REVISTA JURÍDICA DA FACULDADE DE DIREITO – V. 2 – N o. 1 – ANO II ISSN 1980—7430 Biblioteca da Faculdade Dom Bosco — Curitiba EOS — Revista Jurídica da Faculdade de Direito / Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito. — v. 2, n. 1 (jan./ jun. 2008) – . — Curitiba: Dom Bosco, 2008 – . Semestral. ISSN 1980—7430 1. Direito – Periódicos. I. Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito. CDD 340 EOS Revista Jurídica da Faculdade de Direito ISSN 1980—7430 DIRETOR-geral DO GRUPO DOM BOSCO Durval Antunes Filho DIRETOR DO CAMPUS MARUMBY Augusto César Tosin COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO Prof. Msc. Evilásio Gentil de Souza Neto Prof. Msc. Luciano Tinoco Marchesini COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA Prof. Msc. Roggi Attilio Ercole Filho COORDENADORA DO NÚCLEO DE PESQUISA DO CURSO DE DIREITO Profa. Dra. Michele Catherin Arend COORDENADORA DO NÚCLEO DE MONOGRAFIA Profa. Msc. Carmen Pick Schimidt Profa. Dra. Maria Berenice Dias Profa. Dra. Marielda Ferreira Pryjma Prof. Msc. Maurilucio Alves de Souza Prof. Msc. Melina Girardi Fachin Prof. Esp. Robinson Marçal Kaminski Profa. Msc. Romualdo Flávio Dropa Profa. Dra. Rosalice Fidalgo Pinheiro Profa. Msc. Tais Martins Prof. Msc. Walter Guandalini Junior Prof. Dr. Zulmar Fachin JORNALISTA RESPONSÁVEL Verônica Macedo (MTB 2232 / PR) ANÁLISE DE LÍNGUA Portuguesa Bernadete Monteiro Lilimar Guimarães Noriê Winkler Yara Wojslaw Pereira Dias REVISÃO Cristiane Marques do Nascimento Ivone Mota COORDENADORA DA REVISTA CIENTÍFICA DO CURSO Vera da Silva Reis DE DIREITO — EOS Profa. Msc. Tais Martins DIAGRAMAÇÃO Marline Meurer Paitra COMISSÃO EDITORIAL Prof. Dr. Aloísio Surgik GERÊNCIA DE PRODUÇÃO Profa. Msc. Ana Carla Hamatiuk Gilberto Soares dos Santos Profa Msc. Carmen de Fátima Pick Schimidt Profa. Esp. Carolina Fátima de Souza Alves EDITORA DA REVISTA Prof. Msc. Cristiano Dionísio CORRESPONDÊNCIA Prof Msc. Cristina Leitão Teixeira de Freitas Faculdade Dom Bosco Profa Esp. Denise Cristina Brzezinski Mansur Coordenação do Núcleo de Pesquisa Prof. Msc. Evilásio Gentil de Souza Neto Campus Marumby Profa. Dra. Gisela Maria Bester Av. Wenceslau Braz, 1172 Profa Dra. Iglair Terezinha Marquetto Chiamulera Guaíra 81010-000 Prof Msc. José Antonio Z. Branco Garcia telefone: 41 3213-5200 Profa. Msc. Katya Isaguirre Torres e-mail: [email protected] Prof. Msc. Maicon Guedes Hugo Prof. Msc. Marcelo Miguel Conrado Tiragem Prof Msc. Marcos Alves da Silva 1 000 exemplares Prof. Msc. Marcus Paulo Rycembel Boeira A P R E S E N TA Ç Ã O Eis que nos encontramos pela terceira vez, na continuidade da nossa neófita produção científica e fazendo coro às palavras de Ludwig Wittgenstein (Investigações filosóficas. São Paulo: Abril, 1979.): “Aquilo que os homens aceitam como justificação, revela como pensam e como vivem”. E nesse diapasão, tenho a honra de apresentar mais uma edição da revista EOS, com a nitidez de que o trabalho, mesmo árduo, perde a aspereza quando da profusão de um saber reconhecidamente novo – na discussão do conhecimento e valores de docentes e convidados com quem temos a honra de partilhar nossa história e com orgulho na confiança em nosso trabalho. Notório é que a produção acadêmica é muito mais um prazer do que um lavoro. Ainda que os problemas práticos enfrentados pelos acadêmicos do curso sejam sempre levados em conta, o objetivo da revista EOS consiste em fazer adquirir, de uma vez por todas, os mecanismos e os hábitos necessários para construir uma promissora carreira jurídica. E essa publicação não poderia assim, convidar o estudante a contentar-se em reproduzir essa ou aquela receita pessoal ou profissional, pois o pilar maior se dimensiona a trazer o debate, a interdisciplinaridade, pois as abordagens aqui trazidas, obviamente serão múltiplas, visto que, notoriamente para alguns, devemos nos concentrar no campo privilegiado e seguro da história do direito, para outros, porém, a premissa mais coerente seria o lançamento ao debate vivo, contextualizado e representado por uma jurisprudência em constante mutação. Seja como for, a EOS está distante de uma atitude passiva, que apenas repita as orientações dos doutrinadores já conhecidos, porque os artigos ofertados contêm instruções que convidam a fazer um exercício axiológico, uma análise da técnica intelectual, a qual será útil para o aprimoramento pessoal e profissional dos acadêmicos e de todos os estudantes que optarem pela inquietude e pela busca incessante pelo conhecimento, pelo novo, pelo desafio. E, ao falar em desafio, destaco ainda a promessa feita em nossa primeira edição que cumprir-se-á nesse momento, pois o Boletim Acadêmico é lançado conjuntamente com a 3a edição da EOS. Visto que promessa se perfaz em dívida e não inadimplimos com a nossa palavra, os senhores estão convidados duplamente: a escolher junto a Coordenação o nome do boletim online e a enviarem artigos de própria autoria que serão apresentados à comunidade científica, visto que esse debute se concretizará no mês de outubro do presente ano. Sem o intuito da poetização das palavras, referimo-nos a Helena Kolody: “Pintou estrelas no muro e teve ao céu ao alcance das mãos”. Queridos alunos, professores, advogados, juristas, juízes, promotores, procuradores enfim leitores da EOS, que o nosso sonho frutifique em vós, pois sois a razão e o motivo da nossa luta diária contra a ignorância e contra a violência que ela traz consigo. Diante de um mundo conturbado, difícil é crer na verdade, difícil é realizar sonhos, mas que a confiança vos inspire e que possamos construir uma realidade melhor por meio dos nossos sonhos. A leitura é vossa, mas o agradecimento é nosso à Coordenação do Curso de Direito, na pessoa do Professor Luciano Tinoco Marchesini, pela confiança e pela argúcia nas estratégias e nas cobranças; ao Professor Evilásio Gentil, um profissional que nos retira do amadorismo e nos instrui na conduta profissional; à Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Profa. Michele Catherin Arendt, que nos ensina ser possível um “fazer diferente”; ao Diretor Augusto César Tosin, um incentivador incansável das nossas atividades. E, ainda nominalmente, ao Professor Roggi Atílio Ercole Filho e a Profa Carmen Pick Schimdt, equipe incansável no reconhecimento do Curso de Direito de nossa IES; a todo o grupo Dom Bosco, pois sem a gráfica, a administração e o marketing teríamos em mãos somente um projeto e não a concretude do nosso trabalho. Até a próxima edição. Professora Tais Martins Coordenadora da Revista EOS www.dombosco.com.br SUMÁRIO Artigo 01 Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações Carolina Fátima de Souza Alves e Cláudia Maria Barbosa 16 Artigo 02 Conhecimento e Consciência: o despertar para o meio ambiente Evilásio Gentil de Souza Neto Artigo 03 A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos Flávia Piovesan 34 08 20 Artigo 04 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? Gisela Maria Bester Vivian Hey Wescher Artigo 05 Responsabilidade Pressuposta Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka 54 Artigo 06 A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania Irineu Galeski Junior 77 Artigo 07 A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX Luana de Carvalho Silva Artigo 08 Crimes Tributários na Legislação Brasileira Maicon Guedes 98 67 87 Artigo 09 A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do Contratante Vulnerável Marcelo Junqueira Calixto Artigo 10 Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico Walter Guandalini Jr. 104 Artigo 01 Artigo 01 Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações Carolina Fátima de Souza Alves* Cláudia Maria Barbosa** 1. Breve Histórico. 2. Necessidade de um sistema de controle do Poder Judiciário – Anseio Social – Composição híbrida. 3. Natureza jurídica e competência(s) legal(is) do Conselho Nacional de Justiça – Função fiscalizatória. 4. Decisões atuais do Conselho Nacional de Justiça com maior repercussão – Breves considerações. 5. Conclusão. 6. Referências. 1. Breve histórico A discussão sobre forma(s) de se controlar a atuação dos Advogados do Brasil, que também se mostrou favorável à sua criação. Contudo, a primeira e efetiva proposta de criação de do Poder Judiciário não é tema novo para o Direito, tampouco para a sociedade. Há muito se discutia e clamava sobre a viabilidade de criação de um órgão interno ao Judiciário, dotado de legitimidade, que pudesse exercer o controle de atos praticados pelos integrantes do Poder Judiciário, sempre no intuito de zelar pelo respeito aos princípios da igualdade e isonomia. Nos tempos hodiernos, com maior veemência, a opinião pública1 mostrou descontentamento e insatisfação com as diretrizes e ações patrocinadas por alguns integrantes do Judiciário. Descontentamento originado de ações e decisões de integrantes deste Poder que, sob o manto da toga, exercitaram o nepotismo, patrocinaram a morosidade processual, quando não, emitiram decisões totalmente desprovidas de transparência, infringindo assim os mais comezinhos princípios de Direito. um órgão destinado ao controle dos atos e decisões emanados do Poder Judiciário foi endereçada a Câmara dos Deputados, pelo Deputado Hélio Bicudo, em 26 de março de 1992, como Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 96/92. Após alguns anos de revisão e discussão, bem como aprovação em dois turnos, a Proposta de Emenda à Constituição no 96/92 foi encaminhada ao Senado Federal dando ensejo a Proposta de Emenda à Constituição no 29/2000, possuindo como primeiro relator o então Senador Bernardo Cabral, que emitiu os pareceres nos 538 e 1035/2002, acerca de referida PEC, ambos aprovados pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Aprovada a Proposta de Emenda à Constituição Federal n 29/2000, esta restou consolidada na Emenda Constitucional o no 45/2004, notoriamente conhecida como Emenda de Reforma Neste sentido, a criação de um órgão interno do Poder Judiciário ou Pacto de Estado em favor de um Judiciário destinado ao controle do Poder Judiciário, inclusive dotado de mais rápido e Republicano2, publicada em 31 de dezembro de poderes punitivos de seus integrantes, fazia-se imprescindível e 2004. o clamor social era evidente. Desta feita, décadas transcorreram entre o primeiro Historicamente, a possibilidade da instituição de debate sobre a possibilidade de criação de um órgão de controle um órgão exclusivo destinado a fiscalização do Judiciário, já do Judiciário até a sua efetiva implementação, em 14 de junho havia sido suscitada e debatida na década de 1980, pelo então de 2005, junto ao Edifício Anexo II, do Supremo Tribunal deputado Nelson Jobim, inclusive com o sufrágio da Ordem Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília/DF. *CAROLINA FÁTIMA DE SOUZA ALVES (Autora) – Mestranda em Direito Econômico e Social na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em Direito Civil e Comercial pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogada. Professora Titular nos cursos de Direito das Faculdades Dom Bosco e Faculdades Integradas Santa Cruz, em Curitiba/PR. [email protected] **CLÁUDIA MARIA BARBOSA (co-autora) – Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Vice-Presidente do Ibrajus – Instituto Brasileiro de Administração de Sistema Judiciário. Coordenadora da Especialização em Política Judiciária e Administração da Justiça da PUCPR. [email protected]. 1 86,7% dos entrevistados pela Universidade de Brasília disseram acreditar que há necessidade de um órgão para fiscalizar a Justiça brasileira enquanto outros 83,8% querem que a sociedade faça parte desta fiscalização. 2 Frase constante das fls. 95 do Relatório Anual 2005 confeccionado pelo CNJ e encaminhado ao Congresso Nacional. 8 Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações Portanto, somente com a promulgação da Emenda “(...) é necessário estabelecer um sistema de controle. 45/2004 é que se avalizou e determinou É oportuno lembrar aqui a atitude de Thomas a criação de um órgão interno ao Poder Judiciário, cujo Jefferson, que defendeu com firmeza a independência objetivo precípuo é o controle deste, exercendo fiscalização dos juízes e tribunais, mas admitiu que tinha medo do da gestão administrativa e financeira dos tribunais, bem como corporativismo dos magistrados, o que pode significar o controle de atuação e conduta ética dos magistrados que o não só uma comunhão de interesses, mas também compõem, inclusive com competência punitiva destes, após o um relacionamento afetivo. Daí a conveniência de devido processo legal sem, contudo, imiscuir-se ou adentrar na um órgão controlador, integrado, em sua maioria, autonomia concedida constitucionalmente ao Poder Judiciário: por magistrados, mas também por profissionais de estava criado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). outras áreas jurídicas, como se tem feito para compor 2. Necessidade de um sistema de controle do Poder Judiciário – magistratura. Não se pode esquecer que o Poder Constitucional n o Anseio social – Composição híbrida Consoante exposto, há muito a sociedade clamava por um órgão interno ao Poder Judiciário, mas com legítima autonomia e liberdade, que pudesse exercer o controle e a fiscalização daquele Poder, bem como conduzir seu planejamento político e estratégico. bancas examinadoras de concurso de ingresso na Judiciário exerce poder público, age em nome do povo, embora seus membros não sejam escolhidos por meio de eleição popular. Por isso é necessário um controle democrático de seu desempenho, que assegure a obediência as regras legais e a prevalência do interesse público, mantendo o requisito fundamental, que é a garantia da independência dos juízes.” (Grifou-se) Fartos e notórios são os exemplos da crise enfrentada pelo Poder Judiciário, ensejadores de sua reforma, como “venda de sentenças”, desvios de verbas, assessoria prestada por magistrados a particulares em processos que estavam sob sua alçada, nepotismo, falta de compromisso com o curso e a eficácia do processo (mormente com a celeridade), desinteresse do Judiciário na execução de suas próprias decisões (em especial quando o pólo passivo é o poder público), etc. Destaque-se, também, a opinião do juiz Luiz Flávio Gomes4 sobre o assunto, previamente à criação do CNJ: “(...) O Judiciário necessita de um órgão nacional de controle, que receba as reclamações contra as atividades administrativas dos juízes e tribunais, assim como contra a qualidade do serviço judicial prestado, excluindo-se a estrita atividade jurisdicional que já Some-se a isso outros relevantes fatores como a está sujeita ao controle recursal. Os Tribunais devem existência de juízes cada vez mais tecnicistas, extremamente controlar os juízes e o Conselho Nacional deve con- preocupados com o rigor da lei em menosprezo a trolar diretamente os Tribunais e indiretamente todos preponderância do fato social (entenda-se, justiça), isto é, cada os juízes, mas sempre no que diz respeito ao âmbito vez mais distantes das necessidades sociais e deslumbrados administrativo e disciplinar. (...) O que desejamos é com a honorabilidade dos cargos. um eficiente, criterioso e sobretudo transparente con- Tal situação caótica, extremamente prejudicial para a sociedade, pode ser resumida na própria “negação do direito”, porquanto violados diversos princípios constitucionais fundamentais, como ampla defesa, contraditório, decisões fundamentadas, celeridade como pressuposto para a eficácia da prestação jurisdicional, dentre tantos outros. Fazia-se imprescindível, portanto, a instituição de um órgão interno ao Judiciário, que se fizesse encarregado de exercer o controle dos atos de gestão administrativa, financeira e ética de seus integrantes. Diante desta necessidade e, muito antes da efetiva criação do CNJ, Dalmo de Abreu Dallari3 sustentava: trole interno, de responsabilidade das corregedorias e tribunais assim como do Conselho Nacional.” Nesse sentido, visando efetivar o anseio social e jurídico acerca da criação de um órgão de controle interno do Poder Judiciário, deu-se a criação e implementação do CNJ, na Emenda Constitucional no 45/2004. Evidentemente que, ao se falar na implementação de um órgão de controle do Poder Judiciário – com legitimidade administrativa, financeira e inclusive disciplinar – não se está a defender a revogação dos benefícios constitucionais outorgados à Magistratura para o bom desenvolvimento de sua função precípua, qual seja, a prestação jurisdicional. DALLARI, Dalmo de Abreu. Juízes independentes, judiciário sob controle social. Revista da associação dos magistrados do Estado do Rio de Janeiro. ano 2, n. 8, p. 33. GOMES, Luiz Flávio. A questão do controle externo do Poder Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 5, 1993, p. 36-38. 3 4 9 Artigo 01 Entretanto, não se pode olvidar que as prerrogativas No particular, urge transcrever as sábias palavras do e garantias conferidas aos integrantes do Poder Judiciário 5 Min. Cezar Peluso, no voto proferido na ADIN no 3367-1, a o foram (e são), no exclusivo intuito de possibilitar a estes respeito da autonomia e independência do Poder Judiciário – que desenvolver, com independência, clareza e lisura, sua função restaram respeitadas na criação e composição híbrida o CNJ – que, pública, ou seja, tais benefícios não foram concedidos no em verdade, representam a satisfação do anseio social: intuito de afastar o julgador do meio social, tampouco aliená“Talvez ocorra a alguém que, na prática, essa lo deste. Ao contrário! composição Nesse sentido, urge salientar as palavras de José independência interna e externa do Judiciário. A Reinaldo de Lima Lopes6: “É da maior importância, hoje, não confundir autonomia e independência do Judiciário com seu isolamento social.” O jurista norte-americano Owen Fiss7 também se pronunciou a respeito: híbrida poderia comprometer a objeção não é forte, porque os naturais desvios que, imputáveis a falibilidade humana (...) são inerentes a todas as instituições, por acabadas e perfeitas que se considerem. (...) é sobremodo importante notar que o Conselho não julga causa alguma, nem dispõe de nenhuma atribuição, de nenhuma competência, cujo exercício fosse capaz de interferir no desempenho de função típica do Judiciário, a jurisdicional. (...) E “Simplesmente não é verdade que, quanto maior o não seria lógico nem sensato levantar suspeitas de isolamento, melhor, porque um Judiciário que está que, sem atribuição jurisdicional, possa comprometer isolado das instituições governamentais sujeitas a independência que jamais se negou a órgãos controle popular – o Legislativo e o Executivo – tem jurisdicionais (...).” o poder de interferir nas ações ou decisões dessas instituições e, assim, o poder de frustrar a vontade Portanto, a participação de pessoas não integrantes popular. (...). Estamos, portanto, diante de um dilema. do Poder Judiciário na composição do Conselho Nacional A independência é tida como uma das virtudes de Justiça, além de atender ao clamor social, é imprescindível cardinais do Judiciário, mas deve-se reconhecer que no Estado Democrático de Direito, possibilitando aos muita independência pode ser uma coisa negativa. representantes populares exercerem maior controle do Nós queremos isolar o Judiciário das instituições Judiciário e, assim, por conseqüência, aproximando a sociedade sujeitas a maior controle popular, mas deveríamos desse Poder. admitir, ao mesmo tempo que alguns elementos de controle político deveriam remanescer.” É o que propõe o Conselho Nacional de Justiça: exercer o controle administrativo, financeiro e disciplinar do Poder Judiciário – haja vista a inexistência de independência em sentido absoluto –, inclusive via implementação de uma política judiciária em nível nacional. Contudo, para melhor eficácia, o controle do Poder Judiciário não poderá ser relegado à competência exclusiva de um órgão institucional. A participação da sociedade no acompanhamento dos atos do Conselho Nacional de Justiça – figurando este, portanto, como órgão de composição híbrida – significa a concretização de um Judiciário mais saudável e transparente. 3. Natureza jurídica e competência(s) legal(is) do Conselho Nacional de Justiça – Função fiscalizatória As competências outorgadas ao Conselho Nacional de Justiça estão previstas nos incisos do parágrafo 4o, do artigo 103-B, da Constituição Federal que, além de lhe atribuir responsabilidade pelo planejamento político estratégico do Poder Judiciário – que, consoante já exposto, não é objeto deste estudo – concedeu-lhe o exercício do controle administrativo, financeiro e disciplinar dos integrantes do Judiciário, não estando o CNJ autorizado a adentrar na análise meritória das demandas, pois, isto sim implicaria em afronta à autonomia e independência do Judiciário e dos magistrados que o integram e, por conseqüência, na violação ao princípio do pacto federativo. Inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios, consoante artigo 95 da Carta Magna. LIMA LOPES, José Reinaldo de. Crise da norma jurídica e reforma do judiciário. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 76. 7 FISS, Owen. Um novo processo civil – estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. (Trad.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 17. 5 6 10 Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações Entretanto, uma vez instituído, diversas dúvidas e Nesta esteira, configurando-se o CNJ como órgão questionamentos foram suscitados a respeito da legitimidade integrante do Poder Judiciário pátrio, como se dá sua atuação? do Conselho, de sua composição e de eventual afronta à Estaria o CNJ apto e legitimado a exercer o controle externo independência dos poderes, ensejando, inclusive, a Ação do Judiciário? Direta de Inconstitucionalidade no 3367-1, proposta perante Prefacialmente, não se pode olvidar da existência o Supremo Tribunal Federal pela Associação dos Magistrados de órgãos efetivamente externos ao Poder Judiciário, que Brasileiros (AMB) em face do Congresso Nacional. também exercem poder fiscalizatório sobre este, tais como as Diante de relevantes alterações procedidas pela Corregedorias de Justiça9, os Tribunais de Contas (art. 7110, Emenda mencionada, fez-se imprescindível perquirir a CF), o Ministério Público e os demais Poderes da República respeito da natureza jurídica do Conselho Nacional de Justiça: que, em tese, exerceriam o controle externo do Judiciário; sua atuação dá-se como órgão de controle externo do Poder externo eis que tais órgãos não se subordinam ao Judiciário, ao Judiciário? Ou se trata de mais um órgão burocrático, dentre contrário do CNJ que está àquele totalmente vinculado. tantos, destinados a fiscalização do Judiciário? Não se pode olvidar que a Emenda Constitucional no 45/2004, alterou o artigo 92, inciso I da Lei Maior, nele inserindo o inciso I-A, por intermédio do qual prescreve, expressamente, que o Conselho Nacional de Justiça é um órgão integrante do Poder Judiciário, verbis: “Art. 92 – São órgãos do Poder Judiciário: I – o Supremo Tribunal Federal; I-A – o Conselho Nacional de Justiça.” Ao que parece, o legislador não teve interesse em criar um órgão fiscalizatório alheio à estrutura do Judiciário, pois não descuidou de incluir o Conselho Nacional de Justiça no rol de órgãos do art. 92, da Constituição Federal, acima do Superior Tribunal de Justiça, porém abaixo do Supremo Tribunal Federal8. Portanto, indubitável a natureza jurídica do Conselho Nacional de Justiça como órgão integrante do Poder Judiciário brasileiro. Destaque-se que o Supremo Tribunal Federal, Feita tal ressalva, convém salientar que o controle outorgado ao Conselho Nacional de Justiça foi delimitado no artigo 103-B da Constituição Federal ao “controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento de deveres funcionais dos juízes” (art. 103-B, par. 4o, CF/88) figurando, pois, o CNJ como símbolo do rompimento com o corporativismo que “obscurece os procedimentos investigativos, debilita as medidas sancionatórias e desprestigia o Poder .” 11 Assim, embora referida função outorgada ao CNJ tenha ficado notoriamente conhecida como controle externo do Poder Judiciário, urge notar que o controle fiscalizatório exercido pelo Conselho não pode ser compreendido como externo12, haja vista: 1) sua vinculação ao Poder Judiciário (art. 92, inciso I-A, CF/88); 2) sua conseqüente subordinação hierárquica ao STF (art. 102, “r”, CF/88) e, por fim, 3) sua composição que, em grande maioria, dá-se por membros integrantes do Judiciário. no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade Figura o Conselho Nacional de Justiça, portanto, no 3.367-1 retromencionada, além de declarar expressamente a como órgão interno ao Poder Judiciário, com abrangência constitucionalidade de referido Conselho, reconheceu-o como nacional e que possui, dentre outras funções, a de fiscalizar as órgão integrante do Poder Judiciário, contudo, desprovido atividades administrativas, financeiras, bem como disciplinares de poder jurisdicional haja vista sua função exclusivamente dos integrantes desse Poder. fiscalizatória. Como órgão fiscalizatório, ao Conselho não é Dúvidas não podem existir, portanto, a respeito de que permitido imiscuir-se no mérito das decisões proferidas pelos o Conselho Nacional de Justiça consubstancia-se como órgão Magistrados, isto porque, dentre suas funções, consoante judiciário, ou seja, integrante do Poder Judiciário brasileiro, já exposto, encontra-se a de “zelar pela autonomia do contudo, sem poder jurisdicional. Poder Judiciário” (inciso I, do parágrafo 4o do art. 103-B da Pois bem. Constituição Federal), o que significa dizer que também ele, O que não poderia ser diferente, visto que o STF é a instância jurisdicional máxima do país, e o CNJ não detendo competência jurisdicional, possuindo tão-somente atribuição administrativa, deve posicionar-se abaixo da Corte Suprema. 9 Importa ressaltar que, uma vez que as corregedorias se situam no âmbito dos tribunais, “tradicionalmente, a atividade correicional é exercida sobre o primeiro grau de jurisdição e somente sobre ele”, ficando os tribunais livres de quaisquer fiscalizações. (GRAMSTRUP, Erik Frederico. Conselho Nacional de Justiça e controle externo: roteiro geral in Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coord.) et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 199. 10 “Art. 71 – O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: (...)”. 11 Consoante voto proferido pelo Ministro Cézar Peluso. 12 Nesse aspecto, o Ministro Cezar Peluso, em voto proferido na ADIN 3367-1, salienta que há um “erro de tomar o Conselho Nacional de Justiça por órgão de controle externo.” (fls. 225/226 do voto mencionado) 8 11 Artigo 01 CNJ, deverá respeitar os atos jurisdicionais expedidos pelos no modelo brasileiro de harmonia e equilíbrio entre integrantes desse Poder. os poderes, não conformará nem informará – nem Saliente-se que a ausência de poder jurisdicional do mesmo afetará – o dever-poder de decidir conforme Conselho resta ainda mais evidente face à sua total e irrestrita a Constituição e as leis que vincula os membros da subordinação ao Supremo Tribunal Federal que, a teor do magistratura. (...) Embora órgão integrante do Poder previsto no art. 102, alínea “r”, da Constituição Federal de Judiciário – razão pela qual desempenha autêntico 1988, poderá rever todos os atos e decisões administrativas controle interno – não exerce função jurisdicional.” proferidas por referido Conselho. (fls. 282 – grifamos) E não poderia ser de outra forma, sob pena de afronta ao Pacto Federativo que prevê e determina a independência e autonomia dos poderes estatais (art. 2o, CF/88). Entretanto, sem olvidar das demais competências outorgadas ao CNJ pela Emenda supracitada13, o significado Nem mesmo um órgão interno a um dos Poderes da expressão controle da atuação administrativa merece maior está(ria) autorizado a obstaculizar a autonomia do Poder que atenção, haja vista sua amplitude. Qual o limite do controle integra. Nesse sentido, esclarecedoras as palavras do Min. administrativo do Poder Judiciário exercido pelo CNJ? Cezar Peluso: “(...) sem profanar os limites constitucionais da independência do Judiciário, agiu dentro de sua competência reformadora o poder constituinte derivado, ao outorgar ao Conselho Nacional de Justiça o proeminente papel de fiscal das atividades administrativas e financeiras daquele Poder. A bem da verdade, mais que encargo de controle, o Conselho recebeu aí uma alta função política de aprimoramento do autogoverno do Judiciário cujas estruturas burocráticas dispersas inviabilizam o esboço de uma estratégia político-institucional de âmbito nacional. São antigos os anseios da sociedade pela instituição de um órgão superior, capaz de formular diagnósticos, tecer críticas construtivas e elaborar programas que, nos limites de suas responsabilidades constitucionais, dêem respostas dinâmicas e eficazes aos múltiplos problemas comuns em que se desdobra a crise do Poder.” (fls. 231) Consoante já exposto, o controle administrativo conferido ao CNJ não lhe outorga qualquer poder jurisdicional, haja vista que lhe é defeso imiscuir-se nos julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário, não obstante algumas resoluções por ele expedidas possam ser visualizadas como o pleno exercício da jurisdição (!). Entretanto, quer nos parecer que o controle ou gestão administrativa deferida ao Conselho Nacional de Justiça vai muito além da expedição de resoluções que determinem, por exemplo, que os Magistrados devem residir na Comarca na qual estejam vinculados14. Parece-nos que o controle administrativo outorgado ao Conselho defere-lhe o poder-dever de formular e/ou conduzir o planejamento político estratégico do Poder Judiciário, competindo-lhe planejar a atuação desse Poder de forma segura e célere, sem qualquer intromissão no mérito dos julgamentos proferidos. E nesse ponto a questão torna-se, por vezes, controvertida. Quando se aduz que o CNJ está apto a conduzir o planejamento político estratégico do Poder Judiciário, está se Sobre a limitação da competência do Conselho reconhecendo a função política exercida pelo Conselho, no Nacional de Justiça eis o esclarecedor voto proferido pelo sentido de implantar e conduzir uma política pública para o Ministro Eros Grau, na Ação Direta de Inconstitucionalidade Poder Judiciário. promovida pela A.M.B.: A atribuição do planejamento político estratégico “(...) ao Conselho Nacional de Justiça não é atribuída do Poder Judiciário significa que se conferiu ao Conselho competência nenhuma que permita sua interferência Nacional de Justiça a competência de reger e orquestrar o na independência funcional do magistrado. Cabe a ele planejamento de políticas públicas visando a facilitar o acesso exclusivamente o “controle da atuação administrativa ao Poder Judiciário, bem como a torná-lo mais célere, eficaz e e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento próximo da sociedade que dele necessita. dos deveres funcionais dos juízes”, nada mais do que isso. Sua presença, como órgão do Poder Judiciário, Função das mais árduas, tendo em vista as condições atuais da máquina judiciária. Controle da atuação financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, e planejamento político estratégico desse Poder. Ato da Corregedoria Nacional de Justiça, expedido em 18.1.2008, por intermédio do Min. César Asfor Rocha. 13 14 12 Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações Nesse sentido, percebe-se que a função política Os opositores da Resolução no 07 acusaram o Conselho atribuída ao Conselho Nacional de Justiça, como responsável de extrapolar suas atribuições e de agir inconstitucionalmente, pelo planejamento político estratégico do Judiciário, é inegável na medida em que estaria legislando através de resoluções e, e não macula qualquer preceito constitucional. E não poderia assim, invadindo a competência privativa do Poder Legislativo. ser de outra forma haja vista que, citando como exemplos, a Segundo aqueles, não existiria lei proibindo as nomeações e, constitucionalização de novos direitos bem como o fenômeno sendo assim, tais seriam absolutamente lícitas, haja vista que da judicialização da política têm tornado cada vez mais tênue ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa as distintas funções outorgadas aos Poderes estatais. senão em virtude de lei, garantia expressa na Constituição. Conclui-se, pois, que ao Conselho Nacional de Justiça, Sendo assim, caberia ao Poder Legislativo, e não ao CNJ, nos termos da Emenda Constitucional no 45/2004, como órgão disciplinar a matéria em lei específica, proibindo ou não as interno do Poder Judiciário, incumbe o exercício de funções nomeações. precípuas e primordiais, quais sejam: o exercício do controle A polêmica encerrou-se quando o Supremo Tribunal da atuação administrativa e financeira e do cumprimento dos Federal entendeu ser legítima a Resolução no 07 expedida pelo deveres funcionais dos Magistrados, bem como a condução do CNJ, ratificando-a. planejamento político estratégico do Poder Judiciário nacional, restando totalmente destituído de poder jurisdicional. Noutro diapasão, a Resolução no 13, de 21/03/2006, também causou impacto no meio judiciário, haja vista que tocou numa das maiores “feridas” do sistema, estabelecendo 4. Decisões atuais do Conselho Nacional de Justiça com maior teto salarial para os exercentes da Magistratura17, o que há repercussão – Breves considerações muito se solicitava, haja vista a diversidade de subsídios, Consoante exposto na mídia nacional, desde estabelecidos aleatoriamente por cada Estado da federação. sua implementação em junho/2005, o CNJ tem atuado Mais recentemente, precisamente em 18.1.2008, diligentemente sobre a administração da política judiciária a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça18, por nacional, causando repercussão geral decisões como a intermédio do Min. César Asfor Rocha, conferindo efetividade Resolução no 07, de 18/10/2005, por intermédio da qual restou a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN – Lei vedado o nepotismo15, proibindo-se o exercício de cargo de Complementar no 35, de 14/3/1979), estabeleceu que os juízes provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito deverão residir na sede da Comarca à qual estejam vinculados, do Tribunal ou juízo, por cônjuge, companheiro ou parente, atendendo assim, à LOMAN, bem como ao anseio da sociedade em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, em manter um integrante da Magistratura, diuturnamente, na inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, bem Comarca em que atua, o que, até então, por vezes, vinha sendo como dos servidores investidos em cargo de direção ou de descumprido, haja vista a condição de juízes que, embora assessoramento. designados para comarcas do interior, continuavam a residir Tal medida, embora bem recebida socialmente, gerou muita polêmica no meio jurídico16, dando ensejo a diversas nos grandes centros urbanos, despendendo várias horas entre o transcurso residência-comarca, ausentando-se desta. demandas judiciais propostas por exercentes dos chamados Finalmente, o Conselho Nacional de Justiça também “cargos de confiança” preenchidos sem o devido e prévio tem atuado no combate à morosidade da Justiça19, via incentivo concurso público. às audiências de conciliação20, criação e implementação do Nepotismo pode ser compreendido como sinônimo de favoritismo, ou seja, a nomeação de pessoas levando em consideração critérios meramente subjetivos, tais como relações de parentesco ou afinidade, concedendo a uns privilégios e favores que não são conferidos aos demais. E, note-se, favorecer alguém no âmbito da Administração Pública, em detrimento do interesse público, configura conduta imoral e verdadeiro atentado à moralidade administrativa. 16 A decisão, que gerou a Resolução CNJ n. 7, de 18 de outubro de 2005, determina a exoneração, em 90 dias, no âmbito de todos os tribunais, de cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colaterais ou por afinidade, até terceiro grau, de juízes ou de servidores de direção e assessoramento (vedando, inclusive, contratação cruzada entre magistrados conhecido como nepotismo cruzado). Tamanho foi o alcance da medida, que restou proibida até mesmo contratação e manutenção de prestadoras de serviço que possuam parentes de magistrados no quadro funcional. 17 Nos termos do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal, combinado com o seu art. 93, inciso V, no âmbito do Poder Judiciário da União, fixou o valor do teto remuneratório como sendo o subsídio de Ministro do Supremo Tribunal Federal que corresponde a R$ 24.500,00 (vinte e quatro mil e quinhentos reais) e, no âmbito do Poder Judiciário dos Estados o teto remuneratório é o valor do subsídio de Desembargador do Tribunal de Justiça, que não pode exceder a 90,25% (noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento) do subsídio mensal de Ministro do Supremo Tribunal Federal. 18 Órgão integrante do Conselho Nacional de Justiça, que possui como atribuição exercer o controle disciplinar e promover a correta administração da justiça, delegando atribuições e instruções, zelando pelo bom funcionamento dos serviços judiciários, consoante previsto no § 5o do art. 103-B, da Constituição Federal. 19 Consoante Rui Barbosa “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada.” 20 Projeto “Conciliar é legal.” 15 13 Artigo 01 processo eletrônico21, que se configura como ferramenta que Embora a resolução dos problemas ora expostos, busca auxiliar os juízes e tribunais no cumprimento de suas dentre tantos outros, não deva ser imposta exclusivamente ao funções, de forma menos burocrática, dentre outras medidas Poder Judiciário e ao CNJ, mas, também e inclusive, aos demais em estudo. Poderes do Estado, bem como à sociedade, as conquistas auferidas não pertencem somente ao Conselho Nacional 5. Conclusão de Justiça, mas, outrossim, à sociedade e ao próprio Poder De todo o exposto, embora o caminho a percorrer Judiciário; Poder integrado pelo CNJ (art. 92, I-A, da CF/88) ainda seja longo, conclui-se que em quase três anos de existên- que, ao criá-lo dotando-o de competência e legitimidade, cia, o Conselho Nacional de Justiça demonstrou a importância deu os primeiros passos visando satisfazer o anseio social de sua criação e respeito à confiança que lhe foi depositada, da construção de um Judiciário célere, eficaz e com decisões adotando importantes medidas e tocando em pontos cruciais morais e transparentes. nunca dantes enfrentados, que passaram a ser equacionados, 6. Referências planejados e executados. Consoante Alexandre de Moraes , em artigo 22 publicado no Jornal Folha de São Paulo: BARROSO, Luis Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da criação do conselho nacional de justiça. In: RANAULT, Sérgio Rabello Tamm; BOTTINI, Pierpaolo. Reforma do problemas centenários existentes no Judiciário, (...), Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 53-85. como a garantia de maior efetividade da prestação jurisdicional com a vedação de férias coletivas e a BARBOSA, Cláudia Maria. Crise de função do poder fixação de critérios para a promoção por merecimento judiciário no estado contemporâneo. In: Ordem dos Advogados dos juízes, determinando que as votações sejam do Brasil – seccional Paraná. (Org.). Revista da Comissão da abertas e fundamentadas a partir de requisitos Mulher Advogada – seccional Paraná. 1 ed. Curitiba: Editora objetivos, tornando mais democrática a ascensão da OAB, 2006, v. 1, p. 113-122. funcional, foram solucionados. . A crise do poder judiciário inserida na crise do Com a edição da Resolução no 07, o CNJ corajosamen- estado contemporâneo. In: Seminário GEDIM/RED&S: os te combateu um dos maiores problemas do serviço público em direitos nacionais face à globalização, 2001, Rio de Janeiro, geral, proibindo o nepotismo, proclamando ser este incompa- 2001. Direito e Globalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. tível com as normas constitucionais de impessoalidade, mora- v. 1. p. 157-173. lidade e eficiência do serviço público. Também solveu outro grande entrave judiciário que, apesar de inúmeras tentativas no âmbito dos três Poderes da União, não havia sido resolvido: após diversos estudos técnicos e contatos com os membros do Judiciário, em suas diversas . A reforma judiciária e seus desafios. In: III Seminário Brasileiro de Sociologia Juridica. Porto Alegre, 2007. Anais do III Seminário Brasileiro de Sociologia Jurídica, 2007. instâncias e associações, fixou o teto salarial aos magistrados BERMUDES, Sérgio. A reforma do judiciário pela emenda de todo o país, para que a questão remuneratória dos juízes constitucional, n. 45, p. 137. seja absolutamente transparente e respeite os parâmetros constitucionais. CAMARGO, Maria Auxiliadora Castro. Reforma do Várias foram, portanto, as conquistas perpetradas a judiciário. Tribunal constitucional e conselho nacional de partir da implantação do Conselho Nacional de Justiça, em Justiça. Controles externos ou internos? Revista de Informação junho/2005. Legislativa. Brasília, a. 41, n. 164, out–dez 2004, p. 373. Segundo Sérgio Renato Tejada Garcia, secretário geral do Conselho Nacional de Justiça, em nota lançada no site www.cnj.gov.br em 09/05/2006, “além de combater a morosidade processual, o processo virtual ainda melhora o acesso à Justiça e a transparência do Poder Judiciário. O processo eletrônico funciona através de um portal de internet no qual os usuários – magistrados, servidores da Justiça e advogados públicos e privados – são previamente cadastrados e identificados com login e senha. Comparecendo o cidadão na sede da Justiça, sua pretensão é lançada diretamente no sistema. Se preferir constituir advogado, este elaborará a petição inicial e, de seu próprio escritório, a encaminhará. Acionado o botão “enviar”, seja pelo servidor da Justiça, seja pelo advogado, a petição inicial será distribuída instantaneamente e, nesse momento, o interessado receberá na tela do computador a informação de que o processo foi distribuído, que número obteve no protocolo, qual é a vara e qual juiz julgará a causa. Recebendo a ação virtual, o juiz, depois de verificar a regularidade da causa e decidir eventual pedido de liminar, determinará a citação do réu, que é feita também eletronicamente, clicando um botão. (...). Além de funcionar em tempo real, o processo eletrônico faz desaparecer todas as barreiras impostas pelo tempo e pela distância, podendo o processo ser acessado a todo o momento e por todos os interessados ao mesmo tempo e de qualquer lugar.” 22 MORAES, Alexandre de. A Atuação do Conselho Nacional de Justiça tem sido benéfica para o Poder Judiciário? – Sim. União pelo fortalecimento. Folha de São Paulo, 25 mar. 2006, – Tendências e Debates. 21 14 Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações CHAVES, José Pericles. Reforma do Poder Judiciário, fatos LIMA LOPES, José Reinaldo de. Crise da norma jurídica e históricos e alguns aspectos polêmicos. Disponível em: <http:// reforma do judiciário. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direitos www1.jus.com.br/doutrina/texto> Acesso em: 22 jan. 2008. humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2002, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO p. 76. BRASIL DALLARI, Dalmo de Abreu. Juízes independentes, MORAES, Alexandre de. A Atuação do Conselho Nacional judiciário sob controle social. Revista da Associação dos de Justiça tem sido benéfica para o Poder Judiciário? – Sim. Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, ano 2, n. 8, p. 33. União pelo fortalecimento. Folha de São Paulo, 25 de mar. FISS, Owen. Um novo processo civil – estudos norte-americanos 2006, Tendências e debates. sobre jurisdição, constituição e sociedade (Trad.). São Paulo: SADEK, Maria Tereza. Controle externo não resolve os Revista dos Tribunais, 2004, p. 17. problemas do judiciário. Folha de São Paulo, 10 nov. 2003, GOMES, Luiz Flavio. A questão do controle externo do poder judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 5, 1993, p. 36-38. HERKENHOFF, João Baptista. Direito e Utopia. São Paulo: Acadêmica, 1990, p. 36. Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN – Lei Complementar n. 35, de 14 mar.1979). Entrevista p. A-12. SANTOS, Edvaldo Borges dos; NAZARETH, Marco Antônio Luz et al. O controle e a fiscalização do poder Judiciário. Disponível em: <http://www.jus.com.br/doutrina/texto> Acesso em: 21 jan. 2008. Site do Conselho Nacional de Justiça: www.cnj.gov.br 15 Artigo 02 Artigo 02 Conhecimento e Consciência: o despertar para o meio ambiente Evilásio Gentil de Souza Neto 1. Introdução. 2. O desenvolvimento sustentável e o problema do meio ambiente. 3. Desenvolvimento sustentável: um conceito com ênfase social. 4. Interdisciplinaridade das relações. 5. Consciência e ação. 6. Referências. 1. Introdução tendo como uma das linhas de atuação o conceito de desenvol- Constata-se em publicações de diferentes áreas que vimento sustentável. Como resposta à questão da desigualdade pressupostos de uma revolução epistemológica têm dominado a econômica, buscam-se interligar causas e repercussões ciência contemporânea, inclusive no campo do meio ambiente. dele no meio ambiente, insurgindo questionamentos que Tal assertiva encontra fundamento na ruptura das certezas colocam em cheque o futuro do gênero humano. Essa simples determinísticas oriundas da mecânica newtoniana, que passam análise interdisciplinar demonstra a estreita ligação de causa e a serem gradativamente substituídas pela emergência do efeito dos problemas socioeconômicos, seguidos da questão da indeterminado que, por sua vez, pressupõe que haver nenhum atividade econômica, que atualmente é exercida segundo pa- fundamento único, último, seguro do conhecimento. drões não-sustentáveis, gerando conflitos constantes acerca do As evoluções das ciências biofísicas são aplicadas de equilíbrio do meio ambiente. forma interdisciplinar ocupando interstícios de outros saberes Do paradigma do desenvolvimento sustentável e se encaminham para uma transição paradigmática qual pode passa-se, em seguida, à necessidade de uma nova hermenêutica surgir nova tradição de ciência normal, que “está longe de da realidade, que deve ser vista como um sistema complexo, in- ser um processo comutativo obtido através da articulação do terdependente e inter-relacionado, aberto para o futuro. Com velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos isso a humanidade assume a necessidade de um novo desafio a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas para o paradigma do desenvolvimento de uma nova cultura, das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, mas cultura ainda em desenvolvimento. bem como de seus métodos e aplicações” . 1 Verifica-se, neste momento, ao menos no âmbito das ciências sociais, as influências da física, astrofísica, biologia 2. O desenvolvimento sustentável e o problema do meio ambiente e bioquímica, desenvolvidas no decorrer deste século, que A expressão “desenvolvimento sustentável” surge em desencadearam essa necessidade de ajuste, de desconforto meio à uma necessidade cada vez maior de proteção ao meio teórico, característica transição que se converte nos traços do ambiente. Ao longo da história, o próprio direito ambiental que se convencionou chamar de pós-modernidade. sempre foi condenado à revelia: entre as nações, pairava domi- De todas as frentes que se encaminham em relação nante a idéia de inexauribilidade dos recursos naturais. Desse ao conhecimento, a opção das ciências sociais em geral é pelo modo, a exploração da natureza era feita de maneira irracio- conhecimento que eleve a maneira de agir como um princípio nal, acabando por gerar o processo de degradação ambiental e de solidariedade que procura eliminar a condição de trabalhar a direta escassez dos recursos. Os dramáticos acontecimentos o outro como objeto, reconhecendo-o como sujeito2. do início da década de 1970, como a “crise do petróleo” e as Em meio a todas essas questões de transição paradig- especulações referentes a um possível colapso energético e de mática, insere-se a questão da manutenção do meio ambien- recursos naturais, fizeram crescer de maneira notável a cons- te, que busca respostas a problemas atuais em nível mundial, ciência do problema ambiental. Passando a discussão de um KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, p. 116. SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. v. 1, p. 30. 1 2 1 Conhecimento e Consciência: o despertar para o meio ambiente círculo fechado de ambientalistas para o cenário de discussões seguem padrões de crescimento econômico não-sustentáveis internacionais, culminando com a Conferência de Estocol- em longo prazo. mo (1972), organizada pela Organização das Nações Unidas A tendência é surgirem novas formas de organização (ONU), quando se debateram as alternativas para as realida- com a participação da sociedade civil na gestão de interesses des e perspectivas do meio ambiente3. a que anteriormente apenas o Estado atendia, a qual introduz O problema ambiental foi um assunto difícil desde o mudança qualitativa na medida em que incorpora outros níveis início do debate. Da Declaração de Estocolmo às conferências de poder além do Estado. Isso se pode configurar como um sobre Mudança Climática de Kyoto (dezembro de 1997) e de ato de autodesenvolvimento que se alcançado numa sociedade Buenos Aires (outubro de 1998), por meio dessa percepção, pro- participativa que contribua para a formação de uma cidadania curam-se novos horizontes para evitar o choque entre a neces- qualificada integrada ao terceiro setor. É na esfera privada sidade do desenvolvimento socioeconômico, especialmente de- da sociedade que se tornou publicamente relevante a relação fendido pelos países industrializados e a cultura da preservação moderna entre esfera pública e esfera privada mediante a do meio ambiente que muitas vezes apenas foi tratado de forma formação social6. retórica pelos países mais abastados4. Parte da população mundial Nesse cenário, têm-se, então, as entidades criadas por que grupos de cidadãos dispostos a lutarem por um ideal social de necessita atuar no meio socioambiental, unindo-se a outra reconhece voluntariado em prol dos menos afortunados, para a defesa de parte para concretizar projetos e mobilizações que causem uma causa de interesse social. impacto na sociedade, sobretudo amenizando o impactos A sociedade busca por diversos caminhos, recuperar gerados pelo modo de produção reinante. Exemplo dessas as atribuições historicamente delegadas às estruturas estatais atuação são os chamados grupos “verdes” que, na década de que não estão conseguindo um bom desempenho. BOBBIO7 70, iniciaram os ataques com veemência contra as noções tradicionais de desenvolvimento e as práticas vigentes nos setores produtivos, apontando-os como os principais responsáveis pela deterioração do meio ambiente. Tudo isso abriu caminho para um debate acalorado, que ainda prossegue, entre os ativistas ambientais e os mais importantes setores econômicos. observa a passagem da visão do interesse individual para o coletivo, num exemplo da contextualização da proteção ao ecossistema: (...) ocorreu a passagem da consideração do indivíduo humano uti singularus, que foi o primeiro sujeito ao A expressão “desenvolvimento sustentável” foi qual se atribuíram direitos naturais (ou morais) – em cunhada, portanto, num contexto dramático e polêmico, como outras palavras, da “pessoa” –, para sujeitos diferen- salienta por BURCKART5. Contudo parece que as ações tes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas vindouras são aplicadas de forma paliativa, como que para e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto questões tópicas emergenciais, e não como medidas preventivas (...); e, além dos indivíduos humanos considerados que deveriam preparar o país para o “desenvolvimento social singularmente ou nas diversas comunidades reais ou sustentado”. Essas ações induzem ao processo de desestatização de toda a economia, forçando os Estados, em contrapartida, a participar de forma mais ativa, como atores do diálogo, frente às perspectivas de impacto que o “aquecimento global” e outras realidades socioambientais podem desencadear. 3. Desenvolvimento sustentável: um conceito com ênfase social A proposta de desenvolvimento sustentável teve a vantagem de denunciar como inviáveis os atuais modelos de desenvolvimento, tanto no hemisfério Norte como no Sul, que ideais que os representam, até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, (...). Nos movimentos ecológicos, está emergindo quase que um direito da natureza a ser respeitada ou não explorada, onde as palavras ‘respeito e ‘exploração’ são exatamente as mesmas usadas tradicionalmente na definição e justificação dos direitos do homem. A 19a sessão especial da Assembléia Geral das Nações Unidas (junho de 1997), cinco anos após a histórica conferência BURCKART, Hans. Desenvolvimento sustentável e gerenciamento empresarial: elementos para um novo paradigma de gestão. In: BRUNI, Luigino (Org.). Economia de comunhão: uma cultura econômica de várias dimensões. Tradução de: STUMMER, Thereza Christina F. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2002, p. 79-86. 4 Ibidem, p. 81. 5 A expressão “desenvolvimento sustentável” foi usada oficialmente pela primeira vez num documento do WWF (Fundo Mundial para a Vida Selvagem) no início da década de 1980, num contexto puramente ambiental. 6 HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. p. 169-170. 7 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direito. 8. ed. Tradução de: COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 69. 3 17 Artigo 02 de cúpula Eco 92 do Rio de Janeiro, tinha por objetivo avaliar suas leis eram explicados somente através das ciências naturais. e reavivar os esforços pra a atuação do desenvolvimento De fato, o mundo apresenta certas necessidades de índole sustentável. técnica que, certamente, encontram ressonância nas ciências A Assembléia Geral, indicando medidas práticas de implantação do desenvolvimento sustentável, estabeleceu três naturais. Entretanto também apresenta interesses distintos da condição social, mediante a influência de uma cultura. áreas principais de trabalho para o período 1997–2002, cuja Embora haja o reconhecimento de que, atualmente, importância primordial e universal para o desenvolvimento as ciências buscam um diálogo entre suas fronteiras do sustentável foi sublinhada de forma decisiva na 7a sessão da conhecimento, há certa resistência contra a contaminação de Comissão da ONU para o desenvolvimento sustentável (CSD- uma área por outra e os limites das fronteiras do conhecimento 7, 19-30.4.99). São as seguintes: a) erradicação da pobreza, ainda permanecem fortes, prejudicando o diálogo necessário com ênfase no acesso às rendas sustentáveis e oportunidades para os estudos ambientais. E as experiências de cada uma das empresariais; b) mudança de padrões de consumo; c) mudança partes perdem em significado quando não existe entrelaçamento dos padrões de produção. das várias manifestações da vida10. Nota-se imediatamente que a ONU tem uma Somente um estudo interdisciplinar pode compreender concepção de desenvolvimento sustentável que vai muito a complexidade ambiental. A transição de uma área de além da questão ambiental, que passa primeiramente por conhecimento para outra, como alternativa para crise da uma abordagem social, apresentando uma proposta ampla e modernidade11, deve permitir a visão global. A dimensão integradora para a visão ambiental: ambiental deve estar presente nas diversas áreas do conhecimento, respeitando as organizações, os objetos Estamos convencidos de que a consecução do e as necessidades das múltiplas relações. A produção do desenvolvimento sustentável exige uma integração conhecimento dessa concepção construída deve ser validada e dos seus componentes econômicos, ambientais e apropriada pelos grupos sociais. sociais. Empenhamo-nos novamente em colaborar – com espírito de solidariedade mundial – afim de 5. Consciência e ação multiplicar os nossos esforços conjuntos para As breves análises feitas indicam que, para existir satisfazer de modo equânime às necessidades das um meio ambiente ecologicamente equilibrado, se deve estar gerações presentes e futuras (19a sessão especial da consciente de que se trata de um bem de uso comum do povo e Assembléia da ONU). que a realização desse direito fundamental está intrinsecamente A Comissão Mundial da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, criada em 1983, notou que é suficiente falar isoladamente do problema do meio ambiente, mas que se trata de uma realidade complexa e interdependente. Salientou, além disso, que a tecnologia e a globalização significam para o desenvolvimento que grandes problemas querem grandes oportunidades. Tudo isso levou à necessidade de uma visão holística, global e sistêmica do mundo, da humanidade e do conceito de desenvolvimento8. ligada à sua realização social. Sobre essa realidade, percebe-se que há uma valorização excessiva da razão instrumental, significando que a hegemonia da modernidade tecnológica, que estimula, ainda que indiferentemente, o consumismo desregrado, característica principal da sociedade contemporânea, inviabiliza a comunicação entre os seres humanos, limitando suas ações para atender a seus interesses particulares12. Para se ter um conhecimento que demande uma ação solidária social, não se pode fechar os olhos à disparidade da 4. Interdisciplinaridade das relações distribuição de renda no país nem à população marginalizada A lógica aristotélica privilegiou as fragmentações do pela sociedade que não dispõe do mínimo para que seus conhecimento, sublinhando as especializações como forma de integrantes se considerem membros de uma sociedade. Tem compreensão do mundo . Isso gerou compartimentalização do que se criar condições mínimas para melhorar o modo de ser saber, obedecendo a uma lógica positivista de que o universo e da sociedade, inclusive na questão ambiental. 9 BURCKART, Op. cit. p. 83. SAINT-SERNIN, Bertrand. A razão no século XX. p. 181. 10 SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. p. 60. 11 TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade, p. 97. 12 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 72. 8 9 18 Conhecimento e Consciência: o despertar para o meio ambiente Assim é totalmente viável o projeto de “re-criar” BURCKART, Hans. Desenvolvimento sustentável e a leitura do mundo natural que se possui, com base em gerenciamento empresarial: elementos para um novo paradigma pressupostos fundados numa proposta para a mudança de de gestão. In: BRUNI, Luigino (Org.). Economia de comunhão: cultura. A discussão acerca do meio ambiente não se resume uma cultura econômica de várias dimensões. Tradução de: a uma tarefa da ecologia, ou, na área jurídica, do direito STUMMER, Thereza Christina F. Vargem Grande Paulista: ambiental. “Re-pensar” as atitudes humanas quanto ao meio Cidade Nova, 2002. ambiente passa, necessariamente, por uma atitude de “recriação” da leitura que se possui acerca da natureza e que eleve a maneira de agir como um princípio de solidariedade que procura eliminar a condição de trabalhar o outro como objeto, DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997. ONU. Conferência do Rio, Agenda 21. 1992. reconhecendo-o como sujeito13. Tem-se de afirmar que os conceitos de desenvolvi- . 19a Sessão especial da assembléia geral. Programa mento sustentável e de integração das áreas de conhecimento e para a continuação da implantação da Agenda 21. Nova York, atuação levam a uma mudança de enormes proporções, que 1997. requer cultura nova, baseada na questão social, de modo particular na erradicação da pobreza em nível global; uma cultura caracterizada por grande respeito à natureza, baseada em novos paradigmas econômicos, tecnológicos e legislativos que PENA-VEIGA, Alfredo; ALMEIDA, Elimar Pinheiro de. (Org.). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. abranjam os padrões de produção e de consumo. É preciso re- SAINT-SERNIN, Bertrand. A razão no século XX. Tradução conhecer que se está no início do caminho para conceber essa de: PONTES, Mario. Rio de Janeiro: José Olympo; Brasília: mudança e desenvolver elementos necessários para essa nova UnB, 1998. cultura. 6. Referências SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artmed, 1998. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 6. ed. Rio de SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a Janeiro: Lumen Juris, 2002. ciência, o direito e a política na transição paradigmática. v. 1. BOBBIO, Norberto. A era dos direito. 8. ed. Tradução de: COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BUARQUE, Cristovam. O pensamento em um terceiro mundo. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Tradução de: EDEL, Elia Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1994. In: BURSTYN, M. (Org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 58-80. SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. p. 30. 13 19 Artigo 03 Artigo 03 A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos Flávia Piovesan1 1.Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: gênese e principiologia. 2. O Estado Brasileiro em Face do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. 3.A Incorporação dos Tratados Internacionais de Proteção de Direitos Humanos pelo Direito Brasileiro. 4. O Impacto dos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos na Ordem Jurídica Brasileira. 5.Considerações finais. A proposta deste artigo é enfocar os tratados Em face do regime de terror, no qual imperava a lógica internacionais de proteção aos direitos humanos à luz da da destruição e segundo o qual as pessoas eram consideradas Constituição Brasileira de 1988, com destaque às inovações descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra introduzidas pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do valor dos Nesse sentido, primeiro serão apresentadas as especificidades desses tratados, bem como de sua fonte – o Direito Inter- direitos humanos, como paradigma e referencial ético para orientar a ordem internacional. nacional dos Direitos Humanos. Num segundo momento, será Assim, em meados do século XX surge o “Direito dado destaque à posição do Brasil em face dos instrumentos in- Internacional dos Direitos Humanos” surge em decorrência ternacionais de proteção dos direitos humanos. Em seguida, será da Segunda Guerra Mundial e seu desenvolvimento pode ser feita uma avaliação do modo pelo qual a Constituição Brasileira de atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da 1988 tece a incorporação desses tratados e, por fim, será analisado era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderiam o impacto juridico que esses tratados apresentam. Neste momen- ser prevenidas se existisse um efetivo sistema de proteção to, serão analisados casos concretos da aplicação desses tratados. internacional de direitos humanos3. Ao tratar do Direito Internacional dos Direitos 1. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: gênese e principiologia Os tratados internacionais de direitos humanos têm como fonte um campo do Direito extremamente recente, denominado “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, conhecido como Direito do pós-guerra, o qual surgiu como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos pelo nazismo2. Humanos, afirma Richard B. Bilder: O movimento do direito internacional dos direitos humanos é baseado na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e a responsabilidade de protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações. Professora doutora da disciplina de Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide de Sevilha (Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies, da University of Oxford (2005), visiting fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007), procuradora do estado de São Paulo, membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e da SUR – Human Rights University Network. Este artigo foi produzido com base no livro de minha autoria, intitulado Temas de Direitos Humanos, capítulo 1, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2008. 2 Como explica Louis Henkin: “Subsequentemente à Segunda Guerra Mundial, os acordos internacionais de direitos humanos têm criado obrigações e responsabilidades para os Estados, com respeito às pessoas sujeitas à sua jurisdição, e um direito costumeiro internacional tem se desenvolvido. O emergente Direito Internacional dos Direitos Humanos institui obrigações aos Estados para com todas as pessoas humanas e não apenas para com estrangeiros. Este Direito reflete a aceitação geral de que todo indivíduo deve ter direitos, os quais todos os Estados devem respeitar e proteger. Logo, a observância dos direitos humanos é não apenas um assunto de interesse particular do Estado (e relacionado à jurisdição doméstica), mas é matéria de interesse internacional e objeto próprio de regulação do Direito Internacional”. (HENKIN, Louis et al. International law: cases and materials. 3. ed. Minnesota: West Publishing, 1993. p. 375-376). 3 Na lição de Thomas Buergenthal: “Este código, como já observei em outros escritos, tem humanizado o direito internacional contemporâneo e internacionalizado os direitos humanos, ao reconhecer que os seres humanos têm direitos protegidos pelo direito internacional e que a denegação desses direitos engaja a responsabilidade internacional dos Estados independentemente da nacionalidade das vítimas de tais violações”. (BUERGENTHAL, Thomas. Prólogo. In: Cançado Trindade, Antonio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. XXXI). 