma superposição e/ou justaposiçãona rede de
cidades. Nesse sentido, Miyazaki, Roma e Vieira (2008) observa que: “Com o fortalecimento
do processo de globalização, as redes urbanas reconfiguram-se e este processo hierárquico
passa a ser acompanhado por uma superposição e/ou justaposição de relações”. Mantém-se a
113
ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
rede hierárquica, mas, ao mesmo tempo temos a interface direta entre cidade local e a metrópole, como se observa na figura 1 e 2.
Figura 1 - Caso ilustrativo de uma rede hierárquica
Figura 2 - Caso ilustrativo de uma rede urbana face à globalização
Elaboração e Org.: Alexandre Vieira, Cláudia Roma, Júlio Zandonadi, Vitor Miyazaki,
2005
Corrêa (2007, p. 64), ao trabalhar com diferenciação socioespacial na escala da rede
afirma que:
Na escala da rede urbana, manifesta-se por intermédio da diferenciação funcional dos
centros urbanos, assim como em termos de tamanho de cidades. No que tange à diferenciação funcional, esta se manifesta tanto em termos de hierarquia urbana, de acordo
com uma versão da teoria das localidades centrais destituídas de seus pressupostos
neoclássicos, como da noção de planície isotrópica, e em termos de singularidades resultantes de especializações funcionais. Lugares centrais hierarquizados e centros
especializados, ou uma combinação de ambos, descrevem a diferenciação sócio-espacial
na escala da rede urbana. (grifo nosso)
Tanto os estudos voltados para as questões da marginalidade, da favelização, da moradia, da constituição dos condomínios e/ou loteamentos fechados, ou seja, os processos urbanos
em geral, como também aqueles referentes às redes urbanas têm como principal foco de análise os papéis das metrópoles, com uma ampliação do interesse pelas cidades médias mais
recentemente.
Porém, segundo Bernardelli (2004, p. 36), é necessário atentar que:
(...) as pequenas cidades também são produtoras e condição da Divisão Territorial do
Trabalho, estando seu movimento, muitas vezes, verificado em um tempo mais lento,
articulado à dinâmica global de rede.
114
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
Portanto, não podemos pensar a questão de forma fragmentada (...) a rede urbana apresenta uma totalidade, apesar do papel de destaque das metrópoles, elas não são dotadas
de autonomia em relação às demais cidades, ao contrário, sua existência e expressão só
são possíveis em razão da existência de uma complexa Divisão Territorial do Trabalho.
A divisão territorial do trabalho se consolida pela existência das metrópoles, mas também de cidades médias e pequenas, pois estas cidades complementam e fazem parte do processo que a estrutura, mesmo que sejam apenas reservatório de mão-de-obra rural, como
afirma Corrêa (1999). O ciclo entre produção e circulação pressupõe a existência de metrópoles e de cidades locais, ambas interagindo na estruturação das redes urbanas.
Santos (2004) aponta que “o trabalho é o fator essencial no circuito inferior, quando no
circuito superior é o capital”. O capital depende do trabalho e o trabalho do capital, como na
estruturação das redes, em que diferentes cidades passam a se complementar.
Sob o capitalismo, no período atual, a divisão territorial do trabalho necessita da existência de diferentes núcleos, inseridos em diferentes escalas da economia e com diversas
funções. Do mesmo modo, há na “dinâmica da globalização a refuncionalização das pequenas
cidades” (CORRÊA, 1999), mantendo e redefinindo a divisão territorial do trabalho.
A refuncionalização das pequenas cidades, segundo o autor estabelece-se a partir de
duas possibilidades: a primeira refere-se à perda relativa ou absoluta de centralidade e a
segunda, à ampliação da centralidade através da especialização produtiva.
A primeira possibilidade, segundo Corrêa (1999), decorre de alterações na circulação
geral e no processo produtivo da hinterlândia da pequena cidade, pois a introdução e difusão
do automóvel redefiniram funcionalmente os pequenos centros urbanos, não os eliminando,
mas corroborando para a perda relativa ou absoluta da centralidade em detrimento de centros maiores.
As alterações no processo produtivo no campo circunvizinho, que alteram a estrutura
agrária, provocando a diminuição das densidades demográficas e da demanda de bens e
serviços para a população, atuaram no sentido de reduzir as funções centrais, as atividades de beneficiamento de produtos rurais e o comércio atacadista de distribuição de
inúmeros pequenos centros que perderam seus mercados. Em outras palavras, verificou-se uma ampliação do alcance espacial mínimo, em muitos casos atingindo a área de
influência de outro centro próximo e com maiores possibilidades de sofrer um impacto
negativo menor por parte das transformações no campo. A ampliação da acessibilidade
corrobora para a perda da centralidade. (Corrêa, 1999, p. 48-49)
Para Corrêa (1999, p. 50), a segunda possibilidade diz respeito à:
Transformação do pequeno núcleo a partir de novas atividades, induzidas de fora ou
criadas internamente, que conferem uma especialização produtiva ao núcleo preexistente,
inserindo-o diferentemente na rede urbana, introduzindo nela uma mais complexa divisão territorial do trabalho. As especializações produtivas, por outro lado, conferem aos
núcleos urbanos uma singularidade funcional, entendida como características que são
simultaneamente de diferenciação no âmbito da economia global e de integração a esta
mesma economia. A centralidade, ao que tudo indica, pode ser ampliada.
Ainda, nesse mesmo sentido, Endlich (2006, p. 167) afirma que:
As implicações trazidas pelo automóvel não atingem exclusivamente áreas metropolitanas, mas toda a rede urbana e as pequenas cidades nela situadas de diversas maneiras.
A acessibilidade é contada menos pela distância em quilômetros e mais pela distância
horária, ou seja, o tempo necessário com os meios de circulação disponíveis para ter
acesso a tais localidades.
Portanto, um dos efeitos do uso do automóvel foi a perda relativa, da centralidade das
pequenas cidades, pois facilitou o acesso ao comércio nas cidades maiores, dotadas das
grandes superfícies dos super e hipermercados, nem sempre presentes em localidades
menores.
A cidade de Mariápolis, em função do transporte, tem sua centralidade reduzida, devido à facilidade de deslocamento de seus moradores para centros urbanos maiores como:
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ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
Adamantina, Presidente Prudente, Marilia, São Paulo, etc. E, ao mesmo tempo, torna-se mais
acessível, nesse caso não aos grandes capitais ou para o desenvolvimento do comércio e serviços, mas para a migração de trabalhadores agrícolas provenientes, em sua grande maioria, do
nordeste brasileira.
Esse processo é gerado pelas alterações agrícolas que ocorrem na região a partir da
intensificação do agronegócio da cana-de-açúcar, possibilitando a ampliação espacial da polarização de Mariápolis, representando, assim, o aumento da área de abrangência de pequenas localidades, conforme apontou Corrêa (1999).
No entanto, o aumento da acessibilidade ao município não significa a ampliação do
acesso aos equipamentos e serviços urbanos. Pelo contrário, isso faz com que a população do
município passe a depender, em todos os sentidos, de localidades com maior diversidade de
funções urbanas, uma vez que o aumento das migrações pendulares (trabalhadores temporários) não é acompanhado da ampliação e melhoria de infra-estruturas, equipamentos e serviços.
A ampliação das migrações pendulares para o município de Mariápolis, em decorrência da necessidade de mão-de-obra para a lavoura da cana-de-açúcar, também está gerando
problemas como a falta de oferta de moradias e a elevação no valor dos aluguéis.
É na perspectiva de aumento da área de abrangência dos pequenos municípios, devido
às especializações produtivas, que a permanência de cidades locais, como a de Mariápolis,
ainda se faz possível.
A HIPÓTESE?
O espaço é entendido enquanto forma, estrutura, função e processo (SANTOS, 1996). A
forma e a estrutura expressam e traduzem as materialidades observadas no espaço urbano,
embora não se restrinjam a essa dimensão, pois ultrapassam o que é efetivamente material.
As funções e o processo referem-se ao urbano, uma vez que tratam dos papéis exercidos pelas
cidades e do próprio movimento das transformações. As funções apóiam-se nos equipamentos
e serviços urbanos que dão suporte para a existência da vida em sociedade como: educação,
saúde, sistema financeiro, comércio, etc. Os processos são as dinâmicas da sociedade que
promovem, por exemplo, a segregação socioespacial, a exclusão social, a fragmentação.
Portanto, devemos trabalhar com as relações inerentes ao urbano, pois, sob o prisma
da materialidade, não podemos negar a existência de Mariápolis como cidade, ainda que possamos questionar a incipiência das funções urbanas nela existentes.
Para que se reconheça o processo de segregação socioespacial interurbana numa cidade, entendemos ser necessário que essa realidade urbana apresente os seguintes indicadores:
1.
ter prevalência do circuito inferior da economia em sua economia urbana;
2.
ser considerada uma cidade local;
3.
depender das relações interurbanas para suprir suas necessidades de acesso
aos meios de consumo coletivo e privado;
4.
apresentar elementos que levem ao questionamento da existência ou não do
caráter urbano desse espaço.
Sem a constatação desses indicadores não é possível defender a hipótese levantada,
pois eles possibilitam apreender o grau de dependência da cidade em relação à rede urbana, o
qual vai justamente expressar ou não a segregação socioespacial interurbana.
A cidade de Mariápolis apresenta todos os elementos que nos permitem formular a
hipótese de constituição da segregação socioespacial no nível interurbano, como destacaremos a seguir.
Primeiro indicador: prevalência do circuito inferior da economia.
Santos (1978, p. 34-35) explica que:
O circuito superior emana diretamente da modernização tecnológica, mais bem representado atualmente, nos monopólios, não está ligado ao local ou regional, mas sim dentro da estrutura de um país ou de países.
O circuito inferior é formado de atividades de pequena escala, servindo, principalmente,
116
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
à população pobre; ao contrário do que ocorre no circuito superior, essas atividades são
profundamente implantadas dentro da cidade, usufruindo de um relacionamento privilegiado com sua região.
Seguindo a linha de pensamento de Santos (1978 e 2004) e de Corrêa (1999), verificamos que uma das principais formas – mas não exclusiva – de inserção das cidades pequenas
na rede urbana é através da constituição do circuito inferior da economia, destacando, porém,
que essa constatação não implica uma tipologia, segundo a qual, a metrópole estaria ligada
ao circuito superior e as cidades pequenas ao circuito inferior. As cidades pequenas não se
inserem na rede urbana unicamente pelo circuito inferior, pois há elos que as articulam também ao circuito superior, mesmo porque ambos compreendem uma totalidade que não pode
ser pensada apenas a partir de um deles.
Os três croquis, abaixo, elaborados por Santos (2004), evidenciam os dois circuitos da
rede urbana.
Croqui 1 - Comércio moderno na rede urbana
Metró pole compl eta
Metróp ole i ncomp leta
Cidades int ermedi ária s
Cidade loca l
Croqui 2 - Comércio de exportação-importação na rede urbana
Metró pole completa
Metróp ole incompleta
Cidades inter mediárias
Cidade lo cal
Comércio de
importação
Comércio de
exportação
117
ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
Croqui 3 - Importância relativa dos dois circuitos na rede urbana
Metrópole Completa
Metrópole Incompleta
Cidades Intermediárias
Cidade Local
Circuito superior
Circuito inferior
Fonte: Santos (2004)
Encontramos cidades em que estão presentes, principalmente, as atividades associadas ao circuito inferior, devido a seu tamanho populacional, sua incipiente função urbana e
até mesmo por sua localização geográfica, pois como afirma Santos (2004, p. 263):
No que diz respeito às atividades do setor moderno, três elementos essenciais permitem
sua expansão: o tamanho da cidade, seu nível funcional, as economias externas e as
externalidades presentes na cidade. Mas sua instalação também pode depender seja da
decisão dos poderes públicos, seja da decisão de uma grande firma. Nesse último caso,
trata-se de iniciativas vindas, em geral, de organismos externos e capazes de tomar
macrodecisões que só interessam ao setor moderno da cidade devido à localização.
Uma cidade pequena, do porte populacional de Osvaldo Cruz que possui uma população de 30.150 habitantes (IBGE, contagem populacional 2007), tem condições de estabelecer
no seu espaço urbano a inter-relação entre os circuitos superior e inferior, mesmo que se
verifique a predominância do último. O tamanho da cidade não é inexpressivo, possibilitando
que se desenvolvam funções urbanas mais sofisticadas, fator que, associado à sua posição
geográfica, favorece uma melhor circulação de produtos e mercadorias.
A circulação do capital pouco depende da posição geográfica, pois os sistemas de telecomunicações permitem que as informações financeiras sejam transmitidas via satélite. Porém, no que se refere a bens materiais, a posição geográfica ainda é relevante. No caso do
município de Osvaldo Cruz, por exemplo, sua localização às margens da rodovia estadual
Comandante João Ribeiro de Barros, como podemos observar no mapa 1 (a seguir) possibilita
a existência de empresas ligadas ao circuito superior, como a fábrica de carrocerias para caminhões bi-trem, que exporta seu produto para vários países. Na cidade também se desenvolve
uma série de atividades do circuito inferior como, por exemplo, pequenas mercearias de bairros e vendedores ambulantes. A existência dos dois circuitos, faz com que a cidade tenha
possibilidades de manter, na rede urbana, uma relação de complementaridade mais evidente
com outros centros.
Em Mariápolis, observa-se a predominância maciça das atividades do circuito inferior.
Seu o contingente populacional determina que as funções urbanas sejam destinadas apenas a
suprir as necessidades básicas da população e, juntamente, com sua posição geográfica que
possibilita o acesso à cidade através de estradas vicinais precárias (conforme analisamos no
mapa 1), inibe a instalação de empresas ligadas ao circuito superior. Nesse contexto, as atividades econômicas urbanas são predominantemente do circuito inferior da economia, fazendo
118
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
com que seus moradores dependam de outras cidades para o acesso a bens e serviços na rede
urbana.
MAPA 1 - VIAS DE A CESSO: OSVA LD O CRUZ E MA RIÁPOLIS
MG
São José do
Rio Preto
MS
Araçatuba
Adamantina
MariápolisOsvaldo
Cruz
Presidente
Prudente
MG
Marília
PR
São Paulo
Rodovia Estadual Pavimentada
Estrada vicinal pavimentada
FONTE: Departamento Estadual de Estradas e Rodagens- SP
ORGA NIZAÇÃO : Cláudia Marques Roma
Estrada vicinal sem pavimentação
0
10
20
30k m
Para que os ramos de atividades ligados ao circuito superior da economia sejam atraídos para uma determinada área é preciso que haja uma série de suportes e benfeitorias,
como destaca Lojkine (1981, p. 145):
(...) é o conjunto dos meios de formação de uma força de trabalho complexa, adaptada às
novas condições de trabalho como à nova divisão das atividades, que é adaptada a esta
socialização do território nacional e multinacional: para localizar suas unidades de produção, de gestão, de pesquisa ou direção, os capitalistas exigem mais, não só estradas ou
instrumentos de telecomunicação mas também conjuntos coletivos de habitação, escolas, universidades, centros de pesquisa (...).
A cidade de Mariápolis, localizada a 587 km da metrópole paulistana, distante de 70 a
160 km das cidades médias que a circundam, com um deficiente sistema de transporte, dificilmente apresentará condições de oferecer suportes às empresas ligadas ao circuito superior da
economia.
Quando se refere à população que depende do circuito “marginal” da economia, Gunder
(1966), apud Santos (1978, p. 28), afirma que: “os pobres ‘não são socialmente marginais, e
sim rejeitados; não são economicamente marginais, e sim explorados; não são politicamente
marginais e sim reprimidos’”.,.Podemos estender essa reflexão para as cidades inseridas no
circuito inferior da economia porque, mesmo sendo vistas social, econômica e politicamente
como marginalizadas, fazem parte do sistema que possibilita e reproduz a divisão territorial
do trabalho.
Analisando alguns itens da tipologia presentes na teoria dos dois circuitos da econo-
119
ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
mia, verificamos que o que predomina na cidade de Mariápolis é o trabalho intensivo e não o
capital intensivo, e o que gera renda é o trabalho, seja o familiar, doméstico, ou o trabalho
assalariado, de baixa qualificação e remuneração.
Não encontramos, no município, investimentos de capitais intensivos. Embora em seu
redor estejam instaladas usinas e/ou destilarias de açúcar e álcool, suas sedes encontram-se
em outras cidades, às quais estão ligados o capital e a geração de impostos; elas apenas captam a mão-de-obra proveniente de localidades como Mariápolis.
As poucas e pequenas empresas instaladas no município estão baseadas em um arranjo organizacional não burocrático e familiar, típico no circuito inferior da economia, devido ao
pequeno porte dos estabelecimentos, onde a relação com a clientela é direta, personalizada,
persistindo o sistema de registro das despesas em cadernetas, com pagamento mensal. Ainda
que o lucro por unidade comercializada nas vendas possa parecer alto em comparação com os
preços das mercadorias adquiridas na cidade de Adamantina, por exemplo, como informam os
entrevistados, ele se reduz em função do pequeno montante comercializado. Esse fato associa-se às relações interurbanas que se estabelecem entre Mariápolis e as cidades maiores da
região, determinadas justamente pelo preço elevado dos produtos nos estabelecimentos locais. Dos entrevistados, 78,5% fazem suas compras de confecções, calçados e armarinhos no
comércio de Adamantina, 8,5% consomem em Adamantina e Mariápolis, 6,6%, em Presidente
Prudente, 3,7%, apenas em Mariápolis, e 2,7% declararam comprar em outras cidades.
Para caracterizar a existência do circuito inferior da economia em Mariápolis, baseamonos em algumas características apontadas por Santos (1978, p.50-51) Como observamos. O
autor apresenta, ainda, outras características não analisadas por nós, quais sejam: “capitais
reduzidos; emprego volumoso; estoques reduzidos; custos fixos desprezíveis; publicidade nula;
reutilização de bens freqüente; dispensa de capitais externos; ajuda governamental nula ou
quase nula e; dependência externa reduzida ou nula”.
O elemento que representa um elo entre o circuito superior e o inferior é a existência
de uma agência do Banco Nossa Caixa2 . Para ter acesso aos serviços bancários de outras
redes, portanto, a população necessita realizar deslocamentos interurbanos.
Santos (1982, p. 72 e 74), ao trabalhar com a rede de cidades, afirma que:
A cidade local facilita o acesso da população aos bens e serviços, embora isto se faça a um
preço mais elevado que nos centros de nível superior. Seja qual for a sua localização, a
cidade local sempre se acha na periferia do sistema urbano. Esta situação significa que
o indivíduo se encontra em uma posição desfavorável como produtor e como consumidor.
Assim, consideramos que cidades com as características de Mariápolis fazem parte da
periferia urbana na rede de cidades.
Segundo indicador: Ser considerada uma cidade local.
A classificação das cidades é tema do estudo Regiões de Influência das Cidades 1993
(IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2000) e de autores como Keller (1968),
Azevedo (1970) e Rochefort (1961). Corrêa e Lima (1977, p. 596), baseando-se no estudo Divisão do Brasil em Regiões Funcionais Urbanas também identificou a existência de diferentes
níveis de cidade nos apresentando as cidades locais como “Nível 4 – Centros Locais: compreende cidades que estão subordinadas aos centros de nível 3 ou que se encontram diretamente
vinculadas aos centros regionais ou às metrópoles (...)”.
Santos (1982, p. 70 e 71) define cidade local como:
aglomerações em seu nível mais fundamental, nível abaixo do qual não se pode mais
falar da existência de uma verdadeira cidade. Temos aqui uma questão de limite inferior
da complexidade das atividades urbanas capazes, em um momento dado, de garantir ao
mesmo tempo um crescimento auto-sustentado e um domínio territorial.
2
Banco público do Estado de São Paulo, presente em todas as cidades paulistas.
120
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
A cidade local é a dimensão mínima a partir da qual as aglomerações deixam de servir
às necessidades da atividade primária para servir às necessidades inadiáveis da população,
com verdadeira especialização do espaço.
Poderíamos então definir a cidade local como a aglomeração capaz de responder às
necessidades vitais mínimas, reais ou criadas, de toda uma população, função esta que implica uma vida de relações.
O autor (p. 5) afirma que os centros locais detêm funções urbanas mais simples e
estabelecem relação de dependência com outras localidades. Assim, Santos (1982) e Rochefort
(1961) compreendem como cidade local o aglomerado urbano que atende apenas às necessidades básicas e vitais de sua população.
Essas aglomerações, para suprir as demandas consideradas básicas, recorrem a mãode-obra de outras cidades, demonstrando que o nível de suas funções está no limite inferior da
complexidade urbana. O acesso a serviços e equipamentos mais especializados é obtido, necessariamente, em cidades que apresentam funções urbanas mais elevadas.
Quando se analisa a cidade de Mariápolis, verifica-se que ela apresenta todas as características que o conceito de cidade local engloba.
Para suprir as necessidades básicas de sua população, a cidade necessita de mão-deobra qualificada oriunda de outros municípios, tais como, entre outros profissionais, engenheiros, médicos, dentistas, cartorários e professores. O acesso aos meios de consumo coletivo
e individual na escala local se resume às necessidades vitais da população, que recorre a
outros municípios, quase que diariamente, para ter acesso a serviços e equipamentos urbanos
mais especializados.
Analisando os dados referentes os deslocamentos interurbanos da população de
Mariápolis em busca de serviços básicos como saúde, educação, lazer e aquisição de bens de
consumo privado que são realizados para cidades como Adamantina, Marília, Presidente Prudente e São Paulo. Observamos as características fundamentais para a conceituação de cidade local.
A primeira observação a ser destacada é a dependência da população da cidade em
relação a Adamantina, pois constatamos que, quando necessitam de determinados serviços
coletivos, a quase totalidade dos entrevistados dirige-se àquela localidade, em especial no
caso de precisar de hospital, inexistente em Mariápolis, ou de serviço médico particular.
Essa relação com Adamantina pode ser notada, ainda, quando se observa que a cidade
aparece sempre como segunda opção, seja na busca por escola (6,4% dos entrevistados que a
freqüentam), lazer (6,6% dos entrevistados que o utilizam), creche (0,8% dos poucos entrevistados que a utilizam) ou dentista particular (17,5% dos entrevistados que utilizam esse serviço), seja nos itens pouco significativos, como igrejas e posto de saúde, que, em Mariápolis,
suprem a demanda de quase a totalidade dos entrevistados.
Enfim, os dados reforçam a posição de Mariápolis no patamar inferior da hierarquia
das cidades, pois oferece apenas os serviços essenciais, evidenciando-se sua dependência em
relação à Adamantina.
Essas afirmações são reforçadas com os dados, que demonstra o local de obtenção dos
bens de consumo privado pelos moradores de Mariápolis.
Notamos que 46,8% dos entrevistados dirigem-se até Adamantina para as compras de
produtos alimentícios básicos, enquanto outros 18,1% afirmam adquiri-los em Adamantina e
Mariápolis, e 30,6%, apenas em Mariápolis3 .
Mais nítido ainda são os dados referentes à obtenção de produtos como roupas, calçados e armarinhos: apenas 3,7% dos entrevistados obtêm os produtos somente em Mariápolis,
e 78,5% apontam Adamantina como local de compras, restando 6,6% deles que adquirem os
produtos em Adamantina e Mariápolis.
Portanto, analisando os dados, observa-se que a população da cidade de Mariápolis
necessita se deslocar para outras localidades, principalmente para Adamantina, cidade um
3
Na pesquisa de campo, a maioria dos entrevistados apontava a dificuldade de locomoção e a possibilidade de comprar a
prazo como os motivos para adquirirem os produtos apenas, em Mariápolis; fosse outra a situação, prefeririam fazer suas
compras em outras localidades, principalmente por serem os preços mais elevados no comércio local, dado que será melhor
analisado em capítulos posteriores.
121
ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
nível acima no que concerne às funcionalidades urbanas, para realizarem praticamente todas
as atividades.
Os moradores de Mariápolis utilizam-se, na própria cidade, de serviços e equipamentos urbanos públicos, como creche e ensino fundamental e médio, assim como posto de saúde
destinado aos atendimentos básicos4 . No que se refere à aquisição de confecções, armarinhos,
calçados e alimentos, praticamente todos os entrevistados procuram esses bens em outras
localidades. Os que adquirem mercadorias no comércio local, fazem-no pelas facilidades de
pagamento como, por exemplo, anotações em cadernetas, sem comprovação de renda, sem
emissão de cheque pré-datado, etc, entrelaçando-se as relações de conhecimento e confiança
com as relações econômicas. Essas pessoas aceitam pagar um preço mais elevado pelas mercadorias, mas conseguem obtê-las sem maiores dificuldades.
Notamos, ainda, que a população desloca-se para Adamantina para ter acesso a serviços de ensino privado, desde o nível fundamental ao superior, bem como a cursos
profissionalizantes, de idiomas e de computação e informática, entre outros. E é naquela
localidade também que buscam os serviços do poder judiciário, da previdência social, do sistema bancário, de médicos particulares e pronto atendimento de saúde mais especializado e,
finalmente, de todo tipo de comércio.
Quando a demanda é de serviços de saúde em determinadas especialidades, que não
pode ser atendida em Adamantina, essa população recorre à cidade de Marília. Em Presidente Prudente, além de serviços médicos, procura o comércio, educação e em alguns órgãos
públicos como a Polícia Federal.
Observamos que 79,2% dos entrevistados mantêm relação de consumo com a cidade de
Presidente Prudente e 20,4% nunca lá estiveram. Dos serviços consumidos e/ou utilizados, há
uma paridade entre saúde, lazer e comércio, com 30,3%, 30,0% e 28,1%, respectivamente. No
que se refere às relações da população de Mariápolis com Marília, os dados demonstram que
78,5% dos entrevistados já utilizaram serviços existentes na cidade e 21,1% não utilizam
equipamentos e serviços dessa localidade. Dentre as respostas, destaca-se, principalmente, o
acesso ao serviço de saúde, com 84,6% das respostas obtidas, seguido pelo de lazer, com 9,4%.
Os equipamentos e serviços que a população de Mariápolis utiliza na cidade de Presidente Prudente compõem conjunto mais diversificado do que aquele correspondente ao de
Marília, devido à maior facilidade de acesso entre as duas cidades5 . No entanto, no que concerne
à saúde pública, o atendimento está basicamente centralizado em Marília, pelo fato de
Mariápolis estar localizada na área de abrangência da 11ª Divisão Regional de Saúde do
Estado de São Paulo cuja sede é aquela cidade.
As relações de Mariápolis com a cidade de São Paulo demonstra que o percentual de
pessoas que já foram para São Paulo é menor, qual seja: 56,9% dos entrevistados estiveram
na metrópole paulistana, índice que, quando comparado com Presidente Prudente e Marília,
é inferior.
Notamos uma diferença nas finalidades de deslocamento para as três cidades, pois
com relação a São Paulo, 51,8% declararam lazer como motivo, seguido de 24,4% de respostas
relacionadas à moradia, o que está diretamente ligado ao fator trabalho, ou seja, pessoas que
moraram na capital para trabalhar. O serviço de saúde aparece em apenas 14,1% das respostas, diferentemente da quantidade apresentada em relação a Presidente Prudente e Marília,
demonstrando o papel funcional das cidades médias.
Nessa rede de relações, observa-se que a amplitude dos papéis exercidos pelas diferentes localidades tem relação com o tamanho demográfico da população, ou seja, Mariápolis,
com uma população de 3.726 habitantes, apresenta-se no nível inferior da rede urbana, enquanto Presidente Prudente (202.789 habitantes, IBGE, 2007) e Marília (218.113 habitantes,
IBGE, 2007) são consideradas cidades médias6 . Isso demonstra que as funções urbanas de4
O horário de atendimento do posto de saúde da cidade é de segunda a sexta feira, das 7h00 às 17h00. O pronto atendimento
realiza apenas procedimentos básicos, como pequenos curativos e inalação. As especialidades médicas existentes são:
clínica geral (diariamente), ortopedia (dois dias por semana), ginecologia (um dia por semana) e pediatria (um dia por
semana), oferecendo atendimento de uma a duas horas diárias.
5
Há uma linha de transporte coletivo que diariamente faz a ligação entre Mariápolis e Presidente Prudente.
6
A definição de Cidade Média não se baseia apenas no critério populacional. Para tanto, consultar Amorim Filho (1984),
Andrade e Serra (2001) e Sposito (2001, 2007), entre outros.
122
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
sempenhadas por cada núcleo organizam o espaço pela rede de cidades e possibilitam o desenvolvimento de uma conceituação do ponto de vista qualitativo.
Os dados acima reforçam e evidenciam as diferenças funcionais e, ao mesmo tempo, a
hierarquia na rede de cidades, nos permitindo inferir que a cidade de Mariápolis pode ser
conceituada como cidade local.
Terceiro indicador: Depender de relações interurbanas para suprir suas
necessidades de acesso aos meios de consumo coletivo e privado.
Nos dados apresentados anteriormente, referentes aos meios de consumo coletivo e
bens de consumo privado da cidade de Mariápolis, observamos a incipiência dos equipamentos e serviços urbanos nela disponíveis, além da pequena expressão do comércio e da rede
bancária, dados esses confirmados pelos índices de deslocamentos interurbanos realizados
pela população para ter acesso aos meios de consumo coletivo e privado.
Quando uma localidade não oferece o pleno acesso aos bens e serviços urbanos, os
deslocamentos interurbanos tornam-se essenciais para qualquer indivíduo, como observa
Santos (2004, p. 336):
Para certos tipos de consumo, todo indivíduo, qualquer que seja sua condição ou seu
nível de renda, é prisioneiro da cidade. É o caso dos bens e serviços que, por sua natureza
ou devido à freqüência da demanda, exigem uma proximidade no espaço e no tempo.
Para outros consumos, a capacidade de escapar da sujeição ao mercado local depende da
mobilidade do indivíduo, que está em estreita ligação com sua posição na escala das
rendas.
Para o autor, os consumidores com melhores condições financeiras e de mobilidade
podem adquirir e/ou consumir bens e serviços em cidades de nível superior, mas aqueles, para
quem os deslocamentos são mais difíceis, restam prisioneiros das cidades menos evoluídas,
mesmo tendo que consumir produtos com preços mais elevados (SANTOS, 2004). Assim, “a
rede urbana não tem, portanto, o mesmo significado para as diferentes camadas
socioeconômicas”. (SANTOS, 2004, p. 338).
Os deslocamentos interurbanos realizados pela população de Mariápolis, para suprir
as necessidades mais básicas, atingem todos os segmentos sociais. Necessitam deslocar-se
tanto os mais ricos como os mais pobres, uns com mais e outros com menos condições e facilidades. No entanto, só tem acesso ao consumo de bens e serviços sofisticados, as pessoas com
maior poder aquisitivo.
Nesse sentido, para Corrêa (2001, p. 80), a hierarquia urbana é apreendida diferentemente pelos diversos estratos da sociedade, pois:
Para a população de médio e alto status sócio-econômico há uma hierarquia urbana
realmente, pois consome em diferentes localidades (...) os assalariados irregulares e
regulares mal remunerados, camponeses (...) possuem condições de comprar ou utilizar
apenas uma parcela dos produtos e serviços oferecidos na região em que vivem. (...)
limitada mobilidade; não existe de fato uma hierarquia urbana (...)
Os moradores de Mariápolis afirmaram que, mesmo com grandes intervalos e dificuldades, necessitam, em algum momento, realizar deslocamentos interurbanos devido à
incipiência das funções urbanas dessa cidade.
Nas tabelas 1 e 2, analisadas a seguir, os dados confirmam as relações de dependência
entre cidades da rede urbana.
123
ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
Tabela 1
Mariápolis - Os moradores e a cidade 2007
Você gosta de morar em Mariápolis?
Fonte: Trabalho de Campo, 2007.
Na tabela 1, em que se apresentam as opiniões dos moradores sobre a cidade, observase que as justificativas para explicar porque gostam de morar na cidade de Mariápolis estão
relacionadas a questões ligadas ao pertencimento, típicas de cidades pequenas: “ter morado a
vida toda na cidade”; “ter parentes”; “amigos”; “conhecidos”; “a tranqüilidade”; “o conforto”; “a
qualidade de vida”. Apresentam ainda motivos relacionados à existência de “crédito pessoal”,
que é uma das características de atividades econômicas pertencentes ao circuito inferior da
economia, bem como à “proximidade dos equipamentos e serviços” devido ao tamanho da
cidade.
Já para explicar porque não gostam de morar na cidade, os entrevistados apontaram como dificuldades relacionadas à dependência de Mariápolis em relação às outras cidades da rede urbana: “os preços elevados nos supermercados, açougues e lojas”; “necessidade
constante de deslocamento para Adamantina e outras cidades”; “dificuldade de acesso a equipamentos e serviços urbanos”.
124
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
Tabela 2* Mariápolis
Principais problemas encontrados em Mariápolis, por seus moradores - 2007
Fonte: Trabalho de Campo, 2007.
*A base de cálculo dessa tabela é de 532 respostas
125
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SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
Na tabela 2, além da confirmação da dependência de Mariápolis em relação às outras
cidades, expressando a natureza das relações interurbanas, constatamos, também, os problemas encontrados pela população de Mariápolis no que se refere às condições de vida dos seus
moradores.
Nas respostas referentes aos serviços e infra-estruturas urbanas, observa-se que 24,8%
dos entrevistados apontam a dificuldade para obter serviços de saúde, em especial, a necessidade de deslocamento para outras localidades, mesmo que para a realização de procedimentos ambulatoriais simples. Esse item foi destacado pelos entrevistados residentes na cidade
de Adamantina, quando indagados se morariam em Mariápolis.
Os outros problemas citados foram a falta de asfaltamento, a iluminação pública, o
esgoto e a coleta de lixo (13,5%), e 11,5% dos entrevistados relataram a falta de lazer e cultura.
Na esfera política, destacamos as respostas relacionadas ao prefeito (5,1%), à política
do favorecimento (1,3%) e à administração pública ineficiente (0,6%).
No que tange aos problemas ligados à economia, 20,1% das respostas se referem à
falta de emprego, principalmente entre mulheres. Nas entrevistas realizadas com a população de Adamantina, o fator trabalho foi um dos aspectos mais citado para descartar a hipótese
de morar em Mariápolis, opção apenas daqueles que trabalham no setor sucroalcooleiro. Destacam-se, ainda, as respostas referentes ao elevado preço dos aluguéis (0,4%), e a falta de
outra lavoura além da cana-de-açúcar (0,4%).
No que concerne ao social, destaca-se a falta de segurança (0,7%) e a presença dos
“baianos” (0,2%), trabalhadores migrantes temporários da cana-de-açúcar, a cuja presença os
moradores entrevistados relacionam a crescente onda de roubos e furtos na cidade. No entanto, essa afirmação expressa apenas uma estigmatização em relação a esses trabalhadores,
tendo em vista o índice zero de roubos e furtos registrado entre os anos de 2000 e 20067 na
cidade de Mariápolis.
Quanto ao fator geográfico, a dependência interurbana se confirma, pois são apontados, como problemas, a dificuldade de deslocamento (0,6%) e a dependência de Adamantina
(0,2%).
Dos entrevistados (36,9%) afirmam não realizar algumas atividades nem ter acesso a
serviços devido à dificuldade de deslocamento e/ou à ausência deles no próprio município,
dentre os quais podemos destacar: academia, hidroginástica, bancos, fórum, emprego e cursos; 47,3% não encontram dificuldade alguma para realizarem o deslocamento necessário
para terem acesso aos meios de consumo coletivo e privado; e 15,8% não sabem se têm ou não
dificuldade de deslocamento.
O percentual de entrevistados que se deslocam para Adamantina, uma vez por semana
é de 30,4%. Esse índice diminui, conforme aumenta o número de deslocamentos na semana, e
os entrevistados que se deslocam uma ou duas vezes no mês representam 17,7% cada. Há,
ainda, alguns (6,1%) que se deslocam diariamente a Adamantina. Notamos, também, aqueles
que se deslocam para Adamantina somente quando necessário ou raramente, correspondendo
a 13% dos entrevistados.
Os dados e as tabelas analisadas confirmam a dependência dos moradores da cidade
de Mariápolis em relação a outras localidades, principalmente Adamantina, por oferecer mais
recursos referentes a meios de consumo coletivo e privado.
Quarto indicador: Apresentar elementos que levem ao questionamento
da existência ou não do caráter urbano da cidade.
O aumento de desmembramentos municipais propiciou, no país, a constituição de municípios com um contingente populacional muito pequeno, cuja sede detém poucas funções
urbanas, direcionadas ao atendimento das necessidades mais imediatas de seus habitantes –
o que justificaria a aplicação do conceito de cidade local – gerando relações de dependência
7
Dado da Secretaria de Estado da Segurança Pública - organização de Izabel C. Gil, 2007.
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Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
muito intensas entre esses núcleos urbanos e os mais importantes e mais próximos.
Nesse contexto, quando se avaliam não apenas a cidade como realidade material, mas
também a clara distinção de seus papéis em relação ao campo, é que podemos questionar se as
sedes municipais com essas características podem ser consideradas realmente urbanas, uma
vez que somente as necessidades elementares da população são atendidas, caracterizando
forte grau de dependência interurbana.
O questionamento acerca da existência ou não de claros papéis urbanos desempenhados por Mariápolis pode ser apreendido, também, por meio da análise das concepções de cidade que seus próprios moradores têm, ainda que o discurso que elaboram esteja fortemente
marcado pelas imagens de cidades grandes apresentadas pela mídia, pelos livros, sobretudo,
didáticos e, também, por outros gêneros de literatura, conforme observamos no quadro 1 e na
tabela 3 a seguir.
Quadro 3
Mariápolis
Concepções ou idéias associadas à cidade pelos entrevistados - 2007
Os entrevistados e as concepções de cidade
Limpeza
Comunidade
Local onde se encontra
Rua
Local de vizinhança
administração
Facilidade / comodidade
Conjunto de pessoas que
pública
devido à proximidade
interagem
Organização política
Moda
População
Cidade é um lugar com três P:
Lugar onde temos a presença Movimento de pessoas
Padre,
de calçadão
Movimento de carros
Político e Puta
Lugar onde temos a presença
de prédios
Concentração de pessoas e
casas
Melhor qualidade de vida
Conforto
Uma coisa boa
Lugar onde se encontra
coisas ruins
Violência
Segurança
Recursos
Vida corrida
Emprego
Lugar de oportunidade
Lugar das indústrias
Local de moradias
Lugar de acessibilidade aos
serviços e equipamentos
urbanos8
Local de Lazer
Lugar onde temos a presença de
bancos
Lugar de comércio
Onde se localiza a Igreja
Cultura
Fonte: Trabalho de Campo, 2007.
8
Os serviços e equipamentos relacionados como cidade para os entrevistados foram: médicos, posto de saúde, educação,
iluminação, asfalto, esgoto.
127
ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
Mariápolis pode ser considerada cidade
SIM
Nº
%
155
59,6
NÃO
Nº
%
101
38,9
NÃO SABE
Justificativa do Sim
Justificativa do não
Está no mapa
Cidade seria um lugar como Adamantina
Noção de pertencimento (nasceu na cidade, amigos, família, gosta do
lugar)
Local de dormitório
Tem Prefeito
Mariápolis é um bairro de Adamantina
Nº
%
4
1,5
Não é uma cidade, é um distrito
Não é uma cidade, é um patrimônio
Não é uma cidade é um povoado
Parece uma fazenda/um sítio
Fonte: Trabalho de Campo. 2007.
Ao questionarmos os entrevistados se Mariápolis poderia ser considerada uma cidade,
59,6% responderam sim, mas uma porcentagem significativa (38,9%) apresentou uma resposta negativa, enquanto.1,5% não souberam opinar.
Além dos traços que nos levam a questionar o caráter urbano dessa cidade, observamos na própria população a dúvida a respeito de sua constituição como tal, conforme demonstra o quadro 1, posicionamento corroborado também pela população de Adamantina.
As respostas que afirmam a existência de cidade relacionam-se ao sentimento de
pertencimento: “nasci nessa cidade”, “tenho amigos nesse local;” estão ligadas à situação legal como a existência de: “prefeito”, “vereadores”; ou “porque está no mapa;” “tem tudo que
precisa”. Em alguns casos, o entrevistado fez uma comparação entre o “sítio” (área rural) e
Mariápolis.
Nas respostas em que Mariápolis não é considerada cidade, apontam-na como “uma
vila”, “um patrimônio”, “um distrito”, “uma fazenda ou sítio”. Outros entrevistados fazem o
exercício de comparação afirmando que: “Mariápolis seria uma cidade se fosse como
Adamantina”; “que não se pode considerar Mariápolis como cidade devido à dificuldade de
acesso aos serviços e equipamentos urbanos”; ou que “poderia ser considerada cidade politicamente devido à existência do poder legislativo, mas, estruturalmente Mariápolis não poderia
ser classificada como cidade”; e, por fim, a nossa hipótese de intenso grau de dependência é
reforçada, quando a própria população considera “Mariápolis sendo um bairro de Adamantina”.
Já os moradores de Adamantina, quando indagados se Mariápolis poderia ser considerada uma cidade, respondem que: “é uma cidade porque tem Adamantina perto e não está tão
longe de Presidente Prudente”; “é uma cidade, pois mora bastante gente uma ao lado da
outra”; “não está longe de outras cidades”; “cidade é um local com estrutura (supermercados,
lojas) Mariápolis parece um bairro”; ou “é uma cidade pequena tem supermercado, escola”. A
existência de Mariápolis como cidade se dá, segundo entrevistados, devido à relação que mantém com outras localidades, reforçando assim seu grau de dependência.
Ao indagarmos se os moradores de Adamantina morariam em Mariápolis, obtivemos
as respostas: “não moraria, pois teria que vender meus produtos na cidade de Adamantina”;
“só se fosse muito rica e não precisasse trabalhar”; “só se fosse extremamente necessário,
mesmo trabalhando em Mariápolis moraria em Adamantina”; “não, pois não tem as coisas, os
moradores têm que procurar fora e é muito difícil o deslocamento”; “depende do que poderia
fazer lá – um bom emprego”; “moraria, trabalho na cana e não tem problema”.
128
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
Quando perguntamos como as pessoas vêem a cidade de Mariápolis as respostas foram
as seguintes; “uma cidade regular, não tem comércio, fábrica, não tem trabalho”; “coitado de
quem mora lá, não tem supermercado, fisioterapia etc.”; “cidade legal, tenho amigos”; “é uma
cidade tranqüila, mas para trabalhar não dá, só tem bar, não comporta instalar um comércio
como temos em Adamantina”; “cidade sem comércio, não tem recursos”; “não tem comércio,
empresa, o pessoal vive da roça”.
Os dados coletados demonstram a incipiência do urbano na cidade de Mariápolis. Essas informações, juntamente com as ponderações dos entrevistados, que não consideram
Mariápolis uma cidade, levam-nos à elaboração de mapas representando Mariápolis como
um bairro de Adamantina.
Nos mapas a seguir demonstramos indicadores de condições de vida que podem revelar o processo de segregação socioespacial para o espaço intraurbano. Analisando-os, podemos
observar que a cidade de Mariápolis, se fosse considerada um bairro de Adamantina, apresentaria elementos que, relacionados às indagações dos entrevistados, revelam-nos a segregação
socioespacial. No entanto, mesmo que a própria população de Mariápolis a considere como
um bairro de Adamantina, com uma incipiente função urbana, e que os dados nos permitam
elaborar esse questionamento, de Mariápolis ser um bairro de Adamantina, ela é legalmente
uma cidade.
É nesse sentido que nossa hipótese de segregação socioespacial interurbana se afirma,
pois esse conceito serve para explicar os processos da urbanização que transcendem os limites
da cidade, como estamos observando na cidade de Mariápolis.
129
ROMA, C. M.
130
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
Terra Livre - n. 31 (2): 111-132, 2008
Nos três mapas que revelam indicadores de melhores condições de vida: – Domicílios
com quatro banheiros ou mais (mapa 5); – Responsáveis pelos domicílios com rendimento
mensal de mais de 15 salários mínimos (mapa 11); – Responsáveis pelos domicílios com 17
anos ou mais de estudo (mapa 13), observam-se índices que indicam as precárias condições de
vida em todos os setores da cidade de Mariápolis. No que diz respeito à educação, (mapa 13),
um setor aparece como pior e os demais podem ser classificados como intermediários. Constatamos então, que segundo os indicadores relacionados às melhores condições de vida, a cidade
de Mariápolis não apresenta nenhuma área com essa característica, diferentemente de
Adamantina que inscreve, em seu espaço, áreas em que eles estão presentes. Como indicadores de piores condições de vida foram relacionados: domicílios particulares improvisados; domicílios particulares permanentes tipo cômodo; domicílios particulares permanentes sem
banheiro ou sanitário; domicílios particulares permanentes com abastecimento de água de
outra forma; domicílios particulares permanentes com banheiro ou sanitário com esgotamento sanitário de outra forma; domicílios particulares permanentes com outro destino do lixo;
pessoas responsáveis pelos domicílios particulares permanentes sem rendimento mensal;
pessoas responsáveis pelos domicílios particulares permanentes com rendimento nominal de
até ½ salário mínimo; pessoas responsáveis pelos domicílios particulares permanentes sem
instrução e menos de um ano de estudo.
Analisando os mapas, notamos que no mapa 12 (responsáveis pelos domicílios
sem instrução e menos de um ano de estudos) os quatro setores censitários da cidade de
Mariápolis apresentam os piores indicadores, enquanto apenas num setor de Adamantina
eles sejam observados.
Nos mapas 7 (domicílios ligados à rede de esgoto de outra forma) e 8 (domicílios
com coleta de lixo de outra forma), os únicos setores classificados com os piores indicadores
situam-se em Mariápolis.
Já no mapa 10 (responsáveis pelos domicílios com rendimento mensal de até
meio salário mínimo), dois setores censitários de Mariápolis apresentam os piores indicadores, enquanto um outro setor com essa característica localiza-se em Adamantina.
Nos demais mapas, os setores classificados como piores, localizam-se apenas
em Adamantina em, no máximo, dois setores.
Portanto, temos oito ocorrências de setores censitários classificados com indicadores
de piores condições de vida tanto em Mariápolis como em Adamantina. Porém, proporcionalmente, Mariápolis apresenta piores condições que Adamantina, pois enquanto nesta há 34
setores censitários, no total, naquela há apenas quatro. E isso soma-se ao fato de que Mariápolis
não apresenta nenhum setor censitário com indicadores de melhores condições de vida.
Partindo das premissas de incipiência de suas funções urbanas, da dificuldade
de acesso aos meios de consumo coletivo e privado, da dependência de bens e serviços disponíveis em outras cidades da rede urbana, e do não reconhecimento do status de cidade pelos
entrevistados, podemos questionar o caráter urbano de Mariápolis.
ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Agrupando os três primeiros indicadores - ter a maior parte da sua economia urbana
apoiada em atividades típicas do circuito inferior da economia; ser considerada uma cidade
local; depender de relações interurbanas para suprir suas necessidades de acesso aos meios
de consumo coletivo -, temos todos os fatores para afirmarmos a dependência interurbana da
cidade de Mariápolis. E, apreendida essa dependência, inserimos o quarto indicador: apresentar elementos que levem ao questionamento da existência ou não de um caráter urbano
em seus papéis e funções, bem como nas práticas socioespaciais de seus moradores.
Assim, somando-se a dependência da rede urbana ao questionamento da existência ou
não de caráter urbano dessa cidade é que podemos afirmar que há a constituição do processo
de segregação socioespacial interurbana, pois os processos ocorridos em Mariápolis não podem ser pensados somente no âmbito intraurbano, uma vez que o essencial para a vida urbana só é provido a partir de relações interurbanas.
Da mesma forma que o processo de urbanização não está restrito às cidades, entendemos que, a partir da justaposição ou superposição de relações interurbanas, no bojo da
131
ROMA, C. M.
SEGREGAÇAO SOCIOESPACIAL INTERURBANA...
globalização, o processo de segregação socioespacial, expressão do aprofundamento das desigualdades socioespaciais levadas aos seus limites, não deve ser apreendido somente na escala
intra-urbana, mas também a partir das relações interurbanas.
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Uma Leitura Geográfica, Caderno Prudentino de Geografia
Geografia, V. 29, 2007. 8 Os serviços e equipamentos relacionados como cidade para os entrevistados foram: médicos, posto de saúde,
educação, iluminação, asfalto, esgoto.
