REVISTA JURÍDICA DA FACULDADE DE DIREITO – V. 2 – N o. 1 – ANO II
ISSN 1980—7430
Biblioteca da Faculdade Dom Bosco — Curitiba
EOS — Revista Jurídica da Faculdade de Direito / Faculdade Dom
Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito. — v. 2, n. 1 (jan./
jun. 2008) – . — Curitiba: Dom Bosco, 2008 – .
Semestral.
ISSN 1980—7430
1. Direito – Periódicos. I. Faculdade Dom Bosco. Núcleo de Pesquisa do Curso de Direito.
CDD 340
EOS
Revista Jurídica da Faculdade de Direito
ISSN 1980—7430
DIRETOR-geral DO GRUPO DOM BOSCO
Durval Antunes Filho
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COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO
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DE DIREITO — EOS
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Tiragem
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1 000 exemplares
Prof. Msc. Marcus Paulo Rycembel Boeira
A P R E S E N TA Ç Ã O
Eis que nos encontramos pela terceira vez, na continuidade da nossa neófita produção
científica e fazendo coro às palavras de Ludwig Wittgenstein (Investigações filosóficas. São Paulo:
Abril, 1979.): “Aquilo que os homens aceitam como justificação, revela como pensam e como
vivem”. E nesse diapasão, tenho a honra de apresentar mais uma edição da revista EOS, com
a nitidez de que o trabalho, mesmo árduo, perde a aspereza quando da profusão de um saber
reconhecidamente novo – na discussão do conhecimento e valores de docentes e convidados com
quem temos a honra de partilhar nossa história e com orgulho na confiança em nosso trabalho.
Notório é que a produção acadêmica é muito mais um prazer do que um lavoro.
Ainda que os problemas práticos enfrentados pelos acadêmicos do curso sejam sempre
levados em conta, o objetivo da revista EOS consiste em fazer adquirir, de uma vez por todas,
os mecanismos e os hábitos necessários para construir uma promissora carreira jurídica. E
essa publicação não poderia assim, convidar o estudante a contentar-se em reproduzir essa ou
aquela receita pessoal ou profissional, pois o pilar maior se dimensiona a trazer o debate, a
interdisciplinaridade, pois as abordagens aqui trazidas, obviamente serão múltiplas, visto que,
notoriamente para alguns, devemos nos concentrar no campo privilegiado e seguro da história
do direito, para outros, porém, a premissa mais coerente seria o lançamento ao debate vivo,
contextualizado e representado por uma jurisprudência em constante mutação. Seja como for,
a EOS está distante de uma atitude passiva, que apenas repita as orientações dos doutrinadores
já conhecidos, porque os artigos ofertados contêm instruções que convidam a fazer um exercício
axiológico, uma análise da técnica intelectual, a qual será útil para o aprimoramento pessoal e
profissional dos acadêmicos e de todos os estudantes que optarem pela inquietude e pela busca
incessante pelo conhecimento, pelo novo, pelo desafio.
E, ao falar em desafio, destaco ainda a promessa feita em nossa primeira edição que
cumprir-se-á nesse momento, pois o Boletim Acadêmico é lançado conjuntamente com a 3a edição
da EOS. Visto que promessa se perfaz em dívida e não inadimplimos com a nossa palavra, os
senhores estão convidados duplamente: a escolher junto a Coordenação o nome do boletim online e a enviarem artigos de própria autoria que serão apresentados à comunidade científica, visto
que esse debute se concretizará no mês de outubro do presente ano.
Sem o intuito da poetização das palavras, referimo-nos a Helena Kolody: “Pintou estrelas
no muro e teve ao céu ao alcance das mãos”. Queridos alunos, professores, advogados, juristas,
juízes, promotores, procuradores enfim leitores da EOS, que o nosso sonho frutifique em vós, pois
sois a razão e o motivo da nossa luta diária contra a ignorância e contra a violência que ela traz
consigo. Diante de um mundo conturbado, difícil é crer na verdade, difícil é realizar sonhos, mas
que a confiança vos inspire e que possamos construir uma realidade melhor por meio dos nossos
sonhos.
A leitura é vossa, mas o agradecimento é nosso à Coordenação do Curso de Direito, na
pessoa do Professor Luciano Tinoco Marchesini, pela confiança e pela argúcia nas estratégias e
nas cobranças; ao Professor Evilásio Gentil, um profissional que nos retira do amadorismo e nos
instrui na conduta profissional; à Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Profa. Michele Catherin
Arendt, que nos ensina ser possível um “fazer diferente”; ao Diretor Augusto César Tosin, um
incentivador incansável das nossas atividades. E, ainda nominalmente, ao Professor Roggi Atílio
Ercole Filho e a Profa Carmen Pick Schimdt, equipe incansável no reconhecimento do Curso
de Direito de nossa IES; a todo o grupo Dom Bosco, pois sem a gráfica, a administração e o
marketing teríamos em mãos somente um projeto e não a concretude do nosso trabalho. Até a
próxima edição.
