REGISTROS EM LIVROS DE OCORRÊNCIA DAS ESCOLAS PÚBLICAS DE CIDADES LOCALIZADAS A LESTE DE MINAS GERAIS: UMA ANÁLISE DOCUMENTAL Kelly Aparecida do Nascimento; Celeste Aparecida Dias e Sousa; Inês Aparecida de Sousa Azevedo Grupo de Pesquisa Infância e compromisso da sociedade Centro Universitário de Caratinga - UNEC [email protected] INTRODUÇÃO Infância e Compromisso da Sociedade é um grupo de pesquisa e ações de responsabilidade social do Centro Universitário de Caratinga – UNEC, que vem investigando e realizando intervenções com crianças e adolescentes em situação de risco social, em parceria com instituições filantrópicas da cidade. Entre tais intervenções, o grupo mantém um fórum de discussões permanentes sobre o assunto – Infância em foco –, e vem realizando pesquisa junto às instituições que trabalham diretamente com a criança e o adolescente, tais como Escolas, Superintendência Regional de Ensino, Conselhos Tutelares, Instituições filantrópicas e Vara da Infância e Juventude. Logo, o grupo trabalha com a pesquisa como princípio educativo (DEMO, 2001), isto é, a serviço do planejamento de novas ações. Entre as pesquisas realizadas pelo grupo, a que investiga as delimitações das identidades de comportamentos infracionais e indisciplinares parece um dos objetos de estudo de maior desafio dos profissionais da educação básica. Quando os alunos das escolas públicas e particulares de educação básica brasileira apresentam comportamentos considerados inadequados pelos profissionais que nelas atuam, são feitos registros descritivos de tais atos em um caderno, geralmente de capa preta destinado a atas, denominado por todos de Livro ou Caderno de Ocorrências. Há alunos que o chamam simplesmente de caderno de capa preta, evidenciando que a cor preta tem um significado relativo à indisciplina. Apesar de a sociedade brasileira ter passado por profundas mudanças de paradigmas nas relações de convivência nos últimos 20 anos, influenciadas por fatores nacionais e internacionais, a utilização desse caderno para registros de um fenômeno tão complexo do cotidiano escolar, qual seja o comportamento considerado indisciplinar, parece ter se naturalizado de tal forma que professores, diretores e equipe pedagógica não fazem questionamentos a respeito da funcionalidade (re)educativa em relação a esse tipo de intervenção feita aos atos indisciplinares. Esses profissionais desenvolveram a tradicional prática de registro descritivo e assinatura dos envolvidos no ato, como se apenas tal registro representasse alguma medida para minimização ou superação da indisciplina na escola. E mais, sem, sequer, se questionarem sobre a validade e a legalidade desses registros, diante dos novos documentos norteadores da ação educativa, produzidos nessas duas últimas décadas. Após a Constituição de 1988, mais especificamente após a lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que aprova o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as escolas de educação básica tiveram que rever a natureza de suas sanções disciplinares regimentais, substituindo as punições de natureza constrangedora e/ou humilhante por medidas de prevenção e sócio-educativas (ECA, artigo 232), obrigatoriamente em parceria com órgãos superiores no sistema educacional e os específicos de proteção à criança e ao adolescente: Conselhos Tutelares e Conselhos Municipais de Direito da Criança e do Adolescente. Analisando o comportamento de pessoas que atendem a crianças e adolescentes, torna-se possível identificar a coerência entre as atitudes manifestadas por elas em relação à filosofia reeducativa preconizada pelo ECA. Portanto, o objetivo geral desse estudo foi verificar a utilidade do livro de ocorrência nas escolas públicas para o encaminhamento dos atos de indisciplina e de infração pelos profissionais da educação. E o objetivo específico identificar a reincidência dos tipos de comportamentos de crianças e adolescentes que motivam os profissionais da educação, de escolas públicas, a registrálos nos livros de ocorrência e a natureza das punições aplicadas. Para se atender ao estabelecido no ECA, torna-se necessária a discussão a respeito do significado e das diferenças conceituais entre atos de infração e de indisciplina; punição e sanção; medidas sócio-educativas e medidas que se caracterizam por humilhação e situação constrangedora. Tais diferenças conceituais pautam-se nas diferenças filosóficas