Recebido para publicação dia 05 de março de 2009
132
A (IN)JUSTIÇA
SOCIAL E A
CIDADE: NOT
AS
OTAS
SOBRE ACESSO E
EQUIDADE NO
TRANSPORTE
PÚBLICO URBANO
SOCIAL (IN)JUSTICE
AND THE CITY: NOTES
CONCERNING THE
ACCESS AND EQUITY
IN THE URBAN PUBLIC
TRANSPORT
LA (IN)JUSTICIA
SOCIAL Y LA CIUDAD:
NOT
AS SOBRE EL
OTAS
ACESSO E LA EQUIDAD
EN EL TRANSPORTE
PÚBLICO URBANO
SANDRA RODRIGUES
BRAGA*
CNPQ
COSAE/CNP
[email protected]
MURILO MENDONÇA
OLIVEIRA DE SOUZA
UFU
IG-UFU
[email protected]
* Coordenação do Programa
de Pesquisa em Ciências
Sociais Aplicadas e Educação
Agência Financiadora CNPq
Terra Livre
Resumo: A noção de acessibilidade é tradicionalmente associada à
proximidade espacial entre dois pontos. Entretanto, ela tem evoluído
para uma definição mais complexa, expressando a facilidade com que
um indivíduo pode alcançar as atividades de que deseja participar, a
partir de um determinado local, por interveniência de um determinado
modo de transporte. Nesse sentido, a acessibilidade transforma-se em
um indicador da qualidade de vida urbana. A partir desse contexto, o
presente artigo analisa as relações entre acesso/acessibilidade e os
princípios da equidade e da justiça social. Para isso, a pesquisa dividese em três partes e abrange, inicialmente, as várias conceituações de
acessibilidade, resgatando, em especial, a sua dimensão política.
Sequencialmente analisa-se as diferentes perspectivas de análise da
equidade e suas aplicações no transporte, particularmente no transporte
público urbano, que as tipificam. Por fim, discute-se como equidade e
acessibilidade se mesclam na abordagem da Geografia dos Transportes.
Conclui-se, finalmente, que o debate em torno da relação estabelecida
entre equidade e acessibilidade é muito relevante para ser relegado a
um segundo plano pela geografia.
Palavras-chave: Acessibilidade. Equidade. Cidade. Transporte público.
Geografia dos transportes.
Abstract: The accessibility notion is, traditionally, associated with the
space proximity between two points. However, it has evolved for a more
complex definition, expressing the easiness with that an individual can
reach the activities of that it desires to participate, from one definitive
place, for one determined transport way. Into this direction, the
accessibility is changed into a pointer of the quality of urban life. In
this context, the present article analyzes the relations between access/
accessibility and the principles of the equity and social justice. Divided
in three parts, the research discourses, initially, on the some
conceptualizations of accessibility, rescuing its dimension politics. To
follow, the distinct perspectives of analysis of the equity and the
applications in the transport are analyzed, particularly in the urban
public transports, which characterize them. Finally, it is argued as equity
and accessibility if they mix in the boarding of the Geography of the
Transports. One concludes that the debate around equity and
accessibility is very excellent to be relegated as the plain one for
geography.
Keywords: Accessibility. Equity. City. Public transport. Transport
geography.
Resumen: La noción de la accesibilidad se asocia tradicionalmente a la
proximidad espacial entre dos puntos. Sin embargo, se ha desarrollado
para una definición más compleja, expresando la sencillez con que un
individuo puede alcanzar las actividades que desea participar, a partir
de un lugar definido, por una manera determinada del transporte. En
esta dirección, la accesibilidad se transforma en un indicador de la
calidad de la vida urbana. En este contexto, el actual artículo analiza
las relaciones entre el acceso / la accesibilidad y los principios de la
equidad y de la justicia social. La investigación se divide en tres porciones
e incluye, inicialmente, algunas conceptualizaciones de la accesibilidad,
rescatando su dimensión política. Enseguida, se analizan las
perspectivas distintas del análisis de la equidad y los usos en el
transporte, particularmente en el transporte público urbano, que
tipifican ellas. Finalmente, se discute como equidad y accesibilidad si
ellos mezclan en subir de la geografía de los transportes. Se concluye
que la discusión alrededor de la equidad y de la accesibilidad es muy
relevante para ser relegada a segunda plana para la geografía.
Palabra-llave: Accesibilidad. Equidad. Ciudad. Transporte público.
Geografía de los transportes
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 133-144
Jul-Dez/2008
133
BRAGA, S. R. E SOUZA, M. M. O.
A (IN)JUSTIÇA SOCIAL E A CIDADE: NOTAS...
.
INTRODUÇÃO
Karst Geurs e Bert van Wee (2004) alertam para o fato de que o conceito de acessibilidade, largamente utilizado por planejadores urbanos e de transporte, e por geógrafos, ao
mesmo tempo em que assumiu um importante papel na elaboração de políticas, acha-se mal
definido e com medidas mal construídas. Destarte, enquanto o uso do solo e os planos de
infraestrutura são regularmente calculados com medidas de acessibilidade de fácil interpretação para pesquisadores e planejadores, como níveis de congestionamento ou velocidade de
deslocamento, mas com fortes desvantagens metodológicas, gerando, consequentemente, desigualdades práticas na adaptabilidade social das referidas infraestruturas.
Um dos problemas mais incidentes diz respeito à confusão entre acessibilidade e mobilidade, quando se interpreta a primeira como um atributo exclusivo do sistema de transporte
sem considerar o grau de atração das oportunidades oferecidas nas potenciais zonas de destino. A acessibilidade associa-se à capacidade de alcançar um determinado lugar, enquanto que
mobilidade relaciona-se com a facilidade com que o deslocamento pode ser realizado.
A acessibilidade é apresentada como a possibilidade de um indivíduo participar de
atividade(s) em dado local, o que seria potencializado pelo sistema de transporte e pelo uso do
solo. Este último aspecto torna a acessibilidade conceito relevante à Geografia Urbana, permitindo o melhor encadeamento entre as variáveis transporte, renda, uso e valorização do
solo e expansão urbana. Como nos lembra Flávio Villaça (1998, p.74), “a acessibilidade é o
valor de uso mais importante para a terra urbana”, de modo que uma maior acessibilidade
corresponde a uma maior valorização do solo urbano.
Joana Pons e Maria Reynes (2003, p.1) referem-se à acessibilidade como “la capacidad
que posee un lugar para ser alcanzado desde lugares con diferentes localizaciones geográficas”, ou seja, “la cualidad de un punto o de una área para reducir los obstáculos en la
comunicación de los componentes de un sistema espacial”. Para tais autoras, a acessibilidade
seria “el producto de la compleja conjunción, en el tiempo y en el espacio, de una serie de
factores que han condicionado la capacidad y la estructura de las redes de transporte, así
como de la capacidad del sistema para acogerse a las innovaciones y a la evolución tecnológica”.
Ligada aos transportes, a acessibilidade encontra-se, tradicionalmente, relacionada à
proximidade física entre dois lugares. Entretanto, essa noção tem evoluído para uma definição mais complexa, que expressa, por exemplo, a facilidade com que um indivíduo pode alcançar as atividades de que deseja participar, a partir de um determinado local, por meio de um
determinado modo de transporte. Nesse sentido, a acessibilidade é um definidor da qualidade
de vida urbana.
A acessibilidade tem clara dimensão social, à medida que o acesso dos indivíduos aos
pontos de emprego, educação, lazer e equipamentos públicos pode ser medido pelas oportunidades de
trabalho disponíveis a uma dada distância do local de residência de cada indivíduo. Representa, portanto, a maior ou menor facilidade em atingir as oportunidades oferecidas, considerando o perfil da
rede de transporte, a localização e o número de atividades disponíveis.
Se a acessibilidade consiste na combinação da localização dos destinos a serem alcançados e as características do sistema de transporte que interliga os locais de origem e destino,
há que se considerar, igualmente, a localização e as características da população em questão,
a distribuição geográfica e a intensidade das atividades econômicas, como alerta Leandro
Cardoso (2007).
Neste contexto, o presente artigo analisa as relações entre acesso/acessibilidade e os
princípios da equidade e da justiça social.
A pesquisa divide-se em três partes e abrange, inicialmente, as várias conceituações
de acessibilidade, resgatando, em especial, a sua dimensão política. Na sequência, analisamse as diferentes perspectivas da equidade e suas aplicações no transporte, particularmente no
transporte público urbano, que as tipificam. Por fim, discute-se em que amplitude equidade e
acessibilidade se mesclam na abordagem da Geografia dos Transportes. Conclui-se, finalmente, que o debate em torno da relação estabelecida entre equidade e acessibilidade é muito
relevante para ser relegado a um segundo plano pela geografia. Espera-se, portanto, que as
notas apresentadas possam oferecer elementos para que a discussão da acessibilidade e
equidade seja, de fato, inserida no planejamento do transporte público urbano.
134
Terra Livre - n. 31 (2): 133-144, 2008
A DIMENSÃO POLÍTICA DA ACESSIBILIDADE
Eduardo Vasconcellos (2000) afirma que há uma gama de fatores que obstaculizam a
solução definitiva para as iniquidades vigentes no binômio transporte e trânsito. Como a
“questão política”, ele se refere às dificuldades enfrentadas pelo sistema político, de base
representativa, em conciliar anseios e interesses divergentes de grupos sociais distintos no
processo decisório. A “questão econômica” abrangeria tanto a crise fiscal do Estado, redutora
de incentivos ao transporte público, quanto as desigualdades na distribuição da renda, que
impedem que grande número de pessoas pague pelos custos do transporte. A “questão social”
relaciona-se às disparidades verificadas nos meios de mobilidade dos diferentes estratos sociais, à acessibilidade, conforto e segurança.
No âmbito da discussão política, Vasconcellos (1996) lembra que a acessibilidade se
subdivide em dois tipos:
• Macroacessibilidade: refere-se à facilidade de cruzar o espaço e ter acesso aos equipamentos e construções, medindo-se pela quantidade e natureza das ligações físicas no espaço, quanto às vias e aos sistemas de transporte público.
• Microacessibilidade: refere-se à facilidade de ter acesso direto ao destino final ou
ao veículo desejado, medindo-se pela distância ou pelo tempo de acesso e refletindo as decisões sobre o estacionamento (para automóveis), a carga e descarga (para caminhões e táxis) e
a localização dos pontos de parada (para os ônibus).
O nível de macroacessibilidade pode ser traduzido em termos monetários, por meio dos
diversos tempos de percurso e espera. Nesse contexto, a acessibilidade é um indicador eficaz
dos impactos econômicos, diretos e indiretos, dos projetos de uso do solo e transporte.
Vale lembrar, porém, como fazem Brian Hoyle e Richard Knowles (2001), que a abordagem econômica, baseada na relação demanda-custo e nas comparações com outras formas de
investimentos, é insuficiente, devendo o transporte ser considerado não somente como dado
econômico, mas também como um habilitador social, sendo então impossível desconsiderar
fatores sociais no planejamento e nas análises em transporte.
Uma macroacessibilidade adequada seria caracterizada pela existência de grande número de ligações no espaço para os usuários de bicicletas, motocicletas, automóveis e meios
públicos de transporte. A microacessibilidade adequada seria caracterizada pela facilidade de
estacionar veículos próximo ao destino final, ou de chegar até eles ao sair da origem do deslocamento.
Michela Pegoretti e Suely Sanches (2007), retomando Arruda (1997), afirmam ser a
acessibilidade o resultado da interação entre os sistemas de transportes e as atividades em
uma determinada área, envolvendo custo generalizado de viagem e disponibilidade temporal
e financeira do indivíduo para tomar parte de uma determinada atividade. A acessibilidade
surge, do mesmo modo, como potencial de oportunidades de interação física entre atividades
espacialmente separadas, via sistema de transporte, incluindo-se aí os deslocamentos a pé.
Sanches (1996 apud Pegoretti; Sanches, 2007) afirma que a definição básica de acessibilidade consiste em um fator de impedância do sistema de transporte (facilidade de viagem
entre dois pontos do espaço), medido em termos de distância, tempo ou custo da viagem, e um
elemento espacial, caracterizado tanto pela intensidade como pela localização dos vários tipos de atividades. Geurs e van Wee (2004) informam-nos sobre indicadores de acessibilidade
baseados em pontos de vista individuais, a partir de percepções espaço-temporais na avaliação social das alterações no uso do solo ou nos transportes, em uma abordagem microeconômica.
A acessibilidade está muito longe, portanto, de ser um dado per si, ela é o fruto da ação
de agentes políticos e sociais que qualificam e requalificam o espaço. Posto que a acessibilidade é uma variável altamente dependente dos níveis tecnológicos e culturais das sociedades, é
clara a situação de desvantagem dos países em vias de desenvolvimento. Entretanto, essas
diferentes condições não devem obscurecer as gritantes desigualdades sociais existentes nestes países e como elas se rebatem nos territórios, criando diferentes acessibilidades.
Se a propensão de interação entre dois lugares cresce à medida que o custo de movimentação diminui, equipamentos e serviços urbanos serão mais acessíveis se mais próximos
às áreas residenciais. Todavia, como nos alerta Vasconcellos (1996), as características específicas do desenvolvimento capitalista nos países em vias de desenvolvimento – a especulação
135
BRAGA, S. R. E SOUZA, M. M. O.
A (IN)JUSTIÇA SOCIAL E A CIDADE: NOTAS...
imobiliária, a debilidade dos controles públicos sobre o crescimento urbano e a segregação
socioespacial – afetam as condições de acesso das pessoas e reforçam a dependência do transporte motorizado. O capital imobiliário, com a conivência do Estado, se encarrega de produzir
acessibilidade(s), consolidando processos de segregação e hierarquização socioespacial.
A apropriação desigual do espaço urbano rebate-se na superexploração da força de
trabalho dos segmentos mais pobres, cujos salários não permitem um acesso ampliado aos
bens de consumo coletivo. Consolida-se a “espoliação urbana”, assim definida por Lucio
Kowarick (2000, p.22):
[...] é a somatória de extorsões que se opera pela inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, que juntamente ao acesso à terra e à moradia apresentam-se
como socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores e aguçam ainda mais
a dilapidação decorrente da exploração do trabalho, ou, o que é pior, da falta desta.
Enquanto os usuários de automóvel usufruem um sistema viário eficiente, os usuários
do transporte público enfrentam três barreiras: a provisão do transporte em si (linhas,
frequência dos serviços, disponibilidade de lugares), a falta de medidas de prioridade na circulação e o custo representado pela tarifa. Agravante deste quadro é o fato de que, enquanto
a mobilidade pode ser resolvida no nível individual, a acessibilidade só o é no nível da coletividade.
Com maiores distâncias a percorrer e serviços precários de transporte, a maioria da
população aumenta seus gastos de tempo e de espaço para realizar suas atividades essenciais, o que limita fortemente sua acessibilidade, com quase todas suas viagens feitas apenas
para os motivos de trabalho, escola e compras.
Efetivamente, a distribuição da acessibilidade, de modo recorrente, difunde iniquidades,
resultando na estruturação de um espaço de circulação, no qual, não obstante a manutenção
de privilégios ao transporte individual, os estratos mais vulneráveis (pedestres, ciclistas e
usuários de transporte público) são preteridos em seus anseios de mobilidade (Cardoso, 2007).
No mesmo sentido, Pegoretti e Sanches (2007, p.6) afirmam:
Segundo a EBTU (1998), a acessibilidade de um sistema de transporte público de passageiros pode ser caracterizada pela maior ou menor facilidade de acesso ao sistema, sendo proporcional ao tempo decorrido até o ponto de parada e o tempo de espera pelo
veículo. Assim, para o passageiro, a melhor condição ocorreria quando ele dispusesse de
pontos de parada próximos aos locais de origem e destino de seus deslocamentos e também contasse com frequência adequada de serviço.
Mas como demonstra Mônica Gondim (2001, p.17), não é isso o que ocorre:
Observa-se na prática que o planejamento urbano e de transportes, geralmente, prioriza
a circulação de longo percurso, favorecendo desse modo o transporte motorizado em
detrimento das rotas de pedestres e ciclistas. Estudam-se as conexões entre as vias, as
interseções e procura-se subtrair obstáculos nas rotas dos veículos através do alargamento ou abertura de ruas e da construção de viadutos. Há também toda uma regulamentação para a sinalização e a colocação de seus acessórios, enquanto os pedestres
enfrentam vários obstáculos nos seus trajetos na calçada e o ciclista nem sempre encontra espaço próprio para circular.
Vasconcellos (1996) lembra-nos que ver a acessibilidade como a conveniência de estacionar perto do destino final é assumir uma definição orientada para o automóvel. O predomínio dessa visão, nos países em vias de desenvolvimento, reproduz acessibilidades diferenciais. Nesses países, o arranjo físico da maioria das cidades é “a prova da adaptação do espaço
para um papel específico: o de motorista de automóvel e, mais especificamente, da classe
média como motorista de automóvel”, o que se fez “às custas da segurança e da conveniência
de papéis mais vulneráveis, como o de pedestre e passageiro de ônibus, atingidos por restrições ao acesso seguro e conveniente ao espaço” (idem, ib. p.97).
Ademais, cabe fazer referência a que, além das restrições impostas aos pedestres e aos
passageiros do transporte público coletivo pelas políticas públicas de privilegiamento do automóvel, são ainda mais relevantes as restrições vivenciadas pelas pessoas com algum tipo de
136
Terra Livre - n. 31 (2): 133-144, 2008
deficiência ou com mobilidade reduzida, o que analisaremos no próximo tópico.
No entanto, Strambi (2000, p.97) adverte-nos de que “os custos e os benefícios que
resultam de qualquer decisão econômica se distribuem de forma desigual entre diferentes
indivíduos ou setores da sociedade” e que esses aspectos distributivos não devem ser ignorados na formulação de políticas públicas de transporte urbano. Nesse caso, um estudo de acessibilidade pode trazer informações relevantes para a programação do sistema de transporte
ou para a estruturação de uma nova rede de transporte coletivo.
Hoyle e Knowles (2001) lembram que, frequentemente, ocorrem conflitos entre a demanda por transportes e a política que vai fornecê-la, ou entre o objetivo político de uma
inovação no transporte e o seu propósito ou valor econômico. Efetivamente, a alocação de
recursos eficientes pode afetar a população de uma forma socialmente injusta. Nesse sentido,
Geurs e van Wee (2004, p.130) afiançam:
Accessibility measures can be used as a social indicator if they show the availability of
social and economic opportunities for individuals (or groups of individuals), i.e. the level
of access to essential sources for human existence such as jobs, food, health and social
services, along with the potential for social interaction with family and friends.
Furthermore, social equity impacts, typically analyzed in social impact assessments,
can be evaluated if the accessibility measure is spatially differentiated and disaggregated.
Obviously, the measure used in social evaluations should satisfy the theoretical criteria
described above, especially the individual component of accessibility1 .
Nessa perspectiva, Vasconcellos (1996, p.141) afirma:
A distribuição da acessibilidade gerada pelas políticas de transporte e trânsito adotadas
nos países em desenvolvimento (bem como pelo processo político-econômico mais global)
está caracterizada por várias iniquidades. Estas iniquidades estão relacionadas a sete
questões: política, social, técnica, tecnológica, econômica, institucional, operacional e
ambiental, que se interpenetram.
Como o processo de decisão em transportes é controlado pelas elites políticas e econômicas, suas políticas favorecem ao transporte individual. Dessa forma, a questão social imprime sua série de iniquidades nas condições de transportes e trânsito. A primeira delas é a
acessibilidade, já que o tempo de acesso ao transporte público, o tempo de espera, tempo
dentro do veículo e tempo até o destino final após deixar o veículo dão-se sempre em piores
condições para os usuários de transporte público frente aos usuários de automóvel.
A dimensão política excludente da acessibilidade coloca a necessidade de discutirmos a
aplicação do princípio da equidade aos transportes, o que faremos no próximo tópico.
A EQUIDADE E SUA APLICAÇÃO EM TRANSPORTES
A acessibilidade “deve ser vista como parte de uma política de inclusão social que
promova a equiparação de oportunidades e o exercício da cidadania” (Brasil, 2004, p. 40). Se
tal preceito aplica-se a todos, ele é tanto mais útil e necessário em relação às pessoas com
deficiência ou aquelas que têm, de modo temporário ou permanente, mobilidade reduzida
(obesos, idosos, gestantes dentre outros).
A premissa de que há um “homem padrão” como parâmetro para a criação de produtos,
ambientes e mobiliários urbanos representa um obstáculo à acessibilidade dos indivíduos
“não padronizados” que se veem impedidos de utilizar, segura e autonomamente, o espaço
urbano devido às barreiras arquitetônicas e urbanísticas que dificultam, ainda mais, sua
integração social e a realização das atividades cotidianas. Ademais, vale lembrar que o meio
físico pode potencializar uma deficiência, ao valorizar um impedimento, ou reduzir sua im1
Medidas de acessibilidade podem ser usadas como um indicador social desde que mostrem disponibilidade de oportunidades
sociais e econômicas para indivíduos (ou grupo de indivíduos), ou seja, o nível de acesso a fontes essenciais para existência
humana como, trabalho, comida, saúde e serviços sociais, juntamente com o potencial para interação social com família e
amigos. Além disso, os impactos quanto à equidade, tipicamente analisados nas avaliações de impactos sociais, podem ser
calculados sempre que a medida de acessibilidade é espacialmente diferenciada e discordante. Obviamente, a medida
usada nas avaliações sociais deveria satisfazer os critérios teóricos descritos acima, especialmente o componente individual
de acessibilidade (tradução livre dos autores).
137
BRAGA, S. R. E SOUZA, M. M. O.
A (IN)JUSTIÇA SOCIAL E A CIDADE: NOTAS...
portância, em prol da independência.
A ideia de que se trata de um percentual irrelevante da população, tornando adaptações indesejáveis ou desnecessárias, não encontra respaldo estatístico. Segundo a Organização das Nações Unidas, entre 7 e 10% da população mundial é constituída por pessoas com
deficiências, que têm na acessibilidade e na mobilidade os principais problemas a serem enfrentados (ONU, 2002 apud Cardoso, 2007).
No Brasil, de acordo com dados do último censo demográfico, realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), 14,5% da população brasileira possui algum tipo de deficiência, entendida como a dificuldade de enxergar, de ouvir, de locomover-se
e/ou alguma deficiência física, mental ou múltipla. A este grupo somam-se, ainda, 14 milhões
de idosos (75% dos quais considerados pobres) e pessoas com mobilidade reduzida.
Cabe mencionar que nove milhões de portadores de deficiência trabalham (IBGE, 2000)
e, em sua maior parte, utilizam os sistemas públicos de transporte urbano. Á revelia da importância dos números, a adaptabilidade do transporte é insignificante. Os dados apresentados por Boareto (2006) mostram que apenas 2% da frota de ônibus em operação no Brasil
permitem o acesso de usuários de cadeiras de rodas e chama a atenção, a demanda reprimida
do serviço porta a porta, que exigiria investimentos concretos na democratização da acessibilidade.
As dificuldades vivenciadas pelos portadores de deficiência e pessoas com mobilidade
reduzida no emprego do transporte público são numerosas. Dada a sua gênese e funcionamento, descritos por Caiafa (2002), não apenas a arquitetura interna dos ônibus é desfavorável, mas são frequentes os comportamentos desrespeitosos, que vão dos assentos, “reservados”, mas sempre ocupados, em face da superlotação; até maus-tratos físicos. Se a precariedade na provisão de acessibilidade, quer pela deficiente capacidade instalada, quer por ineficiência na operação dos serviços, quer pelo padrão especulativo de uso do solo urbano, é patente
para todos, ela é tanto mais grave para os pelos portadores de deficiência e pessoas com
mobilidade reduzida.
Neste último grupo, destacam-se os idosos. Estima-se que, até 2030, 20% da população
mundial terão idade superior a 65 anos. No Brasil, o emergente processo de envelhecimento
da população, possibilitado pelo declínio da fecundidade, com a crescente inserção da mulher
no mercado de trabalho, representa um desafio. A constatação de que, com a velhice, é reduzida a aptidão para subir escadas e ampliada a necessidade de cuidado, implica numa nova
preocupação com a acessibilidade, garantia de maior independência para alguns em benefício
para todos (com a redução de acidentes e consequentes custos com serviços de saúde e com a
perda de produção).
Entretanto, ressaltamos que os planos para a acessibilidade de pessoas com mobilidade reduzida não devem constituir ações pontuais ou paliativas, mas inserir-se em políticas
públicas concebidas sob o primado da igualdade de oportunidades para todos e da diminuição
da iniquidade social.
Nesse sentido, Brasil (2004, p. 40) indica alguns pontos para a promoção da acessibilidade equitativa:
[...] diminuir o número de viagens motorizadas; repensar o desenho urbano; repensar a
circulação de veículos, não sendo o automóvel o único determinante ou critério da organização da cidade; desenvolver meios não-motorizados de transporte; reconhecer a importância do deslocamento de pedestres; proporcionar mobilidade às pessoas com deficiências e restrições de mobilidade; priorizar o transporte coletivo; considerar outros modos de transporte.
Se os investimentos em infraestrutura de transportes apresentam-se como um entrave à ampliação da acessibilidade, Orlando Strambi (2000) defende que a solução da questão
econômica passa pela maximização do valor do produto social através da alocação eficiente de
recursos e pela garantia da equidade na distribuição através de uma alocação justa desse
produto.
A aplicação do princípio da equidade, em particular no transporte público, tem se dado
com base em dois tipos de critérios: a) determinação da distribuição dos benefícios e custos
associados a uma dada política entre diferentes grupos da população, classificados (apenas)
segundo sua renda; b) em estudos de políticas tarifárias, o estabelecimento da relação entre o
valor da tarifa de um dado serviço (custo para os usuários, categorizados segundo o uso do
138
Terra Livre - n. 31 (2): 133-144, 2008
sistema e suas características socioeconômicas) e o custo de operação, com ou sem subsídios.
Na ausência de subsídios ao transporte público, vigente no Brasil, as análises limitamse a verificar o impacto das despesas com transporte sobre o orçamento de famílias de diferentes faixas de renda.
Nos países desenvolvidos, em que é comum a política de subsídios, os estudos analisam o impacto dos subsídios sobre diversos grupos de renda, ou determinando que categorias
de usuários se beneficiem, e em quanto, do subsídio, ou identificando quem contribui para a
arrecadação dos recursos destinados a subsidiar o transporte, visando a estabelecer o benefício líquido (ou resíduo fiscal) para cada categoria (benefício recebido via subsídio menos contribuição através dos tributos). Esses estudos abrangem também a distribuição dos recursos
para investimento e custeio entre os diferentes modos de transporte e são coerentes com a
perspectiva de que políticas cujo impacto distributivo seja progressivo – categorias de maior
renda arcam com maiores custos – aumentam a equidade.
A conceituação de que uma política é equitativa na medida em que cada um contribui
de acordo com os custos que lhe são devidos refere-se, basicamente, à questão de subsídios
cruzados entre usuários que gera diferenças significativas nos valores de tarifa por quilômetro entre categorias distintas de usuários.
Strambi (2000) afirma que muitos desses estudos privilegiam a renda como elementochave para uma análise da justiça social, desconsiderando a possibilidade de agregar grupos
de usuários mais homogêneos em termos de sua necessidade de transportes e de sua capacidade de contribuição, segundo sua idade, sexo, ocupação ou estrutura familiar. Lembra, igualmente, que a noção de contribuição na proporção do custo causado relaciona-se com o critério
de eficiência econômica, não constituindo indicador de equidade, como se propõe em algumas
análises.
De fato, a ideário de equidade está relacionada com a de justiça social e a análise de
mecanismos de financiamento, estruturas tarifárias e outras decisões econômicas do transporte, consideradas sob o ponto de vista da equidade, inclui questões de distribuição de renda,
estabelecendo as bases para uma distribuição menos injusta. David Harvey (1973) aponta
critérios para uma justa distribuição do produto societário:
•
Igualdade intrínseca – todos os indivíduos podem reivindicar igualmente os
benefícios, independentemente de sua contribuição;
•
Avaliação dos serviços em termos de oferta e demanda – os indivíduos que comandam recursos escassos e necessários podem reivindicar mais que outros;
•
Necessidade – os indivíduos têm direito a níveis iguais de benefício, o que significa que existe uma alocação desigual de acordo com a necessidade;
•
Direitos herdados – os indivíduos podem reivindicar de acordo com as propriedades ou outros direitos que lhe foram passados por gerações precedentes;
•
Mérito – as reivindicações podem se basear no grau de dificuldade a ser superado para contribuir para a produção;
•
Contribuição ao bem comum – aqueles indivíduos, cujas atividades beneficiam
mais pessoas, podem reivindicar mais do que aqueles cujas atividades beneficiam poucas
pessoas;
•
Contribuição efetiva à produção – os indivíduos que produzem mais (com a produção sendo medida de uma forma apropriada) podem reivindicar mais do que aqueles que
produzem menos;
•
Esforços e sacrifícios – indivíduos que fazem um esforço ou sacrifício maior relativamente à sua capacidade inata devem ser mais recompensados do que os que se esforçam
ou se sacrificam pouco.
Para os transportes, alguns desses itens perdem importância. Já que o transporte não
é um bem desejado em si, mas apenas um meio para se atingir uma determinada finalidade,
não há porque supor que as pessoas queiram utilizar o transporte igualmente ou que alguém
se arrogue um direito herdado sobre os benefícios de utilizar o transporte público, ou que um
indivíduo “mereça” mais transporte que outros.
Porém, uma vez que a utilização do transporte consome parte da renda individual e
familiar, as diversas bases apresentadas acima para reivindicação do produto da sociedade
podem ser interpretadas como afetando a distribuição de renda, retornando-se, então, à questão de distribuição de renda e às formas socialmente consideradas para resolver tal questão.
139
BRAGA, S. R. E SOUZA, M. M. O.
A (IN)JUSTIÇA SOCIAL E A CIDADE: NOTAS...
Recuperando o trabalho de Sen (1973), Strambi (2000) observa que existem duas noções rivais a respeito do que seja uma distribuição “correta” da renda: a da necessidade e a do
merecimento (que na acepção de Harvey (1973) coincidiria com a posição daqueles que detêm
o comando de recursos natural ou artificialmente escassos, ou dos que trabalham mais ou
melhor ou em condições mais desfavoráveis e que podem reivindicar como justa sua maior
participação na divisão do produto da sociedade). A distribuição de renda tende a seguir mais
os critérios de merecimento do que o de necessidade. Este último pode ser considerado na
elaboração de políticas de transferência de renda em bens ou em espécie para as classes mais
necessitadas, cuja determinação apresenta dificuldades consideráveis.
Tais considerações sobre equidade permitem retomar suas três dimensões: a) a espacial; b) a econômica e c) a social. A primeira delas relaciona-se com a noção de justiça territorial,
segundo a qual não é possível que todas as partes da cidade tenham o mesmo grau de acessibilidade com relação aos destinos desejados. A dimensão econômica reconhece que os indivíduos não podem competir por bens e serviços em igualdade de condições devido a diferentes
níveis de renda e riqueza (que resultam também em diferenças no acesso a informações), ao
passo que a dimensão social da equidade dispõe que pessoas diferentes necessitam de diferentes condições de acessibilidade, dependendo de sua idade, sexo, ocupação e estrutura familiar e da eventual presença de algum tipo de deficiência física.
Outra forma de entender a equidade é a de equalização de oportunidades ou de resultados. O conceito de igualdade de oportunidades, base da meritocracia, evita a necessidade de
julgamento sobre qual é a distribuição de renda desejável. Isso não ocorre com a noção de
igualdade de resultados, entendida como uma forma de tentar corrigir, posteriormente, uma
situação em que a não existência de igualdade de oportunidades em situações passadas conduz a oportunidades desiguais no presente, o que, num extremo igualitário, conduziria à
equalização dos benefícios recebidos pelos diferentes grupos, implicando maiores recursos
destinados ao atendimento de um grupo do que a outro.
No caso do transporte, a equalização dos resultados pode ser vista em termos de acessibilidade e de renda. A política de financiamento, inclusive a tarifária, afeta diretamente a
distribuição da renda e pode limitar o atendimento às necessidades de transporte das classes
menos favorecidas. Se o que a indústria de transporte vende é a mudança de lugar, como
afirma Marx (1999 apud Caiafa, 2002), o transporte não traz um benefício em si, mas é apenas uma forma intermediária de acesso às demais oportunidades. Vasconcellos (1996, p.145146) afirma, nesse contexto, em relação ao transporte:
O produto não pode ser estocado, o consumidor não pode selecionar o serviço ou trocar
um produto insatisfatório e todas as funções sociais e econômicas dependem de transporte adequado. A eficiência econômica objetivada pelo regime de “carga máxima” implica em superlotação e desconforto; a aparente “ineficiência” de ônibus transportando
apertadas pessoas sentadas (em alguns horários) reflete qualidade de serviço, e é muito
menos importante que a ineficiência do sistema viário – que em sua maior parte permanece vazio na maior parte do tempo, e dos automóveis, que usam grandes quantidades
de energia para transportar poucas pessoas.
Nesse caso, a acessibilidade representa a possibilidade de atingir maior “comando de
recursos” (Harvey, 1973), através do acesso a um conjunto maior de oportunidades para obtenção de renda ou outros serviços.
É comum distinguir duas outras dimensões da equidade: horizontal e vertical, estas
usualmente associadas à análise de políticas de tributação. A equidade horizontal requer
“tratamento igual para os iguais”. Por sua vez, a equidade vertical refere-se à distribuição
justa da renda entre grupos pertencentes às diversas classes de renda. Para avaliar a equidade
vertical, assim como no caso da equidade de resultados, são necessárias hipóteses sobre a
distribuição de renda desejável.
Na presença de falhas de mercado, comuns em transporte, o atendimento às condições
de eficiência podem levar à violação da equidade horizontal, tendo serviços iguais preços
diferentes. Assim, admite-se que, para satisfazer critérios de equidade horizontal, deve-se
considerar como iguais aqueles que tenham as mesmas necessidades de transporte. Além
disso, pessoas (ou famílias) com necessidades similares podem ter diferentes capacidades de
pagamento e essa condição deve ser levada em conta para atender os critérios de equidade
vertical.
140
Terra Livre - n. 31 (2): 133-144, 2008
Rosenbloom e Altshuler (1977 apud Strambi, 2000) elencam as três visões principais
de equidade que prevalecem e competem entre si no tratamento do transporte urbano: a) o
pagamento por serviço – a cada um de acordo com sua contribuição financeira; b) a igualdade
na distribuição do serviço – para cada um, uma parcela igual de recursos públicos ou um nível
igual de serviço público, independentemente de sua necessidade ou contribuição financeira; e
c) a distribuição do serviço de acordo com a necessidade – para cada um, uma parcela dos
recursos públicos baseada na sua “necessidade”, tal como definida pelo governo. A primeira
visão articula-se mais a questões de eficiência que da equidade, ao passo que a segunda não
se presta facilmente à análise da oferta de transportes e a terceira apresenta dificuldades
para o estabelecimento de critérios operacionais para descrever a necessidade de transporte.
Massa Goto, Antônio Silva e José Mendes (2001) apropriam-se da distinção que
Bronfenbrenner (1973) faz entre a igualdade, que é um conceito quantitativo, e a equidade,
um conceito qualitativo, concebido de acordo com a justiça comutativa, a satisfação de necessidades. Esse mesmo princípio é partilhado por Vasconcellos (1996), para quem a equidade se
distingue da igualdade, ao pressupor a existência de características específicas das pessoas,
que as tornam diferentes entre si.
Banister (1986 apud Strambi, 2000) apresenta possíveis critérios de equidade em transporte classificados segundo os conceitos de equidade horizontal e vertical e de igualdade de
oportunidade e de resultados (Quadro 1).
Quadro 1 - Critérios de equidade em transportes segundo suas
dimensões
Fonte: Banister (1986 apud Strambi, 2000, p.112).
Esse autor considera as questões de distribuição dos serviços como estando preferencialmente ligadas aos critérios de equalização de oportunidades. Quando aspectos relacionados
a preços são importantes, o critério apropriado é o de equalização de resultados. No entanto,
pode o princípio da equidade horizontal ser atendido se forem tratados como iguais àqueles
que têm necessidades semelhantes de transporte (e não os que apresentam demandas iguais
por transporte). A equidade vertical deve então considerar que o atendimento a essas necessidades implica gastos que pesam diferentemente em função da renda dos usuários. A questão
de redistribuição de renda associada à estrutura tarifária e de financiamento deve ser tratada juntamente com a questão da necessidade de transporte.
Pegoretti e Sanches (2007, p.5) afirmam que “o sistema de transporte pode ser usado
para combater a segregação espacial, favorecer a inclusão ao espaço urbano e manter a vida
141
BRAGA, S. R. E SOUZA, M. M. O.
A (IN)JUSTIÇA SOCIAL E A CIDADE: NOTAS...
social e cultural dessa comunidade”. É nesse contexto que esses autores advogam que “a
acessibilidade às atividades e aos serviços urbanos merece atenção especial” por estar “diretamente relacionada ao aspecto sócio-espacial e, consequentemente, à qualidade de vida da
população, podendo mitigar as condições de barreiras enfrentadas pelos ‘excluídos’ no espaço
urbano”.
GEOGRAFIA DOS TRANSPORTES, EQUIDADE E JUSTIÇA SOCIAL
É preciso reconhecer, como Gondim (2001, p.10), que “o consumo do espaço pelo usuário de automóvel é oito vezes maior do que o consumo de um passageiro de transporte coletivo” e que, em consequência da prioridade dada ao transporte motorizado individual, aumentam-se “a distância a ser coberta pelos pedestres e ciclistas e o tempo de percurso dos usuários
de transporte coletivo”.
Se a geografia dos transportes preocupa-se, como afiançam Hoyle e Knowles (2001),
com a explicação da perspectiva espacial sócio-econômica, industrial e estrutura de povoamento, no qual a rede de transporte se desenvolve e o sistema de transporte opera, o aspecto
espacial da equidade merece consideração. Este se vincula à distribuição geográfica da oferta
de transportes, com o consequente impacto diferencial sobre a acessibilidade das diferentes
regiões (e os indivíduos que nelas vivem).
Do ponto de vista prático, a análise de equidade pode ser realizada através de
mapeamentos, onde o método utilizado para a elaboração de mapa de equidade foi o de confrontar espacialmente os índices de acessibilidade com os dados socioeconômicos, de maneira
que a variação espacial pudesse ser examinada.
Nesse sentido, Smith (1977 apud Farrington; Farrington, 2005, p.135) lembra-nos que
“a localização no espaço é muito relevante para as oportunidades individuais de vida”. Isso
coloca em pauta a discussão sobre equidade e justiça na geografia, na qual a acessibilidade
tem papel relevante. Esses autores afirmam que o engajamento geográfico com a justiça social data pelo menos das três últimas décadas e pressupõe o compromisso com a inclusão social,
expressa na participação das pessoas na sociedade por intermédio do livre acesso ao emprego,
à educação e ao lazer. A acessibilidade emerge, nesse contexto, como condição sine qua non
para a inclusão social e uma das dimensões da justiça social.
Reconhecendo o Estado como o principal agente do agenciamento da justiça social,
argumenta-se sobre a motivação dos baixos investimentos em ampliação da acessibilidade,
em face de pertinência de concebê-la como bem-estar, propiciador de maior igualdade e liberdade.
In order to be able to act at all, certain conditions must be in place […] to pursue my
conception of the good I must be first of all free from the coercion of others, but equally
I have to have access to those goods which will satisfy my basic needs as positive aspects
of the generic conditions of agency in order for me to act autonomously. These needs will
be focused on physical security, health and education. Without having these conditions
and skills in place as generic conditions of action, I shall not be able to act at all efficiently.
Social justice is therefore concerned with a fair distribution to meet such generic conditions
of agency (Plant, 1998 apud Farrington; Farrington, 2005, p.145)2 .
Farrington e Farrington (2005) afirmam ser necessário identificar as questões relativas à acessibilidade, no âmbito da discussão sobre direitos, estabelecida no bojo da crise do
welfare state. Apesar dos críticos do Estado do bem-estar social, que advogam que as necessidades não podem ser satisfeitas e que essas são culturalmente relativas, esses autores defendem o acoplamento das necessidades de acessibilidade com direitos, reconhecendo a interface
entre a conceptual province and the province of politics and policy.
2
Para ser capaz de agir, certas condições devem estar no lugar […] para perseguir minha concepção de bem eu devo para
começar estar livre da coerção dos outros, mas igualmente eu tenho que ter acesso aqueles artigos que irão satisfazer
minhas
142
Terra Livre - n. 31 (2): 133-144, 2008
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As deficiências verificadas na acessibilidade urbana – relacionadas aos padrões de
ocupação do espaço urbano, à configuração da infraestrutura viária e de transporte – acabam
para obstaculizar a mobilidade social ascendente pela restrição às oportunidades de educação
e trabalho.
A acessibilidade está diretamente relacionada à qualidade de vida dos cidadãos e traduz a possibilidade do indivíduo participar das atividades do seu interesse. No Brasil, um
país com elevada concentração de renda, os usuários do transporte público pertencem em sua
maioria às camadas mais empobrecidas da população. Perversamente, a decisão sobre a estrutura tarifária e os mecanismos de financiamento, em conjunto com a reduzida capacidade
de pagamento de uma parcela significativa da população, pode estar impossibilitando as pessoas de atender suas necessidades, limitando, drasticamente, sua acessibilidade.
As tentativas de incorporar o conceito de equidade nas ferramentas de análise da
microeconomia esbarram na questão da comparabilidade interpessoal, inevitável quando os
impactos esperados envolvem distribuição de renda. A própria conceituação de equidade apresenta dificuldades, devido à sua relação com questões filosóficas e morais, que são interpretadas à luz dos valores de uma sociedade em uma dada época, portanto, mutáveis.
Dada a relação entre a equidade e a justiça social, é necessário estabelecer suas bases
práticas e teóricas, definindo-se o que pode ser considerada uma distribuição justa e o que
justifica as reivindicações dos indivíduos sobre o produto da sociedade.
A literatura registra proposições diversas e distintas dimensões da equidade. Não há
como negar, contudo, o caráter espacial que essa análise comporta e a centralidade que a
acessibilidade assume nessa discussão. Trata-se de um debate da maior relevância social, do
qual a Geografia dos Transportes não pode se furtar.
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autonomamente. Estas necessidades estarão focadas em segurança física, saúde e educação. Sem ter estas condições e
habilidades no lugar como condições genéricas de ação, eu posso não ser capaz de agir eficientemente. Justiça social
preocupa-se, por isso, com uma justa distribuição para encontrar tais condições genéricas de intervenção (Plant, 1998
apud Farrington; Farrington, 2005, p. 145). Tradução livre dos autores.
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Recebido para publicação dia 22 de fevereiro de 2009
144
HIDROTERRITÓRIOS
A INFLUÊNCIA DOS
RECURSOS
HÍDRICOS NOS
TERRITÓRIOS DO
SEMI–ÁRIDO
NORDESTINO*
HYDRO-TERRITORIES
THE INFLUENCE OF
WATER RESOURCES IN
SEMI- ARID
TERRITORIES IN THE
NORTHEAST REGION
HIDRO-TERRITOIRIE
L’INFLUENCE DES
RESSOURCES
HYDRIQUES DANS LES
TERRITOIRES DE LA
REGION DEMI ARIDE
NORD-EST BRÉSILIENE
AVANÍ TEREZINHA
GONÇAL
VES TORRES
ONÇALVES
Resumo
Resumo: A formulação da idéia de “hidroterritório” surgiu da busca
pelo entendimento da importância da gestão dos Recursos Hídricos
e sua influência nos territórios do semi-árido do Nordeste brasileiro, onde a água tem papel preponderante na organização espacial. A base do conceito é empírica e o exemplo apresentado em
Alagoinha-PE, onde um projeto do Banco Mundial foi desenvolvido, retrata as relações políticas pelo controle da água no semiárido nordestino.
Palavras-Chaves: hidroterritório, água, conflito, recursos hídricos,
semi-árido.
Abstract
Abstract: The formulation of the idea of “hydro-territories”
emerged from the search for the understanding of the importance
of water resource management and its influence in Brazilian
Northeast’s semi-arid territories, where water plays a major role
in special organization. The basis of the concept is empirical and
the example presented is in Alagoinha-PE, where a project by the
World Bank was developed, portraying the political relations for
the control over water in the Northeast region semi-arid
territories.
Key-words: Hydro-territories, water, conflict, water resources,
semi-arid.
Résumé
Résumé: La formulation de l’idée de “hidro-territoirie” est apparue
de la recherche par la compréhension de l’importance de la gestion
des Ressources Hydriques et son influence dans la configuration
des territoires de la region demi aride nord-est brésilienne, où
l’eau a papier prépondérant dans l’organisation spatiale. La base
du concept est empirique et l’exemple présenté dans AlagoinhaPE, où un projet de la Banque Mondiale a été développé, fait le
portrait les relations politiques par le contrôle de l’eau dans la
region demi aride nord-est brésiliene.
Mots-clés
Mots-clés: hidro-territoire, eau, conflit, ressources hídridos,
regions demi árides
Depto. de
Economia - UFPB
[email protected]
PEDRO COST
A
OSTA
GUEDES VIANNA
Depto. de Geografia
- UFPB
[email protected]
* Resumo do Capítulo: A Luta
de Classe pela Água, da Dissertação de Mestrado de Avani
Terezinha Gonçalves Torres
Terra Livre
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 145-162
Jul-Dez/2008
145
TORRES, A. T . G. E VIANNA, P. C. G.
HIDROTERRITÓRIOS A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS...
INTRODUÇÃO
As relações entre a gestão dos recursos hídricos e a gestão territorial são apontadas
como essenciais para a compreensão das configurações territoriais por diversos autores, um
dos pioneiros foi Jaques Bethemont que ao definir “espace hydraulique” para o vale do Reno,
caracterizou os Recursos Hídricos como o articulador principal da produção de energia, da
navegação, da localização industrial, da produção agrícola e das bases do planejamento
territorial, onde todos estes aspectos são derivados do controle das águas (BETHEMONT,
1995). Muito recentemente Stéphane Ghiotti afirma que a gestão territorial das águas é uma
das chaves de compreensão da organização do território e de seu funcionamento, mas é igualmente uma ferramenta de organização do território (GHIOTTI, 2006), no mesmo sentido,
Danièle Lacerna ao estudar as comunidades mediterrâneas enfatiza que a gestão dos recursos hídricos quase sempre determina uma organização social original a ela vinculada, sendo
a formatação territorial definida pela interdependência estrutural da rede hídrica (LARCENA,
1999).
A se afirmar a importância dos recursos hídricos na formação territorial, não se está de
forma alguma desprezando a “Geografia”, pois esta a ciência mais diretamente preocupada
com os fatores estruturantes da construção/desconstrução dos territórios. Porém, na tentativa de compreender os territórios no semi-árido nordestino depara-se com o desafio de compreender o papel dos recursos hídricos, cuja disponibilidade é consequência da própria definição
de “semi-árido”. É exatamente desta ação de procura, que resultou a formulação da idéia de
hidroterritório, território em movimentos espaciais e temporais. Estes movimentos se percebem tanto nos temas relacionados com os aspectos humanos como os físicos da geografia,
dicotomia tão ao gosto dos geógrafos, mas ao mesmo tempo tão prejudicial à compreensão do
objeto geográfico.
Desde sua ocupação inicial no século XVI, existem registros de secas no sertão nordestino, algumas anteriores à chegada dos portugueses. Sua influência sobre a organização social e econômica das populações indígenas, contudo não teria sido tão intensa quanto a observada com o adensamento populacional do território a partir do século XVIII (ANDRADE, 1985).
Após um longo período em que a política pública dominante para o semi-árido nordestino foi
a do combate à seca, que teve seu auge, entre as décadas de 1930 e 1980, nas últimas décadas
do século XX e princípio do século XXI observa-se uma nova fase onde parte da população
organizada em movimentos sociais busca a “convivência com a semi-aridez”. Esta nova ideologia valorizou a integração entre território e recursos hídricos, relação esta de difícil convivência sob a ideologia do “combate à seca”.
Assim partindo de estudos empíricos realizados nos Estados da Paraíba e Pernambuco,
este texto pretende relatar o atual estágio da busca do entendimento dos territórios em zonas
semi-áridas, e da construção do conceito de hidroterritório. Não se partiu das idéias dos
colegas franceses citados anteriormente, mas os autores deste texto sentem-se menos isolados, ao encontrar geógrafos que entendem a importância das águas e dos recursos hídricos na
formação territorial.
Os T
erritórios Simbólicos
Territórios
No Semi-árido nordestino brasileiro, a luta de classe tem uma particularidade que é a
ação política da oligarquia agrária, possuidora da terra, que exclui, os pequenos proprietários
e suas famílias do acesso à água. Por outro lado, os senhores de terras visando o incremento
de seu patrimônio, através de favorecimento via gestão pública da água, obtém financiamento do Estado para melhorias em suas terras (por exemplo, estocagem de água) em benefício
privado, acarretando um crescimento desigual com extremos de riquezas e miséria por meio
da exploração dos trabalhadores rurais desprovidos da terra/água. Os detentores do poder
econômico elegiam seus representantes que aprovavam projetos em benefício das oligarquias
locais, os coronéis, os senhores de terras, segundo Garjulli (2003, pág 1).