1 20 A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos O Direito Internacional dos Direitos Humanos proteção dos direitos humanos; isto é, permitem- consiste num sistema de normas internacionais, se formas de monitoramento e responsabilização procedimentos e instituições desenvolvidas para internacional, quando os direitos humanos forem implementar essa concepção e promover o respeito violados5; dos direitos humanos em todos os países, no 2) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve âmbito mundial. (...) Embora a idéia de que os seres ter direitos protegidos na esfera internacional, na humanos têm direitos e liberdades fundamentais que condição de sujeito de Direito. lhe são inerentes tenha há muito tempo surgido no Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a pensamento humano, a concepção de que os direitos forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida humanos são objeto próprio de uma regulação como um problema de jurisdição doméstica, decorrência em internacional, por sua vez, é bastante recente. (...) sua soberania. Muitos dos direitos que hoje constam do “Direito Inspirada por essas concepções, surge, a partir do Internacional dos Direitos Humanos” surgiram pós-guerra, em 1945, a Organização das Nações Unidas. Em apenas em 1945, quando, com as implicações do 1948 é adotada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, holocausto e de outras violações de direitos humanos pela aprovação unânime de 48 Estados, com 8 abstenções6. cometidas pelo nazismo, as nações do mundo A inexistência de qualquer questionamento ou reserva feita decidiram que a promoção de direitos humanos e pelos Estados aos princípios da Declaração e a inexistência liberdades fundamentais deve ser um dos principais de qualquer voto contrário às suas disposições, conferem à propósitos das Organizações das Nações Unidas4. Declaração Universal o significado de um código e plataforma comum de ação. A declaração consolida a afirmação de uma Nesse cenário, fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado ética universal7, ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal, a serem seguidos pelos Estados. do Estado, isto é, não deve se restringir à competência A declaração de 1948 introduz a concepção contem- nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque porânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque a con- essa concepção inovadora aponta para duas importantes dição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titula- conseqüências: ridade de direitos, sendo a dignidade humana o fundamento 1) a revisão da noção tradicional de soberania dos direitos humanos. Indivisibilidade porque, ineditamente, absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálo- de relativização, na medida em que são admitidas go dos direitos econômicos, sociais e culturais. Ao consagrar intervenções no plano nacional, em prol da direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e cultu- BILDER, Richard B. An overview of international human rights law. In: HANNUM, Hurst (Editor). Guide to international human rights practice. 2. ed. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. 1992. p. 3-5. 5 A respeito disso, destaca-se a afirmação do Secretário Geral das Nações Unidas, no final de 1992: “Ainda que o respeito pela soberania e integridade do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então concebida teoricamente. Uma das maiores exigências intelectuais de nosso tempo é a de repensar a questão da soberania (...). Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo como um todo. É um movimento que, cada vez mais, encontra expressão na gradual expansão do Direito Internacional”. (BOUTROS-GHALI, Boutros. Foreign Affairs. Empowering the United Nations. v. 89, p. 98-99, 1992/1993, apud HENKIN, Louis, et al, International law: cases and materials. op. cit. p. 18.) Transita-se, assim, de uma concepção “hobbesiana” de soberania, centrada no Estado, para uma concepção “kantiana” de soberania, centrada na cidadania universal. Para Celso Lafer, de uma visão ex parte príncipe, fundada nos deveres dos súditos com relação ao Estado, passa-se a uma visão ex parte populi, fundada na promoção da noção de direitos do cidadão. (LAFER, Celso. Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 145.) 6 A Declaração Universal foi aprovada pela Resolução 217 A (III), da Assembléia Geral, em 10 de dezembro de 1948, por 48 votos a zero e oito abstenções. Os oito Estados que se abstiveram foram: Bielorússia, Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, União Soviética, África do Sul e Iugoslávia. Observa-se que em Helsinki, em 1975, no Ato Final da Conferência sobre Seguridade e Cooperação na Europa, os Estados comunistas da Europa expressamente aderiram à Declaração Universal. Sobre o caráter universal da declaração, observa René Cassin: “Séame permitido, antes de concluir, resumir a grandes rasgos los caracteres de la declaración surgida de nuestros debates de 1947 a 1948. Esta declaración se caracteriza, por una parte, por su amplitud. Comprende el conjunto de derechos y facultades sin los cuales un ser humano no puede desarrolar su personalidad física, moral y intelectual. Su segunda característica es la universalidad: es aplicable a todos los hombres de todos los países, razas, religiones y sexos, sea cual fuere el régimen político de los territorios donde rija. De ahí que al finalizar los trabajos, pese a que hasta entonces se había hablado siempre de declaración “internacional”, la Asamblea General, gracias a mi proposición, proclamó la declaración “Universal”. Al hacerlo conscientemente, subrayó que el individuo es miembro directo de la sociedad humana y que es sujeto directo del derecho de gentes. Naturalmente, es ciudadano de su país, pero también lo es del mundo, por el hecho mismo de la protección que el mundo debe brindarle. Tales son los caracteres esenciales de la declaración.(...) La Declaración, por el hecho de haber sido, como fue el caso, adoptada por unanimidad (pues sólo hubo 8 abstenciones, frente a 48 votos favorables), tuvo inmediatamente una gran repercusión en la moral de las naciones. Los pueblos empezaron a darse cuenta de que el conjunto de la comunidad humana se interesaba por su destino”. (CASSIN, René. El problema de la realización de los derechos humanos en la sociedad universal. In: Viente años de evolucion de los derechos humanos. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1974. p. 397.) 7 Cf. Eduardo Muylaert Antunes: “A Declaração Universal dos Direitos Humanos se impõe com “o valor da afirmação de uma ética universal” e conservará sempre seu lugar de símbolo e de ideal”. (Natureza jurídica da Declaração Universal de Direitos Humanos. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 446, p. 35, dez. 1972.) 4 21 Artigo 03 rais, a declaração ineditamente combina o discurso liberal e o da sucessão “geracional” de direitos, na medida em que se acolhe discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberda- a idéia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos de ao valor da igualdade8. Segundo Louis B. Sohn e Thomas humanos consagrados, todos essencialmente complementares Buergenthal: e em constante dinâmica de interação. Logo, apresentando os A Declaração Universal de Direitos Humanos se distingue das tradicionais Cartas de direitos humanos que constam de diversas normas fundamentais e constitucionais dos séculos XVIII e XIX e começo do século XX, na medida em que ela consagra não apenas direitos civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho e à educação9. direitos humanos uma unidade indivisível, revela-se esvaziado o direito à liberdade, quando não assegurado o direito à igualdade e, por sua vez, esvaziado revela-se o direito à igualdade, quando não assegurada a liberdade11. Vale dizer, sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto sem a realização dos direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos e Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da sociais carecem de verdadeira significação. Não há mais como igualdade, a declaração demarca a concepção contemporânea cogitar da liberdade divorciada da justiça social, como também de direitos humanos, pela qual os direitos humanos passam infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade. Em a ser concebidos como uma unidade interdependente, inter- suma, todos os direitos humanos constituem um complexo relacionada e indivisível. Assim, partindo-se do critério integral, único e indivisível, em que os diferentes direitos estão metodológico, que classifica os direitos humanos em gerações10, necessariamente inter-relacionados e interdependentes entre si. adota-se o entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a idéia Como estabeleceu a Resolução no 32/130 da Assembléia Geral das Nações Unidas: Quanto à classificação dos direitos constantes da declaração, adverte Antonio Cassesse: “Mas vamos examinar o conteúdo da Declaração de forma mais aprofundada. Para este propósito, é melhor nos deixarmos orientar, ao menos em determinado sentido, por um dos pais da Declaração, o francês René Cassin, que descreveu seu escopo do modo a seguir. Primeiramente, trata a Declaração dos direitos pessoais (os direitos à igualdade, à vida, à liberdade e à segurança, etc. – arts. 3o a 11). Posteriormente, são previstos direitos que dizem respeito ao indivíduo em sua relação com grupos sociais no qual ele participa (o direito à privacidade da vida familiar e o direito ao casamento; o direito à liberdade de movimento no âmbito nacional ou fora dele; o direito à nacionalidade; o direito ao asilo, na hipótese de perseguição; direitos de propriedade e de praticar a religião – arts. 12 a 17). O terceiro grupo de direitos se refere às liberdades civis e aos direitos políticos exercidos no sentido de contribuir para a formação de órgãos governamentais e participar do processo de decisão (liberdade de consciência, pensamento e expressão; liberdade de associação e assembléia; direito de votar e ser eleito; direito ao acesso ao governo e à administração pública – arts. 18 a 21). A quarta categoria de direitos se refere aos direitos exercidos nos campos econômicos e sociais (ex: aqueles direitos que se operam nas esferas do trabalho e das relações de produção, o direito à educação, o direito ao trabalho e à assistência social e à livre escolha de emprego, a justas condições de trabalho, ao igual pagamento para igual trabalho, o direito de fundar sindicatos e deles participar; o direito ao descanso e ao lazer; o direito à saúde, à educação e o direito de participar livremente na vida cultural da comunidade – arts. 22 a 27)”. (CASSESSE, Antonio. Human rights in a changing world. Philadelphia: Temple University Press, 1990. p. 38-39). Sobre o tema, observa José Augusto Lindgren Alves que mais acurada é a classificação feita por Jack Donnelly, quando sustenta que a declaração de 1948 enuncia as seguintes categorias de direitos: 1) direitos pessoais, incluindo os direitos à vida, à nacionalidade, ao reconhecimento perante a lei, à proteção contra tratamentos ou punições cruéis, degradantes ou desumanas e à proteção contra a discriminação racial, étnica, sexual ou religiosa (arts. 2o a 7o e 15); 2) direitos judiciais, incluindo o acesso a remédios por violação dos direitos básicos, a presunção de inocência, a garantia de processo público justo e imparcial, a irretroatividade das leis penais, a proteção contra a prisão, detenção ou exílio arbitrários, e contra a interferência na família, no lar e na reputação (arts. 8o a 12); 3) liberdades civis, especialmente as liberdades de pensamento, consciência e religião, de opinião e expressão, de movimento e resistência, e de reunião e de associação pacífica (arts. 13 e de 18 a 20); 4) direitos de subsistência, particularmente os direitos à alimentação e a um padrão de vida adequado à saúde e ao bem-estar próprio e da família (art. 25); 5) direitos econômicos, incluindo principalmente os direitos ao trabalho, ao repouso e ao lazer, e à segurança social (arts. 22 a 26); 6) direitos sociais e culturais, especialmente os direitos à instrução e à participação na vida cultural da comunidade (arts. 26 e 28); 7) direitos políticos, principalmente os direitos a tomar parte no governo e a eleições legítimas com sufrágio universal e igual (art. 21), acrescido dos aspectos políticos de muitas liberdades civis”. (DONNELLY, Jack. International human rights: a regime analysis. In: International organization. Massachussetts Institute of Technology, Summer 1986. p. 599-642, apud LINDGREN ALVES, José Augusto. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos e o Brasil. Arquivos do Ministério da Justiça, Brasília, v. 46, n. 182, p. 89, jul./dez.1993). Na lição de Celso D. de Albuquerque Mello, a Declaração Universal “tem sido dividida pelos autores em quatro partes: a) normas gerais (arts. 1o e 2o, 28, 29 e 30); b) direitos e liberdades fundamentais (arts. 3o a 20); c) direitos políticos (art. 21); d) direitos econômicos e sociais (arts. 22 e 27)”. (Curso de direito internacional público. 6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979. p. 531.) 9 International protection of human rights. Indianapolis: The Bobbs-Merrill Company, 1973. p. 516. 10 A partir desse critério, os direitos de primeira geração correspondem aos direitos civis e políticos, que traduzem o valor da liberdade; os direitos de segunda geração correspondem aos direitos sociais, econômicos e culturais, que traduzem, por sua vez, o valor da igualdade; já os direitos de terceira geração correspondem ao direito ao desenvolvimento, direito à paz, à livre determinação, que traduzem o valor da solidariedade. Sobre a matéria, ver ESPIELL, Hector Gross. Estudios sobre derechos humanos, Madrid: Civitas, 1988, p. 328-332. Do mesmo autor a obra: Los derechos economicos sociales y culturales en el sistema interamericano. San José, Libro libre, 1986. Ainda sobre a idéia de gerações de direitos humanos, explica Burns H. Weston: “A este respeito, particularmente útil é a noção de “três gerações de direitos humanos” elaborada pelo jurista francês Karel Vasak. Sob a inspiração dos três temas da Revolução francesa, estas três gerações de direitos são as seguintes: a primeira geração se refere aos direitos civis e políticos (liberté); a segunda geração aos direitos econômicos, sociais e culturais (égalité); e a terceira geração se refere aos novos direitos de solidariedade (fraternité)”. (WESTON, Burns H. Human rights, In: CLAUDE, Richard Pierre, WESTON, Burns H (Editores). Human rights in the world community, p. 16-17). Sobre a matéria consultar ainda LUÑO, A. E. P. (Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1988); T. H. Marshall (Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.) 11 Sobre a indivisibilidade dos direitos humanos, afirma Louis Henkin: “Os direitos considerados fundamentais incluem não apenas limitações que inibem a interferência dos governos nos direitos civis e políticos, mas envolvem obrigações governamentais de cunho positivo em prol da promoção do bem-estar econômico e social, pressupondo um Governo que seja ativo, interventor, planejador e comprometido com os programas econômico-sociais da sociedade que, por sua vez, os transforma em direitos econômicos e sociais para os indivíduos”. (The age of rights. New York: Columbia University Press, 1990. p. 6-7). No entanto, difícil é a conjugação desses valores, e em particular difícil é a conjugação dos valores da igualdade e liberdade. Como pondera Norberto Bobbio: “As sociedades são mais livres na medida em que são menos justas e mais justas na medida em que são menos livres”. (A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 43.) 8 22 A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos todos os direitos humanos, qualquer que seja o tipo a que pertencem, se inter-relacionam necessariamente entre si, e são indivisíveis e interdependentes12. Essa concepção foi reiterada na Declaração de Viena de 1993, ao afirmar, em seu § 5o, que os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. Seja por fixar a idéia de que os direitos humanos são universais, inerentes à condição de pessoa e não relativos às peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade, seja por incluir em seu elenco não só direitos civis e políticos, mas também direitos sociais, econômicos e culturais, a declaração de 1948 demarca a concepção contemporânea dos direitos humanos. Uma das principais qualidades da declaração é constituir-se em parâmetro e código de atuação para os estados integrantes da comunidade internacional. Ao consagrar o reconhecimento universal dos direitos humanos pelos estados, a declaração consolida um parâmetro internacional para a proteção desses direitos. Nesse sentido, ela é um dos parâmetros fundamentais pelos quais a comunidade internacional “deslegitima” os estados. Um estado que sistematicamente viola a declaração não é merecedor de aprovação por parte da comunidade mundial13. A partir da aprovação da Declaração Universal de 1948 e da concepção contemporânea de direitos humanos por ela introduzida, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais. Os instrumentos internacionais de proteção refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos. Nesse sentido, cabe destacar que, até junho de 2006, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 156 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 153 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 141 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 170 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 183 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 192 Estados-partes14 . Forma-se o sistema normativo global de proteção dos direitos humanos, no âmbito das Nações Unidas. Esse sistema normativo, por sua vez, é integrado por instrumentos de alcance geral (como os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966) e por instrumentos de alcance específico, como as convenções internacionais, que buscam responder a determinadas violações dos direitos humanos, como a tortura, a discriminação racial, a discriminação contra as mulheres, a violação dos direitos das crianças, dentre outras formas de violação. Firma-se assim, no âmbito do sistema global, a coexistência dos sistemas geral e especial de proteção dos direitos humanos, como sistemas de proteção complementares. O sistema especial de proteção realça o processo da especificação do sujeito de direito, no qual o sujeito passa a ser visto segundo sua especificidade e concreticidade (ex: protege-se a criança, os grupos étnicos minoritários, os grupos vulneráveis, as mulheres, etc.). Já o sistema geral de proteção (ex: os Pactos da ONU de 1966) tem por endereçado toda e qualquer pessoa, concebida segundo sua abstração e generalidade. Ao lado do sistema normativo global, surge o sistema normativo regional de proteção, que busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global – integrado pelos instrumentos das Nações Unidas, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e as demais Convenções internacionais – com instrumentos do sistema regional, por sua vez integrado pelos sistemas interamericano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos. Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, esses sistemas compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos no Sobre a Resolução n. 32/130 afirma Antonio Augusto Cançado Trindade: “Aquela resolução (32/130), ao endossar a asserção da Proclamação de Teerã de 1968, reafirmou a indivisibilidade a partir de uma perspectiva globalista, e deu prioridade à busca de soluções para as violações maciças e flagrantes dos direitos humanos. Para a formação deste novo ethos, fixando parâmetros de conduta em torno de valores básicos universais, também contribuiu o reconhecimento da interação entre os direitos humanos e a paz consignado na Ata Final de Helsinque de 1975”. (A proteção internacional dos direitos humanos no limiar do novo século e as perspectivas brasileiras. In: Temas de Política Externa Brasileira, II, v. 1, 1994. p. 169). 13 Cf. Cassesse, Antonio, Human rights in a changing world, op. cit. p. 46-47. Louis B. Sohn e Thomas Buergenthal afirmam que: “A Declaração Universal de Direitos Humanos tem, desde sua adoção, exercido poderosa influência na ordem mundial, tanto internacional como nacionalmente. Suas previsões têm sido citadas como justificativa para várias ações adotadas pelas Nações Unidas e têm inspirado um grande número de Convenções internacionais no âmbito das Nações Unidas ou fora dele. Estas previsões também exercem uma significativa influência nas Constituições nacionais e nas legislações locais e, em diversos casos, nas decisões das Cortes. Em algumas instâncias, o texto das previsões da Declaração tem sido incorporado em instrumentos internacionais ou na legislação nacional e há inúmeras instâncias que adotam a Declaração como um código de conduta e um parâmetro capaz de medir o grau de respeito e de observância relativamente aos parâmetros internacionais de direitos humanos”. (Sohn, Louis B. e ; Buergenthal, Thomas, op. cit., p. 516.) 14 Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, Status of Ratifications of the Principal International Human Rights Treaties. Disponível em: <http://www. unhchr.ch/pdf/report.pdf> 12 23 Artigo 03 plano internacional. Em face desse complexo universo de Assim, a partir da Carta de 1988, importantes instrumentos internacionais, cabe ao indivíduo que sofreu tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados violação de direito a escolha do aparato mais favorável, tendo pelo Brasil. Dentre eles, destaca-se a ratificação: em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional, a) da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; ou ainda, de alcance geral ou especial. Sob essa ótica, os b) da Convenção contra a Tortura e outros diversos sistemas de proteção dos direitos humanos interagem Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em benefício dos indivíduos protegidos. De acordo com a visão de Antônio Augusto Cançado Trindade: em 28 de setembro de 1989; c) da Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; O critério da primazia da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em primeiro d) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, lugar para reduzir ou minimizar consideravelmente Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; as pretensas possibilidades de “conflitos” entre instru- f) da Convenção Americana de Direitos Humanos, mentos legais em seus aspectos normativos. Contribui, em 25 de setembro de 1992; em segundo lugar, para obter maior coordenação entre g) da Convenção Interamericana para Prevenir, tais instrumentos em dimensão tanto vertical (tratados Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em e instrumentos de direito interno), quanto horizontal (dois ou mais tratados). (...) Contribui, em terceiro lugar, para demonstrar que a tendência e o propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção15. Feitas essas breves considerações a respeito dos tratados internacionais de direitos humanos, passa-se à análise do modo pelo qual o Brasil se relaciona com o aparato internacional de proteção dos direitos humanos. 2. O Estado Brasileiro em Face do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos 27 de novembro de 1995; h) do Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte, em 13 de agosto de 1996; i) do Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), em 21 de agosto de 1996; j) da Convenção Interamericana para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra Pessoas Portadoras de Deficiência, em 15 de agosto de 2001; k) do Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, em 20 de junho de 2002; No que se refere à posição do Brasil em relação l) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, Eliminação de todas as formas de Discriminação observa-se que somente a partir do processo de democratização contra a Mulher, em 28 de junho de 2002; do país, deflagrado em 1985, é que o estado brasileiro passou a m) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos. Direitos da Criança sobre o Envolvimento de O marco inicial do processo de incorporação de Crianças em Conflitos Armados, em 27 de janeiro tratados internacionais de direitos humanos pelo Direito de 2004; brasileiro foi a ratificação, em 1989, da Convenção contra n) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Direitos da Criança sobre Venda, Prostituição e Degradantes. A partir dessa ratificação, inúmeros outros Pornografia Infantis, também em 27 de janeiro de importantes instrumentos internacionais de proteção dos 2004; e direitos humanos foram também incorporados pelo Direito Brasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988. o) do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura, em 11 de janeiro de 2007. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos. In: Arquivos do Ministério da Justiça, Brasília, v. 46, n. 182, p. 52-53, jul./dez. 1993. 15 24 A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos As inovações introduzidas pela Carta de 1988 – especialmente no que tange ao primado da prevalência dos direitos humanos, como princípio orientador das relações internacionais – foram fundamentais para a ratificação desses importantes instrumentos de proteção dos direitos humanos16. Além das inovações constitucionais, como importante fator para a ratificação desses tratados internacionais, acrescente-se a necessidade do Estado brasileiro reorganizar sua agenda internacional, de modo mais condizente com as transformações internas decorrentes do processo de democratização. Esse esforço se conjuga com o objetivo de compor uma imagem mais positiva do Estado brasileiro no contexto internacional, como país respeitador e garantidor dos direitos humanos. Adicione-se que a subscrição do Brasil aos tratados internacionais de direitos humanos simboliza ainda o aceite do Brasil para com a idéia contemporânea de globalização dos direitos humanos, bem como para com a idéia da legitimidade das preocupações da comunidade internacional, no tocante à matéria. Por fim, há que se acrescer o elevado grau de universalidade desses instrumentos, que contam com significativa adesão dos demais estados integrantes da ordem internacional. Logo, faz-se clara a relação entre o processo de democratização no Brasil e o processo de incorporação de relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, tendo em vista que, se o processo de democratização permitiu a ratificação de relevantes tratados de direitos humanos, por sua vez essa ratificação permitiu o fortalecimento do processo democrático, por meio da ampliação e do reforço do universo de direitos por ele assegurado. O valor da dignidade humana – ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1o, III – impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional. É nesse contexto que há de se interpretar o disposto no art. 5o, § 2o do texto, que, de forma inédita, tece a interação entre o Direito brasileiro e os tratados internacionais de direitos humanos. Ao fim da extensa Declaração de Direitos enunciada pelo art. 5o, a Carta de 1988 estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. À luz desse dispositivo constitucional, os direitos fundamentais podem ser organizados em três distintos grupos: a) o dos direitos expressos na Constituição; b) o dos direitos implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Carta constitucional; e c) o dos direitos expressos nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil. A Constituição de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados 3. A Incorporação dos Tratados Internacionais de Proteção de nos tratados internacionais de que o Brasil seja Direitos Humanos pelo Direito Brasileiro signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Carta Preliminarmente, é necessário frisar que a Constituição está a atribuir aos direitos internacionais uma Brasileira de 1988 constitui o marco jurídico da transição hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de democrática e da institucionalização dos direitos humanos norma constitucional. no Brasil. O texto de 1988, ao simbolizar a ruptura com o Essa conclusão advém de interpretação sistemática e regime autoritário, empresta aos direitos e garantias ênfase teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva extraordinária, situando-se como o documento mais avançado, dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, abrangente e pormenorizado sobre a matéria, na história como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do constitucional do país. fenômeno constitucional17. A esse raciocínio se acrescentam o Para J. A. Lindgren Alves: “Com a adesão aos dois Pactos Internacionais da ONU, assim como ao Pacto de São José, no âmbito da OEA, em 1992, e havendo anteriormente ratificado todos os instrumentos jurídicos internacionais significativos sobre a matéria, o Brasil já cumpriu praticamente todas as formalidades externas necessárias à sua integração ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Internamente, por outro lado, as garantias aos amplos direitos entronizados na Constituição de 1988, não passíveis de emendas e, ainda, extensivas a outros decorrentes de tratados de que o país seja parte, asseguram a disposição do Estado democrático brasileiro de conformar-se plenamente às obrigações internacionais por ele contraídas”. (Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva/ Fundação Alexandre de Gusmão, 1994. p. 108.) 17 Para José Joaquim Gomes Canotilho: “A legitimidade material da Constituição não se basta com um “dar forma” ou “constituir” de órgãos; exige uma fundamentação substantiva para os actos dos poderes públicos e daí que ela tenha de ser um parâmetro material, directivo e inspirador desses actos. A fundamentação material é hoje essencialmente fornecida pelo catálogo de direitos fundamentais (direitos, liberdades e garantias e direitos econômicos, sociais e culturais)”. (Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993. p. 74.) 16 25 Artigo 03 princípio da máxima efetividade das normas constitucionais detêm natureza de norma constitucional. Esse tratamento referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza jurídico diferenciado se justifica, na medida em que os materialmente constitucional dos direitos fundamentais18, o tratados internacionais de direitos humanos apresentam um que justifica estender aos direitos enunciados em tratados o caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias comuns. Enquanto estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade fundamentais. Essa conclusão decorre também do processo de de relações entre Estados-partes, aqueles transcendem os globalização, que propicia e estimula a abertura da Constituição meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes, à normação internacional – abertura que resulta na ampliação tendo em vista que objetivam a salvaguarda dos direitos do do “bloco de constitucionalidade”, que passa a incorporar ser humano e não das prerrogativas dos Estados. No mesmo preceitos asseguradores de direitos fundamentais. Adicione-se, sentido, argumenta Juan Antonio Travieso: ainda, o fato de as Constituições latino-americanas recentes conferirem aos tratados de direitos humanos um status Los tratados modernos sobre derechos humanos en jurídico especial e diferenciado, destacando-se, nesse sentido, general, y, en particular la Convención Americana a Constituição da Argentina que, em seu art. 75, § 22, eleva os no son tratados multilaterales del tipo tradicional principais tratados de direitos humanos à hierarquia de norma concluidos en función de un intercambio recíproco constitucional. de derechos para el beneficio mutuo de los Estados Logo, por força do art. 5 , §§ 1 e 2 , a Carta de 1988 contratantes. Su objeto y fin son la protección de atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais a los derechos fundamentales de los seres humanos hierarquia de norma constitucional, incluindo-os no elenco independientemente dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam frente a su proprio Estado como frente a los otros aplicabilidade imediata. A hierarquia constitucional dos Estados contratantes. Al aprobar estos tratados sobre tratados de proteção dos direitos humanos decorre da previsão derechos humanos, los Estados se someten a un orden constitucional do art. 5 , § 2 , à luz de uma interpretação legal dentro del cual ellos, por el bién común, asumen sistemática e teleológica da Carta, particularmente da varias obligaciones, no en relación con otros Estados, prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao princípio sino hacia los individuos bajo su jurisdicción. Por da dignidade da pessoa humana. Essa opção do constituinte tanto, la Convención no sólo vincula a los Estados de 1988 se justifica em face do caráter especial dos tratados partes, sino que otorga garantías a las personas. Por de direitos humanos e, no entender de parte da doutrina, da ese motivo, justificadamente, no puede interpretarse superioridade desses tratados no plano internacional, tendo como cualquier otro tratado20. o o o o o de su nacionalidad, tanto em vista que integrariam o chamado jus cogens (direito cogente e inderrogável). Enfatize-se que, enquanto os demais tratados internacionais têm força hierárquica infraconstitucional19, Esse caráter especial vem a justificar o status constitucional atribuído aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. nos termos do art. 102, III, “b” do texto (que admite o Conclui-se, portanto, que o Direito brasileiro faz op- cabimento de recurso extraordinário de decisão que declarar ção por um sistema misto, que combina regimes jurídicos dife- a inconstitucionalidade de tratado), os direitos enunciados renciados: um regime aplicável aos tratados de direitos huma- em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos nos e um outro aplicável aos tratados tradicionais. Enquanto Sobre o tema, José Joaquim Gomes Canotilho afirma: “Ao apontar para a dimensão material, o critério em análise coloca-nos perante um dos temas mais polêmicos do direito constitucional: qual é o conteúdo ou matéria da Constituição? O conteúdo da Constituição varia de época para época e de país para país e, por isso, é tendencialmente correcto afirmar que não há reserva de Constituição no sentido de que certas matérias têm necessariamente de ser incorporadas na Constituição pelo Poder Constituinte. Registre-se, porém, que, historicamente (na experiência constitucional), foram consideradas matérias constitucionais, par excellence, a organização do poder político (informada pelo princípio da divisão de poderes) e o catálogo dos direitos, liberdades e garantias. Posteriormente, verificou-se o “enriquecimento” da matéria constitucional através da inserção de novos conteúdos, até então considerados de valor jurídico-constitucional irrelevante, de valor administrativo ou de natureza sub-constitucional (direitos econômicos, sociais e culturais, direitos de participação e dos trabalhadores e constituição econômica)”. (Direito constitucional, op. cit. p. 68). Prossegue o mesmo autor: “Um topos caracterizador da modernidade e do constitucionalismo foi sempre o da consideração dos “direitos do homem” como ratio essendi do Estado Constitucional. Quer fossem considerados como “direitos naturais”, “direitos inalienáveis” ou “direitos racionais” do indivíduo, os direitos do homem, constitucionalmente reconhecidos, possuíam uma dimensão projectiva de comensuração universal”. (idem, p. 18). 19 Sustenta-se que os tratados tradicionais têm hierarquia infraconstitucional, mas supralegal. Esse posicionamento se coaduna com o princípio da boa-fé, vigente no direito internacional (o pacta sunt servanda), que tem como reflexo o art. 27 da Convenção de Viena, segundo o qual não cabe ao Estado invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento de tratado. 20 TRAVIESO, Juan Antonio. Derechos humanos y derecho internacional. Buenos Aires: Heliasta, 1990. p. 90. Compartilhando do mesmo entendimento, leciona Jorge Reinaldo Vanossi: La declaración de la Constitución argentina es concordante con as Declaraciones que han adoptado los organismos internacionales, y se refuerza con la ratificación argentina a las convenciones o pactos internacionales de derechos humanos destinados a hacerlos efectivos y brindar protección concreta a las personas a través de instituciones internacionales. (La Constitución Nacional y los derechos humanos. 3. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1988. p. 35.) 18 2 A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos No entanto, estabelece o § 3o do art. 5o que os tratados – por força do art. 5o, §§ 1o e 2o – apresentam hierarquia de internacionais de direitos humanos aprovados, em cada Casa norma constitucional e aplicação imediata, os demais trata- do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos dos internacionais apresentam hierarquia infraconstitucional votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas e se submetem à sistemática da incorporação legislativa. No à Constituição. que se refere à incorporação automática, diversamente dos Desde logo, há que afastar o entendimento segundo tratados tradicionais, os tratados internacionais de direitos o qual, em face do § 3o do art. 5o, todos os tratados de direitos humanos irradiam efeitos concomitantemente na ordem humanos já ratificados seriam recepcionados como lei federal, jurídica internacional e nacional, a partir do ato da ratifica- pois não teriam obtido o quorum qualificado de três quintos, ção. Não é necessária a produção de um ato normativo que demandado pelo aludido parágrafo. reproduza no ordenamento jurídico nacional o conteúdo do Observe-se que os tratados de proteção dos direitos tratado, pois sua incorporação é automática, segundo os ter- humanos ratificados anteriormente à Emenda Constitucional mos do art. 5o, § 1o, que consagra o princípio da aplicabilida- no 45/2004 contaram com ampla maioria na Câmara dos de imediata das normas definidoras de direitos e garantias Deputados e no Senado Federal, excedendo, inclusive, o quorum fundamentais. dos três quintos dos membros em cada Casa. Todavia, não Observa-se, contudo, que há quatro correntes foram aprovados por dois turnos de votação, mas em um único doutrinárias acerca da hierarquia dos tratados internacionais turno de votação em cada Casa, uma vez que o procedimento de proteção dos direitos humanos, que sustentam: de dois turnos não era tampouco previsto. a) a hierarquia supra-constitucional desses tratados; b) a hierarquia constitucional; Reitere-se que, por força do art. 5o, § 2o, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do c) a hierarquia infra-constitucional, mas supra-legal e quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, d) a paridade hierárquica entre tratado e lei federal . compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado 21 No sentido de responder à polêmica doutrinária e jurisprudencial concernente à hierarquia dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, a Emenda Constitucional no 45, de 8 dezembro de 2004, introduziu um § 3o no art. 5o, dispondo: está tão-somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Como já defendido por esse trabalho, na hermenêutica emancipatória dos direitos há que imperar uma lógica material e não Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas à Constituição. formal, orientada por valores, a celebrar o valor fundante da prevalência da dignidade humana. À hierarquia de valores deve corresponder uma hierarquia de normas23, e não o oposto. Vale dizer, a preponderância material de um bem jurídico, como é o caso de um direito fundamental, deve condicionar a forma no plano jurídico-normativo, e não ser condicionado por ela. Em face de todos os argumentos já expostos, sustenta- Não seria razoável sustentar que os tratados de se que a hierarquia constitucional já se extrai da interpretação direitos humanos já ratificados fossem recepcionados como conferida ao próprio art. 5 , § 2 , da Constituição de 1988. Vale lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia dizer, seria mais adequado que a redação do aludido § 3o do constitucional exclusivamente em virtude de seu quorum de art. 5 endossasse a hierarquia formalmente constitucional aprovação. A título de exemplo, destaque-se que o Brasil é de todos os tratados internacionais de proteção dos direitos parte da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos humanos ratificados, afirmando – tal como o fez o texto ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes desde 1989, argentino – que os tratados internacionais de proteção de estando em vias de ratificar seu Protocolo Facultativo. Não direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm haveria qualquer razoabilidade se a este último – um tratado hierarquia constitucional22. complementar e subsidiário ao principal – fosse conferida o o o A respeito, ver PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 8. ed. revista, ampliada e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 51-81. 22 Defendi essa posição em parecer sobre o tema, aprovado em sessão do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em março de 2004. 23 MELLO, Celso de Albuquerque. O parágrafo 2o do art. 5o da Constituição Federal. In: Teoria dos direitos fundamentais, p. 25. 21 27 Artigo 03 hierarquia constitucional, e ao instrumento principal fosse Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido conferida hierarquia meramente legal. Tal situação importaria aprovado com quórum de lei ordinária, é de se ressaltar que em agudo anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda, ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não a teoria geral da recepção acolhida no direito brasileiro . obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais. De 24 Ademais, como realça Celso Lafer, “o novo parágrafo 3o acordo com o citado §3o, a Convenção continua em vigor, desta do art. 5o pode ser considerado como uma lei interpretativa des- feita com força de emenda constitucional. A regra emanada tinada a encerrar as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados suscitadas pelo parágrafo 2 do art. 5 . De acordo com a opinião internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o doutrinária tradicional, uma lei interpretativa nada mais faz do que Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do declarar o que pré-existe, ao clarificar a lei existente” . país como normas de hierarquia constitucional. Não se pode o o 25 Uma vez mais, corrobora-se o entendimento de que os escantear que o §1o supra determina, peremptoriamente, que tratados internacionais de direitos humanos ratificados anterior- “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais mente ao mencionado parágrafo, ou seja, anteriormente à Emen- têm aplicação imediata”. Na espécie, devem ser aplicados, da Constitucional n 45/2004, têm hierarquia constitucional, si- imediatamente, os tratados internacionais em que o Brasil tuando-se como normas material e formalmente constitucionais. seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica foi resgatado Esse entendimento decorre de quatro argumentos: pela nova disposição (§3o do art. 5o), a qual possui eficácia o a) a interpretação sistemática da Constituição, de retroativa. A tramitação de lei ordinária conferida à aprovação forma a dialogar os §§ 2 e 3 do art. 5 , já que o da mencionada Convenção (...) não constituirá óbice formal último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, de relevância superior ao conteúdo material do novo direito ser interpretado à luz do sistema constitucional; aclamado, não impedindo a sua retroatividade, por se tratar de o o o b) a lógica e racionalidade material que devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d) a teoria geral da recepção do Direito brasileiro. acordo internacional pertinente a direitos humanos”26. Esse julgado revela a hermenêutica adequada a ser aplicada aos direitos humanos, inspirada por uma lógica e racionalidade material, ao afirmar o primado da substância sob a forma27. A respeito do impacto art. 5o, § 3o, destaca-se a decisão O impacto da inovação introduzida pelo art. 5o, § 3o e do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do a necessidade de evolução e atualização jurisprudencial foram RHC 18799, tendo como relator o Ministro José Delgado, em também realçadas no Supremo Tribunal Federal, quando do maio de 2006: julgamento do RE 466.34328, em 22 de novembro de 2006, em emblemático voto proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira (...) o §3o do art. 5o da CF/88, acrescido pela EC n. 45, Mendes, ao destacar: é taxativo ao enunciar que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (...) a reforma acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. (...) a mudança constitucional ao A título de exemplo, cite-se o Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966), que, embora seja lei ordinária, foi recepcionado como lei complementar, nos termos do artigo 146 da Constituição Federal. 25 LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais, Barueri: Manole, 2005. p. 16. 26 RHC 18799, Recurso Ordinário em Habeas Corpus, data do julgamento: 09/05/2006, DJ 08.06.2006. 27 Em sentido contrário, destaca-se o RHC 19087, Recurso Ordinário em Habeas Corpus, data do julgamento: 18/05/2006, DJ 29.05.2006, julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo como relator o Ministro Albino Zavascki. A argumentação do referido julgado, ao revés, inspirou-se por uma lógica e racionalidade formal, afirmando o primado da forma sob a substância. A respeito, destaca-se o seguinte trecho: “Quanto aos tratados de direitos humanos preexistentes à EC 45/2004, a transformação de sua força normativa – de lei ordinária para constitucional – também supõe a observância do requisito formal de ratificação pelas Casas do Congresso, por quórum qualificado de três quintos. Tal requisito não foi atendido, até a presente data, em relação ao Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos)”. 28 Ver Recurso Extraordinário 466.343-1, São Paulo, relator Ministro Cezar Peluso, recorrente Banco Bradesco S/A e recorrido Luciano Cardoso Santos. Note-se que o julgamento envolvia a temática da prisão civil por dívida e a aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos. Até novembro de 2006, oito dos onze Ministros haviam votado pela inconstitucionalidade da prisão para o devedor em alienação fiduciária, tendo sido pedida vista dos autos pelo Ministro Celso de Mello para maior reflexão sobre a revisão do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Em 1995, diversamente, no julgamento do HC 72.131-RJ, o Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar a mesma temática, sustentou a paridade hierárquica entre tratado e lei federal, admitindo a possibilidade da prisão civil por dívida, pelo voto de oito dos onze Ministros. 24 28 A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE no 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977) percorrer o procedimento demandado pelo § 3o. No mesmo e encontra respaldo em largo repertório de casos jul- formalmente como normas constitucionais, devem gados após o advento da Constituição de 1988. (...) obedecer ao item previsto no novo parágrafo 3o do Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Su- art. 5o29. sentido, Celso Lafer afirma: Com a vigência da Emenda Constitucional no 45, de 08 de dezembro de 2004, os tratados internacionais a que o Brasil venha a aderir, para serem recepcionados premo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. (...) Assim, a premente Isto porque, a partir de um reconhecimento explícito necessidade de se dar efetividade à proteção dos direi- da natureza materialmente constitucional dos tratados de tos humanos nos planos interno e internacional torna direitos humanos, o § 3o do art. 5o permite atribuir o status imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel de norma formalmente constitucional aos tratados de direitos dos tratados internacionais sobre direitos na odem humanos que obedecerem ao procedimento nele contemplado. jurídica nacional. É necessário assumir uma postura Logo, para que os tratados de direitos humanos a serem jurisdicional mais adequada às realidades emergentes ratificados obtenham assento formal na Constituição, requer- em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmen- se a observância de quorum qualificado de três quintos dos te à proteção do ser humano. (...) Deixo acentuado, votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, também, que a evolução jurisprudencial sempre foi em dois turnos – que é justamente o quorum exigido para a uma marca de qualquer jurisdição constitucional. aprovação de emendas à Constituição, nos termos do art. 60, (...) Tenho certeza de que o espírito desta Corte, hoje, § 2o, da Carta de 1988. Nessa hipótese, os tratados de direitos mais que que nunca, está preparado para essa atuali- humanos formalmente constitucionais são equiparados às zação jurisprudencial. emendas à Constituição, isto é, passam a integrar formalmente o Texto Constitucional. Por fim, concluiu o Ministro pela supralegalidade dos tratados de direitos humanos. Acredita-se que o novo dispositivo do art. 5o, § 3o, vem Vale dizer, com o advento do § 3o do art. 5o surgem duas categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos: a reconhecer de modo explícito a natureza materialmente cons- a) os materialmente constitucionais; e titucional dos tratados de direitos humanos, reforçando, desse b) os material e formalmente constitucionais. Frise- modo, a existência de um regime jurídico misto, que distingue os se: todos os tratados internacionais de direitos tratados de direitos humanos dos tratados tradicionais de cunho humanos são materialmente constitucionais, comercial. Isto é, ainda que fossem aprovados pelo elevado por força do § 2o do art. 5o30. Para além de serem quorum de três quintos dos votos dos membros de cada Casa materialmente constitucionais, poderão, a partir do Congresso Nacional, os tratados comerciais não passariam do § 3o do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade a ter status formal de norma constitucional tão-somente pelo de formalmente constitucionais, equiparando-se procedimento de sua aprovação. às emendas à Constituição, no âmbito formal. Se os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda no 45/2004, por força dos §§ 2o e 4. O Impacto dos Tratados Internacionais de Proteção dos 3o do art. 5o da Constituição, são normas material e formalmente Direitos Humanos na Ordem Jurídica Brasileira constitucionais, com relação aos novos tratados de direitos Relativamente ao impacto jurídico dos tratados humanos a serem ratificados, por força do § 2o do mesmo art. 5o, internacionais de direitos humanos no Direito brasileiro, e independentemente de seu quorum de aprovação, serão normas considerando a hierarquia constitucional desses tratados, três materialmente constitucionais. Contudo, para converterem- hipóteses poderão ocorrer. O direito enunciado no tratado se em normas também formalmente constitucionais deverão internacional poderá: LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 17. Como Ingo Wolfgang Sarlet leciona: “Inobstante não necessariamente ligada à fundamentalidade formal, é por intermédio do direito constitucional positivo (art. 5o, parágrafo 2o da CF) que a noção de fundamentalidade material permite a abertura da Constituição a outros direitos fundamentais não constantes de seu texto, e, portanto, apenas materialmente fundamentais, assim como há direitos fundamentais situados fora do catálogo, mas integrantes da Constituição formal” (A eficácia dos direitos fundamentais, p. 81.) 29 30 29 Artigo 03 a) coincidir com o direito assegurado pela Constitui- a) direito de toda pessoa a um nível de vida ção (neste caso a Constituição reproduz preceitos adequado para si próprio e sua família, inclusive do Direito Internacional dos Direitos Humanos); à alimentação, vestimenta e moradia, nos termos b) integrar, complementar e ampliar o universo de do art. 11 do Pacto Internacional dos Direitos direitos constitucionalmente previstos; c) contrariar preceito do Direito interno. Econômicos, Sociais e Culturais; b) proibição de qualquer propaganda em favor Na primeira hipótese, o Direito interno brasileiro, da guerra e proibição de qualquer apologia ao em particular a Constituição de 1988, apresenta dispositivos ódio nacional, racial ou religioso, que constitua que reproduzem fielmente enunciados constantes dos tratados incitamento à discriminação, à hostilidade ou internacionais de direitos humanos. A título de exemplo, me- à violência, em conformidade com o art. 20 do rece referência o disposto no art. 5o, inciso III, da Constituição Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1988 que, ao prever que “ninguém será submetido a tortura, e art. 13 (5) da Convenção Americana; nem a tratamento cruel, desumano ou degradante”, é reprodução literal do art. V da Declaração Universal de 1948, do art. 7o do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e ainda do art. 5o (2) da Convenção Americana. Por sua vez, o princípio da inocência presumida, ineditamente previsto pela Constituição de 1988 em seu art. 5o, LVII, também é resultado de inspiração no Direito Internacional dos Direitos Humanos, nos termos do art. XI da Declaração Universal, art. 14 (3) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e art. 8o (2) da Convenção Americana. Esses são apenas alguns exemplos que comprovam o quanto o Direito interno brasileiro tem como inspiração, paradigma e referência, o Direito Internacional dos Direitos Humanos. c) direito das minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas de ter sua própria vida cultural, professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua, nos termos do art. 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e art. 30 da Convenção sobre os Direitos da Criança; d) proibição do reestabelecimento da pena de morte nos Estados que a hajam abolido, de acordo com o art. 4o (3) da Convenção Americana; e) possibilidade de adoção pelos Estados de medidas, no âmbito social, econômico e cultural, que A reprodução de disposições de tratados internacio- assegurem a adequada proteção de certos grupos nais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira reflete raciais, no sentido de que a eles seja garantido o não apenas o fato do legislador nacional buscar orientação e pleno exercício dos direitos humanos e liberdades inspiração nesse instrumental, mas ainda revela a preocupação fundamentais, em conformidade com o art. 1o (4) do legislador em equacionar o Direito interno, de modo a que da Convenção sobre a Eliminação de todas as se ajuste, com harmonia e consonância, às obrigações interna- formas de Discriminação Racial; cionalmente assumidas pelo Estado brasileiro. Nesse caso, os f) possibilidade de adoção pelos Estados de medidas tratados internacionais de direitos humanos reforçam o valor temporárias e especiais que objetivem acelerar jurídico de direitos constitucionalmente assegurados, de forma a igualdade de fato entre homens e mulheres, que eventual violação do direito importará não apenas em res- nos termos do art. 4o da Convenção sobre a ponsabilização nacional, mas também em responsabilização Eliminação de todas as formas de Discriminação internacional. contra a Mulher; Já na segunda hipótese, os tratados internacionais de direitos humanos estarão a integrar, complementar e estender a declaração constitucional de direitos. Com efeito, a partir dos instrumentos internacionais ratificados pelo Estado brasileiro, é possível elencar inúmeros direitos que, embora não previstos no âmbito nacional, encontram-se enunciados nesses tratados e, assim, passam a se incorporar ao Direito brasileiro. A título de ilustração, cabe menção aos seguintes direitos: g) vedação da utilização de meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões, nos termos do art. 13 da Convenção Americana31; h) direito ao duplo grau de jurisdição como garantia judicial mínima, nos termos dos arts. 8, “h” e 25, parágrafo 1o da Convenção Americana32; A respeito, ver julgamento TRF 3a R – RHC 96.03.060213-2-SP- 2a T, Relatora para o Acórdão Juíza Sylvia Steiner, DJU 19.03.1997. Com fundamento nesses preceitos, há julgados que afirmam o direito de apelar em liberdade, determinando que seja afastada a incidência do artigo 594 do Código de Processo Penal, que estabelece a exigência do recolhimento do réu à prisão para apelar. Nesse sentido, ver Apelação n. 1.011.673/4, julgada em 29.05.1996, 5a Câmara, Relator designado Dr. Walter Swensson, RJTACRIM 31/120. 31 32 30 A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos i) direito do acusado ser ouvido, nos termos do art. 8, parágrafo 1 da Convenção Americana ; contra a Tortura, concluída em Cartagena (1985) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da 33 j) direito de toda pessoa detida ou retida ser julgada Costa Rica), formada no âmbito da OEA (1969) – permitem em prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem a integração da norma penal em aberto, a partir do reforço do prejuízo de que prossiga o processo, nos termos universo conceitual relativo ao termo “tortura”. Note-se que do art. 7, (5) da Convenção Americana e apenas em 7 de abril de 1997 foi editada a lei n. 9455, que define 34 k) proibição da extradição ou expulsão de pessoa a o crime de tortura. outro Estado quando houver fundadas razões Como essa decisão claramente demonstra, os que poderá ser submetida à tortura ou a outro instrumentos internacionais de direitos humanos podem tratamento cruel, desumado ou degradante, nos integrar e complementar dispositivos normativos do Direito termos do art. 3o da Convenção contra a Tortura e brasileiro, permitindo o reforço de direitos nacionalmente do artigo 22, VIII da Convenção Americana . previstos – no caso, o direito de não ser submetido à tortura. 35 Esse elenco de direitos enunciados em tratados Contudo, ainda é possível uma terceira hipótese no internacionais de que o Brasil é parte inova e amplia o universo campo jurídico: a hipótese de um eventual conflito entre o Di- de direitos nacionalmente assegurados, na medida em que não reito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno. se encontram previstos no Direito interno. Observe-se que Essa terceira hipótese é a que encerra maior problemática, sus- esse elenco não é exaustivo, mas tem como finalidade apenas citando a seguinte indagação: como solucionar eventual con- apontar, exemplificativamente, direitos que são consagrados flito entre a Constituição e determinado tratado internacional nos instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil e que de proteção dos direitos humanos? se incorporaram à ordem jurídica interna brasileira. Desse Poder-se-ia imaginar, como primeira alternativa, a modo, percebe-se como o Direito Internacional dos Direitos adoção do critério “lei posterior revoga lei anterior com ela Humanos inova, estende e amplia o universo dos direitos incompatível”, considerando a hierarquia constitucional dos constitucionalmente assegurados. tratados internacionais de direitos humanos. Todavia, um O Direito Internacional dos Direitos Humanos exame mais cauteloso da matéria aponta para um critério de ainda permite, em determinadas hipóteses, o preenchimento solução diferenciado, absolutamente peculiar ao conflito em de lacunas apresentadas pelo Direito brasileiro. A título de tela, que se situa no plano dos direitos fundamentais. E o exemplo, merece destaque decisão proferida pelo Supremo critério a ser adotado se orienta pela escolha da norma mais Tribunal Federal acerca da existência jurídica do crime de favorável à vítima. Vale dizer, prevalece a norma mais benéfica tortura contra criança e adolescente, no Habeas Corpus ao indivíduo, titular do direito. O critério ou princípio da n. 70.389-5 (São Paulo; Tribunal Pleno – 23.6.94; Relator: aplicação do dispositivo mais favorável às vítimas é não apenas Ministro Sidney Sanches; Relator para o Acórdão: Ministro consagrado pelos próprios tratados internacionais de proteção Celso de Mello). Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal dos direitos humanos, mas também encontra apoio na prática enfocou a norma constante no Estatuto da Criança e do ou jurisprudência dos órgãos de supervisão internacionais. Adolescente que estabelece como crime a prática de tortura Isto é, no plano de proteção dos direitos humanos interagem contra criança e adolescente (art. 233 do Estatuto). A polêmica o Direito internacional e o Direito interno, movidos pelas se instaurou em razão de o fato dessa norma consagrar um mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas que “tipo penal aberto”, passível de complementação no que se melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia refere à definição dos diversos meios de execução do delito de é da pessoa humana. Os direitos internacionais constantes tortura. Nesse sentido, entendeu o Supremo Tribunal Federal dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e que os instrumentos internacionais de direitos humanos – em fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção particular, a Convenção de Nova York sobre os Direitos da dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. Criança (1990), a Convenção contra a Tortura, adotada pela Na lição lapidar de Antonio Augusto Cançado Trindade: Assembléia Geral da ONU (1984), a Convenção Interamericana A este respeito, ver RHC 7463/DF, recurso ordinário em habeas-corpus (98/0022262-6), de 23.06.1998, tendo como relator o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. Sobre a matéria, ver STJ, RHC n. 5.239-BA, relator Ministro Edson Vidigal, 5a Turma, v.u., j. 07.05.1996, DJU 29.09.1997. Note-se que esse direito acabou por ser formalmente constitucionalizado em virtude da inclusão do inciso LXXVIII no art. 5o, fruto da Emenda Constitucional n. 45/2004. 35 A respeito, ver Extradição 633, setembro/1998, relator Ministro Celso de Mello, em que foi negada a extradição à República Popular da China de pessoa acusada de crime de estelionato, lá punível com a pena de morte. 33 34 31 Artigo 03 (...) desvencilhamo-nos das amarras da velha e ociosa hipótese do inadimplemento de obrigação alimentícia e a do polêmica entre monistas e dualistas. Neste campo depositário infiel. de proteção, não se trata de primazia do direito Observa-se que, enquanto o Pacto Internacional internacional ou do direito interno, aqui em constante dos Direitos Civis e Políticos não prevê qualquer exceção ao interação: a primazia é, no presente domínio, da princípio da proibição da prisão civil por dívidas, a Convenção norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos Americana excepciona o caso de inadimplemento de obrigação consagrados da pessoa humana, seja ela uma norma alimentar. Ora, se o Brasil ratificou esses instrumentos sem de direito internacional ou de direito interno . qualquer reserva no que tange à matéria, há que se questionar 36 a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário infiel. Logo, na hipótese de eventual conflito entre o Direito Mais uma vez, atendo-se ao critério da norma Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, mais favorável à vítima no plano da proteção dos direitos adota-se o critério da norma mais favorável à vítima. Em outras humanos, conclui-se que merece ser afastado o cabimento palavras, a primazia é da norma que melhor proteja, em cada da possibilidade de prisão do depositário infiel37, conferindo- caso, os direitos da pessoa humana. A escolha da norma mais se prevalência à norma do tratado. Isto é, no conflito entre benéfica ao indivíduo é tarefa que caberá fundamentalmente os valores da liberdade e da propriedade, o primeiro há de aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do prevalecer. Ressalte-se que se a situação fosse inversa – se a direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao norma constitucional fosse mais benéfica que a normatividade ser humano. internacional – aplicar-se-ia a norma constitucional, inobstante A título de exemplo, um caso a merecer enfoque os aludidos tratados tivessem hierarquia constitucional e refere-se à previsão do art. 11 do Pacto Internacional dos tivessem sido ratificados após o advento da Constituição. Direitos Civis e Políticos, ao dispor que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”. Enunciado semelhante é previsto pelo art. 7o (7) da Convenção Americana, ao estabelecer que ninguém deve ser detido por dívidas, acrescentando que este princípio não limita os mandados judiciais expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Novamente, é preciso lembrar que o Brasil ratificou ambos os instrumentos internacionais em 1992, sem efetuar qualquer reserva sobre a matéria. Ora, a Carta constitucional de 1988, no art. 5o, inciso LXVII, determina que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Assim, a Constituição brasileira consagra o princípio da proibição da prisão civil por dívidas, admitindo, todavia, duas exceções – a Vale dizer, as próprias regras interpretativas dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos apontam a essa direção, quando afirmam que os tratados internacionais só se aplicam se ampliarem e estenderem o alcance da proteção nacional dos direitos humanos. Note-se que, no caso da prestação alimentícia, o conflito de valores envolve os termos liberdade e solidariedade (que assegura muitas vezes a sobrevivência humana), merecendo prevalência o valor da solidariedade, como assinalam a Constituição Brasileira de 1988 e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Em síntese, os tratados internacionais de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados – ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos TRINDADE, Cançado Augusto Antonio. A proteção dos direitos humanos nos planos nacional e internacional: perspectivas brasileiras. San José de Costa Rica/Brasília: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1992. p. 317-318. No mesmo sentido, Arnaldo Sussekind afirma: “No campo do Direito do Trabalho e no da Seguridade Social, todavia, a solução dos conflitos entre normas internacionais é facilitada pela aplicação do princípio da norma mais favorável aos trabalhadores.