expressas em comportamentos oriundos das concepções autoritária e democrática das relações de convivência na sociedade. Acreditamos que este estudo contribuirá para os profissionais da escola, especialmente o pedagogo, refletirem sobre a (in)utilidade deste instrumento que, da forma que tem sido usado, além de não evidenciar qualquer tipo de acompanhamento pedagógico permanente do comportamento dos alunos advertidos, não provoca nenhuma transformação de atitude que contribua para o desenvolvimento da autonomia moral e intelectual deste educando. METODOLOGIA Este estudo documental de análise de conteúdo dos registros de atos indisciplinares feitos nos últimos 04 anos, em livros de ocorrências, está sendo realizado em escolas públicas estaduais e municipais que atendem a crianças e adolescentes 1 de ensino fundamental e médio de quatorze (14) cidades localizadas a leste de Minas Gerais que compõe um pólo de organização regional, cujo conjunto é liderado por uma cidade de porte médio. A opção pela pesquisa do tipo documental deve-se ao fato de ela oferecer fontes diversificadas e dispersas mais do que as da pesquisa bibliográfica. Conforme Gil (1991), 1 Ao referirmos à criança estamos considerando a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescentes aquelas entre doze e dezoito anos de idade, conforme definido no artigo 2º do ECA. na pesquisa documental existem os documentos de primeira mão, ou seja, aqueles que não receberam nenhum tratamento analítico tais como os documentos conservados em órgãos públicos e instituições privadas, e os documentos de segunda mão que de alguma forma já foram analisados tais como: relatórios de pesquisa; relatórios de empresas; tabelas estatísticas e outros. ( GIL, 1991, p.224) Lüdke (1986, p. 38) afirmam que, "a análise documental pode se constituir numa técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja complementando as informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema". A coleta dos dados está sendo feita a partir de visitas in loco de componentes do grupo de pesquisa às escolas localizadas na zona urbana e na zona rural (córregos, povoados e distritos) das cidades. A solicitação verbal a funcionários da direção da escola é acompanhada de leitura esclarecedora do objetivo da pesquisa, presente no termo de consentimento livre e esclarecido. Foram incluídas as escolas que aceitaram participar da pesquisa e assinaram o referido termo. Na fase em que se encontra a pesquisa, foi incluída a análise de livros de ocorrência de escolas localizadas na zona urbana de apenas cinco (05) cidades e algumas variáveis não foram consideradas, por não serem relevantes para efeito do objetivo proposto para esse artigo. Entretanto, enfatizamos que tais variáveis estão sendo levantadas para outras investigações que vêm sendo realizadas pelo grupo de pesquisadores. Não consideramos a classificação dos registros por turno, para as escolas que funcionam em turnos diurno e noturno, uma vez que os relatos não dão essa informação. Também a proporção entre a quantidade de casos relatados nos cadernos de ocorrência e a quantidade total de alunos de cada escola não foi considerada. Tampouco consideramos as séries a que se referem os relatos dos casos, pois muitos deles não as identificam. E ainda, não fizemos levantamento de reincidências de registros de comportamentos dos mesmos alunos, nem identificamos a origem sócio-econômica e cultural deles, pois esses dados constituem base para responder à seguinte questão, específica de uma outra pesquisa que está em sua fase inicial: quem são os alunos cujos atos indisciplinares são registrados nos livros de ocorrência? Foram excluídos os casos registrados que não se caracterizavam possível indisciplina e infração, tais como casos de alunos evadidos temporariamente e que resolveram retornar à escola ou textos que expressam desabafo de profissionais em situação de crise com a profissão. A organização dos dados iniciou com uma primeira leitura das ocorrências coletadas, da qual emergiram variáveis para a elaboração de um formulário de registro quantitativo dos dados organizados nos seguintes itens: motivos que desencadearam os registros nos livros de ocorrência; quem encaminhou para fazer a ocorrência, que profissionais os registrou; que tipos de encaminhamentos foram feitos; o lugar ocupado pelos pais ou responsáveis nesses encaminhamentos; análise do tipo de texto escrito: presença dos elementos textuais de um texto descritivo, linguagem utilizada, presença da voz dos alunos no relato do caso, posicionamento do escrevente do caso diante do ato indisciplinar e compromisso dos profissionais da escola em relação a tomadas de decisão no acompanhamento do aluno indisciplinado. Após a elaboração desse formulário, foram contados todos os casos registrados em cada um dos livros de ocorrência, computados por cidade, 2 considerando-se as datas do período de registro inicial e final, em seguida somada a quantidade total dos casos, conforme o quadro a seguir: Nº 1. 