O Estado brasileiro, em especial na região semi-árida, tem longa tradição de intervenção de caráter centralizador e fragmentado no setor hídrico, pois as iniciativas sempre
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Terra Livre - n. 31 (2): 145-162, 2008
partiram de decisões governamentais de caráter unilateral e, não raro, para atender
interesses pontuais, particulares ou setoriais, quer seja na construção de barragens, em
projetos de irrigação, perfuração de poços ou construção de adutoras.
Estes [senhores das terras] passam a ser também, [senhores das águas], assim como
proposto no conceito de PETRELLA (2002, pág 21) “se as tendências atuais com relação à
água continuarem, nos próximos vinte ou trinta anos, os [senhores da terra] ameaçam se
transformar em [senhores da água]”.
Os instrumentos usados pela oligarquia agrária no semi-árido nordestino para promover seus interesses têm origem na dominação das terras e também das águas
águas, elemento escasso para a reprodução das riquezas nesse território. Durante o processo de ocupação dessa
região, sempre existiu alguma forma de dominação baseada na posse da terra desde as
sesmarias. Do descobrimento até a atualidade, a distinção de classes e de dominação territorial
sempre foi muito clara no Nordeste. Os senhores de terras obtinham riqueza, via exploração
da classe desprovida da terra, e através do favorecimento das políticas públicas de desenvolvimento do território.
O valor manifestado pelo potencial hídrico de um território, potencializado pelo avanço
tecnológico, em tese deveria beneficiar a toda a comunidade local, e não apenas favorecer a
trajetória de concentração de poder econômico, praticado sob a barganha de políticas
eleitoreiras, onde o voto é subjugado à oligarquia dos senhores de terras e águas do Nordeste
brasileiro. Neste sentido Gomes (2002) afirma que:
A política hídrica para a região, em sua fase hidráulica, priorizou a construção de obras,
sem garantir o uso público da água acumulada em milhares de açudes, de pequeno e
médio porte, que se tornaram “privados”, por estarem localizados dentro de propriedades privadas. Quanto aos grandes reservatórios, administrados por órgãos estatais
garantiu-se sua utilização pública sem, contudo, articular esta disponibilidade de água
com outras políticas públicas, tais como as políticas agrícolas e agrárias, o que serviu
para potencializar a capacidade produtiva de quem já era proprietário de terra, quer
seja nas proximidades dos açudes ou mesmo ao longo dos vales que se tornaram perenes
devido à liberação de águas desses reservatórios nos períodos de escassez.
A reprodução social que persiste por séculos no Nordeste do Brasil possui algumas
características bem particulares, entre elas: ser o semi-árido mais habitado do planeta, ter
uma estrutura fundiária concentradora e um baixo índice de desenvolvimento humano. Por
outro lado, a produção agrícola tradicional dessa região foi perdendo lugar para as novas
técnicas impostas pelo modelo de capitalismo globalizado. A necessidade de maior produtividade assumiu como pressuposto, o cultivo intensivo do solo, monocultura, irrigação em larga
escala, aplicação de fertilizantes inorgânicos, controle químico de pragas e manipulação genética de plantas cultivadas. Os municípios de Aparecida e Sousa na Paraíba são exemplos de
áreas onde ocorre uma gestão direcionada ao fomento de políticas públicas que favorecem a
produção agrícola em escala industrial2 . Nessa perspectiva surgiram conflitos de cunho social
dada à possibilidade do acesso à água com a implantação de adutoras e canais de transposição, que são de certo modo, rios artificiais implementados pela técnica. Do global ao local é
possível apontar conflitos pelo uso da água, desde civilizações milenares, como o caso da
hidroresistência ao pagamento da água que ocorreu em Cochabamba3 e a hidropirataria da
água que aconteceu na Índia, onde a Coca-Cola poluiu e comprometeu todo o potencial hídrico
de uma região, pela captação indevida e poluição dos mananciais.
Para uma análise dos conflitos hídricos se faz necessário compreender como as dinâmicas das resistências locais às mudanças se estabelecem e se manifestam através da luta de
2
Entendida aqui como Agronegócio tendo como características a concentração de terras, tecnologias e renda, investindo
estes fatores na monocultura irrigada formando assim, em alguns casos, um hidronegócio, tendo a água como insumo
básico para promover a produtividade e competitividade do setor agrícola.
3
Conflito conhecido como a Guerra da Água, que opôs em abril de 2000, a população urbana e rural da Província de
Cochabamba na Bolívia, ao Consórcio Águas Del Tunari, formado majoritariamente pela multinacional de origem norteamericana Bacthel, e capitais privados bolivianos em posição minoritária. Foi preciso intervenção do Governo Central e o
Exercito reprimiu os manifestantes, causando mortes na população civil. Atualmente um processo jurídico, movido pelos
investidores estrangeiros demanda ao Estado Boliviano o pagamento de pesadas indenizações. Mais informações em
www.aguabolivia.org
147
TORRES, A. T . G. E VIANNA, P. C. G.
HIDROTERRITÓRIOS A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS...
classe pelo direito de acesso à água, como uma face da luta pela democracia, assim como,
compreender as relações sociais criadas e “aparentemente resolvidas” com a privatização da
água. Deve-se também verificar o processo histórico, já que se trata da contínua necessidade
real ou artificializada do homem utilizar a água e dela obter poder sobre um território. Esse
poder, seja simbólico (proclamado pela cultura) ou econômico, é eminentemente geográfico, já
que atinge territórios locais com abundância ou escassez hídrica. Na abundância são cobiçados pelo poderio econômico como insumo produtivo e na escassez são disputados pelas lideranças políticas e/ou ômicas para o domínio do território. Corrobora para esta interpretação
Garjulli (2003, pág 4) quando afirma que:
Entre os desafios que se colocam para implementação da política de gestão participativa
dos recursos hídricos na região semi-árida, está a herança cultural e política de práticas
clientelistas e conservadoras consolidadas na relação entre o Estado e a sociedade. Historicamente, as oligarquias rurais detiveram o controle dos órgãos de implementação
das políticas de combate à seca e reforçaram, em suas intervenções, a vinculação da
propriedade privada da terra e da água.
Essa reflexão teórica, também deve ser empírica, como reflexo de uma “práxis
transformadora” para que se possa balizar o quadro natural, a técnica da gestão e a complexa
rede de culturas da água existente no mundo, e que são reproduzidas a nível local com a
aceitação de uns e resistência de outros, como os caso estudado e descrito a seguir.
UM HIDROTERRITÓRIO PRIV
ADO: O CASO DA COMUNIDADE DE PERPÉTUO
RIVADO
SOCORRO, ALAGOINHA-PE.
Durante os levantamentos de casos diferenciados de gestão de água no semi-árido
nordestino, uma informação despertou especial interesse. Em um de seus relatórios de atividades4 , o Banco Mundial (BM) divulgava a respeito de uma experiência bem sucedida de
gestão da água ocorrida no município de Alagoinha – PE (Figura 2), contemplado com um
dessalinizador5 , “fabricando” novas águas para o consumo, que em tese se viabilizaria através de um sistema pré-pago de acesso à água para a “dessedentação humana”. A notícia divulgava que na cidade existia uma gestão comunitária que teve início em setembro de 1996,
através do “Projeto Água para Todos” do Governo Federal. No documento, o BM afirma que a
Associação das Mulheres de Perpétuo Socorro (Distrito de Alagoinha - PE) administrava de
forma eficiente o sistema dispensando até a ajuda do governo municipal para custear a manutenção, o relatório do Banco Mundial (2006, 0nline) informa que:
No município de Alagoinha, em Pernambuco, a Associação de Mulheres da comunidade
de Socorro liderou a iniciativa de 3.500 habitantes locais para resolver o problema do
abastecimento de água. Apoiadas na utilização de um poço já existente, elas obtiveram
recursos do programa de combate da pobreza rural, financiado pelo Banco Mundial,
para um subprojeto no valor de R$ 41.500,00 que consistia em um tanque de água com
capacidade para armazenar 20.000 litros, um poço público e um equipamento de
dessalinização com capacidade para 4.000 litros, para abastecer toda a comunidade. A
água dessalinizada não necessita de tratamento e tem boa qualidade, como revelaram
os testes solicitados pela Associação.(...) O sistema existente é totalmente administrado
pela associação, que mantém um empregado permanente, recebendo um salário mínimo, além de um ajudante, cuja remuneração corresponde a 20% da arrecadação mensal
do sistema. A associação utiliza um método bastante inovador e seguro de cobrança da
água usada pelas famílias beneficiadas: adotou um tipo específico de cartão para ativar
um mecanismo eletrônico que abre a bica do poço e libera 20 litros de água por vez. Cada
cartão custa R$ 0,10. Essa iniciativa garante à associação uma renda mensal em torno
de R$ 600,00, suficiente para manter o sistema (...) O processo funciona tão bem que a
comunidade pôde recusar as contribuições do governo municipal para ajudar na manu-
4
Em http://www.obancomundial.org/index.php/content/view_document/1646.html
5
O dessalinizador através de um sistema de filtragem em tubos, utilizando membranas e submetendo a água “salobra” a
passagem forçada por pressão nestas membranas, produz água “doce”, ou seja, com níveis de sais toleráveis.
148
Terra Livre - n. 31 (2): 145-162, 2008
tenção do sistema”.
Como é objetivo de reconhecer territórios diferenciados de gestão da água, esse seria
um território onde se poderia verificar a intenção de promover o acesso à água para população, através do pagamento, tornando-o um episódio singular de gestão comunitária de água
com tarifa pré-paga. Ou seja, com a introdução de um equipamento decorrente do avanço
técnico, todo o sistema de gestão existente anteriormente nesse lugar seria mudado. O novo
tempo técnico promoveria novas águas para consumo e conseqüentemente uma nova gestão.
Como a cultura local já possuía o hábito de comprar a água devido à escassez, a nova modalidade de cobrança foi aceita pela população que não ofereceu a menor resistência às novas
regras, que geraram um novo território que oficializava a água com valor econômico.
Nas duas visitas de campo realizadas em Alagoinha – PE, a primeira no mês de outubro de 2006 na sede do município e no distrito de Socorro, foram entrevistadas autoridades
locais, representantes da associação de Socorro e os aguadeiros locais. A segunda visita ocorreu no mês de janeiro de 2007, no distrito do Sítio Campo do Magé, onde foi possível reunir
um maior número de moradoras para apreender através de entrevistas semi-estruturadas a
memória oral da comunidade e a observação in loco, do real processo de mudança promovido
pela água dessalinizada que ocorre nesse hidroterritório.
Figura 1 – Localização do Município de Alagoinha – Pernambuco.
Registro Espacial de Alagoinha, Pernambuco.
Alagoinha, cidade do Agreste de Pernambuco, possui uma área de 180,16 Km2, localizada na microrregião do Vale do Ipojuca a uma altitude de 726 metros. Sua população estimada em 2006 era de 13.619 habitantes6 . O nome da cidade surgiu, segundo alguns moradores,
devido à presença no local de uma grande quantidade de pequenos tanques, poços e lagoas,
muitas delas salobras e impróprias para o consumo humano. Administrativamente a cidade
possui um distrito e diversos povoados, entre eles os visitados no decorrer da pesquisa: Distrito de Perpétuo Socorro e os povoados de Campo do Magé e Salambaia. Segundo o diagnóstico
6
Fonte: IBGE - Estimativas populacionais para o TCU Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br /cgi/tabcgi.exe?ibge/
cnv/poptpe.def. Acesso em 06 de Janeiro de 2007
149
TORRES, A. T . G. E VIANNA, P. C. G.
HIDROTERRITÓRIOS A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS...
de fontes da CPRM7 , o quadro natural da região pode ser descrito como:
O município de Alagoinha, está inserido na unidade geoambiental do Planalto da
Borborema, formada por maciços e outeiros altos, com altitude variando entre 650 a
1.000 metros. Ocupa uma área de arco que se estende do sul de Alagoas até o Rio Grande
do Norte. O relevo é geralmente movimentado, com vales profundos e estreitos dissecados, a fertilidade dos solos é bastante variada. A área da unidade é recortada por rios
perenes, porém de pequena vazão e o potencial de água subterrânea é baixo. A vegetação
desta unidade é formada por Florestas Subcaducifólica e Caducifólica, próprias das áreas agrestes.
De acordo com o diagnóstico acima citado, o município possui 3.315 domicílios particulares, cerca de 33% desse total possuem acesso à rede geral de água; outros 5,3% são atendidos por poços ou fontes naturais; e 61,8% por outras formas de abastecimento. Este último
grupo, ampla maioria, necessita recorrer ao abastecimento por carros-pipa ou a buscar água
diretamente em barragens. Porém, estar incluído nas estatísticas de acesso à rede de água,
não significa ter acesso com regularidade em sua residência. Muitos moradores relatam “usufruir muito pouco” do serviço já que ele é interrompido rotineiramente, segundo uma moradora da sede do município: “A COMPESA (Companhia de Abastecimento de Água e Esgoto de
Pernambuco), passa dentro de Alagoinha dois a três meses sem água e não se faz nada!”.
Numa entrevista realizada em outubro de 2006 com o ex-prefeito da cidade
(1997-2000) e atual responsável pelo escritório local da COMPESA, este descreve o serviço de
abastecimento local nos últimos vinte anos, afirmando que em Alagoinha:
.(...) antes de 1984, o sistema era abastecido por carro pipa, a população da zona urbana
era menor, chovia com mais freqüência ao redor da cidade e as pessoas se mantinham
com isso. Depois houve uma evasão muito grande da zona rural para a zona urbana e
começou a faltar água na cidade, então completávamos com carros pipas. O nosso abastecimento já está ultrapassado por que a nossa adutora é de 150 mm, e a população da
zona urbana que era de mais ou menos umas duas a três mil pessoas agora está em oito
mil ou mais, ao todo temos 13 mil habitantes no município. (...) Na zona rural a água é
das barragens e geralmente quase todos os anos, usa-se carro-pipa, mesmo agora tem
localidade abastecida com carro-pipa. E quem abastece é convênio do governo federal
com estadual, mas geralmente é estadual com município, (...) (Entrevista concedida,
novembro de 2006).
O primeiro trabalho de campo realizado no município de Alagoinha ocorreu num momento pré-eleitoral, e foi possível flagrar um caminhão pipa responsável pela distribuição de
água com propaganda do candidato da situação ao Governo de Pernambuco (Figura 2).
7
cprm
pernambuco
relatorio
Disponível em : www.cprm
cprm.gov.br/rehi/atlas/pernambuco
pernambuco/relatorio
relatorios/ALAG008.pdf
150
Terra Livre - n. 31 (2): 145-162, 2008
Figura 2: Foto de caminhão terceirizado de distribuição de água circulando com adesivos de campanha política no período
eleitoral.
Autoria: Avaní Torres, novembro de 2006
O domínio da oligarquia política nordestina8 é típica no município de Alagoinha – PE,
nas quatro últimas eleições todos os prefeitos eleitos são de um mesmo partido e o município
vem sendo administrado em três dos quatro últimos mandatos (1983-1988 / 1993-1996/ 20042008) diretamente pela família Paes. Desde a emancipação política da cidade o poder local é
dominado por duas famílias, os “Galindo”, que tiveram predomínio dos anos 40 até a metade
dos anos 70 do século passado, e a segunda, a família “Paes”, que domina desde os meados dos
anos de 1980, até os dias atuais. Os cidadãos que se opõem às oligarquias políticas locais são
chamados de “Boros” 9 .
O uso da máquina pública para interesses pessoais é reproduzido pelas oligarquias e
seus correligionários políticos. Desde a Prefeitura até as associações comunitárias, todas as
organizações são “administradas” pelos que detêm o poder político. Num dos relatos uma
moradora, compara o poder existente na associação com o poder político do atual prefeito da
família “Paes”, quando afirma que:
Márcia é a Presidente da Associação assim como o Prefeito é o Prefeito. O Prefeito de
Alagoinha quando tem uma eleição ele bota um irmão dele pra ser o Prefeito mais quem
8
Para ANDRADE (1985), refletindo a respeito desse tipo de estrutura econômica: “[...] a preservação do mandonismo
local é um reflexo das relações sócio-econômicas da região. Enquanto estas relações forem mantidas, as oligarquias e os
‘coronéis’, mesmo tendo perdido sua posição hegemônica, continuarão sendo um dos componentes do bloco de poder, onde
se inserem de forma subordinada” (1985, p. 12).
9
O termo Borós na linguagem popular local é depreciativo, denotando um sujeito de pouco valor, significado associado a
um cigarro de palha de baixa qualidade.
151
TORRES, A. T . G. E VIANNA, P. C. G.
HIDROTERRITÓRIOS A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS...
manda é ele! Carmelita na Associação botou Márcia que é a sobrinha dela, tudo que vem
tem que passar por Carmelita se ela aprovar Márcia faz. Carmelita anda muito ela vai
pra Brasília, vai pra Recife, aí quando vem o projeto, é do jeito que ela quer.
Tudo indica que a forma de fazer política da oligarquia, é o único modo conhecido no local, e mesmo em Associações comunitárias, geridas pelos chamados “Boros”, o sistema
de certa forma se reproduz.
TRÊS FASES DO ESP
AÇO E DO TEMPO DAS ÁGUAS EM ALAGOINHA-PE
SPAÇO
O dessalinizador instalado na comunidade de Salambaia (entre a sede do município de
Alagoinha e o distrito de Perpétuo Socorro) teve como executora a COMPESA, com recursos
oriundos do Banco Mundial, em parceria com o Governo de Pernambuco, através da Secretaria de Infra-estrutura, na gestão 1994-1998 (Figura 3). Mas foi uma iniciativa da Associação
das Mulheres de Perpétuo Socorro.
Figura 3: (Detalhe) Placa na instalação predial onde se encontra o dessalinizador (Salambaia Distrito de Alagoinha - PE)
Autoria: Avaní Torres , novembro de 2006
Com a ativação do equipamento ocorreu uma mudança na disponibilidade de água com
qualidade na comunidade. É oportuno ressaltar que o projeto foi implantado nas comunidades sem o aval do poder público local. Houve uma tentativa por parte da prefeitura de administrar o sistema, porém, isso “não foi aceito pelas comunidades”. Como o projeto fazia parte
de uma política estadual adversária naquele momento do poder local, o sistema inicialmente
teve a administração da COMPESA, e com poucos meses de inaugurado foi entregue para
administração das comunidades beneficiadas. Foi exatamente a dissociação entre os poderes
municipal e estadual, que permitiu o avanço do projeto em sua fase inicial. Assim está mais
do que evidenciada a relação direta entre o poder político, inclusive eleitoral, e o controle do
acesso aos estoques de água doce nessa comunidade, este é o padrão observado em todo o
semi-árido nordestino.
Segundo o Banco Mundial, nas comunidades assistidas pelo programa, existia uma
norma de pagamento da água, com fichas, comercializadas e vendidas. Em trabalhos de
campo verificou-se que o sistema implantado em 1996 de administração comunitária do sistema pré-pago da água persistiu por dois anos em Salambaia e Perpetuo Socorro. Na comunidade de Campo do Magé não chegou a existir, porque apesar de previsto, os recursos não foram
suficientes para a instalação da rede de adução, até esta Comunidade.
A administração do sistema beirava a informalidade. Do valor arrecadado parte do
dinheiro, servia para “ajudar” a mulher que prestava o serviço de cobrança, segundo uma
moradora:
Comadre Nene despachava a água e ela não tinha marido aí arrecadava dez centavos de
cada um e desses dez centavos as pessoas que eram responsáveis eu acho que pagavam
o dia pra ela e o resto usava pra trocar uma torneira quando precisava. O governo e a
152
Terra Livre - n. 31 (2): 145-162, 2008
prefeitura não davam nenhuma ajuda, nós é que tivemos que reunir todos os moradores
e dar aquela mensalidade pra ela por nossa vontade. (entrevista a concedida, janeiro de
2007).
Com a nova disponibilidade de águas, sob comando de um novo ator político, surgem
modificações na gestão dos recursos hídricos e novos enquadramentos do uso da água. Nesse
território, antes do dessalinizador, havia uma classificação que formava uma tipologia, um
enquadramento cultural das águas locais. De acordo com uma entrevistada: “(...) “a pouca
água disponível vinha das barragens, barragem de gasto, barragem dos animais10 (...)”, este
relato revela não apenas a cultura e o hábito local, ele aponta também, uma sistematização e
classificação de tipos de água de acordo com a utilidade que se possa ter, e que está relacionada com a hidroclasse a qual cada morador pertence. Antes de existir o dessalinizador, para se
ter água em casa, era necessário ter mais dinheiro para comprá-la.
A Figura 4 mostra como era feita a distribuição da água no momento anterior à implantação do dessalinizador. As comunidades não possuíam infra-estrutura de tubulação de
água, e essa era transportada por caminhões pipas (serviço público e privado) e caminhonetes
de particulares que vendiam a água. Os que não podiam comprá-la tinham como opção buscar
água em barreiros e barragens. Um antigo vereador afirmou que:
A gente tem um açude aqui que só abastece o distrito a gente não tem água encanada,
ele sacode pra cisterna e da cisterna o pessoal pega. Agora tem gente que tem assim: D10, D-20 e F400011 carregando água aí a pessoa que tem condições bota água pra casa.
(entrevista concedida, novembro de 2006)
A “condição” à qual o antigo vereador se refere corresponde à condição financeira. No
distrito de Perpétuo Socorro o comércio de água corre pelas ruas, com bombas instaladas nos
caminhões, assim bombeia-se para as residências a água que é vendida pelo valor de R$ 4,00
(quatro reais) o tambor de 200 litros (R$ 0,02/litro)
10
A ção publicada em FERREIRA, A.B.H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
Portuguesa. 3.ed. [S.l.]: Positivo, 2004.
2120p, barragem é “estrutura construída num vale e que o fecha transversalmente, proporcionando um represamento de
água; represa”.“Barragens de gasto” no linguajar popular dos moradores de Alagoinha, significa barragens com água
impróprias para beber, e as “barragens dos animais” significa a barragem usada para dessedentação dos animais.
11
Modelos de caminhonetes
153
TORRES, A. T . G. E VIANNA, P. C. G.
HIDROTERRITÓRIOS A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS...
Hidroterritório de Águas Privadas
Comunidade A
Comunidade B
Fontes privadas ou públicas
Fase 1
Comunidade C
Rota da Comercialização da água
Aguadeiros – Vendedores de água (hidrotraficantes)
Figura 4: Esquema do hidroterritório de águas privadas – Fase 1
O dessalinizador e o sistema de distribuição tinham o objetivo de atender a demanda
de água de três comunidades: Campo do Magé, Salambaia e do distrito de Perpétuo Socorro,
pertencentes ao município de Alagoinha. Com a inauguração dos serviços de dessalinização e
distribuição de água para reservatórios comunitários, os moradores passaram a administrar
o sistema através das associações comunitárias. De início o fornecimento de água era gratuito, mas logo em seguida passa a ser pago. O valor cobrado servia apenas para manter uma
pessoa para “controlar e receber os valores da cobrança e para fazer pequenos reparos na
rede”. Com a “nova” água potável os moradores tinham condições de atender suas necessidades, pois o preço era inferior, aproximadamente 4 (quatro) a 5 (cinco) vezes ao praticado anteriormente pelos aguadeiros. Uma lata de água que custava cinqüenta centavos quando
comercializada pelos aguadeiros locais passou a custar dez centavos. Nesse momento toda a
cadeia da distribuição particular da água comercializada pelos “hidrotraficantes” foi suspensa,
prejudicando os que investiam nesse segmento de serviços (Figura 5).
154
Terra Livre - n. 31 (2): 145-162, 2008
Hidroterritório de Águas Privadas
Comunidade A
Comunidade B
Fase 2
Comunidade C
x
Poço Comunitário/ Dessalinizador
Tubulação da água dessalinizada para
as comunidades
Tanque com chafariz de água
dessalinizada das comunidades
Figura 5: Esquema do hidroterritório de águas privadas – Fase 2
Com o passar do tempo, o dessalinizador precisou de manutenção e os valores cobrados
aos usuários não eram suficientes para cobrir os custos. Segundo uma das mulheres da associação de Perpétuo Socorro:
[...] no começo botava as latas na fila de noite pro outro dia de manhã pegar, primeiro era
grátis, mas depois não tinha condições pela manutenção do poço que era caríssimo, vendia, mais mesmo assim todo mundo queria comprar por que era uma água boa e limpa e
o poço tinha potência, uma vazão de muita água mas depois até isso diminuiu. A água
chegava até aqui por gravidade, só que o motor, e os aparelhos dava muito problema
desmantelava muito, aí sempre que a gente arrumava os aparelhos comia! Aí chegou até
um tempo de dizer assim que o rapaz veio de Recife e disse que precisava trocar as
membranas, aí ele disse que lá eram dezoito membranas, e dava um horror de dinheiro,
aí como não se tinha dinheiro né! Nem a gente tinha assim a quem recorrer [...]. Então
isso aí foi desmantelando [...].
Na última visita feita ao município, em janeiro de 2007, pôde-se verificar que o
dessalinizador que foi adquirido com verba do BM, no programa Água Para Todos, encontrase abandonado, o chafariz alimentado por ficha foi destruído (ver figura 6 e 7), e toda a tubulação que levava a água para as comunidades não existe mais. Com a obra de pavimentação
da estrada de acesso a Perpétuo Socorro, todos os canos foram arrancados e roubados por
empreiteiros ou por moradores locais. (figura 8 e 9).
155
TORRES, A. T . G. E VIANNA, P. C. G.
HIDROTERRITÓRIOS A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS...
Figura 6: Sistema pré-pago desativado em Perpétuo
Socorro distrito de Alagoinha - PE
Figura 7: Detalhe do medidor pré-pago
Autoria: Avaní Torres , nov. de 2006
Autoria: Avaní Torres , 11/2006
Figura 8: Obra de pavimentação da estrada de Alagoinha
a Perpétuo Socorro.
Autoria: Avaní Torres, janeiro de 2007.
Figura 9: Detalhe da estrada
Avaní Torres, janeiro de 2007.
A água distribuída no sistema comunitário, mesmo com o apoio do Projeto do Banco
Mundial não teve sustentabilidade e o comércio tradicional das águas local retornou
inflacionado (Figura 10). A população é obrigada a se submeter e reconhece o valor econômico
da água, que mesmo quando é pública, se torna moeda de troca. Atualmente todos os que
podem pagam o valor de mercado da água, estabelecido pelos aguadeiros (Figuras 11 e 12).
Nesse hidroterritório privado, os moradores aprenderam a identificar a qualidade da água
também pelo valor que tem que pagar. Se a necessidade de uma família corresponder a um
tambor/dia isso significa uma quantia de R$ 120,00 (cento e vinte reais) por mês, ou seja,
aproximadamente um terço de um salário mínimo naquele momento. Algumas questões podem ser aqui levantadas, por que a gestão do sistema poço/dessalinizador/chafariz foi entregue à comunidade sem que ela fosse informada dos custos de manutenção do equipamento?
Será que esta seria mais uma política da “indústria da solução”?12
12
Termo usado como crítica às políticas públicas voltadas para o “combate” à seca, implementadas no Nordeste brasileiro,
com volumosos investimentos e poucos benefícios à população.
156
Terra Livre - n. 31 (2): 145-162, 2008
Fase 3
Hidroterritório de Águas Privadas
Comunidade A
Comunidade B
Desativados
Poço Comunitário/ Dessalinizador
Tubulação da água dessalinizada para
as comunidades
Tanque com chafariz de água
dessalinizada das comunidades
Comunidade C
Em atividade
Fontes privadas ou públicas
Rota da Comercialização da água
Aguadeiros – Vendedores de água
(hidrotraficantes)
Figura 10: Esquema Hidroterritório de águas privadas – Fase 3
Figura 11: Aguadeiro, profissão de origem secular, ainda
existente no município de Alagoinha - PE
Figura 12: Carros-pipa vendedores e distribuidores de
água no município de Alagoinha-PE.
Autoria: Avaní Torres , janeiro de 2007
Autoria: Avaní Torres, janeiro de 2007.
157
TORRES, A. T . G. E VIANNA, P. C. G.
HIDROTERRITÓRIOS A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS...
A cultura da água em Alagoinha reconhece há décadas a água como mercadoria, os
novos estoques não foram mantidos por que a população não possuía qualquer domínio sobre
a tecnologia de “produção de água doce” via dessalinisador e sobre o hidroterritório retornando
a se sujeitar às práticas regidas pelos senhores das água locais. Na comunidade Campo do
Magé, a população relata que atualmente possui três opções de acesso à água:
•
1 - Abastecimento público sob a responsabilidade do Exército e da Empresa
Pernambucana de Pesquisa Agropecuária – IPA, que abastece as cisternas das comunidades;
•
2 - Compra aos aguadeiros locais, únicos que regularmente podem ser vistos
vendendo a água na cidade;
•
3 - Busca da água de sustento13 nas barragens, açudes e lagoas, utilizando-se de
carroças com tonéis adaptados (Figura 13).
Figura 13 – Morador em busca de água de sustento
Hidroterritório de águas políticas
A água em Alagoinha também é moeda de troca político-eleitoral, existindo um sistema de distribuição feita por carros-pipa, obedecendo ao roteiro determinado pela prefeitura,
que em tese deveria distribuir a água nas cisternas comunitárias com uma distância máxima
de dois quilômetros entre elas, de modo que cada morador não tivesse que caminhar muito
para suprir sua necessidade de água. Porém uma moradora relatou que as cisternas comunitárias abastecidas eram apenas as dos correligionários políticos do prefeito, que passaram a
ser as referências para abastecer as próximas cisternas, justificando assim o não abastecimento dos adversários políticos. “Recebe a água quem o prefeito quer que receba!” afirma a
jovem moradora. Os que não fazem parte da ala do prefeito são retaliados e excluídos dos
13
A água de sustento é definida pelas moradoras de Sitio Magé como toda a água necessária pala o consumo diário de uma
casa.
158
Terra Livre - n. 31 (2): 145-162, 2008
serviços de abastecimento de água, prestado pela prefeitura através de carros-pipa. Neste
hidroterritório caracterizado pela submissão política da população aos “donos da água”, no
jogo político eleitoral alimentado pelo controle da distribuição da água. A principal mercadoria trocada por votos é a água, usada como moeda de troca eleitoral. Associar o favorecimento
de distribuição da água à posição política partidária é prática comum por parte dos governantes
em todo o semi-árido do nordeste brasileiro, fato confirmado por algumas moradoras de Campo do Magé, ao relatar um dos episódios ocorridos na comunidade:
Aqui nós temos uma cisterna comunitária, minha outra irmã tem outra, tá tudo seco aí,
os caminhões num deram água. Sabe quantos meses que eu pedi e nunca veio, uma
“carrada” de água? Desde novembro perto da eleição. Eu pedi na Prefeitura, me dá uma
“carrada” de água, quando falei com Ica (funcionário), ele anotou e disse: -espere daqui
pra amanhã a água chega. E toda manhã o caminhão subindo, passando e nada de chegar água aí eu parei o caminhoneiro e disse cadê a água da gente? O caminhoneiro disse;
- não tá no meu roteiro não! (...) A água aqui só chega pra onde o prefeito quer isso é uma
verdade verdadeira digo isso mesmo sem medo! Pode ser o Presidente! E tem outra, se
passar uma “carrada” de água, por mais que o motorista conheça a gente e tenha muita
amizade, nós somos pobres mais temos muita amizade! Se ele parar e der um tambor de
água a uma de nós e alguém for lá entregar (denunciar), ele perde o emprego. Por que diz
assim os Borós pegaram água, (...) O motorista Nem parou aqui e eu pedi um tambor de
água por que eu não tenho os bois pra tirar, ele disse deixa eu voltar que eu te dou !
Quando foi uns cinco dias depois eu perguntei: - ô Nem tu vai deixar um tambor aqui?
Ele disse: Por Nossa Senhora! Não me peça não! Por que foram dizer ao prefeito que eu
tava dando água pros Borós!Você pode estar morrendo de sede, pode ter uma criancinha,
uma mulher gestante, um velhinho carquejando (morrendo) em cima de uma cama, e
você implorar, ele não deixa a água pra não perder o emprego! Ele pode ser amigo que for
mais pra perder o emprego não dá. Essa região aqui é a que mais sofre por causa da
água! (entrevista concedida, janeiro de 2007)
Em Alagoinha. os atores se organizam no espaço de forma a atender seus interesses e
intenções de acordo com seu grau de poder na hierarquia social. Desta forma é possível observar a forma de imposição da água privada que na essência existe e persiste. De uma lado os
senhores das águas, localmente denominados “aguadeiros” cuja intenção sempre foi
comercializar a água a do outro os excluídos, que buscam possuí-la custe o que custar.
Na evolução do conflito pôde-se verificar que os beneficiados com a paralisação do fornecimento de água pelo sistema comunitário foram os aguadeiros que retomaram a atividade
e a Prefeitura que permanece utilizando a água como instrumento político (Figura 14).
159
TORRES, A. T . G. E VIANNA, P. C. G.
HIDROTERRITÓRIOS A INFLUÊNCIA DOS RECURSOS HÍDRICOS...
C2
Figura 14: Esquema da evolução comportamental dos atores envolvidos no conflito no Município de Alagoinha – PE
C1 e C3 – Paga a água aos aguadeiros quando pode, normalmente apenas a água de
beber e cozinhar, a água de sustento busca-se nos açudes e lagos públicos.
C2 – Administrou e utilizou a água do poço/dessalinizador
A1 e A3 – Vende diversos tipos de água a quem pode pagar, inclusive para programas
do poder público (municipal, estadual ou federal).
A2 – Nesse período trabalhou para o fracasso da gestão do poço/dessalinizador.
P1 e P3 - Favorece a comercialização dos aguadeiros, já que não coíbe essa prática.
P2 – Tenta reivindicar a administração do sistema pré-pago sem sucesso.
CONCLUSÃO
As três fases aqui relatadas são uma analise na escala temporal de um território, em
um típico movimento de avanço e recuo, e relatam a luta pela posse e uso das águas, na forma
de uma luta de classes, entre os senhores das águas e os excluídos, num ambiente de semiaridez. A natureza, responsável pela escassez de água no espaço natural, não é a responsável
pela falta de água na vida dos excluídos, mas esta escassez é fator agravante e fator que
incrementa a luta pelo controle destes recursos hídricos. Quando detiveram o controle da
captação e produção de água doce, através de um poço com dessanilizador, os chamados “Boros”
tentaram criar uma gestão participativa, no pagamento de uma taxa pré-fixada, bem abaixo
do “mercado das águas”. Puderam naquele momento redesenhar a geografia política da gestão dos recursos hídricos naquele hidroterritório, mas por depender de uma tecnologia cara,
de difícil acesso, e que eles não dominavam. Fracassaram naquela ocasião porque não foram
instruídos sobre a necessidade de reposição e manutenção do sistema de captação e tratamento composto pelo poço e dessanilizador. O domínio do território passa pelo domínio da técnica
e da ciência, algo que nos remete a refletir sobre a obra de Milton Santos e sua proposição de
um período técnico-científico informacional (1994).
160
Terra Livre - n. 31 (2): 145-162, 2008
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Recebido para publicação dia 03 de março de 2009
162
A AUTORIA DE
LIVRO DIDÁTICO DE
GEOGRAFIA EM
PERNAMBUCO NO
SÉCULO XIX: UMA
RELAÇÃO ENTRE A
LEGISLAÇÃO E A
ELABORAÇÃO
THE AUTHORSHIP OF
TEXTBOOK OF
GEOGRAPHY IN
PERNAMBUCO IN THE
19TH CENTUR
Y: A
CENTURY
RELATIONSHIP
RELA
TIONSHIP
BETWEEN THE
LEGISLATION
LEGISLA
TION AND THE
ELABORATION
ELABORA
TION
AUTORES DE LIBROS
DIDÁCTICOS DE
GEOGRAFIA EN
PERNAMBUCO EN EL
SIGLO XIX: UNA
RELACIÓN ENTRE LA
LEGISLACIÓN Y SU
CREACIÓN
MARIA ADAILZA
MARTINS DE
ALBUQUERQUE*
UNIVERSIDADE
FEDERAL DA PARAÍBA UFPB
[email protected]
* Professora Adjunto do
Centro de Educação
Agência Financiadora CNPq
Terra Livre
Resumo: Estamos construindo junto ao grupo de pesquisa Ciência, Educação e
Sociedade na Universidade Federal da Paraíba – UFPB, uma pesquisa que tem
como objetivo compreender a contribuição do livro didático para a história da
geografia escolar. Nesta perspectiva estamos apresentando alguns resultados
(ALBUQUERQUE, 2006, 2007 e 2008), neste trabalho destacaremos as primeiras
análises sobre a relação entre a legislação que regia o ensino primário de geografia
no século XIX em Pernambuco, a elaboração de livros didáticos que foram
publicados na perspectiva do cumprimento da legislação vigente e a figura do
autor naquele contexto histórico. Entre as publicações do século XIX, catalogadas
no Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, um livro e uma lei nos
chamaram a atenção: no ano de 1875, a lei número 1:143, art. 33 S 7º determinou
às escolas daquela província a obrigatoriedade do “[...] ensino dos elementos de
Historia e Geographia Universal. Historia e Geographia do Brazil, especialmente
desta província.” No ano seguinte foi publicado um livro didático de geografia
trazendo exatamente as determinações referidas na lei: Elementos de Geographia
universal - Geral do Brazil e especial de Pernambuco para a infância escolar da
província de Pernambuco, de autoria de Manuel Pereira de Moraes Pinheiro,
editado pela Typographia Mercantil. Neste trabalho analisaremos a relação entre
essa lei e a publicação desse material didático, buscando compreender o papel
dos legisladores e dos autores de livros didáticos.
Palavras chave: Livro didático, História das disciplinas escolares, Ensino de
Geografia, Autor e legislação.
Abstract: We are building along with the research group of Science, Education
and Society in the Universidade Federal da Paraíba - UFPB, a research that has
as an objective to understand the contribution of the textbook to the history of
the school geography. In this perspective we are presenting some results
(ALBUQUERQUE, 2006, 2007 and 2008), in this work we will highlight the first
analysis about the relationship between the legislation that governed the primary
teaching of geography in the 19th century in Pernambuco, and the elaboration
of textbooks that were published in the perspective of the execution of the law
and the author’s figure in that historical context. Among the publications of the
19th century, classified in the Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, a
book and a law called us the attention: in the year of 1875, the law number
1:143, art. 33 S 7th determined to the schools of that province the obligatory
nature of the “ [...] teaching of the elements of History and Universal Geography.
Brazilian’s History and Geography, especially of this province “. In the following
year a geography textbook was published bringing exactly the determinations
referred in the law: Elements of Universal Geography - Brazil’s General and
special of Pernambuco for the school childhood of the province of Pernambuco,
written by Manuel Pereira de Moraes Pinheiro and edited by Typographia
Mercantil. In this work we will analyze the relationship between the law and
the publication of that didactic material, looking for to understand the role of
the legislators and of the authors of textbooks.
Key words: Textbook, History of the school disciplines, Teaching of Geography,
Author and legislation.
Resumen: El objetivo de la investigación que estamos desarrollando en el grupo
Ciencia, Educación y Sociedad de la Universidad Federal de Paraíba (UFPB) es
comprender la contribución del libro didáctico con la historia de la geografía
escolar. Ya hemos presentado algunos resultados (ALBUQUERQUE, 2006, 2007,
2008) y en este artículo destacamos los primeros análisis de la relación entre la
legislación de la enseñanza primaria de geografía en el siglo XIX en Pernambuco,
la elaboración de libros didácticos que fueron publicados cumpliendo la ley y la
figura del autor en su contexto histórico. De las publicaciones del siglo XIX,
catalogadas en el Gabinete Portugués de Lectura de Pernambuco, un libro y una
ley nos llamaron la atención: en el año 1875 la ley número 1:143, art. 33 S 7°
determinó a las escuelas de aquella provincia la obligatoriedad de la “ […]
enseñanza de los elementos de Historia y Geografía Universal. Historia y
Geografía de Brasil, especialmente de esta provincia.” En el año siguiente fue
publicado un libro didáctico de geografía con, exactamente, las determinaciones
referidas en la ley: Elementos de Geografía universal – General de Brasil y
especial de Pernambuco para la infancia escolar de la provincia de Pernambuco,
de autoría de Manuel Pereira de Moraes Pinheiro y editado por la Typographia
Mercantil. En este artículo analizamos la relación entre la ley y la publicación de
ese material didáctico, buscando entender el papel de los legisladores y de los
autores de los libros didácticos.
Palabras-clave
Palabras-clave: Libro didáctico, Historia de las asignaturas escolares, Enseñanza
de Geografía, Autor, Legislación.
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 163-171
Jul-Dez/2008
163
ALBUQUERQUE, M. A. M
A AUTORIA DE LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA EM...
INTRODUÇÃO
Na busca por compreendermos a contribuição dos autores de livros didáticos elaborados ou publicados no Nordeste brasileiro, e que tratem sobre algum dos estados dessa região
na constituição da disciplina escolar geografia, demos início a uma catalogação dessas publicações em dois estados da região, a saber, Paraíba e Pernambuco. Para iniciarmos a catalogação, organizamos uma lista de bibliotecas onde pudéssemos encontrar tais materiais. Dentre
elas, destaca-se o Gabinete Português de Leitura, localizado na cidade do Recife – PE, pelo
seu acervo muito rico em número de publicações e qualidade das obras, entretanto, com problemas sérios de conservação, organização e segurança dos livros. A partir da pesquisa feita
nessa biblioteca, elaboramos uma lista com 16 compêndios e manuais de geografia publicados
entre o século XIX e os anos de 1940.
Entre os livros que encontramos daremos destaque, neste texto, a obra Elementos de
Geographia Universal – Geral do Brazil e Especial de Pernambuco para a Infância Escolar da
Província de Pernambuco, publicado pela Typographia Mercantil em 1875, e a seu autor,
Manoel Pereira de Moraes Pinheiro: mestre renomado daquela cidade, membro do Conselho
Literário da Instrução Pública de Pernambuco e professor de geografia do Gymnasio
Pernambucano.
A escolha dessa obra para análise se deve a algumas especificidades dela e ao papel
que, supomos, ter tido o seu autor no campo do ensino de geografia naquela província durante
o século XIX. Sobre o livro, vale ressaltar que ele destinava-se às Escolas Públicas de Ensino
Primário da Província de Pernambuco. Para que fosse adotado pelas Escolas Públicas, o livro
passou pelo crivo do Conselho Literário da Instrução Pública de Pernambuco, no ano da sua
publicação. A sua aprovação não se deu por unanimidade dos conselheiros, houve críticas e o
livro foi aprovado em caráter provisório (PINHEIRO, 1877).
A publicação de livros didáticos neste período estava sendo ampliada no Brasil e alguns autores encomendavam particularmente a publicação de seus compêndios, visando um
mercado local (HALLEWELL, 2003). O livro segue exatamente esse projeto, elaborado pelo
professor de uma renomada escola da cidade do Recife que encomendou a sua publicação e
autografou cada um dos volumes, “para evitar falsificações” (PINHEIRO, 1875, p. 04).
O livro é composto por 171 páginas, dividido em três unidades que seguem a legislação
estabelecida para o ensino da geografia pelo governo da Província de Pernambuco: Geografia
Geral, do Brasil e de Pernambuco. Na leitura desse livro, não observamos propostas de inovações metodológicas ou de abordagens dos conteúdos; o autor advoga o uso do “methodo theorico,
decorando os alunos as lições; e um methodo pratico, fazendo-os reproduzir na pedra ou no
papel as cartas geographicas geraes ou particulares relativas as lições” (PINHEIRO, 1875, p.
5). Está, portanto, organizado como um catecismo, com ênfase nos conceitos, nomenclaturas e
na localização dos fenômenos geográficos, bastante comuns na época. Também não inova no
campo das ilustrações, pois não traz mapas e nem gravuras. O formato do livro segue o tamanho padrão das edições didáticas do período, ou seja, 11 cm de largura por 15,5 cm de altura.
Na organização e distribuição dos conteúdos pode-se perceber o predomínio de temas sobre a
Europa. Os outros continentes são tratados de maneira mais superficial e, como o título anuncia, há uma parte dedicada às províncias brasileiras, com destaque para Pernambuco.
Como se pode verificar, esse livro não foi escolhido para ser analisado pelo seu papel
inovador no ensino de geografia; os motivos que nos chamaram a atenção nessa publicação
não foram efetivamente as suas qualidades pedagógicas, geográficas ou estéticas, mas sim a
condição em que ele foi publicado.
A publicação dessa obra está envolta em uma questão um tanto quanto intrigante: o
livro foi publicado em janeiro de 1875, portanto, seis meses após a aprovação da lei número
1:143, art. 33, inciso 7º, de 8 de junho de 1874, destinada a regular a educação daquela província e que, em um inciso sobre o ensino de história e geografia, “Determinou: o ensino dos
elementos de Historia e Geographia universal Historia e Geographia do Brazil e especialmente desta província” (PINHEIRO, 1875, p. 3). O próprio autor cita a lei na introdução do
seu livro.
Partindo dessas considerações, algumas questões que se evidenciam podem orientar a
nossa análise, entretanto, devemos ter cautela com relação a encontrar respostas simples e
164
Terra Livre - n. 31 (2): 163-171, 2008
imediatas para perguntas que são deveras complexas. A referida lei, que advoga maior ênfase
ao ensino de geografia e história de Pernambuco, era um fato isolado e específico daquela
província ou compunha um movimento entre as províncias brasileiras naquela época? O que
motivava o poder pernambucano a criar uma lei que obrigasse os professores de história e
geografia a trabalharem o conteúdo específico daquela província? O livro foi publicado tendo
em vista a necessidade das escolas cumprirem a legislação que entrara em vigor no ano anterior ou a lei foi criada para dar vazão e difusão ao referido livro? Por que o livro de um professor renomado e membro do Conselho Literário da Instrução Pública de Pernambuco (órgão
que avaliava e aprovava os livros didáticos a serem adotados nas escolas públicas de
Pernambuco) seria publicado seis meses após a aprovação da lei? Será, como nos orienta
Michael Apple (1982, 2002), que se pode falar de grupos no comando da educação pernambucana
nesse período? Se podemos, que grupos se encontravam no comando da educação da província
no período? Que relação o autor mantinha com esses grupos?
Nesta publicação, apresentaremos apenas algumas considerações sobre esses
questionamentos, visto que as respostas efetivas virão com o desenvolvimento e a superação
de problemas encontrados durante a pesquisa1 , além disso, estamos buscando outras fontes
alternativas para que possamos melhor respondê-las.
O AUTOR,
SEU PAPEL COMO PROFESSOR E OS MEANDROS DA PUBLICAÇÃO
Na tentativa de seguir a ordem dos questionamentos supracitados, devemos apresentar e discutir primeiramente o debate que hoje se desenrola sobre a disciplina escolar geografia no século XIX. Segundo Vlach (2004), a geografia escolar brasileira, nesse período, estava
fundada em uma abordagem que havia sido difundida na obra do Padre Manuel Aires de
Casal, Corographia Brasílica, de 1817 e nas publicações do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro - IHGB. Com base nos livros didáticos de geografia do século XIX, que estamos
analisando há três anos, essa afirmação deve ser discutida, pois temos encontrado uma série
de autores de livros didáticos do referido período que adotaram outros referenciais teóricos e
bancos de dados para a elaboração dos seus compêndios e manuais. Citaremos aqui apenas
um exemplo, para não nos estendermos muito. No Compêndio Elementar de Geographia Geral e Especial do Brasil, Thomaz Pompeu de Souza Brasil (1859) afirma usar como referência
teórica para a elaboração do seu compêndio as seguintes publicações: Anuário de Garnier,
Almanak de Gotha, Revista dos Dous Mundos, Jornaes Literários e Scientíficos para a parte
política do mundo. Para explicar os fenômenos astronômicos e físicos, acrescentou notas
ilustrativas tiradas das obras de Humbolt, Ganot, Lecoq, Moureau de Jones, Malte Brun,
Bouvillet e outros. Sobre o Brasil, recorreu às revistas do IHGB, mas também fez levantamentos junto aos presidentes das províncias e a pessoas importantes, em virtude da imprecisão dos dados existentes.
Com base no que encontramos, acreditamos que os conteúdos de geografia, no período
em questão, poderiam ser referendados na obra de Aires de Casal, entretanto, outros autores
também serviam de fonte de consulta quando da elaboração dos livros didáticos. Como vimos,
até mesmo revistas e jornais eram utilizados com essa finalidade. Não queremos aqui dizer
que a obra de Casal não foi referencial para o período, entretanto, ela e as revistas do IHGB
não eram as únicas fontes de consultas.