(...) mas também é certo que os tratados multilaterais, sejam universais (p. ex: Pacto da ONU sobre direitos econômicos, sociais e culturais e Convenções da OIT), sejam regionais (p. ex: Carta Social Européia), adotam a mesma concepção quanto aos institutos jurídicos de proteção do trabalhador, sobretudo no âmbito dos direitos humanos, o que facilita a aplicação do princípio da norma mais favorável”. (Direito internacional do trabalho. São Paulo: LTR, 1983. p. 57). A respeito, elucidativo é o disposto no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos que, ao estabelecer regras interpretativas, determina: “Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados (...)”. 37 Nesse sentido, merece destaque o louvável voto do Juiz Antonio Carlos Malheiros, do Primeiro Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo, na Apelação n. 613.053-8. Ver também Apelação n. 601.880-4, São Paulo, 1a Câmara, 16.9.1996, relator Juiz Elliot Akel, v.u., e Habeas Corpus n. 3.545-3 (95.028458-8), Distrito Federal, 10.10.1995, Rel. Min. Adhemar Maciel. Note-se não ser esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ainda que vencidos à época os Ministros Carlos Velloso, Marco Aurélio e Sepulveda Pertence. A respeito, ver HC 72.131-RJ, 22.11.1995; RE 206.482-SP; HC 76-561-SP, Plenário, 27.5.1998 e RE 243613, 27.4.1999. Acrescente-se que para o então Ministro Carlos Velloso “a prisão do devedor-fiduciante é uma violência à Constituição e ao Pacto de São José da Costa Rica, que está incorporado ao direito interno” (RE-243613, Rel. Min. Carlos Velloso, 19.2.1999). Verifica-se uma tendência de mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do já citado Recurso Extraordinário 466.343-1, em que, ineditamente, oito dos onze Ministros já haviam se manifestado pela inconstitucionalidade da prisão para o devedor em alienação fiduciária, em novembro de 2006. 36 32 A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos humanos. Em todas essas três hipóteses, os direitos internacio- fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos. nais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a Testemunha-se o processo de internacionalização do Direito aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de Constitucional somado ao processo de constitucionalização proteção dos direitos consagrados no plano normativo consti- do Direito Internacional. tucional. A Carta de 1988 e os tratados de direitos humanos lançam um projeto democratizante e humanista, cabendo 5. Considerações finais Como demonstrado por este estudo, os tratados aos operadores do direito introjetar e incorporar os seus valores inovadores. Os agentes jurídicos hão de se converter internacionais de direitos humanos podem contribuir de forma em agentes propagadores de uma ordem renovada, decisiva para o reforço da promoção dos direitos humanos no democrática e respeitadora dos direitos humanos, impedindo Brasil. No entanto, o sucesso da aplicação desse instrumental que se perpetuem os antigos valores do regime autoritário, internacional de direitos humanos requer a ampla sensibilização juridicamente repudiado e abolido. dos agentes operadores do Direito, no que se atém à relevância Hoje, mais do que nunca, os operadores do Direito e à utilidade de advogar esses tratados perante as instâncias estão à frente do desafio de resgatar e recuperar no aparato nacionais e internacionais, o que pode viabilizar avanços jurídico seu potencial ético e transformador, aplicando a concretos na defesa do exercício dos direitos da cidadania. Constituição e os instrumentos internacionais de proteção A partir da Constituição de 1988 intensifica-se a de direitos humanos por ela incorporados. Estão, portanto, à interação e conjugação do Direito internacional e do Direito frente do desafio de reinventar, reimaginar e recriar seu exercício interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos direitos profissional, a partir deste novo paradigma e referência: a fundamentais, com uma principiologia e lógica próprias, prevalência dos direitos humanos. 33 Artigo 04 Artigo 04 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?* Gisela Maria Bester** Vivian Hey Wescher*** Quando um direito constitucional desaparece, nenhum dos outros se deve presumir seguro. BARBOSA, Rui. Obras completas. V. XX, tomo IV, p. 138. 1. Introdução. 2. Processo interpretativo: supremacia formal e material, filtragem constitucional e recepção de normas infraconstitucionais pela nova Constituição. 2.1 Análise do art. 118, inciso I, 1a Parte, da Lei de Execução Penal, à luz da Constituição de 1988: sentença penal condenatória e prisões cautelares. 3. Princípio da presunção de inocência – acepções e relevância no ordenamento jurídico brasileiro. 4. Regressão de regime dentro do sistema constitucional brasileiro. 4.1. Divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a regressão pela acusação de prática de crime doloso. 4.2 Conseqüências da regressão de regime pela acusação da prática de crime doloso sem sentença condenatória com trânsito em julgado. 5. Síntese conclusiva: quo vadis, hermeneuta brasileiro? 6. Referências. 1. Introdução notadamente no que se refere à sua principal função, que é a Este artigo versa sobre a regressão de regime de servir como parâmetro de interpretação das demais normas. motivada pela prática de crime doloso no Brasil, analisada Dentre os princípios constitucionais, um dos que possui maior sob a ótica do princípio constitucional da presunção de relevância nas matérias penais é o da presunção de inocência, inocência. Nele, primeiramente se ressalta que é a mesma o qual influi diretamente na matéria probatória do processo e, supremacia da Constituição que, ao determinar que as principalmente, no tratamento despendido ao acusado. Assim, normas infraconstitucionais devem sempre ser interpretadas e notória se faz sua incidência na seara da Execução Penal. aplicadas de acordo com a Lei Fundamental e seus princípios, No que concerne especificamente à regressão de também orienta os hermeneutas no que se refere às normas regime ensejada pela prática de crime doloso, verifica-se que anteriores ao advento de uma nova Constituição, ditando aí a o seu dispositivo legal (art. 118, inciso I, 1a parte da LEP) necessidade de elas serem materialmente conformes a esta, sob não foi recepcionado pela vigente Constituição da República pena de não passarem pelo processo de filtragem constitucional brasileira, na medida em que há patente violação ao princípio que as leva à recepção pela novel Carta Magna. Outrossim, por da presunção de inocência. Todavia esse preceito normativo serem os princípios constitucionais dotados de normatividade, continua sendo aplicado e causando discórdia doutrinária. têm eles uma aplicação imediata e direta nos casos concretos, Nesse sentido, em virtude de ainda não haver suspensão o que denota sua importância no ordenamento jurídico, expressa da eficácia do aludido artigo pelo Senado Federal Artigo resultante de excerto remodelado do trabalho final de pesquisa empreendido pelas autoras no 2o semestre de 2006 e no 1o de 2007, no contexto da política institucional das então Faculdades Integradas Curitiba em prol da integração entre pós-graduação stricto sensu e graduação. O trabalho de pesquisa contou também com a valiosa orientação do professor Maurício Kuehne, ao qual as autoras muito agradecem. ** Mestra e Doutora em Direito. Professora Titular de Direito Constitucional, pesquisadora e Coordenadora do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba. *** Acadêmica quintanista do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba; estagiária do Ministério Público do Estado do Paraná, onde trabalha na Promotoria de Execução de Penas e Medidas Alternativas de Curitiba. * 34 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? como etapa corolária no contexto do controle difuso de a partir de então, com base na norma fundamental desse novo constitucionalidade, nem mesmo a revogação expressa da ordenamento. norma por parte do Congresso Nacional, há necessidade de os Conforme leciona Jorge Miranda, o termo mais magistrados da Execução Penal adequarem-no ao princípio da apropriado seria “novação” e não “recepção”, posto que as presunção de inocência durante seu processo hermenêutico, de normas anteriores devem ter seu sentido recriado à luz do novo modo a somente determinarem a regressão de regime após a texto constitucional. Por isso é que o autor elenca as seguintes superveniência de uma decisão condenatória irrecorrível. conseqüências de tal acontecimento jurídico: Outrossim a diferenciação entre os institutos da regressão de regime e da prisão cautelar, visando a demonstrar a) Os princípios gerais de todos os ramos de Direito o caráter de pena do primeiro, propicia fazer emergir a passam a ser os que constem da Constituição ou antecipação de sanção que ele proporciona. Enfim, ainda que os que dela se infiram direta ou indiretamente se evidenciem, desde logo, a ilegitimidade e a incompatibilidade [...]; dessa regressão de regime à luz do princípio da presunção de b) As normas legais e regulamentares vigentes à inocência, convida-se o leitor a conhecer também a indicação data da entrada em vigor da nova Constituição das conseqüências que podem ser produzidas por ela, as quais têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas reforçam cabalmente sua inviabilidade. subsistem se conformes com as suas normas e os seus princípios; 2. Processo interpretativo: supremacia formal e material, filtragem constitucional e recepção de normas infraconstitucionais c) As normas anteriores contrárias à Constituição não podem subsistir [...].3 pela nova Constituição São princípios totalmente confluentes os da supremacia – formal e material – da Constituição e da continuidade da ordem jurídica. Como, pelo primeiro, toda e qualquer norma infraconstitucional deve guardar compatibilidade com o texto constitucional por ser este o fundamento de validade daquelas, ele “[...] condena à invalidade e à ineficácia toda e qualquer norma incompatível com a Carta Constitucional”1. Em estrita ligação, o segundo princípio diz respeito à preservação da vigência e da eficácia das normas anteriores à nova Constituição que com ela não forem incompatíveis. Ora, é consabido que o surgimento de uma nova Como já se disse alhures, trata-se de um processo de filtragem constitucional, haja vista que, atendendo ao postulado da preeminência normativa da Constituição, sempre que uma nova Constituição entrar em vigor, necessária se faz uma releitura de toda a ordem jurídica infraconstitucional anterior, isto para aferir a adequação das normas inferiores anteriores a valores, princípios e regras ao complexo normativo constitucional atualmente vigente.4 Infere-se, porquanto, que é indispensável a correlação Constituição traz a lume um novo ordenamento jurídico. lógica e axiológica (perspectiva formal e material) entre as Todavia não há viabilidade prática nem conveniência econômica normas trazidas no bojo do texto constitucional e as demais em se criar novamente todas as normas de diferentes searas normas pertencentes ao ordenamento jurídico, quando do do Direito para compor esse novo ordenamento jurídico que processo hermenêutico. E se neste instalar-se um conflito entre se inicia. Assim, tem-se que as normas infraconstitucionais qualquer espécie normativa da legislação infraconstitucional anteriores à novel Constituição sobrevivem a esta, caso anterior e a nova Constituição, há que se considerarem as únicas guardem compatibilidade com ela. Vale dizer que, não havendo saídas apontadas pelo estado da arte da temática no Brasil: discrepância entre os dispositivos da nova Carta Magna e as a) revogação automática, uma vez que o Supremo normas ordinárias anteriores a ela, estas serão recepcionadas Tribunal Federal, ao não admitir a chamada por aquela automaticamente. E a recepção, segundo ensinou “inconstitucionalidade superveniente” determina, Norberto Bobbio2, não é pura e simples permanência do velho em tais casos, a aplicação da conhecida doutrina no novo, no sentido de que as normas comuns ao velho e ao de Kelsen: “[...] as normas infraconstitucionais novo ordenamento passam a pertencer todas ao novo, válidas anteriores à Constituição, com esta incompatíveis, BARROSO, Luís R. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. p. 68. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. p. 177 (grifo do autor). 3 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II. 5. ed, p. 308-309. 4 BESTER, Gisela Maria. Direito constitucional: fundamentos teóricos. p. 176. 1 2 35 Artigo 04 não são por ela recebidas. Noutras palavras, ocorre Ainda, para além de outros ditos modernos métodos derrogação, pela Constituição nova, de normas de interpretação, como os apontados por Márcia Porto de infraconstitucionais com esta incompatíveis. [...]5; Carvalho,8 há um postulado primordial a ser observado na b) a suspensão (por resolução senatorial, cf. art. 52, interpretação das normas ordinárias: o da interpretação X, CF/88) da execução, no todo ou em parte, com conforme a Constituição, com base no qual o aplicador da efeitos erga omnes, de lei declarada inconstitucio- norma infraconstitucional, “dentre mais de uma interpretação nal por decisão definitiva do Supremo Tribunal possível, deverá buscar aquela que a compatibilize com a Federal; Constituição, ainda que não seja a que mais obviamente c) a revogação expressa da norma incompatível decorra do seu texto”9. com a Constituição, o que no entanto somente se pode operar entre normas de igual hierarquia, Esse postulado justifica-se pela noção de supremacia que a Carta Magna detém. Por isso, afirma-se que ou de idêntica densidade normativa, e, portanto, somente pelo mesmo poder que as criou, ou seja, [...] o princípio guarda suas conexões com a unidade pelo Poder Legislativo. do ordenamento jurídico e, dentro desta, com a Contudo, independentemente do instrumento e do supremacia da Constituição. Disso resulta que as leis respectivo procedimento que se escolham para combater a editadas na vigência da Constituição, assim como as norma infraconstitucional anterior que antagoniza o texto que procedam de momento anterior, devem curvar-se constitucional em vigor, certo é que, em termos práticos, aos comandos da Lei Fundamental e ser interpretadas a conseqüência deverá ser a mesma: a inaplicabilidade do em conformidade com ela.10 dispositivo legal desconforme à Constituição. E certo é também que, até que sobrevenha a suspensão com eficácia perante todos da norma inconstitucional pelo Senado Federal, ou mesmo a revogação (derrogação ou ab-rogação) da norma maculada pelo vício da inconstitucionalidade material, todo o hermeneuta deve, em respeito ao princípio da supremacia da No entendimento de Lenio Streck, “[...] a interpretação conforme a Constituição constitui-se em mecanismo de fundamental importância para a constitucionalização dos textos normativos infraconstitucionais”11. O autor conclui ainda: Constituição, posicionar-se de modo a sempre considerar tal Alçado à categoria de princípio, a interpretação norma como sendo tacitamente revogada. conforme a Constituição é mais do que princípio, É também consabido que a hermenêutica das normas é um princípio imanente da constituição, até porque infraconstitucionais à luz dos preceitos constitucionais não há nada mais imanente a uma Constituição do impõe que se utilizem os métodos clássicos de interpretação que a obrigação de que todos os textos normativos do das normas jurídicas elencados pela doutrina a saber: o sistema sejam interpretados de acordo com ela. Desse gramatical, o histórico, o teleológico e o sistemático. Porém modo, em sendo um princípio (imanente), os juízes e a insuficiência dos dois primeiros modelos, aliada à idéia tribunais não podem (so)negar a sua aplicação, sob de que, “no centro do sistema, irradiando-se por todo o pena de violação da própria Constituição.12 ordenamento, se encontra a Constituição, principal elemento de sua unidade, porque a ela se reconduzem todas as normas Tal excerto realça a importante função desempenha- no âmbito do Estado”6, denota a necessidade de o intérprete da pela Constituição como regente do processo interpretativo se reportar à Constituição para o resultado do processo das normas jurídicas, merecendo destaque neste, igualmente, interpretativo obter êxito, sendo, em virtude disso, que se os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Como pode dizer: “o método sistemático disputa com o teleológico observa Luís Roberto Barroso, a razoabilidade deve ser verifi- a primazia no processo interpretativo”7. cada primeiramente na própria lei que está sendo interpretada, Cf.: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 396386. 2a Turma. Rel. Min. Carlos Velloso. Brasília, DF, 29 jun. 2004. Publicado no Diário de Justiça em 13 ago. 2004, p. 285. 6 BARROSO, Luís R. Op. cit. p. 136. 7 Idem, ibidem. 8 CARVALHO, Márcia H. P. de. Hermenêutica constitucional: métodos e princípios específicos de interpretação. p. 50-51. 9 BARROSO, Luís R. Op. cit. p. 372. 10 Idem, ibidem, p. 192. 11 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. p. 243. 12 STRECK, Lenio. Op. cit. p. 243-244 (grifo do autor). 5 3 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? a fim de se constatar “[...] a existência de uma relação racional 13 e proporcional entre seus motivos, meios e fins” . Caso exista o direito infraconstitucional, significando a interpretação e leitura de seus institutos à luz da Constituição”17 . uma “razoabilidade interna”, é preciso aferir sua “razoabilida- Nessa perspectiva é que Lenio Streck, discorrendo de externa”, “[...] isto é: sua adequação aos meios e fins admiti- sobre a crise da justiça, afirma que um dos sintomas dessa crise dos e preconizados pelo texto constitucional. Se a lei contravier se revela justamente pela “falta de uma filtragem hermenêutico- valores expressos ou implícitos no texto constitucional, não constitucional dos textos normativos infraconstitucionais”, será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que eis que “a dogmática jurídica não convive pacificamente com 14 o seja internamente” . Já o princípio da proporcionalidade se princípios constitucionais como os da proporcionalidade, caracteriza pela conjugação de três subprincípios: adequação, razoabilidade, subsidiariedade, etc. [...]”18. pelo que se deve utilizar o meio ou instrumento mais perti- Assim, partindo-se da premissa de que o ordena- nente à realização do objetivo almejado; necessidade, que diz mento jurídico pátrio é orientado pela imperiosa supremacia respeito à escolha do meio que não acarrete tanto gravame ou da Constituição, deve-se rechaçar todo e qualquer processo prejuízo aos cidadãos; e, proporcionalidade em sentido estrito, simplório de interpretação que se atenha apenas à letra da lei entendida esta como “[...] a ponderação entre o ônus imposto individualmente apreendida, não levando em consideração o e o benefício trazido, para constatar se é justificável a inter- contexto sistemático de superioridade hierárquica constitucio- 15 ferência na esfera dos direitos dos cidadãos” . Porquanto o nal em que todas as normas estão inseridas no ordenamento. comando da proporcionalidade implica moderação do próprio Trata-se, em última análise, de que se torne forçosa a necessi- exercício da jurisdição, vindo a pôr em cheque a obrigatorie- dade de os vulgos “operadores do direito” deixarem de lado dade das disposições legais em casos concretos, ainda quan- os apegos conservadores e, principalmente, fáceis e cômodos à do sejam estas formalmente inobjetáveis e se justifiquem sob mera leitura gramatical das normas, para dar espaço ao papel outras circunstâncias fáticas, mas que, concretamente, revelem primordial e transformador da Constituição na condução de inadequação à consecução de seus fins, desproporção de meios todo o processo interpretativo, único caminho capaz de levar a ou, ainda, aptidão a produzir danos exagerados em pondera- uma interpretação mais adequada da Constituição. 16 ção com os objetivos de proteção . Aqui uma vez mais se faz presente a Carta 2.1 Análise do art. 118, inciso I, 1a parte, da Lei de Execução Magna, como respaldo do processo interpretativo que tem Penal à luz da Constituição de 1988: sentença penal condenatória como parâmetros os mandamentos da razoabilidade e da e prisões cautelares proporcionalidade. No primeiro, sua necessidade transparece Passa-se a usar a premissa fixada imediatamente no momento de verificação da denominada “razoabilidade anterior para proceder à análise de um dos mais polêmicos externa”, quando se devem coadunar os meios e fins legais preceitos de uma das mais importantes leis infraconstitucionais com os valores constitucionais. No segundo, a Constituição do Brasil, à luz do texto constitucional em vigor. torna-se imprescindível no momento de escolha do meio ou Abre-se a exposição deste item servindo-se de autores instrumento que não infrinja garantias dos cidadãos de modo cuja lúcida análise é capaz de fornecer o necessário liame lógico a lhes causar prejuízos, posto que o principal rol dos direitos na seqüência deste artigo. Trata-se de Sérgio Salomão Shecaira dos cidadãos consta no texto constitucional. Daí a imperiosa e Alceu Corrêa Junior, que, em colaboração, fizeram ver que função desses princípios constitucionais intrínsecos no processo “nem sempre uma constituição precede cronologicamente à lei interpretativo. penal”, apontando que, assim como o Código Penal, de 1940, Neste ponto, reafirma-se a necessidade da filtragem também as Leis consubstanciadas em 1984 (no 7.209 e 7.210, constitucional, eis que, de acordo com Luís Roberto Barroso, que impuseram um novo sistema de penas e de sua execução) a ascensão política e científica do direito constitucional precisariam de uma necessária relação e, em grande monta, brasileiro “[...] conduziu-o ao centro do sistema jurídico, onde revisão diante da Constituição Federal de 1988, isso porque desempenha uma função de filtragem constitucional de todo esta, “[...] ao inaugurar uma nova era no direito pátrio, fez com BARROSO, Luís R. Op. cit. p. 226. Idem, ibidem, p. 226. 15 Idem, ibidem, p. 229. 16 SCHROEDER, Simone. Regressão de regime: uma releitura frente aos princípios constitucionais. Abordagem crítica. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Crítica à execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. p. 605. 17 BARROSO, Luís R. Op. cit. p. 343 (grifo do autor). 18 Em seguida o autor menciona diversas decisões equivocadas, referentes à seara criminal, em que os mais variados absurdos jurídicos foram cometidos em nome da mera literalidade da lei. Cf. STRECK, Lenio L. Op. cit. p. 280-281, em nota de rodapé n.º 511. 13 14 37 Artigo 04 que a própria ordem jurídica exigisse uma discussão sobre o (pressupostos cautelares insculpidos no art. 312 do CPP21 , que que se deve punir, a quem se deve punir e como aplicar esta são autorizadores da prisão preventiva e servíveis como baliza punição”19. para as demais prisões de natureza cautelar) não são abalados, Pois bem. A Lei de Execução Penal (LEP) foi criada mesmo que o executado esteja cumprindo a reprimenda em em 1984, sob a égide da Constituição de 1969. Em 1988 foi regime aberto, posto que sob o crivo desse regime também são promulgada a Carta Magna atualmente em vigor, tornando impostas restrições, tais como a impossibilidade de se viajar necessária uma “filtragem constitucional” com o escopo de se sem prévia autorização judicial, o compromisso de comparecer aferir se a legislação ordinária anterior guarda compatibilidade em juízo periodicamente para prestar satisfações acerca das com as disposições constitucionais em vigência. Nessa suas atividades, dentre outras consignadas na LEP em seu perspectiva, verifica-se então que, muito embora a LEP fosse artigo 115. Assim, fica evidenciado que a hipótese de regressão integralmente válida perante a Constituição de 1969, alguns de regime contida no art. 118, inciso I, 1a parte, da LEP, não de seus dispositivos podem não o ser à luz da Constituição de se reveste de cautelaridade, mas sim de eminente penalidade 1988. Veja-se em especial, seu art. 118, inciso I, 1a parte, que antecipada. preconiza: “A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer Esse entendimento é corroborado pelo magistrado Ricardo da Costa Tjader: dos regimes mais rigorosos, quando o condenado: I – praticar fato definido como crime doloso [...]”20 . Poderiam sustentar alguns que a regressão do regime Depreende-se desse dispositivo que a mera prática do de pena teria um caráter cautelar, assemelhado ao da crime doloso já enseja a regressão do apenado para um regime prisão preventiva, [...]. Entretanto o caráter cautelar de cumprimento de pena mais gravoso. Com efeito, a norma deve ser imediatamente excluído, pois medidas desta não exige sentença condenatória com trânsito em julgado, a natureza não têm prazo mínimo para a revogação fim de se apurarem de maneira definitiva a materialidade do da medida, que deve ser mantida apenas enquanto delito, bem como a culpabilidade do agente, para que, ao final, for absolutamente necessária como cautela social. se opere a regressão do seu regime. Todavia a Constituição da Enquanto isso, em tema de regressão de regime, existe República de 1988, ao contrário das constituições anteriores, prazo mínimo para que seja ‘desfeita’ a regressão, que silenciavam a respeito da presunção de inocência, dispõe o qual é de 1/6 do tempo de pena faltante. Só este em seu artigo 5 (LVII) que “ninguém será considerado culpado elemento já mostra que a regressão tem caráter de até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. pena [...], e não de cautela [...].22 o Assim, verifica-se que a Lei de Execução Penal, ao determinar a regressão de regime ao executado, pela prática de conduta criminosa, dispende a este um tratamento de como se já culpado fosse, haja vista que não exige sentença condenatória transitada em julgado. Tal opinião bem ilustra que a regressão de regime pela prática de crime doloso não possui os mesmos fundamentos da prisão cautelar, a qual foi recepcionada pela Constituição da República de 1988. Desse modo, é descabida a alegação de Porém não se trata somente da não-exigência de que a regressão de regime ensejada pela conduta criminosa sentença condenatória transitada em julgado, visto que as da qual não há decisão condenatória definitiva tenha sido prisões cautelares previstas no Código de Processo Penal recepcionada pela atual Constituição pátria, e que a negação ocorrem sem que haja sentença condenatória com trânsito disso seria o equivalente à argüição da não-recepção da prisão em julgado e, de certo modo, foram recepcionadas pela cautelar pela mesma Lei Fundamental em vigor. É que se pode Carta Magna de 1988. Ocorre que a regressão de regime definir a regressão de regime como sendo a mudança de um não se equipara à prisão cautelar, na medida em que possui regime de cumprimento de pena menos rigoroso para outro um caráter de pena. Tal caráter é revelado pelo fato de que, tipo de regime mais severo. Na prática equivale à alteração como o apenado já se encontra cumprindo pena, a garantia do regime aberto para o semi-aberto ou deste para o regime da ordem pública, da ordem econômica, a conveniência da fechado. Já a prisão cautelar é sinônimo de prisão sem pena. instrução criminal e a segurança da aplicação da lei penal Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho, “[...] nada SHECAIRA Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Pena e constituição: aspectos relevantes para sua aplicação e execução. p. 15-16 (grifou-se). BRASIL. Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984. 21 BRASIL. Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 out. 1941. 22 TJADER, Ricardo Luiz da Costa. As garantias individuais e a regressão do regime de pena. Boletim Informativo do Bonijuris, Curitiba, no 159, a. v, 30 maio 1993, p. 1 738. 19 20 38 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? mais é do que uma execução cautelar de natureza pessoal [...] na matéria referente à hipótese de regressão de regime aqui e que se justifica como medida imprescindível para assegurar tratada, uma vez que os motivos anteriormente citados são o império da lei penal”23. Conforme esse doutrinador, a prisão comumente utilizados para justificar a regressão de regime cautelar consiste na prisão em flagrante, prisão preventiva, antes da prolação de uma decisão irrecorrível. Com efeito, prisão temporária, prisão decorrente de decisão de pronúncia vislumbra-se que o caráter desta medida é essencialmente ou de sentença condenatória recorrível24. sancionador, posto que emerge o claro condão de se punir Assim como qualquer outra medida cautelar, a prisão o executado pela incursão em eventual prática criminosa. dessa natureza tem como pressupostos o fumus boni iuris Logo, há que ser refutada a pretensão de se fazer com que tal (indício de que o sujeito passivo da referida prisão é mesmo o regressão tenha natureza cautelar. autor do delito) e o periculum in mora (necessidade da medida). Além de tais pressupostos, cada modalidade de prisão cautelar possui outros requisitos que devem estar presentes para decretação da constrição. Desse modo, quando uma dessas exigências não é preenchida, isto é, quando qualquer um dos pressupostos estiver ausente, não se autoriza a prisão cautelar; ou, caso esta já tenha ocorrido, porque ao tempo de sua decretação os pressupostos existiam, a prisão deve ser revogada imediatamente. Isso equivale a dizer que a duração da providência acautelatória é regulada exclusivamente pela existência dos pressupostos autorizadores da medida. A regressão de regime, por sua vez, possui prazo mínimo para ser desfeita, fato que, conforme Ricardo Luiz da Costa Tjader, lhe denota um caráter de pena e não de medida acautelatória25. Em razão disso, não há que se falar em qualquer similaridade entre a prisão cautelar e a regressão de regime decorrente da prática de crime doloso, que se opera antes de uma decisão irrecorrível. Ademais, em se tratando de “nova” infração criminosa, seria totalmente descabido o magistrado da execução penal regredir de regime o apenado, caso o juiz do processo penal em trâmite não decrete qualquer medida cautelar, em especial a prisão preventiva, por não estarem preenchidos os pressupostos autorizadores da constrição. Outrossim, mesmo que o juiz da ação penal superveniente entenda cabível a providência acautelatória, não deve o magistrado que cuida da execução da pena regredir o regime, tendo em vista que, se um dos pressupostos cautelares deixar de existir e, portanto, ter de ser revogada a medida, o trâmite para se desfazer a regressão é muito mais complicado, dado o prazo mínimo que deve ser atingido para tanto, além de acarretar prejuízos irreparáveis ao réu e onerosidade ao Estado. Tais constatações indicam a desnecessidade da regressão, não só quando o juiz da ação penal em trâmite não decreta nenhuma medida cautelar, mas também quando ele assim o faça. Nessa senda, então, é Assim, a regressão de regime realizada antes de ausente pelo menos o requisito do periculum in mora, pelo que sobrevir uma decisão definitiva da nova ação penal, quando se evidencia mais uma vez que tal regressão não possui caráter tem como fundamento os argumentos da defesa social ou cautelar. da Prevenção, revela, em verdade, o travestido desiderato Mesmo nos casos em que o apenado é preso em da punição ao indivíduo, pelo que se transforma em uma flagrante, igualmente se mostra impertinente a regressão antecipação da pena. Por isso considera-se útil o alerta de antes do proferimento de decisão irrecorrível, em primeiro Adriano Almeida Fonseca: lugar porque, conforme for a natureza do crime praticado, Ao se decretar uma prisão preventiva sob os argumentos retóricos da ‘defesa social’, ‘exemplaridade’ ou ‘prevenção’, estar-se-à a inverter as finalidades da prisão cautelar com a prisão-sanção, numa verdadeira antecipação da pena, sem a observância da presunção de inocência e do devido processo legal, do qual são corolários os princípios do contraditório e da ampla defesa26 . Em que pese o autor se ter dirigido ao tema da prisão preventiva, suas considerações têm perfeito cabimento a posterior unificação de penas pode resultar num regime de cumprimento no qual o executado já se encontra, o que implicaria em prejuízo a este; em segundo lugar, porque, se a natureza do crime demonstrar que de fato não seja possível ao apenado permanecer sob o regime no qual se encontra, alguns aspectos que podem culminar com a sua absolvição (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito) muitas vezes só são desvendados com o deslinde da ação penal, e não no momento do flagrante em si, em que pese o contido no art. 310, caput, do CPP. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v. 3, p. 392. Idem, ibidem, p. 392. 25 TJADER, Ricardo L. da C. Op. cit. p. 1 738. 26 FONSECA, Adriano Almeida. O princípio da presunção de inocência e sua repercussão infraconstitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, no 36, nov. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=162> Acesso em: 24 abr. 2007. 23 24 39 Artigo 04 Mediante essas considerações, evidencia-se que a regressão de regime prevista no artigo 118, inciso I, 1a parte da LEP definitivamente não se assemelha com as prisões cautelares elencadas no Código de Processo Penal, visto que não detém a natureza jurídica de medida cautelar, nem tampouco se mostra cabível, na medida em que pode gerar prejuízos ao executado, bem como dispêndios ao Poder Estatal. Resta, pois, demonstrado que, à luz da Constituição atual, o art. 118, inciso I, 1a parte da LEP não foi recepcionado. Portanto tal dispositivo legal não pode ser aplicado sem a existência de uma sentença condenatória transitada em julgado, a confirmar que a autoria do delito pertença ao executado. Na senda do que foi aqui exposto sobre o processo de recepção de normas ordinárias pela Constituição, não se deve promover a regressão de regime pela prática de crime doloso antes de sobrevir alguma decisão definitiva acerca deste, a pretexto de providência cautelar. 3. Princípio da presunção de inocência – acepções e relevância no ordenamento jurídico brasileiro Insculpido no art. 5o, inciso LVII, da Constituição da República brasileira, este princípio tem como enunciado: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Porquanto tem ele como principais corolários o brocardo in dubio pro reu (na dúvida, deve-se decidir a favor do réu), que preconiza, em caso de dúvida, mesmo que mínima, acerca da autoria ou da materialidade do crime, a absolvição do acusado, bem como o brocardo nulla poena sine culpa (não há pena sem culpa), que pressupõe a aplicação de pena ao acusado somente após a certeza de sua culpa na autoria do crime. A aplicação desses brocardos remete diretamente o operador do direito à condição de inocência inerente ao acusado. Logo, faz-se indispensável sua observância quando se tem o dever, e não simplesmente o mero objetivo, de assegurar a todos as garantias constitucionalmente previstas, tendo em vista o estado democrático de direito em que se está inserido. É que neste, ao contrário da época pré-iluminista – em que o processo penal era inquisitório e desconhecia as garantias de quem era acusado e a presunção era de culpa do Para Antonio Magalhães Gomes Filho, o princípio aqui estudado possui quatro diferentes acepções, explicando que a primeira delas, parafraseando Mario Pisani, é “[...] de uma presunção política, na medida em que exprime uma orientação de fundo do legislador, qual seja a de garantia da posição de liberdade do acusado diante do interesse coletivo à repressão penal”28. A segunda acepção apontada relacionase com o âmbito probatório, porque, tendo em vista que o acusado goza de uma presunção iuris tantum de inocência, o ônus da prova recai totalmente sobre a acusação. Além disso, o princípio em comento também incide no objeto do procedimento probatório, visto que impõe a averiguação da imputação propriamente dita. Outra vertente do princípio constitucional em seara probatória é em relação à faculdade que o acusado tem de colaborar ou não com a investigação dos fatos, posto que deva ser inibida qualquer pretensão de forçálo a cair em confissão. Por fim, se durante a instrução criminal é obtida uma prova de culpabilidade, mas que se revele dúbia à luz do princípio da presunção de inocência, o fato nela apresentado deve ser tido como não-provado29. A terceira acepção do princípio diz respeito à inocência como condição do acusado, traduzindo uma norma de comportamento diante deste, segundo a qual são ilegítimos e inconstitucionais quaisquer efeitos negativos que possam decorrer exclusivamente da imputação, ou seja, toda antecipação de medida punitiva, ou que importe o reconhecimento da culpabilidade, antes da sentença final30. O princípio da presunção de inocência também implica na exposição dos fatos pela imprensa de maneira cautelosa, ou seja, desprovidos do caráter de definitividade, antes da prolação da sentença final. Outrossim convém frisar que a publicidade dos atos processuais é regra, ou seja, existem exceções, motivadas no interesse público. Há que se observar ademais que, às autoridades e funcionários que atuam nas atividades processuais, cabe tratar o acusado de modo digno e respeitoso. Em virtude disso, entende-se que o uso de algemas deve limitar-se somente às situações necessárias31. Quanto a isso, Antonio Magalhães Gomes Filho argumenta: acusado, que tinha que provar sua inocência sem ao menos Como regra de tratamento do acusado, o princípio tomar conhecimento das acusações e das provas que pesavam da presunção de inocência tem ainda aplicação no contra ele – a liberdade individual passou a prevalecer em terreno das conseqüências extra-processuais da relação aos interesses estatais punitivos. Logo, a presunção de imputação; é o caso das restrições ao exercício de culpa cedeu lugar para a presunção de inocência27. outros direitos em virtude da mera acusação, ou até COSTA, Breno Melaragno. O princípio constitucional da presunção de inocência. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os princípios da constituição de 1988. p. 342-343. 28 GOMES FILHO, Antonio M. Op. cit. p. 37 (grifo do autor). 29 Idem, ibidem, p. 37-41. 30 Idem, ibidem, p. 43. 31 Idem, ibidem, p. 41-46. 27 40 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? indiciamento em inquérito policial, e também das e excepcionalidade. [...] A prisão preventiva é hoje referências constantes de certidões expedidas pelos considerada medida extrema [...]35. órgãos públicos relativamente ao andamento de processos criminais.32 Essa incidência tão salutar do princípio da presunção de inocência na seara criminal e, em especial, no instituto A quarta acepção apontada refere-se ao devido da prisão preventiva se justifica na medida em que são áreas processo legal. Para ocorrer o reconhecimento da culpabilidade do ordenamento jurídico que implicam algumas restrições do acusado, não basta o mero desenrolar de um processo, mas de direitos. Logo, o princípio da presunção de inocência é de um processo justo, no qual haja um contraditório real, que um dos instrumentos mais aptos a evitar eventual arbítrio assegure ao acusado amplo direito de defesa, devendo este ser estatal no tratamento jurídico do acusado. Ademais, ao inibir entendido como a participação em todos os atos processuais, tais arbitrariedades, contribui também para a afirmação do por meio de um defensor, bem como a efetiva e plausível próprio estado democrático de direito, visto ser uma garantia assistência deste . constitucionalmente prevista, que deve ser preservada. 33 De status constitucional, a presunção de inocência Assim, não obstante a inflamação do discurso, importa configura-se como garantia, situando-se entre os ditos princí- consignar que, apesar de muitos inocentes serem injustamente pios-garantia. E em que pesem os princípios constitucionais apenados por atos que não praticaram, se ao menos um terem repercussão por todo o ordenamento jurídico, o prin- deles for absolvido, já terá valido a pena a observância desse cípio da presunção de inocência incide essencialmente na sea- princípio. ra criminal, que abrange o direito penal, o processo penal e a execução penal. Assim, é nesses âmbitos do ordenamento que 4. Regressão de regime dentro do sistema constitucional o princípio de presunção de inocência alcança maior relevo, brasileiro devendo as normas daqueles ajustarem-se às finalidades deste. Diante da limitação de extensão deste texto, passar- Por isso, entende-se que tal princípio é “[...] inspirador da polí- se-á ao largo dos princípios reitores da execução penal: o da tica criminal”34. Daí sua destacada relevância. legalidade36, o da secularização37 , o da individualização da Conforme já foi destacado, a presunção de inocência pena38 , o da humanidade da pena, o da igualdade39 , o do devido possui diversas acepções. Ela influi no ônus probatório do processo legal 40 e, finalmente, o da presunção de inocência, este processo penal, relaciona-se com o tratamento despendido ao um dos maiores nortes a seguir durante a execução da pena, acusado, com as condições de defesa que este tem durante o pois, uma vez que o condenado tem direito à ampla defesa trâmite processual, dentre outras acepções já mencionadas. e a contraditar qualquer denúncia ou decisão a seu respeito, Mas é sobretudo na prisão preventiva que a presunção de é incoerente presumir-se-lhe culpado e, mais, aplicar-se-lhe inocência teve e ainda tem atuação fundamental. medidas que remetam a tal presunção (de culpabilidade). Para além disso, consigne-se que, como o direito da execução O espírito dos ideais Iluministas, berço da presunção penal é parte integrante de um sistema normativo, todas as de inocência, afastou por completo as atitudes suas previsões legais, bem como sua tramitação devem estar preventivas que representaram uma verdadeira vinculadas às garantias e aos princípios insculpidos na Lei aplicação adiantada de pena. Evitou, assim, que sob Fundamental, pelo que, somando-se aos princípios de matriz o pretexto da prevenção o acusado já sofresse uma constitucional que norteiam a execução da pena, devem estar prévia punição. [...] A prisão preventiva passou a ser assegurados aos executados os demais direitos fundamentais regida pelos princípios da legalidade, subsidiariedade e as garantias individuais inerentes a todos os cidadãos, GOMES FILHO, Antonio M. Op. cit. p. 45-46. GOMES FILHO, Antonio M. Op. cit. p. 46-49. 34 COSTA, Breno M. Op. cit. p. 346. 35 COSTA, Breno M. Op. cit. p. 356-357. 36 Vejam-se, no entanto, importantes e claros esclarecimentos sobre este princípio na via executória em: BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena na execução penal. p. 131, e em GOULART, José Eduardo. Princípios informadores do direito da execução penal. p. 91-92 e 94. 37 Para saber especificidades desse princípio no âmbito da execução penal, consulte-se: GOULART, José Eduardo. Princípios informadores do direito da execução penal. p. 91-92, e BONHO, Luciana Tramontin. Uma abordagem crítica do princípio da secularização na legislação penal atual. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.º 841, 22 out. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7458> Acesso em: 09 abr. 2007. 38 Veja-se BARROS, Carmen S. de M. Op. cit. p. 132-133, e GOULART, José Eduardo. Op. cit. p. 106. 39 Consulte-se BARROS, Carmen S. de M. Op. cit. p. 132, e GOULART, José E. Op. cit. p. 107. 40 Veja-se BARROS, Carmen S. de M. Op. cit. p. 134-135. 32 33 41 Artigo 04 independentemente de o indivíduo estar cumprindo pena ou em procedimento administrativo no estabelecimento prisional, não, visto que o fato de este possuir ou não sentença criminal devendo serem observadas as garantias da ampla defesa e do condenatória em seu desfavor não lhe retira a sua condição de contraditório, bem como a comunicação da falta grave ao cidadão amplamente considerado. juízo da execução41. A partir disso, passa-se à enumeração das hipóteses Frise-se que o § 2o do artigo 118 da LEP preconiza a de regressão de regime previstas na lei, para posterior análise prévia oitiva do executado nas hipóteses de regressão estatuídas de sua compatibilidade no sistema constitucional brasileiro no inciso I e § 1o desse artigo, sob pena de se infringirem as atual. A LEP traz, no seu artigo 118, como causas taxativas mesmas garantias constitucionais do contraditório e da ampla que ensejam a regressão de regime: praticar fato definido como defesa. crime doloso; praticar alguma das faltas graves arroladas no artigo 50 da aludida lei; sofrer condenação por crime anterior, 4.1 Divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a regressão cuja pena, somada ao remanescente da pena já em execução, pela acusação de prática de crime doloso torne inviável o regime. Ademais, são estabelecidas ainda duas Como já se adiantou a regressão de regime decorrente hipóteses específicas de regressão para os condenados em regime da prática de conduta definida como crime doloso tem gerado aberto, as quais preconizam que se deverá operar a regressão certa celeuma entre os doutrinadores do direito da execução de regime, se o executado frustrar os fins da execução, ou não penal, em razão de o art. 118, inciso I, 1a parte da LEP ter sido pagar a multa que lhe é cumulativamente imposta, quando o redigido de forma um tanto quanto simplista. A problemática apenado possui condições de pagá-la. reside na exigência ou não de uma sentença condenatória No que tange à primeira causa ensejadora da regressão de regime aqui citada, foco deste artigo, constata- com trânsito em julgado, antes de ser proferida decisão determinando a regressão de regime ao apenado. se certo equívoco na medida em que a Lei de Execução Penal Segundo Renato Marcão, “não é necessário que também determina a regressão pela prática de falta grave. Ora, o crime doloso tenha sido objeto de sentença condenatória a prática de fato definida como crime doloso é considerada transitada em julgado. Não ocorre, na hipótese, violação ao falta grave, segundo os termos do artigo 52 da LEP. Diante princípio da presunção de inocência ou estado de inocência”42. disso, não era necessário o legislador fazer menção específica Concorda com a essa opinião Haroldo Caetano da Silva: à hipótese de regressão pela prática de conduta tida como crime doloso, vez que a mesma já seja abrangida no rol das Evidente que não demonstra adaptação ao regime faltas graves. Outrossim faz-se oportuno salientar que a LEP, mais brando o condenado que, beneficiado com a ao impor a regressão de regime pela prática de ilícito doloso, progressão ou mesmo iniciando a execução da pena em não estabelece parâmetros quanto à oportunidade em que regime não-severo, vem a cometer crime doloso. Não o magistrado deva proceder com a regressão. Dito de outro se exige, nesse caso, condenação pelo crime praticado. modo, não é definido pela referida lei se a mera instauração A simples prática do crime é razão suficiente para a de inquérito policial significa que ocorreu efetivamente o medida.43 crime doloso, ou se é necessário o recebimento da denúncia no processo penal de conhecimento para que se opere a regressão, ou se uma prisão em flagrante já caracteriza a ocorrência da conduta criminosa; ou, ainda, se seria mais prudente e legítimo Em abono a tais entendimentos, concorre Julio Fabbrini Mirabete, para quem não é necessário o crime doloso ter sido objeto de sentença condenatória transitada em aguardar uma sentença condenatória transitada em julgado, julgado, pois entende que, “quando a lei exige a condenação que elucide a autoria bem como a existência do crime. Diante ou o trânsito em julgado da sentença, é ela expressa a respeito de tais considerações, verifica-se certa dificuldade prática para dessa circunstância, como aliás o faz no inc. II do art. 118”44. se operar a regressão de regime decorrente de ilícito doloso. Até Para Sérgio Hamilton, a regressão de regime realizada porque, para o magistrado decidir pela regressão em razão da antes de sobrevir alguma decisão definitiva da nova ação incorrência do executado em falta grave, é necessário apuração penal é necessária, pois “a tutela antecipada teve por fim, no SILVA, Haroldo Caetano da. Manual da execução penal. p. 96. MARCÂO, Renato. Curso de Execução Penal. p. 145 (grifo do autor). 43 SILVA, Haroldo C. da. Op. cit. p. 171 (grifo do autor). 44 MIRABETE, Julio F. Execução penal: comentários à Lei no 7.210, de 11 jul. 1984. p. 486. 41 42 42 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? caso, resguardar os elevados interesses do Estado diante do No que tange ao art. 52 da LEP, há que se observar condenado que não faz por merecer as benesses do regime que, para que não seja evidentemente inconstitucional prisional menos severo”45. por ferir o princípio da ´presunção de inocência´, a Note-se que os autores citados representam peque- única interpretação que lhe pode ser dada é que a na amostra dos doutrinadores que possuem o mesmo posi- prática de fato previsto como crime constitui falta cionamento abordado. Nessa mesma esteira de pensamento grave desde que haja sentença penal condenatória vêm sendo emanadas decisões que impõem a regressão antes transitada em julgado.47 de haver condenação do executado pelo crime superveniente. Tome-se como exemplo a RT 595/343, a RJTCRIM 49/218, a RT 651/334, a RT 584/453, a JTJ 222/357, a RT 636/291, a RJDTACRIM 26/33, a RT 568/271, a RT 762/632, dentre outras. Inclusive o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou nesse sentido: Maurício Kuehne, reportando-se a uma eventual absolvição advinda do novo crime, relata: Quando dirigimos a Colônia Penal Agrícola Manoel Ribas, deparamo-nos com situações em que ficou constatado que as imputações eram graciosas, RECURSO ESPECIAL. PENAL. LEI No 7.210/84. matéria entretanto que demandou exame de todo CONDENADO QUE PRATICA CRIME DOLOSO um contingente probatório, com sérios prejuízos OU FALTA GRAVE. REGRESSÃO DE REGIME. aos réus. Esse aspecto se encontra bem salientado VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE no trabalho referido, desrecomendando, assim, a INOCÊNCIA. INOCORRÊNCIA. PROVIMENTO. regressão imediata. [...] A regressão, sem dúvida, só 1. Ao que se extrai da letra mesma da lei, ao com a condenação.48 condenado que incide nas disposições dos incisos I e II do artigo 118 da Lei no 7.210/84, é imposta a regressão ao regime de cumprimento de pena mais gravoso, não havendo falar em violação do princípio da presunção de inocência, uma vez que a permanência do apenado em regime menos rigoroso implica, à evidência, o cumprimento das condições impostas, dentre as quais, as restrições de não praticar fato definido como crime doloso ou mesmo falta grave. 2. Não há exigir, em casos tais, trânsito em julgado da condenação pela nova infração, na exata razão de que reduziria a um nada a efetividade do processo de execução, exigindo-se, por isso mesmo, um quanto de certeza suficiente quanto ao crime e sua autoria, bem certificada pelo recebimento da denúncia. 3. A levar-se ao pé da letra o decisum impugnado, as faltas disciplinares culminariam por Nessa linha, Simone Schroeder aduz: O legislador, no art. 118 da Lei no 7.210/84, referendou que o condenado ter ‘praticado’ fato definido como crime doloso ensejaria a regressão para regime prisional pior, sustenta-se a infringência dos princípios constitucionais, pois implicaria num prejulgamento do réu, ao equiparar a sentença condenatória com trânsito em julgado, com os mesmos efeitos de uma prática delituosa, sem a devida instrução processual. Perquire-se a violação dos princípios do devido processo legal, ampla defesa e o contraditório, inclusive o princípio da presunção de inocência [...]. 49 Vale mencionar também o pensamento de Ricardo Luiz da Costa Tjader: reclamar, para que tivessem função na execução, reexame obrigatório judicial e aperfeiçoamento na A prática de nova infração criminosa somente gera coisa julgada. [...]. regressão de regime [...] após a existência da respectiva 46 sentença condenatória transitada em julgado, por respeito Entretanto alguns doutrinadores têm manifestado entendimento diverso, como Carmen Silvia de Moraes Barros: aos princípios constitucionais do devido processo legal e da igualdade de todos perante a lei [...].50 HAMILTON, Sérgio Demoro apud KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. p. 378. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 564971. 6a Turma. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. Brasília, DF, 7 out. 2004. Publicado no Diário de Justiça em 17 dez. 2004, p. 606 (grifou-se). 47 BARROS, Carmen S. de M. Op. cit. p. 162. 48 KUEHNE, Maurício. Op. cit. p. 377-378. 49 SCHROEDER, Simone. Op. cit. p. 614-615. 50 TJADER, Ricardo L. da C. Op. cit. p. 1738. 45 46 43 Artigo 04 Ademais convém noticiar que tal entendimento já tem O direito penal que parte de uma concepção sido pacificado na 4 Câmara Criminal do Tribunal de Justiça antropológica que considera o homem incapaz de do Rio Grande do Sul. Assim argumenta o Desembargador autodeterminação [...] só pode ser um direito penal de Amilton Bueno de Carvalho, em acórdão do qual é relator: autor: o ato é sintoma de uma personalidade perigosa a [...] Não obstante, [...] nem todo o direito penal de O art. 118 e seu I, da Lei das Execuções Penais, define autor é direito penal de periculosidade [...] Há uma a regressão de regime quando o condenado ‘praticar concepção do direito penal de autor que é também direito fato definido como crime doloso...’ (sic). Assim, tendo- penal de culpabilidade e que [...] parte da premissa de se presente o princípio da presunção de inocência que a personalidade que se inclina ao delito é gerada que, por ser fundamento do sistema, é norte de toda na repetição de condutas [...] e, portanto, postula que a interpretação, a leitura possível daquele artigo da a reprovação que se faz ao autor não o é em virtude Lei das Execuções Penais (sic) é a que possibilita a do ato, mas em função da personalidade que este ato regressão quando emergir sentença condenatória revela [...].52 irrecorrível: momento em que a presunção de inocência é destruída. Ou seja, a ‘prática de fato A respeito do processo inquisitivo, Salo de Carvalho definida como crime’ só pode gerar efeitos ao apenado assevera que esse sistema “[...] exclui o contraditório, limita a quando efetivamente este fato ficar definido como ampla defesa e obstaculiza, quando não inviabiliza, a presunção crime: sentença condenatória trânsita em julgado. de inocência, cuja comissividade é o postulado básico do (4 Câmara Criminal do TJRS; agravo em execução garantismo processual”53. a n 295047534-Alegrete; 11/10/95; rel. Amilton Bueno o de Carvalho). 51 Depreende-se, pois, que os fundamentos nos quais se baseiam os doutrinadores favoráveis à regressão nos termos do art. 118, I, 1a parte, da LEP, não se coadunam com os Verifica-se assim uma cisão na doutrina e na princípios e as garantias insculpidos na Carta Magna pátria, jurisprudência, em que uns argumentam favoravelmente principalmente com o princípio da presunção de inocência. à regressão nesses termos explicitados e, outros, à sua Assim, tem como ponto limitação a mera interpretação literal impossibilidade. Contudo atente-se ao fato de que aqueles do comando legal, sem levar em consideração o sistema que consideram legítima a regressão de regime sem a normativo e, principalmente, sem invocar a norma que está no existência de sentença irrecorrível se valem tão-somente de ápice do ordenamento jurídico e que jamais deve deixar de ser uma interpretação literal do dispositivo legal em estudo. Tal observada: a Constituição. É bem verdade que o Estado tem interpretação pode, sorrateiramente, conduzir os operadores o dever de coibir a violência. Porém não tem e nem pode ter o do direito a um retrocesso histórico, que os remete ao processo dever de punir ilimitadamente. Segundo Salo de Carvalho, inquisitivo, em que se operava um direito penal de autor. Ora, a justificativa para ocorrer a regressão, que aduz que o A construção do processo civilizatório via pacto executado, por ter eventualmente praticado novo delito não social, desde a versão lockeana, [...] pressupõe que é merecedor de permanecer em regime menos severo, visto os indivíduos, cansados de viver na incerteza do que demonstraria certa periculosidade, revela um preconceito gozo dos bens [...], tenham criado um ente abstrato enrustido, na medida em que apresenta claramente o condão garantidor (Estado). O pacto se constitui, pois, em de sancionar o apenado pelo que ele é (mala in se) e não pela instrumento de deveres e de direitos recíprocos entre conduta praticada (mala prohibita). Até porque a autoria e Estado e indivíduo. O soberano recebe o poder de materialidade da conduta criminosa só serão absolutas após regulamentar a sociedade com lei, adquirindo, em o trânsito em julgado da decisão condenatória. Eugenio contrapartida, o dever de garantir a ‘segurança’ dos Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli esclarecem que há bens. Ao cidadão é imposto o dever de obediência às o direito penal de autor pela sua periculosidade e pela sua leis, correspondendo o direito de exigir as garantias culpabilidade. Veja-se: pactuadas .54 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo em execução no 295047534. 4a Câmara Criminal. Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho. Porto Alegre, RS, 11 out. 1995. 52 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. p. 118-119 (grifou-se). 53 CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. p. 18 (grifou-se). 54 CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. p. 10-11. 51 44 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? Desta feita, não é dado ao Estado, simplesmente além de uma restrição ao cerceamento de direitos e garantias porque o indivíduo transgrediu a norma uma vez, pressupor intrínsecos aos indivíduos. Por isso, reputa-se mais legítima que ele a transgredirá novamente e, assim, deixar de lhe a corrente que defende a regressão de regime ensejada pela conferir as garantias às quais têm direito. Conforme o excerto conduta criminosa somente após decisão condenatória com transcrito ilustra, não só o cidadão possui direitos e deveres, trânsito em julgado. também o Estado os possui. Outrossim se, vislumbra uma contradição no próprio 4.2 Conseqüências da regressão de regime pela acusação da sistema de execução penal brasileiro, na medida em que se prática de crime doloso sem sentença condenatória com trânsito tratando de suspensão condicional da pena e livramento em julgado condicional, o ordenamento jurídico (mais precisamente o Já se mencionou anteriormente que a regressão de Código Penal55 , em seus arts. 81,I e 86, I) prevê sua revogação regime decorrente da prática de crime doloso que se dê antes da quando sobrevém condenação irrecorrível. Inclusive o referido prolação de uma sentença irrecorrível pode acarretar prejuízos diploma legal estabelece uma espécie de “suspensão” do curso não só ao apenado como também ao próprio aparato estatal. dos aludidos institutos da execução penal, no caso de sobrevir A primeira conseqüência poderia ser a revogação da notícia da prática de um crime superveniente (arts. 81, § 2o e 89 própria regressão de regime, em função da prolação de decisão do CP). Ou seja, aos condenados que cumprem pena de acordo com a suspensão condicional da pena ou com o livramento condicional, é despendido tratamento totalmente diverso daquele conferido aos executados que cumprem pena somente pelo regime aberto ou semi-aberto. Eis que, aos primeiros, o sistema de execução penal garante a sua presunção de inocência, ao passo que aos últimos, não. Feita essa observação, é de se evidenciar que se verifica, nesse caso, uma contrariedade inclusive ao princípio da isonomia, visto que um mesmo fato (eventual prática de crime doloso) gera conseqüências diversas (para os apenados com os regimes aberto e semi-aberto, a regressão de regime e, para os condenados ao cumprimento da suspensão condicional da pena e livramento condicional, a suspensão do benefício, ocorrendo ulterior revogação somente com o trânsito em julgado da decisão condenatória) para um mesmo grupo de pessoas (todos são condenados criminalmente, isto é, todos fazem parte do sistema de execução penal). Demonstra-se assim que, em alguns momentos o legislador se preocupou em salvaguardar o princípio da presunção de inocência e, em outros, não. Todavia, considerando o aludido princípio status constitucional, deve ter uma aplicação universal e integral no território brasileiro. Assim, é inadmissível alguns terem essa garantia de presunção de inocência assegurada e outros ficarem à margem dela. absolutória irrecorrível. Vale dizer: com o desfecho da ação penal superveniente, o magistrado ou o tribunal chega à conclusão de que o réu deva ser absolvido. Desse modo, não é relevante o motivo que culminou com a absolvição, sendo imperativo ao juiz da execução penal desfazer a regressão de regime imposta ao apenado. Sobre isso, Maurício Kuehne esclarece: “[...] a absolvição quanto à prática do novo crime não pode gerar a regressão, impondo-se, caso tenha ocorrido, com o retorno ao estágio anterior”56. Todavia esse processo não é simples, pois existe um prazo mínimo para se desfazer a regressão, o qual consiste em 1/6 do tempo de pena faltante57. Além do mais, o aparato estatal arcaria com dispêndios primeiro para proceder à regressão de regime e depois para desfazê-la. Como também é notório que as Varas de Execuções Penais estejam abarrotadas de processos de execução, e demorando meses para apreciar pedidos de progressão de regime, saídas temporárias, entre outros tantos requerimentos, não é difícil perceber que a revogação de uma regressão de regime fatalmente demoraria a ocorrer. Assim, resta inevitável que o maior prejudicado seria o próprio apenado, na medida em que, durante o tempo de cumprimento da pena no novo regime, deixa de usufruir certos benefícios aos quais teria direito caso estivesse sujeito A par das considerações expostas, infere-se que o ao regime de cumprimento de pena menos severo. Sobre entendimento de que a regressão pela prática de crime doloso esse tempo de cumprimento de pena de forma mais gravosa, só possa operar-se após sentença condenatória irrecorrível Ricardo Tjader é incisivo ao afirmar: “[...] é tempo perdido, apresenta uma conformidade com o texto constitucional, desperdiçado, pois não existe na esfera penal forma justa e principalmente no que concerne ao princípio da presunção legal de reparar essa injustiça, especialmente porque não é de inocência. Também se impõe uma preocupação com a possível voltar no tempo e fazer as coisas acontecerem de imposição de certos limites ao poder sancionatório estatal, forma diferente”58. BRASIL. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dezembro 1940. KUEHNE, Maurício. Op. cit. p. 377. 57 TJADER, Ricardo L. da C. Op. cit. p. 1738. 58 TJADER, Ricardo L. da C. Op. cit. p. 1738. 55 56 45 Artigo 04 Dessa maneira, é de se perquirir inclusive acerca No que concerne à vinculação aos direitos da responsabilidade civil do Estado, principalmente quando fundamentais, há que ressaltar a particular relevância sobrevém decisão absolutória da ação penal superveniente, da função exercida pelos órgãos do Poder Judiciário, visto que tal regressão de regime viola a garantia constitucional na medida em que não apenas se encontram, eles à presunção de inocência do apenado e gera sentimento de próprios, também vinculados à Constituição e aos estigmatização nele, que se vê plenamente injustiçado pelo direitos fundamentais, [...] de tal sorte que os tribunais Estado, acarretando-se então sofrimento de ordem moral dispõem [...] simultaneamente do poder e do dever de no indivíduo. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, o não aplicar atos contrários à Constituição, de modo dever público de indenizar nasce quando a vítima teve um especial os ofensivos aos direitos fundamentais, inclusive declarando-lhes a inconstitucionalidade.62 direito lesado59. Essa lesão pode ter cunho tanto econômico como jurídico. Vale dizer: a lesão jurídica provocada pelo Estado também é passível de indenização, conforme destaca o doutrinador: O dano juridicamente reparável nem sempre pressupõe um dano econômico. Pode ter havido única e exclusivamente um dano moral. [...] A Constituição de 1988 expressamente prevê (no art. 5o, X) indenização por dano material ou moral decorrente de violação da intimidade, da vida privada, da honra ou da imagem das pessoas, sem distinguir se o agravo provém de pessoa de Direito Público ou de Direito Privado.60 Ou seja, havendo dano moral, o Estado também pode ser responsabilizado. Outrossim há necessidade de o dano sofrido ser certo, isto é, “[...] não apenas eventual [...]