2. 3. 4. 5. MUNICÍPIO C. E.C. S.B. S.R. T. TOTAL Nº DE OCORRÊNCIAS 266 10 37 88 55 456 PERÍODO ±3 meses ±2 meses ±12 meses ±4 meses ±13meses PROPORÇÃO MENSAL 87 5 3 22 5 Na terceira fase de tratamento dos dados, foi feita uma segunda leitura dos registros de ocorrência para rastreamento das variáveis colocadas no formulário elaborado. Ao cumprir essa fase, a leitura nos permitiu anotar algumas categorias para análise qualitativa dos dados. Preenchido o formulário, optamos por fazer apenas a análise estatística em percentual simples, por se tratar de um estudo descritivo exploratório, de onde outros estudos mais profundos serão feitos pelo grupo. Registros nos livros de ocorrências: para que servem? Marcados predominantemente pela escrita de termos da linguagem policial - tais como pena, acusado, testemunha, vítima, delito, perturbação da ordem -, os registros dos livros de ocorrência parecem evidenciar uma lógica judiciária. O nome atribuído a este documento remete-nos a uma associação aos boletins de ocorrência das delegacias de polícia. Entretanto, a estruturação das narrativas apresenta dados precários de identificação dos alunos envolvidos, narra também precariamente, o ato indisciplinar ou infracional e a maioria dos registros traz a assinatura dos envolvidos. E ainda, raramente, registram indícios ou provas, marcas físicas das agressões, testemunhos, confissões, dentre outros, indispensáveis nos relatos policiais. Os registros nos livros de ocorrência são escritos predominantemente, por pedagogos e diretores e, em menor proporção, por auxiliares de secretaria ou pelo próprio professor, a partir de uma escrita que eterniza a veracidade unilateral dos fatos narrados de forma parcial e tendenciosa, sem provas disponíveis e com penas cabíveis determinadas, nesse caso, por pessoas revestidas de poder instituído. A descrição do caso do aluno K. da segunda série, que agrediu alunos da 3ª série em suas aulas de Educação Física e respondeu a professora evidencia essa tendenciosidade. Segundo uma pedagoga da escola, o aluno já foi advertido diversas vezes, nos últimos dias. “No início da aula não queria ficar dentro da sala e culpou os colegas pelo desaparecimento de sua bolsa de lápis. Fica então o aluno suspenso de Educação Física e recreio por uma semana”. 2 Os nomes das cidades foram registrados apenas através de suas iniciais, a fim de se preservar suas identidades e, conseqüentemente, as identidades dos profissionais e alunos que atuam nas escolas nelas localizadas. Segundo Ratto (2002), essas pessoas desempenham o papel de juízes, promotores e jurados, definindo, em última instância, o que ocorreu e ao que será submetido o “aluno-réu” com o agravante de que, no caso do material analisado, esse não teve o direito de uso da voz, sequer para contar sua versão dos fatos, como nas ocorrências policiais. De 328 casos descritos em livros de ocorrências de cinco escolas, apenas 03 tinham um breve relato descrito do histórico da situação. Os registros das ocorrências feitas em todos os livros analisados apresentam narrativas escritas de forma pontuais e isoladas, não descrevem o histórico do conteúdo e da forma que desencadeou tal comportamento desde seu início, nem evidenciam a diversidade de comportamentos e de expressões verbais e fisionômicas dos envolvidos no fenômeno indisciplinar relatado. Os relatos apenas explicitam os encaminhamentos indicados pelos escreventes, apresentando a decorrente pena como a providência tomada pela escola. Não há presença de relatos inter-relacionados que expressem a historicidade dos atos indisciplinares e o acompanhamento de um trabalho reeducativo com os alunos que os cometem. E ainda, em nenhum dos cadernos há registros de ações contínuas dos profissionais da educação visando a medidas sócio-educativas de