Um segundo ponto nesse debate é importante para melhor compreendê-lo. A autora
Vânia Vlach (1988, 1991) advoga que o nacionalismo patriótico, tão importante na constituição da geografia escolar, esteve entre os temas que compunham o rol de conteúdos dessa
disciplina, desde a criação do Estado-nacional na Europa e traz essa abordagem para analisar a disciplina escolar brasileira. Segundo Rocha (1996), a questão do nacionalismo patrióti-
1
Durante o período de catalogação dos livros no Gabinete Português de Leitura, alguns problemas atrapalharam o
andamento do nosso trabalho. Em princípio, as goteiras da biblioteca nos deixaram dois dias impedidos de trabalhar.
Depois, quando retomamos as atividades e tínhamos como propósito analisar o referido livro, a obra havia desaparecido
da biblioteca. Duas possibilidades cercavam esse desaparecimento, ele poderia estar entre os livros que foram furtados no
mês de agosto de 2007 ou estaria entre os volumes retirados das prateleiras, em função da chuva. Somente, em junho de
2008, recebemos uma mensagem da bibliotecária (a quem agradecemos a presteza) avisando que o livro havia sido
encontrado e estava disponível para a pesquisa.
165
ALBUQUERQUE, M. A. M
A AUTORIA DE LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA EM...
co somente aparece como propósito da disciplina escolar geografia a partir do momento em
que “o projeto nacional de nossas elites começa a se consolidar...” (1996, p.288). Corroborando
com Vlach, Bittencourt (2004) compreende que o nacionalismo patriótico foi temário presente
no ensino de história desde o início da organização do sistema escolar brasileiro.
Com base nas pesquisas que estamos desenvolvendo, compreendemos que o nacionalismo passou a compor o conteúdo do ensino dessa disciplina quando a geografia do Brasil foi
institucionalizada como disciplina e os livros didáticos passaram a tratar das questões relativas ao país. Ou seja, esse debate foi introduzido na escola pelas publicações didáticas brasileiras. Pois, enquanto os livros didáticos utilizados eram importados, esses, em geral, não traziam conteúdos sobre o Brasil e quando o faziam era de forma muito superficial. Podemos
comprovar tal afirmação a partir do que nos diz José Veríssimo no ano de 1890: “Apesar da
pretensão contrária, nós não sabemos geografia. Nesta matéria, a nossa ciência é de nomenclatura e, em geral, cifra-se à nomenclatura geográfica da Europa. (1985, p. 03).
Como podemos verificar, a denúncia desse autor nos leva a compreender que os livros
didáticos no final do século XIX ainda valorizavam significativamente um conhecimento geográfico sobre a Europa e, em alguns deles, eram incluídos outros continentes. A nomenclatura
recitada referia, em geral, às províncias européias, aos aspectos físicos e aos dados populacionais
dos países daquele continente. Além disso, se abordava aspectos do que se denominava geografia geral, ou seja, astronomia e cartografia.
Temos ainda outra referência que pode ajudar a elucidar essa questão, o livro Lições de
Geographia, de Abbade Gautier (1855). Segundo o autor dessa obra, a primeira edição, anterior a que lemos, trazia apenas oito páginas de conteúdos sobre o Brasil, em um total de 422
páginas. Na edição que manuseamos, esse número havia saltado para 40 páginas e o livro
continuava com o mesmo total de páginas anterior. Além desse livro encontramos outros
manuais em francês ou mesmo traduzidos para o português de Portugal, em que o Brasil não
aparecia como conteúdo ou era abordado de forma muito superficial. Pelo que encontramos,
os livros traduzidos pouco se referiam aos conteúdos de geografia do Brasil. Isto vai ocorrer
com as publicações de obras brasileiras e com a difusão delas pelo país. Desse modo, podemos
considerar que nos livros didáticos de geografia que eram utilizados nas escolas brasileiras,
especialmente no início do século XIX, havia poucas referências a geografia do Brasil, tanto
por falta de fontes e dados para os autores de livros didáticos, quanto porque os livros eram
elaborados fora do país e, muitas vezes, traduzidos sem uma adaptação a nossa realidade.
Acreditamos que o debate republicano, em meados do XIX, o aumento das publicações
sobre a geografia e história do Brasil, os exames para ingresso na universidade e a
institucionalização da disciplina geografia do Brasil, é que o nacionalismo patriótico passou a
compor, mais sistematicamente, os conteúdos dos livros didáticos de geografia. Além de José
Veríssimo, ainda em 1890, reclamar da falta de patriotismo nos livros didáticos no início do
século XX, Delgado de Carvalho (1913) convida os professores a trabalharem uma geografia
pátria. “É pelo conhecimento do país, pela consciência de suas forças vivas que podemos chegar a apreciá-lo a seu justo valor.” (p. IX e X).
Nessa perspectiva, podemos compreender que o debate acerca do nacionalismo, a partir de meados do século XIX, deu um novo significado a escola e requeria dessa a difusão de
uma abordagem geográfica local ou, como se afirmava na época, corográfica. Se a escola teria,
como um dos seus papéis, difundir o nacionalismo, então essa instituição deveria valorizar as
realidades mais próximas dos alunos, especialmente em se tratando das primeiras letras, que
abrangia um número maior de alunos das diferentes classes sociais. Compreendemos que
nesse contexto havia, em algumas províncias, uma valorização significativa da geografia local, o que nos orienta a pensar que o debate que se deu em Pernambuco, não era um fato
isolado, mas sim algo que ocorria também em outras províncias. Até o momento, não encontramos em outras províncias leis, como aquela de Pernambuco, que estabelecesse o mesmo
propósito, porém, encontramos alguns livros didáticos que trazem uma organização muito
próxima e que foram elaborados com o mesmo objetivo daquele que estamos analisando. Além
disso, muitos deles foram autorizados e referendados por órgãos públicos destinados a este
fim e bastante elogiados em críticas jornalísticas por tratarem temas locais em livros destinados à escola. Temos como exemplos, Compendio de Geographia da Provincia do Paraná: adaptado ao ensino da mocidade brazileira, de Luiz de França Almeida e Sá (1871); Geographia
Alagoana ou Descritção Phisica, Politica e Histórica da Provincia das Alagoas, de Thomaz
166
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Bonfim Spindola (1871); Geographia do Estado de Minas Gerais, de Francisco Lentz de Araújo (1894); Fragmentos para a Chorographia do Maranhão, de Justo Jansen Ferreira (1901).
Como podemos verificar, esses livros foram publicados entre os anos 1870 e 1901, o que indica
uma tendência do período.
Assim, compreendemos que a publicação do livro Elementos de Geographia Universal
– Geral do Brazil e Especial de Pernambuco para a Infância Escolar da Província de
Pernambuco compunha um movimento que acontecia também em outras províncias. E o que
norteava esse debate eram as idéias nacionalistas e o papel de cada província frente a essa
questão.
Para compreendermos as relações que norteavam o poder educacional na província de
Pernambuco no século XIX, e o papel do professor Manoel Pereira Moraes Pinheiro no cenário
local, é importante resgatar as funções cumpridas por esse autor. Bacharel pela Faculdade de
Direito do Recife, lente2 de geografia do Gymnasio Pernambucano, onde foi nomeado para
assumir a regedoria em 1874; tinha papel preponderante na seleção e aprovação de materiais
didáticos, visto que era membro do Conselho Literário de Instrução Pública de Pernambuco.
O Gymnasio Pernambucano, onde Manoel Pereira foi professor entre os anos de 1873
a 1880, foi uma instituição renomada na cidade do Recife, fundado no ano de 1825 por decreto
de José Carlos Mayrink, presidente da província de Pernambuco, sob o nome de Liceu Provincial de Pernambuco, funcionou inicialmente nas dependências do convento do Carmo, porém,
teve outros endereços. De 1844 a 1850, foi instalado em um sobrado da rua Gervásio Pires;
nos torreões da Alfândega; no primeiro andar da Companhia dos Operários Engajados; na
casa das sessões do Júri; na rua da Praia e no Pátio do Paraíso. Em 1850, mudou-se para a
Rua do Hospício, permanecendo naquele local por 16 anos. Somente em 1855, uma Lei converteu o Liceu Provincial de Pernambuco em um internato de educação pública e de instrução
secundária, sob o título de Gymnasio Pernambucano. Nesse mesmo ano teve início a construção do novo prédio na Rua da Aurora, onde se encontra até os dias atuais (FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, 2007).
Como os Liceus de outras cidades, essa instituição teve importante papel na educação
pernambucana. Nos textos referentes aos relatórios dos presidentes da Província de
Pernambuco (FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, 2007). ao longo de todo o século XIX, se
pode perceber que essa escola, em alguns momentos, foi centro da atenção dos governistas e,
em outros, ficou praticamente abandonada. Por vários anos seguidos, especialmente a partir
da sua transformação em Gymnasio Pernambucano, é recorrente o pedido de sua equiparação
ao Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, visto que aquela escola tinha seus exames referendados para ingresso dos seus alunos na academia. O pedido para que os exames do Gymnasio
Pernambucano fossem aceitos pela academia trazem como argumento a idéia de que esse fato
seria responsável pelo ingresso de um número muito maior de alunos na escola. Em alguns
anos, os regedores dessa escola fazem previsões numéricas de ingresso de alunos, caso os
exames do Gymnasio fossem equiparados ao do Collegio das Artes, no Recife, ou ao Pedro II,
no Rio de Janeiro.
No ano de 1873, o Presidente da província se queixa de que a instituição não cumpre
mais os fins para os quais foi criada, ou seja, ser uma escola secundária, e advoga mesmo a
possibilidade de juntá-la ao Colégio das Artes. Além dessas questões, em outros relatórios se
evidencia o fato de que essa escola havia se transformado em uma instituição voltada para o
ensino primário.
Sabemos que ser lente de um liceu tinha, naquela época, grande significado para um
professor. Desse modo, seria importante para Manoel Pereira de Moraes Pinheiro ingressar
nessa instituição, como o fez. Ele foi admitido no dia 21 de dezembro de 1873, como professor
da cadeira de geografia, em substituição ao professor Dr. Antonio Rangel de Torres Bandeira.
Segundo consta nos arquivos do período imperial, ele se ofereceu para trabalhar nessa instituição sem direito a vencimentos. No ano seguinte, ele é indicado pelo presidente da província
e assume o cargo de regedor do Gymnasio Pernambucano. Segundo consta, “esse cargo de
regedor era um dos mais importantes pela influencia que exerce nos costumes e moral dos
2
A palavra lente era uma expressão utilizada para se referir aos professores do ensino superior ou de escolas secundárias
na época.
167
ALBUQUERQUE, M. A. M
A AUTORIA DE LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA EM...
alunos” (CENTER FOR RESEARCH LIBRARIES: 2007, p. 23). É preciso destacar que no ano
do seu ingresso a escola passava por dificuldades e tinha o maior número de alunos matriculados no ensino primário.
As condições em que se dá o ingresso de Manoel Pereira de Moraes Pinheiro nessa
escola nos leva a alguns questionamentos. Qual era a sua condição social para se dispor a
trabalhar sem receber remuneração pela atividade desenvolvida? Por que ingressar em uma
escola que estava perdendo status e se tornando uma escola de ensino primário? Quais eram
os seus reais interesses frente ao ensino primário? Por que um ano após o seu ingresso ele já
se torna o regedor da escola? Essas questões não podem ser respondidas a partir dos documentos a que tivemos acesso até o momento. Entretanto, podemos levantar algumas hipóteses e discuti-las. Antes disso é importante verificarmos a sua atuação frente à seleção de
livros didáticos para a escola pública em órgão destinado a esta finalidade.
Como membro do Conselho Literário de Instrução Pública de Pernambuco, Manoel
Pereira de Moraes Pinheiro (1877) teve uma grande atuação na reprovação da obra de um
autor baiano que tentava ter o seu livro didático adotado nas escolas pernambucanas. Esse
episódio resultou na publicação do seu parecer que reprovava um primeiro parecer, elaborado
por Dr. Ezequiel Franco de Sá, e que era favorável a adoção do livro didático O Atlas de
Geografia, de J. E. da Silva Lisboa, pelas escolas públicas primárias e secundárias de
Pernambuco. Nesse texto composto de 26 páginas, Manoel Pereira apresenta em relato detalhando os motivos porque aquela obra não deveria ser aprovada pelos conselheiros dessa
instituição. No parecer fica evidente que ele buscava desqualificar o livro do seu possível
concorrente baiano. Para tanto, recorreu a lei 1:143 de 8 de junho de 1874, – a mesma a que
recorreu para aprovar o seu livro no mesmo órgão – visando afirmar que o Atlas Geográfico do
Sr. Lisboa, não servia para as escolas públicas de Pernambuco, por não cumprir o programa
estabelecido para os exames do Collegio das Artes. Além disso, acusava o livro de não cumprir
as “[...] condições progressistas da sciencia nestes últimos anos” (PINHEIRO: 1877, p. 11).
Dando seqüência a seus argumentos, discorre sobre a ausência de nomenclatura de rios, montanhas e cidades específicas sobre cada um dos países europeus, para tanto, compara o referido livro com a apostila do Gymnasio Pernambucano e com a sua própria obra. Diferente do
seu, o livro do Sr. Lisboa trazia mapas, e para não elogiar essa inovação, passou a comparar a
qualidade das representações cartográficas desse livro com as cartas publicadas pelo Barão
Homem de Mello.
Sua postura diante da reprovação do livro do seu concorrente; a publicação do seu
parecer pela Typographia do Jornal do Recife, que não era uma coisa comum; assim como o
fato dele ter assumido a escola sem receber vencimentos, exatamente no momento em que o
número de matrículas no primário era bem maior, e ainda ter se tornado regedor dessa escola
com apenas um ano como professor nos leva a crer que Manoel Pereira de Moraes Pinheiro
era uma pessoa que tinha propósitos estabelecidos.
Entre as publicações daquela província, no período, não existiam outros livros didáticos de geografia que pudessem cumprir o que fora prescrito pela lei 1:143. Somente no ano de
1880 – ano da sua morte – é que foi publicado na cidade do Rio de Janeiro um outro livro que
cumpria o que estava prescrito nessa lei: Compendio de Geographia Universal: especial do
Brazil e da provincia de Pernambuco, de Salvador Henrique de Albuquerque.
Assim, Manoel Pereira de Moraes Pinheiro continuou por alguns anos comercializando
seu livro nas escolas públicas daquela província sem encontrar concorrentes. A sua obra era a
única que cumpria efetivamente o que o poder público exigia para o ensino de geografia.
Após esse levantamento, podemos fazer algumas considerações acerca da publicação
da obra de Manoel Pereira de Moraes Pinheiro.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Como pudemos perceber, esse autor de livros didáticos tinha uma condição econômica
que lhe favorecia: formou-se Bacharel pala Faculdade de Direito do Recife, o que lhe indicava
uma situação social estável. Também não precisava de salário para sobreviver, o que não era
muito comum aos professores da época. Tendo em vista a expansão das atividades da imprensa, ele mesmo financiou a publicação do seu livro, como era comum a alguns professores de
168
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províncias que tinham condições econômicas para tanto.
Partindo de todas as considerações levantadas até o momento, formulamos algumas
hipóteses sobre a publicação dessa obra. Na primeira delas, compreendemos que ele escreveu
seu único livro didático tendo como objetivo levar às escolas públicas primárias de Pernambuco
um material que favorecesse o cumprimento da lei 1:143 de 8 de junho de 1874. Assim, seis
meses após a adoção dessa lei, ele já estava com uma obra pronta para ser comercializada. E
isso era fruto do seu trabalho junto à escola onde lecionava na qual, posteriormente, se tornou
regente. Sua experiência de um ano como professor de geografia tinha sido relevante para a
elaboração do seu livro, de modo que o fato de ele ter assumido as aulas de geografia, mesmo
sem receber salário, foi apenas uma motivação para a sua atividade enquanto escritor de um
livro didático. Ele teve seu livro aprovado pelo Conselho Literário da Província de Pernambuco
somente por mérito da obra. Com tudo isso, Manoel Pereira de Moraes Pinheiro não teria
ligações com o poder central e sua publicação e adoção nas escolas públicas da província de
Pernambuco foi apenas um reconhecimento do seu trabalho. De antemão, consideramos que
esta seja uma hipótese muito difícil de se comprovar, visto que todos os cargos públicos que
eram assumidos na província passavam pela aprovação do presidente e estavam sujeitos a
extinguirem-se de acordo com os grupos que assumiam o poder estatal. Assim, acreditamos
que seria muito difícil para esse autor chegar até onde chegou somente por méritos da sua
publicação.
A segunda hipótese com a qual trabalhamos, e que entendemos ser a mais provável, é
que o professor Manoel Pereira de Moraes Pinheiro escolheu o Gymnasio Pernambucano para
lecionar gratuitamente, exatamente no momento em que essa escola estava aumentando o
número de matrículas para o ensino primário, com o intuito de difundir a sua obra, ter mais
status social e ter o seu trabalho aprovado pelo Conselho de Literatura da Província de
Pernambuco e, assim, ter o seu livro adotado nas escolas públicas primárias. Essa hipótese
nos levaria a compreender que o poder instituído naquela província compactuava com as
pretensões do bacharel e que ele usava o seu poder, como regente de escola e membro do
Conselho literário, para beneficiar-se particularmente com o comércio do seu livro didático.
Nessa perspectiva é que compreendemos a sua posição tão severa quando orienta os membros
do Conselho de Literatura para que não aprovem o Atlas de Geographia do Sr. Lisboa, pois
esse seria um livro que poderia concorrer no mercado com o seu.
Outras hipóteses ainda podem ser elaboradas, entretanto, estamos trabalhando com
essas duas, tendo em vista os documentos que consultamos e as análises que fizemos deles.
Desse modo, queríamos deixar claro que esta pesquisa ainda não está encerrada e que pretendemos buscar outros órgãos públicos de Pernambuco que possam nos fornecer documentos
para nos orientar sobre a relação entre o poder estatal, a figura desse professor de geografia
e a publicação e adoção de livros didáticos.
O certo é que não sabemos ainda se o livro surge como necessidade de se cumprir um
programa estabelecido em lei, ou se a lei foi criada para dar vazão a uma publicação de uma
pessoa deveras influente no meio educacional. O certo é que ele foi adotado nas escolas públicas daquela província e, segundo o seu autor, representava um custo elevado para as famílias.
Essa pesquisa não se define isoladamente, ela contribui para um trabalho maior que
estamos fazendo sobre os livros didáticos de geografia no Nordeste brasileiro e a contribuição
dos seus autores na constituição da disciplina escolar. Desse modo, compreendemos que a
análise do papel desse professor poderá nos levar a entender como se dava a seleção de conteúdos e das abordagens pedagógicas e geográficas para a disciplina escolar ou mesmo como
se constituíam os currículos naquele período. Além disso, nos possibilitará compreender qual
foi efetivamente o seu papel na história da geografia escolar nordestina.
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Recebido para publicação dia 05 de março de 2009
171
172
ONDE SE CONSTRÓI
A IDENTIDADE
A DO
TIV
FORMA
TIVA
FORMATIV
GEÓGRAFO E DO
PROFESSOR DE
GEOGRAFIA? OU
AINDA, É POSSÍVEL
FAZER GEOGRAFIA
NOS CURSOS DE
GEOGRAFIA?
ABOUT BUILDING THE
IDENTITY OF THE
TIVE
FORMA
FORMATIVE
GEOGRAPHER AND
PROFESSOR OF
GEOGRAPHY? OR, YOU
CAN MAKE GEOGRAPHY
COURSES IN
GEOGRAPHY?
SOBRE LA
CONSTRUCCIÓN DE LA
IDENTIDAD DEL
GEÓGRAFO DE
FORMACIÓN Y PROFESOR
DE GEOGRAFÍA? O
BIEN, PUEDE HACER
CURSOS DE GEOGRAFÍA
EN LA GEOGRAFÍA?
JORGE LUIZ
BARCELLOS DA SIL
VA*
ILV
PUC-SP
[email protected]
REGINA RIZZO
RAMIRES*
PUC-SP
[email protected]
Resumo: O presente texto tem como objetivo relatar e ponderar sobre
as dificuldades e desafios da prática nas formações em Geografia,
analisando as importantes mudanças referentes aos campos
profissionais tanto de bacharéis quanto de professores de geografia.
O eixo central da análise proposta é avaliação do andamento da
implantação de uma nova proposta curricular em Geografia, realizada
no Departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, desde o início do ano de 2006. Pretende-se analisar o
significado e os riscos resultantes do rompimento com estruturas
disciplinares historicamente consolidadas nos cursos de formação em
geografia, analisando as novas áreas de pesquisa decorrentes desse
processo e, também, o modo como conhecimentos tão importantes na
discussão geográfica podem ser incorporados por novas áreas de
trabalho e reflexão em geografia, dando-lhes mais evidência.
palavras chaves: identidade; bacharel em geografia; professor de
geografia
Abstract: The purpose of this paper is to provide an account of and
assess the difficulties and challenges of practice in the education and
professional training in Geography, by analyzing the significant
changes taking place in the professional fields both for graduates
and teachers of Geography.. The pivotal axis of the analysis proposed
herein is to evaluate the progress of a new curricular proposal in
Geography that is being implemented, conducted by the Geography
Department in the Pontificial Catholic University of Sao Paulo, which
started in early 2006. It is intended to analyze the meaning and the
risks resulting from breaking up with disciplinary structures
historically consolidated in geography education/training courses,
focusing on the new research arising from this process and, also, how
knowledge that is so important in the geographic debate may be
incorporated by new areas of work and reflection in geography,
highlighting them even more.
key words: identity; geography graduate; education and training of
geography teachers
Resumen: El presente texto tiene como objetivo relatar y ponderar
sobre las dificultades y los desafíos de la práctica en las formaciones
en Geografía, analizando los importantes cambios referentes a los
campos profesionales tanto de bachilleres cuanto de profesores de
geografía. El eje central del análisis propuesta es la valuación del
trámite de la implantación de una nueva propuesta curricular en
Geografía, realizada en el Departamento de Geografía de la Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, desde el inicio del año de 2006.
La intención es analizar el significado y los riegos resultantes del
rompimiento con estructuras disciplinarias historicamente
consolidadas en los cursos de formación en geografía, analizando las
nuevas areas de investigación debido a este proceso y también el modo
como conocimientos tan importantes en la discusión geográfica pueden
ser incorporados por nuevas areas de trabajo y reflexión en geografía
para darles a ellos más evidencia.
palabras llaves: identidad; bachiller en geografía; formación de
profesores de geografía
* Professor do Departamento
de Geografia PUCSP
Terra Livre
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 173-179
Jul-Dez/2008
173
SILVA, J. L. B. E RAMIRES, R. R.
ONDE SE CONSTRÓI A IDENTIDADE...
Ponderar sobre as dificuldades e desafios de formar professores e bacharéis em Geografia tem sido o mote das discussões que empenhamos nos últimos anos.
Embora essa seja uma preocupação antiga, explicitada no debate da chamada comunidade geográfica há décadas, por meio dos inúmeros eventos – encontros, simpósios, colóquios,
etc. – que se dispõem a aprofundar a leitura das particularidades formativas entre ambos, é
somente a partir das determinações legais do Ministério da Educação3 que novos desenhos
curriculares vão ser implementados em todo o país, permitindo caminhos particulares de
formação nas mais diversas instituições de ensino superior brasileiras.
Isso significou ao mesmo tempo a resposta necessária ao enquadramento legal, mas
também a oportunidade de enfrentar o debate e assumir-se a existência de diferenças
formativas entre professores e bacharéis em Geografia.
Nesse sentido, a primeira questão a que se refere o título deste artigo, ganha evidência: Onde se constrói a identidade formativa do geógrafo e do professor de Geografia?
A resposta imediata é: nos diferentes processos de pesquisa em que ambos se especificam. Com objetivos diferenciados, visto que os campos de trabalho de um de outro implicam
em também distintos modos de se apropriar e, por conseguinte, de aplicar o conhecimento
geográfico.
Por outro lado, para não cair na armadilha do imediatismo da resposta, há que se
ponderar também sobre a relação entre a identidade profissional de ambos e as esferas sociais a que estão inseridos, contemplando aí o mercado de trabalho e também o seu perfil
curricular, atrelado à sua instituição formadora, marcada literalmente nos brasões ou logotipos
de seus diplomas, conferindo uma posição no ordenamento acadêmico4 .
Muitas universidades, desejosas de empenhar reformulações em seus currículos, aproveitaram o precedente aberto pela legislação federal para aprofundar a discussão e encaminhar seus projetos específicos. Nesse contexto, também na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo - PUCSP - tal demanda mobilizou (e continua mobilizando) importante esforço
de construção de propostas formativas em Geografia5 .
Assim, o objetivo principal deste artigo é apresentar uma análise do momento atual de
implantação dos novos currículos de formação, nas especificidades da licenciatura e do bacharelado, pelo departamento de Geografia da PUCSP, salientando os pressupostos político-pedagógicos que vem norteando essa empreitada e, considerando ainda, o momento ímpar de
conclusão do curso, pela primeira turma ingressante no novo currículo, ocorrida no final de
2008.
Antes de tudo, no entanto, faz-se necessário um recorte histórico para contextualizar
os referidos projetos de reforma na dinâmica própria da Universidade.
Em setembro de 2004 os Conselhos de Ensino e Pesquisa (CEPE) e Superior da Universidade (CONSUN) aprovaram o seu Projeto Pedagógico Institucional (PPI). Tal documento formaliza várias concepções que, articuladas, indicam as diretrizes para os cursos de graduação na universidade.
Por um lado expressa um esforço coletivo que concebe que as rápidas transformações
verificadas nas sociedades contemporâneas imprimem novas lógicas de elaboração de conhecimento e de tecnologias, motivando o reconhecimento de novas áreas de pesquisa e trabalho
e, mediadas ou não pela pressão de mercado, incidem diretamente sobre os procedimentos
formativos acadêmico-profissionais. Leia-se, necessidade de repensar as graduações de modo
geral (cursos, áreas, tempos de formação, relações ensino-aprendizagem, emprego de
tecnologias, etc.) alicerçadas em projetos pedagógicos flexíveis para dar conta de tal demanda.
3
- Ver Resolução CNE/CP 1/2002 – Diretrizes Curriculares da Educação Básica em Nível Superior e Resolução CNE/CES
14/2002 – Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Geografia
4
- Julio E.D.Pereira (2000), se dedica a discutir “a situação de menor status acadêmico das licenciaturas nas universidades
brasileiras e das conseqüentes dificuldades enfrentadas por esses cursos para implementação de mudanças significativas”
p.137.
5
- Em artigo anterior (SILVA e RAMIRES, 2007) abordamos os aspectos gerais que orientaram a construção do referido
projeto, enfatizando basicamente as características fundantes das propostas formativas, sem adentrar à explicitação dos
detalhes das novas grades, pois o projeto, uma vez aprovado nas instâncias normativas da Universidade, acabara de ser
implantado.
174
Terra Livre - n. 31 (2): 173-179, 2008
Por outro lado, indo ao encontro das preocupações acima, o PPI responde às demarcações do contexto legal da educação de nível superior no Brasil (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional - LDB, Diretrizes Curriculares Nacionais, etc.), permitindo valorizar características marcantes da formação na PUCSP, construídas historicamente, anteriores à própria flexibilidade preconizada pela lei. (PPI, 2004: 9)
Paralelamente a esse movimento de construção de referenciais político-pedagógicos
para o âmbito das graduações, esteve em curso outro projeto de extrema importância para o
delineamento das concepções de formação na Universidade, denominado Projeto Institucional
de Formação de Professores do Ensino Básico (PIFPEB).
O ponto de clivagem que culminou na formação da comissão PIFPEB é a Resolução
CNE/CP 14/02 (op.cit.) que preconiza a obrigatoriedade da formação de professores do ensino
básico com estatuto próprio, diferenciado do bacharelado, desde o início do curso.
Nesse caso, incidia sobre a Universidade o peso da decisão político-pedagógica de acatar, alocar e conceber novas formações em licenciatura, rompendo com a tradição histórica
onde esta se configurava como apêndice do bacharelado. Situação idêntica a da maior parte
das universidades do país6 .
A explicação acima, longe de ser uma mera descrição processual, é ponto de partida
para a compreensão da concepção de formação de professores que se construiu no coletivo do
PIFPEB, cuja comissão empenhou anos de trabalho e discussão nos diversos colegiados da
universidade, visando qualificar e legitimar a proposta resultante, materializada em uma
matriz formativa.
Dentre as inúmeras construções desse processo, três são fundamentais para a análise
que nos propomos aqui e que detalharemos a diante.
A primeira é a determinação de que as áreas do conhecimento que correspondem às
disciplinas dos parâmetros curriculares nacionais dos vários níveis da educação básica sejam
as bases para a vinculação do processo de formação por considerá-las fundamentais para o
desenvolvimento e a prática da pesquisa educativa. A segunda, relacionada à primeira, é a
opção por alocar os cursos nas diferentes Faculdades, retirando da Faculdade de Educação a
responsabilidade exclusiva pela certificação da licenciatura. Por fim, o terceiro ponto fundamental dessa concepção é a opção de construção da formação de professores atrelada à formação de bacharéis, preservando identidades formativas ao mesmo tempo em que a trajetória se
articula na maior parte da grade curricular.
Para operacionalizar os currículos nessa estrutura que é ao mesmo tempo diferenciada, porém conectada, foram estabelecidos como mecanismos de gestão pedagógica, três núcleos de planejamento: Núcleo de Área (reúne as disciplinas/atividades que objetivam ensinar os
fundamentos teórico-metodológicos que identificam sua especificidade epistemológica); Núcleo de Formação de Professores (disciplinas/atividades que objetivam oferecer tanto os conteúdos que se desdobrem dos fundamentos apresentados pelo Núcleo de Área, quanto àqueles
que se desdobrem da reflexão pedagógica, objetivando a ressignificação dos chamados conteúdos específicos no processo de ensino aprendizagem escolar.
No interior do Núcleo de Formação de Professores ocorrem atividades exclusivas da
formação de professores (AEFP) e atividades conjuntas de formação de professores (ACFP)
essas últimas oferecidas também aos bacharelandos.
Análogo ao núcleo acima, há o Núcleo de Bacharelado, cujo aprofundamento esperado
relaciona-se aos diferentes campos profissionais e de pesquisa na área do conhecimento. Também observa a uma estrutura de especificidade (Atividades Exclusivas do Bacharelado) e
6
Nesse campo formativo, a fórmula caracterizadora da PUC-SP, assim como em considerável parte do ensino superior
brasileiro, era a de se apoiar no modelo “3 + 1”. Isto é, após o término de um determinado conjunto de disciplinas do
bacharelado, costumeiramente, no início do quarto ano, o aluno passava a cursar um grupo de disciplinas alocado na
Faculdade de Educação, cujo teor se relacionava às questões pedagógicas mais gerais, distanciadas das especificidades de
se estudar e apreender Geografia. No que tange à PUCSP e em grande parte dos cursos superiores voltados a formação de
professores criou-se uma situação na qual a reflexão e sistematização sobre o que ensinamos e a adequação dos conteúdos
às questões pedagógicas, era feita somente na última etapa do processo, quando o aluno entra em contato com uma
disciplina que, em princípio, propões sistematizar a discussão, envolvendo os fundamentos e as práticas do professor.Dessa
maneira, num ínterim de um ano, o discente deveria passar a ter as condições de equacionar as grandes questões que
marcam as atividades do professor de Geografia. O resultado desse processo refletia um profissional alheado da possibilidade
de fundamentar e operacionalizar as suas práticas.
175
SILVA, J. L. B. E RAMIRES, R. R.
ONDE SE CONSTRÓI A IDENTIDADE...
outra de articulação (Atividades Conjuntas do Bacharelado - oferecidas também aos
licenciandos).
Assim, a título de exemplo, indicamos a matriz de distribuição dos núcleos na grade
horária do bacharelado:
Período
Segunda
Terça
Quarta
Quinta
Sexta
Sábado
1º ano
NA
AEB
ACFP
NA
NA
ACB
2º ANO
AEB
NA
NA
AEB
NA
ACB
3º ANO
ACFP
NA
NA
NA
AEB
NA
4º ANO
NA
NA
AEB
ACB
ACFP
AEB
*NA = Núcleo de área; AEB = Atividades Específicas do Bacharelado; ACFP = Atividades comuns de Formação de Professores; ACB = Atividades comuns do Bacharelado
Observe-se que as atividades exclusivas geridas pelo núcleo específico (destacadas em
negrito) ocorrem em dias fixos na semana. A justificativa para o rigor na grade é a possibilidade de integralização dos currículos, garantindo a dupla formação (licenciatura + bacharelado
ou vice-versa), na medida em que com o término de uma formação, a outra se reorganiza para
complementar os espaços disciplinares e de pesquisa específicos, alocados um em cada dia da
semana.
Assim, voltamos a afirmar que o processo de construção coletiva, no caso com outros 13
cursos de formação articulada de bacharéis e licenciados, no interior da Universidade, concebeu pelo projeto PIFPEB, uma visão de formação, buscando garantir na diferença de objetivos
formativos, percursos que dialogam e interagem, pressupondo que ambos os campos de atuação profissional são referências de enriquecimento mútuo.
Postas essas considerações iniciais, a respeito, portanto, da estrutura institucional a
que as propostas de formação obedeceram no Departamento de Geografia, nos debruçamos a
explicitar os aspectos internos da grade curricular resultante para a formação de geógrafos e
professores de geografia.
Em primeiro lugar, indicando os caminhos da resposta à nossa primeira indagação
inicial, entendemos que a materialização na grade curricular de percursos de aproximação
com as teorias e práticas relativas ao pensar em Geografia não são, por si só garantidoras de
uma boa formação. Há que se levar em conta que os nexos só se realizam mediante a pesquisa. Investigação esta fundamentada em pressupostos epistemológicos, respaldados por olhares historicamente consolidados, amplamente discutidos na área do conhecimento, mas, no
entanto, sem engessamentos que inviabilizem novas formas do pensar. Encarando o processo
como desafio.
Assim, imbuídos desse pressuposto, nos colocamos a refletir e discutir a respeito das
concepções de Geografia que poderíamos contemplar. Inquietados pelas justificativas apresentadas nas Diretrizes Curriculares dos Cursos de Geografia (op. cit), nos colocamos diante
da emergência de atrelar ao currículo a abordagem de novos procedimentos teóricometodológicos que dessem conta de apreender as transformações que as relações entre sociedade e ambiente constroem, expressando assim diferentes arranjos espaciais, os quais demandam outros recortes explicativos.
Colocamo-nos, portanto, diante de um grande desafio que é o de romper com espaços
disciplinares a décadas estabilizados nos cursos de geografia. Cientes do significado (e dos
riscos) desse rompimento, assumimos que daí deveriam derivar outras áreas de pesquisa, ao
mesmo tempo em que, sem desprezar conhecimentos consolidados historicamente, estes deveriam ser incorporados (em alguns casos dando até maior visibilidade) por novas áreas de
trabalho e reflexão em Geografia.
Tomemos aqui alguns exemplos, localizados no Núcleo de Área (NA), que é aquele que
abarca bacharelandos e licenciados simultaneamente.
Diante dos dilemas próprios da dinâmica das sociedades que constroem e evidenciam
176
Terra Livre - n. 31 (2): 173-179, 2008
diferentes paisagens identificadas com as cidades, os campos e suas articulações, nos colocamos a questionar os parâmetros clássicos de distinção entre cidade e campo. Vimos buscando
identificar que a inter-relação entre o urbano e o agrário apresenta uma dimensão espacial a
ser explicitada de maneira a contemplar leituras das geografias que surgem desse processo.
Assim, fomentados por essa leitura, compartilhada e discutida, entendemos que dois
espaços disciplinares importantes deveriam se constituir. Estes denominados nesse currículo
“Geografia da produção e da circulação” e “Dimensões geográficas da cidade e do campo”,
passaram a ser referências para o início do processo formativo, nos primeiros semestres do
curso.
Essa nova proposição se consubstancia a partir da discussão articulada (campo-cidade
e a superação da dicotomia) em direção a uma leitura mais focada, ou seja, separada didaticamente, não como conteúdo dado, mas como eixo de pesquisa. Nesse sentido, o aprofundamento
da questão vem na seqüência com momentos disciplinares distintos, alicerçados na prática da
pesquisa7 : “Fundamentos analíticos para o planejamento territorial”; “Geografia Agrária
Aplicada” e “Geografia Urbana Aplicada”. Essa postura descrita inverte a lógica aplicada nos
currículo tradicionais da ciência geográfica.
Outro exemplo importante, que explicita o rearranjo, envolve os espaços disciplinares
“Análise Geográfica” (1º semestre), “Sociedades e Cartografias” (1º semestre), “Fundadores da
Geografia” (4º semestre) e “Paisagem, Território e Região” (5º semestre).
Novamente, avaliando criticamente a tradição formativa em geografia e, principalmente, analisando nossa própria prática como docentes, podendo assim aferir diferentes demandas8 , consolidamos com as propostas acima uma concepção que dissipa o encaminhamento enraizado no historicismo, qual seja, o de iniciar os cursos de geografia a partir das
pretensas “histórias do pensamento geográfico” ou ainda da apresentação dos “fundamentos
teórico-metodológicos da geografia”.
Deste modo, para dar um encaminhamento ao olhar crítico, ousamos propor que os
alunos que iniciam o curso devam exercitar a observação, o registro e a sistematização de
diversos processos presentes na realidade (formas de produção e organização espacial da sociedade) fazendo uso de categorias estruturais do discurso geográfico: espaço, paisagem, território, região, lugar, etc. A essas práticas denominamos “Análise Geográfica” e “A construção
do conhecimento e o sentido do discurso geográfico na escola”, os quais apontam para a necessidade de aprofundamentos teóricos a serem contemplados principalmente em outros espaços
disciplinares que abordam contextualizadamente recortes históricos que dão fundamentação
a essas categorizações.
No caso de Sociedades e Cartografias, o objetivo central é colocar em discussão os significados que as representações cartográficas foram assumindo como linguagem, possibilitando por meio de suas estruturas simbólicas construir identificações e apropriações dos lugares por diferentes sociedades. E como, nesse processo, o cartografar e explicar o mundo foi
se aderindo a outras maneiras discursivas de explicação, criando relações intrínsecas entre
as categorias e grafias do espaço, tão importantes na construção de uma visão geográfica de
mundo de tempos tão remotos até os dias de hoje.
Em Fundadores da Geografia, pretende-se reforçar o papel que diferentes pensadores,
a seu tempo, tiveram no sentido de lançar luzes sobre a dimensão geográfica do mundo e, cujo
mérito foi o de dar as bases para a consolidação do que hoje concebemos com o área científica
do conhecimento geográfico e sua institucionalização. Permitindo inclusive identificar a origem das chamadas grandes áreas de formação em geografia, que se consolidaram nos tradicionais currículos de Geografia ao longo dos séculos XIX e XX.
7
Um ponto importante a esclarecer é que incorporados a essas práticas de pesquisa estão os trabalhos de campo, os quais
passaram a ter uma ancoragem disciplinar sem, no entanto, perder o caráter integrador e sistematizador que qualquer
pesquisa de campo contempla.
8
Vale dizer que muitos aspectos relevantes se entrelaçam na construção da proposta curricular. Por exemplo, como
considerar os indivíduos que vivenciarão o processo de ensino-aprendizagem no currículo e nos percursos propostos?
Evidentemente, há um perfil de alunado que constitui o que genericamente chamamos de demanda para os cursos de
geografia da PUCSP. Assim, no tocante aos alunos ingressantes, temos em sua grande maioria pessoas de faixa etária
entre 18 e 25 anos e, com raras exceções, vindas diretamente do ensino médio. Portanto, com pouca ou nenhuma experiência
universitária. Este dado é importante na medida em que identificamos nesses alunos uma relação com o discurso geográfico
mediado quase que exclusivamente pela geografia escolar.
177
SILVA, J. L. B. E RAMIRES, R. R.
ONDE SE CONSTRÓI A IDENTIDADE...
Indo a diante, na disciplina Paisagem, Território e Região, mais do que entender o
processo de construção social dos conceitos, busca-se aqui aprofundar a relação entre a produção do conhecimento e o domínio das categorias que identificam o discurso geográfico. Objetiva-se dessa forma o reconhecimento dos fundamentos do estatuto epistemológico da Geografia e estabelecimento de exercícios, visando mediar a relação entre aparência e essência na
produção do discurso geográfico
Os exemplos acima têm o intuito de explicitar o movimento próprio do pensar em geografia, relacionado a uma proposta que visa formar profissionais nessa área. Outros tantos
exemplos seriam pertinentes aqui, mas estenderiam demasiadamente nossa explanação.
Por esse motivo, comprometidos com a proposta que apresentamos, discutiremos aqui
a segunda questão colocada no título deste artigo: “É possível fazer geografia nos cursos de
geografia?”.
É legítimo aduzirmos que sim, se superadas muitas dificuldades. Materiais, conceituais,
políticas.
Quando nos deparamos com a necessidade do fazer em geografia como prática formativa,
temos que desdobrar a pergunta acima em outras tantas, e assim nos colocar diante de alguns
posicionamentos: a serviço de que pensamos a formação de profissionais em geografia, sejam
eles professores e/ou bacharéis? Queremos mesmo nos curvar ao discurso das competências?
Não podemos nos furtar, nesse raciocínio, do olhar abrangente sobre a sociedade em
que vivemos e que, como já apontamos anteriormente, nos coloca diante de rápidas e profundas mudanças. E, evidentemente, sabemos que nossa escolha curricular denuncia nosso
posicionamento nesse emaranhado social.
Ora, se pensarmos que a sociedade capitalista, por meio dos seus diversos âmbitos
institucionais, acaba por manter e reproduzir a estrutura econômica, a universidade, assim
como toda escola, efetiva a manutenção da ordem econômica por meio do currículo: a organização dos conteúdos, os métodos e tecnologias de abordagem dos mesmos, o elenco de disciplinas, os procedimentos de avaliação, e os objetivos a serem alcançados no final.
O grande desafio que se impõe é perceber, na perspectiva do encalcamento ideológico,
como sugere APPLE (2006), analisando Althusser9 , que as configurações recentes que o capitalismo vem assumindo, pela via do neoliberalismo em escala global, produzem rearranjos
sócio-territoriais que nos impedem de identificar com clareza a “origem” ideológica dos processos formativos vigentes. E, nesse sentido, a falta de clareza a respeito de quem é o agente
produtor da ideologia (que genericamente chamamos mercado) escamoteia a origem do discurso da competência e, por conseguinte, o foco da luta por mudanças ou novas perspectivas
formativas.
Essa análise, como podemos apreender da abordagem de CHAUÍ (2007), quando se
refere ao discurso do conhecimento indica a figura do especialista. Ou ainda, daquele que
divulga saberes...
Isso posto, estamos diante do enfrentamento de nossa própria proposta formativa. De
um lado, bacharelandos vinculando-se à pesquisa acadêmica, comprometida com sua ramificação nos campos profissionais. Portanto, um exercício no qual o aprendizado procura o ambiente externo onde a “realidade profissional do geógrafo” está assentada.
De outro, licenciandos enveredando igualmente pela pesquisa acadêmica, profundamente comprometida com o pensar pedagógico, mas também respaldada pelo olhar externo,
do processo educativo “real” empenhado nas escolas onde se realizam seus projetos de estágio...
Resta-nos dizer que o fazer em geografia, no desenrolar desse projeto pedagógico, tem
se realizado fundamentalmente no plano do diálogo articulado entre as duas formações, principalmente nos espaços comuns que ao longo da formação permitem reaproximações entre as
práticas e, em tese, têm o objetivo de estimular a construção de olhares interdisciplinares
sobre a realidade.
Finalmente, frisamos a necessidade de registrar que a concepção curricular que apresentamos é resultante de um processo aberto de discussão entre docentes da Universidade, o
9
referindo-se a “Aparelhos ideológicos do Estado”
178
Terra Livre - n. 31 (2): 173-179, 2008
qual oportunizou tomadas de posição, desafios e muitas discordâncias, e cujo resultado se
materializa na grade curricular. Portanto, por essa sua natureza, tal proposta carrega a marca da diversidade de leituras geográficas e identifica tempo-espacialmente seu desenho político-pedagógico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006.
AZZI, Sandra – Trabalho docente: autonomia didática e construção do saber pedagógico. In:
PIMENTA, S.G. (org) – Saberes pedagógicos e atividade docente
docente. São Paulo: Cortez, 2002. pp
35/59
CHAUÍ, Marilena – Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas
falas. São Paulo:
Cortez, 2007. 12ª ed.
MOREIRA, Ruy – O círculo e a espiral – para a crítica da geografia que se ensina
ensina. Niterói:
Edições AGB Niterói, 2004.
PEREIRA, Julio Emilio Diniz – “As licenciaturas e as lutas concorrenciais no campo universitário”. In: Formação de professores. Pesquisas, representações e poder
poder. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. pp 137/159.
PIMENTA, Selma Garrido – Formação de professores: identidade e saberes da docência. In:
docente. São Paulo: Cortez, 2002. pp
PIMENTA, S.G. (org) – Saberes pedagógicos e atividade docente
15/34
SILVA, Jorge L. B. e RAMIRES, Regina R. – “Formações em geografia – identidades e articuGeografia. São Paulo: AGB, 2007. pp 123/136.
lações” in: Boletim Paulista de Geografia
LEGISLAÇÃO
MEC - Resolução CNE/CP 2/2002 – Diretrizes Curriculares da Educação Básica em Nível
Superior
MEC - Resolução CNE/CES 14/2002 – Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de
Graduação em Geografia
DOCUMENTOS INTERNOS DA PUCSP
Projeto Pedagógico Institucional (PPI) – Diretrizes para a Graduação - Deliberação 11/2004
Projeto Institucional para Formação de Professores da Educação Básica (PIFPEB) – Deliberação 04/2005
Recebido para publicação dia 05 de fevereiro de 2009
179
180
Resumo
Resumo: O artigo analisa o uso do território por empresas
industriais de pesca. O território é considerado como ativo,
articulando a exigência de matéria-prima produzida
extrativamente, as políticas de Estado e a presença de firmas que
podem fazer partes de grupos econômicos. As articulações são
apresentadas para o setor instalado no Brasil entre 1967 e 1986.
TERRITÓRIO E
POLÍTICA EST
ATAL:
STA
A INDÚSTRIA DA
PESCA NO BRASIL
TERRITOR
Y AND ST
ATE
ERRITORY
STA
POLICY: THE FISHING
Y IN BRAZIL
INDUSTRY
INDUSTR
TERRITORIO
Y
ATAL: LA
ESTA
POLÍTICA EST
INDUSTRIA DE LA
PESCA EN BRASIL
CÉSAR AUGUSTO
ÁVILA MARTINS*
FUNDAÇÃO
UNIVERSIDADE
FEDERAL DO RIO
FURG
GRANDE -FURG
[email protected]
Palavras-chave: território; empresa; indústria; pesca; Estado
Resumen
Resumen: el artículo analiza el uso del territorio por las industrias
de pescado. El territorio es pensado como activo, unindo la
exigencia de la materia prima producida por la extracción, las
políticas del Estado y la presencia de industrias que pueden
formar parte de grupos económicos. Las articulaciones son
presentadas para el sector instalado en el periodo de 1967 y 1986.
Palabras clave: territorio; industria; pesca; Estado
Abstract: This paper analysis territory use by campanies in the
fishing industry. The territory is considered as active, making
the requirement of raw materials produced by extraction, the State
policies and the presence of campanies that may be part of
economic groups. The connections are presented for the sector
in Brazil between 1967 and 1986.
Key words: territory; company; industry; fishery; State
Terra Livre
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
*ICHI
181
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
INTRODUÇÃO
O estudo das relações entre o território e a organização das firmas/grupos econômicos
(as empresas) do setor de pescado instalado no Brasil, circunscreverá três pontos básicos de
análise, como proposto por Besançon (1966): (I) a pesca como atividade extrativa fornecedora
de matéria-prima para unidades fabris que ainda se localizam majoritariamente junto aos
cursos de água; (II) as estratégias e as ações do Estado como regulador do uso das águas e
financiador de atividades produtivas no setor pesqueiro; (III) a Geografia estudando empresas com tendência para a concentração/centralização do capital e a financeirização das atividades produtivas e da vida.
A interlocução entre os três pontos básicos será realizada através de um conceito clássico da Geografia e recentemente reativado com novas qualidades: o território. Pretendemos
responder a seguinte questão: como o território foi um componente ativo para a afirmação de
políticas estatais que objetivaram alavancar a produção pesqueira no projeto de modernização conservadora no Brasil da metade da década de 1960 até a metade dos anos de 1980?
O artigo está dividido em três partes. Na primeira, realizamos um pequeno resgate de
uma trajetória possível para a articulação entre território e empresas de industrialização de
pescado na formação econômico-social brasileira. Na segunda, argumentamos que o Estado
brasileiro se manteve como um regulador fundamental do setor pesqueiro. Na última parte
apresentamos alguns resultados da ação do Estado como financiador de um agente do setor:
as indústrias de pesca.