. Nele se englobam o que se perdeu e o que se deixou de ganhar (e se ganharia, caso não houvesse ocorrido o evento lesivo)”61. A partir dessas considerações gerais sobre o tema da Para consolidar ainda mais a colocação feita neste trabalho acerca da atuação do magistrado, consigna-se a seguinte enfatização desse autor: “[...] é de destacar-se o dever de os tribunais interpretarem e aplicarem as leis em conformidade com os direitos fundamentais, assim como o dever de colmatação de eventuais lacunas à luz das normas de direitos fundamentais [...]”63. Salo de Carvalho igualmente destaca: O vínculo do julgador à legalidade não deve ser outro que à legalidade constitucionalmente válida, sendo imperante sua tarefa de superador das incompletudes, incoerências e contradições das leis inferiores, em respeito ao estatuto maior. A denúncia de invalidade (constitucional) das leis permite sua exclusão do sistema, gerando a otimização do próprio princípio da legalidade e não, como querem alguns afoitos, sua negação.64 responsabilidade civil do Estado, depreende-se que o direito Se houver, entretanto, algum questionamento acerca à indenização do executado frente ao poder público se origina de certa legitimidade que o magistrado teria para aplicar o da culpa do magistrado, que não interpreta o referido disposi- aludido artigo na sua forma literal, vale dizer: para regredir tivo legal em consonância com a Carta Magna, especialmen- o regime sem a existência de uma decisão definitiva da ação te no que se reporta ao princípio da presunção de inocência penal superveniente, reitera-se uma vez mais a diretriz de que trazido em seu bojo, visto que, conforme exposto ao longo os operadores jurídicos têm o dever de sempre se pautar pelo do trabalho, o hermeneuta e aplicador do direito deve ter arcabouço constitucional. Diante da peculiar condição do Poder como baliza para interpretação das normas a Constituição Judiciário, que, sendo simultaneamente vinculado à Constituição com seus princípios, até porque o magistrado tem como uma (e aos direitos fundamentais) e às leis, possui o poder-dever de de suas funções a incumbência de fazer o controle difuso de não aplicar as normas inconstitucionais. Lembra Ingo Sarlet constitucionalidade das normas que incidem em dado caso “[...] que eventual conflito entre os princípios da legalidade e da concreto. A esse respeito transcrevem-se os ensinamentos de constitucionalidade (isto é, entre lei e Constituição) acaba por Ingo Wolfgang Sarlet: resolver-se em favor do último”65. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. p. 826. MELLO, Celso A. B. de. Op. cit. p. 827-828 (grifo do autor). 61 Idem, ibidem, p. 828. 62 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 335. 63 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 335 (grifou-se). 64 CARVALHO, Salo de. Op. cit. p. 105. 65 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 336 (grifou-se). 59 60 4 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? Assim, se o magistrado verificar no caso concreto que de inocência [...] quando exercitados por agentes uma norma vai de encontro com as disposições constitucionais, ministeriais, delegados de polícia e juízes de direito, ele deve procurar interpretá-la conforme a Constituição, se violando dessa forma as garantias fundamentais houver margem – e no caso da norma em comento há, posto da cidadania e o código deontológico; falha que o magistrado poderá aplicá-la somente quando sobrevir judicial agravada quando os órgãos superiores da decisão condenatória definitiva e desse modo adequá-la ao administração de justiça se omitem ante esta falta princípio da presunção de inocência – ou fazer o controle funcional.66 difuso de constitucionalidade, sob pena de se perquirir a responsabilização estatal, caso essa violação à lei fundamental Esse autor também enfatiza que “em nenhuma decorrente de uma incorreta aplicação da norma produza atividade ou setor estatal se admitem erros ou falhas, muito danos ao indivíduo. menos na Justiça Penal, que restringe o direito de ir e vir do Observe-se que no caso em exame (regressão de regime decorrente da prática de crime doloso), há flagrante contrariedade à garantia constitucional da presunção de inocência, e essa violação causa danos morais no indivíduo (em especial, se posteriormente ele vier a ser absolvido), na medida em que este é estigmatizado pela sociedade, que o vê como alguém dotado de periculosidade, posto que já tem pena a cumprir, bem como lhe impõe o ônus de ser privado mais severamente da liberdade, por uma condenação criminal que ainda nem sequer existe, tudo em nome dos interesses dessa sociedade e da defesa social. Ademais, vislumbra-se a possibilidade da produção de danos materiais ao apenado que é vilipendiado na sua condição de inocente presumido, como no caso, por exemplo, do executado submisso ao regime aberto que esteja trabalhando e contribuindo para o sustento familiar e sofra a regressão inoportuna para o regime semi-aberto, ficando impossibilitado, desse modo, de continuar exercendo sua atividade laboral. Destaque-se ainda o que salvaguarda a Constituição federal em seu art. 5o, inciso XXXVI: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Assim, denota-se o cabimento em se requerer em juízo indenização por danos causados em virtude da regressão de regime operada antes de existir uma decisão irrecorrível, especialmente quando dessa decisão sobrevém uma absolvição. Registrem-se também alguns posicionamentos doutrinários a respeito desse tema. Para Cândido Furtado Maia Neto, seria uma das espécies de erros judiciários, cidadão”67. Há que se atentar ainda, no que se refere à atuação do magistrado, para o que observa Augusto do Amaral Dergint: [...] do art. 37, §6o, da Carta de 1988 [...], não se infere apenas a aplicabilidade da teoria da responsabilidade objetiva do Estado, fundada no risco, mas também da teoria da responsabilidade subjetiva do Estado, fundada na falta do serviço (que abrange o nãofuncionamento, o mau funcionamento e o retardado funcionamento do serviço, bem como as faltas pessoais dos agentes que o operam).68 Para o autor, quando se trata da prisão preventiva e posteriormente advier uma absolvição, não há que se falar de erro judiciário, mas de falta de serviço público. Ainda que não se trate exatamente da situação aqui estudada, posto que se está a abordar a regressão de regime inoportuna, existem semelhanças e o embasamento é praticamente o mesmo. Por isso, guardadas as devidas proporções, vale o pronunciamento desse autor: “nos casos de atuação dolosa ou culposa do magistrado [...] cumpre aplicar a teoria da falta do serviço [...]: a absolvição do preventivamente preso demonstra ter ocorrido o defeituoso funcionamento do serviço judiciário”69. No entanto Dergint adverte que “não há por que tratar diferenciadamente o erro judiciário (condenação injusta) e a prisão preventiva injustificada quer quanto aos fundamentos, quer quanto às conseqüências”70. Ele salienta ainda que, por meio “[...] da prisão preventiva, o réu inocente sofre uma carga injusta e [...] que causam sérios prejuízos sociais ao nível desigual, devendo, pois, a coletividade responder em atenção individual e coletivo [...]: [...] h) efetuar manifestações ao princípio da igualdade”. Eis que a privação da liberdade processuais antecipadas de culpabilidade ou de “[...] normalmente gera graves transtornos, com conseqüências condenação, ferindo o princípio da presunção de ordem profissional, social e econômica”71. MAIA NETO, Cândido F. Erro judiciário, prisão ilegal e direitos humanos (indenização às vítimas de abuso de poder à luz do garantismo jurídico-penal). In: D´ANGELIS, Wagner Rocha (Org.). Direito internacional do século XXI: integração, justiça e paz. p. 296-297. 67 MAIA NETO, Cândido F. Op. cit. p. 299. 68 DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade civil do estado por atos judiciais. p. 241. 69 Idem, ibidem, p. 179-180. 70 Idem, ibidem, p. 179 71 Idem, ibidem, p. 178. 66 47 Artigo 04 Para Rômulo José Ferreira Nunes, a prisão ilegitimamente aplicada pode ser tipificada como uma espécie das leis feitas pelo juiz, se lesivo, poderá dar origem a uma responsabilidade por ato lícito”77. de erro judiciário: Com efeito, todas as considerações tecidas convergem para uma responsabilização estatal, caso se proceda à É que a prisão provisória representa, inegavelmente, regressão de regime pela prática de crime doloso sem existir uma antecipação de pena a ser eventualmente uma decisão irrecorrível da ação penal superveniente. Essa sancionada, o que poderia ser visto como uma responsabilização pode ser embasada na equivocada atuação afronta ao direito de liberdade, ao se contrapor ao do magistrado, se este não interpretar o art. 118, inciso I, 1a princípio constitucional de que a culpa só emerge com parte da LEP em conformidade com a Constituição e, dessa o trânsito em julgado de sentença penal condenatória forma, determinar de plano a regressão de regime pela mera [...] principalmente quando o acusado, ao invés de ser prática de crime doloso. Certo é que, se tal dispositivo legal não considerado culpado, é declarado inocente e sofreu, for interpretado e aplicado em consonância constitucional, se nessa condição, os dissabores da injusta privação no viola a garantia da presunção de inocência e, em ocorrendo seu jus libertatis.72 danos oriundos daí, há também a possibilidade jurídica de Juary Silva diz que a prisão preventiva com a posterior absolvição torna admissível a pretensão indenizatória contra o Estado, ainda que a lei não a preveja de forma expressa73. Todavia entende que “[...] a responsabilidade estatal encontra perfeita guarida na fórmula genérica da responsabilização suscitar a reparação de danos pelo Estado ao cidadão que teve seu direito vilipendiado. As palavras de Cândido Maia Neto bem se aplicam a esse tema da responsabilidade civil do Estado, por ressaltar que conexa ao funcionamento do serviço judiciário, este concebido [...] a falta de estrutura administrativa e de recursos como público”74. humanos do Estado não justifica o cometimento de Maria Helena Diniz assim discorre sobre o assunto: A prisão preventiva, se injusta [...], dará também origem à responsabilidade do Estado, que deverá indenizar os danos dela decorrentes, que poderão ser até tão ou mais graves quanto os do erro judiciário, visto que, se o acusado for absolvido, ao final da instrução criminal [...] verifica-se que, em prol do interesse da sociedade, [...] um cidadão foi onerado, de nenhuma espécie de erro judiciário, mesmo que seja pela mais grandiosa das causas, como, por exemplo, da repressão à criminalidade violenta ou organizada. Os princípios fundamentais e constitucionais precisam ser mantidos e assegurados em nome do estado democrático de direito, do garantismo jurídico e da imperiosa necessidade de sempre se realizar a Justiça Penal [...].78 modo desigual, pelas cargas públicas; logo, nada mais Ademais, pode-se apontar como uma das possíveis equânime que essa mesma sociedade, isto é, o Estado, conseqüências da regressão de regime ensejada pela eventual que lhe impôs um sacrifício anormal e excepcional, prática criminosa da qual ainda não existe condenação o indenize pelos danos causados no cumprimento do irrecorrível a propositura do instrumento de argüição de dever de apurar crimes e responsabilidades.75 descumprimento de preceito fundamental (prevista no art. 102, §1o da CF e regulamentada pela Lei no 9.882/99), E argumenta: “[...] se o cidadão que suportou sozinho pois o art. 1o dessa lei traz como objeto desse instrumento as conseqüências danosas do funcionamento de um serviço processual constitucional “[...] reparar ou evitar lesão a público ficasse sem indenização, a igualdade dos encargos preceito fundamental, resultante de ato do poder público.” públicos romper-se-ia” . Ora, a presunção de inocência, como garantia constitucional 76 Quanto à atuação do magistrado, entende a autora individual que é, configura-se como preceito fundamental, que “o erro jurídico, ou melhor, a interpretação e a aplicação sendo possível, porquanto, constituir matéria de debate em NUNES, Rômulo J. F. Responsabilidade do estado por atos jurisdicionais. p. 120. SILVA, Juary C. A responsabilidade do estado por atos judiciários e legislativos: teoria da responsabilidade unitária do poder público. p. 206. SILVA, Juary C. Op. cit. p. 206. 75 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil Brasileiro: responsabilidade civil. 19. ed. p. 649-650. 76 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 650. 77 Idem, ibidem, p. 651. 78 MAIA NETO, Cândido F. Op. cit. p. 301. 72 73 74 48 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? ADPF79, de acordo com o parâmetro de controle já fixado relação a qualquer ser humano sujeito à sua jurisdição (cf. seu pelo STF para essa modalidade do sistema concentrado de art. 1o, 1). Assim, caso seja violada alguma garantia aí expressa, constitucionalidade . Mesmo que no caso em exame seja difícil o Estado sujeita-se a uma responsabilização perante o Sistema conceber a utilização da ADPF para evitar a lesão à presunção Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos82. 80 de inocência do executado que ainda não foi regredido de É perfeitamente cabível então a responsabilização regime – principalmente porque existindo uma divergência do Brasil no plano internacional, por violar o princípio da doutrinária e jurisprudencial acerca da regressão de regime presunção de inocência, ao regredir de regime o executado ensejada pela prática de crime doloso, há a possibilidade de o acusado de cometer crime doloso, antes de haver uma sentença magistrado possuir o entendimento de que somente deva determinar condenatória definitiva, havendo a possibilidade, inclusive, de a regressão quando sobrevir decisão condenatória. É certo que, se o apenado ser indenizado pelo Estado Brasileiro. a ADPF é proposta com o condão de evitar a lesão ao preceito fundamental e é julgada procedente, em tese não há porque de se falar em direito à indenização do apenado, na medida em que, não ocorrendo a violação ao preceito fundamental, se torna difícil vislumbrar algum dano produzido; todavia, se a ADPF é promovida com a finalidade de reparar a lesão ao preceito fundamental e é julgada procedente, significa que o aludido preceito fora lesionado, existindo, logo, a possibilidade da produção de algum dano decorrente de tal violação, pelo que, nessa hipótese, é de se acionar a responsabilização estatal. Aproveita-se, neste caso, uma das novidades trazidas pela regulamentação da ADPF (art. 1o, p. único, I, da Lei 9.882/99): o seu cabimento na análise de dispositivo legal anterior à atual Constituição, na qual a LEP (de 1984) se enquadra perfeitamente81. Consigne-se, também, que a decisão tomada em uma ADPF possui efeito erga omnes e vincula os demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3o, da Lei 9.882). Finalmente, se o Estado brasileiro não reconhecer Outrossim, cogitando-se ainda a hipótese de sobrevir uma decisão absolutória, a conseqüência relacionada ao requisito temporal para fins de requerimento de progressão de regime pelo executado deve ser no sentido de se computar o tempo de cumprimento de pena em que o apenado permaneceu sujeito ao regime mais severo, decorrente da regressão, “[...] pois, caso contrário, o condenado seria duplamente castigado: primeiro, por causa da regressão do regime; segundo, porque não poderia contar o tempo da regressão para obtenção da progressão”83. Destaque-se também que, diante da atual e notória situação carcerária do País, é inconcebível manter no regime fechado um indivíduo que poderia continuar cumprindo sua pena no regime semi-aberto enquanto não lhe sobreviesse notícia de condenação superveniente, sendo ainda muito pior manter em regime semi-aberto um indivíduo que a pudesse cumprir no regime aberto. essa contrariedade ao princípio da presunção de inocência, Vislumbra-se enfim, que a regressão de regime há a possibilidade de a própria vítima da violação do direito motivada pela prática de crime doloso, quando operada antes humano apresentar denúncia à Comissão Interamericana do proferimento de uma decisão condenatória ou absolutória de Direitos Humanos, desde que tenha esgotado os recursos definitiva, pode gerar desde prejuízos ao próprio Estado (gastos internos e não tenha sido solucionada a questão, pleiteando a com a efetivação e a revogação da regressão caso sobrevenha responsabilização do Brasil no âmbito internacional. Isso porque a absolvição do apenado e com possível reparação de danos a o supracitado princípio é salvaguardado pela Convenção este), como também implicar em gravames ao executado, além Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa de, na prática, não se coadunar com a própria política criminal Rica, art. 8o, 2), ratificada pelo Estado Brasileiro em 25/9/1992. estatal, posto que leva às já superlotadas prisões indivíduos Signatário dessa convenção, o Brasil comprometeu-se a aplicar que poderiam estar em liberdade por ter a possibilidade de e respeitar suas disposições, em relação aos seus nacionais e em continuar cumprindo sua pena em regime aberto. Mesmo que os legitimados a propor uma ADPF sejam somente aqueles do art. 103 da CF, o interessado poderá solicitar ao procurador-geral da República a sua propositura, cabendo-lhe analisar os pressupostos de admissibilidade e a pertinência para ingressar ou não com o instrumento processual, nos termos do art. 2o, §1o, da Lei 9.882/99. Desse modo, na hipótese da regressão de regime que importe violação à condição de inocência, o próprio executado, por intermédio de seu procurador, poderia num primeiro momento provocar a atuação do procurador-geral da República, a fim de que fosse suscitada a análise de compatibilidade do art. 118, inciso I, 1a parte da LEP com a Constituição federal. 80 Veja-se: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. APDF no 33-MC. Voto do Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 29 out. 2003. 81 Sobre a extensão do controle abstrato de normas no Brasil também ao direito pré-constitucional, ou seja, a possibilidade de exame da compatibilidade do direito préconstitucional com norma da Constituição federal, veja-se: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. APDF no 33-MC. Voto do Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 29 out. 2003. 82 Sobre as sanções ao Estado conforme seus enquadramentos advenham da Comissão ou da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vide: GALLI, Maria Beatriz; DULITZKI, Ariel E. A Comissão interamericana de direitos humanos e o seu papel central no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flavia (Coord.) O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o Direito brasileiro. p. 62, 70-71 e passim. 83 Conforme ROCHA, Eduardo M. Apud KUEHNE, Maurício. Op. cit. p. 378. 79 49 Artigo 04 5. Síntese conclusiva: quo vadis,* hermeneuta brasileiro? penal. Essa decisão é a mais adequada constitucionalmente Tratou-se neste artigo de um dos temas mais polêmicos quer pela eficácia interpretativa, quer pela eficácia negativa que permeiam o direito da execução penal brasileiro, qual seja desse princípio constitucional e só assim o hermeneuta estará a regressão de regime decorrente da prática de crime doloso, adequando o texto do dispositivo infraconstitucional com o à luz do sistema constitucional, essencialmente no que tange enunciado contido no art. 5o, inciso LVII da CF. Outrossim, ao princípio da presunção de inocência. Ao longo do seu como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade enfrentamento verificou-se que, no processo hermenêutico das também têm destaque no processo interpretativo, verifica- normas infraconstitucionais anteriores à nova Constituição, se que a interpretação meramente gramatical do referido boa parte dos hermeneutas as interpretam sem considerar dispositivo da LEP não demonstra razoabilidade, posto que a supremacia que a lei fundamental irradia por todo o não apresenta adequação com os meios e fins preconizados ordenamento jurídico – cumprindo papel decisivo na resolução pela Constituição, tampouco se mostra proporcional, visto de conflitos desde a recepção das normas quando da entrada que a opção feita por se regredir o regime antes de sobrevir em vigor de uma nova constituição até o oferecimento do uma decisão irrecorrível da ação penal superveniente afeta parâmetro fundamentador do controle de constitucionalidade diretamente a garantia constitucional do apenado, que é a de tais normas. Essa falta de obediência a um dos princípios presunção de inocência. basilares de todo o estado de direito constitucional, que é o Não obstante todas as conclusões parciais dessa da constitucionalidade, acaba interferindo negativamente na análise constitucional-principiológica da regressão de regime atuação desses hermeneutas, legando-lhes um resultado que decorrente da prática de crime doloso antes de sobrevir não é o mais adequado na interpretação e na aplicação das sentença condenatória trânsita em julgado, apontadas ao longo normas. do texto, viu-se que há ainda muitos autores e magistrados que É que quando uma nova constituição entra em vigor persistem na afirmação de que tal medida não implica violação no ordenamento jurídico, as normas infraconstitucionais ao princípio da presunção de inocência, acobertados tão- anteriores a ela são recepcionadas desde que seu conteúdo somente pelos argumentos da defesa social, da periculosidade seja consigo compatível; havendo discrepância entre a do apenado e da interpretação literal do dispositivo, o qual norma ordinária anterior e a lei fundamental posterior, a silencia a respeito da necessidade de haver decisão condenatória conseqüência, em termos práticos, será a inaplicabilidade do passada em julgado. Isso apesar de ter-se demonstrado ao dispositivo legal contrário à Constituição. Deve o hermeneuta longo do trabalho que essa hipótese de regressão de regime não operar aí, sempre, o processo mais amplo da filtragem possui natureza cautelar como alguns pretendem, pelo que se constitucional, pelo qual deve toda a ordem jurídica – sob a conclui que detém um caráter de penalidade antecipada. Assim perspectiva formal e material, e assim os seus procedimentos sendo, resta evidente a violação ao princípio da presunção de e valores – ser submetida ao filtro axiológico da Constituição inocência, além da contrariedade ao princípio da secularização, federal, que impõe a cada momento de aplicação do direito posto que se pune antecipadamente o indivíduo por se pressupor a releitura e a atualização de suas normas. Sob essa diretriz que seja perigoso, haja vista já possuir condenação criminal, o hermenêutica, conclui-se que o art. 118, inciso I, 1 parte da que remete a um direito penal de autor. Ademais, diante do LEP não foi recepcionado pela Constituição da República contexto sistemático em que as normas estão inseridas, em que de 1988, na medida em que a hipótese de regressão de reina a supremacia da Constituição, é inconcebível se valer regime que refere não possui caráter cautelar (acolhida pela apenas de uma interpretação literal para defender a aplicação Constituição), mas sim de penalidade antecipada, o que viola de medida apta a acarretar séria restrição de direito, como o princípio da presunção de inocência. Portanto a regressão pretende a regressão de regime nesses moldes. a de regime ensejada pela prática de crime doloso não pode Verificou-se, ademais, que a regressão de regime ser promovida sob o pretexto de providência cautelar. Desse inoportuna gera muitas conseqüências, tais como: a modo, tendo em vista que a regressão de regime motivada pela revogação da própria regressão de regime quando sobrevém prática de crime doloso contraria o princípio constitucional absolvição; a responsabilização estatal, especialmente quando da presunção de inocência quando realizada antes de sobrevir sobrevém absolvição, tendo em vista a atuação equivocada do decisão condenatória definitiva, por demonstrar ter um caráter magistrado, que não coaduna o dispositivo legal da LEP com a de pena antecipada, deve operar-se apenas quando sobrevir Constituição e, dessa forma, pode acarretar danos ao apenado, decisão condenatória irrecorrível oriunda da nova ação que podem ser tanto morais como materiais; a propositura “Para onde vais?”, em alusão à obra clássica da literatura polonesa Quo vadis, de Henryk Sienkiewicz (1846-1910), publicada na forma de livro em 1896. * 50 A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? de argüição de descumprimento de preceito fundamental, entanto, se em razão da ação penal superveniente, o indivíduo podendo ser provocada inclusive de forma mediata pelo for preso cautelarmente, propõe-se a suspensão cautelar da próprio executado, ensejando, se procedente, a inaplicabilidade execução até ulterior decisão superveniente irrecorrível85 . do aludido dispositivo da LEP nos seus termos literais; a Isso porque, em se tratando de cumprimento de pena em responsabilização do Brasil no âmbito internacional, caso não regime aberto, o executado fica impossibilitado de cumprir as reconheça internamente a violação ao princípio da presunção condições deste, então seria incoerente deixar a execução da de inocência, havendo a possibilidade de condenação do pena em curso, sem que o apenado possa efetivamente cumpri- Estado brasileiro ao pagamento de indenização ao apenado na la. Já em se tratando de execução em regime semi-aberto, Corte Interamericana de Direitos Humanos; a contabilização em virtude da aplicação da suspensão de regime, o apenado do período em que o executado permaneceu preso sob o permanece encarcerado, mas sem direito às saídas temporárias regime mais severo, para fins de progressão de regime, no caso (o que é próprio da suspensão cautelar de regime). Assim, não de sobrevir absolvição da ação penal superveniente. Na forma é regredido seu regime e é satisfeita a determinação do juízo da reflexa, também se pode apontar como conseqüência dessa ação penal em trâmite, que entende que o indivíduo deva ficar inconstitucional regressão de regime o apinhar dos cárceres preso cautelarmente, em razão do possível cometimento de um por condenados que poderiam estar cumprindo suas penas novo delito. em liberdade, o que vai de encontro à própria política criminal Diante disso tudo, conclui-se finalmente que muito estatal, que prevê o desencarceramento como a principal embora o STF ainda não se tenha pronunciado acerca da maneira de evitar a reincidência. incompatibilidade do art. 118, inciso I, 1a parte da LEP com a Constata-se, assim, que a regressão de regime Constituição, devem todos os hermeneutas, mas especialmente ensejada pela prática de crime doloso, quando realizada antes os juízes da execução penal86, interpretar e aplicar as normas de sobrevir uma decisão condenatória definitiva da ação penal de acordo com a lei fundamental, dada a sua supremacia no superveniente, é ilegítima perante o Sistema Constitucional ordenamento jurídico. Portanto há necessidade de se adequar pátrio vigente, além de se mostrar inviável frente às a hipótese de regressão de regime aqui estudada com o conseqüências perversas que pode acarretar. Desse modo, na princípio constitucional da presunção de inocência, pelo que hipótese de não ser decretada nenhuma prisão cautelar pelo da presunção de inocência; ao contrário, se o indivíduo for a regressão de regime decorrente da prática de crime doloso somente deve ser determinada quando sobrevier decisão condenatória irrecorrível da ação penal superveniente. Para onde vão, porém, os hermeneutas todas as vezes em que assim não resolverem esse conflitos interpretativos? Para a senda da inconstitucionalidade. E esse caminho é na verdade um reprodutor de inconstitucionalidades: na atuação estatal e na vida do apenado. Por isso mesmo é que se insiste na pergunta absolvido, ele deve dar continuidade ao cumprimento da reflexiva: quo vadis, hermeneuta brasileiro? juízo da ação penal superveniente, propõe-se a continuidade no cumprimento de pena pelo executado, enquanto tramita essa nova ação penal84 . Se o desfecho desta – que se dá somente após a prolação de uma decisão definitiva – se der durante a execução da pena e o indivíduo for condenado, aí sim a regressão de regime estará autorizada à luz do princípio execução, e a ele nenhum prejuízo será causado por decorrência dessa ação penal instaurada. Se, todavia, o deslinde dessa nova ação penal ocorrer após o cumprimento de pena pelo executado e ele for condenado, tal condenação não produzirá efeitos para 6. Referências BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena na execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. a execução da pena anterior, vez que esta já foi cumprida, mas BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da repercutirá no tocante à dosimetria da pena e na fixação de constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional regime dessa sentença condenatória que será executada. Caso transformadora. 6. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Saraiva, 2004. o indivíduo já tenha cumprido a pena e venha a ser absolvido nessa ação penal superveniente, ele quita suas obrigações BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. perante o Poder Judiciário e nenhum prejuízo lhe é causado. No Rio de Janeiro: Forense, 1980. Com base no que propõe Andrei Schmidt, na hipótese de sobrevir notícia de cometimento de novo crime para os casos de livramento condicional. Cf. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, deveres e disciplina na Execução Penal. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Op. cit. p. 276 (nota de rodapé no 38). 85 Com base nos autores: KUEHNE, Maurício. Op. cit. p. 376; FERNANDES, Antonio Scarance. Execução penal: aspectos jurídicos. Revista CEJ, Brasília, v. 3, n. 7, jan./abr. 1999. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero7/artigo8.htm> Acesso em: 2 out. 2007. 86 É bem verdade que entre estes há aqueles que sempre são primorosos na “leitura” adequada da Constituição. O mesmo se dá entre os hermeneutas doutrinadores, donde se podem citar os luminares exemplos de posturas críticas advindas de Sérgio Salomão Shecaira (especialmente com sua obra Criminologia), de Pedro Sérgio dos Santos (na sua obra de vanguarda Direito processual penal & a insuficiência metodológica: a alternativa da mecânica quântica) e de Salo de Carvalho (em tudo quanto publica). 84 51 Artigo 04 BESTER, Gisela Maria. Direito constitucional: fundamentos . Supremo Tribunal Federal. APDF n. 33-MC. Voto do Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 29 out. 2003. teóricos. São Paulo: Manole, 2005, v. 1. controle CARVALHO, Márcia Haydée Porto de. Hermenêutica jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2. ed. Brasília: constitucional: métodos e princípios específicos de interpretação. Ministério da Justiça, 1957. [Florianópolis]: Obra Jurídica, 1997. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Aplicação da pena e garantismo. 3. ed. amp. Rio de Janeiro: Universidade de Brasília, 1999. Lúmen Juris, 2004. BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O BONHO, Luciana Tramontin. Uma abordagem crítica do princípio da secularização na legislação penal atual. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 841, 22 out. 2005. Disponível , (Org.). Crítica à execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. , Pena e garantias. 2. ed. rev. e atual. Rio de em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7458> Acesso em: 9 abr. 2007. Janeiro: Lúmen Juris, 2003. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, COSTA, Breno Melaragno. O princípio constitucional da promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, presunção de inocência. In: PEIXINHO, Manoel Messias; Brasília, DF, 5 out. 1988. GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly . Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1940. . Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 out. 1941. (Orgs.). Os princípios da constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001. D´ANGELIS, Wagner Rocha (Org.). Direito internacional do século XXI: integração, justiça e paz. 1. ed. (2003), 2a tir. Curitiba: Juruá, 2005. DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade civil do estado por atos judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. . Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 19. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (lei n. 10.406, de 10-1-2002) e o Projeto de . Lei no 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do §1o do art. 102 da Constituição da República Federativa do Brasil. . Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Lei no 6.960/2002. São Paulo: Saraiva, 2005. 7 v. ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais: elementos teóricos para uma formulação dogmática constitucionalmente adequada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. Habeas Corpus n. 335.392/8, 4 Câmara Criminal. Relator: Juiz FERNANDES, Antonio Scarance. Execução Penal: aspectos Devienne Ferraz. São Paulo, SP, 23 fev. 1999. jurídicos. Revista CEJ, Brasília, v. 3, n. 7, jan./abr. 1999. a . Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero7/artigo8. em execução n. 295047534. 4a Câmara Criminal. Relator: Des. htm> Acesso em: 2 out. 2007. Amilton Bueno de Carvalho. Porto Alegre, RS, 11 out. 1995. FONSECA, Adriano Almeida. O princípio da presunção de . Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial inocência e sua repercussão infraconstitucional. Jus Navigandi, n. 564971. 6a Turma. Relator: Min. Hamilton Carvalhido. Teresina, ano 4, n. 36, nov. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol. Brasília, DF, 7 out. 2004. Publicado no Diário de Justiça em com.br/doutrina/texto.asp?id=162> Acesso em: 24 abr. 2007. 17 dez. 2004. GALLI, Maria Beatriz; DULITZKI, Ariel E. A Comissão . Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 396386. 2a Turma. Relator: Min. Carlos Velloso. Brasília, DF, 29 jun. 2004. Publicado no Diário de Justiça em 13 ago. 2004. 52 interamericana de direitos humanos e o seu papel central no Sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flavia (Coord.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro? Viviana; SANTOS, Pedro Sérgio dos. Direito processual penal & a DULITZKY, Ariel E. A corte interamericana de direitos insuficiência metodológica: a alternativa da mecânica quântica. humanos: aspectos procedimentais e estruturais de seu Curitiba: Juruá, 2004. , Maria Beatriz; KRSTICEVIC, funcionamento. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flavia (Coord.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991. GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flavia (Coord.). O sistema SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, deveres e disciplina na execução penal. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Crítica à execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito SCHROEDER, Simone. Regressão de regime: uma releitura brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. frente aos princípios constitucionais. Abordagem crítica. GOULART, José Eduardo. Princípios informadores do direito da execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de: Luís Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Crítica à execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. SHECAIRA Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2004. ; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Pena e constituição: KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2005. MAIA NETO, Cândido Furtado. Erro judiciário, prisão ilegal aspectos relevantes para sua aplicação e execução. São Paulo: RT, 1995. e direitos humanos (indenização às vítimas de abuso de poder SILVA, Haroldo Caetano da. Manual da execução penal. à luz do garantismo jurídico-penal). In: D´ANGELIS, Wagner 2. ed. Campinas: Bookseller, 2002. Rocha (Org.). Direito internacional do Século XXI: integração, justiça e paz. 1. ed. (2003), 2. tir. Curitiba: Juruá, 2005. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. rev. e atual. nos termos da Reforma Consti- MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 2. ed. rev. São tucional (até a Emenda Constitucional n. 45, de 8 dez. 2004, Paulo: Saraiva, 2005. publicada em 31 dez. 2004). São Paulo: Malheiros, 2005. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13. ed. rev., amp. e atual. até a Emenda Constitucional 31, de 14 dez. 2000. São Paulo: Malheiros, 2000. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. MIRABETE, Julio F. Execução Penal: comentários à Lei n. 7.210, de 11 jul. 1984. 11. ed. rev. e atual. até 31 mar. 2004. SILVA, Juary C. A responsabilidade do estado por atos judiciários e legislativos: teoria da responsabilidade unitária do poder público. São Paulo: Saraiva, 1985. STRECK, Lenio L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 3. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2004. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II. TJADER, Ricardo Luiz da Costa. As garantias individuais e a 5. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. regressão do regime de pena. Boletim Informativo do Instituto NUNES, Rômulo José Ferreira. Responsabilidade do estado por atos jurisdicionais. São Paulo: LTr, 1999. PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; de Pesquisas Jurídicas Bonijuris, Curitiba, n. 159, Ano V, p. 1 738, 30 maio 1993. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os princípios da 22. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 3. constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José H. Manual RAMOS, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis: vício de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: e sanção. São Paulo: Saraiva, 1994. Revista dos Tribunais, 2002. 53 Artigo 05 Artigo 05 Responsabilidade Pressuposta* Evolução de fundamentos e de paradigmas da responsabilidade civil na contemporaneidade Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka** Em todo o mundo jurídico, de sistemas ocidentalizados especialmente, tem-se buscado alcançar este desiderato, quer dizer, a construção ou consolidação de uma noção que seja um portador geral ou um denominador comum ou um critério suficiente, mas que seja capaz de assegurar a reparação efetiva e adequada aos danos sofridos em razão das especificidades do modus contemporâneo de atuação humana, exatamente porque , – diz João Baptista Villela em extraordinária síntese – ‘na teoria da responsabilidade civil, o que se procura obter, em última análise, é a restauração de uma igualdade destruída; qualquer que seja o fundamento que se lhe dê – culpa ou risco – é a um resultado igualitário que se objetiva’.1 1. Primeiras palavras: as razões de se buscar a estrutura de uma responsabilidade pressuposta. 2. A posição da responsabilidade civil no direito brasileiro entre 1916 e 2002: de Clóvis Bevilaqua a Miguel Reale. 3. O instituto da responsabilidade civil e o percurso entre a culpa e o risco: um importante passo na evolução. 4. O passo além que tem sido intentado pelos doutrinadores contemporâneos e a admissão de um fundamento distinto a justificar a responsabilidade civil, hoje. 5. Em síntese: qual seria o perfil de uma mise en danger otimizada e qual seria, por conseqüência, o perfil do critério que se tem intentado buscar? 1. Primeiras palavras: as razões de se buscar a estrutura de uma no sentido do favorecimento do direito das vítimas, para dar responsabilidade pressuposta mais, a essa interpretação que correu no sentido de melhor O presente artigo tem por escopo ordenar uma breve síntese do pensamento contemporâneo acerca da busca favorecer o interesse do demandado em não reparar o dano causado. doutrinária que se faz – em boa parte do mundo jurídico Não sem estar coberto de razão, já havia escrito, ao ocidental, principalmente – de um novo critério capaz de final do século anterior, o eminente civilista brasileiro Caio fundamentar e de justificar uma proposta voltada à organização Mário da Silva Pereira, que “a evolução da responsabilidade de um novo sistema de responsabilidade civil, ao qual se civil gravita em torno da necessidade de socorrer a vítima, denomina, pioneiramente, de responsabilidade pressuposta. o que tem levado a doutrina e a jurisprudência a marchar A grande questão, em sede da responsabilidade civil adiante dos códigos, cujos princípios constritores entravam contemporânea, a se envolver nas dobras do pensamento o desenvolvimento e a aplicação da boa justiça”2. A lúcida jurídico da pós-modernidade, afinal de contas, é aquela que razão do autor se encontra nessa imperiosa necessidade de mostra a atual tendência de revolta contra as torrentes de se definir, de modo consentâneo, eficaz e ágil, um sistema construções doutrinárias e jurisprudenciais que visaram, de responsabilização civil que tenha por objetivo precípuo, precipuamente, a dar menos à interpretação dos textos legais, fundamental e essencial a convicção de que é urgente que Este estudo corresponde a um extrato da tese de livre-docência defendida pela autora, junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em maio de 2003, tese que se encontra publicada sob o título Responsabilidade Pressuposta, pela Editora Del Rey, Belo Horizonte: 2005. A autora conta com a especial autorização de sua editora para a publicação deste extrato. Para a verticalização ou o aprofundamento dos estudos, recomenda-se a leitura da obra original. ** Doutora e livre-docente em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), professora associada do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 1 João Baptista Villela. Para além do lucro e do dano: efeitos sociais benéficos do risco – Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, no 22/91, 2a quinz., nov. 1991, cad. 3:490-489. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. III, 10. ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro: 1999, p. 362. * 54 Responsabilidade Pressuposta deixemos hoje, mais do que ontem, um número cada vez mais busca apenas um critério tão geral que possa, sob um padrão reduzido de vítimas irressarcidas. de melhor segurança, constituir-se em fundamento essencial e Mais que isso. O momento atual dessa trilha evolutiva, intrínseco de um sistema de responsabilização porvir. Mas se isto é, a realidade dos dias contemporâneos, detecta uma busca um critério que se possa, perfeitamente, se determinar preocupação – que cada vez mais ganha destaque – no sentido em prol dessas intenções e exigências primordiais, quais de ser garantido o direito de alguém de não mais ser vítima de sejam, em que o número de vítimas irressarcidas de danos danos. Esse caráter de prevenção da ocorrência de danos busca que permanecem irressarcidas fosse um número – a cada vez e seu espaço no sistema de responsabilidade civil, em paralelo ao sempre – significativamente menor. espaço sempre ocupado pela reparação dos danos já ocorridos. O contorno fundamental da principiologia de Há um novo sistema a ser construído, ou pelo menos, amparo e o matiz de sustentação do viés axiológico de há um sistema já existente que reclama transformação, pois as resguardo de tal reestruturação sistemática deverá estar, por soluções teóricas e jurisprudenciais até aqui desenvolvidas, e isso mesmo, indelevelmente vinculado ao respeito à dignidade ao longo de toda a história da humanidade, encontram-se em da pessoa humana, esta que é, enfim, o sentido e a razão de crise, exigindo revisão em prol da mantença do justo. toda e qualquer construção jurídico-doutrinária ou jurídico- Estrutura-se, paulatinamente, um sistema de normativa. Tudo exatamente para que o direito, pensado em responsabilidade civil que já não se sustenta mais pelos sua gênese, cumpra seu papel mais extraordinário, o papel de tradicionais pilares da antijuridicidade, da culpabilidade e do responsável pela viabilização da justiça e da paz social. nexo de causalidade, apenas. Organiza-se, já, um sistema que não recusa – como outrora se recusava, por absolutamente 2. A posição da responsabilidade civil no direito brasileiro entre inaceitável – a existência de um dano injusto, por isso indenizável, 1916 e 2002: de Clóvis Bevilaqua a Miguel Reale decorrente de conduta lícita. Apresenta-se, nos dias de hoje, Antes de ingressar propriamente no desdobramento um sistema de responsabilidade civil que já não se estarrece analítico do tema central deste artigo, é útil mostrar, ainda que com a ocorrência de responsabilidade independentemente de com brevidade, qual a situação do direito positivo brasileiro, culpa de quem quer que seja. na trajetória de seus dois códigos civis, e como ele tratou (ou As perguntas que insistem em latejar na mente do pesquisador e do observador social e jurídico são: Qual é a não) as preocupações que agora geram essas reflexões sobre o que se tem denominado de responsabilidade pressuposta. efetiva razão de ressarcir? Qual é o verdadeiro pressuposto do Como se sabe, o Código Civil de 1916 filiou-se dever de indenizar? Quais são o novo contorno e o conteúdo da à teoria subjetiva para a composição das regras jurídicas reparação? Qual é, então, o marco teórico da responsabilidade acerca da responsabilidade civil, como se verificava no civil, neste tempo das primeiras pegadas do novo milênio? art. 159, do qual se dizia ser o hábitat legal da responsabilidade Sobre isso discorre o que se tem chamado derivada da culpa3. Mas tal posicionamento não impediu que de responsabilidade pressuposta, na condição de uma o legislador, em passagens esparsas, houvesse considerado responsabilidade de novo perfil, que se descortina por meio a adoção da responsabilidade objetiva, baseada no risco e de um critério que a fundamente e justifique, como já se não na culpa. Ambas as posições coexistiram pacificamente disse antes, isto é, um verdadeiro critério de imputação da no corpo do código anterior, estando a responsabilidade responsabilidade sem culpa, elevado à categoria de règle à objetiva – posto que obrigação legal de indenizar, como valeur d’ordonnancement juridique. não poderia deixar de ser – invariavelmente prevista na lei, Não é simples encontrar um critério assim, que seja imputando a responsabilidade de ressarcir o dano a certas portador de qualidades que lhe permitam posicionar-se como pessoas, independentemente da prática de ato ilícito, pessoas um denominador comum de variadas hipóteses danosas, já essas a quem não se admite qualquer escusa subjetiva no ocorridas ou não, e que seja um critério que tenha qualidades sentido de pretender demonstrar a sua não-culpa. e atributos tão suficientes que possam arrebanhar as hipóteses No momento atual, sob a égide do novo Código todas, subsumindo-as à sua determinação de responsabilização. Civil Brasileiro4 , observa-se, sem dúvida, a presença de certo Não é simples encontrar um critério assim porque não se avanço que o Projeto de Código Civil, conhecido como Art. 159 CC/1916: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.” 4 O novo Código Civil Brasileiro, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor no dia 10 de janeiro de 2003. Este capítulo foi escrito em março de 2002 e tomou por base as considerações já expendidas pela autora do presente estudo, no ano anterior, quando proferiu a palestra Tendências atuais da Responsabilidade Civil: marcos teóricos para o direito do século XXI, opus cit. passim. 3 55 Artigo 05 Projeto Miguel Reale, do ano de 1975 pôde produzir, há cinco refazimento de sua circunstância jurídico-patrimonial afetada lustros. Nem perfeito, nem retrógrado. Nem ambicioso, nem pelo dano sofrido, mas, especialmente, pelo refazimento de sua descomprometido com a realidade, mas com certo viés de condição de titular do direito à dignidade constitucionalmente coragem, caso se considere a inserção de um sistema geral plasmada enquanto valor máximo da pessoa humana, pela de responsabilidade objetiva ao lado do sistema geral de imposição do dever indenizatório ao causador do dano. Ainda responsabilidade subjetiva ou, caso se considere a abertura que incapaz. Embora o atual Código Civil não estabeleça cometida em nome da eqüidade, assunto que absolutamente expressamente essa consignação, a oportunidade da inserção não habitou o sistema do Código Civil de 1916, ao tempo de legislativa se sobreleva naquelas hipóteses em que o incapaz sua promulgação, no início do século anterior. causador do dano é, na verdade, um relativamente capaz e O Código Civil de 2002, cerne da estruturação titular de patrimônio suficiente. legislativa da responsabilidade civil, introduziu uma regra geral Cuidadoso, o legislador não deixou de avisar que a bem distinta daquela contida na legislação anterior. Vale dizer, aplicação dessa regra tem, como pressuposto inafastável, a introduziu a imputação do dever de indenizar por atribuição certeza de que a cominação do dever de indenizar não pro- meramente objetiva, não a tendo feito pontualmente em moverá a privação do incapaz, relativamente àquilo que mini- situações individualizadas, delimitadas, mas a fez como sistema mamente necessita para si próprio. O bom senso do magistrado geral, transmudando o caráter da responsabilidade objetiva – zeloso – que aplicará a nova forma de expressão legislativa do até então meramente excepcional – em regra, isto é, em preceito direito civil no que respeita à responsabilidade civil e ao dever legal geral. O art. 927 parágrafo único, do novo código destaca de indenizar danos causados – levará em conta essa bipolari- assim, em vivas letras, aquilo que é uma necessidade crescente zação de interesses, conjugando-os eqüitativamente, conforme entre nós: o dever de indenizar independentemente de culpa, nos convém à nova arquitetura legislativa. 5 casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente Por outro lado, e ainda sob a consideração do desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, Código Civil de 2002, destaca-se essa especialíssima questão grande risco para os direitos de outra pessoa. referente à expansão dos critérios endereçados à quantificação tendência ou mensuração dos valores indenizatórios por dano moral. objetivista da responsabilidade civil, na lei nova, não se encontra Obviamente, apesar dessa marcante Equilibrada e moderna, além de justa, a nova legislação abandonada a responsabilidade por culpa, continuando civil eleva e destaca valores éticos imorredouros, tais como a consagrada na Parte Geral, entre os dispositivos que formatam probidade, a boa-fé e, principalmente a eqüidade. Todo esse o Título relativo aos atos ilícitos , repetindo-se adiante no novo perfil normativo traz enormes mudanças na aplicação do arcabouço da responsabilidade civil propriamente dita7. direito, exatamente porque confere ao magistrado uma saudável 6 Relativamente à responsabilidade do incapaz, avançou responsabilidade na composição pecuniária da indenização, o novo código8 ao prever que ele responde pelos danos a que der tornando-a equânime e, por isso, mais justa, atuação essa que causa, se seus responsáveis não tiverem a obrigação de indenizar é inovadora entre nós, mas que tem por paradigma a moldura ou se o patrimônio destes, desde que responsabilizados, não da common law. Contudo o que mais se destaca, talvez, como for suficiente para atender ao reclamo da vítima. Trata-se de novidade a ser considerada é a revolução provocada pela interessantíssimo avanço já conhecido de outras legislações nova lei em matéria de responsabilidade por fato de outrem, estrangeiras e que atende rigorosamente a esse paradigma da pela adoção da teoria do risco-proveito e pelo conseqüente pós-modernidade que aponta o foco de atenção, do direito e abandono, enfim, do frágil estratagema da inversão do ônus da lei para a pessoa da vítima e para a imprescindibilidade de da prova. E assim, o colossal art. 933 do novo código9 , em Art. 927. [...] Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (g.n.). 6 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 7 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem é obrigado a repará-lo. 8 Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de o fazer ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se ela privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem. 9 Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I – os pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II – o tutor e o curador pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições; III – o empregador ou comitente por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos; V – os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia. Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a III do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos. 5 5 Responsabilidade Pressuposta caráter coadjuvante, determina que as pessoas indicadas no fundamentais de um sistema de responsabilidade civil distinto artigo antecedente (os pais, o tutor, o curador, o empregador) daquele que até o anterior século pareceu bastar. Os pensadores do direito, jusfilósofos e jus-sociólogos, buscaram critérios de identificação para as novas ocorrências e exigências da vida dos homens, como se buscassem – diga-se assim – um padrão de fundamentação ou uma tábua de pressupostos ou, ainda, um denominador comum que fosse capaz de se expressar, enfim, como fonte e fundamento do dever de indenizar o dano que alguém injustamente sofra. Ao lado dessa prodigalidade de formulações teóricas se instalaram também, e de modo igualmente pródigo, as mais diferentes tendências jurisprudenciais, com respostas distintas para casos semelhantes, com respostas semelhantes para casos distintos e com idênticas respostas para casos semelhantes ou não, mas oriundas de fundamentação diversa. O século XX – não há como negar – produziu uma verdadeira torre responderão pelos atos daqueles indicados e a eles relacionados (os filhos menores, os pupilos, os curatelados e os empregados), ainda que não haja culpa de sua parte. Trata-se da tão ansiada transição da culpa presumida e do ônus probatório invertido para uma objetivação efetiva dessa responsabilidade in casu. Indo além, o legislador do novo código estabeleceu a solidariedade10 entre as pessoas responsabilizadas pelos danos causados por terceiros e estes próprios, situação não presente na Lei Civil anterior, mas muito discutida doutrinária e jurisprudencialmente, no curso da vigência do código de 1916. Sem pretender a análise pontual dos dispositivos que compõem o Título IX do Livro I da Parte Especial do Código Civil de 2002 – artigos. 927-954 – anotam-se os fundamentais plexos ou paradigmas da responsabilidade civil na nova legislação, à guisa de reconhecer as tendências de outrora já fixadas na lei nova, como ponto de partida e reflexão para o evolver do novo século: a) reparação do dano causado por culpa do agente, ou independentemente de sua culpa11 ; b) reparação do dano moral12 ; de Babel, em termos de apreciação, análise e aplicação da responsabilidade civil. O espaço de tempo de cem anos, se contado desde 1899 e até 1999 – quer dizer, o lapso temporal que liga e relaciona Clóvis Bevilaqua a Miguel Reale15 –, pode dar bem a noção do quanto se alterou, em termos doutrinários e em sede jurisprudencial, a maneira de tratar a responsabilidade civil. Olhando esse passado relativamente recente, no Brasil c) repressão ao abuso do direito13 . e fora dele, resta sempre, ao investigador, a dúvida, tão bem 3. O instituto da responsabilidade civil e o percurso entre a culpa e o risco: um importante passo na evolução A crise do sistema clássico de responsabilidade civil está a exigir uma revisão crítica que se fará obrigatoriamente por intermédio da releitura da própria história dos povos, da reedição do diálogo entre o direito e a sociedade e da reapreciação dos fatos da vida como se apresentam hodiernamente e como influenciam a trajetória e a esfera jurídica dos homens. A era da globalização, mais do que qualquer outra antes dela, é exigente de uma interpretação sistêmica cuidadosa, traduzida por Luiz Edson Fachin: se o passo à frente que se esboça é uma mudança efetiva ou tão-só a última fronteira de um sistema moribundo que agoniza, mas ainda não esgotou16. Ora, todo tema investigatório que pertença ao contexto geral da ciência jurídica, como no caso do instituto da responsabilidade civil, trará consigo as mesmas preocupações e as mesmas angústias acerca de se desvendar qual o melhor percurso para definir, a contento, a cientificidade da investigação por ele levada a efeito, assim como se o faz, a priori, com a própria ciência que o contempla. A ciência do direito é uma inquietude ante o problemático, de modo a permitir que cada coisa, natural ou artificial, seja afirma Maria Helena Diniz17 ; por isso, a escolha do método de redefinida em relação com o todo planetário . investigação se torna imprescindível à delimitação do objeto a ser 14 Ao longo do século XX, dezenas de teorias foram desenvolvidas para explicar ou para criar parâmetros investigado e à certeza do investigador acerca do que realmente tenciona fazer e do lugar onde efetivamente deseja chegar. Art. 942. [...] Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem é obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 12 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (g.n.) 13 Art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (g.n.). 14 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 171. 15 Referência aos dois projetos de Código Civil de maior destaque em toda a história do direito no Brasil, isto é, o Projeto de 1899, de Clóvis Bevilaqua, que se transformou no primeiro Código Civil brasileiro, em 1916, e o Projeto 624-B/75, supervisionado por Miguel Reale, que atualmente, já sancionado pela Presidência da República, aguarda o prazo da vacatio legis para entrar em vigor como novo Código Civil brasileiro. 16 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 16. 17 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 29. 10 11 57 Artigo 05 É certo que a escolha de um método não exclui, seus vieses, a matizar os seus contornos com os princípios e obrigatoriamente, a interferência positiva de outro, desde que valores de uma ciência que não se amalgama ou se confunde não conflitem os espectros e os paradigmas perseguidos, sempre com outra ciência. em prol da qualidade, da validade e da segurança dos resultados A análise mais paciente de algumas dessas variações que se visam a obter. Pode ocorrer de ser o método selecionado tendentes a teorizar a origem, a natureza e os limites da ciência um método histórico, ou um método de concepções analíticas jurídica, bem como a especificidade de seu objeto e o seu método ou um método de experimentação do cotidiano em busca das de especulação podem encaminhar à revisão de certas direções estruturas positivadas. Pode ocorrer de ser uma mistura possível filosóficas que se afirmam ao longo da história do direito dos de dois deles, como uma simbiose, ou uma infiltração oportuna homens, uma após as outras, mas repetindo-se, às vezes, em de um em outro. Importa, verdadeiramente, a justificação do diferentes momentos dessa mesma trajetória. A exemplo de recurso metodológico e a sua adequação ao quanto se tem em Colombo, descobrindo de longe as costas da América, quem vista perseguir e demonstrar. Tarefa não exatamente simples, escolheu por se interessar pela filosofia do direito ignora ainda não exatamente fácil. que está a ponto de abordar um continente misterioso. De toda a sorte, não há como negar, o instituto da Mas é justamente, quiçá, essa ousadia do pesquisador responsabilidade civil é instituto que pertence ancestralmente à que, sendo salutar, pode permitir imersão mais eficiente do estrutura geral do direito civil e é parte desse sistema global de pensamento jurídico em busca da concreção da idéia de justiça, experiências sociais unidas de modo pleno, coerente e dinâmico. deixando acontecer o confronto – nem sempre bélico – entre o O movimento próprio desse sistema jurídico é responsável relativo e o absoluto, para deixar exposta, como o faz Frédéric pela impossibilidade de seu fechamento em si mesmo ou da Rouvillois, a questão de indagar quais podem ser os vínculos cristalização de seus cometimentos, ainda que justamente em do direito com a coação, a razão, o tempo e a ética19. Reclama, e face de alguns de seus princípios e de alguns de seus valores com razão, o autor que a omissão de um viés prático do direito, historicamente imutáveis. A renovação, pois, não prejudica pelo filósofo tendente a encastelar-se na torre de marfim da a ordenação sistemática, mas a revitaliza e lhe concede – ou idéia pura, pode causar a dissociação indesejável das verdades visa a conceder – uma perene adequação aos novos anseios que se perfilam em par, impedindo a consagração do direito e às novas necessidades, oriundas de um novo tempo, mas em sua mais extraordinária concreção, qual seja, como se disse, sempre sob a mesma tábua valorativa maior que é a que busca, essa busca eterna, ainda que renovável, da realização do justo eternamente, a realização do justo e do equânime. e do equânime. O fundamento e a justificação do instituto, assim como Talvez a mais significativa de todas as teorizações o fundamento e a justificação da própria ciência do direito jurídicas seja a que se denomina jusnaturalismo, segundo encontram sua base de sustentação e de reflexo na clássica e a qual – por tendência natural humana, ou por princípio dicotômica concepção filosófica do fenômeno jurídico que norteador da vida honesta – o homem não deve lesar o seu o desvenda, ora sob as luzes do jusnaturalismo, ora sob o próximo. Neminem laedere, é a arcaica regra, simplificada tecido do positivismo jurídico. Assim e se a sistematicidade é o regra, na verdade, do preceito maior originado nos Jura principal argumento a favor da cientificidade do conhecimento Praecepta do direito romano, conhecido como honeste vivere, jurídico, como bem registra Tércio Sampaio Ferraz18 , entre neminem laedere, suum cuinque tribuere. Desde sempre – e como outros importantes jusfilósofos nacionais e estrangeiros, exigência do modo honesto de viver20 – em hipótese de lesão a epistemologicamente o assunto se desenlaça por meandros dis- outrem causada, haveria de se devolver o que dele é, ou o que crepantes entre si, mas que, diferente do que se possa imaginar, perdeu, por meio da reparação do dano. Assim agir decorre da não infertilizam essa seara de busca do objeto da investigação natural noção de que o dever de reparar o dano derivado da jurídica e de sua cientificidade, mas, contrariamente, denotam injusta invasão da esfera jurídica alheia integra a completude o fortalecimento filosófico da ciência jurídica. do honeste vivere. Em face do saber jurídico, várias posições epistemológicas se alinham, tendentes a delinear o seu âmbito, a desenhar os Afinal, o direito não é apenas uma técnica; é uma ciência e é uma arte; é a virtude na perseguição do justo21. FERRAZ, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 1977, p. 13. ROUVILLOIS, Frédéric. Le droit. Paris: GF Flammarion. 1999, p. 11-16. (Collection Corpus) 20 Aqui, a concepção referida independe da concepção cristã de honestidade, mas tem aquele caráter teorético mais amplo, conforme convém. 21 VILLELA, João Baptista, mencionado verbalmente em aula do curso de Mestrado da Faculdade de Direito de Bauru/ITE, no 2o semestre de 1999. As ciências, em sua acepção mais ampla, podem ser classificadas em três modalidades fundamentais; algumas se limitam a investigar “o que é” – são as chamadas ciências teóricas ou especulativas; outras, procuram orientar as condutas humanas indicando-lhes “como agir” – são as ciências éticas ou morais; e, finalmente, aquelas que orientam a atividade produtiva ou as realizações externas do homem, indicando-lhe “como fazer” – são as ciências técnicas. O direito pode ser considerado, exatamente como o faz João Baptista Villela, sob a tríplice perspectiva da teoria, da técnica e da ética, o que o torna complexo e belíssimo. 18 19 58 Responsabilidade Pressuposta De um lado o dever. De outro lado o direito. A dualidade eterna, o verso e o reverso, o côncavo e o convexo. projeta o dever de reparação para além dos confins da conduta culposa dos indivíduos24. Mesmo sem intentar a recuperação das teorizações à volta ‘Foi efetivamente a insuficiência de soluções, de direito subjetivo e de direito objetivo, não parece reclamar modernamente registradas, para atender aos milhares de dúvida que ao direito da vítima à reparação do dano que distintos casos de danos – que, perpetrados, se transmudam em injustamente sofra corresponde um dever de recuperação fatores de atribuição de responsabilização pelos prejuízos deles ou, ao menos, de reaproximação do estado anterior à lesão advindos –, que se pôs a exigir uma significativa reformulação causada. do atual sistema bipolarizado de responsabilidade civil, isto é, Norberto Bobbio se pronunciou – a respeito de a responsabilidade decorrente do descumprimento contratual se constituírem os direitos do homem numa classe variável – (responsabilidade contratual) e aquela conseqüente da prática dizendo que o elenco dos direitos do homem se modificou, de ato ilícito (responsabilidade extracontratual)’25. ‘O ingresso, e continua a se modificar, com a mudança das condições no campo de repercussão e de aplicação da responsabilidade históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das civil, de fatores objetivos mostrou-se como incomensurável classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos avanço, quando a questão de fundo, a mira central, o interesse mesmos, das transformações técnicas, etc. [...] Não é difícil crucial a ser atendido – como se consagra indiscutivelmente prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que hoje – é o interesse da vítima’26. 