atos indisciplinares. Há, portanto, evidências explícitas de que também as ações das escolas têm sido pontuais e isoladas, assim como os registros. Seja na forma da providência imediata, ou na forma de ameaças de suspensão, para casos que podem tornar-se reincidentes, esses profissionais da educação parecem acreditar que, agindo dessa forma, estão encaminhando os casos de alunos, cujos comportamentos interferem na qualidade dos trabalhos escolares. Além disso, pela forma como os profissionais da educação registram o encaminhamento dos atos, evidencia-se que situações aparentemente simples e contornadas sem maiores alardes parecem transformar-se em situações muito conflituosas, pela forma de condução das mesmas. Um professor de Matemática de série indeterminada solicitou intervenção da diretora porque uma aluna havia dito a ele que um colega tinha jogado um besouro nela. Segundo a diretora, que descreveu a ocorrência, com sua chegada à sala, o aluno se exaltou e falou palavras de baixo escalão, ofendendo a colega e faltando com respeito à diretora, ao professor e aos demais alunos. Esse aluno foi suspenso das aulas por um período de três dias. Não estamos fazendo apologia a alunos que praticam atos indisciplinares e sim discutindo a forma como os profissionais da educação intervêm e encaminham tais atos. Ratto (2002, p.102) afirma que os livros de ocorrência “parecem fazer parte de um movimento que busca absolver-nos através da culpabilização do outro, tendo em vista que os critérios de julgamento ficam reduzidos ao simplismo da exclusão recíproca das duas balizas de valoração, sintetizadas nas grandes figuras do Bem e do Mal”. Esses livros de ocorrência funcionam como prova tanto do ponto de vista interno como externo. No primeiro caso como instrumento de controle e direcionamento das condutas indisciplinares ou infratoras dos alunos. No âmbito externo, serve para proteger a escola de possíveis acusações de negligência ou irresponsabilidade. O instrumento age no sentido de comprovar a culpabilidade dos alunos e a inocência da escola. A culpa fica implícita, na maioria das vezes a causa não é investigada, como se nesse ritual não houvesse espaço para a defesa das crianças e dos adolescentes. Tantos casos de ocorrência de atos indisciplinares registrados nos cadernos de ocorrência, meramente por funções burocráticas da equipe pedagógica e administrativa das escolas. As únicas decisões tomadas são de natureza arbitrária e meramente punitiva, não se caracterizando por medidas sócio-educativas, tampouco cumprindo as funções escolares de acompanhamento contínuo e permanente do desenvolvimento do comportamento dos alunos. A forma de registrar as ocorrências delineia o perfil da cada escola. As reincidências parecem enfatizar a preocupação e o incômodo dos profissionais de cada escola sempre a partir dos mesmos motivos. Assim, estes registros parecem estar arraigados à subjetividade dos profissionais que atuam em cada uma dessas Instituições. Atos de indisciplina e de infração: diálogos entre a escola e o ECA O ato infracional, em obediência ao princípio da legalidade, somente se verifica quando a conduta do infrator se enquadra em algum crime ou contravenção previsto na legislação em vigor (FERREIRA, 2006; RIBAS, 2006). Entende-se por crime o produto da conduta humana contrária à lei penal, sendo expressamente prevista por ela. Por contravenção entende-se os crimes de menor importância, em que as penas principais são a prisão simples e a multa (COTRIM, 1997). Logo, o ato infracional se diferencia da indisciplina, pois essa é concebida como atitude que compromete a convivência democrática e ordeira do ambiente escolar, portanto, é de responsabilidade da escola. (RIBAS, 2006). Questionamos, portanto, se os atos cometidos pelos alunos que os profissionais da educação estão considerando motivos para registro nos livros de ocorrências das escolas caracterizam-se apenas por indisciplina ou também por infração. A forma a-histórica como esses atos estão registrados nos impedem de analisá-los, já que um mesmo ato pode ser considerado como de indisciplina ou infracional, dependendo do contexto em que foi praticado. Uma ofensa verbal dirigida ao professor pode ser caracterizada como ato de indisciplina. No entanto, dependendo do tipo de ofensa e da forma como foi dirigida, pode ser caracterizada como ato infracional – ameaça, injúria ou difamação. E para cada caso, os encaminhamentos são diferentes (FERREIRA, 2006, p.07). No entanto, a análise do conteúdo dos registros identificados possibilita caracterizar, minimamente, os atos indisciplinares que vêm sendo cometidos pelos alunos e, dependendo das circunstâncias, esses atos também podem ser considerados infracionais. O quadro seguinte apresenta a lista de incidência desses atos. Nº MOTIVOS DOS REGISTROS EM LIVROS DE OCORRÊNCIAS CIDADES C EC SB SR T TO TAL 1. 