UMA ABORDAGEM TERRITORIAL DA INDÚSTRIA DA PESCA
Parte significativa dos estudos recentes balizados pelo conceito de território, no Brasil,
possuem seu ponto inicial em Souza (1995) que, ao fazer uma trajetória possível do conceito
de território para operacionalização de estudos sobre o tráfico de drogas na cidade do Rio de
Janeiro, considera o território como um “[...] espaço definido e delimitado por e a partir de
relações de poder” (1995, p. 97). No entanto, o caminho trilhado remete para uma formulação
que vai sendo refinada e apreendida como possível instrumento de intervenção. Intervenção
reconhecida por dois geógrafos que, na busca da “valorização do espaço”, escreveram no período de efervescência do começo dos anos de 1980 “[...] a construção do território é a sua exploração, pois implica simultaneamente domínio e apropriação” (MORAES; COSTA, 1981, p.
123).
A tese fundamental é o pequeno resgate anteriormente realizado por Moraes (1984)
que, ao retomar uma das elaborações de F. Ratzel no sentido de que a sociedade, ao se organizar para defender o território, tende a formar o Estado, estabelece o diálogo com a elaboração
de Karl Marx (1985) para as chamadas formações pré-capitalistas nas quais a produção do
território é definida pelo seu uso. Marx, ao analisar diferentes sociedades (Roma, Germânia,
Eslavos, Celtas, Ameríndios), demonstra que os diversos usos que elas fazem dos pedaços do
planeta transforma-os em territórios. Os usos são marcados por conflitos e que, mais tardiamente, com a consolidação do Estado moderno, permitirão esboçar a abordagem dos diferentes tempos e espaços que se articulam desigual e combinadamente, possibilitando a sua compreensão para além da noção dos limites do modo de produção. Idéia que Vladmir Ilich Lênin
e depois Leon Trotsky formularam como a “[...] lei da formação econômico-social como lei do
desenvolvimento desigual e combinado” (MARTINS, 1996, p. 17).
Milton Santos vinha delineando, desde as décadas de 1970 e 1980, o projeto para compreender a formação econômica e social brasileira no meio técnico-científico-informacional.
Considerando a indispensabilidade da formulação e a sua retomada, posto que em obra mais
recente o autor considera que “[...] a formação sócio-espacial e não o modo de produção constitui o instrumento mais adequado para entender a história e o presente de um país” (SANTOS, 1996, p. 107), arriscamos a afirmar com Mamigonian (1996), que esta se configura na
mais importante formulação de Milton Santos. Entendemos que se ela permite a articulação
entre a História e o funcionamento da sociedade capitalista e as histórias das diferentes
sociedades nos distintos pedaços do planeta, que vão sendo nomeados e renomeados, também
182
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
pode se constituir em mais um engessamento da análise das realidades, conduzindo a insistentes explicações do passado e pouco elucidativas do presente.
O território foi trabalhado por Milton Santos durante as décadas de 1980 e 1990, conjuntamente com a tentativa de estruturação de um sistema de pensamento que, ao partir da
Geografia, pretendeu dar conta das metamorfoses na vida dos homens, com a hegemonia de
uma concepção e de uma forma de ciência baseada em uma possível constituição de um sistema técnico que substituiria o conjunto das técnicas, intensificando os fluxos, dando novos
atributos aos fixos e, sobretudo, alicerçado na imperiosidade da informação. Um momento
que pode ser considerado como determinante do acabamento dessa trajetória, iniciada em
“Por uma Geografia Nova”, de 1978, é a publicação de “A natureza do espaço-técnica e tempo.
Razão e emoção” em 1996, no qual explicita a compreensão de que o espaço geográfico, entendido como a articulação indissociável entre o sistema de ações e de objetos, se constituiria no
objeto da Geografia.
Ora, na última parte do capítulo intitulado “Estado e espaço: o Estado-nação como
unidade geográfica de estudo”, de “Por uma Geografia Nova”, Milton Santos escreve um item
sobre “Espaço e território”. Neste, que antecede o capítulo “As noções de totalidade, de formação social e de renovação da Geografia”, o autor considera que os três elementos de um Estado-nação são o território, o povo e a soberania, e nesta, o “[...] uso do poder que, de resto,
determina os tipos de relações entre as classes sociais e as formas de ocupação do território”
(SANTOS, 1978, p. 189).
No presente estudo, o território é a formação espacial brasileira territorializada. Evitaremos, apesar de muito presente, os debates como aqueles entre espaço e território, desses
com região e lugar. Assim, é possível fazer uma pequena retrospectiva para indicar o que
consideramos como ressignificação do território.
Na conferência de abertura do Seminário Internacional “Território: globalização e fragmentação”, organizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, na Universidade de São Paulo, em 1993, o título da apresentação é
indicador da presença do conceito: o retorno do território. Qual território? “É o uso do território, e não o território em si mesmo [...] o território são formas, mas o território usado são
objetos e ações” (SANTOS, 1994, p. 15-16). No começo do século XXI, ao retomar o projeto de
(re)inscrição da formação sócio-espacial no meio técnico-científico-informacional, afirma, com
Maria Laura Silveira que o que interessa discutir é, então, “[...]o território usado, sinônimo de
espaço geográfico. E essa categoria, o território usado, aponta para a necessidade de um esforço destinado a analisar sistematicamente a constituição do território” (SANTOS; SILVEIRA,
2001, p. 20).
Insistimos na relevância dessa abordagem, pois é uma abertura para a análise do
território como um campo de tensão entre as potências de agentes de forças desiguais, constituídas historicamente, portanto, como território usado. A retomada do conceito de território
nas últimas obras de Milton Santos significou e significa a intensificação da interlocução com
outros cientistas sociais que não soçobraram a cantilena do discurso único.
Um dos desafios postos é aliar a abordagem histórica da formação social com sua resignificação como território usado no período técnico-científico informacional. Apresentamos
uma breve e não conclusiva retomada de uma outra formulação de Milton Santos: período
técnico-científico informacional. Em texto publicado originalmente em 1984, no n. 4 da Revista do Departamento de Geografia da USP, Milton Santos, escrevia que o próprio espaço geográfico poderia ser “chamado de meio técnico-científico” (p. 15)2 . O autor apresentava uma
elaboração que superava a discussão “espaciológica” e buscava apreender as metamorfoses do
espaço habitado, para parafrasear uma das suas obras, através das imbricações entre a ciência, a técnica e a seguir da informação com e no território. É em “A natureza do espaço” que a
informação será considerada como “vetor fundamental do processo social e os territórios são,
desses modos, equipados para facilitar a circulação” (SANTOS, 1996, p. 191).
Ciência, técnica e informação utilizadas por quais agentes? O agente social privilegiado no trabalho são as empresas de pesca instaladas no Brasil entre 1967 e 1986. Com o
objetivo de simplificar a exposição, entendemos empresas como sinônimo de firmas/grupos
2
O texto reaparece na coletânea: SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico científico informacional.
São Paulo: HUCITEC, 1994, p. 121-135.
183
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
como Gonçalves (1991; 2003). Para o autor, não havendo um corpo teórico orientado para a
definição de firma e grupo econômico, podemos tratá-los como um “conjunto de firmas, submetidas ao mesmo poder controlador” e como locus da acumulação, possuidoras de quatro
estratégias centrais: especialização, diversificação, integração vertical e conglomeração.
Assim, está desenhado o problema da investigação: o território, o qual é definido pelo
seu uso na História foi e é decisivo para a reprodução das empresas industrial de pesca instalados no Brasil e mais especificamente do setor de enlatamento. O pressuposto é que não
somente a concorrência inter-capitalista, mas também o território usado são resultados e
motores da estrutura empresarial e a análise leva em conta o aprofundamento das relações
entre a localização das plantas fabris junto a pontos historicamente construídos no litoral
brasileiro e o descortinamento da estrutura e funcionamento das formas e dinâmicas da natureza do Oceano Atlântico, construindo e consolidando o Mar territorial brasileiro no meio
técnico-científico informacional.
Concomitantemente, há um afastamento da produção do pescado, que atualmente é
recurso e matéria-prima industrial como um meio de vida de populações que anteriormente
viviam como pescadores artesanais para a produção de armadores e/ou industriais proprietários das embarcações que vivem do lucro e da mais-valia.
Reafirmamos duas posições: a primeira é que a opção conceitual do trabalho não eliminou a possibilidade de manter o diálogo com outras formulações; e a segunda é a obrigatoriedade
de analisar as políticas de Estado para o setor pesqueiro.
Para o estudo do setor de enlatamento de pescado no Brasil, é necessário realizar a
análise das políticas estatais em suas relações com a presença dos novos agentes, que constituem com e no espaço e nos territórios. Pois, entre eles existe uma ligação genética, como
sugere Henri Lefebvre (1978 e 1986), um pensador rigoroso das estruturas, formas, conteúdos
e nexos constitutivos do modo capitalista de produção. A análise deve levar em conta os aspectos tático-estratégico, prático e ideológico (LEFEBVRE, 1978, p. 311). Ou seja, da subordinação dos recursos do território a objetivos políticos e à perspectiva de tecnocratização da sociedade, passando pelos instrumentos e meios de ação.
A ligação entre o espaço, seus fragmentos e o Estado, na sociedade capitalista, como
um dos instrumentos de amálgama entre o que se apresenta como desordem/desunião, construindo a(s) ordem(s) e fragmentando os ordenamentos é sugerida por Lefebvre (1978): “[...] o
Estado se liga ao espaço desde sua origem por uma relação complexa, que muda e atravessa
pontos críticos [...] o Estado tende a controlar os fluxos e a existência, e assegura a sua coordenação” (p. 261 e 263)3 .
O Estado mantém, historicamente, planos e estratégias de regulação do setor pesqueiro. O Estado aqui tratado é territorial, tributador e mantenedor do monopólio da força pública
(ENGELS, 1977) e mesmo que, eventualmente, construa políticas, no sentido de formular,
executar e/ou incentivar ações minimizadoras das tendências do acirramento das desigualdades sociais e territoriais, é tomado como numa formulação clássica de Marx e Engels: “[...] a
forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e
na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, conclui-se que todas as instituições
comuns passam pela mediação do Estado e recebem uma forma política” (1989, p. 70). Portanto, sem minimizar a possível capacidade de intervenção de outros agentes, como por exemplo,
de movimentos sociais, sejam eles legais, ilegais ou considerados como de maior ou menor
legitimidade, interessa-nos estabelecer o diálogo com alguns autores que estudaram as chamadas políticas públicas para o setor pesqueiro.
Essa abordagem acadêmica-política é um caminho fecundo, uma vez que são poucos os
geógrafos que realizam estudos sobre temáticas relacionadas aos múltiplos processos da atividade pesqueira. Para consolidar a afirmativa, pode-se tomar por base o portal do banco de
teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Com a
chamada de “pesca e pescadores” há um resultado de 1.540 teses e dissertações em todas as
áreas do conhecimento (Disponível em: <http://servicos.capes.gov.br/capesdw>. Acesso em: 20
de julho de 2009. Com a pesquisa refinada para as palavras “Geografia e pesca” são encontra-
3
“L’État se lie à espace, au cours de sa geneses, par une relation complexe, qui a change et traverse des points critiques
(...) L’État tend à contrôler flux et stocks, em assurant leur coordinations” (tradução livre do autor).
184
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
das 124 chamadas e para as palavras “Geografia e pescadores”, o número é de 50 teses e
dissertações. Do total de 174 estudos identificados, 31 são trabalhos defendidos em Programas de Pós-Graduação em Geografia. Em uma análise não exaustiva e distante de qualquer
conclusão mais elaborada, observa-se que no conjunto dos 31 trabalhos, apenas três não estão
relacionados às atividades dos pescadores artesanais e às dinâmicas que representam garantias ou limites da reprodução de suas vidas. São estudos assentados nos conflitos da atividade
com as ordens e desordens da sociedade urbano-industrial, como a especulação imobiliária,
com a pesca industrial, com as redes de comercialização, com o comprometimento da qualidade das águas e com o turismo praticado em escala. Estudos como o de Martins (1997) sobre a
reprodução social dos pescadores no Estuário da Laguna dos Patos e o de Cardoso (2001), que
procura caracterizar a existência de um movimento social na pesca artesanal, sintetizam
estas preocupações.
Por que esta indicação é profícua? Porque o Estado tem sido historicamente um regulador das atividades pesqueiras entre os Estados Nacionais através de acordos sobre os direitos de capturas em determinadas áreas territoriais, legislando sobre os direitos e obrigações
de pescadores e armadores ou mesmo intervindo diretamente com políticas de incentivos e
subsídios.
A REGULAÇÃO
EST
ATAL DA PESCA
ESTA
No Brasil, apesar de poucos trabalhos de maior fôlego, é possível afirmar com Diegues
(1983), Silva (1988), Abdallah (1998) e Paiva (2004) que desde o período colonial existiam
regulações estatais para o setor pesqueiro. É, sobretudo a partir da criação da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), em 1962, e por meio do decreto 221 de 1967, que
o Estado objetivou transformar a pesca em uma indústria de base, executada por agentes
modernizados, portadores dos mais eficazes instrumentos e técnicas para reduzir as incertezas das capturas e dos problemas relativos à comercialização e à conservação. Os principais
benefícios fiscais eram isenções de impostos: para produtos industriais que equipariam embarcações; para o pescado in natura destinado ao mercado interno e exportações; de Imposto
Renda para pessoas jurídicas com projetos aprovados na SUDEPE; para produtos industrializados para importações previstas em projetos aprovados pela SUDEPE. Ou seja, o setor
pesqueiro faria parte do processo de modernização conservadora que se instalava no Brasil
(FERNANDES, 1975) com um aparato para o planejamento centralizado (IANNI, 1979).
Ainda sobre a elaboração de políticas estatais que visam regular o uso dos mares e
oceanos, cabe ressaltar que o debate doutrinário foi iniciado no século XVI e que, até aproximadamente 1945, havia um certo consenso sobre o livre acesso e uso das águas que interessavam às maiores potências do período. De modo geral, há duas inflexões na última metade
do século XX no período posterior à Segunda Guerra Mundial: a partir da Conferência de
Genebra de 1958 e da Convenção de 1964.
Na primeira, Harry Truman (1884-1972) presidente dos Estados Unidos da América
entre 1945 e 1953, defendeu publicamente o uso exclusivo das águas até o limite da Plataforma Continental pelos países ribeirinhos, quebrando a tradição liberal. Há uma história relativamente longa e conflituosa da expansão das atividades de pesca que envolvem longos
deslocamentos para as capturas de diferentes espécies, com conflitos entre os pescadores e
outros agentes, chegando a mortes e tragédias para os trabalhadores do mar, mantendo seu
trabalho como lo más perigloso del mundo (OIT, 2000).
A segunda inflexão pode ser considerada quando a Convenção de 1964 define “[...] el
lecho del mar y el subsuelo de las zonas submarinas adyacentes a las costas pero situadas
fuera del mar territorial, hasta una profundidad de 200 metros o, más allá de este limite,
hasta donde la profundidad de las águas suprayacentes permita la explotación de los recursos
naturales de dichas zonas” (URTEAGA, 1988, p. 12).
Na Espanha, Gonzáles Laxes (1988) e Viruela Martínez (1995) deram indicações das
estratégias dos Estados e dos pescadores organizados para garantir a sobrevivência das comunidades e fazer frente às renegociações do uso das águas do Mar Mediterrâneo propostas
pela União Européia e por Estados Nacionais do Norte da África.
No começo da década de 70 do século XX, são definidas as linhas gerais das estratégias
185
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
e ações do Estado brasileiro sobre o uso do Mar Territorial. Numam (1972) indica que a ação
do Estado brasileiro, do final da Segunda Grande Guerra Mundial até o começo da década de
1970, está formalizada sinteticamente, em três decretos:
1.
Decreto 28.840 (08/11/50) que incorpora a plataforma continental e insular ao
território nacional;
2.
Decreto 44 (16/11/66) que determina que até seis milhas o Brasil tem direito
exclusivo de pesca e de exploração dos recursos vivos do mar;
3.
Decreto 1098 (25/03/70) que determina as 200 milhas de Mar Territorial para o
Brasil. Para os armadores e industriais instalados no Brasil, o fechamento das águas brasileiras teve como principal impacto o fechamento dos Mares Territoriais do Uruguai e Argentina impedindo o acesso aos seus pesqueiros que passaram a ser utilizados por embarcações
fundeadas no porto pesqueiro do Rio Grande, desde 1953.
Essas políticas somente poderiam ter alguma eficácia com a existência e a ação de
determinados agentes. E foram escolhidos os agentes: havia a necessidade da formação e da
consolidação de um empresariado (armadores e industriais) capaz de aumentar a produção e
o processamento de pescado com a elevação da base técnica nas capturas, no processamento
fabril e na distribuição. Do ponto de vista das capturas, procurava-se uma espécie de via
prussiana de modernização e do processamento. Havia a perspectiva do alargamento da disponibilidade de alimentos industrializados para suprir o consumo da acelerada urbanização
do país. Objetivava-se, assim, garantir e expandir as possibilidades de lucros do setor, assegurar mais um grupo de alimentos com sanidade e menor preço para manter o custo da reprodução da força de trabalho mais baixo e com eventuais excedentes e/ou na melhoria da qualidade do pescado, tentar minimizar o histórico déficit da balança comercial do setor.
Porém, anteriormente ao decreto 221/67 e as políticas subseqüentes, o Estado brasileiro havia elaborado e aplicado ações no setor e que havia agentes que atuavam e se reproduziam na atividade.
Descartando o período colonial, em que as principais preocupações estavam centradas
na regulação da atividade baleeira, o Decreto Imperial nº 876, de 10 de setembro de 1876, e o
Decreto nº 8338 de 17 de dezembro de 1881, garantiam a concessão de terrenos para empreendimentos de pesca e favores fiscais e financeiros para companhias de pesca, salga e secagem
de pescado. Também criava-se a Repartição Hidrográfica do Ministério da Marinha que pode
ser considerada a primeira instituição de pesquisa sobre as chamadas “ciências do mar”.
No começo da República, através do decreto nº 478, de 09 de dezembro de 1897, o
Estado objetivava nacionalizar a atividade pesqueira, enfrentando forte resistência do Estado português, interessado em defender especialmente os imigrantes da Povoa do Varzim em
Portugal que atuavam no Brasil. A criação em 1912, da Inspetoria de Pesca, trouxe a primeira
regulamentação mais abrangente para o setor. A regulamentação da Inspetoria envolvia desde a manutenção de laboratório de pesquisa e publicações especializadas até a existência dos
chamados “guardas de pesca”. Entre as atribuições desses estavam o controle das atividades
de pesca em determinados períodos e do uso de instrumentos considerados danosos à reprodução das espécies e o impedimento do contrabando. Segue-se a tentativa de criação da primeira Estação de Biologia Marinha (entre 1915 e 1916) com objetivo de iniciar e sistematizar
as pesquisas e a divulgação de elementos para auxiliar as indústrias, a organização da “Missão de nacionalização da pesca e saneamento do litoral”, dotando de recursos uma expedição
com o cruzador “José Bonifácio” que percorreu o litoral, entre 1919 e 1921, realizando o primeiro grande inventário da “terra e do homem” da costa brasileira.
A forte intervenção estatal no período após a Revolução de 1930 pode ser compreendida com dois exemplos: (I) a exclusividade dada ao Estado, pela Constituição de 1934, para a
criação dos Entrepostos de Pesca e (II) na abertura política, após o Estado Novo (1937-1945),
na qual foi criada a Caixa de Crédito dos Pescadores e Armadores de Pesca, em 1945, cuja
taxa de 5 % do valor total das vendas em leilão, nos Entrepostos, que teve por fim financiar
desde a aquisição de material de pesca e gelo até a montagem de pequenos frigoríficos.
Antes da criação da SUDEPE, em 1962, mais precisamente em 1961, o Conselho do
Desenvolvimento da Pesca tinha, entre seus objetivos formais, a criação de um Fundo Nacional de Desenvolvimento da Pesca. A SUDEPE nasce com a Lei Delegada nº 10, de 11 de
setembro de 1962, inspirada na formulação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) com a idéia de planejamento estatal com viés setorial.
186
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
No atual limite, o litoral que já foi “território do vazio” (CORBIN, 2003), conecta sistematicamente a humanidade à vida nos ¾ de água do planeta através da ciência, técnica e
informação. Sistematicamente pelo menos desde a publicação da Historie Physique de la Mer
de Luigi Masigli em 1725 e a grande viagem da frota militar-científica estadunidense de
1838-1842 ao Oceano Pacífico e a Antártida (Philbrick, 2005), confirmando que “[...] nos últimos cinco séculos o espaço oceânico foi uma arena central da luta imperial” (Mancke, 1999, p.
234). A expansão dos limites permite, por exemplo, a produção de mapas tridimensionais da
costa brasileira e com forte financiamento a mantém-se a identificação de espécies marinha:
em 2004 o “Censo da Vida Marinha” que envolveu aproximadamente mil cientistas de 70
países apontou a existência de 106 espécies de peixes desconhecidas; no Brasil o “projeto
Biota-Bentos Marinhos”, financiado em R$ 2,5 milhões pela FAPESP (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo) identificou 70 novas espécies de animais marinhos no litoral paulista4 . Quais serão os limiares?
Insistimos que se houve e há um conjunto de regulações do Estado para o setor, essa
relação deve ser apreendida no e com o território, como sugere Antas Jr. (2005).
TERRITÓRIO
E O FINANCIAMENTO EST
ATAL DA PESCA NO BRASIL: UMA PROPOSESTA
TA DE PERIODIZAÇÃO
O território é ativo do ponto de vista da existência conjunta de condições materiais,
como da presença de determinados estoques pesqueiros e de agentes promotores da
alavancagem da atividade pesqueira (pescadores, armadores de pesca, trabalhadores fabris,
empresários industriais e comerciantes) e de condições não materiais como a formação de
uma tecnoburocracia capaz de implementar ações setoriais. No texto, as referências das políticas e dos financiamentos estatais para a pesca estão restritas àquelas executadas em nível
federal.
Como Diegues (1983) e Abdallah (1998), consideramos que o Decreto 221/67 é um marco inflexivo no setor pesqueiro nacional como uma forma de modernização. Do ponto de vista
dos incrementos produtivos ocorreram saltos: (I) as capturas passam de 377.008 toneladas,
em 1964 para 815.720 toneladas em 1974, chegando a 971.537 toneladas, em 1984; (II) o
número de fábricas que enlatam pescado sobe das 22 empresas em 1965 para 40, em 1976
(dezesseis no Rio de Janeiro, onze em São Paulo, oito no Rio Grande do Sul e cinco em Santa
Catarina); (III) o consumo aparente de pescado duplica entre 1964 e 1984; (IV) o saldo da
balança comercial do setor de pescado torna-se positivo; (V) são instalados cursos superiores
e instituições de pesquisa voltadas para o estudo dos ambientes aquáticos e para a criação de
tecnologias de pesca e industrialização de pescado; (VI) são criadas e impostas normas de
sanidade para a produção e consumo de pescado.
Somados a esses resultados, Diegues (1983) indica que, além do comprometimento de
várias espécies pela intensificação das capturas, a negligência com a pesca artesanal, mais do
que comprometer estoques, desestruturou o modo de vida de muitas localidades. Cardoso
(2001) demonstra que, passadas mais de três décadas de um modelo de modernização que
privilegiava os agentes hegemônicos do setor. Os pescadores artesanais se articulam para
resistir e apresentar propostas de suas territorialidades, marcadas pela utilização de instrumentos simples de trabalho que, ao garantir sua reprodução simples, também podem produzir pescado de qualidade para diferentes mercados e colaboram na manutenção de determinados estoques5 .
Assim, se é possível concordar em linhas gerais com os autores citados acima que, até
4
A pesquisa divulgada no Censo da Vida Marinha iniciou em 2000 e possui previsão de término em 2010. O estudo
financiado pela FAPESP envolve pesquisadores das três universidades estaduais de São Paulo e teve início em 2000.
5
Um exemplo recente é o estabelecimento de parcerias dos coletores/produtores de moluscos bivalvos organizados em
cooperativas no litoral paulista para abastecimento da rede de supermercados Pão de Açúcar. Recentemente há diversas
iniciativas de profissionais de diferentes formações, normalmente respaldados pelas Universidades, que pretendem fazer
de suas atividades de pesquisa, ações de planejamento e gestão. Eivados de discursos com vocábulos política e ecologicamente
corretos, seguem modelos pré-determinados que tratam abstratamente o trabalho dos pescadores, naturalizam as relações
sociais e pregam o retorno à práticas de tempos remotos.
187
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
a criação da SUDEPE, do Serviço de Inspeção Federal e do Primeiro Plano de Nacional de
Desenvolvimento Pesqueiro em 1962 e talvez até a operacionalização do decreto 221/67, não
existiam políticas estatais de financiamento e um parque pesqueiro de importância nacional,
discordamos com base nos elementos já apresentados que não houvesse, de um lado, políticas
de Estado e de outro, industriais que usavam o território em suas frações para se constituírem em agentes hegemônicos no setor. Observe-se que o Censo Industrial de 1907 já registrava exportações de pescado pelos portos do Rio de Janeiro, de Manaus, de Rio Grande, de
Florianópolis, de Belém, de Salvador, de São Luís (MA) e de São Francisco (SC) para os mercados da Alemanha, da França, da Argentina, do Uruguai, da Bolívia, do Peru, de Portugal,
da Itália e do Paraguai. E, na década de 1930 são fundadas duas das atuais fábricas de
enlatamento de pescado em funcionamento no Brasil: a Rubi, em 1934 e a Coqueiro, em 1937
(pertencente desde 2000 ao grupo Pepsico, a fábrica ao produzir cerca de 1.060.000 latas/dia,
tornou-se a recordista mundial do setor em 2003). Ambas operam em São Gonçalo/RJ em
fábricas que remontam o período de fundação.
Na perspectiva que, até 1967 não havia financiamento estatal sistematizado para o
setor pesqueiro. Sugerimos a seguinte periodização para as políticas de Estado para a pesca
no Brasil:
1. 1967 à 1973: forte intervenção com recursos do decreto 221/67 para a montagem de
firmas e expansão dos empreendimentos do setor. Em 1969 é elaborado o Segundo Plano
Nacional de Desenvolvimento Pesqueiro;
2. 1974 à 1986: início do esgotamento dos recursos do decreto 221/67 e montagem do
Fundo de Investimento da Pesca (FISET/Pesca), que após uma série de denúncias e comprovação de irregularidades no uso dos financiamentos, objetivava basicamente promover o saneamento de algumas firmas e fusões e aquisições. Em 1974 e em 1980 são elaborados dois
planos nacionais para o setor;
3. 1986 à fevereiro de 1989: esgotamento do modelo de financiamento e início da adoção de medidas de ajuste fiscal. Culmina com a fusão da SUDEPE com a Superintendência da
Borracha, com o Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal (IBDF) e a Secretaria Espacial do Meio Ambiente (SEMA) no IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis). Há o desmonte de estruturas básicas como a de sistematização e a de divulgação dos dados de capturas e a afirmação do BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social) no financiamento do setor;
4. fevereiro de 1989 à 2002: a fragilidade dos órgãos de Estado no setor pode ser comprovada pela efemeridade do GESPE (Grupo Executivo do Setor Pesqueiro), criado em 1995,
e substituído, mas não extinto pelo DPA (Departamento de Pesca e Aqüicultura) no Ministério da Agricultura e Abastecimento, em 1998. Além do atraso na divulgação de praticamente
todos os dados sobre o setor, é no período que se afirmam três processos nos quais o financiamento do BNDES é fundamental: a concentração relativa no setor de enlatamento, com a
extinção do processo produtivo em fábricas que não enlatavam sardinha e/ou atum, a ascensão de grupos empresariais que arrendavam embarcações para pesca de atuns e afins de altomar para exportação e a expansão da firmas de cultivo, especialmente de camarões, no Nordeste brasileiro (MARTINS, 2003). O período é encerrado com a criação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca (SEAP-PR) em janeiro de 2003 no começo do primeiro governo de
Luís Inácio Lula da Silva.
Por que apresentamos essa periodização com forte influência das ações do Estado?
Porque não é possível fazer a análise de políticas estatais sem considerar o território como
normativo. Portanto, é necessário retomar mais uma vez, mesmo que brevemente, a obra de
Milton Santos. Em “Estado-nação como espaço, totalidade e método”, ao discutir as características dos chamados “países subdesenvolvidos” o autor afirma que a estrutura dos gastos
públicos se orienta para servir “melhor e mais barato às empresas modernas” (SANTOS,
1982, p. 31). Mas, é em “A natureza do espaço” que dedica um item “as normas e o território”,
em que “[...] as normas das empresas são, hoje, umas locomotivas do seu desenvolvimento e
de sua rentabilidade” (SANTOS, 1996, p. 183). Entendemos que as flutuações das políticas de
Estado no setor pesqueiro podem ser analisadas com pelo menos uma permanência: sua maior presença ou ausência foi e é indispensável para compreender o uso do território pelos seus
agentes. E mais, é componente indispensável para formular uma explicação para a gênese,
consolidação e mesmo decadência de determinados agentes no uso do território.
188
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
A afirmação dos financiamentos estatais para a indústria da pesca
(1967-1973)
Uma das demonstrações da capacidade de organização dos industriais da pesca foi a
publicação da Revista Nacional da Pesca (RNP), que funcionou como espécie de porta-voz do
setor e era o órgão oficial da Associação Nacional das Empresas de Pesca (ANEPE). Em seu
número de agosto de 1968, trazia matéria intitulada “Governo de frente para o mar”, com a
seguinte declaração do Ministro Antônio Delfim Neto:
Os incentivos fiscais estão abrindo perspectivas de um desenvolvimento acelerado e
racional das atividades em tantos setores fundamentais da economia brasileira. A pesca
é um desses setores. E as notícias que temos são as mais auspiciosas, demonstrando
plena confiança dos investidores na política traçada pelo governo da República (1968, p.
3).
E concluía a matéria em tom de grandiloqüência: “Em suma: Brasil desperta para a
pesca. Deixou de ser um mero importador de bacalhau e sardinha enlatada”.
O quadro 1 apresenta o total de recursos solicitados e liberados pelas empresas no
período de 1968 até 1973 que representou aproximadamente de 75 % do total dos pedidos e
das liberações efetuadas até 1986, quando a SUDEPE estava esgotando sua política de financiamento. Um aspecto relevante foi a capacidade de mobilização e a velocidade de agentes do
setor e de fora dele em elaborar projetos para captar os recursos disponibilizados, pois não
existiam no país empresas de pesca com relevância nacional ou mesmo referências dos procedimentos adotados para a realização das solicitações, o acompanhamento dos processos, bem
como da fiscalização da aplicaçõa dos recursos. Um segundo aspecto importante foi que a
Quaker Oats conclui as negociações que culminam na aquisição da firma Coqueiro de São
Gonçalo/RJ, indicando uma possível internacionalização do setor naquele momento que acabou não se confirmando.
QUADRO 1: Brasil: quadro geral das liberações de recursos e de incentivos fiscais do
decreto-lei 221/67 de 1968 à 1973 (em U$) (*).
Total de firmas/grupos
solicitantes
Recursos solicitados
Recursos liberados
% dos recursos liberados
137 (1)
216.004.012
102.696.634
47,5
(*) Conforme instrução do Banco Central, todos os valores em unidades monetárias foram convertidos pelo preço médio
anual de venda do dólar.
(1) As firmas FRIDUSA-Frigoríficos e Ind. de Alimentos S/A de Niterói e ANPESCA- Cia. de Pesca Angra dos Reis do
município de Angra dos Reis (RJ) elaboraram projetos, mas não há dados disponíveis dos recursos solicitados.
Fonte: ANEPE. Anuário da Pesca, São Paulo, 1974.
A tabela 1 mostra a concentração dos recursos em empresas instaladas nas regiões Sudeste
e Sul do Brasil.
189
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
TABELA 1: Brasil: distribuição estadual das solicitações e liberações de recursos e de
incentivos fiscais do decreto-lei 221/67 de 1968 à 1973 (%) e média dos orçamentos dos projetos (U$).
Firmas/grupos
solicitantes
Recursos solicitados
(%)
Recursos recebidos
(%)
Média dos recursos
recebidos por projeto (U$)
Santa Catarina
36
17,8
15,8
447.920
São Paulo
35
35,0
38,8
1.135.405
Rio Grande do Sul
20
20,3
19,5
995.578
Guanabara
19
14,9
10,9
591.639
Rio de Janeiro (1)
16
8,4
11,0
705.551
Pará
4
1,2
1,4
367.054
Espírito Santo
2
0,5
0,4
237.563
Paraná
2
1,1
2,1
1.099.747
Pernambuco
1
0,2
...
...
Bahia
1
0,5
0,1
152.850
Ceará
1
0,1
...
...
Totais
137
100
100
747.983
Unidade Federada
(1)
As firmas FRIDUSA-Frigoríficos e Ind. de Alimentos S/A de Niterói/RJ e ANPESCA- Cia. de Pesca Angra dos
Reis do município de Angra dos Reis/RJ elaboraram projetos mas não há dados disponíveis dos recursos solicitados. ...
Informação não disponível
Fonte: Organização e cálculos de César Martins, com base em: ANEPE. Anuário da Pesca, São Paulo, 1974.
A partir de 1962, com a criação da SUDEPE, o Estado brasileiro possui um órgão que,
até a sua extinção em 1989, produzirá os melhores levantamentos de dados para o setor
pesqueiro da história do país. Entretanto, é o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) que publica, em 1965, o cadastro industrial que permite não somente isolar o setor,
mas também decompô-lo em três sub-setores com a identificação nominal dos empreendimentos por município.
A tabela 2 apresenta a síntese dos estabelecimentos nas Regiões Sul e Sudeste do
Brasil.
190
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
TABELA 2: Brasil: tipologia das firmas industriais de pescado nas regiões Sul e Sudeste (exceção da Guanabara) em 1965.
Tipologias
Municípios (UF)
Conservas de peixes,
crustáceos e moluscos,
exceto sardinha
Peixe fresco,
refrigerado, salga e
secagem
Angra dos Reis/RJ
Cabo Frio/RJ
Niterói/RJ
S.Gonçalo/RJ
-
8
-
Total do Rio de Janeiro
-
8
Rio Grande/ RS
São José do Norte/RS
Pelotas/RS
São Lourenço do Sul/RS
Barra do Ribeiro/RS
8
1
1
-
17
6
1
1
1
Total do Rio Grande do Sul
10
26
Balneário Camboriú/SC
1
Ganchos/SC
Florianópolis/SC
3
Imaruí/SC
1
Laguna/SC
2
Fonte: Organizado por César Martins com base em: IBGE. Navegantes
Cadastros industriais
por Unidade Federada, 1965.
/SC
2
Palhoça/SC
Obs: A sugestão da pesquisa no referido Cadastro e o empréstimo
do exemplar referente ao estado de- Santa Catarina
deve-se ao professor Armen Mamigonian. A pesquisa nas bibliotecas
e na
Penha/SC do IBGE em Porto Alegre, em Florianópolis
2
cidade do Rio de Janeiro (no Centro de Documentação no bairro
do Maracanã
e na Av. Franklin Roosevelt no centro) não
Araquari
/SC
1
localizou o exemplar da extinta Guanabara.
Brusque/SC
Canelinha/SC
1
Porto Belo/SC
191
Total de Santa Catarina
13
2
1
1
2
6
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
O corte regional deve-se ao fato que é nessas regiões que estavam concentradas 75%
das empresas de industrialização de pescado, da produção e do número de trabalhadores
empregados em operação naquele período no Brasil.
O Cadastro mostra a manutenção da localização das plantas fabris em municípios
litorâneos e apresenta duas características: a concentração das indústrias conserveiras próximas às áreas de captura, especialmente ao redor dos litorais do Rio de Janeiro, de Santa
Catarina e de São Paulo, e a existência de um grande parque fabril junto a Laguna dos Patos
e do seu estuário e litoral adjacente do Rio Grande do Sul. Ou seja, as políticas estatais do
setor são elementos que confirmarão ou conferirão novos significados ao território.
Combinado com a concentração dos recursos em empresas instaladas no Sudeste e no
Sul, que rapidamente exerceriam pressão para que os pescadores e/ou armadores trabalhassem com mais eficácia sobre os estoques, houve também a concentração em nível das empresas. O quadro 3 apresenta o total das 30 maiores liberações de recursos por empresas.
TABELA 3: Brasil: as 30 maiores liberações de recursos de incentivos fiscais do decreto-lei 221/67 de 1967 até 1973 entre 137 firmas/grupos econômicos que apresentaram projetos (U$).
Firma/Grupo
192
Local do projeto
Total liberado
1
COMPESCA- Cia. Brasileira
de Pesca
São Paulo/SP
6.903.162
2
CONFRIO- Cia. Nacional de
Frios
São Paulo/SP
6.096.901
3
INTERPESCA- Cia.
Internacional de Pesca
São Paulo/SP
5.401.634
4
Leal Pescados S/A
Rio Grande/RS
4.480.914
5
Pescal S/A Ind. Brasileira de
Peixe (1)
Rio Grande/RS
3.995.695
6
Pescanova S/A Ind. e
Comércio
São Paulo/SP
3.947.171
7
CIBRADEP- Cia. Brasileira
de Pesca
Rio de Janeiro/GB
3.736.661
8
Conservas Coqueiro S/A
São Gonçalo/RJ
3.451.143
3.342.567
9
INAPE- S/A Ind. Nacional da
Pesca
Santos/SP
10
Metal Forty S/A Conservas
Alimentícias
Niterói/RJ
3.053.663
11
Cia. de Pesca Krause
Itajaí/SC
2.915.471
12
Brasil Atlantic Ind. e
Comércio da Pesca S/A
São Paulo/SP
2.143.271
13
Jangada
São Gonçalo/RJ
1.960.993
14
Wigg S/A Comércio e
Indústria
Rio Grande/RS
1.867.573
15
Mantuano
Rio de Janeiro/RJ
1.801.995
16
TRANSPESCA- S/A
Curitiba/PR
1.799.778
17
Mallmann & Filhos S/A
Porto Alegre/RS
1.717.812
18
FRIPESCA- Frio Pesca Com.
e Indústria S/A
Rio de Janeiro/GB
1.664.768
19
INDUSPECA- Ind. Brasileira
Florianópolis/SC
1.628.814
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
continuação...
21
Abel Dourado Ind.
Alimentícia S/A
Rio Grande/RS
1.503.120
2.164.203
56,0
22
Vivamar S/A Ind. e Comércio
Rio de Janeiro/GB
1.313.233
1.864.670
70,4
23
Wildner Ind. e Conservas S/A
Biguaçu/SC
1.286.269
1.286.276
99,9
24
Sul Atlântico de Pesca S/A
Itajaí/SC
1.263.506
4.483.956
28,1
ISAPEIXE- Indústria
Riograndense de Pescado S/A
Rio Grande/RS
1.261.911
1.261.911
100
26
Torquato Pontes Pescado S/A
Rio Grade/RS
1.259.317
2.490.220
50,6
27
MULTIPESCA S/A- Indústria
de Pesca
São Paulo/SP
1.245.730
1.728.907
72,0
28
IPESCA- Industrial pesqueira
Camboriu S/A
Itajaí/SC
1.211.571
4.426.681
27,3
29
Babitonga Ind. e Comércio de
Pesca S/A
São Francisco do Sul/SC
1.162.032
1.168.347
99,5
30
SIP- Indústria .Pesqueira S/A
Navegantes/SC
1.088.872
1.839.302
59,2
76.025.287
121.785.110
62,4
25
Total
(1) Durante a década de 1970, a Pescal S/A fazia parte de um grupo com a Fortex Representações S/A com sede no Rio
de Janeiro/GB e a Nutrigel S/A - distribuidora de pescados e congelados com sede em Curitiba/PR. Ambas obtiveram
recursos separadamente. A primeira obteve U$ 208.252,00 e a segunda U$ 399.717,00.
Fonte: Organização e cálculos de César Martins, com base em: ANEPE. Anuário da Pesca, São Paulo, 1974.
As 30 empresas que obtiveram os maiores volumes de liberação de recursos
correspondiam a aproximadamente de 22% das solicitantes, foram responsáveis por 56,3%
dos pedidos de recursos e conseguiram 74,0% das liberações.
Para fins de comparação, lembramos que em 1990, primeiro ano de disponibilidade
dos dados de financiamento do BNDES, todo o financiamento do chamado “complexo pesca”
instalado no Brasil recebeu U$ 2.388.419,00, quando o preço estimado de um barco novo para
captura de atuns era de aproximadamente um milhão e quinhentos mil dólares.
Na pesquisa foram obtidos dois depoimentos que auxiliam a compreender o rápido
descontentamento por parte dos empresários do setor e o esgotamento de tal política, já na
metade dos anos de 1970, e a necessidade de criação de mecanismos que deveriam corrigir as
distorções. A apresentação dos relatos objetiva mostrar que a chamada “estratégia
organizacional” das firmas e/ou grupos já instalados e/ou em instalação, aliava aos componentes essenciais de um investimento, ou seja, a otimização da produção e a maximização do
lucro, a necessidade e a perspectiva de obrigatoriamente estabelecer relações que superem a
busca da matéria-prima, dos insumos, do trabalho e do mercado, mas de “regulações e interações
mais complexas, pluriformes [...] no qual os valores éticos nem sempre estão presentes”
(Albuquerque, 2002, p. 114).
O primeiro é de um dos técnicos que colaborou na construção da SUDEPE e do decreto
221/67, que se demitiu do setor público e se aposentou no final da década de 1980, depois de
ser diretor de duas das mais importantes indústrias de conservas do estado do Rio de Janeiro:
“[...] vimos que com a complexidade da elaboração dos projetos, alguns técnicos do próprio
governo passaram a montar firmas para auxiliar os industriais a montar os projetos que eles
mesmos avaliariam. E depois eram muitos projetos e não havia como acompanhar”6 . O segundo depoimento é do diretor de uma empresa de origem familiar de Santa Catarina e atu-
6
Depoimento em fevereiro de 2003, na cidade de Niterói/SC.
193
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
almente funcionário de uma empresa do governo catarinense: “[...] começaram a aparecer
pessoas oferecendo os serviços para agilizar a liberação na SUDEPE. Como não aceitamos,
houve o atraso na liberação do dinheiro e a sardinha começava a escassear e perdemos o
equipamento que ficou retido no porto de Santos”7 .
O Estado brasileiro organizou e implantou normatizações que previam o incentivo
setorial, centrando seus recursos na constituição ou no reforço de grandes empresas que estavam situadas em pontos determinados do território: onde havia uma certa tradição de produtores e consumidores de pescado processado industrialmente e nas proximidades do desembarque da matéria-prima que estava concentrada no litoral Sudeste-Sul. O território também
foi um elemento ativo da formatação da política de Estado que não levava em conta a possibilidade da existência e da criação de fontes e redes não formais, que poderiam solapar a estratégia. Do ponto de vista histórico, seus formuladores e aplicadores aprenderam com Adam
Smith, em obra de 1776, que ao classificar os produtos naturais em difíceis de multiplicar, em
aqueles que podem ser multiplicados de acordo com a demanda e em aqueles em que a eficácia da multiplicação é incerta ou limitada, inclui o pescado, no último dado a manutenção de
limitações naturais, como a fertilidade natural, a distância e a perecibilidade. Porém, ignoraram o capítulo sobre os subsídios para a pesca: “[...] o efeito habitual de tais subsídios é
estimular empresários precipitados a aventurar-se em um negócio que não entendem, e o que
perdem pela própria negligência e ignorância compensa demasiadamente tudo o que podem
ganhar pela extrema liberalidade do Governo” (Smith, 1996, p. 26-27).
Na pesquisa foram coletados depoimentos que demonstravam indignação com as facilidades para a aprovação e a liberação dos recursos para determinados projetos pela SUDEPE
no começo da década de 1970. Apresentamos a seguir relatos registrados em publicações do
período que mais uma vez traziam discursos sobre as possibilidades de acertos das políticas
estatais desde o final dos anos de 1960 e especialmente com o FISET/Pesca8 .
O primeiro é o relato de Emílio Varoli, médico veterinário, dirigente da SUDEPE entre
1964 e 1967:
[...] poucos empresários não tiveram o bom senso de projetar as suas novas instalações
de acordo com a quantidade de matéria-prima disponível e assim surgiram verdadeiros
monstros que nunca atingiram cerca de 50 % de utilização do equipamento instalado e,
em conseqüência estão fadados a déficit eterno [...] as novas empresas poderiam ser
salvas em parte mediante fusões, ou quando não, ao menos teriam suas atividades encerradas, deixando de concorrer com as sobreviventes na caçada aos incentivos fiscais
(ANUÁRIO DA PESCA, 1974, p. 21, grifos no original).
O ano de 1973 “[...] serviu para selecionar o gado do lobo [...] todas as expectativas
[para 1974] estarão na dependência quase exclusiva do apoio governamental à pesca”, afirmou o Paulo Jaskow, engenheiro militar que, em 1963, fundou a Brasil-Atlantic, com um
projeto para uma frota de 40 barcos, frigorificação, enlatamento de pescado, aqüicultura, rede
de transportes e duas grandes fábricas para conservas de sardinhas no Rio Grande do Sul e
em Santos (Anuário da Pesca, 1974, p. 22).
O depoimento mais contundente é de Rubens Oliveira Gasparian, então diretor da
empresa CONFRIO e vice-presidente da Associação Nacional das Empresas de Pesca (ANEPE):
O decreto 221 criou favores para a implantação de complexos pesqueiros, mas não cogitou de condições preferenciais para a sua operação. Ora, de nada adianta implantaremse complexos magníficos se eles vão trabalhar no vermelho. Impõem-se, pois, que se
7
Depoimento em outubro de 2003, na cidade de Florianópolis/SC.
8
O começo do período de implantação do FISET/Pesca coincidia com o começo do esgotamento do modelo político dos
golpistas de 1964 e que tomaria sobre vida, com o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) e com as artimanhas para
dar sustentação ao bloco de poder hegemônico ainda no governo de Ernesto Geisel (1974-1979), em função especialmente
dos resultados das eleições de 1974, que deram ampla vitória ao campo de oposição estabelecido no então MDB (Partido do
Movimento Democrático Brasileiro). Em 1974, o governo federal, ao detectar um conjunto de denúncias e irregularidades
na sistemática da concessão e aplicação dos incentivos fiscais, pelo decreto-lei nº 1376, criou cinco fundos de investimentos:
(I) o FINOR (Fundo de Investimento do Nordeste; (II) o FINAM (Fundo de Investimento da Amazônia); (III) o Fundo de
Investimento para o setor florestal (FISET/Florestamento-reflorestamento); (IV) o Fundo de investimento para o turismo
(FISET/Turismo); (V) o Fundo de investimento da pesca (FISET/Pesca).
194
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
dêem condições para uma operação rentável. E esta é agora a tônica do governo em nível
inter-ministerial. E estas condições indispensáveis começaram as ser concedidas. (ANUÁRIO DA PESCA, 1975, p. 12.)
Para confirmar os depoimentos orais e a documentação escrita realizamos uma pesquisa nos arquivos da JUCESC (Junta Comercial do Estado de Santa Catarina) em
Florianópolis, consultando os documentos arquivados por um conjunto de firmas que constavam nos cadastros da SUDEPE instaladas naquele estado. Um exemplo emblemático de um
período de fartura de recursos públicos e da montagem de estratégias para sua captação seja
o da empresa SIP - Projeto Industrial Pesqueira de Itajaí. A SIP apresentou um projeto para
a SUDEPE e publicou anúncio de uma página no nº 4 de abril de 1967 da Revista Nacional de
Pesca, conclamando pessoas jurídicas a fazerem investimentos com dedução de 25% do Imposto de Renda. Segundo os dados coletados na JUCESC, depois de instalada formalmente,
em 18 de outubro de 1965, as Assembléias Gerais (AGEs) tratavam de questões burocráticas
e da captação de recursos em órgão públicos. Na AGE de 28 de julho de 1967 o então presidente, Geraldo Resende, demite-se para assumir um cargo do governo federal e está registrado
que a fábrica não estava funcionando. Em 1969, o local da futura fábrica é definida para ser
instalada no Bairro de Machados, em Navegantes e a sede da empresa muda-se da cidade de
São Paulo para a cidade do Rio de Janeiro. Em 29 de dezembro de 1969 os votos dos cotistas
são interditados judicialmente e a falência é decretada em 03 de maio de 1984. Uma parte do
terreno da SIP é ocupada por uma empresa pesqueira de Navegantes/SC e de acordo com o
depoimento de um alto funcionário da mesma com 30 anos de trabalho no setor: “a SIP nunca
produziu nada”9 .