22 no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a Afinal, a responsabilidade nada mais é do que o não portar armas contra a própria vontade ou o direito de respeitar dever de indenizar o dano, que surge sempre quando alguém a vida também dos animais e não só dos homens. O que prova – deixa de cumprir um preceito estabelecido num contrato ou conclui o filosófo – que não existem direitos fundamentais por quando deixa de observar o sistema normativo que rege a natureza23. vida do cidadão27. Ou seria possível também compreendê-la, De acordo, ou não, com as conclusões de Bobbio, o em sua extensão mais vasta, e como ela se desenha e recorta, que é inegável é esse caráter variável dos direitos humanos ou hoje, no cenário jurídico brasileiro, especialmente, como sendo fundamentais, e o que é completamente verdadeiro, conforme a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar o depoimento da própria vida e da própria história, é o fato o dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de que novas pretensões, a respeito das quais nem se cogita, de ato por ela mesmo praticado, por pessoa por quem ela poderão surgir, impondo a geração de novos direitos. É assim, responde, por alguma coisa a ela pertencente ou por simples exatamente assim, o que ocorre no plano da responsabilidade imposição legal.28 civil, cuja trajetória, ao longo do tempo, certamente abona ‘A responsabilidade subjetiva fundamenta-se na a afirmação. Gustavo Tepedino se expressa, sobre essa longa existência de culpa do agente. Não havendo culpa, não há estrada de construção, variação e transformação das relações responsabilidade, ainda que presente o dano, pois a imputação privadas sob o matiz da responsabilidade civil, da seguinte da responsabilidade derivada de sua causação depende forma: A responsabilidade civil derivada não do ato ilícito, da conduta culposa do agente. A culpabilidade, também mas de fonte legislativa (ex lege), ampliou-se sobremaneira na denominada culpa em sentido amplo, poder-se-ia definir como atualidade, expressão de tendência que se solidifica, no caso uma conduta do agente desaprovada pela lei, ou seja, uma brasileiro, com a Constituição de 5 de outubro de 1988, que conduta caracterizada pela reprovabilidade ou censurabilidade Pronunciou-se, assim, Norberto Bobbio, no discurso de abertura levado a efeito no Simpósio Internacional dos Direito do Homem, realizado entre 1o e 3 de dezembro de 1967, em Turim, por iniciativa da Sociedade Italiana para a Organização Internacional, discurso este publicado em sua obra A era dos direitos, cit., p.15-24, sob o título Sobre os fundamentos dos direitos do homem. 23 Idem, ibdem, p. 18. 24 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. O autor refere-se especificamente aos princípios da solidariedade social e da justiça distributiva, capitulados no art. 3o, incisos I a III, da Constituição, segundo os quais se constituem em objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, não podem deixar de moldar os novos contornos da responsabilidade civil (p. 175-176). 25 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos para o direito do século XXI, palestra (não-publicada) proferida no Congresso Jurídico – Brasil 500 Anos, promovido pelo Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, coordenado pelo Prof. Francisco Amaral, no Rio de Janeiro, entre os dias 13 e 16 de setembro de 2000, em homenagem póstuma ao Prof. Rubens Limongi França, da Faculdade de Direito da USP. 26 Idem, ibdem. 27 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 272. 28 DINIZ, Maria Helena. Indenização por dano moral: a problemática da fixação do quantum, Revista Consulex, Ano I, n. 3, mar. 1997. 22 59 Artigo 05 legal. E é assim que a doutrina mais apurada e destacada a define, configuração; no entanto não desapareceu completamente a como o faz, por exemplo, entre nós, Maria Helena Diniz : culpa, nem desaparecerá, visto que a evolução não equivale 29 à substituição de um sistema por outro. Essa advertência A culpa em sentido amplo, como violação de um já houvera sido considerada por Savatier, que previu que, dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência se uma responsabilidade fundada no risco se justifica de fato intencional ou de omissão de diligência plenamente em nosso direito moderno, é preciso não lhe ou cautela, compreende: o dolo, que é a violação atribuir nem função única, nem mesmo o primeiro lugar32. intencional do dever jurídico, e a culpa em sentido Culpa e risco, anunciou o renomado jurista, devem deixar estrito, caracterizada pela imperícia, imprudência de ser considerados como fundamentos da responsabilidade ou negligência, sem qualquer deliberação de violar civil, para ocupar o lugar que efetivamente ocupam, isto é, a um dever. Portanto não se reclama que o ato danoso posição de fontes da responsabilidade civil, sem importar se tenha sido, realmente, querido pelo agente, pois uma delas tem primazia sobre a outra, sem a preocupação de ele não deixará de ser responsável pelo fato de não que uma aniquila a outra, mas importando saber que, embora se ter apercebido do seu ato nem medido as suas tão mais freqüentes os casos de responsabilidade subjetiva, conseqüências. embasada na culpa, persistem existindo os casos em que se São essas, pois, as tradicionais formas de culpabilidade ou culpa em sentido mais amplo: o dolo e a culpa propriamente dita. Insistentemente se tem registrado a ausência de significado dessa distinção para o direito civil, em que pese sua absoluta importância para o direito penal, eis que, neste campo, a distinção influi decisivamente na determinação da pena e da sua extensão’30. Modelo insuficiente, capaz de deixar lacunas a respeito de reparação ou indenização de danos causados, a teoria da culpa não podia continuar atuando solitária no cenário da responsabilidade civil. Carlos Alberto Ghersi31 não parece demonstrar qualquer constrangimento por exagero quando afirma que registrará a insuficiência dessa fonte, quando, então, se abrirá a oportunidade da reparação do dano pelo viés da nova fonte, a do risco. Convivem, portanto, as duas teorias, e conviverão provavelmente por longo tempo. Tem razão absoluta Caio Mário da Silva Pereira33 quando afirma que, em nosso sistema jurídico, convivem as duas teorias: subjetiva como norma geral e objetiva como preceituação especial34 . Foi a partir da segunda metade do século XIX, então, que se iniciou o vasto movimento de expansão da responsabilidade civil, fomentado por idéias, doutrinas e concepções, cujos efeitos se prolongaram por todo o século XX. Patrice Jourdain menciona que um duplo fenômeno de objetivação e de coletivização inverteu o curso – inclusive o subjetivo, estruturado sobre a base da culpa – da evolução35. así como la destrucción de la Bastilla simbolizó el fin del antiguo régimen monárquico, o la demolición del muro de Berlín representó la caída del comunismo, la insuficiencia de la responsabilidad subjetiva para dar solución a los miles de damnificados por las más diversas causas, sin duda puede servir como paradigma de la alocada construcción de máquinas que marca el final de un método, de una filosofia, de una historia. Ao mesmo tempo em que se multiplicaram as atividades perigosas, o homem passou a aceitar, menos conformadamente, os golpes do destino. Patrice Jourdain escreve, com razão, que o ser humano recusa o azar e exige a reparação de todo o dano sofrido, sempre face de uma apreciação cada vez mais intensa da valorização da pessoa humana, o que contribuiu para que os cidadãos passassem a exigir sempre mais providências do Estado. “Os hábitos de proteção e de assistência os quais da a sociedade mantém – escreve o autor francês – responsabilidade acabou, então, por provocar certo declínio aumentam a necessidade de segurança do indivíduo da culpa na condição de elemento imprescindível à sua e os encorajam a ser mais exigentes: a reparação A ampliação do campo de abrangência DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil. Responsabilidade Civil. 10. ed., São Paulo: Saraiva, 1996. v. 7, p. 35. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Noves. Responsabilidade Civil – Aspectos Fundamentais, cap. 3, Quarta Parte, Direito Civil-estudos, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 293-316, especialmente p. 294. 31 GHERSI, Carlos Alberto. Teoría general de la reparación de daños. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1997, p. 2. 32 Mencionado por PEREIRA, Caio Mário da Silva, Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 271. 33 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, op.cit. p. 273. 34 Assim já havia se expressado a autora deste artigo na palestra citada, Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos para o direito do século XXI, passim. 35 JORDAIN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 5. ed. Paris: Éditions Dalloz, 2000, p. 10. (Coletion ‘Connaissance du droit’) 29 30 0 Responsabilidade Pressuposta dos danos torna-se um direito. Nesse contexto, a culpa para o risco. A esse respeito, informa Carlos Roberto compaixão social que até então favorecia, sobretudo, Gonçalves38 que a teoria do risco procura demonstrar que os responsáveis de suas próprias culpas volta-se, “toda pessoa que exerce alguma atividade cria risco de dano repentinamente, ao lado das vítimas. A culpa, como para terceiro. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua fundamento único da responsabilidade civil, parece conduta seja isenta de culpa”. A corrente de pensamento ser, então, um vestuário bem apertado para indenizar conhecida como objetivista, que teve Saleilles como um de todas as vítimas. Quando a função indenizatória do seus maiores criadores, procurou desvincular a obrigação de instituto se afirma, os fundamentos espiritualista ressarcir o dano da idéia de culpa’39. e individualista que o código civil havia lhe dado ‘Segundo essa teoria, todo risco deve ser garantido, parecem cada vez mais inadequados. A partir de visando à proteção da pessoa humana. De um modo 1870, alguns autores, preparando a evolução seguinte, particular, essa proteção jurídica buscou alcançar, primeiro, os recomendaram “deixar a culpa à margem” e substituí- trabalhadores e as vítimas de acidentes do trabalho, para livrá- la pela idéia de risco. Em seguida, as pessoas não seriam mais somente responsáveis por suas culpas, mas também pela realização dos riscos que criaram. Em vez de se ligar ao comportamento do sujeito responsável, o direito se orientava com o objeto da responsabilidade civil: a reparação dos danos36.” las da insegurança material decorrente. A indenização, nesse caso, decorreria não da culpa, mas se assentaria no conceito material o fato danoso. Trata-se exatamente da evolução da responsabilidade em razão do seu fundamento, vale dizer, em razão pela qual alguém passa a ser titular do dever de indenizar. Os autores são unânimes ao se referirem à insuficiência da culpa ‘A responsabilidade objetiva, embasada na teoria do como origem do dever de indenizar, descrevendo, todos eles, risco, advoga exatamente nesse sentido. Quer dizer que todo as mudanças dos tempos, suas novas exigências, a tecnização dano é indenizável e deve ser reparado por quem a ele se liga crescente, o uso cada vez maior de máquinas e as conseqüências por um nexo de causalidade, independentemente da culpa. A danosas daí geradas, como as fundamentais razões dessa teoria do risco – que não anulou a teoria da culpa, mas convive reformulação da teoria da responsabilidade civil, humanizando com ela – cobre inúmeras circunstâncias geradas pela atividade os seus contornos’40. Maria Helena Diniz41 , a respeito dessa normalmente desenvolvida pelo autor do dano, mas que, a par reformulação, assim se refere: dessa normalidade, representa, de alguma forma, risco para o direito de terceiros. “[...] representa uma objetivação da responsabilidade, sob a idéia de que todo risco deve ser garantido, “Campo fértil aos debates e litígios, a responsabilidade visando à proteção jurídica à pessoa humana, em civil tem procurado libertar-se do conceito tradicional particular aos trabalhadores e às vítimas de acidentes, de culpa. Esta é, às vezes, constritora e embaraça com contra a insegurança material, e todo dano deve ter um freqüência a expansão da solidariedade humana. responsável. A noção de risco prescinde da prova da A vítima não consegue, muitas vezes, vencer a culpa do lesante, contentando-se com a simples causa barreira processual e não logra convencer a Justiça externa, bastando a prova de que o evento decorreu dos extremos da imputabilidade do agente. Desta do exercício da atividade, para que o prejuízo por ela sorte, continuando, embora, vítima, não logra criado seja indenizado.” o ressarcimento. É verdade que a tendência é o alargamento do conceito de culpa e a conseqüente As causas da evolução objetiva podem ser agrupadas ampliação do campo da responsabilidade civil ou do em três blocos de justificativas, segundo a proposta de Patrice efeito indenizatório37.” Jourdain42, referindo-se o primeiro deles à transformação radical pela qual passou a sociedade ao longo do século XX, Como se depende das palavras de Caio Mário da Silva como, por exemplo, a revolução industrial e a mecanização Pereira, a evolução histórica sobre a responsabilidade civil das atividades humanas, responsáveis pela multiplicação e pelo processou-se de sorte a deslocar a fundamentação exclusiva da agravamento dos danos. A evolução técnica corre em paralelo à JOURDAN, Patrice. Les príncipes de la responsabilité civile. op. cit. passim. [tradução livre]. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, passim. 38 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 1995, passim. 39 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade civil – Aspectos Fundamentais, Op. cit. passim. 40 Idem, ibdem. 41 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 1996. v. 7. 42 JOURDAN, Patrice. Les príncipes de la responsabilité civile, op. cit. p. 10. 36 37 1 Artigo 05 geração dos chamados riscos tecnológicos e faz nascer a noção “essa jurisprudência, de certo modo tumultuada e que jurídica de dano acidental que, conforme Patrice Jourdain, é o se formou à base de vários e subseqüentes julgados, se “dano essencialmente inesperado correspondente a nada mais, foi afirmando sempre na mesma direção, embora sem nada menos, que à realização de um risco nascido da atividade muita nitidez quanto aos pormenores, até que outro humana”43 . marco se fixou [...] .”44 Esse autor francês, professor da Université PanthéonSorbonne – Paris I, em sua obra sintética, mas extremamente Os partidários da teoria do risco, como Saleilles e Joserand, proveitosa no que diz respeito à recuperação dos passos dessa viram nessa decisão de 1896 um avanço significativo e evolução – mormente no assento de seu país, mas que, afinal, sintomático em prol da teoria do risco, mas, por outra parte, desenha o que ocorreu na maior parte dos países de sistema os partidários da teoria da culpa, como os irmãos Mazeaud, jurídico romano-germânico – registra que foi a jurisprudência, inicialmente, que desencade ou esse movimento de expansão da responsabilidade civil, ao admitir que ela se estabelecesse independentemente da culpa do responsável. Já em 1885, na não demonstraram tanto beneplácito a favor da sentença, continuando a ver, nela, os indícios da presença da culpa. Somente 35 anos depois, em 13 de fevereiro de 1930, França, a Corte Suprema concedia, independentemente da é que outra decisão solene da Corte de Cassation – que ficou culpa provada, às vítimas de danos causados por animais o conhecida pelo nome de l’arrêt Jand’Heur – confirmou a direito à reparação, restringindo muito a possibilidade de proposição, no caso dos acidentes de automóvel, dessa marcha exoneração do dono ou do guarda do animal, excepcionando- irresistível em direção à noção de garantia social, abandonando, se essa hipótese para praticamente apenas os casos de caso na interpretação do art. 1384, 1a alínea do Código Civil fortuito ou de força maior. A decisão Teffaine, de 1896, e a francês, a expressão présomption de faute [déjà inconciliable decisão Jand’heur, de 1930, a respeito dos vícios ocultos da avec la jurisprudence]45 por présomption de responsabilité, coisa e a respeito da responsabilidade pela guarda da coisa, independentemente da culpa. respectivamente, a segunda generalizando a solução pela presunção da culpa que a primeira implantou, são mencionadas pelo autor em comento como precedentes importantes dessa trajetória de objetivação da responsabilidade civil, na primeira metade do século passado, na França. A primeira decisão fundamental da Corte de Cassation foi dada em 16 de junho de 1896 e ficou conhecida, então, pelo nome de l’arrêt Teffaine. Dizia respeito à morte acidental de um operário, em decorrência de uma explosão num rebocador a vapor. A Corte Suprema desencadeou, à época, um novo princípio segundo o qual a pessoa era responsável pela coisa que lhe pertencia. O proprietário do rebocador não Em seguida, o autor refere-se à construção legislativa francesa, que já dava mostras de cuidado desde o final do século XIX, criando os regimes especiais de responsabilidade sem culpa do responsável. São leis sobre os acidentes de trabalho ou ligadas à utilização de coisas perigosas, como aeronaves, teleféricos, energia nuclear ou relativas a transporte e acidentes de tráfego ou a produtos defeituosos ou no domínio dos danos ao meio ambiente e, ainda, no que diz respeito à responsabilidade por atos médicos e por riscos terapêuticos. Mais de cem anos de proliferação legislativa marcam essa evolução, na França. pôde, portanto, exonerar-se da responsabilidade, provando a culpa do construtor do rebocador, e indenizou a viúva e 4. O passo além que tem sido intentado pelos doutrinadores as crianças do operário morto. Essa decisão fundamental contemporâneos e a admissão de um fundamento distinto a costuma ser referida como o primeiro passo em direção, pela justificar a responsabilidade civil, hoje via jurisprudencial francesa, da noção de risco social, porque A objetivação da responsabilidade civil em face das absorveu a idéia de que, com o progresso técnico e o avanço atividades que, embora lícitas, sejam perigosas – e, por isso de enigmas perigosos, o exclusivo campo de atuação da culpa mesmo, geradoras de prejuízos ou danos – é uma realidade individual estava diminuindo. em países de perfis legislativos derivados do sistema romano- Silvio Rodrigues informa que esse percurso não foi fácil nem simples, e que germânico e do sistema de common law. No Brasil, igualmente, o assunto já tem conformação doutrinária bem assentada, Idem, ibdem. [tradução livre]. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 4. – Responsabilidade civil, 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. Atualizada com o novo Código Civil (Lei no 10.406, de 20/1/2002). Conforme SAVATIER, Le risque general du fait des coses, mencionado por SILVIO RODRIGUES, op. cit. 43 44 45 2 Responsabilidade Pressuposta especialmente em face da obra de Carlos Alberto Bittar46 , assim responsabilização civil, neste momento, daquele padrão de como já se insculpe, no direito positivado, a previsão legal de fundamentação ou daquela tábua de pressupostos ou daquele determinados casos de imputação do dever de indenizar como denominador comum (aos quais já se referiu na abertura deste obrigação legal, quer dizer, independentemente de culpa do estudo), mas que fossem capazes, enfim, de se expressarem imputado ou de quem quer que seja, como, por exemplo, (e como fonte ou matriz, como fundamento ou causa, do eterno são bem parcos os exemplos), a Lei 6.453/77, que estabelece dever de indenizar o dano que alguém venha a sofrer. a responsabilidade civil do executor de atividade nuclear, Essa tendência do pensamento jurídico contempo- independente da existência de culpa, pela reparação de dano râneo já é observada na reflexão cuidadosa de doutrinadores causado por acidente nuclear47. estrangeiros, aqui e ali, e no âmago de outros sistemas ociden- No entanto, se é verdade que houve um tempo em tais de direito. que a insuficiência da culpa como critério norteador ou como Entre os doutrinadores estrangeiros contemporâneos, fundamento certeiro do dever de indenizar se fez claramente destaca-se seguramente Genéviéve Schamps, excepcional sentir, é bem verdade, outrossim, que apenas aguardar a jurista belga da contemporaneidade49 , que logrou avanços em previsão legal, caso a caso, para a conformação do viés objetivo sua pesquisa, especialmente no que respeita aos contornos do da responsabilização é circunstância que tantas vezes tem direito europeu – italiano, neerlandês anglo-saxão, sempre em atado a percuciência do direito, tem engessado seu exercício correspondência com os direitos belga e francês, definindo bem em face do dano concretizado e tem, insuportavelmente, o percurso e afinando suas conclusões à volta do padrão que deixado sem resultado a situação prejudicial enfrentada pela preferiu denominar mise en danger50. Ela produziu um sistema vítima de danos. Pensar em tal circunstância faz voltar à tona de estudo do direito estrangeiro, comparando-o ao direito do pensamento contemporâneo a reflexão tão lúcida do jurista belga, especialmente, e buscando a verificação da existência, ou do século passado que inspira as conclusões deste tempo: não, desse padrão de caracterização de determinadas situações Fosse possível traçar normas jurídicas perfeitas, que delimitassem, dentro de contornos inconfundíveis, as prerrogativas conferidas aos indivíduos; se a inteligência e a sabedoria humanas pudessem enfeixar nos preceitos legais as diretrizes a seguir no exercício dos direitos, a solução dos conflitos jurídicos seria, sem dúvida, tarefa menos árdua e não caberia à doutrina e à jurisprudência o papel tão preeminente, que ora desempenham, na solução do problema da responsabilidade civil.48 que expõem as pessoas a determinado risco, desnudando e fragilizando as vertentes da exclusão de responsabilidades e buscando apresentar, isso sim, os responsáveis pela ocorrência de danos absolutamente ressarcíveis. Ela escreveu, ao longo de seu excelente estudo, mas também em suas conclusões: Muitos mecanismos podem melhorar a indenização das vítimas de mise en danger, de certa intensidade, notadamente o seguro direto, a previdência social ou a responsabilidade sem culpa. No entanto, não se tratava de focalizar as vantagens e inconvenientes de cada um, mas de determinar um conceito de É o tempo de iniciar um desvendar – quem sabe se o mise en danger, justificando uma responsabilidade desiderato não é precoce ou frágil demais, ainda – de rumos civil, derrogando o direito comum. Os dramas que novos, em busca de se tentar imaginar, para o sistema da se produziram a partir do fim do século passado até BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade civil nas atividades nucleares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, 242 p. Lei 6453/77, art. 4o – Será exclusiva do operador da instalação nuclear, nos termos desta Lei, independentemente da existência de culpa, a responsabilidade civil pela reparação de dano nuclear causado por acidente nuclear: I – ocorrido na instalação nuclear; II – provocado por material nuclear procedente de instalação nuclear, quando o acidente ocorrer: a) antes que o operador da instalação nuclear a que se destina tenha assumido, por contrato escrito, a responsabilidade por acidentes nucleares causados pelo material; b) na falta de contrato, antes que o operador da outra instalação nuclear haja assumido efetivamente o encargo do material; III – provocado por material nuclear enviado à instalação nuclear, quando o acidente ocorrer: a) depois que a responsabilidade por acidente provocado pelo material lhe houver sido transferida, por contrato escrito, pelo operador da outra instalação nuclear; b) na falta de contrato, depois que o operador da instalação nuclear houver assumido efetivamente o encargo do material a ele enviado. 48 LIMA, Alvino. Culpa e Risco, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1960. p. 218. 49 SCHAMPS Genéviéve. La mise en danger: un concept fondateur d’ un príncipe general de responsabilité (analyse de droit compare). Bruxelas: Bruylant e Paris: L.G.D.J.; 1998 – 1140 p. 5. Esta obra situa-se, no contexto geral do arcabouço bibliográfico utilizado para a minha tese de livre-docência na Universidade de São Paulo, em 2003, como obra de fundamental importância. Depois que logrei suficientemente entender a pesquisa, a intenção e as conclusões de Mme. Schamps, tive o prazer de ser recebida por ela, em Bruxelas (dez. 2001) para uma preambular conferência de identidade de pesquisas, em dez. 2001. Desta minha tese de livre-docência resultou, enfim, a obra Responsabilidade pressuposta, publicada pela Editora Del Rey, da qual este artigo é rigorosamente um extrato. 50 Mise en danger: o verbo mettre, no francês, significa pôr, colocar. Seu particípio passado é mis-mise, no entanto, quando vem acompanhado de um complemento, passa a ter um sentido de expressão idiomática, indicando uma ação. Ex. mise en scène = encenar uma peça de teatro, significando a organização material do espetáculo, o script dos atores, a decoração, enfim, uma situação fática nova. Vale dizer, significa uma ação rápida que passa a uma situação ou estado novo. É o ato de pôr, porém, mudando de posição, em relação à anterior. Portanto, mise en danger pode ser traduzido como uma ação de pôr em perigo ou em risco (danger), como indicativo de perigo ou de atenção. Neste artigo, contudo, prosseguirei usando a expressão em língua francesa (mise en danger), por entender que permanece bem melhor o sentido do que se quer dizer. 46 47 3 Artigo 05 nossos dias, em razão das novas mises en danger, A respeito desse art. 2.050 e dos artigos dele avizinha- ligadas ao progresso da ciência e da tecnologia, deram dos (especialmente os posteriores), certo segmento doutrinário nascimento a movimentos tendentes à melhoria da (minoritário, infelizmente) entendeu que as hipóteses legisla- proteção da vida humana, valor essencial prevalente das eram alcançadas pelo mesmo espírito da mise en danger sobre a liberdade individual. Esse cuidado se reflete que organizou, no art. 2.050, uma responsabilidade por expo- igualmente na concepção atual da responsabilidade sição a perigo, cujo alcance é tão geral que equivale, quanto civil em que a ênfase está muito mais sobre o papel à importância e em termos de efetiva abrangência, à própria de prevenção e de compensação dos danos, mais que responsabilidade por culpa prevista no art. 2.043, inaugural, sobre aquele da sanção de um comportamento, em naquele Código, do sistema de responsabilidade civil. Mas en- um contexto de generalização de seguro. tendeu esse segmento doutrinário ainda mais longe, por considerar que nem mesmo seria preciso esperar que outras leis Segundo se pode apurar da visão de Genèviève específicas viessem regular certas mises en danger, para que se Schamps, afinal, a dificuldade de se identificar uma mise en as pudesse invocar, e que aquelas normas expressamente cita- danger como elemento constitutivo primordial do exercício das pelo legislador seriam de aplicação específica52. de uma atividade perigosa pode residir no estabelecimento do A maior crítica que receberam os partidários dessa critério que desenhará um limiar de periculosidade, isso é certo. opinião diz respeito ao fato de defenderem que, se houvesse Mas também parece ser seguro afirmar que a definição mesmo um critério geral e unitário no bojo do art. 2.050, desse limite e a fixação desse potencial de perigo é que poderão isso seria despropositado, tendo em vista a sobreposição das muito bem servir de pano de fundo para se alcançar, no futuro, demais normas. um padrão de caracterização das circunstâncias prejudiciais Outro segmento doutrinário entendeu que o que justifiquem a imputação de um dever de indenizar, além art. 2.050 conteria simplesmente uma importante função re- do sistema subjetivo e além do sistema de prefixações objetivas sidual, o que outorgaria ao dispositivo legal a potencialidade de responsabilidades, tendo em vista a impossibilidade de se de reger toda a situação nova que não se relacionasse espe- eliminar, em todas as hipóteses consideradas, o perigo, por cificamente aos arts. 2.051 a 2.054, distanciando-se completa- meio da adoção das medidas de precaução razoáveis. mente da regência da responsabilidade por culpa, referente ao A esse nível de otimização, talvez, seja possível chegar art. 2.043. Essa posição de identificação com uma função re- em tempo nem tão distante, quiçá, de sorte a se obter, enfim, sidual, no entanto, não foi igualmente aceita pela jurisprudên- um critério geral de fundamentação do regime objetivo de cia, que considerou, de outra parte, que o dispositivo responsabilidade civil, situado além da solução legal casuística, critério esse que visasse a atender mais eficientemente os organiza uma hipótese particular de responsabilidade direitos das vítimas de danos, levando em conta, precipuamen- ligada ao exercício de uma atividade perigosa para te, os princípios constitucionais da solidariedade social e da terceiros, que não se sobrepõe às outras, mas coexiste dignidade humana, e que se portasse, enfim, como um verda- unicamente com elas. deiro – e suficientemente abrangente – autocritério de justificação da responsabilização civil na contemporaneidade. Toda a base de identificação dessa mise en danger, conforme o recorte que dela faz Genèviève Schamps, se encontra, primordialmente, no famoso art. 2.050 do Código Civil italiano de 1942, que dispõe: Assim foi, por exemplo, que o legislador italiano regulamentou hipóteses de responsabilização oriundas de mise en danger que são hipóteses particulares, sem nenhum alcance geral, como a referente ao domínio automobilístico previsto no art. 2.054. Certamente, o maior movimento deflagrado acerca de se identificarem outras hipóteses de ocorrências danosas que ‘qualquer um que cause um dano a outrem no possam advir de uma mise en danger, no Código Civil italiano, desempenho de uma atividade perigosa por sua foi aquele liderado por Trimarchi na década de 60, que concebeu a natureza, ou pela natureza dos meios adotados, deve responsabilidade dos comitentes (art. 2.049) e a responsabilidade repará-lo, se não provar ter adotado todas as medidas pelo fato das coisas (arts 2.051 e 2.053) como noções fortemente adequadas para evitá-lo’. (tradução livre) influenciadas pelas teoria do risco de empresa. 51 Art. 2050 do Código Civil italiano: (Responsabilità per l’esercizio di attività pericolose) – Chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento di un’attività pericolosa, per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, e tenuto al risarcimento, se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno. 52 Pensa assim, por exemplo, M. Comporti, que escreveu Esposizione al pericolo e responsabilità civile, já mencionado antes e citado por Geneviève Schamps, La mise en danger, p. 91, nota 348. 51 4 Responsabilidade Pressuposta De acordo com essa concepção, a presunção de culpa cedia um passo a favor da responsabilidade objetiva, sentido de melhor favorecer o interesse do demandado em não reparar o dano causado. cujo denominador comum para essas tais hipóteses seria o Provavelmente será necessário revisar, reler, reconsiderar risco de empresa, baseada sobre uma teoria econômica de sem demora, e em tempo já não tão distante de chegar, aquelas distribuição de custos e benefícios, condicionando as escolhas mesmas objeções levantadas ao longo da segunda metade do de produção. século que findou, contra a efetiva possibilidade de se fundar, Pois bem. Os opositores da colocação de um critério, sobre a noção de mise en danger – ou sobre outra noção que como o mise en danger, na condição de capaz de sustentar a se desenhe, a partir dela –, um mecanismo de reparação de fundamentação de um sistema geral de responsabilização danos cometidos às vítimas, que não fosse simplesmente um objetiva (ou dito de outro modo: que a idéia de se apresentar mecanismo assentado sobre a velha noção de culpa, mas que a exposição a um perigo como critério geral de justificação do fosse um tal mecanismo no qual a exposição ao risco pudesse dever de reparar) argumentam que isso continuaria a reproduzir representar algo além da mera identificação causal do dano uma idéia de sanção, uma idéia de comportamento anti-social e que, por isso, a mise en danger corresponderia, implicitamente, a uma conduta reprovável. Rebate, vigorosamente, Geneviève Schamps, argumentando que esse raciocínio é falho e reparável, apresentando-se, como já se mencionou no início deste estudo, como verdadeiro critério de imputação da responsabilidade sem culpa, elevado à categoria de règle à valeur d’ordonnancement juridique. Ora, a pretensão de se chegar a ter um regime passível de crítica, pois, a aplicação desse artigo, específico de responsabilidade civil derivado da utilização de pela jurisprudência, volta a submeter a realização da substâncias perigosas, ou, mais amplamente, de uma mise en mise en danger prevista por essa disposição a uma danger, deve-se, sempre, ou às lacunas de lei ou à pesada carga responsabilidade objetiva . probatória da culpa ou do vício. Mas parece, mesmo, que, 53 Afinal de contas, seria um absurdo pensar que a ordem jurídica entendesse que toda hipótese de realização de uma atividade humana com exposição ao perigo fosse nefasta à sociedade em princípio e que o banimento de toda a ingerência perigosa fosse a meta de uma ordem perfeita. O que se procura, com um sistema aperfeiçoado se de um lado, vibra a coragem do legislador em estabelecer ou regras casuísticas específicas ou – quando mais ousado e corajoso – princípios gerais de imputação de responsabilidade sem culpa, por outro lado, remanesce à espreita o fantasma da culpa e de sua quase sempre traumática prova. Tem sido assim nas legislações que apresentaram dispositivos “inovadores” até aqui. de responsabilidade civil, não é, obviamente, evitar todo O que se quer é, certamente, algo mais aproximado o perigo, o que seria impraticável, inviável e inimaginável; a do que produziu o legislador, no direito suíço, que cuidou de finalidade objetivada seria, isto sim, a diminuição do dano. introduzir um princípio geral ou, como preferiram denominar, A partir do momento em que a impossibilidade de evitar o uma cláusula geral de responsabilidade sem culpa, derivada de dano é aceita, a disciplina jurídica da responsabilidade civil uma mise en danger bem definida. deveria visar à redução do custo social que ele representa, seja A cláusula geral de responsabilidade por mise en por meio da adoção de medidas de prevenção, seja porque danger, estruturada na legislação suíça recebeu um alcance alguém responderá por ele, por força de uma responsabilidade assim, bem geral, identificável em extensão e importância pressuposta, fundada num critério-padrão de imputação. àquele reconhecido no campo da responsabilidade baseada A grande questão, em sede da responsabilidade civil na culpa, admitindo ao intérprete e ao aplicador da lei uma contemporânea, a se envolver nas dobras do pensamento flexibilização bastante significativa, no momento de sua jurídico da pós-modernidade, afinal de contas, parece mesmo concretização. A cláusula geral apresenta um substrato de revoltar-se contra as torrentes de construções doutrinárias risco qualificado54 e só a sua realização justifica a reparação que visaram, precipuamente, a dar menos à interpretação dos danos eventualmente ocasionados às vítimas. Esse risco dos textos legais, no sentido do favorecimento do direito das qualificado resulta da periculosidade contida numa certa vítimas, para dar mais a essa interpretação que corresse no atividade, periculosidade essa que, por si só, seria suficiente Conf. Geneviève Schamps, La mise en dange: un concept fondateur d’un príncipe general de responsabilité (analyse de droit compare), Bruxelas: Bruylant e Paris: LGDJ, 1998, p.125 , item 137 (tradução livre). 54 Os autores do anteprojeto escolheram uma solução intermediária entre a teoria da causalidade adequada, que é o direito comum e a Schutznormtheorie. Com efeito, alguns reprovam a primeira de colocar um “prognóstico retrospectivo objetivo” para qualificar de adequado um encadeamento causal. Para eles, a apreciação da causalidade disfarçaria uma outra atitude que consiste em verificar se o dano é coberto pela norma, justificando a obrigação de reparar. (Geneviève Schamps, op. cit. p. 406, item 225 – tradução livre). 53 5 Artigo 05 para interditar a sua prática, mas, tendo em vista a função Portanto e a partir desta súmula do que se idealiza social inerente ao seu desempenho, o privilégio atribuído por quanto a uma mise en danger, provavelmente seria possível força da autorização de se realizar a atividade deve estar, então, retratar o critério buscado para lhe conferir o status de uma respaldado pela imputação da responsabilidade objetivada règle de valeur, da seguinte maneira: que da cláusula deriva, no sentido da reparação dos danos 1) este critério deve descrever a potencialidade perigosa das atividades que podem ensejar a eventualmente causados. responsabilização pelo viés da mise en danger; 5. Em síntese: qual seria o perfil de uma mise en danger otimizada 2) não deve ser taxativo ou enumerativo, para não e qual seria, por conseqüência, o perfil do critério que se tem fechar as portas para futuros danos, ainda não intentado buscar? conhecidos; Segundo a nossa visão e com base em incansável 3) não deve ser tão elástico que acabe por suportar reflexão acerca do assunto, até aqui, uma mise en danger (ou por deixar entrar) variáveis que não se otimizada tenderia a corresponder ao que chamamos de encaixem na verdadeira potencialidade perigosa responsabilidade pressuposta e poderiam ser descritos assim de uma atividade; 4) estabelecido o nexo causal (dano x atividade os traços principais que ela contém: 1) risco caracterizado (fator qualitativo): é a potencialidade, contida na atividade, de se realizar um dano de grave intensidade, potencialidade essa que não pode ser inteiramente eliminada, não obstante toda a diligência que tenha sido razoavelmente levada a cabo, nesse sentido; 2) atividade especificamente perigosa (fator quantitativo): subdivide-se em: a) probabilidade elevada: corresponde ao caráter inevitável do risco (não da responsável pela reparação (tout court); 5) essa responsabilidade civil deve ter como finalidade exclusivamente a reparação da vítima, sem qualquer abertura à exoneração dos responsáveis, em face de provas liberatórias (assemelhadas às contraprovas, nas presunções juris tantum); 6) não deve admitir excludente de responsabilidade; 7) pode, eventualmente, admitir o regresso (ação de regresso), mas que se dará pelas provas de que o ocorrência demandado possa fazer nessa outra ação e que danosa em si, mas do risco da ocorrência). A demonstrariam a culpa de outrem, contra o qual impossibilidade de evitar a ocorrência nefasta perigosa), o executor da atividade é considerado regressaria. acentua a periculosidade, fazendo-a superior a Neste breve estudo, então, intentou-se organizar qualquer hipótese que pudesse ter sido evitada um extrato do pensamento contemporâneo acerca da pela diligência razoável; indiscutivelmente necessária evolução da responsabilização b) intensidade elevada: corresponde ao elevado civil, bem como desenhar a súmula daquilo que a autora tem índice de ocorrências danosas advindas de procurado descrever como responsabilidade pressuposta. certa atividade (as subespécies deste segundo Renova-se o convite, aos interessados, para a leitura mais elemento podem, ou não, aparecer juntas; não detalhada do assunto, por meio da obra referida na nota de obrigatoriamente). rodapé preambular deste presente artigo. A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania Artigo 06 A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania THE SOCIAL RESPONSABILITIES OF THE COMPANIES AS A MANNER OF CITIZENSHIP EFFECTUATION LA RESPONSABILIDAD SOCIAL DE LAS EMPRESAS COMO FORMA DE AFIRMAR LA CIUDADANIA Irineu Galeski Hunior* 1. Introdução. 2. O Estado e a Empresa. 2.1. A gênese da empresa – do individualismo exacerbado como foco de crise estatal. 2.2. O poder de empresa e a submissão estatal. 3. A responsabilidade Social da Empresa. 3.1. O porquê da responsabilidade social empresarial. 3.2. Breve resenha histórica do pensamento. 4. A responsabilidade social no Brasil. 4.1. Breve resenha histórica do pensamento no Brasil. 4.2. O Tratamento Legislativo Impositivo. 4.3. O tratamento legislativo de incentivo. 5. Conclusão. 6. Referências. Resumo o cumprimento das normas mediante o exercício legítimo da Com o desenvolvimento das relações sociais, a empresa violência. Entretanto, antes de impor, deve o Estado fomentar deixou de ser mero instrumento para a realização individual de tais condutas, com os instrumentos colocados à disposição, em sustento e acúmulo e assumiu o papel de ator social, ou seja, é especial os tributários, dos quais a Lei Rouanet é um exemplo. lícito afirmar que se tornou uma espécie de instituição ao lado de outras, como a família e o Estado. Outrossim a interpretação do fenômeno estatal e empresarial permite a conclusão de que seus conceitos tradicionais sofreram significativas alterações por um processo dialético: de um lado, a empresa deixou de ser fenômeno estritamente privado para assumir obrigações públicas, num crescente projeto de transferência de serviços para a iniciativa privada; de outro, no âmbito de direito Palavras-chave: empresa, função, social, imposição e incentivo Abstract With the development of the social relations, the company left of being a mere instrument for the individual accomplishment of sustenance and accumulation and started to assume a role of social actor, that is, is licit to affirm that it sistêmico-mundial, os Estados estão sofrendo mitigação em becomes a kind of institution beside the others, as the family seu poder soberano ao receber imposições empresariais para and the State. Furthermore, the interpretation of the state adequação de uma agenda mínima de obrigações, sob pena and empresarial phenomenon allows the conclusion that its de sanções econômicas. Diante desse quadro, a empresa é traditional concepts had suffered significant alterations by a chamada a cumprir um papel de responsabilidade perante dialectical process: from one side, the company left of being terceiros, vale dizer, com aqueles que não mantêm relação a strict private phenomenon to assume public obligations in contratual direta com o fenômeno da produção. Isso é an increasing project of transference of services for the private possível por meio de normas impositivas, pois, a despeito dos initiative; and, from another side, in an ambit of systemic- entendimentos, segundo os quais a Empresa e o Estado estão world-wide rights, the States are suffering mitigation in its num mesmo patamar hierárquico de instituição social, este sovereign power when suffering empresarial impositions for an ainda tem o diferencial de ostentar o poder de legislar e impor adequacy of a minimal schedule of obligations, duly warned to Pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC-PR, Mestrando em Direito Social e Econômico pela PUC-PR, professor da Unicuritiba. * 7 Artigo 0 suffer economic sanctions. In front of this picture, the company 1. Introdução is called to fulfill a paper of responsibility before the others, A empresa, de forma introdutória, pode ser matter to say, with those that don’t keep directly contractual conceituada como atividade racional destinada a abranger a relationship referring to the phenomenon of the production: relação de mercancia e indústria, que é a forma de produção this is possible through imposing norms, so, in spite of the com fins de exceder à necessidade do produtor, objetivando a agreements, according to which the Company and the State criação de ativos para a troca. are in the same hierarchic platform of social institution, this Ocorre que, com o desenvolvimento das relações still has the differential to flaunt the power to legislate and to sociais, a empresa deixou de ser mero instrumento para a impose the fulfillment of the norms by means of the legitimate exercise of the violence. However, before imposing, the State must foment such behaviors, with the instruments placed to the arrangement, in special, the tributaries, of which the Law Rouanet is an example. realização individual de sustento e acúmulo e assumiu papel de ator social, ou seja, é lícito afirmar que se tornou uma espécie de instituição ao lado de outras, como a família e o Estado. Aliás, é possível afirmar ainda que, em certo contexto, a situação que hoje se visualiza é de que a empresa está vencendo o poder tradicional dos Estados, quando passa a Words-key: company, function, social, imposition and submeter a soberania, especialmente na vertente de criação incentive e manutenção dos direitos, com exigências passíveis de serem impostas com a coação do poder econômico. Resumen Nesse processo de tonificação, veio sendo chamada Con el desarrollo de las relaciones sociales, la empresa a empresa ao papel da responsabilidade para com o terceiro, dejó de ser un mero instrumento para la realización individual vale dizer, com aquele que não mantém relação contratual de mantenimiento y acumulación, y pasó a asumir un papel de direta em relação ao fenômeno da produção, conhecido como actuación social, es decir, es lícito afirmar que se volvió una stakeholder, com vias a suprir necessidades antes cumpridas especie de institución al lado de otras, como la familia y el Estado. pelo Estado, numa contextualização peculiar ao século XX, Otrosí, la interpretación del fenómeno estatal y empresarial própria do pós-welfare state. permite la conclusión de que sus conceptos tradicionales sufrieron significativas alteraciones por un proceso dialéctico: por un lado, la empresa dejó de ser un fenómeno estrictamente privado para asumir obligaciones públicas en un creciente proyecto de transferencia de servicios a la iniciativa privada; y, por otro lado, en un ámbito de derecho sistémico mundial, los Estados están sufriendo mitigación en su poder soberano debido a las imposiciones empresariales para la adecuación de una agenda mínima de obligaciones, bajo pena de tener que enfrentar sanciones económicas. Ante dicho panorama, la Portanto, o objetivo do presente trabalho é tratar da institucionalização do papel da empresa, que passou de atividade organizada com mero fim de sustento egoístico para um espaço de realização de necessidades sociais. Em seguida, buscar-se-á contextualizar o fenômeno no Brasil, apresentando, de um lado, os esboços de uma imposição de conduta e, de outro, formas de incentivo estatal para a adoção de condutas socialmente responsáveis. 2. O Estado e a Empresa empresa es incitada a cumplir un papel de responsabilidad ante 2.1 A gênese da empresa – do individualismo exacerbado como terceros, es válido aclararlo, con aquellos que no mantienen foco de crise estatal vínculo contractual directo relacionado al fenómeno de la producción. Eso es posible a través de normas impositivas, pues a pesar de los entendimientos, según los cuales la Empresa y el Estado están en un mismo nivel jerárquico de institución social, éste cuenta además con el diferencial de ostentar el poder de legislar e imponer el cumplimiento de las normas mediante el ejercicio legítimo de la violencia. Entretanto, antes de imponer, el Estado debe fomentar tales conductas, con los instrumentos puestos a disposición, en especial, los tributarios, de los que la Ley Rouanet es un ejemplo. De início, válido situar o desenvolvimento histórico da empresa. Segundo LUX, K. (1993, p. 37), no século XIII, o filósofo e teólogo São Tomás de Aquino acreditava que a relação entre trabalhar e ganhar dinheiro visava somente a atender às necessidades de vivência do indivíduo. Já na economia moderna, a partir de Adam Smith, a atividade empresarial é entendida como o refúgio do interesse próprio, sendo apenas necessário cada indivíduo agir egoisticamente para o bem-estar coletivo ser atingido. Frise-se que o conceito de empresa deva ser delimitado como o exercício racional da produção e circulação das Palabras-clave: empresa, función social, imposición e riquezas, guardando tal definição estrita ligação com o sistema incentivo de produção capitalista. 8 A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania WEBER, Max (1980, p. 181) foi o que melhor ex- a precária situação de existência. Esse é um fim indiscutível plicou a criação da empresa capitalista, elaborando seu corte do Estado, defendido até os dias de hoje, como bem observa epistemológico ao explicar a relação ética protestante de não CASTRO, Belmiro Valverde Jobim (2006, p. 14): manter postura contemplativa da vida para, ao revés disso, adotar uma conduta regrada e racional com objetivo de agir É preciso sempre ter em mente que o fim último do correta e permanentemente, o que impôs uma atividade con- Estado, aquela organização supra-individual dotada creta e racional na produção dos bens, com o constante desen- do monopólio da violência legal, é equilibrar os volvimento e aprimoramento. interesses e os apetites dos indivíduos e dos grupos Entretanto, para Max Weber, a despeito de a empresa que compõem uma sociedade, para que a vida humana capitalista em seus primórdios guardar ligação com a religião em associação seja possível. Ao Estado cabe coibir a protestante, não é correto afirmar que a empresa deixou violência dos mais fortes contra os mais fracos, dos de ter uma vertente unicamente individualista. Vale dizer: o mais organizados contra os menos organizados, para empresário protestante não tinha a obrigação de voltar sua evitar que as leis da barbárie prevaleçam ou o processo atividade para ajudar ao próximo em caráter de filantropia; legislativo e político seja desmoralizado. muito pelo contrário, pois o indivíduo perante Deus era predestinado, de forma que suas ações não reverteriam uma situação de condenação eterna que já recebia quando do nascimento. Dessa forma, deveria apenas guardar um padrão de comportamento médio, para obter a salvação, caso ele fosse o escolhido, ou seja, não se exigia o comportamento filantropo, Voltando ao contexto histórico, naquela época, falar em atendimento médico fornecido pelo Estado, saneamento básico, formas de subsistência alimentícia fornecida diretamente pelo Estado, sistema de previdência era incongruente com o papel estatal, que foi criado para o indivíduo poder provocar a aplicação da força racional contra seu próximo. Em mas apenas que cumprisse seu sustento dentro de um padrão contraprestação a isso, eram recolhidos os tributos gerados médio de ética individual. pela atividade empresarial, que se foi racionalizando com o Assim, conclui-se que a atividade empresarial surgiu tempo, como visto anteriormente. unicamente como um dos vértices da divisão social do tra- Com o decorrer do tempo, e a profissionalização balho para cada qual contribuir individualmente para o seu da atividade empresarial, a balança do sustento individual sustento. desequilibrou-se. Se, antes dos meios racionais, cada qual Verifica-se então que com o advento do Estado produzia para seu sustento, de forma que o capital acumulado Moderno, a empresa capitalista era apenas manifestação era x, a partir da profissionalização, a produção passou a ser da atividade econômica dos indivíduos. Numa gradação de x multiplicado pelo quanto mais poderia ser produzido por importância, estava abaixo do poder estatal e quiçá ao lado máquinas que não necessitavam de descanso e alimentação. dos indivíduos, a partir do momento que teve sua inserção no O pequeno produtor precisou submeter sua força de trabalho plano jurídico, com a contemplação de personalidade jurídica para obter o próprio sustento, pois não podia concorrer com o advinda de uma teoria ficcional para a criação da pessoa empresário profissional. jurídica em contraposição à pessoa natural, até então o único sujeito de direito. Ostentando personalidade jurídica, a empresa passou Em resumo: o empreendedor passou a acumular mais do que antes e o antigo produtor, agora trabalhador, submeterse à exploração. a ser titular de direitos e obrigações. Estas se limitavam Obviamente, se antes uma incipiente “economia basicamente ao campo privado, vale dizer, relacionadas ao de mercado” regularizava a condição dos indivíduos, não contrato, sendo de ínfima proporção as obrigações no campo propiciando acúmulo individual – o que inviabilizava a público, em geral relacionadas ao pagamento de tributos. submissão –, com esse desnivelamento, passou a ser necessária Improvável se afirmar que a empresa ostentasse obrigações a intervenção do Estado para proporcionar um mínimo de públicas com quem não mantivesse relação contratual. assistência que possibilitasse a existência do afligido. Essa O Estado era o ponto central de poder, pois, antes da conduta também interessava à empresa, pois sem dispor do era dos capitais, ele conseguia manter de forma monopolizada capital empregado para a manutenção e sobrevivência, garantia tudo o que interessava ao cidadão, basicamente obter proteção a mão-de-obra que passou a ser mantida pelo Estado, com a do próximo. A segurança era o foco da relação cidadão- utilização da poupança comum dos tributos. Estava desenhada Estado, considerando que o indivíduo estava acostumado com a figura do welfare state. 9 Artigo 0 A observação desse modelo permite concluir que Na concepção do autor, o direito reside nos seis seu equilíbrio é delicado, por estar baseado em certo ponto espaços estruturais de forma específica para cada um deles, de estagnação de poder econômico, que estava dividido assim como cada qual possui uma forma de poder e uma forma paritariamente entre Estado e empresa. Entretanto, com o de epistemologia. Conceitua o direito com sendo (SANTOS, desenvolvimento desta, multiplicando o número de indivíduos 2000, p. 272): submissos, o Estado passou a ter mais gasto, ou seja, a balança econômica lucro versus tributo pendeu negativamente adopto aqui uma concepção ampla de direito: o contra a estrutura estatal, enquanto a empresa resultou mais direito é um corpo de procedimentos regularizados fortalecida. e de padrões normativos, considerados justificáveis num dado grupo social, que contribui para a criação e A análise lógico-matemática da situação importou prevenção de litígios e para a sua resolução através de uma conclusão fatalista: o Estado, como forma de democratizar um discurso argumentativo, articulado com a ameaça o acesso aos meios de existência, estava fadado à morte, e de força. Dizem-se justificáveis os procedimentos o mercado era o novo espaço para manifestação da nova e os padrões normativos com base nos quais se instituição que vinha a dominar a sociedade: a empresa. fundamentam pretensões contraditórias e se geram Vê-se, portanto, que, de atividade empírica e individual litígios susceptíveis de serem resolvidos por terceiras para satisfação pessoal das necessidades, a empresa ganhou partes não directamente envolvidas neles (juízes, existência distinta das pessoas naturais que a compunham, árbitros, mediadores, negociadores, facilitadores, começou a agregar capital na medida em que a produção etc.). do capital pôde ser multiplicada pelo trabalho mecânico e submeteu aos cuidados do Estado aquele que foi obrigado a Dentre os tipos de direito sugeridos pelo autor, vender o trabalho, mas foi posto ao largo da apropriação da assume especial importância aquele chamado sistêmico, que é propriedade. (SANTOS, 2000, p. 273): Importante, entretanto, fazer breve esclarecimento: não se defende uma posição maniqueísta neste trabalho. A o direito sistêmico é a forma de direito do espaço despeito das colocações feitas, não se afirma que a empresa é mundial, o conjunto de regras e padrões normativos o instrumento da dominação do mal e o Estado, o benfeitor que organizam a hierarquia centro/periferia e as sobrecarregado. Trata-se apenas da observação do contexto. relações entre os Estados-nação no sistema interestatal. 2.2 O poder de empresa e a submissão estatal Pois bem... Apresentado esse contexto, é fato que Há mais: não bastando a situação de crise econômica hoje, nas relações comerciais internacionais, alguns países do Estado, é possível afirmar que o fenômeno empresarial vêm adotando como diferencial de custo a vilipendiação massificado provoca um questionamento da própria soberania de direitos humanos, em regra relacionados ao direito do estatal algumas vezes, felizmente. trabalho, ou seja, menos gasto com encargos e garantias aos Para melhor contextualizar esse processo, vale adotar a lição de SANTOS, Boaventura de Souza (2000, p. 272), para trabalhadores representaria maior competitividade no mercado internacional. o qual as sociedades capitalistas apresentam basicamente seis Assim, uma empresa situada num país que adota um modos de produção que, por sua vez, apresentam seis formas padrão mínimo de direitos estaria em desvantagem em relação de direito, seis formas de poder e seis formas de conhecimento a outra do mesmo ramo que atua num Estado que não o prevê epistemológico. No que toca ao direito, afirma que a regulação ou garante as mesmas garantias. social não tem fonte única, mas sim o efeito global da com- Sobre o tema, bem explana AMARAL JUNIOR, binação de diferentes formas de direito e dos respectivos mo- Alberto do (1999, p. 179), para quem a ligação do comércio dos de produção. São seis os espaços estruturais que o autor internacional e dos direitos humanos estaria justamente na entende existentes: doméstico, da produção, de mercado, da questão das vantagens competitivas de Estados que não comunidade, da cidadania e mundial. cumpririam uma agenda mínima de direitos e, com isso, Afirma que o poder do Estado, o direito do Estado e o obteriam maior margem em sua balança de exportação, prática conhecimento científico têm sua importância, mas não podem chamada pelos EUA e pela Comunidade Européia de dumping ser superestimados diante da complexa realidade. social. 