2. 3. 4. 1 5 - 6 4 5 3 11 6 11 - 35 13 10 1 16 3 14 2 69 26 45 6 1 1 6 20 10 38 - 3 - - 1 - 4 3 8 3 8. Matar aulas Perturbação dos colegas Agredir colegas fisicamente Agredir colegas verbalmente Agredir verbalmente a professores (ou diretores), diante de chamamento de atenção a comportamentos inadequados. Não cumpre regras estabelecidas pela direção Gestos imorais (obscenos) Passar a mão no corpo da colega (sexo e sexualidade) - 7 - - - 7 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. Não faz tarefa Alunos chegam atrasados na escola Não participar da aula, apesar de estar em sala. Depredação de bens públicos: carteira da sala. Gritar em sala de aula “Desacato” ao professor Aluno sem uniforme Não participa da aula sem estar com livro didático. 1 - 3 8 5 2 2 2 1 1 - 8 1 1 2 - 1 3 3 3 - 8 6 13 5 6 3 2 2 5. 6. 7. - Mesmo que os atos indisciplinares identificados nas cinco escolas não informem os acontecimentos detalhadamente, de forma a caracterizar explicitamente, atos infracionais, alguns podem se constituir em crimes previstos no código penal brasileiro (decreto-lei nº 2.848) e na lei de contravenção penal (decreto-lei nº 3.688). Entre aos atos descritos no quadro anterior e que se enquadram nessas leis, podemos citar: agressões físicas a colegas (agressão física, art. 129 – código penal); agressões verbais a professores e colegas (dos crimes contra a honra, art. 138, 139, 140 – código penal); gritar na sala de aula (perturbação do trabalho ou sossego alheios, art. 42, inc.I – contravenção penal); perturbação dos colegas (perturbação da tranqüilidade, art. 65 – contravenção penal) e depredação de bem público (do dano, art. 163, parágrafo único, inc.III – código penal). Estes são alguns exemplos de maior incidência no cotidiano escolar que evidenciam a possibilidade de os atos indisciplinares serem considerados atos infracionais. Pode ser considerada ato infracional, a conduta indisciplinar da criança ou adolescente que se amoldar a um dos tipos penais previstos no Código Penal ou na lei de contravenções, embora esses atos se diferenciem por uma linha muito tênue e dependem da análise de cada caso posto a exame pelo Ministério Público. Logo, o conhecimento da legalidade da conduta humana pelos profissionais da educação e pelos alunos pode melhor definir as relações de convivência na escola. Se uma criança ou adolescente comete um ato infracional, deverá ser encaminhado ao Conselho tutelar ou ao juizado da infância e da juventude. Se o ato for indisciplinar a tomada de decisões é da própria escola. De 456 casos de ocorrências registradas nas escolas investigadas, constatamos os seguintes resultados de tomadas de decisão: Cidades Nº 1. Tipos de encaminhamentos para os casos Advertência simples C EC SB SR T 3 2 27 6 35 TO TAL 73 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. Advertência, com ameaça de suspensão Advertência, com ameaça de expulsão Suspensão de todas as aulas tempo determinado Suspensão de todas as aulas por tempo indeterminado. Suspensão de recreio por tempo determinado Suspensão de recreio por tempo indeterminado Suspensão de aulas de Educ. Física. Colocados para fora de sala de aula de algumas disciplinas Mandar pedir desculpas aos colegas agredidos. Conversas envolvendo todos os agressores Aconselhamentos Ameaça de levar para Conselho Tutelar Encaminhamento para promotoria Encaminhamento para polícia TOTAL 1 - 4 3 - 11 1 3 8 1 1 4 37 11 - 4 3 2 1 - 57 4 19 9 1 1 4 - 5 3 5 3 16 1 - 7 - 1 1 - - 5 2 1 - 1 1 13 2 1 1 198 1 Os dados do quadro indicam que houve predominância de advertência escrita com ameaça de suspensão. Decisões como essas contribuem apenas para o aumento da perda de autoridade da escola, diante do fato de prometer e não poder cumpri-las, segundo as leis maiores. Segundo o ECA, as penalidades aplicadas não podem impedir o direito fundamental da criança e do adolescente à educação, previsto na constituição. Entretanto, Müller (2006) afirma