O FISET/Pesca (1974-1986): concentração industrial e ocaso do
financiamento estatal
O começo do período de implantação do FISET/Pesca coincidia com o começo do esgotamento do modelo político dos golpistas de 1964. A Revista Nacional da Pesca publicou uma
carta de um investidor que reclamava de uma empresa e a redação respondeu apontando
para o caminho que o governo estava delineando:
Peço uma orientação de V.Sas. sobre o que devo fazer e a quem recorrer. Apliquei algum
dinheiro em ações dessa empresa de pesca (Pescanova) e agora estou sabendo do pedido
de concordata. J.M.M. Pareta, S.Paulo, Capital.
N.da R. No caso da pesca brasileira tais insucessos têm origem em dois aspectos da
própria estrutura do setor; 1) nem os empresários, nem administração pública dispunham de subsídios seguros que permitisse dimensionar realisticamente os projetos, quando do advento do DL-221, em 1967; 2) ainda é deficiente o controle oficial sobre o setor
econômico, dificultando a eliminação das causas que levam os empreendimentos ao fracasso, isto em conseqüência da própria situação administrativa dos órgãos responsáveis
pela execução da política governamental. No caso citado, acreditamos que a empresa
tem condições de reagir e superar as dificuldades por que passou (RNP, n. 137, agosto/
1974).
No ano seguinte, o editorial da RNP traz um tom crítico, mas apresenta o recém criado
FISET/Pesca como mais uma salvação: “[...] o governo brasileiro procura agora corrigir as
falhas do passado que transformaram a pesca em nosso país num verdadeiro elefante branco,
pesado de carregar e de visão completamente estrábica, incapaz de permitir enxergar o caminho correto a seguir” (RNP, n. 143, fevereiro-março, 1975, p. 15).
As discussões e ações continuavam no país. Em 1975, enquanto a Assembléia Geral
Ordinária da Cooperativa Mista de Pesca Nipo-Brasileira negava a fusão com a Interpesca
utilizando os recursos do FISET/Pesca, em cerimônia no palácio governamental, com a presença do governador de Santa Catarina Antônio Carlos Konder Reis, era assinada a fusão de
três firmas catarinenses: a Consal, de captura, a INFRISA, de beneficiamento, e a Solmar de
enlatamento de sardinha utilizando os recursos do mesmo Fundo. Também no mesmo período, o deputado do MDB paulista e armador de pesca, Del Basco Amaral apresentou a moção n.
204/1975, ao Presidente da República, pedindo intervenção na SUDEPE. O deputado argu9
Depoimento na cidade de Navegantes/SC em 2003.
195
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
mentava que a política do FISET de incentivar fusões, aquisições e a formação de holdings
favorecia algumas grandes firmas em detrimento dos pequenos e médios empresários do setor.
A tabela 4 apresenta a existência em 1976 de um número total de indústrias que se
assemelha aquele identificado no monitoramento realizado entre 2000 e 2003 no cadastro do
SIF (Serviço de Inspeção Federal) que autoriza empresas a comercializar suas mercadorias
em escala nacional. Também apresenta certa ubiqüidade regional e a concentração do
processamento em atividades mais simples e que confirmam a tendência mundial de hegemonia
da difusão de técnicas que preservam o pescado mais próximo da condição de in natura como
o uso do gelo e no máximo o congelamento. Assim, confirmamos os limites em realizar estudos
sobre o conjunto das firmas em função de seu elevado número, diversidade e a localização em
diversos pontos do Brasil.
TABELA 4: Brasil: tipologia das principais atividades nas unidades fabris pesqueiras
(1976).
Unidade Federada
Total de
unidades
fabris
Tipologia da produção em cada unidade fabril
Resfriamento
Congelados
Enlatados
Salga
26
Farinha
Óleo
Gelo
Estocagem de
congelados
9
5
20
30
2
6
Outros
(1)
Santa Catarina
50
34
28
5
São Paulo
50
26
11
11
25
3
1
25
14
Rio de Janeiro
47
24
8
16
16
19
12
20
10
-
Rio Grande do Sul
35
28
24
8
25
10
8
25
27
1
Ceará
26
24
-
-
-
-
-
20
25
-
Bahia
18
8
5
-
-
-
-
10
12
-
Pará
15
7
9
-
-
-
-
13
10
-
Pernambuco
13
11
6
-
-
-
-
9
10
-
Rio G. do Norte
13
7
17
-
-
-
-
8
7
-
Paraíba
11
6
4
-
2
-
2
8
5
-
Amazonas
9
4
3
-
4
-
-
4
3
-
Mato Grosso
8
8
-
-
-
1
-
-
-
-
Espírito Santo
8
7
3
-
-
-
-
6
4
-
Alagoas
7
1
2
-
-
-
-
5
5
-
Sergipe
6
1
-
-
-
-
-
2
5
-
Paraná
5
4
2
-
3
-
-
4
2
-
Maranhão
4
1
1
-
-
-
-
4
1
-
Piauí
1
1
1
-
-
-
-
1
1
-
Totais
326
174
124
40
101
42
28
164
171
9
(1)
Inclui defumação, produção de derivados e algas.
Fonte: Organização de César Martins, com base em: MENCIA-MORALES, F, et al. Avaliação da indústria pesqueira
brasileira: capacidade produção e mercado. Brasília: FAO/SUDEPE/PDP, 1976 (série Documentos Técnicos n. 20).
Um resumo foi apresentado pelo Anuário da Pesca de 1976 com o quadro das empresas
de pesca na política de incentivos fiscais, entre 1967 e 1975. Das empresas cadastradas na
SUDEPE, 137 haviam recebido incentivos, 21 foram consideradas incapazes para recebê-los,
23 tiveram seus recursos cassados e 52 não obtiveram nenhum tipo de liberação.
Um exame dos dados de distribuição regional dos recursos do FISET/Pesca permite
confirmar a tendência para a concentração regional, bem como o início da presença de agentes
do setor instalados no Nordeste (armadores de pesca de atuns em alto mar e posteriormente
piscicultores); do Centro-Oeste (piscicultores) e da região Norte (armadores e industriais exportadores que pescavam camarão na costa amapaense, piramutaba na foz do rio Amazonas
196
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
e atuneiros), bem como o decréscimo do volume de recursos liberados (ver tabela 5).
TABELA 5: Brasil: número de firmas/grupos econômicos com projetos aprovados por
regiões e recursos liberados pelo FISET/Pesca (1975-1986).
Ano
Número de empresas com projetos aprovados por Região
Sudeste
Sul
1975
12
6
1976
8
1977
4
1978
Nordeste
U$ total (em U$/médio por
mil)
projeto (e m
mil)
CentroOeste
Norte
Total
-
-
-
18
18.665
1.036
6
1
-
1
16
11.788
736
3
1
-
-
8
3.673
459
2
1
-
-
1
4
2.250
562
1979
5
1
-
-
-
6
6.532
1.088
1980
1
3
-
-
-
4
1.837
459
1981
3
2
2
-
-
7
2.391
341
1982
1
6
4
-
2
13
4.988
383
1983
4
-
10
2
-
16
4.156
259
1984
-
3
12
3
3
21
2.985
142
1985
1
4
12
1
-
18
2.068
114
1986
1
4
7
1
-
13
1.730
133
Totais
42
39
49
7
7
144
63.063
438
Fonte: Organização e cálculos: César Martins com base no Ofício IBAMA/AUDIT/n.214/05.
A reclamação do Deputado Del Bosco Amaral era procedente, pois os dados sobre a
liberação de recursos do FISET/Pesca confirmavam a tentativa de iniciar o saneamento econômico-financeiro do setor, que teve seu alicerce no financiamento de fusões e aquisições (ver
tabela 6).
197
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
TABELA 6: Brasil: fusões e aquisições financiados pelo FISET/pesca entre 1975 e 1979.
Ano
Firma favorecida
Natureza da operação
Fusão
Firmas adquiridas ou
fusionadas e localização
Aquisição
1975
Brasil Atlantic S/A S.Paulo/SP
X
Pescanova-Bertioga/SP
1975
CONFRIO –
S.Paulo/SP
X
INDUSPESCA e
INAPE- Santos/SP;
Pescanova e Pescatlan
1975
IBRAC S/A- R.
Janeiro/RJ
X
Freezer Alimentos Super
Gelados/ S.Paulo/SP
1975
VIVAMAR S/A – R.
X
Argonauta S/A
Janeiro/RJnº 214/05; Anuário da Pesca, 1974;
Fontes: Organização e cálculos: César Martins, com base em: Ofício IBAMA/AUDIT
MENCIA-MORALES, F. et al. Avaliação da indústria pesqueira
brasileira:
capacidade,
1975
FR Amaral S/A – produção e mercado.
X Brasília:
Apolo S/A- Rio Grande/RS e
Grande/RS
INCOPESCA- Itajaí/SC
FAO/SUDEPE/PDP, 1976 (série Doc. Técnicos nº 20); Ofício IBAMA/AUDIT Rio
nº 214/05;
Juntas Comerciais do Rio Grande
do Sul, de Santa Catarina e de São Paulo.
1975
Babitonga S/A –
X
X
Fusão com a Meg S/A
S.Francisco do
Sul/SC
S.Francisco do Sul e controle
acionário da INFRISA S/A
de Florianópolis/SC
Diegues (1983), utilizando jornais do período, revela que, dada as facilidades para
1976
PINA S/A –
X
Cia. Krause- Itajaí/SC
obtenção de recursos junto à SUDEPE, alguns industriais da pesca pediram dinheiro para
1976
Brasil Atlantic S/AX
Segunda fase da
evitar que “aventureiros o tomassem para outras finalidades”
(p. 139). O mesmo autor, baseSão Paulo/SP
incorporação da Pescanova
ado em documentos oficiais, apresenta a seguinte1976
síntese para
os resultados da política
estaCoop. NipoX
Compesca- S.Paulo/SP
Brasileira de Pescatal pesqueira, entre 1967 e 1977: 40% das empresas incentivadas
faliram, os erros de planejamento levaram a aplicação de 74% dos investimentos
entre
industrialização
e administra1976
Mallmann
S/AX
Pesqueiros do Sul
Portoonde
Alegre/RS
ção, 29% na captura e “somente 7% para a comercialização,
se situa um dos pontos de
Leal SantosX
WIGG S/A e ISAPEIXE de
estrangulamento do setor pesqueiro” (p. 140). Um1976
outro aspecto
foiRio
concernente à seletividade
Grande/RS
Rio Grande/RS
das espécies que aumentou os custos operacionais das viagens (lembramos a crise do petróleo
do início dos anos setenta, pois os gastos com combustíveis
representam entre 30 eX 50% dosFirma não informada
1976
CODIPESCAS.Paulo
custos de uma pescaria em alto mar) e que atualmente compromete
alguns estoques tradicionais como a piramutuba, a lagosta-vermelha, o pargo, os camarões, a sardinha-verdadeira, a
198
1977
Pesca Alto Mar-
X
SUAPE
1977
Andréa S/A-
X
Super Peixe
1978
CIAPESC-
X
Pescomar
1979
CONFRIO – São
X
Gelo Pesca
1979
Conservas Rubi-
X
Jangada- São Gonçalo/RJ
Terra Livre - n. 31 (2): 181-201, 2008
corvina, a castanha, a pescadinha-real e os peixes de linha de Abrolhos e do Sudeste como a
garoupa, o badejo, o namorado e o cherne.
Os problemas na SUDEPE tornaram-se públicos com uma sucessão de matérias do
jornalista Edison Brenner, publicadas entre os dias 01 e 08 de maio de 1977, no Jornal do
Brasil do Rio de Janeiro, com o criativo título de “O conto de fadas da pesca no Brasil” e que
contribuíram para a exoneração do superintendente daquele órgão estatal, em maio de 1978.
Em 1985, foi criada a Comissão de Avaliação de Incentivos Fiscais (COMIF) para realizar um levantamento da aplicação dos recursos regidos pelo Decreto-lei 1.376 de 1974. Sumariamente a COMIF avaliou as condições precárias da maior parte das empresas favorecidas.
Houve desde simples desvio de recursos até a aplicação incorreta dos mesmos e também a
SUDEPE colocou-se mais como transmissora do que acompanhadora e fiscalizadora da utilização desses recursos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E UMA PAUT
A PARA A PESQUISA
AUTA
O Estado brasileiro, em sua política setorial, materializou uma das premissas do capitalismo, sobretudo em regimes de exceção: ao tomar para si a exclusividade da regulação e ao
realizar investimentos, privilegiou alguns agentes, excluiu os agentes já subalternos, como os
pescadores artesanais e transferiu para o conjunto da população os custos dos imbróglios
financeiros e jurídicos que se seguem nas possíveis cobranças dos recursos utilizados
indevidamente ou incorretamente.
No período anterior a criação da SUDEPE e do decreto 221/67, já havia uma estrutura
industrial pesqueira com uma diversificação e relativamente concentrada no litoral do Sudeste-Sul do país. Reafirmamos que nesta área estavam as espécies que se tornariam matériaprima industrial, e que o Estado brasileiro passou a, efetivamente, ser o indutor do crescimento do setor. Algumas dessas espécies foram capturadas em ritmos descompassados de
suas capacidades naturais de reprodução que chegaram ao ponto de colapso, obrigando ao
Estado aumentar períodos de defeso ou mesmo proibir a captura e intensificando conflitos
sociais.
A extinção da SUDEPE em 1989 e a criação do IBAMA no mesmo ano é um dos marcos
para atividade pesqueira nacional. Houve um consenso de que a SUDEPE já havia cumprido
o seu papel e, a seqüência de problemas administrativos, tornou o órgão mais um palco privilegiado para os ataques que se faziam ao Estado por parte do bloco de poder que dava sustentação ao presidente Fernando Collor (1990-1992). Porém, com as políticas de desmonte do
Estado e a fase de transição que se seguiu à deposição de Collor, os diferentes agentes do setor
perceberam que é indispensável um órgão de coordenação e gestão do setor.
A situação tornou-se crítica ao ponto de, no começo do ano de 2000, ainda haviam
falhas e dúvidas referentes a dados simples como os de capturas por espécie, arte de pesca e
local de desembarque, desde o ano de 1989, pois o IBGE não tinha mais estrutura para publicar as suas “Estatísticas de Pesca” e como a SUDEPE foi extinta, parte de seus quadros de
trabalhadores técnicos foi deslocado para outros setores ou foram pressionados pelas ameaças a sua condição de trabalhadores do serviço público e pediram aposentadorias. Para os
grandes agentes privados já havia o deslocamento do financiamento para o BNDES (Martins,
2003) e sinais de que no IBAMA estava estabelecido o conflito entre uma postura mais
conservacionista do novo órgão, com aquela racionalidade da SUDEPE. Esta, baseada no
aumento da produção que entre outras conseqüências elevou as capturas de muitas espécies
para limites próximos do máximo que perdurou desde a criação da SUDEPE em 1962.
Com a superação de alguns gargalos da crise dos anos 80 e das reestruturações dos
anos 90 e começo do século XX, como e quais os agentes do setor pesqueiro nacionais garantem sua capacidade a sua reprodução? Na Geografia, houve a hegemonia dos estudos da chamada pesca artesanal com enfoques que aproximam daqueles realizados sobre o campo, especialmente quando pensados pelos caminhos da reprodução do campesinato ou da pequena
produção mercantil. No entanto, estudos dos significados dos diferentes agentes do setor como
os pescadores artesanais, armadores, trabalhadores assalariados (embarcados ou e das fábricas) e comerciantes dos diferentes circuitos da economia, deve considerar a existência de um
ideário e de políticas estatais de regulação, especialmente de financiamento durante cerca de
duas décadas. Neste sentido, tripartição da ação estatal, entre o IBAMA (conservação de re-
199
MARTINS, C. A. A.
TERRITÓRIO E POLÍTICA ESTATAL...
cursos), SEAP-PR (montagem de políticas e divulgação de resultados) e BNDES (financiamento do complexo pesca), pode ser pautada como objeto de investigação quando articulada
as relações desiguais e combinadas entre os diversos agentes do setor em função do papel
ativo do território e de seus múltiplos usos.
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Recebido para publicação dia 03 de março de 2009
201
202
PESCA ARTESANAL,
TURA E
CARCINICUL
CARCINICULTURA
GERAÇÃO DE
ENERGIA EÓLICA NA
ZONA COSTEIRA DO
CEARÁ *
Y,
FISHERY
ARTISANAL FISHER
“CARCINICUL
CARCINICULTURA
TURA”
AND THE GENERA
TION
GENERATION
OF AEOLIAN ENERGY IN
COASTAL
THE COAST
AL ZONE IN
CEARÁ.
MARIA DO CÉU DE
LIMA
UNIVERSIDADE
FEDRAL DO CEARÁ UFC
[email protected]
* Discussão apresentada no
Espaço de Diálogos e Práticas
ocorrido no XV Encontro
Nacional de Geógrafos (São
Paulo, 20 a 26 de julho de
2008).
Terra Livre
Resumo: A reflexão sobre a história das comunidades pesqueiras
marítimas do Ceará enraizadas em territórios à beira-mar, mediante
determinadas condições de produção da vida, de reprodução das
relações sociais e de sociabilidades na zona costeira, balizou a pesquisa
que fundamentou a elaboração da tese de doutorado intitulada
COMUNIDADES PESQUEIRAS MARÍTIMAS NO CEARÁ: território,
costumes e conflitos apresentada em 2002 na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, de
nossa autoria. Além de dimensionar a dinâmica das atividades
produtivas, a referida tese aborda e discute o significado das
estratégias e articulações, construídas em diferentes escalas, no curso
das lutas empreendidas pelos pescadores e pescadoras artesanais por:
a) melhores condições de vida; b) permanência da pesca artesanal e
outras atividades tradicionais; c) o direito à terra e ao território; e, d)
a construção de projeto social valorizador da diversidade social e
cultural dos povos do mar. O presente artigo busca dar continuidade
à abordagem do mesmo tema e discute, em particular, os novos desafios
enfrentados pelas comunidades pesqueiras com a chegada da
carcinicultura e dos empreendimentos para a geração de energia eólica
na zona costeira do Ceará. A continuidade da referida pesquisa tem
contribuído para fundamentar melhor nossa compreensão e
intervenção junto a tais comunidades. A atual conjuntura nos impõe
a necessidade de avançarmos na compreensão do universo das
populações tradicionais que moram na zona costeira do Ceará,
especificamente das comunidades costeiras, que sempre nos inspiram
outros olhares e percursos na busca de apreensão do real.
Palavras-chave: Modo de vida; Território; Comunidades pesqueiras
marítimas, Zona Costeira; Ceará.
Abstract: The reflection on the history of the maritime fishing
communities who live in the sea-side territories in Ceará (a northeast
state in Brazil), by means of determined conditions of production of
life, reproduction of the social relations and sociabilities in the coastal
zone, were the issues of a research which based the elaboration of the
doctorate thesis intitled MARITIME FISHING COMMUNITIES IN
CEARÁ: territory, customs and conflicts presented at Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
– USP in 2002, our authorship. Beyond the discussion of the productive
activities, this thesis also argues the meaning of the strategies and
articulation, constructed in different scales, in the course of the fights
undertaken by the artisan fishing for: a) better conditions of life; b)
permanence of artisan fishing and other traditional activities; c) the
right to the land and the territory; e, d) the construction of a social
project which appreciates the social and cultural diversity of the people
of the sea. The present article aims to continue the focus of the theme
and also discuss, in particular, the new challenges faced by the fishing
communities with the arrival of the “carcinicultura” and the
enterprises for the generation of aeolian energy in the coastal zone in
Ceará. The continuity this research has contributed to better base
our understanding and intervention in such communities. The current
conjuncture imposes the necessity to advance in the understanding
of the universe of the traditional population living in the coastal zone
in Ceará which always inspire other looks and passages in search of
doubts of the real.
Key-words
Key-words:: Maritime fishing communities in Ceará; Way of life;
Territories; Coastal zone;
Dourados/MS
Ano 24, v. 2, n. 31
p. 203-213
Jul-Dez/2008
203
LIMA, M. C
PESCA ARTESANAL, CARCINICULTURA E...
INTRODUÇÃO
As referências aos povos do mar evocam sempre imagens que se associam às pescarias,
jangadas, botes, paquetes, coqueiros, redes, peixes, mariscos, praias, dunas, falésias, pescadores e suas famílias. A beleza das imagens das embarcações, ancoradas ou sobre as ondas do
mar alto, inscritas em paisagens, em textos literários, músicas, registros fotográficos, reportagens de jornais e pinturas, oculta o desafio que é para os pescadores e pescadoras mariscar
no manguezal ou sobre as águas do Atlântico, em precárias e frágeis embarcações, navegar
sob o sol ou chuva. Resta esperança: nas brincadeiras de criança, a alegria de meninos, principalmente, brincando em terra, com pequenas miniaturas de botes e jangadas, e, na beiramar, tentando aprender a manejar pequenas embarcações e acompanhar a saída dos seus
parentes para as pescarias. Tais práticas cotidianas, por certo anunciam que o desejo de pais
e avôs no sentido de que seus filhos e netos não se envolvam com a vida dura do mar e dos
mangues (informação verbal)2 talvez não seja uma referência, principalmente para aqueles
que já reconhecem as possibilidades dos saberes e afazeres da atividade pesqueira artesanal.
Porém, algumas perguntas se impõem: como reconhecer, na atualidade, as comunidades pesqueiras? Como será o futuro das pescarias artesanais no mar e manguezais do Ceará? O
Catamarã3 forja-se como alternativa de embarcação no mundo das pescarias artesanais? Os
pescadores do Ceará poderão, um dia, incorporá-lo aos seus meios de trabalho? Os mariscos e
peixes continuarão a povoar os manguezais e mar, que alimentam tantas famílias?
OS MEANDROS DA VIDA E
CEARÁ
DO TRABALHO NAS COMUNIDADES PESQUEIRAS DO
Entendemos que as comunidades pesqueiras do Ceará têm seu modo de vida marcado
pelas características das populações e comunidades tradicionais, conforme identificado por
Diegues:
(...) pela vinculação com a natureza, inclusive através de vasto conhecimento e técnicas
de manejo, pouca ou nenhuma acumulação de capital, importância de atividades de
subsistência ainda que mantendo relações com o mercado, importância dos mitos, símbolos e rituais associados à caça, pesca, coleta, utilização de tecnologia compatíveis e de
impacto limitado sobre os ecossistemas naturais, reduzida divisão técnica e social do
trabalho, importância dada a unidade familiar na construção de seu modo de vida, autoidentificação ou identificação pelos outros de se pertencer a uma cultura distinta, noção
de território onde o grupo social se reproduz social e economicamente. (DIEGUES, 1994).
A pesca, o extrativismo vegetal, o artesanato, os pequenos plantios e as trocas de produtos locais entre familiares (por exemplo, a entrega de produtos colhidos e o recebimento de
peixe) e os pequenos comércios fazem parte da conformação do modo de vida das comunidades
pesqueiras no Ceará. Dentre o conjunto de atividades complementares desenvolvidas, algumas se vinculam mais à realização direta da subsistência do que outras, mas o que está posto
é que múltiplas são as formas produtivas. Na atualidade, a diversidade produtiva amplia-se
(juntamente com a inclusão de atividades vinculadas ao turismo) no sentido de induzir os
moradores dessas comunidades a buscarem garantir as condições de reprodução da vida, procurando criar alternativas para satisfazer as necessidades básicas e, se possível, alguns desejos de consumo. No seio de cada comunidade pesqueira da zona costeira, as atividades vinculadas à captura de peixes e mariscos podem ter maior ou menor importância; as suas formas
de efetivação podem estar em processo de transformação ou tendendo à extinção. Entretanto,
é inquestionável que tais práticas compõem a cultura e as temporalidades constituídas por e
a partir do universo das pescarias, no manguezal ou no mar.
Sob a aparência do tempo que não passa e a da vida sempre tranqüila, homens, mulhe2
Nas conversas com os pescadores e pescadoras nas comunidades é muito comum ouvir este tipo de avaliação.
3
Este tipo de embarcação é maior que a jangada e aumenta a produtividade, com a vantagem de não usar motor, que
gasta combustível.
204
Terra Livre - n. 31 (2): 203-213, 2008
res e crianças labutam, enraizados em territórios que constituem lugares à beira-mar, envolvem-se no processo de trabalho artesanal que acontece no mar do Ceará (a exemplo da pesca
de peixe, de arraia e lagosta), marcado pela hierarquia baseada no segredo4 ; e em terra, com
a realização de trabalhos artesanais (bordados, labirintos, rendas, fabricação e reparos dos
artefatos de pesca), manuais (pequenos plantios de subsistência e o extrativismo vegetal) e da
comercialização em pequena escala. Em terra e no mar registram-se relações fundamentadas
por visões referenciadas nas experiências vividas e em sonhos, em laços de afetividade, de
parentesco e apadrinhamento, na religiosidade e na experiência lúdica. Em essência, há vínculos e referenciais construídos a partir da relação sociedade-natureza, da produção de meios
de vida, de diferentes tipos de intercâmbios de produtos (do escambo ao comércio internacional, via empresas de pesca) e do uso social do espaço e de recursos naturais. No processo de
realização das atividades, fundam-se e reproduzem-se relações e sociabilidades essenciais à
constituição e preservação das comunidades tradicionais que vivem nas cercanias de gamboas,
lagoas, manguezais e mar do Ceará. Ao constatarmos a riqueza desse universo, novamente
nos perguntamos: o que prenuncia o futuro que se torna a cada momento presente mais incerto para essas comunidades?
Desde a década de 80 do século XX, o modelo de desenvolvimento socioeconômico nordestino e cearense –, que passou a pressupor a valorização e a ressignificação da zona costeira
e seus atrativos para o turismo –, tem motivado grandes perdas e confrontos. Na referida
década, o litoral passou a ser marcado, também, pelo resultado de práticas socioespaciais
fundadas no movimento conflituoso entre a propriedade e a apropriação5 , forjando as condições para a emergência de conflitos entre comunidades e empreendedores imobiliários (uma
das categorias de um dos grupos de atores sociais que se fizeram presentes) e seus associados.
No roteiro espetacular: enquanto os acordos tácitos entre homens de poder e no exercício do poder viabilizam a estratégica incorporação dos espaços litorâneos à dinâmica econômica, as comunidades pesqueiras e indígenas da zona costeira do Ceará vêem ameaçada a sua
condição de posseiras de boa-fé das terras em que vivem.
Sob a intervenção do Estado e de empresários, os espaços de vida e de trabalho de
muitas comunidades tornaram-se objeto de acirradas disputas. Apesar da determinação na
legislação brasileira sobre o gerenciamento costeiro, não existe a demarcação dos terrenos da
marinha e nem ordenamento territorial que assegure aos moradores a permanência em seus
territórios e a proteção dos patrimônios locais. A situação de insegurança em relação à
inexistência da titularidade da terra pelas comunidades que não se diferencia, da realidade
brasileira, agrava-se diante do poder dos grileiros, dos especuladores e empreendedores turísticos (interessados em enseadas, falésias, campos de dunas e praias para abrigar e laurear
resorts e hotéis) que agem para garantir a posse de terras, mediante o registro de falsas
escrituras, de indevida cessão de usucapião, de avanços de marcos e cercamentos de áreas de
uso em comum e de compra de posses por valores irrisórios.
A gestão pública tem subordinado a sua lógica de atuação aos interesses do grande
capital e provocado conseqüências graves para as comunidades pesqueiras. Na década de 90
do século XX, as políticas públicas de ordenamento territorial, de urbanização turística e de
incentivo à industrialização no Ceará, foram consolidando vetores de desenvolvimento que
desterritorializam e/ou segregam tais comunidades. Um exemplo emblemático desta lógica
foi a que resultou na publicação de um decreto estadual que declarou de utilidade pública,
para fins de desapropriação pelo Estado do Ceará de uma grande área de terra, historicamente ocupada por diversas comunidades de agricultores e pescadores, para construção do Complexo Industrial-Portuário do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, município litorâneo da
região metropolitana de Fortaleza.
Desde meados dos anos 90 do século XX que situações graves compõem o dramático
universo de ameaças à permanência do modo de vida das comunidades pesqueiras do Ceará.
Pela atualidade particularizaremos as características de três situações a seguir:
4
A atitude do segredo é recorrente sempre que se convive com pescadores, tanto no âmbito do tradicional como no industrial
como um elemento ético inalienável à atividade pesqueira. (MALDONADO, 1993).
5
Sobre este debate ver SEABRA (1996) e LIMA (2002).
205
LIMA, M. C
PESCA ARTESANAL, CARCINICULTURA E...
a) Pesca predatória da lagosta acirra crise da pesca artesanal
Os pescadores do litoral cearense e suas famílias sobrevivem realizando, principalmente, a pesca artesanal. Segundo recadastramento da frota pesqueira, realizado a partir do
Convênio SEAP/IBAMA/PROZEE Nº 111/2004, das 7.122 embarcações existentes em 2005 no
Ceará, 6.040 são movidas a vela ou a remo, ou seja, 84,8% da frota e 1.082 motorizadas, o
equivalente a apenas 15,2% do total das embarcações. Essas informações confirmar que a
frota pesqueira marinha cearense é artesanal.
Mesmo com essa relevância social os danos socioambientais da pesca predatória6 , que
envolve as embarcações motorizadas, são evidentes e vêm provocando guerras no mar7 - crônicas de uma tragédia anunciada pelo descaso do poder público, pela falta de fiscalização e
pela ganância dos empresários do setor pesqueiro. Segundo denuncia feito pelo Fórum em
Defesa da Zona Costeira do Ceará, mais de 20 mil pescadores (e suas famílias) que vivem da
pesca da lagosta no Ceara são prejudicados com a pesca predatória (DOSSIÊ 2008, p.41).
A pesca com compressor, especificamente a captura da lagosta miúda que impede o
ciclo reprodutivo, tem importante papel na degradação dos estoques pesqueiros e na diminuição da rentabilidade da atividade pesqueira para os pescadores artesanais, mas isso não
ocorre por causa da técnica em si e sim pela lógica da captura indiscriminada. Numa outra
perspectiva, a seleção seria processada no momento da coleta, pois esta poderia se dar in loco,
inclusive sem retirar o crustáceo do seu nicho. O fato é que há uma maior otimização do tempo
de trabalho na pesca com compressor do que na pesca artesanal. Essa maior produtividade
não resulta na diminuição do preço da lagosta, contrariando uma das leis do mercado, a da
oferta e da procura. O aumento na produção somente maximiza os lucros dos envolvidos nesse
processo, quais sejam: do proprietário do barco de apoio/compressor e do atravessador no
processo de revenda. Os “cafanguistas”8 ganham pouco, considerando que convivem no mar,
permanentemente, com a insegurança, visto a inadequação do equipamento de mergulho e o
grande risco de confronto com pescadores contrários à prática da pesca predatória.
Além dos impactos ambientais e econômicos da pesca com compressor sobre as comunidades pesqueiras marítimas, os problemas sociais são notórios. Relatos, a partir das entrevistas realizadas sobre a situação dos pescadores de Redonda Icapuí (LIMA, 2002) e de pescadores do Rio Grande do Norte (FERREIRA, DONATELLI, REIS JUNIOR, 2002) indicam que
esta prática pesqueira é extremamente danosa à saúde dos pescadores e os riscos são constantes. O uso de equipamentos em precário estado de conservação e o desconhecimento das
regras básicas para o mergulho, tais como a compensação de pressão, o tempo máximo de
permanência em submersão e procedimentos de primeiros socorros em caso de acidentes, que
não são raros, têm provocado graves problemas de saúde nos mergulhadores. Em alguns
casos, inclusive, o óleo lubrificante do aparelho de ar comprimido mistura-se ao ar que vai ser
aspirado pelos mergulhadores.
Quando os pescadores envolvidos nesse tipo de pesca, conseguirem perceber esse processo, os riscos e suas implicações, identificando quem são de fato os beneficiários, surge uma
possibilidade de se romper com a pesca com compressor, ou pelo menos de lutar contra o que
a gera: a busca por altos níveis de produtividade que fundamenta a ação das empresas de
pesca e pequenos armadores, proprietários dos barcos e dos equipamentos e a insustentável
avaliação que os estoques pesqueiros renovam mesmo em condições pouco favoráveis.
A realidade vivida pelos pescadores artesanais reflete, também, os entraves burocráticos e o descaso governamental com a permanência da pesca artesanal, essencial para a garantia de condições de sobrevivência para os trabalhadores do mar e suas famílias.
Enquanto a pesca predatória vem sendo exercida largamente no Estado, os pescadores
6
Pesca com apetrechos de pesca proibidos (caçoeira, compressor, marambaias feitas com tambores contaminados por
produtos químicos) por lei por causarem degradação nos estoques das espécies e no ambiente marinho.
7
Conflitos armados no litoral leste do Ceará, envolvendo pescadores de lagosta que utilizam manzuás (apetrecho de pesca
legal) e pescadores que usam compressores (apetrechos da pesca ilegal). Estes conflitos já ocoasionaram, inclusive,
mortes de pescadores em Icapuí-CE e a queima de embarcações em Caponga. (DIARIO DO NORDESTE ONLINE, 2009).
8
Termo utilizado para designar os pescadores que mergulham com compressores adaptados utilizados na pesca predatória
da lagosta.
206
Terra Livre - n. 31 (2): 203-213, 2008
artesanais têm enfrentado inúmeras dificuldades. ‘Durante o licenciamento das embarcações, de 2006 para 2007, milhares deles tiveram suas licenças negadas pela Secretaria
Especial de Aqüicultura e Pesca – SEAP/PR e ainda não obtiveram resposta sobre o
motivo da não aprovação das licenças, ficando impedidos de pescar e sustentar suas
famílias por obedecerem a uma legislação que não alcança os verdadeiros infratores.
Mesmo os pescadores e pescadoras que renovaram a licença ainda não receberam as
novas, ficando impossibilitados/as de exercer legalmente a atividade’. (CONSELHO
PASTORAL DOS PESCADORES DO CEARÁ, 2008).
O enfrentamento desta realidade não tem sido fácil, pois os desafios e dificuldades
crescem9 e, em muitos momentos, parecem desproporcionais à capacidade das comunidades
pesqueiras de resistirem. Mesmo quando, por fruto de reivindicações históricas dos pescadores, há investimentos estatais que poderiam criar uma nova condição para a pesca artesanal,
por exemplo, o que se observa é o agravamento da crise no setor pesqueiro artesanal. Os
dados sobre os recursos utilizados revelam:
Em 2007, o Governo Federal investiu mais de 30 milhões de reais no reordenamento da
pesca da lagosta. Além de gastos de ordenamento, fiscalização, indenização e capacitação
para pescadores desempregados o recurso foi utilizado para indenizar os donos de embarcações que entregaram apetrechos de pesca declarados ilegais, a exemplo das redes
de pesca e dos compressores. No entanto, a partir de outubro de 2007, as fiscalizações
ficaram estacionadas e o resultado foi a retomada do crescimento da pesca predatória
incentivada pelo próprio investimento realizado pelo Governo visto que as indenizações
pagas foram utilizadas - em muitos casos -, para a aquisição de novos compressores e
para a instalação de marambaias. (DOSSIE, 2008).
b) Carcinicultura
O processo de desenvolvimento da carcinicultura no Brasil10 , que consiste na criação
de camarão em cativeiro utilizando espécie exótica — o Litopennaeus vannamei,— e tecnologia
de reprodução e engorda, tem sua história marcada por rastros da insustentabilidade
ambiental11 , a exemplo do que tem ocorrido em outros lugares do mundo. Segundo levantamento realizado por Queiroz, esta atividade chegou ao Ceará, por volta de 1995, e tem provocado danos socioambientais nos domínios territoriais das comunidades pesqueiras.
Os níveis de crescimento bastante elevados constituem o pano de fundo que esconde a
verdadeira face desta atividade. A verdade é que a carcinicultura, por detrás das cifras,
esconde mais uma prática econômica que implica numa enorme quantidade de custos
sociais e ambientais, ocultos, que são externalizados ou transferidos à sociedade — enquanto uma minoria se apropria dos benefícios do crescimento. Como aconteceu nos
países por onde já passou, como Tailândia e Equador (...), a carcinicultura atingiu
altíssimos níveis de crescimento no Brasil, deixando um rastro de insustentabilidade ao
causar graves impactos socioambientais. (QUEIROZ, 2007)
Por pressão do movimento social organizado12 foi realizado, em 2005, pelo Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, o diagnóstico da
atividade de carcinicultura, que atende ao mandado de intimação nº 300/2004, acompanhado
9
Marcando a Semana do Meio Ambiente do Ceará - 2008, diversos movimentos sociais divulgaram, no dia 6/6/08, o
DOSSIÊ 2008: degradações, conflitos e crimes ambientais em Fortaleza e no Estado do Ceará, juntamente com uma
pauta de prioridades a serem discutidas com os Ministérios Públicos Federal e Estadual, o IBAMA, a SEMACE e a
SEMAM.
10
Segundo estatísticas elaboradas pela Federação das Indústrias do Estado Ceará – FIEC os estados brasileiros líderes
em exportação de camarão cultivado, são: Rio Grande do Norte, Ceará, Pará, Pernambuco e Bahia (FIEC, 2006).
11
Comunidades denunciam e combatem a atividade desde o final da década de 90 do séc XX. Após um período de ápice
produtivo, a carcinicultura entrou em declínio e, atualmente, 70% das fazendas de camarão dos Ceará estão abandonadas.
Entre as razões que desencadearam a decadência da atividade está a sua insustentabilidade ambiental, que provocou o
surgimento de doenças virais que dizimaram grande parte da produção de camarões cultivados.
12
Estudo articulado a partir da ação de entidades que compõem o Fórum em Defesa da Zona Costeira Cearense – FDZZC
e comunidades costeiras atingidas pela atividade. Mediante as denúncias recebidas, o Juiz da 5ª Vara Federal determinou
que o IBAMA-CE desenvolvesse estudo sobre os impactos ambientais da carcinicultura no Ceará.
207
LIMA, M. C
PESCA ARTESANAL, CARCINICULTURA E...
da decisão liminar proferida nos autos da Ação Civil Pública - processo no 2003.81.00.00247555, promovida pelo Ministério Público Federal, que trata das atividades de carcinicultura desenvolvidas na Zona Costeira e nos terrenos de marinha no estado do Ceará. No retrato elaborado com as informações cartográficas disponíveis e os dados coletados nas visitas realizadas
em 245 (duzentos e quarenta e cinco) fazendas, com uma área total de 6.069,97 hectares,
ficaram evidentes os impactos ambientais decorrentes da atividade em causa. No referido
diagnóstico, verificou-se que, do total das fazendas licenciadas pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará - SEMACE, apenas 21,6% dispunham de licença correspondente a sua fase de implantação e dentro do prazo de validade. Em 84,1% das fazendas
pesquisadas constatou-se impactos diretamente ao ecossistema manguezal (fauna e flora do
mangue, apicum e salgado); 25,3% promoveram o desmatamento do carnaubal e 13,9% ocuparam áreas antes destinadas a outros cultivos agrícolas de subsistência. (IBAMA, 2005).
Os conflitos envolvendo populações tradicionais e empresas de carcinicultura ocorridos evidenciam a gravidade da situação em vários municípios do Ceará. São eles: Acaraú
(Curral Velho e Aranaú), Itapipoca, Trairi (Mundaú), Aracati (Canavieiras, Cumbe e Porto de
Céu), Praia da Placa (Icapuí), Paraipaba (Capim Açu), Itarema (Passagem Rasa, Comondongo,
Darra da Tijuca, Terra Indígena Tremembé de São José e Butitis e Almofala), Amontada
(Mosquito) e Camocim (Sítio São Mateus). As violações dos direitos dos moradores dessas
áreas exigem a escuta da crítica que vem sendo feita ao processo irresponsável de licenciamento
e à falta de fiscalização das fazendas de criação de camarão. Os conflitos decorrem do desrespeito aos direitos humanos e de degradação do meio ambiente provocados pelos carcinicultores.
As comunidades pesqueiras têm convivido com o desmatamento e degradação de áreas de
mangues para construção de viveiros de camarão; com a presença de cercas que impedem
deslocamentos e acesso aos recursos dos manguezais; com a violência, mortes e ameaças à
vida dos moradores13 . Denunciar os agressores aos agentes públicos estaduais e municipais
tornou-se rotina, necessária, das comunidades que aos poucos foram se organizando e articulando estratégias para resistir aos ataques dos carcinicultores e seus aliados.
Segundo o detalhamento no Relatório do Grupo de Trabalho sobre os Impactos
Ambientais da Carcinicultura, cujo relator foi o ex-deputado Federal João Alfredo, instituído
no âmbito da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos
Deputados14 , a criação de camarão em cativeiro foi identificada como a atividade que mais
tem contribuído para a degradação de manguezais no Ceará e no Nordeste brasileiro. Segundo a equipe do GT foram comprovados danos socioambientais, de elevada magnitude relacionados com impactos associados às fases de instalação e operação das fazendas de criação de
camarão no Ceará, que envolveram:
• desmatamento da vegetação de mangue, de carnaubal e de mata ciliar;
• construção de taludes muito próximos à vegetação de preservação permanente, ou
mesmo sobre o manguezal;
• supressão de extensas áreas de apicuns e de outras áreas típicas do mangue;
• impermeabilização, compactação e transformações estruturais (porosidade e
permeabilidade) e qualitativas do solo (remoção da camada fértil);
• alterações no regime hídrico, fluxo e disponibilidade da água, com a construção de
diques, canais e vias de acesso em área de domínio das marés e exutórios do aqüífero;
• bloqueio da entrada dos fluxos das marés, com a extinção de canais que foram
assoreados ou soterrados com a deposição do rejeito do material de terraplenagem;
• descarte direto de efluentes contaminados em gamboas e braços de rios;
• subordinação de pequenos produtores aos grandes empresários do setor,
• conflitos pela utilização de terrenos de marinha para a construção dos empreendimentos
13
Um conflito em área de maguezal, entre 16 pescadores da Comunidade de Curral Velho e três seguranças da empresa
de carcinicultura Fazenda Joli, em Acaraú, deixou seis feridos em 2004. Os pescadores apresentaram, em Fortaleza,
denuncia da violência sofrida e da conivência da delegacia local.
14
Grupo de Trabalho realizou vistorias técnicas, acompanhados por técnicos do IBAMA e SEMACE, representantes da
sociedade civil/ONG, em empreendimentos de carcinicultura (selecionados) e audiências públicas em comunidades litorãneas
afetadas pela atividade no Ceará, Rio Grande do Norte e Bahia.
208
Terra Livre - n. 31 (2): 203-213, 2008
Os movimentos sociais da zona costeira afirmam que a SEMACE é omissa e conivente
com a degradação ambiental nas áreas de manguezal, em curso no estado, e, a partir desta
constatação, definiu na última assembléia geral que discutiu a crise da pesca artesanal e os
danos ambientais provocados pela pesca predatória e a carcinicultura, ser urgente exigir o
cumprimento das deliberações das últimas Conferências de Pesca e Meio Ambiente no que se
refere ao combate a pesca predatória e à não-implantação de empreendimentos de criação de
camarão em cativeiro em unidades de conservação, em territórios das comunidades indígenas
e dos pescadores.
15
c) Parques de Geração de Energia Eólica
O potencial eólico do Ceará destaca-se no contexto brasileiro e tem atraído olhares e
incentivos estatais, em particular, nos últimos anos. A geração de energia eólica ainda é um
processo mais caro que a produção de energia com as tecnologias convencionais, mas como é
considerada uma abundante fonte de energia, renovável, limpa e disponível em todos os lugares, o Governo Federal estabeleceu como prioridade desenvolvê-la na matriz energética brasileira e, por isso, o Ministério de Minas e Energia - MME vem atuando. Nesse sentido foi
A16 ,
criado o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – PROINF
PROINFA
que é um dos braços do PAC - Programa de Aceleração do Crescimento - PAC17 , e é gerenciado
pela empresa Centrais Elétricas Brasileiras S.A. - ELETROBRAS18 . Segundo contratação
resultante da 2ª Chamada Pública do referido Programa,
a energia produzida pelas usinas do PROINFA, o que corresponde a aproximadamente
12.013,12 GWh/ano, ou seja, 3,6% do consumo total anual do país, será adquirida, por 20
anos, pela Eletrobrás. (....) deverá ter investimentos da ordem de R$ 9 bilhões, com
financiamentos de cerca de R$ 7 bilhões e receita anual em torno de R$ 2 bilhões.
(ELETROBRAS, 2008).
Nesse quadro destaca-se o papel do estado do Ceará, que, segundo a Secretaria da
Infra-Estrutura do Estado do Ceará – SECITEC, já era considerado um importante produtor
de energia eólica na América Latina – com os três parques eólicos instalados nas praias da
Taíba, município de São Gonçalo do Amarante; Prainha, no município de Aquiraz, e Praia
Mansa, no município de Fortaleza, com produção de 17 MW – e ampliará a sua capacidade de
geração de energia. O empresariado e o governo estadual anunciaram, em 2005, a expectativa
de investimentos que possibilitariam o crescimento da produção. Na divulgação dos resultados da Segunda Chamada Pública para contratação de projetos de biomassa do PROINFA2007, conforme figura 1, elaborado pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL consta que os melhores resultados do Ceará foram para os empreendimentos de fonte eólica (264,3
MW). Será comprada a energia gerada por 14 novos projetos, em um total de 500,53 MW,
localizados nos municípios costeiros de Acaraú, Amontada, Aracati, Beberibe, Camocim,
Paracuru e São Gonçalo do Amarante, que produzirão um total de 1.300 GWH/ano. A expectativa da ELETROBRAS é que esses projetos entrem em operação até 2009. Nessa época, a
geração eólica no Ceará deverá representar cerca de 20% da demanda do Estado ou outros
500 megawatts.
15
Denomina-se energia eólica a energia cinética contida nas massas de ar em movimento (vento), gerados pelas diferenças
de temperatura na superfície do planeta. Seu aproveitamento ocorre por meio da conversão da energia cinética de translação
em energia cinética de rotação, com o emprego de aerogeradores ou cataventos (ANEEL, 2008)
16
Instituído pela Lei 10.438, de abril de 2002, e revisado pela Lei 10.762, de novembro de 2003, que é gerenciado pela
ELETROBRAS. As agências e bancos responsáveis pelos financiamentos são: BNDES, BANCO DO BRASIL, BASA,
ADA, FDA, ADENE, FDNE, BNB e CEF.
17 Lançado pelo governo federal em 2007, em Brasília, anunciou ações e metas organizadas em torno de um amplo
conjunto de investimentos em infra-estrutura e um grupo de medidas de incentivo, facilitação do investimento privado,
melhoria na qualidade do gasto público, com contenção do crescimento do gasto corrente e aperfeiçoamento da gestão
pública, tanto no orçamento fiscal quanto no orçamento da previdência e seguridade social.
18
A partir de 2008, o PROINFA começa a complementar o mercado que estaria sendo atendido pelos leilões de energia
nova. Dos 3.299,40 MW contratados pela ELETROBRAS 1.191,24 MW são de 63 PCHs; 1.422,92 MW são de 54 usinas
eólicas; e 685,24 MW são de 27 usinas a base de biomassa (MME, 2008).
209
LIMA, M. C
PESCA ARTESANAL, CARCINICULTURA E...
FIG. 1- PROINFA: Resultados das Chamadas Públicas, por estados – 2007/2008
FONTE: Disponível em: www.aneel.gov.br/aplicacoes/atlas/pdf/06-Energia_Eolica(3).pdf. Acessado: em 27jun. 2008
Os resultados das contratações das chamadas realizadas pelo governo federal, por estados, foram disponibilizados pelo Departamento de Desenvolvimento Energético da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia - MME,
em referência aos dados de 2007 e 2008 liberados pela ELETROBRÁS, confirmam as notícias
que vinham sendo divulgadas no Ceará.
O que precisa ser avaliado é que, apesar da energia eólica ser considerada limpa e
renovável em si, a instalação das usinas pode ser de altíssimo impacto. O uso de áreas para a
construção de empreendimentos de geração de energia eólica, conhecidas como fazendas
eólicas19 ameaça a preservação de campos de dunas móveis e fixadas por vegetação em áreas
de preservação permanente na zona costeira do Ceará. As comunidades se deparam com o
fato que as empresas deixam de apresentar alternativas locacionais e os órgãos ambientais
de exigi-las. A Secretaria de Meio Ambiente do Ceará - SEMACE licenciou um empreendimento a ser instalado no distrito do CUMBE, município de Aracati, estado do Ceará, cujos
levantamentos realizados indicam a possibilidade de agressão ao ambiente (dunas, lagoas
interdunares, aqüíferos subterrâneos), à dinâmica costeira, a um sítio arqueológico (maior
achado do Estado), ao cemitério local e à comunidade.