70 A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania Afirma que, contra tal prática, foi criada a chamada sobre determinado território. cláusula social, que seria uma série de observações a serem seguidas pelos países da comunidade internacional, com 3. A Responsabilidade Social da Empresa vistas a não tornar a exploração do trabalho como modo 3.1 O porquê da responsabilidade social empresarial de competitividade desleal. Em suas palavras (AMARAL JUNIOR, 1999, p. 179): Conforme visto, em algumas hipóteses, como a cláusula social, felizmente o poder de empresa promove a melhoria das condições de desenvolvimento humano. na esfera internacional, os benefícios oriundos da Então, com esse crescer de importância, surge o discurso liberdade de comércio pressupõem a ordenação do aparentemente contraditório (discurso liberal-individualista) mercado global por meio de marcos jurídicos insti- de que a empresa deva cumprir uma função social em vias de tucionais, acordados em negociações multilaterais, substituir a atividade estatal. Contraditório porque a empresa que garantam tanto a previsibilidade de expectativas antes de tudo é apenas atividade para o empreendedor subsistir dos agentes econômicos como a solução de conflitos de forma pessoal. Em seus primórdios, não guardava relação entre as partes. O sistema regulatório assim criado com filantropia. deve especificar o domínio do permitido, bem como Não obstante isso, no momento em que o interesse as condutas nocivas ao comércio internacional. (...) do indivíduo deixou de ser a segurança física – já conquistada o vínculo entre direitos humanos e comércio interna- com a sofisticação dos aparatos jurídico-coercitivos para ser cional residiria na ligação cada vez mais perceptível a realização econômica e a empresa passou a ser a titular de entre as vantagens comparativas em matéria comer- maior domínio econômico, ela deixou de ser mera coadjuvante cial e as discrepâncias de regimes trabalhistas entre na gradação hierárquica dos sujeitos sociais, para assumir os países, muitas das quais resultam da violação de papel de instituição ao lado do Estado. direitos constantes de tratados e convenções internacionais. (...) o tema da cláusula social como ficou conhecida nas discussões internacionais a associação entre direitos trabalhistas e comércio envolve pelo menos quatro dimensões principais: a) a preocupação com as práticas desleais de comércio; b) a busca de soluções que reduzam os níveis de desemprego nas Sobre esse contexto histórico, explana muito bem JUSTEN FILHO, Marçal (1998, p. 109): O Estado Nacional vai reduzindo progressivamente sua importância, em virtude dos mais variados fatores. De um ponto de vista estritamente econômico, o Estado Nacional não dispõe mais de recursos suficientes para enfrentar todas as tarefas economias que sofrem as conseqüências do processo que pretendeu assumir. Mais ainda, constatou-se de globalização; c) a expansão do desconforto ético que a utilização dos recursos estatais tende a ser e moral com a violação dos direitos humanos; d) o ineficiente: quanto mais intensas e amplas as funções temor de que tais argumentos venham a favorecer o atribuídas ao Estado, tanto maior o desperdício de protecionismo, afetando as exportações dos países em recursos verificado. (...) A empresa é o instrumento desenvolvimento. fundamental para a realização dos objetivos contidos Independentemente da motivação da cláusula social, seja ela ética seja protecionista, observa-se que se trata de uma imposição econômica do sistema empresarial dos países ditos centrais, para que os periféricos adotarem uma agenda mínima de garantias sociais para seu acervo laboral, sob pena de sanções políticas e econômicas. Portanto a cláusula social, dentro da teorização de no art. 3o da CF/88. Essa afirmativa é tanto mais afirmativa quanto mais se consagram as concepções neoliberais. (...) a atividade empresarial passou a ser uma espécie de sucedâneo da atividade estatal na implementação de certos objetivos fundamentais, de interesse coletivo. A ampliação da margem de atuação e o incremento da relevância da empresa modificaram seu perfil e suas responsabilidades. Boaventura de Souza Santos, nada mais é que um instrumento empresarial de coerção no campo do sistema do direito Alerte-se que a empresa passou a concorrer de tal sistêmico-mundial, cuja marca é submeter a autonomia forma com o Estado que outrora algo impensável, como a legislativa dos Estados Nacionais, subvertendo o próprio privatização dos serviços públicos, passou a ser o discurso conceito estatal, que sempre foi baseado no domínio soberano obrigatório, inclusive como imposição pelos novos sujeitos de- 71 Artigo 0 tentores de capital que são as instituições financeiras privadas Justiça americana do caso de Henry Ford, presidente e acionis- de caráter supranacional como o Banco Mundial. ta majoritário da Ford Motor Company, e seu grupo de acio- Nesse contexto, passou-se então a falar em responsabilidade social das empresas, mais como forma de nistas liderado por John e Horace Dodge, que contestavam a idéia de Ford. solução extra-estatal de resolução de necessidades do que Em 1916, argumentando a realização de objetivos como discurso ético de comportamento, apesar de alguns sociais, Ford decidiu não distribuir parte dos dividendos aos doutrinadores tratarem do tema ainda de forma aparentemente acionistas e investiu na capacidade de produção, no aumento de ingênua, como, por exemplo, BENEDICTO, G. C. de (1997, salários e em um fundo de reserva para a diminuição esperada p. 76), que afirma: de receitas, em virtude da redução dos preços dos carros. A Suprema Corte de Michigan decidiu a favor dos Dodges, toda empresa tem uma responsabilidade social. É entendendo que as corporações existem para o benefício de seu dever pensar no bem-estar da sociedade, e não seus acionistas e que os diretores precisam garantir o lucro, apenas no lucro. A preocupação com o social passou não podendo usá-lo para outros fins. Assim, entendeu-se que a ser até uma questão de sobrevivência. É uma forma responsabilidade corporativa e investimento na imagem da de marketing... A responsabilidade social pode empresa para atrair consumidores só poderiam ser realizados ser definida como o dever da empresa de ajudar a à medida que favorecessem os lucros dos acionistas. sociedade a atingir seus objetivos. É uma maneira de a Durante a Segunda Guerra Mundial, a idéia de que empresa mostrar que não existe apenas para explorar a empresa deveria responder apenas seus acionistas começou recursos econômicos e humanos, mas também para a receber críticas. Sendo os acionistas proprietários passivos contribuir com o desenvolvimento social. É, em que abdicavam do controle em prol dos diretores, estes, sim, síntese, uma espécie de prestação de contas. poderiam assumir responsabilidades com o seu público. De outro lado, não se acredita válido o discurso radical a inserção da empresa na sociedade e suas responsabilidades: no sentido de não se constatar a realidade, ou seja, de que o o caso A. P. Smith Manufacturing Company versus seus sistema estatal como posto está fadado ao fracasso diante do acionistas, que contestavam a doação de recursos financeiros à déficit público, como acreditam outros doutrinadores. Veja-se Universidade de Princeton. Nesse período, a Justiça estabeleceu o exemplo de COMPARATO, Fábio Konder (1996, p. 42): a Lei da Filantropia Corporativa, determinando que uma Outro fato trouxe a público, em 1953, a discussão sobre corporação poderia promover o desenvolvimento social. ...a tese da função social das empresas apresenta hoje o Na década de 50 nos Estados Unidos e no sério risco de servir como mero disfarce retórico para final da década de 60 na Europa, os meios empresarial e o abandono, pelo Estado, de toda política social, em acadêmico discutiram a importância da responsabilidade homenagem à estabilidade monetária e ao equilíbrio social promovida pelas ações de seus dirigentes. Durante das finanças públicas. Quando a Constituição define a evolução da idéia de responsabilidade social, entretanto, como objetivo fundamental de nossa República alguns estudiosos acreditavam que cabia ao governo, igrejas, “construir uma sociedade livre, justa e solidária” sindicatos e organizações não-governamentais o suprimento (art. 3o, I), quando ela declara que a ordem social tem das necessidades comunitárias por meio de ações sociais por objetivo a realização do bem-estar e da justiça organizadas, e não às corporações que, na verdade, precisavam social (art. 193), ela não está certamente autorizando satisfazer a seus acionistas. uma demissão do Estado, como órgão encarregado de guiar e dirigir a nação em busca de tais finalidades. Nos anos 60, autores europeus se destacaram apresentando problemas sociais e suas possíveis soluções. E nos Estados Unidos, as empresas já se preocupavam com a questão Fugindo ao discurso meramente ético-filantrópico e ao ambiental e em divulgar suas atividades no campo social. A radical-econômico, a questão é que a empresa tem obrigações década de 70 trouxe a preocupação com o como e quando a públicas que devem ser cumpridas diante do contexto atual. empresa deveria responder por suas obrigações sociais. A demonstração para a sociedade das ações empresariais tornou-se 3.2 Breve resenha histórica do pensamento extremamente importante. Segundo ASHLEY, P. A., COUTINHO, R. B. G., Com maior participação de autores na questão da TOMEI, P. A (2000, p. 63), a questão da responsabilidade responsabilidade social, a década de 90 apresentou a discussão corporativa tornou-se evidente em 1919, com o julgamento na sobre os temas ética e moral nas empresas, o que contribui de 72 A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania modo significativo para a definição do papel das organizações apresentem porte de relevância, iniciativa esboçada pelas e a conceituação de responsabilidade social. então deputadas federais Marta Suplicy, Maria da Conceição 4. A Responsabilidade Social no Brasil Tavares e Sandra Starling, com o Projeto de Lei (PL) 3.116/97, 4.1 Breve resenha histórica do pensamento no Brasil Quanto à responsabilidade social no Brasil, pode-se considerar seu início com a criação, em 1960, da Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE), que reconheceu a função social da empresa associada. Em 1982, a Câmara Americana do Comércio de São Paulo lançou o prêmio Eco de cidadania empresarial. Em 1984, a Nitrofértil destacou-se por ser a primeira empresa brasileira a publicar um balanço social. Em 1992, o Banespa divulgou todas as suas ações sociais. Tal ação é contemporânea da Eco 92, realizada no Rio de Janeiro, que discutiu a importância do meio ambiente e sua preservação. Em 1993, o sociólogo Herbert de Souza lançou que criava e tornava obrigatório o balanço social para todas as empresas públicas e para as empresas privadas com cem ou mais empregados. Segundo o Projeto de Lei: Art. 2o Balanço Social é o documento pelo qual a empresa apresenta dados que permitam identificar o perfil da atuação social da empresa durante o ano, a qualidade de suas relações com os empregados, o cumprimento das cláusulas sociais, a participação dos empregados nos resultados econômicos da empresa e as possibilidades de desenvolvimento pessoal, bem como a forma de sua interação com a comunidade e sua relação com o meio ambiente. a Campanha Nacional da Ação da Cidadania contra a Fome, Dentre as informações que devem estar listadas no a Miséria e pela Vida, com o apoio do Pensamento Nacional balanço social, encontram-se as seguintes: os empregados – nú- das Bases Empresariais (PNBE), que constituiu o marco da mero de empregados existentes no início e no final do ano, es- aproximação dos empresários com as ações sociais. Em 1997, colaridade, sexo, cor e qualificação dos empregados, número Betinho lançou um modelo de balanço social e, em parceria de empregados por faixa etária, número de dependentes meno- com o jornal Gazeta Mercantil, criou o selo do Balanço res, total da remuneração paga a qualquer título às mulheres Social para estimular as empresas brasileiras a divulgar seus na empresa, percentagem de mulheres em cargos de chefia em resultados na participação social. relação ao total de cargos de chefia da empresa; valor dos en- Em 1998 foi criado o Instituto Ethos de Empresas cargos sociais pagos; valor dos tributos pagos; alimentação do e Responsabilidade Social pelo empresário Oded Grajew. O trabalhador; educação valor dos gastos com treinamento pro- instituto serve como ponte entre os empresários e as causas fissional, programas de estágios; saúde dos empregados valor dos sociais. Seu objetivo é disseminar a prática da responsabilidade gastos com planos de saúde, assistência médica, programas de social empresarial por meio de publicações, experiências, medicina preventiva; segurança no trabalho valor dos gastos programas e eventos para interessados na temática. com segurança no trabalho, especificando os equipamentos Em 1999, a adesão ao movimento social se refletiu na publicação do seu balanço social no Brasil por 68 empresas. de proteção individual e coletiva na empresa; outros benefícios seguros (valor da parcela paga pela empresa), gastos com atividades recreativas, transportes, creches e outros benefícios ofe- 4.2 O Tratamento Legislativo Impositivo recidos aos empregados; previdência privada planos especiais Em termos legislativos, é possível afirmar que a Cons- de aposentadoria, fundações previdenciárias; investimentos na tituição federal de 1988 e a legislação infraconstitucional que comunidade valor dos investimentos na comunidade nas áreas dela derivou são retratos da ‘jurisdicização’ da responsabili- de cultura, esportes, habitação, saúde pública, saneamento, as- dade social das empresas. Segundo NETTO BESSA, Fabiane sistência social segurança, urbanização, defesa civil, educação, Lopes Bueno (2006, p. 95), há dispositivos constitucionais que obras públicas, campanhas públicas e outros; investimentos em impõem condutas socialmente responsáveis, como a repressão meio ambiente – reflorestamento, despoluição, gastos com in- ao abuso econômico, e infraconstitucionais, como a possibili- trodução de métodos não-poluentes. dade de desconsideração da personalidade jurídica no Código Pela análise dos descritivos, percebe-se que a Civil, bem como a predominância da intenção sobre a forma. interpretação do fenômeno empresarial por parte do Estado Continua afirmando que o Código Civil adotou cláusulas ge- significa transpor suas obrigações para o âmbito privado. rais que se completam pelas condutas e, que dentre as previs- Existe especial preocupação com o tema da previdência tas, vale ressaltar a boa-fé objetiva. privada e segurança no trabalho, cujos indicativos impactam Outrossim já há movimento para tornar obrigatória diretamente os gastos públicos, bem como a menção a assuntos a apresentação do balanço social por parte das empresas que até então impensáveis de se exigir de uma empresa, como a 73 Artigo 0 aplicação de recursos em, por exemplo, saneamento básico nas cogentemente (ato de autoridade), sacrificadoras imediações das instalações da empresa. da iniciativa e dos bens privados, almejando a Não há até agora uma perspectiva de que as infor- redistribuição para os infortunados e o controle das mações prestadas possam vincular-se em alguma obrigação fases econômicas (produção, circulação e consumo), jurídica por parte da empresa, mas talvez não tarde a inicia- criando campo fértil para a obtenção dos bens. tiva pública em buscar um alargamento da responsabilidade Os incentivos fiscais, ao contrário dos meios estatais objetiva da empresa pelos danos que ocasione, conforme vem ocorrendo no campo ambiental. que sacrificam sujeitos e suas respectivas propriedades, são instrumentos propulsores quando o efeito, positivamente 4.3 O tratamento legislativo de Incentivo considerado, é causa de desenvolvimento. Ao mesmo tempo Nem só de imposições é feita a previsão legal da em que impulsionam determinadas atividades, os incentivos responsabilidade social empresarial. No campo tributário, fiscais emitem reflexos negativos – desincentivos –, causando as isenções e os incentivos promovem um pensamento empreendedor-solidário. A utilização de um instrumento jurídico capaz de permitir redução tributária para o empresário, criando um diferencial em sua contabilidade e, conseqüentemente, em seus a retração no campo das atividades não-beneficiadas. Assim ocorre quando o Estado cria incentivos fiscais regionais: está usando um processo (de dedução, de isenção etc.) que, movimentado pelo mecanismo tributário, vai proporcionar o desenvolvimento da região beneficiada. custos, que ao mesmo tempo seja boa estratégia de marketing, Analisada sob prisma material ou substancial, a norma no sentido de atingir seu público-alvo e divulgar o nome jurídica concessiva de benefícios fiscais pode ser considerada, e a marca de sua empresa, é uma forma político-jurídica de simultaneamente, como norma de concessão de subsídios. Com efeito, mediante a concessão de isenções e incentivar o comportamento socialmente responsável. Afinal, como afirma MALERBI, Diva Prestes Marcondes (1984, p. 44): outros instrumentos tributários, as empresas socialmente responsáveis são instadas a aplicar no desenvolvimento social e, com isso, melhoram sua imagem perante o pleno dos o particular visa a obter com sua atividade econômica, consumidores. Aparentemente, não há como se negar o caráter determinado resultado e compreende que para tanto de planejamento tributário a tal forma de manejo de incentivos o direito positivo lhe empresta formulações jurídicas fiscais. diversificadas, mas de alguma forma equivalentes, que recebem, outrossim, tributações mais ou menos gravosas. Daí, então, elege para alcançar aquele Acerca do tema, esclarece AUGUSTO, Ana Maria Ferraz (1997, p. 281): resultado econômico perseguido a via jurídica que se ...a legislação brasileira de incentivos fiscais, inde- lhe oferece, em termos fiscais, menos gravosa. pendentemente do objetivo visado, ora atendendo à necessidade de recuperação econômica regional ou ao Os incentivos fiscais são, antes de tudo, técnicas usadas fortalecimento da economia nacional, ora estimulando pelo Estado para a realização de determinados objetivos de a formação de capital e desenvolvimento social, tem sua política econômica. O sistema de incentivos corresponde usado de três formas pelas quais atenua, isenta ou a um processo pelo qual o Estado propulsiona ou desestimula declara a não-incidência dos tributos. Assim, confor- determinadas atividades econômicas. me seja o tipo de concessão, o alcance ou o conteúdo Em verdade, conforme as palavras de SANCHES, Marcelo Elias (1998, p. 125): ...o Estado é o único ente que pode realmente e reduções. Estas são as três formas de concessão de incentivos através do mecanismo tributário. oferecer uma fonte certa e precisa para se chegar ao Não há que se olvidar: atualmente, a fiscalidade, na bem comum, pois, dotado de soberania, faz valer sua essência de arrecadação de tributos, passou a ser utilizada a sua vontade como ato incontrastável de Poder. A pelo Estado como instrumento incentivador das áreas em que manifestação estatal provém de regras de natureza a atuação estatal é hipossuficiente ou inexistente. jurídica, indicadoras de condutas a serem seguidas 74 da norma legal, encontram-se: imunidades, isenções Desse modo, os objetivos estritamente econômicos A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania dos incentivos fiscais passaram a dividir a posição com ções gratuitas de ingressos para eventos de caráter artístico- objetivos sociais. cultural por pessoas jurídicas a seus empregados e dependen- Para ilustrar o que foi dito, tomar-se-á como exemplo tes; despesas efetuadas por pessoas físicas ou jurídicas, visando a Lei de Apoio à Cultura ou Lei Rouanet (Lei n 8.313 de 23 a conservar, preservar ou restaurar bens de sua propriedade ou de dezembro de 1991), que foi ontologicamente concebida posse, tombados pelo governo federal. o As transferências para a efetivação de doações e para reverter a renúncia fiscal da União em benefícios diretos e concretizados sob a forma de projetos culturais. patrocínios não estão sujeitas ao imposto de renda na fonte. A Constituição federal de 1988 previu, em seu artigo A pessoa jurídica doadora ou patrocinadora tributada 215, que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos pelo lucro real poderá deduzir do IR devido na declaração direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e os valores efetivamente contribuídos em favor de projetos apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais aprovados, nos percentuais de 40% das doações e culturais”. O mesmo artigo, em seu parágrafo 3 , previu que “a 30% dos patrocínios. o Quando a empresa socialmente responsável usa desses lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento incentivos fiscais para promover a cultura pode atingir enorme de bens e valores culturais”. Três anos depois, esse artigo constitucional foi regu- gama de beneficiários, podendo ser entendidos como os grupos lamentado pela Lei n 8.313/91, que instituiu o PRONAC – de interesses diretamente vinculados às atividades de fomento Programa Nacional de Apoio à Cultura, entidade com o obje- da empresa. São os stakeholders. o MARTINS, Rogério Vital Gandra Silva (1995, p. 130) tivo de fomentar a produção artística e cultural do país. Dois anos depois, foi também aprovada a Lei n 8.685/93, que tem por o afirma: objetivo o incentivo e o fomento das áreas ligadas ao audiovisual. a união faculta às pessoas físicas ou jurídicas a O PRONAC, que tem por finalidade captar e canalizar opção pela aplicação de parcelas do imposto sobre recursos para o setor de cultura, atua através do FNC – Fundo a renda e proventos de qualquer natureza a título de Nacional de Cultura; do Ficart – Fundos de Investimento doações e patrocínios, nas seguintes modalidades: Cultural e Artístico; e dos incentivos fiscais a projetos culturais, em favor do próprio contribuinte do IR, desde que método também conhecido como mecenato. este seja proprietário ou titular de posse legítima O Decreto 1.494/95 define o mecenato como “a de bens imóveis tombados pela União; em favor proteção e o estímulo das atividades culturais e artísticas por de outras, através de numerários, bens ou serviços, parte de incentivadores”. abrangendo: pessoas físicas ou jurídicas de natureza O sistema jurídico do mecenato (homenagem aos cultural, caráter privado, não-instituídas ou mantidas antigos mecenas, patronos e protetores das artes) tem como pelo poder público, sob a forma de doações; pessoas dispositivo básico a possibilidade de aplicação em projetos jurídicas de natureza cultural, com ou sem fins culturais, de recursos que inicialmente seriam destinados ao lucrativos, sob a forma de patrocínio; em favor do recolhimento de imposto de renda. Por esse sistema, a empresa Fundo Nacional de Cultura – FNC, com destinação calcula o montante a ser recolhido aos cofres públicos, a título prévia ou livre, a critério do contribuinte; e empregados de imposto de renda, e reverte parte desse crédito tributário ao incentivo de projetos. Os valores aplicados pela empresa entram na declaração e recolhimento do imposto de renda sob a forma de doações e patrocínio, e devendo ser comunicados à Receita Federal. Nos termos da Lei 8.313/91, são consideradas patrocínio a transferência de valor, com finalidade promocional ou cobertura de gastos, bem como a utilização de bem móvel ou imóvel do seu patrimônio, sem a transferência de domínio, para a realização de atividade cultural com ou sem finalidade lucrativa. Pela Lei 8.313/91, consideram-se doações: distribui- e dependentes legais, através de distribuição gratuita de ingressos para eventos de caráter cultural, sempre por intermédio das organizações de trabalhadores na empresa. Somente para exemplificar, o Estado do Rio Grande do Sul também possui um sistema de financiamento e incentivo às atividades culturais, em vigor por força da Lei no 10.846/96 e do Decreto no 36.960/96. A sistemática de incentivo consiste na compensação de 75% do valor investido em projetos culturais como isenção fiscal, no limite de 3% do ICMS devido por período pela pessoa jurídica. Assim, a empresa que apresenta conduta socialmente responsável, ao menos em tese, cria enorme potencial para 75 Artigo 0 o marketing social e isso à custa de um valor supostamente AUGUSTO, Ana Maria Ferraz. Incentivos: Instrumentos “perdido”; vale diz: promove sua marca de forma subsidiada Jurídicos do Desenvolvimento. In: Revista de Direito Público, pelo Estado. ano IX, n. 47-48, São Paulo: RT, 1997. 5. Conclusão A empresa, de organização racional e destinada ao atendimento individual das necessidades, assumiu papel de relevo dentro do território do país em que está instalada, num BENEDICTO, G. C. de. A responsabilidade social da empresa: exigências dos novos tempos. Cadernos da Faceca, v. 6, no 15, p. 76-84, jul./dez. 1997. processo de institucionalização em concorrência com o próprio BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade Social Estado-poder, dividindo obrigações. das Empresas – práticas sociais e regulação jurídica. Rio de Acredita-se que, atualmente, a interpretação do Janeiro: Lúmen Júris, 2006. fenômeno estatal e empresarial permite a conclusão de que seus conceitos tradicionais sofreram significativas alterações CASTOR, Belmiro Valverde Jobim. A terceirização do estado. por um processo dialético: de um lado, a empresa deixou de ser In: Gazeta do Povo, 2 jul. 2006. um fenômeno estritamente privado para assumir obrigações públicas, num crescente projeto de transferência de serviços para a iniciativa privada; de outro, no âmbito de direito sistêmico-mundial, os Estados estão sofrendo mitigação em COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social, Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 85, v. 732, out. 1996. seu poder soberano ao receber imposições empresariais para JUSTEN FILHO, Marçal. Empresa, ordem econômica e adequação de uma agenda mínima de obrigações, sob pena de constituição. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de sanções econômicas. Janeiro, abr./jun. 1998. Diante dessa paridade de forças, releva-se pertinente o início de uma instituição legal da responsabilidade das em- LUX, K. O erro de Adam Smith. São Paulo: Nobel, 1993. presas. Vale dizer: agregar, a direitos e obrigações tradicionais MALERBI, Diva Prestes Marcondes. Elisão Tributária. São da empresa obtidos com a criação da ficção da pessoa jurídica, Paulo: RT, 1984. uma nova obrigação pública e social. E isso é possível, pois, se a empresa e o Estado estão num mesmo patamar hierárquico SANCHES, Marcelo Elias. A teoria da imposição tributária e de instituição social, este ainda tem o diferencial de ostentar o a teoria da justiça, In: Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 6, poder de legislar e impor o cumprimento das normas mediante n. 24, jul./set. 1998. o exercício legítimo da violência. Entretanto, antes de impor, deve o Estado fomentar tais condutas, com os instrumentos colocados à disposição, em especial os tributários, dos quais a Lei Rouanet é um exemplo. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. v. 1. São Paulo: Cortez, 2000. Em síntese: o que era privado agora cumpre função SILVA MARTINS, Rogério Vital Gandra da. Incentivos fiscais pública; o que era soberano agora se submete ao interesse à atividade cultural e artística no Brasil – síntese normativa da privado. lei 8.313 de 23 de dezembro de 1991 e decreto 1.494 de 17 de maio de 1995. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 3, no 11, 6. Referências AMARAL JUNIOR, Alberto do. Direitos humanos e comércio internacional: reflexões sobre a “cláusula social”. In: AMARAL JR., Alberto. O cinqüentenário da declaração universal dos direitos do homem. São Paulo: Edusp, 1999. ASHLEY, P. A.; COUTINHO, R. B. G.; TOMEI, P. A. Responsabilidade social corporativa e cidadania empresarial: uma análise conceitual comparativa. São Paulo: Enanpad, 2000. 7 abr./jun. 1995. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Textos selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX Artigo 07 A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX Luana de Carvalho Silva1 Em nome da religião, disse o sublime gnosta, autor do quarto evangelho: no príncipio era a palavra (in principio erat verbum); em nome da poesia, disse Goethe: no princípio era o acto (im Amfang war die Taht); em nome das sciencias naturaes, disse Carus Sterne: no princípio era o carbono (im Amfang war der Kohlenstoff); em nome da philosophia, em nome da intuição monistica do mundo, quero dizer: no principio era a força, e a força estava junto ao homem, e o homem era a força. Desta força conservada e desenvolvida, é que tudo tem-se produzido, inclusive o próprio direito, que em ultima analyse não é producto natural, mas um produto cultural, uma obra do homem mesmo. Tobias Barreto, em introdução a Menores e Loucos em Direito Criminal, 1886. 1. Introdução. 2. Primeiras Faculdades de Direito. 2.1. Formação universitária: período de Olinda. 3. Faculdade de Direito do Recife. 4. Condição histórica do saber criminológico. 5. Criminologia e Escola do Recife: importância de Tobias Barreto. 6. Referências. 1. Introdução Nesse sentido, segundo Foucault, saberes humanos, O limite entre as épocas clássica e moderna, política, economia, filosofia e direito foram possíveis por meio segundo as reflexões de Michel Foucault, foi palco para um da emergência dessa certa regularidade discursiva presente no acontecimento fundamental de um novo tempo: o aparecimento solo da modernidade. do indivíduo como centro da experiência e do saber possíveis. Mas essa regularidade discursiva não é apenas A modernidade nascente passou a figurar sob um signo de mediada por saberes autônomos. Se o discurso é o que produz as ruptura com um passado, um signo novo caracterizado pelo verdades, ele é, por conseguinte, uma relação de poder essencial homem, pelo sujeito. na modernidade capaz de criar realidades. É nesse sentido que Essa centralidade no sujeito tomou forma mediante um conjunto de discursos e práticas que não estava marcado pela linearidade ou completude de seus conteúdos, sendo, pelo contrário, delineado a partir da sua dispersão, da sua complexidade. Registros médicos, regimes jurídicos, artes e a literatura podem parecer, à primeira vista, elementos sem nada em comum, entretanto, nos aponta Foucault, essa aparente disparidade está relacionada, ou melhor, está possibilitada por Foucault afirma a “materialidade” do discurso, pois: Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que têm por função conjugar seus poderes e perigos, dominar seus acontecimentos aleatórios, esquivar sua pesada e temível materialidade2. uma mesma trama discursiva responsável por articular o que é Quem produz discurso tem o poder de selecionar a possível de ser vivido, pensado e experimentado, enfim, o que é verdade de seu tempo, o poder de definir regras, ditar normas e verdade num espaço-tempo determinado. ditar uma história, um poder concreto de autoridade capaz de Artigo apresentado por Luana de Carvalho Silva, bacharel em Direito (Puc-Pr) e Psicologia (UFPR), especialista em Direito Criminal e Criminologia pelo IPCC e UFPR, mestranda em Direito do Estado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela UFPR, professora de Psicologia Jurídica e Direito Penal na Faculdade Dom Bosco. 2 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2003, p. 9. 1 77 Artigo 07 selecionar, organizar, segregar, dispor das tecnologias de saber pré-conceitos desenvolvidos pelas relações de poder nacionais. e poder dispostas em seu tempo, a fim de atender a qualquer Com isso, começamos a esbarrar nas primeiras dificuldades. interesse. Afinal, como escapar do discurso de ”autoridade” que por Assim, seria possível analisar as vicissitudes do tanto tempo impera nas análises históricas nacionais? Como discurso jurídico na modernidade, um discurso permeado escapar da sedução da linearidade histórica e da explicação de práticas judiciais, de doutrinas e de leis atrelado ao poder meramente casuística dos acontecimentos históricos narrados? soberano e, também, a outros dispositivos de poderes que E como lidar com as dificuldades e lacunas produzidas pela controlam, segregam, organizam, e, ainda, estabelecem os escassez de fontes históricas? procedimentos de interdição e de estabelecimento de privilégios Ciente dessas dificuldades, a pretensão de elaborar difusos no seio social. Como qualquer outro discurso, o uma pesquisa histórica perde um tanto de seu fôlego. Mas jurídico pertence uma trama discursiva única e concreta, que ainda sobra vontade. Desse modo, preza-se a possibilidade de só deve ser compreendida dentro de um espaço-tempo certo e realizar uma pesquisa histórica tomando o período em questão nunca a partir de uma universalidade. Portanto, a compreensão em sua singularidade, procurando desviar-se das atitudes da dimensão desse “discurso” apenas teria lugar, segundo universalizantes do nosso tempo atual. Fonseca, “a partir de uma análise interna que compreenda seu O ponto de partida é a constituição e a trajetória significado e seus efeitos na sociedade, ou seja, uma análise dos primeiros cursos jurídicos no Brasil, em especial a Escola eminentemente histórica”3 . do Recife, na primeira metade do século XIX. A formação O discurso jurídico, portanto, está assentado sobre desses cursos é essencial para o aparecimento das primeiras uma configuração discursiva própria da época moderna, reflexões jurídicas nacionais, enfim, para a formação de um delimitada por uma relação especial entre saberes e poderes “cultura jurídica brasileira”4 . É no interior desses cursos, por mediados a partir da noção de sujeito. E a compreensão de meio da formação dos “lentes”, da publicação de revistas, das tal discurso leva em conta suas condições de aparecimento, ou grades curriculares, dos debates entre alunos e da atividade seja, sua condição histórica. acadêmica, que um saber jurídico vai ganhando corpo, Com isso, é possível adentrar nos singelos objetivos criando e aceitando certas idéias ou rejeitando outras. O foco do presente artigo. Objetivos estes desenhados a partir de uma da pesquisa é o posterior desenvolvimento, a partir dos tímida incursão na história da formação da “cultura jurídica anos 70 do mesmo século, na Escola do Recife, de uma brasileira” no século XIX, experimentada pela “Escola do “mentalidade” científica – germânica – no estudo do direito Recife”, especialmente no tocante ao desenvolvimento ali criminal, possibilitando, com Tobias Barreto, a fundamentação experimentado de saberes criminológicos (“positivistas”), de um tipo de saber jurídico-criminológico. saberes esses que tiveram grande impacto nas noções de criminalidade desenvolvidas em nosso país desde então. 2. Primeiras Faculdades de Direito De fato, esta pesquisa não tem nenhuma pretensão Com a independência política do Brasil em 1822, cla- de “desvelar” algum conhecimento oculto ou descobrir mou-se pela necessidade imediata de ruptura com o passado qualquer “verdade” encoberta pela passagem dos anos. colonial e pela construção de um novo ideário para a nação. Este estudo objetiva reconstruir uma linearidade perdida No plano econômico, o desafio era a articulação da estagnada ou buscar nos acontecimentos passados fragmentos para economia colonial patriarcalista e escravocrata com as possi- melhor explicar que a “evolução”, até o presente, carece bilidades prometidas pelas doutrinas liberais; no plano políti- de sentido verdadeiramente “histórico”, parecendo estar co, a euforia da liberdade dividiu lugar com certo continuísmo apenas comprometida com um discurso de autoridade, com a antiga metrópole veiculada na figura do Imperador. com a produção de “verdades” relacionada com um jogo de No plano social, ficou embutido um sentimento de mudança poder qualquer. Fazer uma “história” a partir do discurso de manifestada na clara preocupação em construir uma “intelli- “autoridade” sobre a formação do entendimento doutrinal da gentsia” local, capaz de conhecer e enfrentar os problemas na- criminalidade no Brasil seria o mesmo que justificar os mesmos cionais. Segundo Schwarcz, “era necessário provar ‘para fora FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX. Conferência apresentada no I Congresso Brasileiro de História do Direito, realizado em Florianópolis entre os dias 8 e 11 de setembro de 2005, p. 2. 4 Para Fonseca, a formação de uma “cultura jurídica” brasileira só foi possível diante da criação dos cursos jurídicos, neste sentido: “E para o bem e para o mal, serão estas faculdades de direito (as duas únicas em todo país no período imperial) elementos catalisadores fundamentais daquilo que doravante vai se fazer e pensar em termos de direito no Império. A hipótese que aqui se coloca é que sobretudo a partir dos anos cinqüenta do século XIX se podem evidenciar características mais claras e específicas no sentido de ser possível definir contornos de uma genuína cultura jurídica brasileira.” FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX, p. 5. 3 78 A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX e para dentro’ que o Brasil imperial era de fato independente, como nação “moderna”. Destacam-se, nesse sentido, o Códi- faltando para tanto“ não apenas novas leis, mas também nova go Criminal do Império de 1830 e a Lei de Terras de 1850. consciência” . Tais legislações apresentaram o país a um modelo liberal que 5 Nesse sentido, foi organizada a formação dos contrastava intensamente com a realidade da estrutural social dois primeiros cursos jurídicos do país, em Olinda e em São brasileira, uma realidade marcada pelo domínio oligárquico, Paulo, visando à formação intelectual e burocrática de uma pela economia rural e pelo escravismo. elite genuinamente nacional, desvinculada de laços culturais Assim, a estruturação jurídica e política nacional, e acadêmicos com Portugal, pois: “a idéia era substituir a como define Fonseca, foi marcada por um contexto de “tensão” hegemonia estrangeira – fosse ela francesa ou portuguesa – entre um ideário liberal e uma realidade social, tensão que pela criação de estabelecimentos de ensino de porte, se tornou uma particularidade experimentada pelo Estado como as escolas de direito, que se responsabilizariam pelo brasileiro, resultando na criação de determinadas soluções e desenvolvimento de um pensamento próprio e dariam à nação alternativas diferentes das vividas na Europa, mas que, sem uma nova constituição” . dúvida, estavam relacionadas com as condições históricas 6 A partir desse contexto foi aprovado o projeto de vividas no país9 . 31 de agosto de 1826, convertido em lei em 11 de agosto de Essa tensão podia ser vivida também na formação 1827, que criava dois centros de estudos dedicados ao Direito dos cursos jurídicos. Especialmente nos primeiros anos de no país. funcionamento das escolas de direito, quase a totalidade A localização dos dois primeiros cursos de direito da formação jurídica estava fundamentada na realidade de provocou inicialmente, segundo Schwarcz, uma série de Coimbra. Tanto a formação dos “Lentes” quanto a doutrina e debates, e a decisão acabou por levar em consideração o a legislação ensinadas eram importadas de terras portuguesas. atendimento das populações em diferentes partes do país. Dada a formação jesuítica de tal escola, o ensino jurídico Assim, a população do Norte contava com a Escola de Olinda também se encontrava fortemente marcado pelo Direito (que se transferiu para o Recife em 1854) e a população do Sul Canônico e pela filosofia cristã. Pouco a pouco, os lentes teria sua escola localizada em São Paulo7 . (fortemente influenciados inclusive por políticas públicas) Os cursos iniciaram suas atividades em 1828 e em passaram a desenvolver seus próprios “compêndios”, que eram pouco tempo a posição do “bacharel” passou a figurar entre aprovados pelas Assembléias. E com a chegada e assimilação as mais disputadas pelas elites nacionais. O bacharel em das idéias liberais o ensino de “Coimbra” cedeu espaço para direito tornou-se o grande intelectual de uma sociedade em novas articulações teóricas. O Direito Canônico passou a formação, posto almejado tanto por aqueles que desejavam conviver com um Direito Natural de inspiração liberal. destacar-se entre as fileiras do pensamento acadêmico, como, e Paralelamente, outra situação marcou esse contexto principalmente, pelo destaque político atribuído ao profissional de tensão. Os jovens alunos das escolas jurídicas provinham, do direito. em grande parte, das oligarquias rurais brasileiras e tomavam Entretanto, os primeiros anos dessas escolas não conhecimento nas academias das idéias liberais. Seriam esses cumpriram imediatamente a aspiração de independência alunos os futuros responsáveis pela formação de uma elite cultural da metrópole. Segundo Fonseca, o país, logo após cultural do jovem Estado, o que talvez explique as características a Independência, não contava com aparatos institucionais bastante próprias que os ideais liberais tomaram no Brasil, como, culturais necessários para a criação e circulação de um saber por exemplo, a conciliação entre a liberdade de agir consagrada e um aparato jurídico. Assim, não restou outra saída senão no Código Penal de 1830 e a figura do escravo. recorrer às velhas leis da Metrópole, como as Ordenações Filipinas e a legislação portuguesa colonial, contando ainda com intensa influência da formação jurídica de Coimbra . 8 2.1. Formação universitária: período de Olinda Segundo Schwarcz, a cidade de Olinda não foi A nova, nação, entretanto, foi recebendo paulatina- escolhida por acaso para abrigar uma escola de Direito. mente, novo conjunto de idéias oriundas da Europa, marcadas De fato, pairava sobre toda a Província de Pernambuco um pelo signo liberal, que possibilitaram a delimitação do Brasil sentimento “revolucionário e intelectual”, talvez conseqüência SCHWARCZ, Lilia Moreitz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, p. 141. SCHWARCZ, L. M. Ibidem, p. 142. 7 SCHWARCZ, L. M. Idem, p. 142. 8 FONSECA, R. M. Os juristas e a cultura jurídica Brasileira na segunda metade do século XIX, p. 5. 9 FONSECA, R. M. Idem. 5 6 79 Artigo 07 dos importantes acontecimentos políticos vividos em 1817, noções liberais, muitas vezes aprendidas nas salas de aula do 1821 e 1824. Schwarcz sugestiona que tal escolha poderia ser interior do Seminário. ainda uma forma de conter “certo espírito republicano” de inspiração liberal que vigiava a região10 . Na ocasião da abertura do curso jurídico em Olinda esses anos revolucionários ainda estavam presentes no Essa inspiração intelectual guiada pelas idéias liberais, imaginário da cidade. Entretanto, o curso iniciado em 15 de segundo Pereira, iniciou-se ainda entre os muros do Seminário maio de 1828 no mosteiro de São Bento desde logo se mostrou de Olinda, um “velho colégio de jesuítas” transformado num uma perfeita antítese dos anos liberais anteriores. centro de idéias com formação humanística, lugar de destaque O curso de Direito de Olinda foi a consolidação na formação de uma consciência de liberdade política da direta das idéias portuguesas, uma cópia “colonial” do curso Província. Como aponta Pereira: de Coimbra, tanto que até os alunos vestiam-se à moda A consciência de liberdade fez do Seminário de Olinda aquilo que o Monsenhor Muniz Tavares – herói e historiador da Revolução de 1817, chamou uma “sementeira das idéias novas”. Como poderíamos resumir essas idéias novas? Parece que bastaria uma palavra – no seu tempo mágica – para dizer tudo: Liberalismo. Seria o liberalismo apenas uma atitude contra o absolutismo? Em parte, sim; mas não será exagero dizer que era “cultura” na sua significação genérica. Era essa “cultura” quase essencialmente européia, mas também americana, que o Seminário iria fornecer aos padres ou simplesmente àqueles que, mais tarde, na expressão do próprio Muniz Tavares, seriam “jovens hábeis a empregos”. Enfim, uma espécie de Escola de estudos superiores, como já ficou dito. Mas também uma escola de liberalismo nesta primeira fase, que, entre a Conspiração dos Suassuna e a Revolução de 1817, recebeu a influência das idéias que, em Portugal, haviam modificado o Estatuto da Universidade de Coimbra sob a influência de Pombal. O curioso é que tais mudanças, em Portugal, haveriam de produzir no Seminário de Olinda, em plena revolução de 1817, um radicalismo antilusitano que nos levaria a descolonização, da qual a Convenção de Beribéri, em 1821, seria uma página definitiva, proclamando Pernambuco um governo autônomo, sob a presidência de Gervásio Pires Ferreira, onze meses antes do grito de 7 de setembro de 182211 . Diante da aclamação de um ideal revolucionário e lusitana, usando “chapéu alto, fraque e sobrecasaca”. Segundo Schwarcz, “devido ao isolamento da Província, tudo vinha de Portugal: os costumes, a maioria dos professores e mesmo boa parte dos alunos”12 . Funcionando com instalações precárias, corpo docente mal remunerado, despreparado e com ausências freqüentes, acabou promovendo uma revolta dos alunos perante o descaso com a situação do curso. No que diz respeito à produção acadêmica, a Escola de Olinda pouco contribuiu, restando marcada pela influência intensa da Igreja e o jus-naturalismo católico, pela rigidez dos cursos e pela predominância de obras estrangeiras. O orgulho republicano pernambucano encontravase definitivamente diluído entre as casacas religiosas e conservadoras do curso de Direito. A partir de 1851, segundo Pereira, começaram a circular em Olinda boatos sobre uma possível transferência da “Academia de Ciências Sociais e Jurídicas” para o Recife. Uma transferência que acabou se consumando em 1854, mas não sem antes provocar uma série de manifestações de inconformismo. Segundo Pereira, a própria Câmara Municipal de Olinda dirigiu dois Memoriais, um ao Imperador, datado em 30 de julho de 1853, e outro endereçado como representação à Assembléia Geral, na data de 9 de agosto de 1852. Ambos os Memoriais lamentavam a destituição da Academia de Olinda, a perda de seus lentes, de seus alunos e da sua “tradição literária”. O argumento de permanência da Escola era sua semelhança com hábitos e costumes de Coimbra. Nesses memoriais, que realizavam um apelo pela importância histórica da província, chamava-se o Recife de “feliz rival”13 . da participação efetiva dos padres nas revoltas políticas, não Vinte e seis anos após sua fundação, a Escola de restou alternativa para a Coroa senão fechar o Seminário de Direito transferiu-se de Olinda para o Recife, dando início Olinda, que só foi reaberto em 1822. Assim, sufocou-se debaixo a uma nova etapa na construção do saber jurídico nacional, de castigos ferozes uma iniciativa republicana inspirada em marcado pelo desenvolvimento criativo e inovador do Direito. SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 143. PEREIRA, Nilo. A faculdade de direito do Recife 1927-1977. Ensaio biográfico. v. 1. Recife: Ed. Universitária, 1977, p. 106. 12 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 144. 13 PEREIRA, N. A faculdade de Direito do Recife 1927-1977. Ensaio biográfico, p. 138. 10 11 80 A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX 3. Faculdade de Direito do Recife brasileiro. Alguns dos antigos problemas, como a precariedade A transferência da Faculdade de Direito de Olinda das instalações físicas, permaneceram, entretanto, em relação para o Recife pode ser considerada uma virada intelectual, à produção intelectual, sem dúvida, estávamos diante de outra pois, na nova localidade, teve início um inovador processo realidade. de produção acadêmica. Aos poucos, a opressiva influência Outras importantes modificações decorreram das da Igreja e de Coimbra foi mitigada, abrindo espaço para mudanças curriculares empreendidas nos anos seguintes. assimilação de outros ideários importantes na construção do Segundo Schwarcz, a reforma curricular de 1879 estabeleceu saber jurídico nacional. De fato, segundo Fonseca, foi a partir o chamado “ensino livre”, abolindo a obrigatoriedade das da segunda metade do século XIX que se pode identificar a presenças e dividindo o curso em duas partes distintas: consolidação de uma “cultura jurídica” brasileira, da produção “sciencias juridicas e sciencias sociais”. Assim: de um saber jurídico experimentado diante de uma nova realidade no interior dos cursos jurídicos14 . A partir dessa data, ao programa de “sciencias A nova etapa de Recife iniciou-se a partir da realiza- jurídicas” corresponderiam os cursos de direito ção de uma reforma acadêmica em 1854 (Decreto 1386), tendo natural, romano, constitucional, civil, criminal, como mote a disciplina e a moralização da organização do cur- comercial, legal, teoria e prática do processo. Já o curso so. Desse modo, passaram a ser realizados exames preparató- de “sciencias sociais” seria composto pelas cadeiras rios sérios, com calendário rígido de aulas (entre 15 de março de direito natural, público, universal, constitucional, e 15 de outubro), normas disciplinares duras (que contavam eclesiástico, das gentes, administrativo, e diplomacia, inclusive com castigos) para alunos e a limitação do número história dos tratados, ciência da administração, de reprovações possíveis, além da redução das ausências dos higiene pública, economia e política18 . lentes15 . Todavia, a estrutura curricular do curso não foi muito alterada nesse momento. Segundo Fonseca: Todas essas medidas tomadas em conjunto sinalizaram para uma nova possibilidade acadêmica em formação. Uma “guinada teórica” foi aclamada por intelectuais lentes Agora, como também antes, se estudavam no primeiro e alunos, interessados em afastar definitivamente a influência ano as cadeiras de direito natural, público, análise da religiosa e, especialmente, a “metafísica”, das reflexões jurídicas Constituição do Império, além de direitos das gentes para, desse modo, encontrar o estatuto “científico” do direito. e diplomacia. No segundo ano havia a continuação Estava consolidada a chamada “Nova Escola do Recife”. das matérias do ano anterior, bem como o estudo de direito público eclesiástico . 16 São notórios os intelectuais que se destacaram nessa empresa acadêmica, com destaque para Tobias Barreto e, depois, Silvio Romero. Em relação a Romero, ficou famosa sua Seria possível supor, diante do conteúdo disciplinar do curso, certo vigor de um tipo de saber jurídico predominante nesse tempo, marcado por um “jusnaturalismo teológico e pré-liberal”. A influência católica dividiu espaço com teorias defesa de doutoramento realizada em 1875, em que, diante de sua banca, decretou enfaticamente a “morte da metafísica”19 . Mas qual era o conteúdo desse cientificismo buscado por esses intelectuais? modernizantes, sendo a “reflexão jurídica deste período está Não foi apenas a influência da metafísica e das marcada por uma penetração um tanto problemática do doutrinas religiosas que o grito de Romero atingiu. A geração racionalismo iluminista europeu, que ingressa no meio cultural de acadêmicos que se estava se formando, influenciada pelo do direito num ecletismo de concepções teóricas de difícil ideário positivista, tinha como objetivo transformar uma conciliação”17 . antiga realidade jurídica e social num novo signo, do moderno, Todavia, o início dos 70 significou a formação de um da “civilização”. Os novos modelos teóricos adotados eram novo tempo. Foi nessa época que chegaram ao país um novo influenciados precisamente pelo naturalismo, o evolucionismo conjunto de idéias marcadas pelo “positivismo-evolucionista”, darwinista e a biologia, apresentados ao Recife a partir das que influenciou intensamente a produção do saber jurídico leituras de Tobias Barreto sobre autores alemães como FONSECA, R. M. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX, p. 6. SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p.146. 16 FONSECA, R. M. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX, p. 6. 17 FONSECA, R. M. Idem. 18 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 147. 19 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p.148. 14 15 81 Artigo 07 Haerckel e Bucckle, bem como da aceitação de autores como para formatar a realidade dos conteúdos jurídicos ministrados Spencer, Darwin, Littré, Leplay, LeBon e Gobineau. nessas aulas. A meta de transformar o direito em ciência perseguida Presume-se, a partir do Código Criminal Imperial por essa geração tinha como escopo a interceção entre o saber de 1830, que o estudo do direito penal esteve marcado por jurídico e as determinações das “ciências” naturalizadas. certa tendência liberal. Essa tendência pode ser vislumbrada A “Lei” deveria seguir os mesmos mecanismos da biologia ainda na adoção de uma bibliografia nos cursos composta por evolutiva e da antropologia física e determinista, pautadas Beccaria, Benthan e Filangieri21 . por critérios experimentados, certos e totalmente afastados A forte marca liberal contida na codificação criminal da nebulosidade dos subjetivismos. As palavras de Schwarcz de 1830 contrastava em muito com uma opressora organização apontam bem esse acontecimento: social. Os ideais iluministas e a marca da noção de um sujeito de direito dotado de livre arbítrio conviviam com a realidade A insistência na cientificidade e na especificidade dessa escravocrata da sociedade brasileira. O garantismo clássico prática era tamanha que talvez a melhor definição para delineado pela defesa das liberdades individuais e de uma esses homens tenha sido encontrada por Laurindo sociedade livre e igualitária tornou-se, pouco a pouco, uma Leão, professor de Direito Criminal dessa faculdade. teoria jurídica descolada das relações jurídicas (especialmente Servindo-se de uma explicação do antropólogo penais) vividas diariamente. Topinard, o jurista defendia a existência de “três De fato, a partir da segunda metade do século XIX, ordens do espírito: os observadores, os creadores, e especialmente durante os anos 70, as demandas sociais, os os mixtos. Aos creadores corresponderiam os artistas, arranjos classistas, a figura do povo e, principalmente, as aos mixtos os filósofos e aos observadores os que questões da raça, tomaram parte nas reflexões acadêmicas22 . produzem sciencia. No Brasil, os que produzem o Direito positivo20 . Estava promovido o afastamento do saber jurídico das chamadas “humanidades”, inaugurando a era a instância científica. No Recife, a experiência das ciências naturais marcou decisivamente a produção acadêmica da Faculdade, influenciando em certos aspectos diferentes áreas do direito. Foi, entretanto, na produção acadêmica vinculada os estudos criminais que essa mentalidade científica encontrou campo fecundo e, diante das idéias de Lombroso e Ferri, um saber do tipo criminológico passou a se delinear na cidade de Recife. 4. Condição histórica do saber criminológico Ao atribuir uma historicidade ao saber criminológico Os ideais liberais do classicismo penal perderam fôlego diante da possibilidade “moderna” de se construir uma ciência específica capaz de dar conta do elemento humano, um instrumental científico mais de acordo com a necessidade de compreensão da ordem social e do desenvolvimento da nação. A assimilação entusiasmada do ideário positivistanaturalista produziu no país uma nova postura, segundo Schwarcz, ainda desconhecida, que procurava entender as demandas sociais (e jurídicas) através de um “olhar científico”, de uma experiência que “implicou não apenas a absorção das interpretações estrangeiras como sua utilização enquanto matrizes de pensamento”23 . Se era preciso encontrar uma saída para os problemas da nação, era necessário um instrumento de análise social e individual ambicioso. Nessa linha, o grande destaque foi a figura do mestiço. construído no século XIX em nosso país, o presente artigo A miscigenação, a “mestiçagem” da população brasileira busca compreender – dentro dos limites possíveis as condições tornou-se centro de uma série de debates científicos, como uma de possibilidade de formação de tal saber. Condições essas que forma – para o bem ou para o mal de lidar com os problemas foram experienciadas no interior de uma realidade histórica nacionais. única, no caso, os acontecimentos vividos desde a formação da A questão da raça ganhou uma relevância muito forte Escola do Recife e seu posterior desenvolvimento na segunda a partir das teorias evolucionistas-darwinistas. Num país em metade do século XIX. que predominam mestiços, multiplicam-se as possibilidades de Já no período olindense da Faculdade de Direito, trabalho “experimental”. O “critério etnográfico” tornou-se o ensino do direito penal figurava entre as disciplinas chave para desvelar os problemas sociais. Destaca-se a figura ministradas. Entretanto, ainda faltam fontes históricas precisas de Silvio Romero, importante intelectual da Escola do Recife, SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 149. FREITAS, Ricardo de Brito. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 256. 22 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 146. 23 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 153. 20 21 82 A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX um entusiasta da ciência “naturalista e evolucionista” que direito penal era a noção de crime (conduta necessariamente acreditava (como poucos) que a mestiçagem era uma saída descrita em lei) como um ato de vontade livre e autônoma do para uma possível “homogeneidade nacional”24 . indivíduo. Sob o impacto das “ciências positivistas”, o crimi- Para Romero, a noção de “raça” era central para noso tornou-se o centro de toda reflexão jurídico-penal. As o desenvolvimento de qualquer tipo de conhecimento, causas da criminalidade deveriam ser procuradas, analisadas especialmente o jurídico. Tudo devia passar pelo crivo dessa e experimentadas a partir do homem que cometeu o crime, mestiçagem de forma a aparecer como produto final de que aparece como um corpo individualizado, portador de al- uma sociedade (brasileira) em formação. Entretanto, para gum traço degenerado ou não capaz de dizer a verdade desse Schwarcz, tal “elogio à mestiçagem” do discurso romeriano crime. estava longe de ser uma defesa da igualdade entre os homens. Não demorou muito para que as primeiras reflexões Como um “bom” teórico de seu tempo, Romero acreditava no jurídicas sob influência do positivismo ganhassem força na determinismo social, segundo o qual cada homem era desigual doutrina nacional. Inúmeros artigos sobre a importância por natureza, estando os mais aptos vitoriosos na seleção do método científico na explicação do criminoso foram natural da vida . O destaque de Romero no assentamento publicados em revistas, em especial na Revista acadêmica da do ideário positivista na produção jurídica nacional foi bem faculdade de direito do Recife de 1891. Idéias que inflamaram delineado por Schwarcz: a partir da rápida chegada ao Brasil das obras de Lombroso, 25 Ferri, Garofalo, entre outros, apenas alguns anos depois de Sem entrar nos meandros da teoria de Romero, suas publicações em seus países de origem. mais importa entendê-lo enquanto uma grande Logo também foram iniciadas tentativas de reforma influência, um espécie de “pai-fundador”. É na da legislação penal brasileira de acordo com princípios mais predileção do tema da mestiçagem; no apego aos “modernos”, “científicos” e genuinamente nacionais. Se o modelos deterministas biológicos e etnográficos; na Código Penal de 1830, de inspiração liberal, sofria com sua fala radical e cientificista, que vemos a força desse desarticulação com a realidade social escravista, o novo mestre que elabora a teoria e cria um grupo. A partir ataque partia agora da necessidade de buscar uma legislação de Romero, o direito ganha um estatuto diferente no nacionalizada que atendesse às demandas específicas da Brasil. Passa a combinar com antropologia, se elege sociedade brasileira mediante uma leitura científica, razoada27 . como “sciencia” nos moldes deterministas da época e Nesse sentido, os saberes jurídico-penais existentes se dá o direito de falar e determinar os destinos e os no país encontravam-se numa situação inusitada: de um lado, problemas da nação . o alicerce teórico do Código Penal pautado em idéias liberais; 26 de outro, um novo tipo de saber delineado pela experiência da O ideário positivista provocou a emergência de uma ciência positiva, que colocava a figura do criminoso no centro nova forma de se conceber a experiência jurídica, de construir da reflexão jurídica. Esse tipo de saber positivo denominou-se seus critérios de saber e verdade. A centralidade dessa nova “criminologia”. experiência era o homem (positivado, naturalizado) como Como definição, a criminologia só foi possível a produto do meio natural e social específico. Um homem que partir da entrada dos saberes “científicos”, naturalizados, deixa de possuir um substrato universalizante, livre, e torna-se características do ideário positivista presente a partir dos anos coisificado, determinado. 70, especialmente na Escola do Recife. Tal ideário encontra campo fecundo no direito penal Essas duas formas de pensar os saberes penais brasileiro. A assimilação do positivismo provoca uma relativa conviveram durante o desenvolvimento dessa escola. Entre o desconstrução no saber penal delineado pela experiência libe- Código Penal e as reflexões acadêmicas positivadas, um novo ral clássica. A entrada o homem como centro de todo saber tipo de saber se desenhou. Talvez isso explique o surgimento de possível implicou numa nova construção das relações entre vários pensadores que tentavam conciliar a realidade da lei, as crime e criminoso. Sob a influência liberal, a centralidade do reflexões da ciência e a realidade brasileira. SCHWARCZ, L. M., Idem. SCHWARCZ, L. M., Ibidem, p. 155. 26 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 155. 27 SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 156. 24 25 83 Artigo 07 5. Criminologia e Escola do Recife: importância de Tobias Código de Leis único e científico para todo o território nacional Barreto e a temática da delinqüência ganharam destaque nas produções O ideário positivista atrelado ao estudo do direito intelectuais de então. A preferência pelo direito criminal ficou penal e da criminologia encontrou ambiente fecundo no interior evidente no esforço para a articulação dos modelos científicos da Escola do Recife. Lá surgiram importantes pensadores disponíveis com as determinações raciais tão próprias da criminais responsáveis pela assimilação e propagação da sociedade brasileira. proposta “científica e evolutiva” de um direito penal mais Mas que tipo de conhecimentos migraram para esfera apropriado para pensar as questões sociais modernas e afastar penal? O fenômeno do criminoso apareceu a partir das lentes definitivamente o “fantasma” metafísico. da antropologia criminal determinista, da antropometria, da Nesse sentido, observou Moniz Sodré, em 1907: frenologia, da fisiognomonia, da psiquiatria organicista, entre outros saberes oriundos do vasto arsenal médico então conhe- O aparecimento das novas doutrinas que abrigaram cido. E justamente coube a um médico, Cesare Lombroso, a amplos e fecundos horizontes ao direito criminal transposição desse conhecimento para a experiência jurídica nada mais foi do que uma conseqüência inevitável do criminoso. da lei natural da evolução que consiste, no campo da Moniz Sodré assim definiu a antropologia criminal: ciência, na aplicação do método positivo ao estudo de todos os ramos do conhecimento humano. O direito Nós podemos definir a antropologia criminal como o penal, como ciência social e jurídica, atravessa no ramo da antropologia geral que trata do delinqüente momento presente a mesma fase por que já passou, e dos seus tipos fundamentais. Nela se estuda o crimi- anos atrás, a medicina e a patologia mental, despindo- noso sob o ponto de vista somático e psíquico, isto é, se de todas as velharias da metafísica no exame dos suas qualidades anatômicas, fisiológicas e psicológi- seus problemas capitais . cas, bem como ainda sua vida de relação como o meio 28 físico e social. E por esses estudos, executados com o Segundo Schwarcz, talvez houvesse motivos especiais maior rigor científico, de acordo com as exigências do para o grande desenvolvimento desse “ideário”, por vezes método experimental, ela chega a conclusão de que radical, no Recife. Tal apego às possibilidades científicas e à o criminoso representa uma variedade antropológica, idéia de modernização do direito e da sociedade podem ser distinguindo-se profundamente do homem são, de- explicadas pelo afastamento da Escola dos centros de decisão senvolvido e civilizado, por um conjunto de anoma- política do país, o que contribuiu para a consolidação de um lias orgânicas e psíquicas, hereditárias e adquiridas, as sentimento profundo de vanguarda científica. A devoção à quais tornam possível sua classificação em diferentes ciência beirava um radicalismo sem precedentes. A aplicação categorias ou tipos especiais30. do determinismo positivista rompeu as cadeiras jurídicas e abarcou todo tipo de conhecimento, como a literatura, a poesia Selecionar, medir e classificar uma infinidade de e a crítica, apontado não mais para uma teoria científica, mas, rostos, tipos, narizes, testas, tatuagens, crânios, enfim, esgotar sim, para uma “atitude científica” por parte dos acadêmicos. as possibilidades de anomalias cerebrais, faciais ou qualquer O direito penal correspondeu como nenhuma outra traço incomum capaz de explicar a origem de um criminoso área do direito aos anseios positivos. Tanto que grande se tornou a grande experiência de saber criminológico. A forte número de artigos foram publicados na revista Acadêmica, preocupação com a “mestiçagem” e uma suposta “degeneração seguidos de publicações de vários professores. Schwarcz dá da raça” visualizada na figura do criminoso formou, sem conta em sua pesquisa de um dado generoso: examinados dúvida, ambiente acolhedor para o desenvolvimento de uma 194 artigos publicados ao longo de 40 anos – 1891 a 1930 – criminologia etiológica. 51 versavam sobre direito criminal, número inferior apenas aos Entre os principais intelectuais da época figurou João 61 artigos relacionados à própria faculdade do Recife . Ainda Vieira de Araújo, professor de direito criminal da Faculdade de segundo a pesquisadora, esses números revelam uma correlação Direito do Recife, a quem coube a realização da primeira obra entre ensaios produzidos por professores e alunos e os grandes de importância sob influência do positivismo, o “Código criminal temas do momento. A preocupação com a elaboração de um brasileiro. Comentário philosophico-scientífico”, editado em 188931 . 29 MONIZ SODRÉ, Antonio Aragão. As três escolas penais. 5. ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos S.A. 1952. SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 158. 30 MONIZ SODRÉ, Antonio Aragão. As três escolas penais, p. 58. 31 FREITAS, Ricardo de Brito. As razões do positivismo penal no Brasil, p. 303. 28 29 84 A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX Adelino Filho, é outro importante pensador positi- Por último, resta destacar a importante figura de To- vista oriundo do Recife, publicou na revista Acadêmica da Fa- bias Barreto, considerado o mais célebre criminalista brasileiro culdade de Direito do Recife, em 1891, um artigo sob o título A da época, a quem coube um dos primeiros contatos com novo nova escola de direito criminal, uma saudação entusiasmada das ideário germânico que acabou por transformar a forma de pro- novas idéias científicas recém chegadas do velho continente32 . dução de conhecimento jurídico no Recife e em nosso país. Foi Viveiros de Castro foi outro famoso criminalista formado pelo Recife, autor da primeira obra brasileira sobre sociologia criminal, A nova escola penal de 189433. um dos principais nomes da geração dos anos 70, responsável por se auto-definir como “o arauto de um novo tempo”. Sob o impacto de autores alemães como Haerckel Moniz Sodré, embora professor da faculdade da e Bucckle, e de outros como Spencer, Darwin, Littré, Leplay, Bahia, foi outra importante figura na construção das idéias LeBon e Gobineau, Barreto liderou em nosso país a formação e criminológicas-positivas em nosso país. Escreveu a importante consolidação de um novo tempo, de uma nova forma de pensar (e até hoje muito lembrada pelos criminalistas) obra As três a sociedade e o homem brasileiro, segundo uma “modernidade escolas penais, de 1907, em que tece poderosos elogios à cultural” assentada nas recentes notícias científicas. nova mentalidade do direito penal, que considerava uma A recepção desse novo ideário científico possibilitou conseqüência da “evolução” das idéias, uma conseqüência o questionamento da antiga ordem social instituída tanto inevitável do desenvolvimento humano34 . pelo Império quanto pela excessiva influência da Igreja. Aureliano Leal, promotor público na Bahia, destacou-se A modernidade perseguida por esse grupo e seu discurso pela publicação de Germens do crime em 1896, propondo reformas contestador assegurou a entrada de saberes secularizados e práticas com base em teses positivas de Garofalo e Ferri35 . temporais no interior do cientificismo nacional. O afastamento Phaelante da Câmara escreveu em 1891 o artigo da metafísica, das abstrações universalizantes e da irrealidade Algumas idéias expendidas ao começar o curso do processo social levou Barreto a questionar o jusnaturalismo presente criminal na segunda cadeira da quarta série jurídica, em que na Escola e buscar uma forma de entender o direito em se dedica a tratar o tema da pena de morte sob o enfoque conjunto com a realidade social, apoiado na razão inerente positivista36 . ao ser humano. Dessa forma, afirma Freitas, Barreto afastou- José Hygino Duarte Pereira, professor da Faculdade se das teses liberais defendidas pela academia. Procurou nos do Recife e ministro do Supremo Tribunal Federal, foi germânicos a possibilidade de construção de um saber jurídico responsável pela tradução do Tratado de direito penal alemão que valorizasse o homem e sua realidade. de Von Liszt para o português em 1899. O prefácio que Em relação ao saber criminológico, Barreto nos escreveu à obra é considerado um dos mais importantes textos proporcionou importantes obras como Menores e loucos em do positivismo brasileiro37 . direito criminal e Prolegômenos do estudo de direito criminal. Tito Rosas publicou em 1895 um artigo na revista Essas obras revelaram forte tendência a aceitar os postulados Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, intitulado Sobre positivistas, incluindo uma notícia sobre a obra de Lombroso: a tendência do direito criminal moderno38. Laurindo Leão, professor da Faculdade de Direito do Não há muito veio-me ás mãos a celebre obra – L’Uomo Recife, e ainda Clóvis Bevilácqua, importante jurista nacional delinquente, – do grande psychiatra e professor italiano que em alguns momentos de sua vasta obra deitou seu olhar Cesare Lombroso. É uma obra que pertense ao sobre a problemática do direito penal e da criminologia, pequeno numero dos livros revolucionários, aos qaues publicou, nesse sentido, A aplicação do método comparativo ao todo o leitor consciente póde applicar as palavras de estudo do direito, na revista Acadêmica da Faculdade do Recife Ezequiel, fallando daquelle volume que Deus lhe dera e Criminologia e direito, destacando forte traço positivista para devorar: – Et comedi illud; et factum est in ore nessas produções39. meo sicut mel Dulce. Eu também a devorei40. FREITAS, R. B. Ibidem, p. 312. FREITAS, R. B. Ibidem, p. 297. 34 MONIZ SODRÉ, Antonio Aragão. As três escolas penais, p. 16. 35 FREITAS, Ricardo de Brito. As razões do positivismo penal no Brasil, p. 313. 36 FREITAS, R. B. Ibidem, p. 324. 37 FREITAS, R. B. Ibidem, p 325. 38 FREITAS, R. B. As razões do positivismo penal no Brasil, p. 328. 39 FREITAS, R. B. Ibidem, p. 336. 40 BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Obra em fac-símile. Brasília, 2003, p. 65. 