que não existe lei proibitiva de suspensão disciplinar. Para este assessor jurídico seria preciso que houvesse uma norma geral da educação nacional que proibisse o exercício disciplinar das escolas, pois não há lei específica que impeça a aplicação de advertência, de suspensões e de transferência compulsória de crianças e adolescentes na escola, embora a Constituição Federal, no caput do art. 227, afirme que é dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988, p.101). Entretanto, o ECA pode ser entendido como a referida lei proibitiva específica, além desse direito constitucional. Por isso alguns setores, tais como o poder público (Legislativo, Judiciário e Executivo) e até mesmo as escolas, difundem a idéia de que o ECA usa de medidas protecionistas em relação a crianças e adolescentes que cometem atos indisciplinares e infracionais (TEIXEIRA, 2003). Como conseqüência, a autora afirma que o ECA acaba enfrentando resistências nas três esferas de poder público e em segmentos da sociedade para os quais a paz pública deve ser garantida com medidas repressivas. Entre os atos protecionistas, até 1990, os regimentos escolares estabeleciam punições disciplinares para os alunos que não se caracterizavam como constrangedoras, mas, a partir do ECA, algumas dessas punições passaram a ser vistas como tal. Seu artigo 232 considera crime as situações em que um profissional da educação submeta uma “criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a constrangimento”. Esse artigo se fundamenta no direito constitucional (art. 5, inc. III-V), que afirma que as sanções não podem acarretar vexame ou constrangimento. Nesse caso, o profissional será responsabilizado criminalmente, cuja pena é detenção de seis meses a dois anos, com a possível condenação ao pagamento de indenização por danos materiais e/ou morais. Vários atos podem causar vexame e constrangimento, depende da forma em que está sendo praticado. Um olhar lascivo do professor para a aluna, chamar o aluno de “burro, ignorante, imbecil, cavalo e porco são exemplos disso. Há de ser levado em consideração os hábitos e costumes do local para constatar se existiu vexame ou constrangimento. No entanto, como destacado anteriormente, não existe uma regra fixa e bem delineada para considerar que um ato possa causar vexame ou constrangimento, pois sempre haverá uma parcela de subjetivismo por parte do Ministério Público. Nesse caso, é pertinente que as partes envolvidas sempre pautem-se no bom senso. Em meio a essa polêmica, o registro de tomada de decisão para atos indisciplinares na escola parece ter se banalizado e, conseqüentemente, seu instrumento de registro, o caderno de ocorrência. Evidências disso é o registro de 57 ameaças de suspensão e 4 de expulsão, em 456 casos analisados. E ainda em 28 casos de suspensão, apenas 1 indicou consulta a órgãos externos às escolas: A diretora consultou a Secretaria de Educação, baseado no artigo 150, art. 156 § 2ª e o art. 160 do Regimento escolar fica registrado que os alunos acima citados estão suspensos por 5 dias. Para isso, chamaram três professoras que relataram os tipos de indisciplinas cometidos por cada um, mas não foram registrados na ocorrência. Apesar da polêmica, o regimento interno ocupa lugar fundamental para a escola solucionar o problema do ato indisciplinar, pois contém as normas para o tratamento cabível e as conseqüências nele previstas. Cada unidade escolar é responsável pela elaboração desse documento, de acordo com suas peculiaridades. Contudo, sua elaboração precisa respeitar as leis maiores a que devem obediência, nesse caso, a Constituição de 1988, o ECA, a LDBEN 9394/1996 e as leis estaduais sobre regimento escolar. A participação na elaboração, como também o conhecimento do Regimento Escolar pelo aluno possibilita à escola zelar pelo seu cumprimento, já que o aluno torna-se coresponsável pelo cumprimento de tais normas. Assim, o ato indisciplinar será caracterizado a partir do descumprimento das regras estabelecidas em coletivo com os alunos. Entretanto, as escolas parecem não ter o regimento como referência e vêm tomando decisões à revelia dele. De 456 casos, 68 estabeleceram suspensão por tempo indeterminado, com retorno às aulas condicionado ao acompanhamento de pais ou responsável, no dia imediatamente após a advertência. As situações a seguir, transcritas dos cadernos de ocorrências evidenciam isso: 1) Se houver reincidência do fato de os alunos não retornarem para a sala de aula junto com professor de Educação Física após conclusão dessa aula, “serão suspensos por tempo indeterminado”. (SB) 2) ... “serão suspensos e voltarão somente com o responsável”. 