- A construção de parque eólico destrói sítios arqueológicos em Aracati
O relato de uma moradora da comunidade do Cumbe explicita e detalha como o processo de implantação de empreendimento para a produção de energia eólica em curso desconsidera
a realidade local e impõe-se sobre os interesses de preservação do patrimônio histórico. Assim
19
As obras do PAC têm sido caracterizadas pela urgência do governo federal e rara agilidade nos processos burocráticos,
que na grande maioria das vezes passam por cima da legislação ambiental e da vontade popular.
210
Terra Livre - n. 31 (2): 203-213, 2008
relatou a moradora do Cumbe:
Tenho que expor uma situação que está acontecendo exatamente agora no que tange ao
patrimônio arqueológico do estado. A equipe da arqueóloga Verônica Viana (...) fez algumas etapas da pesquisa arqueológica para a empresa Bons Ventos, que está construindo
dois parques eólicos, um na Taíba, com 8 torres geradoras, e um em Aracati, próximo ao
Cumbe, local já afamado pelos sítios arqueológicos que saltam aos olhos até mesmo de
leigos em Arqueologia. Este terá 67 torres geradoras. Na Taíba a prospecção localizou
quatro sítios arqueológicos e, dando seqüência ao cumprimento da legislação, a equipe
realizou as etapas de salvamento dos sítios e acompanhamento da obra. Em Aracati,
numa área de mais de mil hectares, foram localizadas não menos que 71 ocorrências,
sendo 53 sítios arqueológicos e as demais, áreas vestigiais. Em virtude da grande quantidade de sítios, da profusão de vestígios em cada um deles, o relatório da prospecção
pela 1a vez aqui no Ceará deu como parecer a inviabilidade de construção da obra e
recomendou a criação de um parque, o que tem sido defendido por ambientalistas, mas
não pelo IPHAN. Do ponto de vista arqueológico o IPHAN desconsiderou o relatório e,
em um prazo recorde, deu autorização para um outro arqueólogo realizar o salvamento
que ele diz ser possível ocorrer em um ano. Cabe mencionar que os impactos do empreendimento não são somente graves no patrimônio arqueológico, mas em aspectos
ambientais, sociais. Também é de se destacar que (...) Ceará não tem ainda um museu
especializado em Arqueologia (...). Outro ponto que surpreende é que o primeiro arqueólogo contactado pela Bons Ventos para realizar o salvamento após o parecer da arqueóloga Verônica Viana (hoje engavetado no IPHAN) inviabilizando a obra, foi o Prof. Eduardo
Góes Neves, da USP, que recusou o trabalho argumentando respeitar a seriedade do
trabalho realizado e do parecer. Logicamente, a empresa procurou até encontrar alguém
que se habilitasse a fazer o que ela pretendia, e tudo corre em prazos que não são os
comuns: nem a liberação do IPHAN costuma ser tão rápida, nem mais de 53 sítios podem ser salvos em um ano, por maior que seja a equipe envolvida (não irei entrar em
detalhes, mas há ainda dificuldades metodológicas quando aos sítios sobre dunas). É
importante ‘fazer barulho’ sobre isto que está acontecendo nos gabinetes. Já foi feita
uma denúncia ao Ministério Público federal e o promotor de Aracati está de olho. (DEPOIMENTO ESCRITO DE UMA MORADORA DO CUMBE, 2 abr. 2008)
O relato da moradora do Cumbe mostra a percepção de quem está se deparando com as
conseqüências do modo equivocado como são implementadas as atividades produtivas sob a
égide do chamado desenvolvimento econômico e denuncia a fragilidade da ação dos órgãos
públicos quando se trata de agir para assegurar direitos sociais, a exemplo da preservação de
patrimônios históricos e culturais. Concluiu, com razão, alertando sobre a necessidade da
divulgação dos danos socioambientais decorrentes da forma da implantação da infra-estrutura para a geração da energia eólica na comunidade do Cumbe tem se tornado uma triste
realidade a para comunidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na cena comunitária da zona costeira estão postos os desafios: a cada dia reduzem-se
as condições de se realizarem os pequenos plantios; na pesca, diminuem paulatinamente as
possibilidades de captura da lagosta agravando, ainda mais, as precárias condições econômicas, de habitabilidade e de infra-estrutura em saneamento básico de água e esgoto que materializam a existência de muitas famílias. E, por fim, a perspectiva (risco) dos territórios das
comunidades tornarem-se destinos turísticos consolidados, serem incorporados como áreas
para a realização da carcinicultura e a produção de energia eólica, limitando o acesso e o uso
dos bens locais fundamentais (terra, mar, manguezal, água potável, cultura, campos de dunas) dos moradores das comunidades. Ou seja, na ordem do dia, está a crise da vida comunitária na zona costeira do Ceará, em muito decorrente da pesca predatória, da crise ambiental
e da lógica perversa que baliza a ação dos agentes do capital na zona costeira.
As comunidades pesqueiras do Ceará vivem, atualmente, diante da perspectiva da
desagregação do seu modo de vida e confrontam-se com diferentes atores sociais tais como
especuladores imobiliários, intermediários, atravessadores, veranistas, carcinicultores, empreendedores turísticos e turistas. Sabem que é essencial e difícil romper com os discursos de
211
LIMA, M. C
PESCA ARTESANAL, CARCINICULTURA E...
legitimação e de expectativa em relação à realização da pesca predatória, à atividade turística, à implantação da carcinicultura e à instalação de parques de produção de energia eólica –
atividades econômicas que chegam e se instalam sem regramento – como se fossem adotadas
para a superação da miséria das condições de vida das populações costeiras no Ceará. Há
interesses privatistas e ganhos remuneratórios que a muitos seduzem.
Resguardando as particularidades, e apesar das dificuldades em mobilizar parte de
seus membros, as comunidades litorâneas do Ceará que se organizam afirmam que o objetivo
é colocar em prática a gestão costeira compartilhada, a partir da criação de normas e condutas na realização da atividade pesqueira e da apropriação dos recursos naturais no mar e
manguezais do Ceará.
Exatamente porque acreditam em tais princípios e mesmo diante da inconstância dos
ventos que sopram, elas continuam lançando suas redes, instituídas com base na solidariedade e nos intercâmbios, em busca da garantia do direito ao uso do espaço, à permanência da
pesca artesanal através da gestão participativa e à afirmação da vida.
As lutas em defesa do direito à terra fazem parte da história das comunidades pesqueiras do Ceará desde os últimos anos da década de 1970 do século XX. Na década seguinte,
conquistaram o status de movimento ao reunirem-se, em torno do propósito comum de garantir condições essenciais à manutenção do modo de vida das comunidades pesqueiras marítimas do litoral leste. Constituindo frentes de luta na terra e no mar, em razão dos conflitos
existentes com os diferentes grileiros e/ou especuladores imobiliários e suas ameaças – geralmente relacionados à sobrevivência, à moradia, à conservação ambiental e à permanência da
pesca artesanal, inscrevem-se como sujeitos ativos na história do Ceará. De modo especial, as
lutas pelo direito ao uso da terra, contra o turismo predador, contra a destruição dos estoques
pesqueiros e pela preservação dos ecossistemas costeiros, vitais à reprodução de espécies
marinhas, têm motivado, em muitos momentos e lugares, confrontos históricos, desde então.
As ações empreendidas contribuíram para fortalecer os elos entre aqueles que estão na luta e
a conquistar (e perder) aliados.
As lutas dos povos do mar e manguezais do Ceará afirmam como princípios inalienáveis:
a continuidade da pesca artesanal, a preservação dos ecossistemas costeiros e a cultura popular; a garantia da posse da terra e a preservação dos territórios; a permanência das atividades
comunitárias tradicionais e, se for necessário, a incorporação do turismo a partir de projetos
comunitários20 ; o incentivo do fortalecimento dos modos de vida das comunidades pesqueiras
e indígenas e luta pela essencial gestão comunitária na/da zona costeira.
Destaque-se nesse processo de resistência a importância e o papel do Fórum de Pescadores e Pescadoras do litoral Cearense, do Fórum em Defesa da Zona Costeira Cearense FDZCC, da Rede de Educação Ambiental do Litoral Cearense - REALCE. Não se pode deixar
de registrar, também, a presença dos pesquisadores que têm colaborado com suas pesquisas –
em alguns casos inclusive sendo perseguidos e criminalizados – pelas contribuições no
desvendamento das problemáticas da zona costeira cearense, em particular da crise da pesca,
da degradação ambiental e das condições de trabalho e vida na zona costeira do Ceará.
As ações de valorosos homens e mulheres que, junto com os moradores das comunidades pesqueiras, ousam lutar contra a destruição do modo de vida das comunidades pesqueiras, representam luzes que nos inspiram a continuar buscando uma compreensão desta realidade. A esperança é que o aprendizado daí decorrente sirva à construção de um projeto
societário onde a vida em comum efetivamente esteja no centro das prioridades das políticas
públicas e da ação estatal.
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20
Para fortalecer e dar visibilidade às experiências de turismo comunitário foi criada a Rede Cearense de Turismo
Comunitário – TUCUM , reunindo, inicialmente, as comunidades de Tatajuba, Curral velho, Caetanos de cima, Flecheiras,
Jenipapo-Kanindé, Batoque, Prainha do Canto Verde, Assentamento Coqueirinho, Ponta Grossa, Tremembé e Conjunto
Palmeiras.
212
Terra Livre - n. 31 (2): 203-213, 2008
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Recebido para publicação dia 05 de março de 2009
213
214
RESENHA
215
216
ADAM SMITH EM PEQUIM:
ORIGENS E FUNDAMENTOS DO SÉCULO XXI
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: Origens e fundamentos do século XXI.
São Paulo: Boitempo, 2008, 428p.
Leandro Bruno Santos
Doutorando em Geografia na FCT/UNESP
Este livro, publicado originalmente em inglês em 2007 [Adam Smith in Beijing: Lineages
of the Twenty-first century], foi lançado no Brasil quase que simultaneamente com a edição
estadunidense. Seu autor já é bem conhecido no meio acadêmico brasileiro, por meio das
obras O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo, Unesp, 1996; A ilusão do
desenvolvimento, Vozes, 1997; e Caos e governabilidade no moderno sistema mundial,
Contraponto, 2001.
Giovanni Arrighi, após uma luta interminável contra o câncer, faleceu em junho de
2009 aos 71 anos de idade. Como professor de Sociologia na Universidade de Johns Hopkins,
Estados Unidos, Arrighi dedicou-se à elaboração de uma construção teórica original sobre o
capitalismo histórico e recebeu fortes influências dos pensamentos de Karl Marx, Fernand
Braudel, Joseph Schumpeter, entre outros.
Nos últimos anos, com o rápido crescimento econômico da China e o atoleiro da guerra
no Iraque, sob o comando dos Estados Unidos, inúmeras obras foram lançadas a respeito de
um eventual ressurgimento da Ásia oriental no cenário econômico e político e de uma mudança do poder hegemônico do ocidente. Em Adam Smith em Pequim, Arrighi nos oferece uma
interpretação histórica e teórica original e provocante sobre a emergência da China e suas
repercussões sobre o sistema mundial.
A principal tese defendida no livro é que “o fracasso do Projeto para o Novo Século
Norte-Americano e o sucesso do desenvolvimento econômico chinês, tomados em conjunto,
tornaram mais provável do que nunca [...] a concretização da idéia de Smith de uma sociedade
mundial de mercado baseada em uma maior igualdade entre as civilizações” (p. 24).
Ou
seja, defende que a tentativa frustrada dos Estados Unidos, depois do atentado de 11 de
setembro, de construir um império verdadeiramente global não só criou condições para um
caos mundial, como ainda aumentou a possibilidade da formação de uma sociedade de mercado mundial centrada na China.
Sobre a emergência da China, Arrighi chama a atenção para dois pontos. Primeiro,
apesar do poderio militar menor e da dependência do mercado estadunidense, a China não é
vassala dos Estados Unidos como Japão, Cingapura, Hong Kong, Taiwan, e os Estados Unidos dependem muito mais dos produtos baratos chineses e da compra de seus títulos do tesouro. Segundo, a China vem substituindo os Estados Unidos como motor de expansão econômica
na Ásia e em outras partes do mundo.
O livro contém 12 capítulos e está divido em quatro partes. Em cada um das partes
encontramos três capítulos e, ao final, um epílogo que resume as razões por que o projeto
imperial americano saiu pela culatra e criou as condições para o surgimento de uma comunidade de nações a la Adam Smith.
Na primeira parte, Adam Smith e a nova época asiática
asiática, estabelece um importante
diálogo com Brenner, Frank, Smith, Marx, Schumpeter, entre outros, a fim de construir seu
embasamento teórico. Arrighi mostra-nos que o titulo do livro (Adam Smith em Pequim) é
uma analogia de Marx em Detroit, de Tronti. Para ele, se Tronti descobriu que, em vez da
Europa, os Estados Unidos foram o epicentro da luta de classes e o local apropriado à compreensão dos textos mais avançados de Marx, Wong, Frank e Pomeranz mostraram que a China
do século XVIII - por ter o comércio e o mercado mais desenvolvido que a Europa - foi o local
217
Terra Livre - n. 31 (2): 217-219, 2008
adequado à compreensão da teoria do desenvolvimento econômico com base no mercado de
Adam Smith.
A grande divergência ou inflexão entre Europa e Ásia oriental após o século XVIII
ocorreu com a geração de um caminho desenvolvimentista de uso intensivo em capital e em
energia na Europa – Revolução Industrial - e a geração de um caminho de desenvolvimento
com instituições e tecnologias absorvedoras de grande mão-de-obra – Revolução Industriosa na Ásia oriental. Com a acumulação interminável de capital e de poder e a competição entre
Estados engendrando a sinergia entre capitalismo, industrialismo e militarismo, os Estados
europeus conseguiram subjugar a Ásia oriental aos seus interesses imperiais.
Antes dessa divergência, a diferença fundamental entre os dois caminhos de desenvolvimento com base no mercado não foi a quantidade de capitalistas, mas a “seqüência interminável de capital e poder” (p. 104) na Europa e “a ausência de algo comparável a essa seqüência na Ásia oriental” (p. 104). Na Europa, que seguiu o caminho “antinatural” de Smith, os
capitalistas conseguiram impor seus interesses de classe junto ao Estado às custas do interesse nacional, ao passo que na Ásia oriental os capitalistas não conseguiram subjugar o
Estado aos seus interesses.
Na segunda parte, Rastreamento da turbulência global
global, o autor dialoga criticamente
com Robert Brenner a respeito da turbulência global entre 1973 e 1993. Para Brenner, o fim
do sistema Bretton Woods, a contra-revolução monetarista de Thatcher e Reagan e os acordos
de Plaza (1985 e 1995) resultam da persistência da superprodução nas principais economias
centrais (Estados Unidos, Alemanha e Japão). A tese de Brenner é de que, com o desenvolvimento desigual, Alemanha e Japão atingiram um nível igual ou superior de competitividade
vis-à-vis os Estados Unidos, ocasionando o acirramento da concorrência, a queda da
lucratividade e o aumento da capacidade excedente. As valorizações e desvalorizações das
moedas (dólar, yen e marco) não foram capazes de contornar a persistência da estagnação,
devido à maior entrada e menor saída das empresas e à participação ativa dos governos na
luta competitiva em todo o sistema.
Arrighi propõe um caminho de investigação que não focalize apenas a indústria e os
aspectos econômicos, mas que incorpore também as dimensões social e política. Para ele, as
ações estadunidenses nas últimas décadas do século XX não foram uma reação à queda da
lucratividade, mas à perda de hegemonia no Terceiro Mundo. O projeto hegemônico
estadunidense do pós II Guerra Mundial visou a “contenção do poder soviético”, mediante o
controle da moeda mundial e a escalada militar. Com base num keynesianismo militar (corrida armamentista) e social (pleno emprego, consumo em massa), os Estados Unidos criaram
as condições para o boom econômico do pós-guerra, o qual engendrou, posteriormente, o desenvolvimento desigual, o acirramento da concorrência, o excedente de produção e a queda na
taxa de lucro.
A derrota estadunidense no Vietnã colocou em xeque sua capacidade de conter o avanço do comunismo e do nacionalismo no Terceiro Mundo. Para piorar, a política estadunidense
de repelir as massas de liquidez fortaleceu o mercado de eurodólares e o papel dos agentes
privados na oferta de dólares, enfraquecendo ainda mais sua hegemonia. A contra-revolução
monetária – juros altos, incentivos fiscais e liberdade ao capital – abriu o caminho à
financeirização, que proporcionou uma reação às crises de lucratividade e de hegemonia. Os
Estados Unidos tornaram-se, assim, a nação absorvedora de liquidez no mundo e alcançaram
“pelos meio financeiros o que não conseguiram pelas forças das armas: derrotar a União Soviética e domar o Sul debelado” (p. 155).
desvendada, chama a atenção para o fato de que a
Na terceira parte, A hegemonia desvendada
“crise sinalizadora” da hegemonia estadunidense – decorrente da derrota no Vietnã – não foi
revertida, tampouco a credibilidade militar se recuperou inteiramente. Para agravar, o Projeto imperial de Novo Século Norte-Americano, cujas bases seriam o aniquilamento do Iraque e
em seguida a contenção da China na Ásia oriental, saiu pela culatra. Em suas palavras, “as
dificuldades dos Estados Unidos no Iraque precipitaram sua ‘crise terminal’” (p. 194). A aventura no Iraque “muito provavelmente será o último ato do primeiro e único século norteamericano, o longo ‘século XX’” (p. 199).
Se a Guerra Fria foi resolvida com as finanças a favor, atualmente o poder financeiro
está contra os Estados Unidos, que não conseguem mais cobrar pela senhoriagem do mundo e
pela proteção. Com isso, os Estados Unidos têm que não só depender de dinheiro da Ásia
218
SANTOS, L. B.
RESENHA: ADAM SMITH...
oriental para realizar sua guerra ao terror, como ainda lidar com a China e sua importância
crescente no financiamento dos déficits estadunidenses e no estímulo econômico da Ásia. O
projeto imperial para o Século XXI, com o atoleiro no Iraque, comprometeu sua credibilidade
de poderio militar no mundo, reduziu sua centralidade e de sua moeda, “fortaleceu a tendência à promoção da China como alternativa à liderança norte-americana na Ásia oriental e em
outras regiões” (p. 219), bem como marcou “provavelmente o fim inglório da luta de sessenta
anos dos Estados Unidos para se tornar o centro organizador de um Estado mundial” (p. 270).
Na quarta parte, Linhagens da era asiática
asiática, ele destaca que as alternativas de contenção da China são simplistas e esbarram na batalha travada no Iraque, na indefinição do
interesse nacional e na incompreensão das tendências atuais e futuras da economia política
chinesa – decorrente da pouca leitura sobre a história da economia política chinesa. A Ásia
oriental foi o berço do surgimento dos Estados, do mercado e das relações interestatais. A
prevalência da paz e do mercado interno desse sistema interestatal centrado na China deixou
um vazio do comércio que foi ocupado pelas potências expansionistas européias que, ao aliarem capitalismo, militarismo e imperialismo, converteram a China à condição de periferia do
sistema mundial e adotaram todo tipo de pilhagem.
Em sua opinião, desde finais do século XIX começou a ocorrer uma hibridação de mão
dupla entre os modelos de desenvolvimento oriental e ocidental. Se em finais do século XIX a
Ásia (Japão e China) seguiu as pegadas ocidentais do imperialismo, em finais do século XX o
ocidente (Estados Unidos) voltou-se para o Japão e a China visando conter o avanço do comunismo, acessar as redes de empresas terceirizadas asiáticas e obter os recursos financeiros
dos bancos centrais. Os principais beneficiários desse avanço não foram os capitalistas japoneses, tampouco os estadunidenses, mas os capitais ultramarinos da diáspora chinesa.
Arrighi finaliza com o destaque às reformas smithianas adotadas na China, quais sejam, o gradualismo das reformas econômicas visando expandir e atualizar o divisão social do
trabalho, a expansão maciça da educação, a subordinação dos interesses capitalistas ao interesse nacional, o estímulo à concorrência capitalista, o papel preponderante dado ao mercado
interno e a melhoria nas condições de vida nas áreas rurais. Apesar da menção ao aumento
das desigualdades e dos movimentos sociais, deixa claro que sua preocupação não é com o
destino da tradição socialista da China, mas “com as conseqüências mais amplas da ascensão
chinesa para as relações entre as civilizações do mundo em geral” (p. 382).
No epílogo, explora-se a possibilidade de uma nova Ordem Internacional - centrada no
“Consenso de Pequim” - marcada pelo localismo e pelo multilateralismo político e cultural.
Arrighi destaca as possibilidades criadas pela contra-revolução monetarista de enormes
superávits acumulados pelo Sul, que podem representar um instrumento de emancipação,
desde que, em vez de financiar os déficits estadunidenses, sejam usados na forma de empréstimos menos exigentes, de investimentos diretos e de compra de títulos nos países do Sul. É
necessário, porém, que os grupos dominantes do Sul (Índia e China) abram um caminho “capaz de emancipar não só seus países como o mundo todo da devastação social e ecológica
provocada pelo desenvolvimento capitalista” (p. 389).
Sem dúvida alguma, o livro, pelos destaques históricos e pela proposição teórica original, deve ser leitura obrigatória àqueles que pretendem inquirir sobre geopolítica, imperialismo e hegemonia neste século. No entanto, a obra exige duas considerações importantes. Primeiro, é muito discutível a permanência de uma economia de mercado não-capitalista na
China, à medida que recebe investimentos estrangeiros e aprofunda a acumulação de capital.
Segundo, os investimentos chineses (públicos e privados) que vêm sendo realizados no exterior – à busca de matérias-primas, principalmente – e o aumento das trocas internacionais com
o mundo, mais do que a busca de “segurança nacional” smithiana ou a emancipação do Sul,
sinalizam para novas relações de dependência e para uma nova corrida imperialista que,
mais cedo ou mais tarde, se chocará com os interesses estadunidenses.
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DISCURSO
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DISCURSO DE ABERTURA NA TENDA DE REFORMA URBANA, 29 DE
JANEIRO DE 2009, FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, BELÉM
David Harvey
Para mim, é um imenso prazer estar aqui, mas em primeiro lugar eu gostaria de me
desculpar por falar em inglês, que é a língua do imperialismo internacional. Eu espero que o
que eu vou dizer seja suficientemente antiimperialista para que vocês me perdoem por isso.
(aplausos)
Eu estou muito grato pelo convite que me fizeram, porque eu aprendo muito com os
movimentos sociais. Eu vim aqui para aprender e para ouvir, e, portanto, eu já considero esta
uma grande experiência educacional, pois, como disse Karl Marx certa vez, sempre há uma
grande questão acerca de quem vai educar os educadores.
Eu tenho trabalhado já há algum tempo com a idéia de um direito à cidade. Eu entendo
que o direito à cidade significa o direito de todos nós a criarmos cidades que satisfaçam as
necessidades humanas, as nossas necessidades. O direito à cidade não é o direito de ter – e eu
vou usar uma expressão do inglês – as migalhas que caem da mesa dos ricos. Todos devem ter
os mesmos direitos de construir os diferentes tipos de cidades que nós queremos que existam.
O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito
de transformar a cidade em algo radicalmente diferente. Quando eu olho para a história, vejo
que as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas. Assim, nessa luta pelo
direito à cidade haverá também uma luta contra o capital.
Eu quero agora falar um pouco sobre a história da relação entre o capital e a construção de cidades, fazendo uma pergunta: Por que o capital consegue exercer tantos direitos
sobre a cidade? E por que as forças populares são relativamente fracas contra aquele poder?
Eu também gostaria de falar sobre como, na verdade, a forma com que o capital opera nas
cidades é uma de suas fraquezas. Assim, eu acredito que, dessa vez, a luta pelo direito à
cidade está no centro da luta contra o capital. Nós estamos vivendo agora, como todos sabem,
uma crise financeira do capitalismo. Se nós olharmos para a história recente, nós descobriremos que ao longo dos últimos 30 anos houve muitas crises financeiras. Alguém fez os cálculos
e disse que desde 1970 houve 378 crises financeiras no mundo. Entre 1945 e 1970 houve
apenas 56 crises financeiras. Portanto, o capital tem produzido muitas crises financeiras nos
últimos 30 ou 40 anos. E o que é interessante é que muitas dessas crises financeiras têm
origem na urbanização. No fim da década de 1980, a economia japonesa quebrou, e quebrou
por conta da especulação da propriedade e da terra. Em 1987, nos Estados Unidos, houve uma
enorme crise, na qual centenas de bancos foram à falência, e tudo se deveu à especulação
sobre a habitação e o desenvolvimento de propriedade imobiliária. Nos anos de 1970 houve
uma grande crise mundial nos mercados imobiliários. E eu poderia continuar indefinidamente, dando-lhes exemplos de crises financeiras com origens urbanas. Meu cálculo é que metade
das crises financeiras dos últimos 30 anos teve origem na propriedade urbana. As origens
dessa crise nos Estados Unidos estão em algo chamado crise das hipotecas sub prime. Mas eu
chamo esta crise não de crise das hipotecas sub prime, e sim de crise urbana.
O que aconteceu foi que nos anos de 1990 surgiu o problema de um excedente de dinheiro sem destinação – o capitalismo é um sistema que sempre produz excedentes. Nós
podemos pensar a coisa da seguinte forma: o capitalismo acorda certa manhã e vai ao mercado com certa quantidade de dinheiro e compra trabalho e meios de produção. Ele põe estes
elementos para trabalhar e produz certo bem, para vendê-lo por mais dinheiro do que ele
tinha no começo. Assim, no fim do dia o capitalista tem mais dinheiro do que ele tinha no
começo do dia. E a grande pergunta é: o que é que ele faz com aquele extra que conseguiu?
Bem, se ele fosse como você e eu, ele provavelmente sairia e se divertiria gastando o dinheiro.
Mas o capitalismo não é assim. Há forças competitivas que o impelem a reinvestir parte de
seu capital em novos desenvolvimentos. Na história do capitalismo, existiu uma taxa de crescimento de 3% desde 1750. Uma taxa de crescimento de 3% significa que é preciso encontrar
saídas para o capital. Desse modo, o capitalismo sempre se confronta com aquilo que eu chamo de problema da absorção do excedente do capital: onde eu posso encontrar uma saída
lucrativa para aplicar o meu capital? Em 1750, o mundo inteiro estava aberto para essa
223
DAVID HARVEY
DISCURSO FORUM SOCIAL...
questão. E, àquela época, o valor total da economia global era de 135 bilhões de dólares em
bens e serviços. Quando se chega a 1950, há 4 trilhões de dólares em circulação, e você tem
que encontrar saídas para 3% de 4 trilhões. E quando se chega ao ano 2000, tem-se 42 trilhões
de dólares em circulação. Hoje, provavelmente, este valor chega a cerca de 50 trilhões. Em 25
anos, a uma taxa de crescimento de 3%, ele será de 100 trilhões. Isso significa que há uma
crescente dificuldade em encontrar saídas rentáveis para o excedente de capital.
Essa situação pode ser apresentada de outra forma. Quando o capitalismo era essencialmente o que acontecia em Manchester e em outros poucos lugares do mundo, uma taxa de
crescimento de 3% não representava um problema. Agora nos temos que colocar uma taxa de
3% em tudo que acontece na China, no Leste e no Sudeste asiáticos, na Europa, em grande
parte da América Latina e na América do Norte, e aí nós temos um imenso, gigantesco problema. Os capitalistas, quando têm dinheiro, têm também a escolha de como reinvesti-lo. Você
pode investir em nova produção. Um dos argumentos para tornar os ricos ainda mais ricos é
que eles reinvestirão na produção, e que isso gerará mais emprego e melhores padrões de vida
para o povo. Mas desde 1970 eles têm investido cada vez menos em novas produções. Eles têm
investido na compra de ativos, ações, direitos de propriedade, inclusive intelectual, e, é claro,
em propriedade imobiliária. Portanto, desde 1970, cada vez mais dinheiro tem sido destinado
a ativos financeiros, e quando a classe capitalista começa a comprar ativos, o valor destes
aumenta. Assim eles começam a fazer dinheiro com o crescimento no valor de seus ativos.
Com isso, os preços da propriedade imobiliária aumentam mais e mais. E isso não torna uma
cidade melhor, e sim a torna mais cara. Além disso, na medida em que eles querem construir
condomínios de luxo e casas exclusivas, eles têm que empurrar os pobres para fora de suas
terras – eles têm que tirar o nosso direito à cidade. Em Nova York, eu acho muito difícil viver
em Manhattan, e vejam que eu sou um professor universitário razoavelmente bem pago. A
massa da população que de fato trabalha na cidade não tem condições de viver na cidade
porque o preço dos imóveis subiu exageradamente. Em outras palavras, o direito das pessoas
à cidade foi subtraído. Às vezes ele é subtraído por meio de ações do Mercado, às vezes por
meio de ações do governo, que expulsa as pessoas de onde elas vivem, às vezes ele é subtraído
por meios ilegais, violentos, ateando-se fogo a um prédio. Houve um período em que parte de
Nova York sofreu incêndio após incêndio.
O que isso faz é criar uma situação em que os ricos podem cada vez mais exercer seu
domínio sobre toda a cidade, e eles têm que fazer isso, porque essa é a única forma de usar seu
excedente de capital. E em algum momento, entretanto, há também incentivos para que esse
processo de construção da cidade alcance as pessoas mais pobres. As instituições financeiras
concedem empréstimos aos empreendedores imobiliários para que eles desenvolvam grandes
áreas da cidade. Você tem os empreendedores que promovem o desenvolvimento, mas o problema é: para quem eles vendem os imóveis? Se a renda da classe trabalhadora estivesse
crescendo, então talvez eles pudessem vendê-los para os trabalhadores. Mas desde os anos de
1970 as políticas do neoliberalismo têm implicado reduções salariais. Nos EUA, os salários
reais não têm aumentado desde 1970, de tal modo que se tem uma situação em que os salários
reais são constantes, mas os preços dos imóveis estão subindo. E de onde vem a demanda por
habitação? A resposta consistia em conduzir as classes trabalhadoras a uma situação de débito. E o que nós vemos é que o débito com habitação nos EUA passou de cerca de 40.000 dólares
por família para mais de 120.000 dólares por família nos últimos 20 anos. As instituições
financeiras batem nas portas dos trabalhadores e dizem “Nós temos um bom negócio para
você. Nós lhe emprestamos dinheiro e você pode ter sua casa própria. E não se preocupe se
mais adiante você não conseguir pagar sua dívida, porque os preços dos imóveis estão subindo, então tudo está bem.”
Assim, mais e mais pessoas de baixa renda foram levadas a contrair dívidas. Mas
cerca de dois anos atrás, os preços dos imóveis começaram a cair. A distância entre o que os
trabalhadores podiam pagar e o tamanho da dívida tornou-se grande demais. De repente
houve uma onda de execuções de hipotecas em muitas cidades americanas. Mas como geralmente acontece com algo desse tipo, há um desenvolvimento geográfico desigual de tal onda.
A primeira onda atingiu comunidades de baixíssima renda em muitas das cidades mais antigas dos Estados Unidos. Há um maravilhoso mapa que pode ser visto na página eletrônica da
BBC das execuções hipotecárias na cidade de Cleveland. O que se vê é um mapa pontilhado
das execuções, que é altamente concentrado em certas áreas da cidade. Há do lado deste outro
224
Terra Livre - n. 31 (2): 221-226, 2008
mapa, que mostra a distribuição da população afro-americana, e os dois mapas correspondem
entre si. O que isso significa é que ocorreu um roubo à população afro-americana de baixa
renda. Esta foi a maior perda de ativos de populações de baixa renda nos EUA de todos os
tempos: dois milhões de pessoas perderam suas casas. E naquele mesmo momento o pagamento de bônus em Wall Street ultrapassava a casa dos 30 bilhões de dólares – que é o dinheiro extra pago aos banqueiros pelo seu trabalho. Assim, os 30 bilhões pagos em Wall Street
foram efetivamente retirados das populações dos bairros de baixa renda. Fala-se sobre isso
nos Estados Unidos como um “Katrina financeiro”, porque, como vocês se lembram que o
furacão Katrina atingiu particularmente Nova Orleans, e foi a população negra de baixa
renda que foi deixada para trás, sendo que muitos morreram. Os ricos protegeram seu direito
à cidade, mas os pobres essencialmente perderam o deles.
Na Flórida, na Califórnia e no Sudoeste americano, o padrão foi diferente. Ele se mostrou muito mais nas periferias das cidades. Lá, muito dinheiro estava sendo emprestado a
grupos de construtoras e incorporadoras. Eles estavam construindo casas fora da cidade, 45km
fora de Tuscon e de Los Angeles, e não conseguiam encontrar para quem vendê-las. Então eles
buscaram a população branca que não gostava de viver perto de imigrantes e de negros nas
cidades centrais. Isso levou a uma situação que se revelou há um ano, quando os altos preços
da gasolina tornaram as coisas muito difíceis para aquelas comunidades. Muitas pessoas não
conseguiam pagar suas dívidas, de modo que aconteceu uma onda de execuções hipotecárias
que está se dando nos subúrbios, e atinge principalmente os brancos, em lugares como a
Flórida, o Arizona e a Califórnia. Enquanto isso, o que Wall Street fez foi pegar todas aquelas
hipotecas de risco e embrulhá-las em estranhos instrumentos financeiros. Eles pegavam todas as hipotecas de um determinado lugar e colocavam-nas num pacote, e então vendiam
partes daquele pacote para outras pessoas. O resultado é que todo o mercado financeiro de
hipotecas se globalizou, e o que se vê são pedaços de propriedade hipotecária sendo vendidas
para pessoas na Noruega, na Alemanha, no Golfo e em qualquer lugar. Todos foram convencidos de que essas hipotecas e esses instrumentos financeiros eram tão seguros quanto casas.
Acabou que eles não se mostraram seguros, e então sobreveio a grande crise, que segue sem
parar. Meu argumento é que se essa crise é basicamente uma crise de urbanização, então a
solução deve ser uma urbanização diferente, e é aí que a luta pelo direito à cidade se torna
crucial, porque nós temos a oportunidade de fazer algo diferente.
Mas sempre me perguntam se essa crise é o fim do neoliberalismo. Minha resposta é
“não”, se olha para o que está sendo proposto em Washington e em Londres. Um dos princípios básicos que foram estabelecidos na década de 70 é que o poder do Estado deve proteger as
instituições financeiras a qualquer preço. Se há um conflito entre o bem estar das instituições
financeiras e o bem estar do povo, opta-se pelo bem estar das instituições financeiras. Este é
o princípio que foi desenvolvido na cidade de Nova York City em meados dos anos 70, e que foi
definido internacionalmente pela primeira vez quando houve a ameaça de falência do México
em 1982. Se o México tivesse ido à falência, isso teria destruído os bancos de investimentos de
Nova York. Assim, o Banco Central dos Estados Unidos e o Fundo Monetário Internacional
combinaram esforços para ajudar o México a não entrar em falência. Em outras palavras, eles
emprestaram o dinheiro que o México precisava para pagar os banqueiros de Nova York. Mas,
ao fazê-lo, eles impuseram austeridade à população mexicana. Ou seja, eles protegeram os
bancos e destruíram as pessoas. Essa tem sido a prática padrão do FMI desde então. Agora, se
olharmos para a resposta dada à crise pelos Estados Unidos e a Inglaterra, nós veremos que
o que eles efetivamente fizeram foi salvar os bancos – são 700 bilhões de dólares para os
bancos nos EUA. Eles não fizeram absolutamente nada para proteger os proprietários de
imóveis que perderam suas casas. Então, é este exatamente o mesmo princípio que agora
vemos em funcionamento: proteger as instituições financeiras e foda-se o povo. O que nós
deveríamos ter feito era pegar os 700 bilhões e criar um banco de redesenvolvimento urbano,
para salvarmos todas as comunidades que estavam sendo destruídas e reconstruir as cidades
a partir das demandas populares. O interessante é que, se nós tivéssemos feito isso antes,
muito da crise teria simplesmente desaparecido, porque não haveria a execução das hipotecas. Nesse meio tempo, nós precisamos organizar um movimento antidespejo – e temos visto
isso acontecer em Boston e em algumas outras cidades. Mas, nesse momento da história nos
EUA, há um sentimento de que a mobilização popular está restrita porque a eleição de Obama
era a prioridade. Muitas pessoas esperam que Obama faça algo diferente, mas infelizmente
225
DAVID HARVEY
DISCURSO FORUM SOCIAL...
os seus consultores econômicos são exatamente os mesmos que criaram o problema. Eu duvido que Obama venha a ser tão progressista quanto Lula. Eu acho que nós teremos que esperar um pouco antes que os movimentos sociais comecem a agir. Nós precisamos de um movimento nacional pela reforma urbana como o que vocês têm aqui. Nós temos que construir uma
militância do mesmo tipo que vocês construíram aqui. Nós temos que, de fato, começar a
exercer nosso direito à cidade. E em algum momento nós teremos que reverter o modo como as
instituições financeiras são priorizadas em detrimento do povo. Nós temos que nos questionar o que é mais importante, o valor dos bancos ou o valor da humanidade. O sistema bancário deveria servir às pessoas, e não viver à custa das pessoas. A única forma que temos de, em
algum momento, nos tornarmos capazes de exercer nosso direito à cidade é controlando o
problema da absorção do excedente capitalista. Nós temos que socializar o excedente do capital. Nós temos que usá-lo para atender necessidades sociais. Nós temos que nos livrarmos do
problema da acumulação constante dos 3%. Nós chegamos a um ponto em que uma taxa de
crescimento constante de 3% irá impor custos ambientais tão imensos, irá exercer uma pressão tão grande sobre as questões sociais, que nós viveremos em perpétua crise financeira. Se
nós sairmos dessa crise financeira do modo que eles querem, haverá outra crise financeira
dentro de cinco anos. Chegamos a um ponto em que não podemos mais de aceitar o que disse
Margaret Thatcher, que “não há alternativa”, e que devemos dizer que deve haver uma alternativa. Deve haver uma alternativa para o capitalismo em geral. E nós podemos começar a
nos aproximarmos dessa alternativa percebendo o direito à cidade como uma exigência popular internacional, e eu espero que possamos todos nos unir nessa missão. Muito obrigado.
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NORMAS
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Terra Livre - n. 31 (2): 227-234, 2008
REVIST
A TERRA LIVRE
EVISTA
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Local de publicação: Editora, data, página inicial-página final. Ex.: FRANK, Mônica Weber.
Análise geográfica para implantação do Parque Municipal de Niterói, Canoas – RS. In:
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SUERTEGARAY, Dirce. BASSO, Luís. VERDUM, Roberto (orgs.). Ambiente e lugar no urbano: a Grande Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000, p.67-93.
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periódico, número do fascículo, página inicial- página final, mês(es). Ano. Ex.: SEABRA, Manoel
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SOBRENOME, Nome. Título da dissertação (tese). Local: Instituição em que foi defendida,
data. Número de páginas. (Categoria, grau e área de concentração). Ex.: SILVA, José
Borzacchiello da. Movimentos sociais populares em fortaleza: uma abordagem geográfica.
São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1986. 268p. (Tese, doutorado em Ciências: Geografia Humana).
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Terra Livre - n. 31 (2): 227-234, 2008
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3. The files don’t exceed 2.0MB, including text, references, tables, figures etc.
3.1 The illustrations (figures, tables, pictures, graphics, photographs etc.) must be
available in JPEG or TIF formats, and not only be accepted in black, or that details are
accented in shades of gray, no color pictures will be accepted.
4. The header should contain the title (and subtitle, if any) in Portuguese, English and
Spanish or French. In the second line, the name (s) of author (s), and the third, the information
of the institution (s) you belong to and mailing address of the author (s).
5. The text should be accompanied by summaries in English, Portuguese and Spanish
or French, with a minimum 10 and maximum of 15 lines, single-spaced, and a list of 5 keywords
identifying the content of the text.
6. The structure of the text should be divided into unnumbered and with subtitles. It is
essential to include an introduction and conclusion or closing remarks.
7. Footnotes should not be used for references. This feature can be used when absolutely
necessary and every note should be about 3 lines.
8. Textual quotes long (more than 3 lines) should be a separate paragraph. The words
to ideas and / or information during the text should be referred to the scheme (author’s surname,
date) or (author’s surname, date, page). Example: (Oliveira, 1991) or (Oliveira, 1991, p.25). If
the author’s name is mentioned in the text, indicate only the date in parentheses. E.g.: In this
regard, Milton Santos revealed the limits ... (1989). Different works by the same author
published in the same year should be identified by a letter after the date. E.g.: (Santos, 1985a),
(Santos, 1985b).
8.1. The quotes and words, concepts that are not in Portuguese, must be offered to the
reader in a footnote.
9. References must be submitted at the end of the work, in alphabetical order by surname
of the author (s) (s), as the following examples.
a) For a book:
LAST NAME, Name. Title. Place of publication: Publisher, date.
Example:
Valverde, Orlando. Agrarian Studies Geography Brazilian. Petrópolis: Vozes, 1985.
b) In the case of book chapter:
LAST NAME, Name. Title of chapter. In: SURNAME, Name (ed.). Title of book. Place of
publication: Publisher, date, page-last page.
E.g.:
Frank, Monica Weber. Geographical analysis for implementation of the Municipal Park of
Niterói, Canoas - RS. In: SUERTEGARAY, Dirce. BASSO, Luis Verdun, Roberto (eds.).
Environment and place in the city: the Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade,
2000, p.67-93.
231
SUBMISSION GUIDELINES
c) In the case of article:
LAST NAME, Name. Title of article. Journal title, place of publication, journal volume, issue
number, page-last page, month (s) Year.
E.g.:
SEABRA, Manoel F. G. Location (s)? Guidance, São Paulo, n.5, p.9-17, out. 1984.
d) In the case of dissertations and theses:
LAST NAME, Name. Title of dissertation (thesis). Location: Institution where it was held,
date. Number of pages. (Category, grade and area of concentration).
E.g.:
SILVA, José borzacchiello da. Popular social movements in strength: a geographical approach.
São Paulo: Faculty of Philosophy and Humanities at the University of São Paulo, 1986. 268p.
(Thesis, Doctor of Science: Human Geography).
10. Failure to comply with the above requirements will result in the rejection of the
text; neither follows the usual procedure for ad hoc of the journal Terra Livre.
11. The articles will be sent to referees, whose names remain in secrecy and is also the
name (s) of author (s).
12. The originals will be considered by the Coordination Office, which may accept,
reject or return the original to the author(s) with suggestions for editorial changes.
The versions that contain the comments of the reviewers, and also parts of evaluations of the
reviewers that the Editorial Board considers important to direct the authors, are compared
with the versions that the authors should return to the Commission, if there is compliance
with the requests signaled by the referee that carry the disfigurement and demerits of the
journal, the texts will be refused by the Editorial Board.
13. The Association of Brazilian Geographers (AGB) reserves the right to provide the
published articles for playback on your website or by photocopy, with proper citation of the
source. Each published work is entitled to two copies of your author (s), if the article, and a
copy in all other cases (notes, reviews, communications ...).
14. The concepts expressed in papers are the sole responsibility of the author (s) (s),
not implying necessarily the agreement of the Coordination Office and / or the Editorial Board.
15. E-mail addresses, for which the texts are to be targeted will be announced in each
call specifies for each issue.
16. Authors may contact the Editorial Board via e-mail address of the Editorial Board
of Revista Terra Livre, [email protected] as well as through the postal address of the AGB
/ National: National Executive / Coordination Office – Terra Livre- Av. Lineu Prestes, 332 Historical Geography and History - Cidade Universitária - CEP 05508-900 - São Paulo (SP) Brazil.
232
Terra Livre - n. 31 (2): 227-234, 2008
TERRA LIVRE
NORMAS PARA PUBLICACIÓN
Terra Livre es una publicación semestral de la Asociación de los Geógrafos Brasileños
(AGB) que tiene como objetivo divulgar materias concernientes a los temas presentes en la
formación y la práctica dos geógrafos y su participación en la construcción de la ciudadanía.
En ella se recogen textos bajo la forma de artículos, notas, reseñas, comunicaciones, entre
otras, de todos los que se interesan y participan del conocimiento propiciado por la Geografía,
y que estén relacionados con las discusiones que incluyen las teorías, metodologías y prácticas
desarrolladas y utilizadas en este proceso, así como con las condiciones y situaciones bajo las
cuales se vienen manifestando y sus perspectivas.
1. Todos los textos enviados a esta revista deben ser inéditos y redactados en portugués,
inglés, español o francés.
2. Los textos deben ser presentados con extensión mínima de 15 y máxima de 30 páginas, con margen (derecho, izquierdo, superior e inferior) de 3 cm, y párrafos de 2,0 centímetros, en Word para Windows, utilizando la fuente Times New Roman, tamaño de fuente 12,
espacio 1,5 formato A-4 (210x297mm).
3. Los archivos no podrán sobrepasar 2,0 Mb, incluyendo texto, referencias bibliográficas, tablas, figuras, etc.).
3.1. Las ilustraciones (figuras, tablas, dibujos, gráficos, fotografías, etc.) deben estar
dispuestos en los formatos JPG o TIF, y no solamente se aceptarán en color negro, o que los
detalles se acentúen en tonos grises; no se aceptarán figuras en colores.
4. El encabezado debe contener el título (y subtítulo, si hubiera) en portugués, inglés y
español o francés. En la segunda línea, el(los) nombre(s) del(s) autor(es), y, en la tercera, las
informaciones referentes a la(s) institución(ones) a la que pertenece(n), así como el(los) correo(s)
electrónico(s) y dirección postal del(los) autor(es).
5. El texto debe estar acompañado de resúmenes en portugués, inglés, español o francés,
con un mínimo 10 y como máximo 15 líneas, en espacio simple, y una relación de 5 palabras
clave que identifiquen el contenido del texto.
6. La estructura del texto se debe dividir en partes no numeradas y con subtítulos. Es
esencial contener introducción y conclusión o consideraciones finales.
7. Las notas al pie de página no deberán ser usadas para referencias bibliográficas.
Este recurso puede ser utilizado cuando sea extremadamente necesario y cada nota debe
tener alrededor de 3 líneas.
8. Las citaciones textuales largas (más de 3 líneas) deben constituir un párrafo
independiente. Las menciones a ideas y/o informaciones en el transcurso del texto deben
subordinarse al esquema (Apellido del autor, fecha) o (Apellido del autor, fecha, página). Ej.:
(Oliveira, 1991) u (Oliveira, 1991, p.25). En el caso de que el nombre del autor esté citado en
el texto, se indica sólo a la fecha entre paréntesis. Ej.: “A este respecto, Milton Santos demostró
los límites... (1989)”. Diferentes títulos del mismo autor publicados en el mismo año se deben
identificar por una letra minúscula después de la fecha. Ej.: (Santos, 1985a), (Santos, 1985b).
8.1. Las citas, así como vocablos, conceptos que no estén en portugués, deberán ser
ofrecidas al lector en nota al pie de página.
9. La bibliografía debe ser presentada al final del trabajo, en orden alfabético de apellido
del(los) autor(es), como en los siguientes ejemplos.
a)
En el caso de libro:
APELLIDO, Nombre. Título de la obra. Lugar de publicación: Editorial, fecha.
Ej.:
VALVERDE, Orlando. Estudos de Geografia Agrária Brasileira. Petrópolis: Editora Vozes,
1985.
b)
En el caso de capítulo de libro:
APELLIDO, Nombre. Título del capítulo. In: APELLIDO, Nombre (org). Título del libro.
Lugar de publicación: Editora, fecha, página inicial - página final.
233
NORMAS PARA PUBLICACIÓN
Ej.:
FRANK, Mônica Weber. Análise geográfica para implantação do Parque Municipal de Niterói,
Canoas – RS. In: SUERTEGARAY, Dirce. BASSO, Luís. VERDUM, Roberto (orgs.). Ambiente
e lugar no urbano: a Grande Porto Alegre. Porto Alegre: Editora de la Universidad, 2000,
p.67-93.
c)
En el caso de artículo:
APELLIDO, Nombre. Título del artículo. Título del periódico, lugar de publicación, volumen
del periódico, número del fascículo, página inicial - página final, mes(es). Año.
Ej.:
SEABRA, Manoel F. G. Geografía(s)? Orientação, São Paulo, n.5, p.9-17, oct. 1984.
d)
En el caso de disertaciones y tesis:
APELLIDO, Nombre. Título de la disertación (tesis). Lugar: Institución en que fue defendida,
fecha. Número de páginas. (Categoría, grado y área de concentración).
Ej.:
SILVA, José Borzacchiello da. Movimentos sociais populares em fortaleza: uma abordagem
geográfica. São Paulo: Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias Humanas de la Universidad
de São Paulo, 1986. 268p. (Tesis, doctorado en Ciencias: Geografía Humana).