32 33 85 Artigo 07 E prosseguiu: Colocou-se ao lado das teorias de Darwim e Haeckel, destacando a noção de “herança” psico-física como Com effeito, qualquer que seja a admiração que se importante fator no desenvolvimento do criminoso45. Apesar seinta diante dos thesouros de saber accumulados na de se preocupar com as causas da criminalidade, entretanto, obra mencionada, não se póde reprimir uma pequena Barreto não abriu mão de uma teoria do delito, percebendo e censura, que essa mesma riqueza de sciencia occasiona mantendo uma dupla dimensão, formal e material, do delito. e provoca. Não sou suspeito neste meu juízo. O livro Esses ligeiros apontamentos revelam parte da de Lombroso, seja-me licito dize-lo, é italianamente complexidade das reflexões de Tobias Barreto sobre o direito escripto e germanicamente pensado41. penal e a criminologia brasileira. Foram suficientes, no entanto, Entretanto, o louvor ao método lombrosiano (e ao modelo positivista em geral) encontrou limite teórico. Foram precisos seus elogios às possibilidades classificatórias da antropologia criminal para o estudo do criminoso, mas Barreto não abandonou algumas noções “clássicas” sobre a teoria do delito. Segundo Freitas, Barreto, apesar de adepto do positivismo, ainda mostrou-se partidário do livre-arbítrio como conceito indispensável à dogmática penal. A vontade livre, para ele, não podia ser negada pela causalidade da natureza. Era, assim, uma conquista histórica do ser humano, resultado da evolução humana e social, não determinada mecanicamente, mas, sim, mediante uma força voluntária e livre42. O direito foi definido como “a disciplina das forças para colocá-lo como principal criminalista de sua época. Um merecido elogio a um pensador que, diante do caldeirão de idéias presentes em sua época, soube avaliá-las e deu linha para a formação de um saber com jeito “nacionalizado”. Um saber como a criminologia aporta em nosso país carregado com as condições de saber e poder presentes naquele momento histórico e cresceu em nosso país graças a juristas que ousaram a pensar o “novo”. 6. Referências BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Obra em fac-símile. Brasília, 2003. FREITAS, Ricardo de Brito. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002. sociaes, o principio da selecção legal na lucta pela existência. De FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica accordo com a philosofia monistica e com os dados da sciencia brasileira na segunda metade do século XIX. Conferência moderna, posso ainda defini-lo: o processo de adaptação das apresentada no I Congresso Brasileiro de História do Direito, acçoes humanas à ordem pública, ao bem estar da comunhão realizado em Florianópolis entre os dias 8 e 11 de setembro de política, ao desenvolvimento geral da sociedade”43. 2005. E o crime “é um produto da força voluntária e livre; onde quer que não exista nexo de causalidade entre essa força e o fato malsinado de criminoso, aí também não existe crime”44 . Barreto propôs, segundo Freitas, um método para a ciência penal “histórico-filosófica”, procurando conciliar a atividade dogmática com a crítica do jurista. A dogmática seria um trabalho de exegese e a crítica ocupa-se-ia das lacunas da lei. Assim, com base nesse método seria possível afastar o direito penal da metafísica. Quanto às causas da criminalidade, Barreto admitiu uma variedade de fatores que contribuem para a criminalidade, FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2003. SODRÉ, Antonio Aragão Moniz. As três escolas penais. 5. ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos S.A., 1952. SCHWARCZ, Lilia Moreitz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras. PEREIRA, Nilo. A Faculdade de Direito do Recife 1927-1977, Ensaio biográfico. v. 1. Recife: Universitária, 1977. como as influências químicas, físicas, e sociais, mas procurou corrigir certos “exageros” deterministas. BARRETO, T. Ibidem, p. 66. FREITAS, R. B. As razões do positivismo penal no Brasil, p. 288. 43 BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Obra em fac-símile. Brasília, 2003, p. 11. 44 FREITAS, R. B. Ibidem, p. 289. 45 FREITAS, R. B. Ibidem, p. 291. 41 42 8 Crimes Tributários na Legislação Brasileira Artigo 08 Crimes Tributários na Legislação Brasileira Maicon Guedes1 Leis ditadas com o fim de atribuir benesses ou impor perseguições pessoais trazem consigo o vício típico de desvio de finalidade e violam o princípio da igualdade2 . 1. Resumo. 2. Introdução Histórica. 3. Crimes de Natureza Material. 3.1. Omissão de informação ou prestação de declaração falsa. 3.2. Fraude. 3.3. Falsidade material. 3.4. Utilização de documento falso. 3.5. Recusa ou omissão de fornecimento de documento. 3.6. Desatendimento de exigência de autoridade fazendária. 4. Crimes de natureza formal ou de mera conduta. 4.1. Omissão de informação ou prestação de declaração falsa sobre rendas, bens ou fatos. 4.2. Nãorecolhimento de tributo cobrado ou retido. 4.3. Corrupção no incentivo fiscal. 4.4. Desvio de finalidade de incentivo fiscal. 4.5. Sistema de processamento de dados paralelo. 5. Crimes perpetrados por funcionários públicos. 5.1. Extravio de documentos fiscais. 5.2. Corrupção passiva tributária. 5.3. Advocacia administrativa fiscal. 6. Conclusão. 7. Referências. 1. Resumo Inarredável a importância da arrecadação para o A preocupação, além de ligada à necessidade/ viabilidade de criminalização do desvio ardiloso da esfera Estado, sem a qual este não poderá, salvo se maciçamente tributária, é focada, primacialmente, na unidade do presente no mercado, oferecendo bens e serviços, na busca do Sistema Penal e na manutenção da isonomia preconizada lucro, manter seu caráter de interventor social, alcançando constitucionalmente. à população bens/serviços que a sociedade civil não Com o arsenal de possibilidades posto em favor forneceria/produziria por falta de lucratividade ou mesmo do contribuinte que frauda a Ordem Tributária para furtar- pela necessidade de atendimento de classes sociais que não se à Lei Penal tributária, a sensação criada é de impunidade podem retribuir por itens que lhe são necessários, v.g. saúde, perante toda a sociedade. Desconfiança que invade os demais educação, alimentação, transportes, acesso ao judiciário. O setores do Direito Penal, criando um ar de seletividade social descumprimento da obrigação tributária, em regra utilizando- para a persecução penal. se de meios fraudulentos, implica na incidência do Direito Penal como forma de prevenir e retribuir a conduta desviante. Abstract O discurso declarado do Estado passa a idéia de Inarredável the importance of the collection for the punição severa àqueles que afrontam fraudulentamente a State, without which this will not be able, saved if massive Ordem Tributária. Desde a onda criminalizante iniciada na present in the market, offering goods and services, in the década de 90, no afã de tutelar direitos difusos, o Estado search of the profit, to keep its character of social interventor, busca, num diapasão demagógico, insinuar que promove a reaching to the population good/services that the civil society criminalização de atos de todos os estamentos sociais. would not supply/would produce due to same profitability or Entretanto, o discurso real prega um afrouxamento for the necessity of attendance of social classrooms that cannot da política criminal quando a clientela se trata de classes repay for item that it is necessary, v.g. saúde, education, feeding, sociais mais abastadas. transports, access to the judiciary one. The descumprimento of Maicon Guedes, advogado, Professor de Direito Penal e Processo Penal da UnicenP, Faculdades Santa Cruz, Faculdade Dom Bosco e Uniguaçú. Especialista em Direito Tributário (UFRGS), Mestre em Direito Penal (UFPR). [email protected] 2 BARROS, Suzana Toledo de. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 185. 1 87 Artigo 08 the obligation tax, in rule if using of fraudulent means, implies No entanto, não existia um sistema normativo que abarcasse in the incidence of the Criminal law as form to prevent and to todo o país, existindo sistemas para cada ente arrecadador. repay the desviante behavior. Historicamente, as sanções penais ligadas à matéria The declared speech of the State passes the idea of tributária têm sua primeira aparição na repressão ao severe punishment to that they confront the Order fraudulently contrabando, tipificado nos Códigos Penais de 1830, 1890 Tax. Since the criminalizante wave initiate in the decade of e 1940, considerando-se, entretanto, que o bem/interesse 90, in the eagerness to tutor diffuse rights, the State searchs, jurídico protegido não era a lesão ao Erário Público, mas a in a demagógico diapasão to insinuate that she promotes the segurança nacional. Em momento posterior, a Lei 3.807/60, criminalização of acts of all the social estamentos. versando sobre a Previdência Social, considerou como crime However, the real speech nails a afrouxamento of the criminal politics when the clientele if deals with supplied social classrooms more. de apropriação indébita o não-recolhimento das contribuições dos empregados retidas pelos empregadores. A Lei 4.357/65 estendeu a figura ao Imposto de Renda The concern, beyond on to the necessity/viability of retido na fonte e de selo, e o Decreto-Lei 326/67 criou a figura criminalização of the ardiloso shunting line of the sphere tax, da apropriação indébita referente ao Imposto sobre Produtos is focada, primacialmente, in the unit of the Criminal System Industrializados4 . A criminalização da delinqüência tributária, and the maintenance of the isonomy praised constitutionally. de forma específica, no ordenamento brasileiro, tem sua gênese With the armory of possibilities rank for the contributor somente na década de 1960, juntamente com o estabelecimento who embezzles the Order Tax to steal it the Criminal Law tax, de uma nova ordem constitucional no país, por meio da qual se the bred sensation is of impunity before all the society. Diffidence consolidou um regime político de exceção. that invades the too much sectors of the Criminal law, creating a air of social selectivity for the criminal persecution. O regime militar elaborou a Lei 4.729/65, definindo o crime de sonegação fiscal, descrevendo condutas ilícitas de forma casuística, em sua maioria relacionadas a deveres 2. Introdução Histórica específicos do contribuinte em relação ao fisco. As condutas, Ao longo da história, o processo de exação tributária que caberiam genericamente na tipificação dos artigos 171, vem sofrendo contínuo frenamento. Enquanto na Idade Antiga 297 ou 298 (respectivamente, estelionato e crimes de falsidade os representantes da Igreja e do Monarca adentravam os lares material ou ideológica de documentos) do Código Penal, tomando o dinheiro e os bens dos cidadãos de Roma, sem foram tipificadas de forma a reduzir a pena que receberiam, se critérios ou bases preestabelecidas, hoje a ciência do Direito aplicados fossem os dispositivos do Código Penal. Tributário prevê limites e garantias ao contribuinte, aliás, Objetivando frenar ainda mais a sonegação fiscal, disciplina do Direito com princípios norteadores em similitude laborou-se legislação mais severa com os sonegadores, sendo com Direito Penal, destacando-se a legalidade, anterioridade e erigida a Lei 8.137, de 27/12/1990. Sobre a tipificação dos delitos tipicidade taxativa. em matéria tributária e sua relação com o Estado, é interessante A problemática ganha vulto quando percebido que, após passadas quatro décadas da criação da primeira lei penal a observação de JUARY SILVA, ao referir que a legislação sobre crimes tributários tenha surgido em dois períodos de exceção: específica, objetivando o combate à sonegação fiscal no Brasil, esta cada vez ganha mais terreno. Na verdade, os índices de Significativamente que o embrião legislativo do sonegação foram incrementados na mesma proporção em que Direito Penal Tributário tenha surgido no Brasil em a carga tributária foi sendo majorada de forma infrene. dois períodos de exceção: com a Lei 4729/65, sob o A repressão específica à criminalidade tributária teve guante do AI-1, que se superpunha à Constituição [...]; sua gênese legal, no Brasil, com o advento da Lei no 4.795/65, com a Lei 8137/90, quando, a despeito da aparente dispondo acerca do crime de sonegação fiscal que, inclusive, vigência do Estado de Direito, o país atravessava séria em seu art. 3o, preceituava: “Somente os atos previstos nesta Lei crise institucional, máxime nos campos econômico poderão constituir crime de sonegação fiscal” . e psicossocial, após o desastroso plano econômico 3 Em todas as sociedades, a figura do tributo como editado em março de 1990, que implicou, de fato, em forma de nutrir financeiramente o Estado sempre se mostrou estabelecer a lei marcial no domínio econômico, sem presente. No Brasil, os tributos remontam à época colonial. abolir a Constituição5. MACHADO, Hugo de Britto. Estudos de direito penal tributário. São Paulo: Atlas, 2002. p. 222/229. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Da sanção tributária. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 8. 5 SILVA, Juary. Elementos de direito penal tributário. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 8. 3 4 88 Crimes Tributários na Legislação Brasileira Destarte, é salutar a releitura das premissas para Art. 1o – Constitui crime contra a ordem tributária a criminalização dos crimes tributários em tempos de suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e democracia um pouco mais decantada. Indubitavelmente, o qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:11 legislador, ao dar gênese a atual lei de repressão aos delitos tributários, Lei 8.137 de 27 de dezembro de 1990, tinha dois É de se ressaltar que quando o tipo invoca o ato objetivos presentes: contornar as lacunas de aplicação da lei de suprimir/reduzir o tributo12 , destaca que o mero trânsito penal tributária, revogando, a saber, Lei 4.729/65, bem como pelas condutas preconizadas em seus incisos, sem o posterior dar fôlego à nova onda que invadia o país com a política “caça ou imediato dano ao Erário, pela redução dos pagamentos marajás”, impressa, por curtíssimo lapso temporal, pelo então efetuados à Fazenda, não configura o crime previsto no caput, Presidente da República Sr. Fernando Collor de Mello. cumprindo analisar se a conduta não configura, per si, crime Em seu primeiro objetivo, a nova lei obteve êxito, pois formal previsto no art. 2o do mesmo diploma. transpôs a lei revogada que, apesar de propor-se a combater Para a confirmação dos delitos previstos nesse artigo, a sonegação fiscal no país, foi continuamente rechaçada é necessário o procedimento do agente em reduzir ou eliminar pelos pretórios, pois utilizou como premissa a casuística e o seu passivo tributário, deixando de recolher aos cofres públicos exemplificativismo, técnicas rudimentares não só na seara o que de fato era devido após a realização de alguma espécie de penal, mas em todos os campos do Direito, que deveria ser fraude elencada nos incisos correspondentes13. orientado pela abstração, uma lei que nascia com o vírus da Por fim, cumpre ressaltar que o momento da consumação do crime previsto no art. 1o é o do recolhimento revogação incubado6. Depreende-se que a referida lei, numa leitura parcial do tributo ou o vencimento do tributo. Quando este respeitante dos princípios da legalidade e na analogia in malam foi totalmente suprimido pela conduta e em casos que o partem, que ela somente comportaria a reprimenda de um rol pagamento do tributo de várias operações é feito de forma una ínfimo de formas de se burlar o fisco7 , afrontando até mesmo (mensalmente, anualmente, etc.), o delito terá se perpetuado o princípio da isonomia, pois contribuintes com atitudes apenas uma vez, mesmo que condutas fraudulentas tenham semelhantes, causando o mesmo dano ao Erário, teriam ocorrido em diversas relações tributárias ao longo do período tratamentos díspares pelo Direito Penal Tributário . do exercício fiscal14. 8 Como objetivo secundário, a lei seguiu à risca a cartilha do Direito Penal Econômico do Terror, imposta pela 3.1. Omissão de informação ou prestação de declaração falsa política fiscal/econômica do início da década de 1990. A lei Elencada como conduta primeira das formas de acabou indo além, punindo de forma severa todas as condutas crimes tributários, está a omissão de informações ou o al- com qualquer conotação de fraude que fosse praticada contra cance para a Fazenda de declaração que não convirja com o Sistema Tributário Nacional. Tragicamente, o Direito Penal a realidade da movimentação financeira/negocial ocorrida: Tributário passou não só a reprimir os danos ao Erário ligados I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades a fraudes, mas o mero inadimplemento, como ocorre no art. 2 fazendárias. o da Lei 8.137/909. Nessa modalidade se enquadra a forma mais corriqueira de crime tributário, a sonegação de informações 3. Crimes de Natureza Material sobre as rendas auferidas ao longo do exercício fiscal, ou a Reside nos verbos nucleares do tipo previsto no informação distorcida do padrão financeiro do contribuinte. art. 1o 10 , “suprimir” ou “reduzir”, o ponto de partida para a Exemplo patente que aflora é a sonegação do Imposto de configuração da natureza material dos delitos complementados Renda. Imposto dependente de lançamento pelo sujeito passivo pelos seus incisos, ad verbo: da obrigação tributária é a convergência do auferimento de CORREA, Antonio. Dos crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 71. EISELE, Andreas. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Dialética, 1998. p. 148. CORREA, Antonio. Obra citada. p. 71. 9 OLIVEIRA, Ricardo Rachid de. A Relevância penal da inadimplência tributária. Tese (Doutorado em Direito) apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2006. 10 Evitando uma miríade de referências à Lei 8.137/90, optamos por suprimir sua reiterada lembrança. Assim, na constância de artigos sem respectiva menção da lei que o comporta, leia-se a norma como sendo pertencente à Lei 8.137/90, objeto primacial do desenvolvimento desta pesquisa. 11 Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. 12 Apesar de a lei falar em tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, falar-se-á ao longo do estudo apenas em tributo, visando à síntese do texto. Além disso, o legislador laborou em desnecessário preciosismo, visto que as contribuições sociais são consideradas tributos pelo sistema constitucional tributário. 13 LOVATTO, Alécio Adão. Crimes tributários: aspectos criminais e processuais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 76. 14 Neste sentido ver DECOIMAN, obra citada, p. 60. Contra: COSTA Jr. Paulo José da, DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, que consideram o momento da conduta como sendo o momento do crime. 6 7 8 89 Artigo 08 receita ou disponibilidade financeira do contribuinte, podendo Essa delimitação é importante para escoimar as ser reticente ou mendaz na prestação de informações15. Com efeito, a informação prestada de forma desviada, ou mesmo negligenciada, para ser configurada como elementar do inciso I, deverá ser exigida através de lei, sendo atinente a aspectos tributários, econômicos ou contábeis do contribuinte, devendo ser diretamente influente na possibilidade de supressão/redução do tributo16. A inspiração para o legislador foi o Direito Penal Tributário germânico, que prevê, no art. 370 de seu Código Tributário, que será punido quem prestar informações incorretas ou incompletas sobre fatos fiscais importantes17. Ocorrida a negligência ou alteração das informações prestadas e a posterior desistência do contribuinte em suprimir/reduzir o tributo, recolhendo seu valor correto, há que se falar em consumação do crime do art. 1o, I, contudo, restará incidente no delito do art. 2o, I, este inexigindo o dano ao Erário18 . situações em que o crime é praticado com inserção 3.2. Fraude A conduta do inciso II: fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, documento ou livro exigido pela lei fiscal, ao contrário do primeiro inciso, diz com prestação/negligência de informações de forma qualificada, pois tal atitude se dá em documentos/livros fiscais, referida informação poderia ser prestada ou omitida através de documentos auxiliares, não exigidos pela lei tributária19. Inexoravelmente, referida conduta guarda parecença com o delito de falsidade ideológica, pois em ambos se faz presente a simulação, oclusão ou alteração de fatos, incutindo falsa ilação ao agente fiscal20. Para Costa Jr. e Denari, o dolo requerido para a consumação do delito é o direto21 , em que o agente tem a vontade de fraudar a fiscalização tributária, contudo possuindo a intenção especial de posterior supressão/ redução do tributo22. O mero equívoco do contribuinte na inserção de dados equivocados no registro fiscal ou recolhimento posterior do quantum correto do tributo não redunda na configuração do crime em análise23. Complementa o raciocínio nesse sentido Andrade Filho: de informação incorreta que tenha sido gerada por terceiro, e de cujo ardil o contribuinte não se beneficiou, de qual quer forma24 . A rotulação dessa conduta visa, paralelamente à redução da sonegação fiscal, à correta escrituração dos livros fiscal-contábeis, que poderão ser contrapostos com operações entre contribuintes, o que facilitará a descoberta de demais fraudes ou imperfeições, além da lisura no trato com documentos que, em geral, portam caráter público25. 3.3. Falsidade material Novamente, o legislador decidiu cercar-se de todas as cautelas no sentido de coibir qualquer forma de fraude, seja qual for o estágio na transação tributária. Veja-se que o inciso I, num diapasão genérico, relaciona a fraude correlata à prestação de informações; no inciso II, tangencia-se a escrituração e o registro das operações visando a obstaculizar a possibilidade de a fiscalização in loco ser conduzida ao erro e, agora, no inciso III, seu foco está na veracidade dos caracteres formativos do documento atinente à própria relação jurídica, in litteris: falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda ou qualquer outro documento relativo à operação tributável. A falsidade aqui delineada pode ocorrer de duas formas, conforme preconiza Andrade Filho: A falsificação a que se refere a lei poderá ser da espécie falsidade ideológica, caso o documento relativo à operação tributável vier a ser concebido, por vontade deliberada do agente, contendo uma declaração não verdadeira. Por outro lado, se houver alteração nas declarações contidas no documento fiscal, sucederá falsidade material, em que a intenção de fraudar ou iludir a legislação se manifesta após a confecção ou preenchimento do documento fiscal26 . CORREA, Antonio. Obra citada, p. 87. SILVA, Juary. Elementos de direito penal tributário. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 188 COSTA Jr. Paulo José da, DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 108-109. 18 DECOIMAN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 3. ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 1997. p. 52. 19 COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada. p. 120. 20 EISELE, Andreas. Obra citada, p. 130. 21 Os autores que iniciam a escrita sobre Crimes Tributários no Brasil adotam nomenclaturas como dolo genérico e específico. Optamos, no entanto, por filiação à corrente da Moderna Teoria do Fato Punível defendida por CIRINO DOS SANTOS, pela classificação do dolo em direto e eventual, ocorrendo divisão do dolo específico em elementos subjetivos especiais, motivos e tendências de agir. 22 COSTA Jr. Paulo José da, DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 121. Acompanhado de SILVA, Juary. Obra citada, p. 200. 23 LOVATTO. Alécio Adão. Obra citada, p. 101. 24 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 1994. p. 102. 25 DECOIMAN, Pedro Roberto. Obra citada, p. 53. 26 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Obra citada, p. 123. 15 16 17 90 Crimes Tributários na Legislação Brasileira Sem embargo, o rol apresentado no corpo do incorporarão o ardil contra a Fazenda Pública: IV – elaborar, inciso é exemplificativo, visto que, além de arrolar inúmeros distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou documentos fiscais, deixa qualquer outro ali não-descrito, deva saber falso ou inexato. mas que seja relativo a uma operação tributável, como alvo Costa Jr. e Denari colacionam rápido, mas elucidativo, da norma . Eficientemente, Costa Jr. e Denari apresentam desmembramento de linguagem dos verbos nucleares da conduta do inciso IV: Elaborar é preparar, arranjar, dispor, formar, organizar. Distribuir é dar, entregar, repartir para diferentes partes. Fornecer equivale a entregar, a suprir, a título oneroso ou gratuito. Utilizar-se do documento importa em apresentá-lo como genuíno, se materialmente falsificado; ou como verídico, se ideologicamente falso31. 27 a diferenciação, no caráter fenomênico, das duas formas de perfectibilização da conduta do artigo em voga: Falsificar é inovar com fraude. É contrafazer, é reproduzir, imitando. A falsificação pode ser total, ou parcial. Será total quando o documento, anteriormente inexistente, vier a ser formulado ex novo et ex integro. A falsificação parcial consiste na formação ex novo de um documento, que em precedência não existia. Alterações são modificações que se imprimem ao documento autêntico, após achar-se ele definitivamente formado28. Na verdade, a intenção aqui do legislador era cercar até mesmo documentos que não estão compreendidos no inciso II, exigidos pela lei fiscal. Veja-se que um documento como a duplicata não necessariamente é emitido numa transação tributária, servindo mais como forma de garantia de recebimento do valor pelo credor29. Porém, mesmo com a falsificação/adulteração de qualquer documento relativo à transação tributária, sem a conseqüente supressão/redução do tributo, não restará configurado o crime. Como exemplo, cita-se a emissão de duplicatas frias, com valor superior ao da nota fiscal, visando a realizar a operação de desconto junto ao banco e suprir necessidade de caixa. Com o recolhimento do tributo pelo valor superior das duplicatas, não se implementará o crime fiscal, apesar de a cártula ser falsa em relação à realidade contratual, visto que não reduzido/suprimido o tributo. Seguindo a regra dos crimes do art. 1o, o dolo da conduta deverá ser o direto, com o elemento subjetivo especial de supressão/redução do tributo30. 3.4. Utilização de documento falso Mais uma vez o falsum comparece como conduta complementar ao caput do artigo 1o, desta vez abrangendo o fabrico ou as formas de circulação do documento falso que O objetivo da norma é fixar o jus persequendi contra toda a cadeia envolvida na fraude que, ao final, redundará na supressão/redução de tributo, seja o tipógrafo que imprimiu nota sem lastro em competente AIDOF; o médico que emite um recibo de consulta inexistente para dar lastro à isenção de rendimento no imposto de renda32 ; o contribuinte que se utiliza do documento falso/inexato contra a Fazenda33. Com efeito, para a configuração da chamada “indústria das notas frias”, é requisito a divisão de trabalhos, com a sempre presente alegação sobre a ignorância do destino ou origem dos documentos falsificados34. Novamente, o rol de documentos alcançáveis pela norma não é taxativo, podendo se tratar de nota fiscal, nota fiscal-fatura, duplicata, nota de produtor rural, cédulas de crédito, conhecimentos de depósito, conhecimentos de frete. Todavia, o documento deve servir como prova e ter, antes de tudo, relevância fiscal. O documento que não possui higidez ou elementos suficientes para lastrar ou registrar relação jurídica tributária restará como inválido para fundar subsunção do fato à norma do inciso IV35. A questão relativa à inexatidão do documento tem cunho de maior complexidade, pois aqui a fraude pode substanciar-se não em mendacidade quanto ao valor ou às partes envolvidas, mas em pequenos detalhes como data da operação, localidade, que acabarão gerando efeitos quanto à competência do exercício fiscal ou ente tributante36. A COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 115. COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Idem, ibidem. Mesmo entendimento de EISELE, Andreas. Obra citada, p. 133. DECOIMAN, Pedro Roberto. Obra citada, p. 59. 30 COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Idem, p. 116 31 COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 116. 32 Frise-se que a nota fria apresentada para isentar rendimento, para configurar o crime tributário deverá dar ensejo à supressão/redução do tributo. Caso o efeito da nota fria seja aumentar o tributo a ser restituído ao contribuinte, restar-se-á, pois, crime de estelionato. 33 MONTEIRO, Samuel. Crimes fiscais e abuso de autoridade. 2. ed. São Paulo: Hemus, 1994. p. 164. 34 LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada, p. 108-109 35 COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 119. 36 MONTEIRO, Samuel. Obra citada. p. 166. 27 28 29 91 Artigo 08 expressão “deva saber falso ou inexato” permite a presença do dolo eventual para a configuração do delito37. 3.6. Desatendimento de exigência de autoridade fazendária Finalizando, o inciso em comento foi delineado para ser compartimentado com os demais, visando a coibir atos fraudulentos desde sua raiz, transpondo a punição exclusiva do contribuinte beneficiado com o ardil. crimes de natureza material, surge no parágrafo único, conduta 3.5. Recusa ou omissão de fornecimento de documento Inegavelmente, tem-se aqui o caso mais usual de meio para implementar a sonegação fiscal: V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal, ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. O sujeito passivo da obrigação tributária, ao realizar um negócio com efeitos tributários, deixa de emitir a respectiva nota fiscal ou o documento equivalente e apto a ensejar a escrituração contábil da operação, ou mesmo negligencia pleito da outra parte envolvida, interessada na emissão de tal documento. Cumpre referir, por oportuno, que a negligência do contribuinte deve ser relacionada ao documento de emissão obrigatória pela lei tributária, não cabendo perquirir sobre a não-emissão de documento relevante, mas não exigido, pois se estaria contrariando preceito constitucional no sentido de que ninguém precisa fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude do texto legal prévio38. Pode-se, dessa forma, ter uma conduta omissiva ou comissiva, bastando tão-somente perquirir a conduta da outra parte envolvida, mas pouco importante para efeitos práticos da subsunção da norma penal39. Noutra via, existe a possibilidade de o agente fornecer o documento fiscal em dissonância com a prescrição legal. Nesse caso, se inexistir proveito com economia fiscal, o agente apenas terá incidido em infração tributária, não comportando a punição na esfera penal. Como exemplo patente, tem-se o fornecimento de mero recibo ao contratante/comprador, em oportunidade que a emissão de nota fiscal era necessária. Até mesmo a via da nota deve ser respeitada, cabendo a 1a via ao comprador, não outra40. Não destoando dos demais tipos do art. 1o, a conduta ora ventilada requer, para sua penalização, a presença de elemento subjetivo especial de suprimir/reduzir tributos com a negligência. O mero olvidamento, com posterior emissão, não configura o crime em questão. COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 120-121. CORREA, Antonio. Idem, p. 138. 39 LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada, p. 111. 40 LOVATTO, Alécio Adão. Idem, p. 110. 41 MONTEIRO, Samuel. Obra citada, p. 167. 42 LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada, p. 114 43 COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 123. 37 38 92 Fechando o artigo 1o, eminentemente recheado por que em última análise nem mesmo poderia comportar exegese em conjunto com seu caput: Parágrafo único: A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas, em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V. O parágrafo debatido revela a equiparação da conduta de inércia ou demora no atendimento pelo contribuinte de exigência de vista de documento pela autoridade fiscal com as condutas sonegatórias em si. Muitos são os equívocos na redação desse malfadado parágrafo. Inicialmente, totalmente descabida a interpretação analógica feita ao inciso V, visto que naquele inexiste o fornecimento do documento fiscal com a conseqüente falta de escrituração e tributação. Dessa forma, estar-se-ia argumentando pela responsabilização objetiva penal, visto presumir-se que se não foi atendida a exigência é porque tal documento não existe ou foi emitido sob irregularidade. Seguindo o rol de equívocos, atente-se para o fato tentar configurar-se aqui crime num rol de delitos de natureza material, equiparado a um crime material (inciso V), quando, na verdade, o dano pode nem mesmo ter ocorrido. Por fim, veja-se que a lei colaciona o prazo de até 10 dias, podendo ser reduzido até mesmo a horas, quando na verdade a exigência, para ser cumprida, pode exigir até mesmo um mês, como no caso de empresas com diversas filiais no Brasil, que mantêm seu arquivo contábil de forma centralizada, convertendose a exigência até mesmo em abuso de autoridade, esgrimível por meio de habeas corpus ou mandado de segurança41. A conduta pode ser praticada inclusive por terceiros, que não se aproveitaram da “presumível” sonegação, como o caso de documentos em posse de terceiros que não o contribuinte. A demora ou recusa não caracterizará o delito de desobediência (art. 330, do CP, 6 meses a 2 anos de detenção e multa), mas o crime do parágrafo em comento, 2 a 5 anos de reclusão e multa42. Pensando ser crime próprio ou especial, estão Costa Jr. e Denari, para quem o delito só pode ser promovido pelo próprio contribuinte43. Crimes Tributários na Legislação Brasileira Parece que a conduta, para configurar-se, terá de ser paralela à prova de redução/supressão do tributo. Nesse sentido, ainda, está a vedação à obrigatoriedade de produção de prova contra si, visto que o contribuinte está numa encruzilhada: ou mostra os livros e prova culpa num eventual crime tributário ou os omite e mesmo assim é punido, agora por presunção. A omissão do livro seria uma garantia constitucional de não se auto-incriminar (art. 5o, LXIII, da CR/88)44. Outrossim, após desvelada a forma com que o tributo foi sonegado, a conduta certamente se enquadrará num dos cinco incisos anteriores, não havendo concurso material de crimes. A atitude mais acurada do legislador seria inserir tal negativa de informações como agravante dos incisos do art. 1o, caso as condutas fossem promovidas, juntamente com o dano ao Erário45. 4. Crimes de natureza formal ou de mera conduta Bem de ver que os delitos preconizados no art. 2o da Lei 8.137/90 guardam relação muito mais com omissões do contribuinte do que com fraudes, advindas de atitudes positivas. Na verdade, os incisos desse artigo que revelam ação delituosa fraudulenta acabam, geralmente, sendo arredados em razão da subsunção ocorrida com os delitos previstos no artigo 1o do mesmo diploma, in verbis: Art. 2o – Constitui crime da mesma natureza46. Com efeito, as condutas arroladas nos incisos do artigo em comento, para se configurarem fatos puníveis, prescindem de dano, pois, ao contrário do que ocorre com o artigo anterior do diploma penal fiscal, inexiste o elemento normativo “suprimir ou reduzir tributo”. Dessa forma, caracterizam-se esses delitos por sua natureza de crimes formais ou de mera conduta. Veja-se que o dano ao Erário não é figura presente nos tipos do art. 2o, ocorrendo apenas o desvalor da ação pela potencialidade da supressão/redução do tributo. Para a configuração desses crimes é necessário o elemento subjetivo especial47. Caso o contribuinte seja flagrado no iter entre a realização dos delitos previstos nesse artigo, será por eles punido; contudo, se já tiver promovido o dano ao Erário, com a supressão/redução do tributo, sua conduta será incursionada na esfera penal pelos tipos previstos no art. 1o. Assim, resta, em tese, problemática a configuração da desistência voluntária sobre os crimes do art. 1o. 4.1. Omissão de informação ou prestação de declaração falsa sobre rendas, bens ou fatos De início, o art. 2o traz como conduta primeira, tipificada em seu inciso I, a figura da sonegação de informações ou sua prestação de forma inverossímil à autoridade fiscal competente: I – Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo. Figura que pouco transita pelos pretórios, pois para sua configuração descarta-se a presença do dano, representado pelo recolhimento parcial ou até mesmo por sua inexistência, quando o tributo devido é superior ao declarado ou omitido. Ocorre que para a persecução penal ocorrer sobre essa rubrica, o contribuinte deverá ter omitido/falseado informações, mas até o vencimento da obrigação tributária, acometido pelo clamor da função simbólica da pena ou por um sentimento altruístico, decida recolher o quantum realmente devido pela relação jurídica tributada. Presenciando-se a normalidade, é dizer, com a conseqüente redução/supressão do tributo, que o contribuinte passará a constar como incurso no tipo penal preconizado no art. 1o, I, pois já se encontra configurado o crime de dano com natureza material48. 4.2. Não-recolhimento de tributo cobrado ou retido Denota-se desse tipo penal um sujeito passivo da norma que não age sob o pálio de nenhuma fraude ou irregularidade, mas apenas deixa de recolher tributo já cobrado ou retido, in litteris: II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos. A conduta descrita revela um contribuinte que não tem o interesse de manipular as informações a fim de ludibriar o Estado. Ele simplesmente não recolhe o tributo, que o Estado, muitas vezes, já tem até mesmo conhecimento sobre o valor devido49. A conduta diz, no mais das vezes, com casos em que ocorre a substituição tributária. O contribuinte de direito é ente que cobrou/reteve valor de pagamento a terceiro a título de tributos, pois a legislação tributária assim o ordena. Assim é o caso do IPI, em que o industrial cobra, além do valor da mercadoria, o valor relativo ao tributo, ficando incumbido de recolhê-lo aos cofres públicos50. LOPES, Rodrigo Fernando de Freitas. Crime de sonegação fiscal. In: A crise do Estado como causa de exclusão de culpabilidade. Curitiba: Juruá, 2002. p. 82. Ainda, SALOMÃO, Heloisa Estellita. Crimes tributários nos tribunais superiores. Revista Brasileira de Ciências Criminais. ano 14. n. 58. São Paulo: RT, 2006. p. 100. 45 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveria. Obra citada, p. 136. 46 Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. 47 LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada. p. 117. 48 DECOIMAN, Pedro Roberto. Obra citada, p. 80. 49 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Crimes contra a ordem tributária. In: Pesquisas tributárias. n. 1. 3. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 45. 50 LOVATTO, Obra citada, p. 123. 44 93 Artigo 08 A conduta é omissiva, devendo estar presente o elemento subjetivo especial de não recolher aos cofres a quantia que lhe foi confiada pelo contribuinte de fato, com base em lei. O mero atraso no recolhimento, desacompanhado da intenção de sonegar, não caracteriza o delito51. No entendimento de CORREA, ao ocorrer a retenção do valor, em última análise, de propriedade da Fazenda Pública, invertida estaria a posse, configurando legítima hipótese de apropriação indébita52. O valor retido/cobrado nem sempre deve (como diz a lei) ser recolhido diretamente aos cofres públicos. Por vezes, o contribuinte de direito retém valores a título de tributo, entretanto, em se tratando de impostos indiretos, podem ocorrer compensações dos valores retidos com créditos tributários que esse contribuinte possua. Pode acontecer de nada ser recolhido em virtude da compensação. O pagamento é apenas escritural, sem o ato de entrega de valor ao Poder Público53. Noutro norte, caso o contribuinte de direito não tenha cobrado ou retido o tributo, quando lhe era exigido pela lei, apesar de o Erário ser de igual forma prejudicado, o delito em voga não se configura, pois os verbos do tipo, cobrado ou descontado, restam ausentes. A questão passa, então, ao campo das infrações tributárias54. Noutro viés, não se descarta a hipótese de restar inserto no art. 2o, II, da Lei penal fiscal, uma possível afronta ao texto constitucional, em especial ao art. 5o, LXVII: não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel55. A questão semântica envolvendo a espécie da prisão é vertida como justificativa para sua validade. Veja-se que a Constituição preconiza vedação à prisão civil e, no caso da lei aqui investigada, fala-se em prisão penal, o que habilitaria a legitimidade de sua manutenção56. Com efeito, a celeuma incrustada na doutrina será o reflexo da objetividade jurídica permeada pelo tipo em questão. Se o alvo do delito for a mera cobrança do tributo, a criminalização é inconstitucional, conforme leciona BERTOLUCI: Questão central é saber se o legislador pode criminalizar o inadimplemento de uma dívida tributária. De acordo com a construção garantista, a qual, dentre vários postulados, sustenta a necessidade de eliminação das antinomias do sistema jurídico, isto seria incompatível. A Constituição Federal, ao estabelecer que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável da obrigação alimentícia e a do depositário infiel”, estabelece limitações ao legislador ordinário. A norma constitucional que proíbe a prisão por dívida alberga o direito à liberdade, colocando-o em patamar superior ao direito de receber um crédito57 . 4.3. Corrupção no incentivo fiscal O inciso em análise é direcionado a dirigentes, empregados e intermediários de instituições financeiras que operem no recolhimento e posterior utilização de verbas fiscais resultantes da minoração da carga tributária, em função de incentivos fiscais, corrupção passiva, além do contribuinte, quando se fala em corrupção ativa58 : III – exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de impostos ou de contribuição como incentivo fiscal. O primeiro verbo do tipo, exigir, refere-se a ato dos agentes acima elencados na oportunidade em que impõem ao contribuinte o recebimento de quantia para efetivar desconto tributário em virtude de incentivo fiscal. Ao contrário da primeira modalidade, que versa sobre verdadeira concussão promovida pelo agente recebedor, pagar é conduta de corrupção ativa do contribuinte, que alcança ao captador dos recursos vantagem financeira, objetivando o enquadramento em plano de incentivo fiscal. Por fim, a atitude do agente captador de tributos ao receber valores ofertados em troca da implementação do enquadramento no programa de incentivo fiscal, é verdadeira hipótese de corrupção passiva. Não se faz necessário o dano, quer dizer, a efetiva dedução do tributo em razão do incentivo fiscal, bastando a realização da corrupção ativa e/ou passiva para configuração do delito, já que se trata de crime de natureza formal59. A localização do tipo no rol de crimes formais promovidos por particulares é equivocada. Veja-se que o delito, em dois de três de seus verbos, é promovido por pessoa investida em função de interesse público, logo deveria estar elencado no rol do art. 3o, em que se verificam os delitos promovidos por funcionários públicos60. COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 127. CORREA, Antonio. Obra citada, p. 175. EISELE, Andreas. Apropriação indébita e ilícito penal tributário. São Paulo: Dialética, 2001, p. 85. 54 LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada, p. 125. 55 CAMPOS, Dejalma de. O crime de sonegação fiscal: evolução legislativa; análise do tipo na lei vigente (Lei 8.137/90); sonegação e simples inadimplemento (CF Art. 5o, LXVII). In: OLIVEIRA, Antonio Cláudio Mariz de; CAMPOS, Dejalma de. (Coord.) Direito penal tributário contemporâneo. Estudo de especialistas. São Paulo: Atlas, 1995. p. 40. 56 OLIVEIRA, Ricardo Rachid de. A Relevância penal da inadimplência tributária. Tese (Doutorado em Direito) apresentada no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2006. p. 139. 57 BERTOLUCI, Marcelo Machado. A inconstitucionalidade do art 2o, II, da Lei n. 8.137/90. In: FAYET JR, Ney. (Org.) Ensaios penais em homenagem ao professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003. p. 546. 58 DECOIMAN, Pedro Roberto. Obra citada, p. 95. 59 COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 130. 60 ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Obra citada, p. 143. 51 52 53 94 Crimes Tributários na Legislação Brasileira 4.4 Desvio de finalidade de incentivo fiscal Novamente o legislador demonstra preocupação com a má versação das verbas tributárias abdicadas em função de incentivos fiscais. No inciso anterior, o propósito era desestimular o ingresso irregular no campo dos programas de incentivos; agora, seu escopo foca-se na utilização, no aproveitamento que o contribuinte vai assegurar ao valor do tributo não-cobrado/bem/serviço que obteve, valendo-se de isenção ou redução de alíquotas: IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento. O benefício, ao momento em que foi ofertado, era válido e o contribuinte fazia jus a ele. Porém, posteriormente, não implementa a forma de uso (que justificou o incentivo fiscal) do imposto não-devido/serviço/bem que lhe teve alcançado com economia de tributos. Trata-se, pois, de desvio de finalidade para o benefício que fora concedido. Os programas de incentivos visam ao desenvolvimento de determinada região, à ascensão de determinado estrato social ou baseada em alguma desigualdade que justifique a ação afirmativa, nos dizeres de Correa: Como o Estado é direcionador das atividades, mas não empregador, foi a maneira encontrada esta de, através da transferência de parcela de impostos – como opção dos devedores, que se agregam aos grupos, e, mais ainda, dos grandes pagadores de tributos que poderiam beneficiar-se criando novas empresas, permitindo que se atingisse o esperado61. No momento em que o contribuinte beneficiado passa a desviar o uso daquela benesse que lhe foi alcançada, passa, ao mesmo tempo, a desmerecer o incentivo, gerando verdadeiro débito com os demais contribuintes que, em última análise, lhe financiaram o proveito fiscal. Seguindo a regra, o elemento subjetivo especial em não implementar ou desviar o uso do benefício auferido é necessário para configurar o delito em espécie, não sendo relevante penalmente o mero atraso, desde que justificado, na aplicação correta do incentivo fiscal62. 4.5 Sistema de processamento de dados paralelo Tem-se, no último inciso do art. 2o, um requinte do que vulgarmente se chama “caixa 2”. Aqui, a contabilidade paralela é ministrada por meio de programa eletrônico em duplicidade: V – utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. Veja-se que basta o uso ou a divulgação do programa para configurar o delito aqui versado, pois se trata de crime formal. No entanto, o delito em comento é figura praticamente inexistente nos pretórios, haja vista que requer o elemento subjetivo especial de sua utilização, com fins de possuir verdadeira contabilidade paralela, alimentado por informações divergentes das prestadas ao fisco. Nesse caso, existindo dolo, certamente o sistema estará ocultando lançamentos, receitas ou operações na versão ofertada para a Fazenda Pública, conseqüentemente já tendo gerado desfalques à coletividade. Dessa forma, com a ocorrência de dano, a conduta é deslocada para o art. 1o, não se falando mais no crime formal63. 5. Crimes perpetrados por funcionários públicos Não há dúvida de que os funcionários públicos são os braços de atuação do Estado. Ninguém mais do que estes devem propugnar pela retidão das contas públicas. Em virtude disso, verifica-se no artigo em comento as penas mais elevadas para os crimes tributários, podendo chegar a oito anos de reclusão, pois este é o último degrau entre o contribuinte e a perfectibilização da sonegação fiscal, justificando-se maior grau de reprovabilidade do que nos crimes promovidos por particulares: Art. 3o – Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-lei no 2.848, de 7 dezembro de 1940 – Código Penal, (Título XI, Capítulo I)64 . 5.1. Extravio de documentos fiscais A conduta do presente artigo guarda íntima relação com o crime previsto no art. 314, do Código Penal; seus verbos nucleares guardam similitude. Contudo, havendo a conotação fiscal, o agente estará incurso na Lei Penal Fiscal, a saber: I – extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente, acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo ou contribuição social. Para a ocorrência do extravio, tem-se a perda total ou parcial de documento/processo/livro sob a guarda de autoridade fiscal, objetivando com tal ato a supressão/redução de tributo, é dizer, estando no auxílio de contribuinte em busca de seu desiderato sonegador. Sonegar, neste tipo, será a resistência do agente público em dar vista do documento/processo/livro, quando solicitado, CORREA, Antonio. Dos crimes contra a ordem tributária. p. 190. MONTEIRO, Samuel. Obra citada, p. 186. 63 LOVATTO, Alécio Adão. Crimes tributários... p. 126. 64 Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. 61 62 95 Artigo 08 ou mesmo ocultá-lo para que providências não sejam tomadas objetivando a cobrança do crédito tributário65. Por fim, há a conduta de inutilizá-lo, quando o agente anula, devasta o documento, de modo a impossibilitar o conhecimento de seu teor definitivamente. Os documentos devem ser de natureza fiscal, exigidos pela lei tributária, assim como os processos devem versar sobre tributos. Sendo eles de natureza diversa, o funcionário incorrerá no crime previsto no Código Penal66. Poderá ocorrer a co-autoria de particulares, mas não a do contribuinte em específico, que responderá pelos crimes do art. 1o. Os particulares aqui seriam os que apenas auxiliaram o agente público, sem, contudo aproveitar-se do tributo sonegado. Nas condutas descritas, além da presença do elemento subjetivo especial, visando a ludibriar a Fazenda Pública, ocultando-lhe dados, o ato do agente público deve, obrigatoriamente, redundar em pagamento indevido ou inexato do tributo. Logo, tem-se a natureza de crime material. 5.2. Corrupção passiva tributária Aqui, novamente, o delito é próprio, a ser perpetrado por funcionário público, sendo possível a co-autoria de particular quando a elementar se comunicar: II – exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. A conduta do funcionário pode se dar de três formas possíveis, tais quais os verbos nucleares do tipo. Na exigência, o agente verdadeiramente impõe, obriga ao contribuinte o pagamento de vantagem, para si ou para outrem, objetivando a economia fiscal ilícita para aquele: estar-se-ia a falar na concussão do Código Penal, especializada aqui pelo cunho fiscal. Solicitar, é o ato de pedir, sem o temor reverencial, como ocorre na exigência, embora a punição em abstrato seja mesma. Por fim, existe a conduta de efetivamente receber, a qual prescinde da exigência ou solicitação anterior. O mero recebimento, curvando-se à corrupção ativa do contribuinte, já é assaz para efetivar a consumação do delito em tela. As condutas de solicitar e receber guardam similitude com o delito de corrupção passiva previsto no Código Penal67 , sendo que aqui o crime encerra o aspecto fiscal. Enquanto a solicitação, assim como ocorre na exigência, é delito formal, abstraindo a existência de resultado, que restará como mero exaurimento e reflexivo na dosimetria da pena, o recebimento é verbo nuclear que conduz a natureza material desse tipo de ação variada. Nesse caso, a efetiva corrupção, com entrega da vantagem indevida, é necessária para a consumação do delito. 5.3. Advocacia administrativa fiscal Por fim, para fechar o rol de tipos penais fiscais, perpetrados por funcionários públicos, está a advocacia administrativa: III – patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração fazendária valendo-se da qualidade de funcionário público68: Apesar do nome advocacia, a conduta não é própria de advogado, podendo ser realizada por qualquer funcionário público, em razão de sua atividade, ou ainda terceiro quando agindo em concurso de pessoas com aquele. O ato de pleitear interesse privado de terceiro perante a administração fiscal não precisa ter êxito, visto que se trata de crime formal, em que a punição eclode com a atitude de agir de forma impessoal, ferindo a moralidade administrativa, e não sobre o efetivo ganho do terceiro interessado. O dano ao fisco será encarado como efeito do exaurimento, influindo na aplicação da pena. Não importa se o interesse é lícito ou ilícito, bastando que a atividade do funcionário público vá além daquelas que lhe são inerentes, funcionando como favorecimento pessoal ou mesmo infração de dever funcional. Sem embargo, o conflito aparente de normas havido com o delito preconizado no art. 321 do Código Penal – Advocacia Administrativa – é afastado pela especialidade do envolvimento fiscal da ação. 6. Conclusão O tributo representa, sem embargo, a forma de ingresso financeiro no Estado, legítima e necessária, para permitir a este que alcance ao seu povo instrumentos e políticas sociais tipicamente estatais ou mesmo em setores de desinteresse pela iniciativa privada. Neste norte, o Estado demanda pelas receitas ingressantes com o pagamento dos tributos para implementar sua ação. A fraude ou o inadimplemento contra o sistema tributário representa, em certa medida, a deficiência dessas contraprestações. Através dessa perspectiva, verifica-se deveras necessário e válido o comparecimento de instrumentos de repressão à inadimplência tributária, seja ela fraudulenta ou não. A Lei de Execuções Fiscais, de número 6.830, do ano de 1980, garante procedimento mais ágil que o procedimento alcançado aos créditos de natureza não-fiscal. Além disso, o crédito tributário goza de privilegiada posição na lista de preferências para satisfação em procedimentos executivos individuais ou coletivos. Essa proteção objetivando a cobrança, MONTEIRO, Samuel. Obra citada. p. 193. LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada. p. 132. 67 Art. 317. – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em função dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem. 68 Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. 65 66 9 Crimes Tributários na Legislação Brasileira diante do fato de o tributo não estar no patamar de bem jurídico penal, é suficiente, mostrando-se a punição penal uma política de terror. Passando ao problema da quebra do sistema, temse que o Estado demonstra, de inúmeras formas, o interesse único em receber tributos, não em punir com o Direito Penal. Às vezes essa sanção nem mesmo acontece na esfera tributária. A utilização do Direito Penal em microssistemas, como é o caso da esfera penal tributária, valendo-se de normas de cariz casuístico, desprovida de uma correlação clara com bem jurídico e dano efetivo, implica numa odiosa sobreposição de princípios de controle sobre regras constitucionais penais. Preocupado com o crescimento da inadimplência tributária, o governo federal, levando a reboque os governos estaduais e municipais, implementou planos de reestruturação fiscal. Nestes, o contribuinte viu-se livre do pagamento de multas, apenas adimplindo com o principal acrescido da taxa Selic. Assim, o contribuinte resta sem sanções penais ou administrativas. Ainda, eventuais fraudes cometidas no intento da redução/supressão do tributo, absorvidas pelo crime tributário, têm sua punibilidade extinta segundo a previsão do art. 9o da Lei 10.684/03. Dessa forma, com a hipótese de extinção da punibilidade, sem ater-se a qualquer limitação temporal no que diz respeito à satisfação integral do débito, comprova-se onde está o maior interesse do Estado: na satisfação da dívida e não na sanção ou utilização do Direito Penal. Quis o legislador, na verdade, tão-somente, tipificar a conduta delitiva como forma de intimidar o contribuinte ao pagamento do tributo, cuja natureza, da exação, é eminentemente social. O adimplemento das obrigações fiscais, no caso de ser alvo de investigação pelo fisco/Ministério Público, pode até mesmo ser considerado como risco calculado. Frauda-se a Ordem Tributária, suprime-se o tributo, caso seja alvo de um processo criminal, e o simples pagamento desonera o criminoso de qualquer sanção penal ou administrativa. Assim, a lei penal que serviria de mero e espúrio utensílio de cobrança, intimidando o sonegador, talvez esteja até mesmo laborando no decréscimo de receitas tributárias, visto que o receio pela punição, seja ela de qualquer natureza, resta afastado. Prejudica-se, ainda, o registro simbólico denotado pelas normas penais e suas conseqüências. Não se pode mercantilizar o Direito Penal, pensandoo a partir de premissas puramente econômicas. Estar-se-ia confrontando verbas com a liberdade e porque não dizer a vida dos cidadãos. Com a demonstração evidente de interesse estatal pelo adimplemento da obrigação tributária e não pela sanção penal, verifica-se que o bem jurídico que sustenta a norma é o crédito, e nesse caso, entendemos se tratar de mero interesse. 7. Referências ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 1994. BARROS, Suzana Toledo de. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. BERTOLUCI, Marcelo Machado. A inconstitucionalidade do art 2o, II, da Lei n. 8.137/90. In: FAYET JR., Ney (Org.). Ensaios penais em homenagem ao professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003. CAMPOS, Dejalma de. O crime de sonegação fiscal: evolução legislativa; análise do tipo na lei vigente (Lei 8.137/90); sonegação e simples inadimplemento (CF Art. 5o, LXVII). In: OLIVEIRA, Antonio Cláudio Mariz de; CAMPOS, Dejalma de. (Coord.) Direito penal tributário contemporâneo. estudo de especialistas. São Paulo: Atlas, 1995. COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. DECOIMAN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 3. ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 1997. CORREA, Antonio. Dos crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 1994. EISELE, Andreas. Apropriação indébita e ilícito penal tributário. São Paulo: Dialética, 2001. EISELE, Andreas. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Dialética, 1998. LOPES, Rodrigo Fernando de Freitas. Crime de Sonegação Fiscal. A crise do Estado como causa de exclusão de culpabilidade. Curitiba Juruá, 2002. LOVATTO, Alécio Adão. Crimes tributários: aspectos criminais e processuais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. MACHADO, Hugo de Britto. Estudos de direito penal tributário. São Paulo: Atlas, 2002. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Crimes contra a ordem tributária. In: Pesquisas tributárias, n. 1. 3. ed. São Paulo: RT, 1998. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Da sanção tributária. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998. MONTEIRO, Samuel. Crimes fiscais e abuso de autoridade. 2. ed. São Paulo: Hemus, 1994. OLIVEIRA, Ricardo Rachid de. A relevância penal da inadimplência tributária. Tese (Doutorado em Direito) apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2006. SALOMÃO, Heloisa Estellita. Crimes tributários nos tribunais superiores. Revista Brasileira de Ciências Criminais. ano 14. n. 58. São Paulo: RT, 2006. SILVA, Juary. Elementos de direito penal tributário. São Paulo: Saraiva, 1998. 97 Artigo 09 Artigo 09 A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do Contratante Vulnerável Marcelo Junqueira Calixto1 1. A função social do contrato como princípio do direito contratual. 2. A função social e sua ligação com a causa do contrato. 3. A função social do contrato e a proteção do consumidor. 4. Conclusão. 5. Referências. Resumo O artigo defende a aproximação entre a função social, agora expressamente prevista pelo Código Civil, e o instituto da causa do contrato, que não encontra previsão expressa em nosso ordenamento. A partir desta leitura, defende um maior controle sobre o conteúdo do contrato, em especial quando presente uma relação de consumo, o que se justifica pela proteção constitucionalmente dispensada ao consumidor. Palavras-chave: Função social do contrato; causa contratual; vulnerabilidade do consumidor; proteção constitucional do consumidor; controle do conteúdo do contrato. 1. A função social do contrato como princípio do direito contratual A superação do liberalismo econômico e do excessivo individualismo trouxe como conseqüência mais evidente a socialização de certos institutos jurídicos. De fato, em primeiro lugar, foi possível afirmar a função social da propriedade e, a seguir, passou-se igualmente a falar em função social do contrato, a qual restou finalmente consagrada no Código Civil de 2002. É o que se pode ler no art. 421 deste diploma: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”2 . Essa função social, no entanto, não deve ser entendida como criação do legislador ordinário, mas deve antes encontrar seu fundamento na Constituição de 1988. Em verdade, é neste último diploma que se observa, como fundamento da República Federativa do Brasil, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1 , IV)3. Além disso, afirma-se que a “ordem econômica” tem por fim “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”4. A partir desses dispositivos, é possível dizer que a função social do contrato apresenta-se como princípio de índole constitucional a ser observado tanto pelo legislador ordinário quanto, especialmente, pelos particulares que cotidianamente celebram seus negócios jurídicos. Defende-se, assim, a eficácia direta das normas constitucionais, de maneira que a cláusula Doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor adjunto do Departamento de Direito da PUC-RJ e professor dos cursos de Pós-Graduação da PUC-RJ, FGV, UERJ e UCAM, advogado. 2 Além deste artigo, a função social do contrato foi expressamente referida no § único do art. 2.035, no qual pode ser considerada como requisito de validade do negócio jurídico. De fato, afirma o dispositivo: “Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. Interessante aplicação do disposto neste artigo ocorreu por ocasião do julgamento do REsp. 691.738/SC (STJ, 3a T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 12.05.2005, publ. DJ em 26.09.2005). A questão central versava sobre a possibilidade de aplicação do disposto no art. 1.488 do Código Civil de 2002 a contrato celebrado anteriormente à vigência desse diploma, o que teria, por conseqüência, o levantamento da hipoteca daquelas unidades imobiliárias que já tinham sido pagas pelos promitentescompradores. O recurso especial foi parcialmente conhecido e, nessa parte, provido, tendo o voto condutor da Ministra Relatora afirmado que “o art. 1.488 do CC/02 consubstancia um dos exemplos de materialização do princípio da função social dos contratos, que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a idéia que está por trás dessa disposição é a de proteger terceiros que, de boa-fé, adquirem imóveis cuja construção – ou loteamento – fora anteriormente financiada por instituição financeira mediante garantia hipotecária. Inúmeros são os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as prestações para a aquisição de imóvel – pagamentos esses, muitas vezes, feitos às custas de enorme esforço financeiro – são surpreendidos pela impossibilidade de transmissão da propriedade do bem em função da inadimplência da construtora perante o agente financeiro”. E, logo a seguir, ainda afirma que “o princípio da função social dos contratos, portanto, clama aplicação no caso concreto”. Recorde-se ainda, por oportuno, que o mesmo STJ editou a súmula 308, segundo a qual “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. 3 O art. 1o da Constituição da República dispõe: “Art. 1o. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 4 É o que se lê no art. 170, verbis: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Para NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2a. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 209, contudo, – por força do entendimento que adota em relação à função social do contrato –, esta “encontra fundamento constitucional no princípio da solidariedade, a exigir que os contratantes e os terceiros colaborem entre si, respeitando as situações jurídicas anteriormente constituídas, ainda que as mesmas não sejam providas de eficácia real, mas desde que a sua prévia existência seja conhecida pelas pessoas implicadas”. 1 98 A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do Contratante Vulnerável geral prevista no diploma civil, sendo constitucionalmente qualificada, deverá incidir em toda relação contratual celebrada por particulares5. Esta visão permite igualmente que se afirme ser a função social do contrato um princípio do direito contratual, a ser acrescentado a outros princípios já estudados há mais tempo pela doutrina nacional6. Mas esta mesma visão não responde a outra grave questão, justamente aquela relativa ao significado que se deve atribuir à função social quando aplicada ao direito contratual. Neste sentido, é possível observar ao menos duas posições doutrinárias. A primeira visão afirma que a função social importa uma releitura do vetusto princípio da relatividade dos efeitos contratuais, ao permitir que terceiros não contratantes – mas sabedores da avença estipulada – venham a sofrer alguns efeitos desse contrato, distinguindo-se, assim, entre relatividade e oponibilidade dos efeitos7. A segunda visão procura observar o conteúdo do contrato, afirmando que é a função social que impõe uma equivalência entre as prestações contratuais, garantindo, em um certo sentido, à justiça contratual8. Nesse sentido, a função social do contrato diferenciase, igualmente, da boa-fé objetiva, uma vez que esta observa a conduta das partes em todo o desenrolar da relação jurídica obrigacional, ao passo que aquela fixa-se unicamente no contrato, determinando a validade ou invalidade de suas cláusulas9. Sobre o tema a respeito da eficácia direta das normas constitucionais nas relações entre particulares pode ser visto o artigo de TEPEDINO, Gustavo. “Normas constitucionais e relações de Direito Civil na experiência brasileira”, In: Temas de Direito Civil, tomo II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 21-46. Para um conceito de cláusula geral, técnica legislativa utilizada na redação do art. 421, pode ser vista a obra de MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 273-304. 