3) “serão suspensos até que o pai ou RESPONSÁVEL compareça à escola ”. (SB) 4) Diante de uma má resposta da aluna à professora, esta “falou que não aceita a aluna enquanto ela não pedir desculpas. R. só entrará amanhã se vier acompanhada da mãe ou um responsável”. 5) “Os pais dos alunos C e A deverão acompanhá-los, caso contrário, eles não entrarão amanhã”. O desenvolvimento de comportamentos de heteronomia moral e intelectual, subjacentes à decisão de associar o comparecimento dos pais ou responsáveis à continuação de freqüência às aulas pelos alunos advertidos pelos seus atos de indisciplina torna-se uma preocupação. Estudiosos desse tipo de comportamento, tal como Piaget (1977), afirma que dele resultam pessoas apenas com capacidade de serem controladas por outras forças fora de si, por não desenvolverem o autocontrole de seu próprio comportamento. É a fase do desenvolvimento moral que se caracteriza pelo surgimento do respeito às regras ditadas por aqueles que têm autoridade na relação com a criança. Dessa forma, não conseguirão construir sociedades democráticas, por não aprenderem a participar, posicionar-se, tomar decisões e se sentirem cúmplices no cumprimento delas. A essência da autonomia é que as crianças e adolescentes tornem-se aptas a tomar decisões por si mesmas, levando em consideração os fatores relevantes para decidir e agir da melhor forma possível para todos (KAMII, 1993). Piaget (1977) fez uma distinção importante entre punição e sanção por reciprocidade. Quando a criança é submetida a uma situação completamente arbitrária e sem relação com o ato cometido por ela existe uma punição. Já as sanções por reciprocidade estão diretamente relacionadas com o ato que se deseja sancionar. As punições, especialmente a partir da utilização de recompensas e de castigos, reforçam o desenvolvimento de crianças heterônomas, enquanto as sanções, ao oferecer a possibilidade de escolha e tomada de decisões, favorece o desenvolvimento da autonomia (KAMII, 1993). As sanções disciplinares, portanto, não são proibidas e podem ser aplicadas pela escola. As escolas, ao transferir para os pais a responsabilidade de pensar e tomar decisões sobre o comportamento dos filhos, estão contribuindo para formar pessoas que só serão geridas por outras, possivelmente, as que detêm outras formas de poder, como o econômico e o político, no caso da sociedade capitalista ocidental. Dos 456 casos, apenas um encaminhamento fundamentou-se no diálogo e no direito de uso da voz pelos agressores. Todos os tipos de encaminhamentos dados pelas escolas investigadas caracterizam-se medidas sócio-educativas, segundo o artigo 112 do ECA, embora ele determine que a aplicação dessas medidas seja de competência dos órgãos que lidam diretamente com a criança e o adolescente infrator, o que não é o caso da escola. O ECA determina ainda que, “na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se àquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários” (art.100, p. 37). Embora essa lei não defina o que entende por medidas sócio-educativas, elas refletem concepções de educação, dependendo da forma como são aplicadas, logo, caracterizam-se pela formação de um determinado tipo de cidadão. Segundo a concepção de educação sócio-histórica, medidas punitivas definidas de maneira unilateral e autoritária produzem pessoas agressivas ou o seu oposto, pessoas excessivamente subservientes, logo dependentes moral e intelectualmente (DIAS e SOUSA, 1999). Como há a prevalência da aplicação de medidas autoritárias pelas escolas, elas estão contribuindo para formar pessoas subservientes. Em vez disso, poder-se-ia fazer avaliação dos componentes pedagógico, saúde mental e social, de forma a apurar as necessidades que, porventura, as crianças e os adolescentes apresentem e, em seguida, encaminhá-los aos órgãos competentes para serem assistidos por programas de orientação e acompanhamento adequados à sua peculiar condição. Considerações Finais Ao iniciarmos este estudo, buscávamos respostas para nossas indagações. Algumas respostas encontramos, mas outras indagações e inquietações foram elaboradas. Mas, isso é positivo, pois a humanidade só