10. El no cumplimiento de las exigencias anteriores, acarreará la no aceptación del
referido texto; tampoco seguirá la tramitación usual para los funcionarios de pareceres ad hoc
de la Revista Terra Livre.
11. Los artículos se enviarán a los funcionarios de pareceres, cuyos nombres
permanecerán en sigilo, omitiéndose también el(los) nombre(s) del(los) autor(es).
12. Los originales serán apreciados por la Coordinación de Publicaciones, que podrá
aceptar, rechazar o representar el original al(los) autor(es) con sugerencias de alteraciones
editoriales.
Las versiones que contendrán las observaciones de los funcionarios de pareceres, así
como partes de las evaluaciones de los funcionarios de pareceres que la Comisión Editorial
juzgue importante dirigir a los autores, serán comparadas con las versiones que deberán
retornar de los autores a la Comisión; caso en el caso que no haya el cumplimiento de las
solicitudes señalizaciones por los funcionarios de pareceres y que implican en la desfiguración
y demérito de la Revista, los textos serán rechazados por la Comisión Editorial.
13. La Asociación de los Geógrafos Brasileños (AGB) se reserva el derecho de facultar
los artículos publicados para reproducción en su sitio o por medio de copia xerográfica, con la
debida citación de la fuente. Cada trabajo publicado da derecho a dos ejemplares a su(s)
autor(es), en el caso de artículo, y un ejemplar en los demás casos (notas, reseñas,
comunicaciones, ...).
14. Los conceptos emitidos en los trabajos son de responsabilidad exclusiva del(los)
autor(es), no implicando, necesariamente, en la concordancia de la Coordinación de
Publicaciones y/o del Consejo Editorial.
15. Direcciones electrónicas, para las cuales los textos deberán ser dirigidos serán
divulgados en cada llamada específica para cada número de la revista.
16. Los autores podrán mantener contacto con la Comisión Editorial a través de la
dirección electrónica de la Comisión Editorial de la Revista Terra Livre, [email protected],
así como por medio de la dirección vía postal de la AGB/Nacional: Dirección Ejecutiva Nacional / Coordinación de Publicaciones – Terra Livre - Av. Prof. Lineu Prestes, 332 – Edificio
Geografía e Historia – Ciudad Universitaria – CEP 05508-900 – São Paulo (SP) – Brasil.
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COMPÊNDIO
DOS
NÚMEROS ANTERIORES
235
236
Terra Livre - n. 31 (2): 235-348, 2008
COMPÊNDIO
DOS NÚMEROS ANTERIORES
01)
MOREIRA, Ruy. O Plano Nacional de Reforma Agrária em questão. Ano 1, n. 1,
p. 6-19, 1986.
02)
THOMAZ JÚNIOR, Antonio. As agroindústrias canavieiras em Jaboticabal e a
territorialização do monopólio. Ano 1, n. 1, p. 20-25, 1986.
03)
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A Apropriação da renda da terra pelo capital na
citricultura paulista. Ano 1, n. 1, p. 26-38, 1986.
04)
VALVERDE, Orlando. A floresta amazônica e o ecodesenvolvimento. Ano 1, n. 1,
p. 39-42, 1986.
05)
SALES, W. C. de C., CAPIBARIBE, P. J. A., RAMOS, P., COSTA, M. C. L. da. Os
agrotóxicos e suas implicações socioambientais. Ano 1, n. 1, p. 43-45, 1986.
06)
CARVALHO, Marcos Bernardino de. A natureza na Geografia do ensino médio.
Ano 1, n. 1, p. 46-52, 1986.
07)
SANTOS, Douglas. Estado nacional e capital monopolista. Ano 1, n. 1, p. 53-61, 1986.
08)
CORRÊA, Roberto Lobato. O enfoque locacional na Geografia. Ano 1, n. 1, p. 62-66,
1986.
09)
PONTES, Beatriz Maria Soares. Uma avaliação da Lei Nacional do Uso do Solo Urbano. Ano 1, n. 1, p. 67-72, 1986.
10)
PLANO DIRETOR DA AGB NACIONAL GESTÃO 85/86. Ano 1, n. 1, p. 73-75, 1986.
11)
A AGB e o documento final do projeto diagnóstico e avaliação do ensino de Geografia no
Brasil. Ano 1, n. 1, p. 76-77, 1986.
12)
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Reflexões sobre Geografia e Educação: notas de
um debate. n. 2, p. 9-42, jul.1987.
13)
VLACH, Vânia Rúbia Farias. Fragmentos para uma discussão: método e conteúdo no
ensino da Geografia de 1° e 2° graus. n. 2, p. 43-58, jul.1987.
14)
VESENTINI, José William. O método e a práxis (notas polêmicas sobre Geografia tradicional e Geografia crítica). n. 2, p.5 9-90, jul.1987.
15)
REGO, Nelson. A unidade (divisão) da Geografia e o sentido da prática. n. 2, p. 91-114,
jul.1987.
16)
PONTUSCHKA, Nídia Nacib. Análise dos planos de ensino da Geografia. n. 2, p. 115127, jul.1987.
17)
PAGANELLI, Tomoko Iyda. Para a construção do espaço geográfico na criança. n. 2,
p. 129-148, jul.1987.
18)
VIANA, P.C.G., FOWLER, R.B, ZAPPIA, R.S., MEDEIROS, M.L.M.B.de. Poluição das
águas internas do Paraná por agrotóxico. n. 2, p. 149-154, jul.1987.
19)
AB’ SABER, Aziz Nacib. Espaço territorial e proteção ambiental. n. 3, p. 9-31, mar.1988.
20)
GOMES, Horieste. A questão ambiental: idealismo e realismo ecológico. n. 3, p. 33-54,
mar.1988.
21)
BERRÍOS, ROLANDO. Planejamento ambiental no Brasil. n. 3, p. 55-63, mar.1988.
22)
BRAGA, Ricardo Augusto Pessoa. Avaliação de impactos ambientais: uma abordagem
sistêmica. n. 3, p. 65-74, mar.1988.
23)
LIMA, Samuel do Carmo. Energia nuclear – uma opção perigosa. n. 3, p. 75-88, mar.1988.
24)
SUERTEGARAY, Dirce Maria Antunes e SCHÄFFER, Neiva Otero. Análise ambiental:
a atuação do geógrafo para e na sociedade. n. 3, p. 89-103, mar.1988.
25)
ESTRADA, Maria Lúcia. Algumas considerações sobre a Geografia e o seu ensino - o
caso da industralização brasileira. n. 3, p. 105-120, mar.1988.
26)
MESQUITA, Zilá. Os “espaços” do espaço brasileiro em fins do século XX n. 4, p. 9-38,
jul.1988.
27)
RIBEIRO, Wagner Costa. Relação espaço/tempo: considerações sobre a materialidade
e dinâmica da história humana. n. 4, p. 39-53, jul.1988.
28)
SILVA, José Borzacchiello da. Gestão democrática do espaço e participação dos
Geógrafos. n. 4, p. 55-76, jul.1988.
29)
REGO, Nelson. A experiência de autogestão dos trabalhadores agrários de Nova Ronda Alta e o seu significado para o Movimento dos Sem Terra. n. 4, p. 65-76, jul. 1988.
30)
VALLEJO, Luiz Renato. Ecodesenvolvimento e o mito do progresso. n. 4, p. 77-87,
237
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES
jul.1988.
31)
VLACH, Vânia Rubia Farias. Rediscutindo a questão acerca do livro didático de Geografia para o ensino de 1° e 2° graus. n. 4, p. 89-95, jul.1988.
32)
SCHÄFFER, Neiva Otero. Os estudos sociais ocupam novamente o espaço... da discussão. n. 4, p. 97-108, jul.1988.
33)
SANTOS, Milton. O espaço geográfico como categoria filosófica. n. 5, p. 9-20, 1988.
34)
SOUZA, Marcelo José Lopes de. “Espaciologia”: uma objeção (crítica aos prestigiamentos
pseudo-críticos do espaço social). n. 5, p. 21-45, 1988.
35)
GOMES, Paulo César da Costa e COSTA, Rogério Haesbaert da. O espaço na
modernidade). n. 5, p. 47-67, 1988.
36)
SILVA, Mário Cezar Tompes da. O papel do político na construção do espaço dos homens). n. 5, p. 69-82, 1988.
37)
SOUZA Marcos José Nogueira de. Subsídios para uma política conservacionista dos
recursos naturais renováveis do Ceará). n. 5, p. 83-101, 1988.
38)
KRENAK, Ailton. Tradição indígena e ocupação sustentável da floresta. n. 6, p. 9-18,
ago.1989.
39)
MOREIRA, Ruy. A marcha do capitalismo e a essência econômica da questão agrária
no Brasil. n. 6, p. 19-63, ago.1989.
40)
SADER, Regina. Migração e violência: o caso da Pré-Amazônia Maranhense. n. 6, p.
65-76, ago.1989.
41)
FAULHABER, Priscila. A terceira margem: índios e ribeirinhos do Solimões. n. 6, p.
77-92, ago.1989.
42)
TARELHO, Luiz Carlos. Movimento Sem Terra de Sumaré. Espaço de conscientização
e de luta pela posse da terra. n. 6, p. 93-104, ago.1989.
43)
OLIVEIRA, Bernadete de Castro. Reforma agrária para quem? Discutindo o campo no
estado de São Paulo. n. 6, p. 105-114, ago.1989.
44)
BARBOSA, Ycarim Melgaço. O movimento camponês de Trombas e Formoso. n. 6,
p. 115-122, ago.1989.
45)
MENDES, Chico. A luta dos povos da floresta. n. 7, p. 9-21, 1990.
46)
BARROS, Raimundo. O seringueiro. n. 7, p. 23-42, 1990.
47)
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. A defesa da natureza começa pela terra. n. 7,
p.4 3-52, 1990.
48)
COLTRINARI, Lylian. A Geografia e as mudanças ambientais. n. 7, p. 53-57, 1990.
49)
SILVA, Armando Corrêa da. Ponto de vista: o pós-marxismo e o espaço cotidiano. n. 7,
p. 59-62, 1990.
50)
COSTA, Rogério Haesbaert da. Filosofia, Geografia e crise da modernidade. n. 7,
p. 63-92, 1990.
51)
RIBEIRO, Wagner Costa. Maquiavel: uma abordagem geográfica e (geo)política. n. 7,
p. 3-107, 1990.
52)
CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos e GOULART, Lígia Beatriz. Uma contribuição à
reflexão do ensino de geografia: a noção de espacialidade e o estatuto da natureza. n. 7,
p. 109-118, 1990.
53)
CORDEIRO, Helena K. Estudo sobre o centro metropolitano de São Paulo. n. 8,
p. 7-33, abr.1991.
54)
MAURO, C.A., VITTE, A.C., RAIZARO, D.D., LOZANI, M.C.B., CECCATO, V.A. Para
salvar a bacia do Piracicaba. n. 8, p. 35-66, abr.1991.
55)
PAVIANI, Aldo. Impactos ambientais e grandes projetos: desafios para a universidade.
n. 8, p. 67-76, abr.1991.
56)
FURIAN Sônia. “A nave espacial terra: para onde vai?” n. 8, p.77-82, abr.1991.
57)
ALMEIDA, Rosângela D. de. A propósito da questão teórico-metodológica sobre o ensino de Geografia. n. 8, p. 83-90, abr.1991.
58)
FILHO, Fadel D. Antonio e ALMEIDA, Rosângela D. de. A questão metodológica no
ensino da Geografia: uma experiência. n. 8, p. 91-100, abr.1991.
59)
ESCOLAR, M., ESCOLAR, C., PALACIOS, S.Q. Ideologia, didática e corporativismo:
uma alternativa teórico-metodológica para o estudo histórico da Geografia no ensino primário e secundário. n. 8, p. 101-110, abr.1991.
60)
ARAÚJO, Regina e MAGNOLI, Demétrio. Reconstruindo muros: crítica à proposta
238
Terra Livre - n. 31 (2): 235-348, 2008
curricular de Geografia da CENP-SP. n. 8, p. 111-119, abr.1991.
61)
PEREIRA, D., SANTOS, D., CARVALHO, M. de. A Geografia no 1° grau: algumas reflexões. n. 8, p. 121-131, abr.1991.
62)
SOARES, Maria Lúcia de Amorim. A cidade de São Paulo no imaginário infantil
piedadense. n. 8, p. 133-155, abr.1991.
63)
MAMIGONIAN, Armen. A AGB e a produção geográfica brasileira: avanços e recuos. n.
8, p.157-162, abr.1991.
64)
SANTOS, Milton. A evolução tecnológica e o território: realidades e perspectivas. n. 9,
p. 7-17, jul.-dez.1991.
65)
LIMA, Luiz Cruz. Tecnopólo: uma forma de produzir na modernidade atual. n. 9, p. 1940, jul.-dez.1991.
66)
GUIMARÃES, Raul Borges. A tecnificação da prática médica no Brasil: em busca de
sua geografização. n. 9, p. 41-55, jul.-dez.1991.
67)
PIRES, Hindemburgo Francisco. As metamorfoses tecnológicas do capitalismo no período atual. n. 9, p. 57-89, jul.-dez.1991.
68)
OLIVEIRA, Márcio de. A questão da industrialização no Rio de Janeiro: algumas reflexões. n. 9, p. 91-101, jul.-dez.1991.
69)
HAESBAERT, Rogério. A (des)or-dem mundial, os novos blocos de poder e o sentido da
crise. n. 9, p. 103-127, jul.-dez.1991.
70)
SILVA, Armando Corrêa da. Ontologia analítica: teoria e método. n. 9, p. 129-133,
jul.-dez.1991.
71)
SILVA, Eunice Isaías da. O espaço: une/separa/une. n. 9, p. 135-141, jul.-dez.1991.
72)
ANDRADE, Manuel Correia de. A AGB e o pensamento geográfico no Brasil. n. 9,
p. 143-152, jul.-dez.1991.
73)
MORAES, Rubens Borba de. Contribuições para a história do povoamento em São
Paulo até fins do século XVIII. n. 10, p. 11-22, jan.-jul. 1992.
74)
AZEVEDO de Aroldo. Vilas e cidades do Brasil colonial. n. 10, p. 23-78, jan.-jul. 1992.
75)
PETRONE, Pasquale. Notas sobre o fenômeno urbano no Brasil. n. 10, p. 79-92,
jan.-jul. 1992.
76)
CORRÊA, Roberto Lobato. A vida urbana em Alagoas: a importância dos meios de
transporte na sua evolução. n.10, p.93-116, jan.-jul. 1992.
77)
VALVERDE, Orlando. Pré-história da AGB carioca. n. 10, p. 117-122, jan.-jul. 1992.
78)
SOUZA, Marcelo José Lopes de. Planejamento Integrado de Desenvolvimento: natureza, validade e limites. n. 10, p. 123-139, jan.-jul. 1992.
79)
ANDRADE, Manuel Correia de. América Latina: presente, passado e futuro. n. 10,
p. 140-148, jan.-jul. 1992.
80)
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Geografia política e desenvolvimento sustentável.
n. 11-12, p. 9-76, ago.92-ago.93.
81)
RODRIGUES, Arlete Moysés. Espaço, meio ambiente e desenvolvimento: reeleituras
do território. n. 11-12, p. 77-90, ago.92-ago.93.
82)
EVASO, A.S., VITIELLO, M.A., JUNIOR, C.B., NOGUEIRA, S.M., RIBEIRO, W.C.
Desenvolvimento sustentável: mito ou realidade? n. 11-12, p.91-101, ago.92-ago.93.
83)
DAVIDOVICH, Fany. Política urbana no Brasil, ensaio de um balanço e de perspectiva. n. 11-12, p. 103-117, ago.92-ago.93.
84)
MARTINS, Sérgio. A produção do espaço na fronteira: a acumulação primitiva revisitada.
n. 11-12, p. 119-133, ago.92-ago.93.
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239
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES
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e a contribuição do ensino de Geografia. n. 11-12, p. 243-264, ago.92-ago.93.
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ROSA, Paulo Roberto de Oliveira. Contextos e circuntâncias: princípio ativo das categorias. n. 11-12, p. 269-270, ago.92-ago.93.
95)
CALLAI, Helena Copetti. O meio ambiente no ensino fundamental. n. 13, p. 9-19,
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CAMARGO, L.F. de F., FORTU-NATO, M.R. Marcas de uma política de exclusão social
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KAERCHER, Nestor André. PCN’s: futebolistas e padres se encontram num Brasil
que não conhecemos. n. 13, p. 30-41, 1997.
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CARVALHO, Marcos B. de. Ratzel: releituras contemporâneas. Uma reabilitação? n.
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100) SOUSA NETO, Manuel Fernandes de. A ágora e o agora. n. 14, p. 11-21, jan.-jul. 1999.
101) FILHO, Manuel Martins de Santana. Sobre uma leitura alegórica da escola. n. 14, p.
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professor e a relação escola básica-universidade: um projeto de educação. n. 14, p. 30-40, jan.jul. 1999.
103) PEREIRA, Diamantino. A dimensão pedagógica na formação do geógrafo. n. 14, p. 4147, jan.-jul. 1999.
104) CASTELLAR, Sonia Maria Vanzella. A formação de professores e o ensino de Geografia. n. 14, p. 48-55, jan.-jul. 1999.
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urbanização crítica. n. 15, p. 21-37, 2000.
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agenda de pesquisa. n. 15, p.39-58, 2000.
111) FERNANDES, Bernardo Mançano. Movimento social como categoria geográfica. n. 15,
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112) ALENTEJANO, Paulo Roberto R. O que há de novo no rural brasileiro? n. 15,
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113) BRAGA, Rosalina. Formação inicial de professores: uma trajetória com permanências
eivadas por dissensos e impasses. n. 15, p. 113-128, 2000.
114) ROCHA, Genylton Odilon Rego da. Uma breve história da formação do(a) professor(a)
de Geografia do Brasil. n. 15, p. 129-144, 2000.
115) PONTUSCHKA, Nídia Nacib. Geografia, representações sociais e escola pública. n. 15,
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116) OLIVEIRA, Márcio Piñon. Geografia, Globalização e cidadania. n. 15, p. 155-164, 2000.
117) GONÇALVES, Carlos Walter Porto. “Navegar é preciso, viver não é preciso”: estudo
sobre o Projeto de Perenização da Hidrovia dos Rios das Mortes: Araguaia e Tocantins. n. 15,
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nos estudos das formas de relevo nas regiões tropicais quentes e úmidas. n. 16, p. 11-24, 2001.
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119) RAMIRES, Blanca. Krugman y el regresso a los modelos espaciales: ¿La nueva
geografía? n. 16, p. 25 - 38, 2001.
120) FERREIRA, Darlene Ap. de Oliveira. Geografia Agrária no Brasil: periodização e
conceituação. n. 16, p. 39-70, 2001.
121) MAIA, Doralice Sátyro. A Geografia e o estudo dos costumes e das tradições. n. 16,
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122) SPOSITO, Eliseu. A propósito dos paradigmas de orientações teórico-metodológicas na
Geografia contemporânea. n. 16, p. 99-112, 2001.
123) MENDONÇA, Francisco. Geografia socioambiental. n. 16, p. 113-132, 2001.
124) CALLAI, Helena Copetti. A Geografia e a escola: muda a geografia? Muda o Ensino? n.
16, p. 133-152, 2001.
125) PIRES, Hindenburgo Francisco. “Ethos” e mitos do pensamento único globaltotalitário.
n. 16, p. 153-168, 2001.
126) REGO, Nelson. SUERTEGARAY, Dirce Maria. HEIDRICH, Álvaro. O ensino de Geografia como uma hermenêutica instauradora. n. 16, p. 169-194, 2001.
126) SUERTEGARAY, Dirce M. Antunes; NUNES, João Osvaldo Rodrigues. A natureza da
Geografia Física na Geografia. n. 17, p. 11-24, 2001.
127) OLIVA, Jaime Tadeu. O espaço geográfico como componente social. n. 17, p. 25-48,
2001.
128) NETO, João Lima Sant’anna. Por uma Geografia do Clima – antecedentes históricos,
paradigmas contemporâneos e uma nova razão para um novo conhecimento. n. 17, p. 49-62,
2001.
129) SEGRELLES, José Antonio. Hacia uma enseñanza comprometida y social de la
Geografía en la universidad. n. 17, p. 63-78, 2001.
130) RIBEIRO, Júlio Cézar; GONÇALVES, Marcelino Andrade. Região: uma busca conceitual
pelo viés da contextualização histórico-espacial da sociedade. n. 17, p. 79-98, 2001.
131) CIDADE, Lúcia Cony Faria. Visões de mundo, visões da Natureza e a formação de
paradigmas geográficos. n. 17, p. 99-118, 2001.
132) NETO, Manuel Fernandes de Sousa. Geografia nos trópicos: história dos náufragos de
uma Jangada de Pedras. n. 17, p. 119-138, 2001.
133) ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. O espaço geográfico dos remanecentes de antigos
quilombos no Brasil. n. 17, p. 139-154, 2001.
134) GUIMARÃES, Raul Borges. Saúde urbana: velho tema, novas questões. n.17, p. 155170.
135) CAPEL, Horácio. A Geografia depois dos atentados de 11 de setembro. Ano 18, v. 1, n.
18, p. 11-36.
136) HAESBAERT, Rogério. A multiterritorialidade do mundo e o exemplo da Al Qaeda.
Ano 18, v. 1, n. 18, p. 37-46.
137) ZANOTELLI, Cláudio Luiz. Globalização, Estado e culturas crimonosas. Ano 18, v.1,
n. 18, p. 47-62.
138) SEGRELLES, José Antonio. Integração regional e globalização. Uma reflexão sobre
casos do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da Área de Livre Comércio das Américas desde
uma perspectiva européia. Ano 18, v. 1, n. 18, p. 63-74,
139) RIBEIRO, Wagner Costa. Mudanças climáticas, realismo e multilateralismo. Ano 18,
v. 1, n. 18, p. 75-84.
140) MANGANO, Stefania. Evolução do conceito da planificação territorial na Itália. Ano
1
8
,
v. 1, n. 18, p. 85-94.
141) STRAFORINI, Rafael. A totalidade do mundo nas primeiras séries do ensino fundamental: um desafio a ser enfrentado. Ano 18, v. 1, n. 18, p. 95-114.
142) KEINERT, Tânia M. M., KARRUZ, Ana Paula, KARRUZ, Silvia Maria. Sistemas locais de informação e a gestão pública da qualidade de vida nas cidades locais. Ano 18, v. 1, n.
1
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p. 115-132.
143) GOMES, Edvânia Tôrres Aguiar. Dilemas nas (re)estruturações das metrópoles. Ano
1
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v. 1, n. 18, p. 133-142.
241
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES
144) DINIZ Filho, Luis Lopes. Contribuições e equívocos das abordagens marxistas na Geografia Econômica: um breve balanço. Ano 18, v. 1, n. 18, p. 143-160.
145) CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Geografia brasileira, hoje: algumas reflexões. Ano
1
8
,
v. 1, n. 18, p. 161-178.
146) NUNES, Luci Hidalgo. Discussão acerca de mudanças climáticas (notas). Ano 18, v. 1,
n. 18, p. 179-184.
147) MELAZZO, Everaldo Santos. Renda de cidadania: a saída é pela porta (resenha). Ano
18, v. 1, n. 18, p. 185-186.
148) RAMIREZ, Blanca. Terra Incognitae: el surgimiento de nuevas regiones y territorios
em el marco de la globalización (resenha). Ano 18, v. 1, n. 18, p. 187-190.
149) MARTIN, Jean-Yves. Uma Geografia da nova radicalidade popular: algumas reflexões a
partir do caso do MST. Ano 18, v. 2, n.19, p. 11-35.
150) CALLE, Angel. Análisis comparado de movimientos sociales: MST, Guatemala y España.
Ano 18, v. 2, n. 19, p. 37-58.
151) CALDERÓN ARAGÓN, Georgina. Un lugar en la bandera (la marcha zapatista). Ano 18,
v. 2, n. 19, p. 59-74.
152) FABRINI, João Edmilson. O projeto do MST de desenvolvimento territorial dos assentamentos e campesinato. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 75-94.
153) MARQUES, Marta Inez Medeiros. O conceito de espaço rural em questão. Ano 18, v. 2, n.
19, p. 95-112.
154) FERNANDES, Bernardo M., DA PONTE, Karina F. As vilas rurais do Estado do Paraná
e as novas ruralidades. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 113-126.
155) SMITH, Neil. Geografia, diferencia y las políticas de escala. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 127146.
156) ARANA, Alva Regina Azevedo. Os avicultores integrados no Brasil: estratégias e adaptações – o caso Coperguaçu Descalvado – SP. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 147-162.
157) GÓES, Eda, MAKINO, Rosa Lúcia. As unidades prisionais do Oeste Paulista: implicações do aprisionamento e do fracasso da tentativa da sociedade de isolar por completo parte
de si mesma. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 163-176.
158) LEAL, Antonio Cezar, THOMAZ Jr., Antonio, ALVES, Neri, GONÇALVES, Marcelino A.,
DIVIESO, Eduardo P., CANTÓIA, Silvia, GOMES, Adriana M., GONÇALVES, Sara Maria M.
P. S., ROTTA, Valdir E. A reinserção do lixo na sociedade do capital: uma contribuição ao
entendimento do trabalho na catação e na reciclagem. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 177-190.
159) SANTOS, Clézio. Globalização, turismo e seus efeitos no meio ambiente. Ano 18, v. 2, n.
19, p. 191-198.
160) REGO, Nelson. Geração de ambiências: três conceitos articuladores. Ano 18, v. 2, n. 19,
p. 199-212.
161) SILVA, Silvio Simione. A liberdade no “fazer ciência” em Geografia. Ano 18, v. 2, n. 19,
p. 213-228.
162) SILVA, Tânia Paula da. Fundamentos teóricos do cooperativismo agrícola e o MST. Ano
18, v. 2, n. 19, p. 229-242.
163) TFOUNI, Leda Verdiani, ROMÃO, Lucília Maria Sousa. O discurso sobre Canudos e a
retórica do massacre. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 243-256.
164) FRANCO GARCÍA, Maria, THOMAZ Jr., Antonio. Trabalhadoras rurais e luta pela terra no Brasil: interlocução entre gênero, trabalho e território. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 257-272.
165) STACCIARINI, José Henrique Rodrigues. Ética, humanidade e ações por cidadania:
do impeachment de Collor ao Fome Zero do governo Lula. Ano 18, v. 2, n. 19, p. 273-284.
166) BESSAT, Frédéric. A mudança climática entre ciência, desafios e decisões: olhar geográfico. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 11-26.
167) SARTORI, Maria da Graça Barros. A dinâmica do clima do Rio Grande do sul: indução
empírica e conhecimento científico. Ano 19, v. 1, n. 19, p. 27-49.
168) SANT’ANNA Neto, João Lima. Da complexidade física do universo ao cotidiano da sociedade: mudança, variabilidade e ritmo climático. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 51-63.
169) ZAVATINI, João Afonso. A produção brasileira em climatologia: o tempo e o espaço nos
estudos do ritmo climático. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 65-100.
170) NUNES, Lucí Hidalgo. Repercussões globais, regionais e locais do aquecimento global.
242
Terra Livre - n. 31 (2): 235-348, 2008
Ano 19, v. 1, n. 20, p. 101-110.
171) SILVA, Maria Elisa Siqueira, GUETTER, Alexandre K. Mudanças climáticas regionais
observadas no Estado do Paraná. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 111-126.
172) PACIORNIK, Newton. Mudança global do clima: repercussões globais, regionais e locais.
Ano 19, v. 1, n. 20, p. 127-135.
173) VERÍSSIMO, Maria Elisa Zanella. Algumas considerações sobre o aquecimento global e
suas repercussões. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 137-143.
174) ASSIS, Eleonora Sad de. Métodos preditivos da climatologia como subsídios ao planejamento urbano: aplicação em conforto térmico. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 145-158.
175) FRAGA, Nilson César. Clima, gestão do território e enchentes no Vale do Itajaí-SC. Ano
19, v. 1, n. 20, p. 159-170.
176) BEJARÁN, R., GARÍN, A. De, SCHWEIGMANN, N. Aplicación de la predicción
meteorológica para el pronóstico de la abundancia potencial del Aedes aegypti en Buenos
Aires. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 171-178.
177) FERREIRA, Maria Eugenia M. Costa. “Doenças tropicais”: o clima e a saúde coletiva.
Alterações climáticas e a ocorrência de malária na área de influência do reservatório de Itaipu,
PR. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 179-191.
178) CONFALONIERI, Ulisses E. C. Variabilidade climática, vulnerabilidade social e saúde
no Brasil. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 193-204.
179) MENDONÇA, Francisco. Aquecimento global e saúde: uma perspectiva geográfica – notas introdutórias. Ano 19, v. 1, n. 20, p. 205-221.
180) CLAVAL, Paul. The logic of multilingual cities and their political problems. Ano 19, v. 2,
n. 21, p. 11-23.
181) ALENTEJANO, Paulo Roberto R. As relações campo-cidade no Brasil do século XXI.
Ano 19, v. 2, n. 21, p. 25-39.
182) BOMBARDI, Larissa Mies. Geografia Agrária e responsabilidade social da ciência. Ano
19, v. 2, n. 21, p. 41-53.
183) GRABOIS, José, CEZAR, Lucia Helena da S., SANTOS, Cátia P. dos, GREGÓRIO Filho,
Gregório. O habitat e a questão social no Noroeste Fluminense. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 55-71.
184) ALMEIDA, Rose Aparecida de. O conceito de classe camponesa em questão. Ano 19, v. 2,
n. 21, p. 73-88.
185) FERNANDES, Bernardo M., SILVA, Anderson A., GIRARDI, Eduardo P. DATALUTA –
Banco de Dados da Luta pela Terra: uma experiência de pesquisa e extensão no estudo da
territorialização da luta pela terra. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 89-112.
186) OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Barbárie e modernidade: as transformações no campo e o agronegócio no Brasil. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 113-156.
187) BERNARDES, Júlia Adão. Territorialização do capital, trabalho e meio ambiente em
Mato Grosso. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 157-167.
188) ABREU, Silvana de. Racionalização e ideologia: o domínio do capital no
espaço matogrossense. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 169-181.
189) OLIVEIRA, Cristiane Fernandes de. A busca do desenvolvimento sustentável na gestão
dos recursos hídricos brasileiros. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 183-192.
190) PASSOS, Messias Modesto dos. A construção da paisagem no Pontal do Paranapanema
– uma apreensão geo-foto-gráfica. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 193-211.
191) MARTINS, César Augusto Ávila. Empresas na pesca e aqüicultura: anotações do
uso do território. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 213-223.
192) ZANOTELLI, Cláudio Luiz. Desterritorialização da violência no capitalismo globalitário:
o caso do Brasil e do Espírito Santo. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 225-240.
193) MORATO, Rúbia G., KAWAKUBO, Fernando S., LUCHIARI, Ailton. Mapeamento da
qualidade de vida em áreas urbanas: conceitos e metodologias. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 241-248.
194) HENRIQUE, Wendel. A natureza nos interstícios do social – uma leitura das idéias
de natureza nas obras de Milton Santos. Ano 19, v. 2, n. 21, p. 249-262.
195) PANCHER, Andréia M. FREITAS, Maria Isabel C. de. Mapeamento do crescimento urbano em áreas de várzea na passagem do Rio Corumbataí por Rio Claro/SP. Ano 19, v. 2, n. 21,
p. 263-279.
196) SPOSITO, Eliseu Savério. Dinâmica regional e diversificação industrial (Resenha). Ano
19, v. 2, n. 21, p. 281-284.
243
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES
197) SEABRA, Manoel. Os primeiros anos da Associação dos Geógrafos Brasileiros. Ano 20,
v. 1, n. 22, p. 13-68.
198) VIEIRA, Alexandre B., PEDON, Nelson R. O papel das comunidades científicas: a AGB
Nacional e a Seção Local de Presidente Prudente/SP. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 71-83.
199) Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Dourados. AGB – Seção Dourados: memória e história de um processo de construção coletiva. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 85-97.
200) SANTANA, Mário Rubem C., AMORIM, Itamar G. De, GOMES, Denize S. AGB
– Salvador, quase 50 anos de Geografia. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 99-112.
201) FONTOURA, Luiz Fernando M., DUTRA, Viviane S. Os 30 anos da Associação dos
Geógrafos Brasileiros – Seção Porto Alegre. Ano 20, v. 1, n. 22, p.113-123.
202) CROCETTI, Zeno Soares. AGB: Desejos de transformação. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 125-132.
203) CHAVES, Manoel R., MESQUITA, Helena A. da, MENDONÇA, Marcelo R. Inserção,
crítica e intervenção na realidade: a AGB e a Geografia em Catalão – GO. Ano 20, v. 1, n. 22,
p. 133-143.
204) ALENTEJANO, Paulo Roberto R. AGB-Rio: 68 anos de história. Ano 20, v. 1, n. 22,
p. 145-152.
205) FONSECA, Valter Machado da. A história da AGB – Uberaba (MG) e a perspectiva de
construção de um pólo do pensamento geográfico no Triângulo Mineiro. Ano 20, v. 1, n. 22,
p. 153-160.
206) ROMANCINI, Sônia R., SILVESTRI Magno. Trajetória histórica e perspectivas da AGB
– Seção Local Cuiabá. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 161-168.
207) GOMES, Horieste. Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Goiânia. Ano 20, v. 1,
n. 22, p. 169-176.
208) ANTUNES, Charlles da França. AGB-Niterói: notas de um começo de história. Ano 20, v.
1, n. 22, p. 177-189.
209) Diretoria Executiva da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Bauru. O trabalho
técnico-político-pedagógico da Associação dos Geógrafos Brasileiros na Seção Local Bauru –
AGB/Bauru. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 189-195.
210) RODRIGUES, Arlete Moysés. Contribuição da AGB na construção da Geografia Brasileira: uma outra Geografia sempre é possível. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 199-209.
211) ANDRADE, Manuel C. De. A AGB – 1961/62 – Um depoimento. Ano 20, v. 1, n. 22,
p. 211-212.
212) ALEGRE, Marcos. Os setenta anos da AGB 1934 – 2004. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 213-230.
213) ALVES, William Rosa. A permanente busca do horizonte: a história da AGB-BH. Ano 20,
v. 1, n. 22, p. 231-255.
214) RODRIGUES, Renata M. de A. Estudos de Impacto Ambiental e o perfil do geógrafo.
Ano 20, v. 1, n. 22, p. 237-248.
215) ELIAS, Denise, RODRIGUES, Renata M. de A. Os presidentes da Associação dos
Geógrafos Brasileiros. Ano 20, v. 1, n. 22, p. 251-260.
216) BENKO, Georges. Murano et les verries: um district industriel pas comme les autres.
Ano 20, v. 2, n. 23, p. 15-34.
217) HAESBAERT, Rogério. Precarização, Reclusão e “exclusão” territorial. Ano 20, v. 2, n.
23, p. 35-51.
218) GOETTERT, Jones Dari. “Lúcia Gramado Kaigang”: como me redescobri na Serra Gaúcha. Ano 20, v. 2, n. 23, p. 53-74.
219) REFFATTI, Lucimara Vizzotto, REGO, Nelson. Representações de mundo, geografias
adversas e manejo simbólico – proximações entre clínica psicopedagógica e ensino de Geografia. Ano 20, v. 2, n. 23, p. 75-85.
220) SILVEIRA, María Laura. Escala geográfica: da ação ao império? Ano 20, v. 2, n. 23,
p. 87-96.
221) LIMA, Luiz C., MONIÉ, Frédéric, BATISTA, Francisca G. A nova geografia econômica
mundial e a emergência de um novo sistema portuário no Estado do Ceará: o Porto do Pecém.
Ano 20, v. 2, n. 23, p. 97-109.
222) KAWAKUBO, Fernando S., MORATO, Rúbia G., CORREIA JUNIOR, Paulo A.,
LUCHIARI, Ailton. Utilização de imagens híbridas geradas a partir da transformação de IHS
e aplicação de segmentação no mapeamento detalhado do uso da terra. Ano 20, v. 2, n. 23,
p. 111-122.
244
Terra Livre - n. 31 (2): 235-348, 2008
223) SCOLESE, Eduardo. De FHC a Lula: manipulações, números, conceitos e promessas de
reforma agrária. Ano 20, v. 2, n. 23, p. 123-138.
224) OLIVEIRA, Ivanilton José de. Sustentabilidade de sistemas produtivos agrários em paisagens do cerrado: uma análise no município de Jataí-GO. Ano 20, v. 2, n. 23, p. 139-159.
225) GADE, Daniel W. Geografia: leituras culturais (Resenha). Ano 20, v. 2, n. 23, p. 163-164.
226) CLAVAL, Paul. Geografia: leituras culturais (Resenha). Ano 20, v. 2, n. 23, p. 1165-167.
227) CLAVAL, Paul. The nature and scope of Political Geography. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 13-28.
228) VLACH, Vânia R. F. Entre a idéia de território e a lógica da rede: desafios para o ensino
de Geografia. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 29-41.
229) AUED, Idaleto M.; ALBUQUERQUE, Edu Silvestre de O método de desconstituição do
capital e a Geografia. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 43-60.
230) HASSLER, Márcio L. Áreas de proteção ambiental e unidades territoriais de planejamento na porção leste da região metropolitana de Curitiba. Ano 21, v. 1, n. 24, p.
61-75.
231) MORETTI, Edvaldo C.; LOMBA, Gilson K. Precarização do trabalho e territorialidade
da
atividade
turística
em
Bonito-MS.
Ano
21,
v.
1,
n.
24,
p. 77-99.
232) SOUSA, Givaldo V. de; DUTRA JUNIOR, Wagnervalter. O imaginário social e território
no distrito de José Gonçalves – BA. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 101-117.
233) GIL FILHO, Sylvio F. Geografia da religião: o sagrado como representação. Ano 21, v. 1,
n. 24, p. 119-133.
234) SUERTEGARAY, Dirce M. A. ; VERDUM, Roberto ; BELLANCA, Eri T. ; UAGODA,
Rogério S. Sobre a gênese da arenização no Sudoeste do Rio Grande do Sul. Ano 21, v. 1, n. 24,
p. 135-150.
235) HENRIQUE, Wendel. Proposta de periodização das relações sociedade-natureza: uma
abordagem geográfica de idéias, conceitos e representações. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 151-175.
236) PINHEIRO, Antonio C. Tendências teórico-metodológicas e suas influências nas pesquisas acadêmicas sobre o ensino de Geografia no Brasil. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 177-191.
237) CUSTODIO, Vanderli. Inundações no espaço urbano: as dimensões natural e social do
problema. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 193-210.
238) LORENTE, Silvia Díez. Propuesta metodológica y conceptual para el estudio de los Riesgos
Naturales: la situación en España. Ano 21, v. 1, n. 24, p. 211-230.
239) SEEMANN, Jörn. Geografia: ciência do complexus: ensaios transdisciplinares (Resenha). Ano 21, v. 1, n. 24, p. 233-236.
240) PINHEIRO, Antonio C. Ensinar geografia: o desafio da totalidade-mundo nas séries
iniciais (Resenha). Ano 21, v. 1, n. 24, p. 237-241.
241) ELIAS, Denise; PEQUEÑO, Renato. Espaço urbano no Brasil agrícola moderno e desigualdades socioespaciais. Ano 21, v. 2, n. 25, p. 13-33.
242) SERPA, Ângelo. Espaço público, cultura e participação popular na cidade contemporânea. Ano 21, v. 2, n. 25, p. 35-48.
243) FABREGAT, Clemente Herrero. La formación simbólica del profesorado en Geografía.
Ano 21, v. 2, n. 25, p. 49-65.
244) MARANDOLA JR, Eduardo. Arqueologia fenomenológica: em busca da experiência.
Ano 21, v. 2, n. 25, p. 67-79.
245) MIZUSAKI, Márcia Yukari. Mato Grosso do Sul: impasses e perspectivas no campo.
Ano 21, v. 2, n. 25, p. 81-93.
246) CARVALHO, Márcia S. de. A Geografia da Alimentação em frente pioneira (LondrinaParaná). Ano 21, v. 2, n. 25, p. 95-110.
247) CARVALHO, Antônio Alfredo Teles de. Josué de Castro - entre o ativismo e a ciência, a
introdução da Geografia da Fome na história do pensamento geográfico no Brasil. Ano 21, v.
2
,
n. 25, p. 111-120.
248) IORIS, Antônio A. R. Água, cobrança e commodity: a Geografia dos Recursos Hídricos
no Brasil. Ano 21, v. 2, n. 25, p. 121-137.
249) SOUZA, Bartolomeu Israel de; SUERTEGARAY, Dirce Maria Antunes. Contribuição ao
debate sobre a transposição do Rio São Francisco e as prováveis conseqüências em relação a
desertificação nos Cariris Velhos (PB). Ano 21, v. 2, n. 25, p. 139-155.
245
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES
250) CASTRO, João Alves de. Tantos cerrados: múltiplas abordagens sobre a biodiversidade e
singularidade sociocultural (Resenha). Ano 21, v. 2, n. 25, p. 159-162.
251) CHASE, Jacquelyn. Colapso: como sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso (Resenha). Ano 21, v. 2, n. 25, p. 163-166.
252) OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A Amazônia e a nova geografia da produção da soja.
Ano 22, v. 1, n. 26, p. 13-43.
253) SILVA, Sílvio Simione da. Camponeses da floresta: apontamentos para a compreensão
da diferenciação dos trabalhadores seringueiros do campesinato acreano. Ano 22, v. 1, n. 26,
p. 45-61.
254) CRUZ, Valter do Carmo. R-existências, territorialidades e identidades na Amazônia.
Ano 22, v. 1, n. 26, p. 63-89.
255) NOGUEIRA, Amélia Regina Batista. A geograficidade dos comandantes de embarcação
no Amazonas. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 91-108.
256) SZLAFSZTEIN, Claudio.; STERR, Horst.; LARA, Rubén. Estratégias e medidas de proteção contra desastres naturais na zona costeira da região amazônica, Brasil. Ano 22, v. 1, n.
26, p. 109-125.
257) CAMPOS, Agostinho C.; CASTRO, Selma S. de. Unidades de Conservação, a importância dos parques e o papel da Amazônia. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 127-141.
258) ROCHA, Genylton O. R. da; AMORAS, Izabel C. R. O ensino de geografia e a construção
de representações sociais sobre a Amazônia. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 143-164.
259) COSTA, Maria A. F.; RIBEIRO, Willame de O.; TAVARES, Maria G. da C. Entre a valorização da diversidade humana e a negação da historicidade sócio-espacial: o que pode o
ecoturismo na Amazônia? Ano 22, v. 1, n. 26, p. 165-175.
260) TRINDADE JR, Saint-Clair C. da. Grandes projetos, urbanização do território e
metropolização na Amazônia. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 177-194.
261) BRITO, Lílian S. A.; COSTA, Léa M. G. Estratégias de desenvolvimento regional para a
Amazônia pós-1950: lições do passado, possibilidades do futuro. Ano 22, v. 1, n. 26, p. 195-205.
262) SILVA, José Borzacchiello da. La fabrication du Brasil: une grande puissance en devenir
(Resenha). Ano 22, v. 1, n. 26, p. 209-210.
263) ALEGRE, Marcos. Os setenta anos da AGB-1934-2004 (Depoimento). Ano 22, v. 1, n. 26,
p. 213-221.
264) MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo. Aziz Nacib Ab’Saber – geógrafo brasileiro.
Ano 22, v. 2, n. 27, p. 15-30.
265) VITTE, Claudete de Castro Silva. Integração, soberania e território na América do
Sul: um estudo da IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul- Americana). Ano 22, v. 2, n. 27, p. 31-48.
266) GÓES, Eda; ANDRÉ, Luis André. Violência e fragmentação: dimensões complementares
da realidade paulistana. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 49-68.
267) ANTUNES, Ricardo. Perenidade e superfluidade do trabalho: alguns equívocos sobre a
desconstrução do trabalho. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 71-84.
268) MASSEY, Doreen. Travelling thoughts / Pensamentos itinerantes. Ano 22, v. 2, n. 27, p.
85-92 / 93-100.
269) LINDÓN, Alicia. Os hologramas sócio-espaciais e o constructivismo geográfico. Ano 22,
v. 2, n. 27, p. 101-120.
270) NUNES, João Osvaldo Rodrigues; SANT’ANNA NETO, João Lima; TOMMASELLI, José
Tadeu Garcia; AMORIM, Margarete Cristiane de Costa Trindade; PERUSI, Maria Cristina. A
influência dos métodos científicos na Geografia Física. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 121-132.
271) HESPANHOL, Antonio Nivaldo; HESPANHOL, Rosangela Aparecida de Medeiro. Dinâmica do espaço rural e novas perspectivas de análise das relações campo-cidade no Brasil.
Ano 22, v. 2, n. 27, p. 133-148.
272) FERREIRA, Maria da Glória Rocha. (Re)organização do espaço a partir da produção de
soja: Balsas-MA. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 149-164.
273) QUEIROZ FILHO, Alfredo Pereira de. Considerações sobre a interatividade na Cartografia. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 165-184.
274) NUNES, Flaviana Gasparotti. A importância do econômico na Geografia atualmente:
algumas questões para o debate. Ano 22, v. 2, n. 27, p. 185-196.
275) REOLON, Cleverson Alexsander; SOUZA, Edson Belo Clemente de. Reestruturação só-
246
Terra Livre - n. 31 (2): 235-348, 2008
cio-espacial: as estratégias espaciais de ação adotadas pelas empresas do Paraná. Ano 22, v.
2, n. 27, p. 197-210.
276) FERRAZ, Cláudio Benito O. Geografia de exílio (resenha). Ano 22, v. 2, n. 27, p. 213-216.
277) Manuel Correia de Andrade, Correinha: (Terra e) Homem do Nordeste. Jones Dari Goettert.
Ano 23, v. 1, n. 28, p. 15-26
278)A Geografia escolar: gigante de pés de barro comendo pastel de vento num fast food?
Nestor André Kaercher. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 27-44.
279) Ensino de Geografia, Mídia e Produção de Sentidos. Iara Guimarães. Ano 23, v. 1, n. 28,
p. 45-66.
280) O Raciocínio na era das Tecnologias Informacionais. Valdenildo Pedro da Silva. Ano 23,
v. 1, n. 28, p. 57-90.
281) Lugar e Cultura Urbana: Um Estudo Comparativo de Saberes Docentes no Brasil. Helena Copetti Callai; Lana de Souza cavalcanti; Sonia Maria V. Castellar. Ano 23, v. 1, n. 28, p.
91-108.
282) O Lugar da escola na Cidade: A Escola Normal da Parahyba no início do século XX.
Carlos Augusto de Amorim Cardoso. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 109-128.
283) O ensino de Geografia nas séries iniciais do Ensino Fundamental: uma análise dos
descompassos entre a formação docente e as orientações das políticas públicas. Maria Cleonice
B. Braga. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 129-148.
284) Estudos em Geografia: Um desafio para o Licenciando em Pedagogia. Marcea Andrade
Sales. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 149-162.
285) Ensino e pesquisa: refletindo sobre a formaçãoprofissional em Geografia pautada no
desenvolvimento da competência investigativa. Ana Maria Radaelli da Silva; Juçara Spinelli.
Ano 23, v. 1, n. 28, p. 163-176.
286) A Geografia, a educação e a construção da ideologia nacional Rogata Soares del Gáudio;
Rosalina Batista Braga. ANO 23, V. 1, N. 28, P. 177-196.
287) A Ideologia nos Livros Didáticos de Geografia Durante o Regime Militar no Brasil. Edinho
Carlos Kunzler; Carme R. F. Wizniewsky. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 197-220.
288) A educação docente: (re)pensando as suas práticas e linguagens. Ângela Massumi Katuta.
Ano 23, v. 1, n. 28, p. 221-238.
289) A Educalçao Ambiental como Possibilidade de Unificar Saberes. Graça Aparecida Cicillini;
Sandra Rodrigues Braga; Walter Machado da Fonseca. Ano 23, v. 1, n. 28, p. 239-256.
290) Saberes e Práticas na Construção de Sujeitos e Espaços Sociais: Educação, Geografia,
Interdisciplinaridade. Cláudia Luiza Zeferino Pires (resenha). Ano 23, v. 1, n. 28, p. 259-261.
247
COMPÊNDIO DOS NÚMEROS ANTERIORES
248
Título
Preparação de originais
e revisão de textos
Arte final da capa
Editoração eletrônica
Formato
Tipologia
Papel
Número de páginas
Tiragem
impressão
LEITURAS GEOGRÁFICAS:
multiplicidade de olhares
Edvaldo César Moretti
Marise Massem Frainer
Tiago Bassani Rech
18x26
Century
Sulfite 75g
249
300 exemplares
Solidus Gráfica e Editora
([email protected])
249
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continuidade - Associação dos Geógrafos Brasileiros