6 A constatação de que a teoria geral dos contratos deve ser informada por novos princípios não escapou à observação dos civilistas brasileiros reunidos em Brasília para a III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, em 2004. Nesta ocasião, foi aprovado o enunciado n. 167, que dispõe: “167 – Arts. 421 a 424. Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”. Neste sentido, igualmente, a doutrina de MATTIETTO, Leonardo. O Direito Civil Constitucional e a nova teoria dos contratos. In: Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 182, quando afirma que “talvez a própria consideração de uma nova teoria contratual fosse desnecessária em virtude do reconhecimento da relatividade histórica dos conceitos jurídicos, rompendo-se com o dogmatismo da ciência jurídica. Entretanto, deve-se concordar que, se é mesmo que não se está diante de uma nova teoria dos contratos, pelo menos se tem hoje, no Brasil, um direito dos contratos profundamente renovado” (grifos no original). 7 Tal é a doutrina de NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato, cit. p. 266-275. Essa perspectiva é também desenvolvida por ROSENWALD, Nélson. A função social do contrato. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio (Coord.) Direito Contratual: temas atuais, São Paulo: Método, 2007, p. 81-111, muito embora o autor, além dessa função social “externa”, também apresenta a função social “interna” do contrato, muito mais próxima da segunda visão doutrinária aqui recordada. Também favorável às duas perspectivas da função social do contrato é a doutrina de FONSECA, Rodrigo Garcia da. A função social do contrato e o alcance do artigo 421 do Código Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 243-249. Neste sentido, pode ser vista, igualmente, a obra de GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, que fala do conteúdo inter partes e do conteúdo ultra partes da função social do contrato. Também para TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002, 2a ed., São Paulo: Método, 2007, p. 239-411, é possível observar uma “eficácia interna” e uma “eficácia externa” da função social do contrato. É interessante recordar que essa primeira visão foi a que prevaleceu na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em 2002, ocasião em que foi aprovado o enunciado n. 21, que dispõe: “21 – Art. 421. A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”. Entretanto, por ocasião da IV Jornada, realizada em 2006, foi aprovado o enunciado n. 360, que afirma: “360 – Art. 421. O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes”. Propondo uma nova visão sobre o velho princípio da relatividade dos efeitos contratuais pode ser visto o artigo de MULHOLLAND, Caitlin. O Princípio da Relatividade dos Efeitos Contratuais. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. (Coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 255-280. 8 A referência a esta justiça contratual pode ser depreendida, igualmente, do disposto no enunciado n. 22, aprovado na I Jornada de Direito Civil, realizada em 2002, afirma que: “22 – Art. 421. A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”. Embora sem se referir à justiça contratual, mas considerando “insuficiente” a análise da “função social do contrato apenas sob a ótica da tutela externa do crédito”, é a opinião de COSTA, Pedro Oliveira da. Apontamentos para uma visão abrangente da função social dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.) Obrigações estudos na perspectiva civil-constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 67. 9 Esta distinção foi encarecida em dois julgados da 3a Turma do STJ, ambos da relatoria da Ministra Nancy Andrighi (REsp. 783.404/GO, julg. em 28.06.2007, publ. DJ em 13.08.2007 e REsp. 803.481/GO, julg. em 28.06.2007, publ. DJ em 01.08.2007). A situação fática era semelhante e versava sobre contrato com preço fixo, mas cotado em dólares americanos, de compra e venda de safra futura de soja. Os agricultores ajuizaram ações de revisão das cláusulas contratuais, pois se sentiram prejudicados pelo fato de ter havido grande oscilação no valor do dólar americano frente ao real, tendo o Tribunal de Justiça goiano acatado seus argumentos. Contudo, os dois recursos especiais foram conhecidos e providos, por unanimidade, entendendo-se ausentes os requisitos previstos no art. 478 do Código Civil. No que aqui interessa, vale a transcrição de trecho do voto da Ministra Relatora, no qual afirma que “a função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Este não pode ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma atividade beneficente. Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistência social. Por mais que o indivíduo mereça tal assistência, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que não podem ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu aplicador. A função social não se apresenta como objetivo do contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes em promover a circulação de riquezas”. E, a seguir, ainda aduz que “quanto à boa-fé objetiva, esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal”. Também por ocasião do julgamento do REsp. 617.045/GO (STJ, 3a T., Rel. Min. Castro Filho, julg. em 28.10.2004, publ. DJ em 17.12.2004) considerou-se como ofensiva à boa-fé objetiva a conduta da construtora que celebra contrato de financiamento com banco – dando como garantia as unidades imobiliárias – sem, contudo, informar o promitente-comprador da hipoteca que grava o imóvel. Consta, de fato, da ementa deste julgado o seguinte: “É nula a cláusula que prevê a instituição de ônus real sobre o imóvel, sem o consentimento do promitente-comprador, por ofensa ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no Código de Defesa do Consumidor”. Essa visão da boa-fé objetiva como norma de conduta das partes é, aliás, a que resulta evidente da leitura do art. 422 do Código Civil, verbis: “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Para uma leitura crítica deste dispositivo pode ser visto o artigo de AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva. In: Revista dos Tribunais, n. 775, São Paulo. maio de 2000, p. 11-17. Observe-se, contudo, que no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento no 853.052/SP (STJ, 5a T., Rel. Min. Laurita Vaz, julg. em 26.06.2007, publ. DJ em 06.08.2007), entendeu-se que a análise das cláusulas contratuais, a fim de determinar se teria ou não havido violação à função social do contrato, importaria em ofensa ao disposto nas súmulas 5 e 7, o que é “inviável na via estreita do recurso especial”. Mas, por ocasião do julgamento do já citado REsp. 783.404/GO (STJ, 3a T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 28.06.2007, publ. DJ em 13.08.2007), foi debatida a matéria relativa à eventual abusividade de certas cláusulas contratuais, colhendo-se do voto condutor do acórdão que “eventual abusividade de determinadas cláusulas acessórias do contrato em tela não tem relevância para o deslinde desta ação. Ainda que, em tese, transgridam os princípios da boa-fé objetiva, da probidade e da função social do contrato ou imponham ônus excessivo ao recorrido, tais abusos não teriam o condão de contaminar de maneira irremediável o instrumento, de sorte a resolvê-lo, até porque, como visto, seu objeto principal se mostra absolutamente lícito. Estipulações como o risco exclusivo do produtor pela entrega da mercadoria ou multa em valor excessivo podem eventualmente dar azo à revisão das respectivas cláusulas, mas não facultam, por si só, a resolução do contrato”. Na ocasião foi igualmente recordado o disposto no art. 184, segunda parte, do Código Civil, que se transcreve: “Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”. 5 99 Artigo 09 Com fundamento nesta segunda visão, ainda é possível afirmar que a função social, ao permitir um controle sobre a função do contrato, aproxima-se do instituto da causa contratual, em especial quando se atribui a esta o significado desenvolvido pela doutrina italiana, isto é, o significado de síntese dos efeitos jurídicos essenciais do contrato10. 2. A função social e sua ligação com a causa do contrato É corrente na doutrina nacional a afirmação que o direito brasileiro, na esteira do sistema alemão que teria inspirado o codificador de 1916, adotou uma posição anticausalista ao prever os requisitos de validade do negócio jurídico11. Em verdade, tal como já se observava no diploma revogado, também hoje se afirma que o negócio jurídico, para ser válido, exige tão somente a capacidade do agente, a licitude e possibilidade do objeto e a observância de determinada forma (Código Civil, art. 104)12. Da mesma forma, entre as hipóteses de nulidade, ou mesmo de anulabilidade do negócio jurídico, não há referência expressa à sua causa13. Em sentido contrário a esta opinião majoritária, porém, levanta-se a voz daqueles que enxergam na causa do contrato a possibilidade de dar a esse instituto uma função. De fato, esta ilustre doutrina recorda que todo instituto jurídico tem uma estrutura, e deve igualmente apresentar determinada função14. Tal função, por certo, só poderá merecer a guarida do ordenamento jurídico se for obediente aos ditames constitucionais15. É necessário observar, contudo, que são duas as principais visões sobre o instituto da causa. A primeira, que teve maior prestígio na França, assume uma posição mais subjetiva do instituto, aproximando-o dos motivos determinantes que levaram os contratantes a estabelecer o negócio jurídico. Já a segunda visão ganhou força na Itália e pode ser reputada mais objetiva, uma vez que, em seu estágio mais desenvolvido, passou a entender a causa como a síntese dos efeitos (jurídicos) essenciais do contrato16. Dessa forma, aceitando-se este último conceito de causa do contrato, pode ser dito que este somente poderá ser validamente estipulado e executado se aquela atender aos ditames constitucionais, isto é, se os efeitos decorrentes do negócio jurídico concretizarem os princípios consagrados na Constituição da República. Pode-se ainda dizer que a funcionalização do contrato deve considerar elementos mais concretos e não, por exemplo, a genérica capacidade das partes para celebrar negócios jurídicos bilaterais. Em conseqüência, ao se considerar a relação jurídica estabelecida, pode ser afirmado que se trata de relação jurídica de consumo, o que impõe a observância da legislação especial protetiva do consumidor. Neste sentido, pode ser visto o “comentário” ao art. 421 constante da obra coletiva TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES. Maria Celina Bodin de. et al., Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 13, onde se lê: “A partir de tal elaboração, aproximam-se as noções de causa e função social. Aquela serve de diretriz à autonomia privada, na medida em que possibilita o controle dos atos negociais. Por outro lado, o negócio jurídico que desatende a função social não terá sua causa considerada merecedora de tutela por parte do ordenamento (...). Tal controle, convém insistir, não se reduz ao exame da licitude dos negócios, mas abrange o juízo de conformidade com o ordenamento jurídico, a ser levado a cabo, casuisticamente, pela jurisprudência, segundo parâmetros e limites constitucionalmente estabelecidos (...)”. 11 Veja-se, por todos, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I, 20a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 508-509. (atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes) 12 Afirma o art. 104 do Código Civil: “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei”. 13 As hipóteses de nulidade do negócio jurídico estão previstas no art. 166 do Código Civil, verbis: “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV – não revestir a forma prescrita em lei; V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção”. Além desse dispositivo, o art. 167 também prevê a nulidade do negócio simulado, ao afirmar que: “Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. As hipóteses de anulabilidade dos negócios jurídicos, por sua vez, constam do art. 171, verbis: “Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I – por incapacidade relativa do agente; II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores”. O fato da causa não constar dos requisitos de validade do negócio jurídico (CC, art. 104) é corretamente elogiado por RENTERÍA, Pablo. “Considerações acerca do atual debate sobre o Princípio da Função Social do Contrato. In: Princípios do Direito Civil Contemporâneo, cit., p. 300, que assevera: “Além do mais, talvez não tenha andado mal o Código ao não incluir a causa no elenco de requisitos de validade do negócio jurídico (art. 104). Afinal, a causa não é um elemento essencial do negócio como o são os demais requisitos. A causa é um requisito de outra ordem, é um quid que ilumina o contrato na sua dimensão de valor e de regulamento de interesses. Daí que melhor seja prevê-la isoladamente tal como uma cláusula geral, o que evitaria, de passagem, as confusões suscitadas naqueles ordenamentos em que a causa aparece junto com os demais requisitos” (grifos no original). 14 Recorda-se aqui a doutrina de PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 94, que, ao se referir ao fato jurídico, recorda que “é da máxima importância identificar a estrutura e a função do fato jurídico. Preliminarmente, pode-se dizer que estrutura e função respondem a duas indagações que se põem em torno ao fato. O ‘como é?’ evidencia a estrutura, o ‘para que serve?’ evidencia a função”. 15 Esclarecedora é a opinião de KONDER, Carlos Nélson. Contratos Conexos: Grupos de Contratos, Redes Contratuais e Contratos Coligados, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 33, quando afirma: “O principal instrumento de funcionalização no âmbito dos negócios jurídicos – especialmente dos contratos – é a causa. Nos ordenamentos que a prevêem expressamente – como Itália, França e Espanha – a causa desempenha o relevante papel de controle da autonomia privada e, desse modo, de constitucionalização do contrato. Ao se exigir a licitude da causa do negócio, permite-se uma interferência maior na atividade negocial de maneira a exigir sua compatibilidade com os preceitos constitucionais. A causa também funciona como parâmetro de equilíbrio entre as partes e desempenha um papel extremamente relevante no processo de interpretação-qualificação do contrato”. 16 As noções subjetiva e objetiva da causa são estudadas por MORAES, Maria Celina Bodin de. A Causa dos Contratos. In: Revista Trimestral de Direito Civil, v. 21, Rio de Janeiro: PADMA, jan./mar. de 2005, p. 102-110. A autora, após passar em revista os diversos conceitos de causa, afirma (p. 108) que “nesta perspectiva, sendo a causa elemento inderrogável do negócio, e considerando, por outro lado, que não pode existir negócio que, em abstrato, no seu esquema típico, não tenha efeitos, entendeu-se que todo e qualquer negócio tem uma causa e que esta é, precisamente, a síntese dos seus efeitos jurídicos essenciais” (original grifado). Recorde-se que a mesma autora já havia se debruçado sobre o tema no alentado artigo O Procedimento de Qualificação dos Contratos e a Dupla Configuração do Contrato de Mútuo no Direito Civil Brasileiro. In: Revista Forense, v. 309, Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 33-61. 10 100 A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do Contratante Vulnerável 3. A função social do contrato e a proteção do consumidor Recorde-se, inicialmente, que entre os princípios da de cláusulas contratuais reputadas abusivas, as quais são consideradas “nulas de pleno direito”19. ordem econômica, tal como previstos pela Constituição da Além dessas hipóteses que, repita-se, não são exaus- República, encontra-se o princípio da “defesa do consumidor” tivas, será possível afirmar a abusividade de todo contrato de (art. 170, V). Essa mesma defesa foi ainda consagrada no consumo que não apresenta uma função social conforme os Título II da Lei Maior, dedicado aos “direitos e garantias ditames constitucionais ou, em outras palavras, cuja causa seja fundamentais”, que diz “o Estado promoverá, na forma da lei, contrária a estes mesmos princípios constitucionais20. a defesa do consumidor” (art. 5o, XXXII). Pode ainda ser dito que este caráter abusivo Assim, é possível afirmar que o constituinte originário resultará mais evidente quando o contrato estabelecido reconheceu a vulnerabilidade do consumidor, razão pela pelas partes envolver, de forma direta ou indireta, interesses qual estabeleceu, com prioridade temporal, a necessidade de ligados à dignidade da pessoa humana (Constituição da elaborar de uma lei que tutelasse este ente17. República, art. 1o, III), uma vez que, dentre os fundamentos Com a promulgação do Código de Proteção e Defesa da República, é este que deve ser considerado com especial do Consumidor tem-se o reconhecimento desta mesma destaque. Coerentemente com essa visão, pode ser recordado vulnerabilidade e referido diploma terá, entre suas finalidades, que é o próprio CDC que determina a observância da pessoa a busca do equilíbrio entre as partes de uma relação jurídica potencialmente consumidora, vedando que o fornecedor se naturalmente desequilibrada . aproveite de sua condição de especial vulnerabilidade21. 18 Dessa forma, é possível afirmar que a função social do contrato adquire especial relevância quando se trata de um 4. Conclusão contrato em que se observa uma relação jurídica de consumo. Concluindo, pode-se constatar que a referência à A favor deste raciocínio deve ser inicialmente recordado que função social do contrato permite igualmente uma análise de sua o próprio CDC consagra, em um rol não exaustivo, uma série causa, reputando-se abusiva e, portanto, inválida, toda cláusula A prioridade temporal referida no texto consta do art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), verbis: “Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”. Sabe-se, no entanto, que esse prazo foi em muito superado, uma vez que a Lei 8.078, que “dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências”, só foi promulgada em 11 de setembro de 1990, entrando em vigor 180 (cento e oitenta) dias após sua publicação. 18 O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor consta do inciso I do art. 4o do CDC, que dispõe: “Art. 4o. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”. A busca do equilíbrio na relação de consumo, além de constar do caput deste artigo, consta também do seu inciso III, que se transcreve: “(...); III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”. Sobre a vulnerabilidade do consumidor e as conseqüências daí advindas seja consentido remeter a CALIXTO, Marcelo Junqueira. O Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor. In: Princípios do Direito Civil Contemporâneo, cit. p. 315-356. 19 É o que diz o art. 51 do CDC, cujo caput afirma: “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...)”. Deste dispositivo merece ser destacado o consignado no inciso IV, que se transcreve: “IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade”. Além disso, afirma o § 1o do mesmo dispositivo: “§ 1o. Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso”. 20 Recorde-se, contudo, que, se for possível isolar a cláusula reputada abusiva, a nulidade não deve atingir todo o contrato, mas só a cláusula contrária ao sistema de proteção do consumidor. Neste sentido, pode ser visto o disposto no § 2o do art. 51 do CDC, que se transcreve: “Art. 51. (...). § 2o. A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes”. Interessante hipótese em que se afirmou o caráter abusivo de determinada cláusula contratual, mantendo-se a validade das demais, ocorreu por ocasião do julgamento do REsp. 476.649/SP (STJ, 3a T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 20.11.2003, publ. DJ em 25.02.2004). A questão versava sobre o valor da multa moratória decorrente do atraso no pagamento de mensalidades escolares. O consumidor, aluno da instituição ré, entendia aplicável o limite de 2% (dois por cento) previsto no art. 52, § 1o do CDC, com redação determinada pela Lei 9.298/96; a instituição educacional, por sua vez, pleiteava a aplicação do montante de 10% (dez por cento) sobre o valor da mensalidade, uma vez que seria inaplicável o disposto no art. 52 do CDC, pois não se tratava de empréstimo e sim de prestação de serviços educacionais. O recurso especial não foi conhecido e, em seu voto, a Ministra Relatora afirma que “urge salientar, por último, que a limitação da multa moratória incidente sobre mensalidades escolares determinada na origem encontra amparo na função social do contrato, e se harmoniza até mesmo com o art. 413 do CC/02, que veio tratar da matéria nos seguintes termos: ‘a penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e finalidade do negócio’. 21 Neste sentido, pode ser visto o rol – também não exaustivo – de práticas abusivas, constante do art. 39 do CDC. Destaca-se aqui o disposto no inciso IV, verbis: “Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...); IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”. Perfeita, igualmente, a defesa do paradigma da essencialidade, tal como formulada por NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato, cit., p. 342, que assevera: “Por esta via, sugere-se a consagração, ao lado e como complemento ao paradigma da diversidade, do ‘paradigma da essencialidade’, a um só tempo metodologicamente adequado aos novos critérios de diferenciação dos contratos, como, além disso, axiologicamente congruente com os valores constitucionais. O paradigma da essencialidade consubstancia um modelo de pesquisa contratual, segundo o qual o regime do contrato deve ser diferenciado em correspondência com a classificação do bem contratado. Esta classificação divide os bens em essenciais, úteis e supérfluos, levando em conta a destinação mais ou menos existencial conferida pelo sujeito contratante ao bem contratado”. 17 101 Artigo 09 contratual que atentar contra aquela função, uma vez que, em FONSECA, Rodrigo Garcia. A função social do contrato e o verdade, o que se verificará é a violação dos princípios e valores alcance do artigo 421 do Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, constitucionalmente consagrados, destacando-se o princípio 2007. fundamental da proteção à dignidade da pessoa humana22. Além disso, é possível afirmar que o exame do caráter abusivo de certos contratos de consumo ou, ao menos, GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004. de algumas de suas cláusulas, não poderá prescindir da KONDER, Carlos Nélson. Contratos Conexos: Grupos de consideração da pessoa concreta do contratante, de maneira Contratos, Redes Contratuais e Contratos Coligados. Rio de que, por exemplo, os contratos de crédito em favor de jovens Janeiro: Renovar, 2006. consumidores, – ou de idosos –, deverão receber especial MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do atenção por parte do julgador eventualmente chamado a Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São apreciar sua validade. Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 5. Referências AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Insuficiências, deficiências MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da MATTIETTO, Leonardo. O Direito Civil Constitucional boa-fé objetiva. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: 775, maio e a Nova Teoria dos Contratos. In: TEPEDINO, Gustavo de 2000, p. 11-17. (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin Janeiro: Renovar: 2000, p. 163-186. de; TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil Interpretado MORAES, Maria Celina Bodin de. A Causa dos Contratos. In: conforme a Constituição da República. V. II. Rio de Janeiro: Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: PADMA, Renovar, 2006. v. 21, jan./mar. de 2005, p. 95-119. CALIXTO, Marcelo Junqueira. O Princípio da Vulnerabilidade . O Procedimento de Qualificação dos Contratos do Consumidor. In: MORAES, Maria Celina Bodin de e a Dupla Configuração do Contrato de Mútuo no Direito (Coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Civil Brasileiro. In: Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, Janeiro: Renovar, 2006, p. 315-356. v. 309, 1990, p. 33-61. . Reflexões em torno do conceito de obrigação, seus . BARBOZA, Heloísa Helena; TEPEDINO, elementos e suas fontes. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Gustavo et al. Código Civil Interpretado conforme a Constituição Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de da República. Rio de Janeiro: Renovar, v. II, 2006. Janeiro: Renovar, 2005, p. 1-28. MULHOLLAND, Caitlin. O Princípio da Relatividade dos COSTA, Pedro Oliveira da. Apontamentos para uma visão Efeitos Contratuais. In: MORAES, Maria Celina Bodin de abrangente da função social dos contratos. In: TEPEDINO, (Coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil- Janeiro: Renovar, 2006, p. 255-280. constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 45-68. Neste sentido, é lapidar a afirmação de TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: A Parte Geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, 3a ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. XXXII, quando afirma que: “Entende-se, então, o real significado da cláusula geral da função social do contrato, prevista no art. 421 do Código de 2002, segundo a qual ‘a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato’. À luz do texto constitucional, a função social torna-se razão determinante e elemento limitador da liberdade de contratar, na medida em que esta só se justifica na persecução dos fundamentos e objetivos da República acima transcritos. Extrai-se daí a definição da função social do contrato, entendida como o dever imposto aos contratantes de atender – ao lado dos próprios interesses individuais perseguidos pelo regulamento contratual – a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos. Tais interesses dizem respeito, dentre outros, aos consumidores, à livre concorrência, ao meio ambiente, às relações de trabalho” (grifou-se). Tal perspectiva é compartilhada por MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais, 4a ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 210-222, quando analisa o contrato “como ponto de encontro de direitos fundamentais”. Essa nova percepção da função social do contrato não escapou à arguta observação da Ministra Nancy Andrighi que, por ocasião do julgamento do já citado REsp. 691.738/SC (STJ, 3a T., julg. em 12.05.2005, publ. DJ em 26.09.2005), afirmou o seguinte: “Assim também ocorrerá com o princípio da função social dos contratos. Para que essa evolução se possa verificar, todavia, é necessário que esse princípio seja, reiteradamente, submetido ao duro teste da realidade. Somente a prática demonstrará quais os limites em que o magistrado transitará em sua aplicação. Por isso é importante, em cada caso, relembrar o que levou o legislador a introduzir essa inovação em nosso sistema jurídico e, especificamente para cada caso concreto, verificar se há harmonia no sistema, se há uma situação de fragilidade de uma das partes e se, dado tudo isso, a aplicação do princípio se justifica”. Embora sem fazer alusão à causa do contrato, é válida a referência ao enunciado n. 23, aprovado na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2002, que afirma: “23 – Art. 421. A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”. 22 102 A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do Contratante Vulnerável NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contratos: do Código 2a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. 2a ed. São NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2003. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil 20a ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2004. (Atualizado por Paulo: Método, 2007. TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e relações de Direito Civil na experiência brasileira. In: Temas de Direito Civil, tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 21-46. Maria Celina Bodin de Moraes) PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. . Crise de fontes normativas e técnica legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.) A Parte Geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 3a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. XV-XXXIII. RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate sobre o Princípio da Função Social do Contrato”. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 281-313. ; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de et al. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, v. II, 2006. ROSENWALD, Nélson. A função social do contrato. In: TARTUCE, Flávio; HIRONAKA, Giselda. Direito Contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 81-111. 103 Artigo 10 Artigo 10 Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico Walter Guandalini Jr.* 1. Introdução. 2. Karl Marx e o discurso como ideologia. 3. Michel Foucault e a “Ordem do Discurso”. 4. A luta: “contra o Direito” ou “pelo Direito”? 5. Referências. 1. Introdução Este trabalho procura examinar as conseqüências, para o direito, de duas formas bastante distintas de se compreensão das funções desempenhadas pelo discurso e pela verdade na modernidade, jamais teve a pretensão de elaborar algo como uma “teoria do discurso” própria. compreenderem o discurso e suas funções na sociedade Assim, mediante essas análises panorâmicas, busca- moderna: a de Karl Marx e a de Michel Foucault. De um lado, remos apresentar duas formas distintas de enxergar o direito, Marx, com seu conceito de ideologia, tende a ver o discurso das quais decorrem posturas antagônicas diante do fenômeno (e, conseqüentemente, o discurso jurídico) como manifestação jurídico. O operador jurídico preocupado com a emancipação de superfície de fenômenos socioeconômicos mais profundos e social tem o dever de conhecer esse debate e fazer sua opção: ocultos; assim, o direito faria parte de um conjunto de discursos se é necessário lutar, a luta deve ser contra o direito ou pelo que atuam como “véu” da realidade, contribuindo para direito? distorcer a visão dos indivíduos a respeito de suas condições materiais de existência, ocultando a situação econômica real 2. Karl Marx e o discurso como ideologia da sociedade e perpetuando a existência de uma realidade Segundo Eagleton (1997:82), podem-se encontrar de exploração. Michel Foucault, por sua vez, ao se recusar a na obra de Marx quatro sentidos conflitantes do conceito de crer na existência de uma verdade mais profunda oculta por ideologia: um discurso que “engana”, tende a encarar o discurso como aquilo através do que e por que se luta, mais preocupado em A ideologia pode [1] denotar crenças ilusórias ou compreender as características do discurso que permitem socialmente desvinculadas que se vêem como fun- sejam enunciadas determinadas verdades, por determinados damento da história e que, distraindo homens e mu- sujeitos, em determinados espaços, do que em encontrar “a lheres de suas condições sociais efetivas, servem para verdade” por detrás do discurso que engana. Trata o discurso, sustentar um poder político opressivo. O oposto disso dessa forma, não como véu que distorce a realidade, mas como seria um conhecimento preciso, imparcial das con- luta, duelo de espadas de cujo embate surgem “centelhas de dições sociais práticas. Por outro lado, a ideologia verdade” (FOUCAULT, 2001b:17). pode [2] designar as idéias que expressam os interes- Sabendo ser impossível estabelecer de forma definitiva ses materiais da classe social dominante, os quais são apenas uma concepção marxiana sobre a função do discurso úteis na promoção do seu domínio. O contrário disso na sociedade capitalista, e um conceito de ideologia, será poderia ser o verdadeiro conhecimento científico ou apresentado apenas um panorama geral da visão marxista a consciência das classes não-dominantes. Finalmen- a respeito do discurso, com breve exposição do conceito de te, a ideologia pode ser ampliada para [3] abranger ideologia e de suas características principais. O mesmo vale para todas as formas conceptuais em que é travada a luta Foucault, autor pouco dado a elaborações teóricas sistemáticas de classes como um todo, o que, presumivelmente, in- e que, apesar de ter dedicado grande parte de suas pesquisas à cluiria a consciência válida das forças politicamente Mestre e doutorando em Direito do Estado (UFPR), membro do Núcleo de Pesquisa Direito, História e Subjetividade (UFPR), professor da Faculdade de Direito Dom Bosco e da Faculdade de Direito Opet, advogado da Companhia Paranaense de Energia. Contato: [email protected]. * 104 Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico revolucionárias. O contrário disso poderia ser, pre- de vida reais, demonstramos o desenvolvimento dos sumivelmente, qualquer forma conceptual corrente- reflexos e ecos ideológicos desse processo de vida [...] mente não envolvida em tal luta. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência (MARX e ENGELS, Além dessas três concepções, nos escritos econômicos 1984:22). tardios aparece a quarta concepção de ideologia de Marx, que deixa de tratá-la como resultado de a realidade tornar-se Ou seja, a ideologia consiste num processo de inversão invertida na mente, para passar a encará-la como resultado da realidade, por meio do qual as formas de consciência (as do fato de a mente refletir uma inversão real – transferindo idéias) passam a ser consideradas a origem e o fundamento a ideologia, dessa forma, da superestrutura para a base do das condições materiais de existência, anteriores lógica, sistema de produção capitalista: ontológica e historicamente ao ser, quando, na verdade, é o ser que precede, lógica, ontológica e historicamente a consciência, Existe uma espécie de dissimulação ou duplicidade determinando-a. Nas palavras de Marx e Engels (1984:33): embutida nas próprias estruturas econômicas do capitalismo, de tal modo que não pode deixar de se O primeiro ato histórico é a produção da vida material. apresentar à consciência de maneira distorcida quanto [...] A primeira necessidade satisfeita conduz-se à ao que efetivamente é. A mistificação, por assim dizer, produção de novas necessidades. [...] A terceira relação é um ‘fato objetivo’ incrustado no próprio caráter do é esta: os homens que, dia a dia, renovam a sua própria sistema: há uma contradição estrutural inevitável entre vida começam a fazer outros homens, a reproduzir-se. os conteúdos reais do sistema e as formas fenomenais [...] A produção da vida surge agora imediatamente em que esses conteúdos se oferecem espontaneamente como uma dupla relação: por um lado, como relação à mente (EAGLETON, 1997:84). natural; por outro como relação social. [...] Revelase, assim, logo de princípio, uma conexão materialista De qualquer modo, Eagleton (1997:86) afirma que, dos homens entre si, condicionada pelas necessidades em todas as concepções marxianas, a ideologia não parece e pelo modo da produção. [...] Só agora, depois de já ter nenhum propósito além de ocultar a verdade da sociedade termos considerado quatro momentos, quatro facetas de classes, devendo ser vista menos como uma força ativa na das relações históricas primordiais, verificamos que o constituição da subjetividade humana do que como um “véu” homem também tem “consciência”. que impeça um sujeito já constituído de compreender o que esteja diante dele. Sob este aspecto, portanto, ideologia é a crença no fato Esse conceito de ideologia como véu que oculta de que as idéias são autônomas e eficazes, atuando por conta a realidade pode ser analisado a partir de duas dimensões própria na transformação da realidade, quando, na verdade, centrais: a dimensão cognitiva e a dimensão sociológica. A a transformação só ocorre através de uma atuação direta nas dimensão cognitiva (ou epistemológica) diz respeito a um condições materiais de existência, nos processos históricos pensamento que opera sob o princípio de inversão, que faz a concretos, na vida real – e não nas formas de consciência. As consciência se tornar desvinculada das práticas sociais que lhe idéias só podem ser compreendidas como ecos/reflexos das deram origem e passar a ser considerada fundamento da vida condições materiais de existência; não são autônomas com histórica. É com base nessa idéia que Marx constrói a metáfora relação à realidade. Nesse sentido, a ideologia é uma visão da câmara obscura, afirmando: invertida da realidade, sendo o seu oposto “a verdade” – fornecida pelo materialismo histórico, que permite conhecer as A consciência nunca pode ser outra coisa senão o condições reais de existência. ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo EAGLETON, Terry (1997:72) sintetiza magistralmente real de vida. Se em toda ideologia os homens e as as conseqüências políticas de tal visão da relação entre as suas relações aparecem de cabeça para baixo, como formas de consciência e as condições materiais de existência: numa câmara obscura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico. [...] Em completa Se as idéias se situam na fonte mesma da vida oposição à filosofia alemã, que desce do céu à terra, histórica, é possível imaginar que se pode mudar a aqui se sobe da terra para o céu. [...] Partimos dos sociedade, combatendo-se as idéias falsas com idéias homens reais e ativos e, com base em seus processos verdadeiras; é essa combinação de racionalismo e 105 Artigo 10 idealismo que Marx e Engels rejeitam. Para eles, as exerce, numa microfísica do poder. Para Foucault, “o discurso ilusões sociais estão ancoradas em contradições reais, não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; e somente pela atividade prática de transformar as é, também, aquilo que é objeto do desejo; [...] o discurso não últimas é que se podem abolir as primeiras. Uma é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de teoria materialista da ideologia é inseparável de uma dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder política revolucionária. do qual nos queremos apoderar” (2001a:10). Desse modo, o Há, porém, outra dimensão do conceito marxiano de ideologia: a dimensão sociológica, que diz respeito ao papel desempenhado pelas formas de consciência na manutenção das relações de classe. Segundo Marx (1984:56), “as idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes. [...E] as idéias dominantes não são mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes”. A ideologia reproduz, portanto, a dominação direta no campo do simbólico, da consciência, promovendo a sua perpetuação no tempo; o uso das formas simbólicas está associado a uma relação de dominação, a ideologia é um instrumento de dominação. Logo, a ideologia desempenha a função de exercer a dominação no campo das idéias, ocultando-a e possibilitando a reprodução das relações de produção. Através das funções de universalização e naturalização, a ideologia é dissociada de suas origens (a classe dominante) e oculta que, na realidade (no âmbito do ser), há exploração. Ao tornar universais e naturais as ilusões criadas pela classe dominante, a ideologia filósofo rompe com a tradição marxista, que enxerga os níveis da consciência numa relação de dependência com a “infraestrutura material” (o que leva Marx a afirmar, por exemplo, que “a ideologia não tem história” – querendo dizer com isso que ela não tem autonomia; sua história é a história da infraestrutura econômica). A consciência (o discurso) não representa apenas uma tradução, em nível da superestrutura, das relações de dominação existentes na infra-estrutura material; o discurso tem independência, possui materialidade própria, não constituindo um meio pelo qual se luta, mas aquilo pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar. Foucault inicia o estudo dos meios de controle do discurso pelos procedimentos externos de exclusão, que podem ser divididos em interdição, separação/rejeição e vontade de verdade. Trata-se daqueles procedimentos de controle e delimitação do discurso que se exercem do exterior e “concernem à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo” (FOUCAULT, 2001a:21). oculta origens, motivos e conseqüências reais das formas de A interdição é o mais evidente dos procedimentos de consciência, contribuindo para a manutenção de relações de exclusão. Nem todos podem falar, nem sobre tudo, nem em dominação e exploração. O oposto desse sentido de ideologia qualquer circunstância. Os procedimentos de interdição são seria a “verdade emancipatória” – fornecida pelo materialismo o privilégio do sujeito (sobre certos assuntos apenas alguns histórico. Só seria possível a extinção da ideologia com o fim podem falar), o tabu do objeto (não se pode falar sobre tudo) e das relações de dominação. o ritual da circunstância (há certas ocasiões em que não se pode falar). As regiões em que o discurso mais sofre interdições são 3. Michel Foucault e a “Ordem do Discurso” Para Michel Foucault, contrariamente à tarefa as regiões da sexualidade e da política, o que revela claramente sua ligação com o desejo e o poder. proposta por Marx, trata-se de analisar o discurso como A separação e a rejeição representam a segregação disputa, como jogo estratégico e polêmico, de ação e reação, daquele discurso que não pode circular como os outros. de luta. A preocupação de Foucault não é analisar o caráter Foucault tem em mente principalmente a oposição entre ideológico dos discursos; ele parte da hipótese de que “em razão e loucura, nesta classificação. Historicamente, a toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo palavra do louco é considerada nula, não tendo verdade nem controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo importância; ou se lhe atribuem poderes, como o de dizer número de procedimentos que têm por função conjurar seus uma verdade escondida, de pronunciar o futuro, de enxergar poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, o que os outros não podem perceber. Essa separação, longe esquivar sua pesada e temível materialidade” (2001a:9). Ou de estar, hoje apagada, ainda existe, apenas exercida de outro seja, Foucault não pretende estudar as restrições impostas ao modo. Basta pensar em todo o aparato de saber, toda a rede discurso por um sujeito racional (individual ou de classe) e de instituições que permite a alguém (médico, psicanalista) capaz de avaliar vantagens, através de uma relação de poder; escutar a palavra do louco e decifrá-la. Ou seja, todas essas seu objetivo é analisar o “jogo de limitações e exclusões” que formas de saber também veiculam poder, interditando de o discurso, enquanto detentor de uma materialidade, sofre e vários modos o discurso. 10 Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico A vontade de verdade diz respeito à oposição entre da repetição. O novo não estaria no que é dito, mas no o verdadeiro e o falso. Parece arriscado considerar essa oposi- acontecimento à sua volta. Isso tudo fica extremamente claro no ção, que não seria nem arbitrária nem modificável nem insti- discurso jurídico; o comentário sobre a lei tem justamente esse tucional nem violenta, como um terceiro sistema de exclusão. papel de disfarçar a novidade, excluir o acaso, o acontecimento, Contudo a separação entre “verdadeiro” e “falso” é historica- da esfera da aplicação do direito, mascarando o voluntarismo mente constituída. Com o decorrer do tempo, vão surgindo do aplicador da lei ao caso concreto e garantindo a manutenção novas formas na vontade de verdade, que substituem as for- de uma relação de poder. Ao contrário do que afirma Kelsen mas anteriores. Além disso, essa vontade de verdade, como os (2001:395), no entanto, não é apenas a aplicação da lei ao outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institu- caso concreto que gera o novo, que “cria direito”. Também o cional, sendo reforçada e reconduzida por todo um conjunto comentário sobre a lei o faz, disfarçado de discurso descritivo, de práticas como a pedagogia, as bibliotecas, as comunidades científico; disfarçado de “ciência do direito”. científicas, mas também pelo modo como o saber é aplicado O princípio de autoria, por sua vez, não deve ser numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e entendido como o “indivíduo falante que pronunciou ou atribuído. Desse modo (apoiada num suporte e numa distri- escreveu um texto, mas como princípio de agrupamento do buição institucional), a vontade de verdade tende a exercer so- discurso, como unidade e origem de suas significações, como bre os outros discursos uma espécie de pressão e um poder de foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2001a:26). Nos discursos coerção. Como se todos os discursos sociais (a literatura, as religioso, literário, filosófico, científico, a indicação de um práticas econômicas, a lei) não pudessem ser autorizados senão autor, mais que apenas um indicador de verdade, “é aquele por um discurso de verdade. que dá à inquietante linguagem [...] suas unidades, seus nós de Mas há também procedimentos internos de exclusão, coerência, sua inserção no real” (FOUCAULT, 2001a:29). procedimentos de controle e delimitação que são exercidos O princípio da autoria é um procedimento de exclusão pelos próprios discursos; funcionam a título de “princípios do acaso bastante presente também no direito. Ao se afirmar a de classificação, de ordenação, de distribuição, como se se unidade do ordenamento jurídico, a interpretação sistemática, tratasse, dessa vez, de submeter outra dimensão do discurso: a o que mais se faz senão determinar uma espécie de autor, que do acontecimento e do acaso” (FOUCAULT, 2001a:21). Trata- confere coesão e unidade ao sistema, que lhe confere identidade? se dos princípios do comentário, da autoria e das disciplinas. Um sistema em que cada elemento(-lei) foi criado por pessoas Sobre o comentário, Foucault supõe que nas sociedades diferentes e em momentos históricos diferentes (ou, em outras haja, muito regularmente, uma espécie de “desnivelamento palavras, um conjunto de obras escritas por diferentes autores entre os discursos”. Há os discursos que se dizem no correr e em diferentes idades). Geralmente esse papel de princípio dos dias e que passam com o ato mesmo que os pronunciou, unificador do sistema é conferido à Constituição. Mas e há os discursos que “estão na origem de certos números de também a Constituição não tem autor, é criada em assembléia, atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam de que participam os mais diversos a(u)tores, representando deles”. São uma espécie de discursos fundamentais, criadores, os mais diversos interesses e as mais diversas intenções. A que, “indefinidamente, para além de sua formulação, são unidade da Constituição é falsa, abstrata, inventada, ficcional. ditos, permanecem ditos e ainda estão por dizer” – como, Não há “balanceamento de princípios”, mas realmente por exemplo, os textos religiosos, jurídicos, literários ou contradição insuperável entre eles, normas constitucionais científicos (FOUCAULT, 2001a:22). Esse desnível entre o e inconstitucionais, jogo caótico em que cada parte procura “texto fundamental/origem” e o “comentário” desempenha apoderar-se de um pedaço do discurso, em prol de interesses dois papéis: por um lado, permite construir indefinidamente materiais bem definidos. A idéia de sistema é apenas uma novos discursos; o “texto fundamental”, em função do sentido tentativa de superação dessas contradições, procedimento de múltiplo ou oculto de que é detentor, funda uma possibilidade exclusão do acaso no discurso jurídico (e que parte do próprio aberta de falar; por outro, o comentário tem o papel de discurso), com o intuito de se garantir (também por interesses “dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto materiais bem concretos) a segurança jurídica. primeiro” (FOUCAULT, 2001a:25). Também as disciplinas são princípio de limitação Assim, o comentário exclui o acaso do discurso, do discurso. Uma disciplina “se define por um domínio de permitindo que se diga algo novo, além do texto mesmo, mas objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições com a condição de o próprio texto ser dito e realizado. A consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de multiplicidade, o novo, o acaso são disfarçados pela máscara técnicas e de instrumentos”. Uma disciplina não é a soma de 107 Artigo 10 tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa; para Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e políticos que certa proposição pertença a uma disciplina é necessário estão intimamente ligados a essa prática. que ela responda a condições, mais estritas e mais complexas do que a pura verdade: a) ela precisa dirigir-se a um corpo de objetos determinado; b) deve utilizar instrumentos conceituais ou técnicas de um tipo bem definido; c) deve poder inscrever-se em certo horizonte teórico. A função desempenhada pelas sociedades de discurso é “conservar ou produzir discursos, mas, para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa atribuição” (FOUCAULT, 2001a:39). Parece claro que o discurso médico, o discurso econômico, o discurso político, o discurso jurídico, além de todas as formas de discurso técnico ou científico (Foucault cita o próprio “ato de escrever”) funcionam nesse regime de exclusividade de divulgação. Em resumo, proposição deve preencher exigências Também os “grupos doutrinários” constituem sociedades de complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto discurso. de uma disciplina; antes de ser declarada verdadeira Finalmente, o princípio de apropriação social do ou falsa, deve encontrar-se no verdadeiro; [...] é discurso: de acordo com Foucault, a educação, embora seja sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma o instrumento pelo qual todo indivíduo pode ter acesso a exterioridade selvagem; mas não nos encontramos qualquer tipo de discurso, é determinada pelas linhas de no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma conflito, oposição e lutas sociais. Assim, “todo sistema de ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um educação é uma maneira política de manter ou de modificar de nossos discursos (FOUCAULT, 2001a:35). a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que Existe, ainda, um terceiro grupo de procedimentos de controle dos discursos, que não diz mais respeito à tentativa de dominar os poderes que eles têm nem de conjurar os acasos de sua aparição. São os procedimentos de rarefação do sujeito: Trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam. Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas, enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala (FOUCAULT, 2001a:37). Em outras palavras, trata-se de restringir a participação de sujeitos no discurso, através dos procedimentos do ritual, das sociedades de discurso e das apropriações sociais. eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2001a:44). Interessante o fato de Foucault falar em manter ou modificar, o que significa que tal apropriação social do discurso pode também desempenhar uma função revolucionária ou emancipatória (dependendo de como se dê essa apropriação social – que é, porém, sempre apropriação). É claro que isso inclui todo o sistema universitário, principalmente aquelas faculdades destinadas a determinados setores da sociedade (como é o caso da Faculdade de Direito, mas também de Medicina, Engenharia, etc.). Desse modo, um discurso que já é bastante restrito e limitado se torna, ainda, propriedade exclusiva de determinada classe social. Ao analisar os procedimentos de restrição do discurso, o objetivo de Michel Foucault, na verdade, é tratar não das representações que pode haver por trás dos discursos, mas dos discursos como séries regulares e distintas de acontecimentos. O discurso como algo portador do acaso, do descontínuo, da materialidade, e não somente como tradução de relações de poder, de condições materiais de existência, ou da verdade “em si” do mundo. O discurso é, ele próprio, uma relação de poder, não apenas a sua representação. 4. A Luta: “contra o Direito” ou “pelo Direito”? Após esse breve exame das concepções distintas Segundo Foucault, o ritual define a qualificação que Marx e Foucault têm do discurso, podemos avaliar suas que devem possuir os sujeitos que falam; define os gestos, os conseqüências para uma análise crítica do direito. De modo comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de signos geral, se o direito é visto, marxianamente, como parte de uma que deve acompanhar o discurso. Determina, para os sujeitos superestrutura ideológica que contribui para a perpetuação que falam, propriedades singulares e papéis preestabelecidos. de um sistema de exploração e dominação, parece ser dever 108 Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico do jurista comprometido com a emancipação lutar contra a respeitados sem intervenção direta do aparelho repressor – aplicação do direito em concreto, em todos os casos em que apenas pela perspectiva de que, em caso de descumprimento, essa aplicação contribuir para a manutenção da exploração a repressão se fará sentir. (em decisões contra legem), mas também contra a existência Contudo as pessoas não obedecem aos deveres jurídi- do direito em abstrato, lutando contra o sistema que reproduz cos apenas em função da possibilidade de repressão; elas po- relações de produção injustas e desiguais. Se analisarmos dem fazê-lo por ter internalizado as condutas prescritas pelo a questão sob o prisma foucaultiano, porém, veremos que a direito, acreditando que têm o dever moral de agir em confor- luta não deve ser contra o direito, mas pelo direito, no duplo midade com elas. A razão por que agem em conformidade com sentido que a expressão contém: como luta através do direito, as regras, nesses casos, é por terem internalizado as ideologias que se aproveita dos interstícios da lei para veicular contra- jurídica e moral que servem de suplemento ao direito. poder na decisão do caso concreto, mas também como luta que Dessa forma, Althusser pôde afirmar que: tem por objetivo o domínio do direito, que é objeto da luta, visando à apropriação social dessa forma de discurso para a O direito é um sistema formal sistematizado, não- emancipação social de forma abstrata. contraditório e saturado, que não tem existência Numa visão marxista do direito moderno, Althusser própria. Ele se apóia, por um lado, em uma parte o conceitua como “um sistema de regras codificadas que são do aparelho repressor do Estado e, por outro, na aplicadas, isto é, respeitadas e contornadas na prática cotidiana” ideologia jurídica e em um pequeno suplemento de (1990:1). Ele afirma que suas principais características são a ideologia moral [que desempenha o papel de policial sistematicidade, a formalidade, e a repressividade. ausente] (1990:12). Em primeiro lugar, o direito assume a forma de um sistema que tende à não-contradição e à saturação internas. Assim, entre as regras desse sistema deve haver uma coerência tal que não seja possível invocar determinada regra contra a outra, de modo que se elimine toda possibilidade de contradição. Além disso, deve ser saturado, de modo a abranger todos os casos que possam ocorrer no mundo fático, não havendo conflito que não possa ser resolvido dentro do próprio sistema jurídico. Para que a prática jurídica funcione, basta a ideologia jurídico-moral; as relações de produção são facilmente reproduzidas e as coisas funcionam por si sós. Ainda, a ideologia jurídico-moral não intervém apenas na reprodução das relações de produção, mas no próprio funcionamento. O funcionamento do direito é, portanto, ininteligível fora dessas duas realidades: o Estado (aparelho repressivo) e a ideologia (aparelhos ideológicos). Mas o direito funciona de O direito também é formal, pois não incide sobre o maneira prevalente pela ideologia jurídico-moral, apenas conteúdo das relações jurídicas, mas apenas sobre a sua forma. apoiada por intervenções repressoras intermitentes, de modo Essa formalidade, de fato, oculta os conteúdos aos quais se que podemos considerá-lo como parte do aparelho ideológico aplica a forma do direito, já que ele não teria sentido se não de Estado. Logo, sua função específica dominante não seria se aplicasse a conteúdos definidos os quais, sendo o direito garantir diretamente a reprodução das relações de produção caracteristicamente formal, se encontram fora do direito. Esses (para a qual também contribui), mas assegurar diretamente o conteúdos são as relações de produção e seus efeitos. O direito funcionamento das relações capitalistas de produção. tem como objeto concreto as relações capitalistas de produção Numa visão mais otimista, o jusfilósofo marxista enquanto faz abstração delas. Desse modo, o direito exprime Roberto Lyra Filho (1980) tenta criar um direito marxista as relações de produção, embora não faça qualquer menção a que seja instrumental e não impeditivo da transformação essas relações, escamoteando-as. social. Assim, afirma que a lei sempre emana do Estado, Finalmente, o direito é repressor, pois deve própria permanecendo, em conseqüência disso, ligada à classe existência à existência de um sistema correlativo de sanções. dominante. Desse modo, a legislação é sempre direito e Não há obrigação sem que exista uma sanção a se aplicar àquele antidireito, o próprio direito e a sua negação, uma vez que que a descumprir, de modo que o direito pressupõe a existência é entortada pelos interesses de classe. A identificação entre de um aparelho de repressão – o aparelho repressivo de Estado. direito e lei seria uma racionalização ideológica da burguesia, A prática do ato não repousa exclusivamente sobre a repressão que pretende afirmar o fim das contradições na sociedade e em ato, mas também sobre a repressão preventiva. Assim, o caráter justo desse direito, que na verdade é de classe. Com a repressão não intervém a não ser quando o dever jurídico esse argumento, Lyra Filho pretende afirmar, implicitamente, é descumprido, havendo enorme quantidade de contratos a existência de um direito para além do direito de classe, um 109 Artigo 10 direito que teria por fundamento o justo, independente do Seja ela vista como fim de todo o direito (Althusser), seja direito positivo, e que caberia ao jurista encontrar para aplicar como fim do discurso do direito e transformação do discurso ao caso concreto. Lyra Filho parte, portanto, do pressuposto jurídico1 em “jusnaturalismo dialético” (Lyra Filho), a teoria de que existe algo como uma Justiça que está acima das leis e marxista não enxerga qualquer possibilidade de utilização e que é o verdadeiro direito. apropriação do direito burguês como ação instrumental para a Reconhece, dessa forma, a existência de um germe emancipação. Sendo o direito apenas “ideologia”, é impossível de contestação possível no direito natural, que o torna cogitar a possibilidade de seu uso para a transformação social. afeiçoado às reivindicações supralegais, propício à utilização Não apenas porque lei e doutrina reproduzem as relações pelos grupos oprimidos. A partir desse reconhecimento capitalistas de produção e atendem a interesses da classe defende a existência de um “direito natural de combate”, burguesa, mas também porque se trata apenas de idéias. E através do qual se unificariam, num fôlego dialético, na idéias não transformam o mundo. A exploração e as diversas totalidade do processo histórico, os aspectos de positividade formas de ideologia estão ancoradas em contradições reais, e e justiça, legalidade e legitimidade. Esse direito superaria a somente pela atividade prática se podem extinguir as formas de antinomia entre direito positivo e direito natural, culminando dominação. A luta política através do direito é, na melhor das na totalidade histórico-social. Uma visão dialética poderia hipóteses, apenas inútil. Um véu não é uma arma; deve apenas retomar a unidade do direito, superando a oposição entre ser retirado, para que os combatentes possam ter visão mais positivismo e jusnaturalismo e criando algo como uma clara do campo de batalha. “teoria do direito marxista”. A visão foucaultiana do discurso parece ser mais O direito, para Lyra Filho, deve resultar justamente do interessante para uma análise crítica do direito. Afinal, ao embate entre os vários “direitos” (internacional, nacional, local tratar o discurso, ele próprio, como uma relação de poder, e inclusive o “direito anômico”, que representa os interesses permite vislumbrar a possibilidade de resistência advinda do de grupos e classes dominados que buscam, reivindicando a interior do próprio discurso. Sendo o poder tratado de forma validade e o reconhecimento dessas normas, a libertação de relacional, a dominação transmitida do interior do discurso sua situação de sujeição), atingindo a síntese jurídica que jurídico contém, em si própria, os germes da própria extinção, deveria indicar a direção do progresso da humanidade em na possibilidade de resistência ao poder. Do mesmo modo sua caminhada histórica (LYRA FILHO, 1988:108). Em como não existe poder sem resistência ao poder, não existe outras palavras: o direito deve hegelianamente compreender a direito de dominação sem que, em seu interior, se encontre, totalidade do processo histórico, gerando uma síntese dialética também, o direito de libertação. de todas as forças em conflito, que apontaria, através de um O objetivo do jurista crítico deve ser, portanto, não “vetor resultante”, a direção do progresso da humanidade. simplesmente lutar contra o direito, exigindo sua extinção Esse vetor resultante de todas as forças do processo histórico em função da sua caracterização como “burguês”. Diga-se seria representado (aproximadamente) pelos direitos humanos, de passagem, outra manifestação do princípio da autoria. que indicariam, portanto, a direção do progresso, devendo ser O jurista crítico deve, enxergando o direito como campo de o fundamento de todo direito positivo existente. lutas, ser construído não somente pela burguesia, mas pelo Percebe-se que a visão marxista a respeito do direito conjunto das forças sociais em conflito, centelha que surge se encontra presa num beco sem saída. Tratando o direito (e, de das espadas em duelo. Ele também precisa saber aproveitar- forma geral, o conjunto dos discursos correntes na sociedade) se de seus interstícios e contradições, em prol da resistência como racionalização ideológica que oculta e distorce, como e da emancipação: desistir de levantar o véu e aprender a um véu, as condições materiais de existência e as relações de utilizá-lo como espada. Dessa forma, tornará-se-á possível exploração econômica da sociedade capitalista, não consegue ‘reterritorializar’ o discurso jurídico, subvertido em instrumento propor alternativa que não seja o fim do próprio direito. de libertação. Fazemos referência, nesse trecho, à distinção proposta por Correas (1995:73) entre discurso do direito e discurso jurídico. Segundo o autor, o discurso do direito é um discurso prescritivo que organiza a violência, produzido por um funcionário do Estado, cujo sentido é autorizado (o seu conteúdo deôntico está previsto como o conteúdo que esse funcionário pode produzir) e vinculante (produzido com a intenção de se dirigir à conduta do outro para determiná-la, ameaçando-o com a violência). Em outras palavras, são “prescrições que ameaçam com a violência, reconhecidas como produzidas por funcionários e autorizadas conforme um sistema normativo eficaz” (1995:114). Como exemplos, podemos mencionar o Código Civil, a Constituição, regulamentos expedidos por órgãos do Estado, etc. Os discursos jurídicos, por sua vez, são “os discursos prescritivos ou descritivos que acompanham o direito no próprio texto ou constituem meta-discursos a respeito dele” (1995:114). São os fundamentos de resoluções, preâmbulos de constituições, descrições dos professores, dos funcionários, dos cidadãos, dos cientistas, além de definições e prescrições que não ameaçam com a violência, mas que têm uma efetividade específica por estar nos mesmos textos que o direito. Todos os discursos jurídicos têm o direito como referente. 1 110 Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico 5. Referências KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, Fontes, 2000. 1990. LÖWY, Michel. Ideologias e ciência social: elementos para uma . Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1992. análise marxista. São Paulo: Cortez, 1993. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito? São Paulo: Brasiliense, CÁRCOVA, Carlos Maria. Las funciones del derecho. Materiales para uma teoria crítica del derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1991. CORREAS, Óscar. Crítica da ideologia jurídica – ensaio sóciosemiológico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris 1995. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Unesp/Boitempo, 1997. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. . A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2001a. . A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2001b. 1980. MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra, 1980. . Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982. . A ideologia alemã – teses sobre Feuerbach. São Paulo: Moraes, 1984. . O dezoito brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2000. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria . Ditos e escritos IV: estratégias, saber-poder. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. . Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2004a. 111