caminha se tiver de buscar respostas para suas perguntas (DIAS e SOUSA, 1999). Assim, através dessa pesquisa não tivemos a pretensão de testar teorias, resolver problemas ou anunciar a verdade. Mas, os resultados obtidos apontaram alguns caminhos. Até o momento, identificamos a banalização do livro de ocorrência pelos profissionais da educação, pois os registros são pontuais e isolados, sem evidências de qualquer acompanhamento pedagógico contínuo dos alunos advertidos. Não há indícios de trabalhos educativos que contribuam para o aluno promover a transformação de seu comportamento considerado indisciplinado. Parece haver, portanto, uma possível inversão entre o essencial e o acessório quanto a processos de educação reflexiva do comportamento negligenciado dos alunos, de modo a provocá-los a repensar o próprio jeito de agir e desenvolver habilidades de auto-controle de suas atitudes. A análise evidenciou ainda a predominância de linguagem policial, especialmente em 15 dos 456 casos dos livros de ocorrência investigados. Além disso, constatamos o descaso e a sisudez da escola em relação à utilização desse instrumento de registro de dados escolares que, da forma como está sendo utilizado, se descaracteriza, tomando uma identidade puramente burocrática, perdendo a identidade prevalente que seria a sócio-educativa. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 227, estabeleceu diversos mecanismos que, se corretamente interpretados e aplicados, oferecem condições de garantir cidadania plena a todas as crianças e adolescentes brasileiros, promovendo assim, um processo de transformação social. Como instrumento jurídico, o ECA não organiza as práticas e ações necessárias à sua execução, nem define os conteúdos pedagógicos e terapêuticos a serem utilizados no atendimento dos jovens. Implica, portanto, a utilização de saberes e outras especialidades além da ciência do Direito (TEIXEIRA, 2003). E, na escola, o pedagogo é o profissional que, efetivamente, pode fazer a diferença no processo de sensibilização da comunidade escolar. Tirar essas propostas do papel é uma operação que, além de implicar mudanças no panorama legal dos Estados e Municípios, requer também um corajoso e amplo reordenamento institucional dos órgãos que atuam com as crianças e os adolescentes. Este processo necessita, também, de um esforço concentrado e continuado de capacitação de todo o pessoal dirigente, técnico e auxiliar envolvido diretamente no atendimento à criança e ao adolescente, a fim de implantar novas práticas de atuação e de transformação. Referências Bibliográficas ANDRÉ, Marli E.D.A.; LÜDKE, Menga. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Pedagógica e Un1iversitária, 1986. CÓDIGO PENAL. Decreto-lei nº 2.848 de 07/12/1940, atualizado e acompanhado de legislação complementar. súmulas e índices. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. www.EDUTEC.NET/LEISGERAIS/CB.HTM. Acessado em 05.set.2006. Disponível em: COTRIM, Gilberto Vieira. Direito e legislação: introdução ao direito. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 1997. DEMO, Pedro. Pesquisa: princípio científico e educativo. 8.ed. São Paulo: cortez, 2001. DIAS e SOUSA, Celeste Aparecida. Como tornar-se Professor? Um estudo sobre o Desenvolvimento Profissional de professores a partir das suas experiências na docência. Juiz de Fora, 1999a. 191p. Dissertação de mestrado, Formação de professores - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Lei 8069 de 13 de julho de 1990. Belo Horizonte, Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA/MG, 1995. FERREIRA, Antônio Miguel. A indisciplina escolar e o ato infracional. disponível em: www.pipp.sp.gov.br acessado em: 27.abr.2006. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1991. KAMII, C. A Criança e o Número. Apêndice: A autonomia como finalidade da Educação: Implicações da Teoria de Piaget.12.ed. Campinas: Papirus, 1993. MÜLLER, Jorge Lutz. Eca e indisciplina. Disponível em: www.sinepers.org.br. Acessado em 27.abr.2006. PIAGET, J. : O Julgamento Moral da Criança. São Paulo: Mestre Jou, 1977. RATTO, Ana Lúcia Silva. Cenários criminosos e pecaminosos nos livros de ocorrência de uma escola pública. Revista Brasileira de Educação, maio/jun/jul, n• 20, 2002. TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. As Histórias de Ana e Ivan: boas experiências de liberdade assistida.São Paulo, Fundação Abrinq, 2003.