Professora Tais Martins
Coordenadora da Revista EOS
www.dombosco.com.br
SUMÁRIO
Artigo 01
Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função
Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações
Carolina Fátima de Souza Alves
e Cláudia Maria Barbosa
16
Artigo 02
Conhecimento e Consciência: o
despertar para o meio ambiente
Evilásio Gentil de Souza Neto
Artigo 03
A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
Flávia Piovesan
34
08
20
Artigo 04
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da
Acusação pela Prática de Crime Doloso diante do Princípio
da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
Gisela Maria Bester
Vivian Hey Wescher
Artigo 05
Responsabilidade Pressuposta
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
54
Artigo 06
A Responsabilidade Social das Empresas
como Forma de Efetivação da Cidadania
Irineu Galeski Junior
77
Artigo 07
A Escola do Recife e a Condição Histórica do
Saber Criminológico no Brasil do Século XIX
Luana de Carvalho Silva
Artigo 08
Crimes Tributários na
Legislação Brasileira
Maicon Guedes
98
67
87
Artigo 09
A Função Social do Contrato e a Tutela
Jurídica do Contratante Vulnerável
Marcelo Junqueira Calixto
Artigo 10
Entre o Véu e a Espada – Marx,
Foucault e o Discurso Jurídico
Walter Guandalini Jr.
104
Artigo 01
Artigo 01
Conselho Nacional de Justiça e o Exercício
da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário –
Breves Considerações
Carolina Fátima de Souza Alves*
Cláudia Maria Barbosa**
1. Breve Histórico. 2. Necessidade de um sistema de controle do Poder Judiciário – Anseio Social – Composição híbrida.
3. Natureza jurídica e competência(s) legal(is) do Conselho Nacional de Justiça – Função fiscalizatória. 4. Decisões
atuais do Conselho Nacional de Justiça com maior repercussão – Breves considerações. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. Breve histórico
A discussão sobre forma(s) de se controlar a atuação
dos Advogados do Brasil, que também se mostrou favorável à
sua criação.
Contudo, a primeira e efetiva proposta de criação de
do Poder Judiciário não é tema novo para o Direito, tampouco
para a sociedade.
Há muito se discutia e clamava sobre a viabilidade
de criação de um órgão interno ao Judiciário, dotado de
legitimidade, que pudesse exercer o controle de atos praticados
pelos integrantes do Poder Judiciário, sempre no intuito de
zelar pelo respeito aos princípios da igualdade e isonomia.
Nos tempos hodiernos, com maior veemência, a opinião
pública1 mostrou descontentamento e insatisfação com as diretrizes e ações patrocinadas por alguns integrantes do Judiciário.
Descontentamento originado de ações e decisões de integrantes deste Poder que, sob o manto da toga, exercitaram o nepotismo, patrocinaram a morosidade processual, quando não,
emitiram decisões totalmente desprovidas de transparência,
infringindo assim os mais comezinhos princípios de Direito.
um órgão destinado ao controle dos atos e decisões emanados
do Poder Judiciário foi endereçada a Câmara dos Deputados,
pelo Deputado Hélio Bicudo, em 26 de março de 1992, como
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 96/92.
Após alguns anos de revisão e discussão, bem como
aprovação em dois turnos, a Proposta de Emenda à Constituição
no 96/92 foi encaminhada ao Senado Federal dando ensejo
a Proposta de Emenda à Constituição no 29/2000, possuindo
como primeiro relator o então Senador Bernardo Cabral, que
emitiu os pareceres nos 538 e 1035/2002, acerca de referida
PEC, ambos aprovados pela Comissão de Constituição, Justiça
e Cidadania (CCJ).
Aprovada a Proposta de Emenda à Constituição Federal
n 29/2000, esta restou consolidada na Emenda Constitucional
o
no 45/2004, notoriamente conhecida como Emenda de Reforma
Neste sentido, a criação de um órgão interno
do Poder Judiciário ou Pacto de Estado em favor de um Judiciário
destinado ao controle do Poder Judiciário, inclusive dotado de
mais rápido e Republicano2, publicada em 31 de dezembro de
poderes punitivos de seus integrantes, fazia-se imprescindível e
2004.
o clamor social era evidente.
Desta feita, décadas transcorreram entre o primeiro
Historicamente, a possibilidade da instituição de
debate sobre a possibilidade de criação de um órgão de controle
um órgão exclusivo destinado a fiscalização do Judiciário, já
do Judiciário até a sua efetiva implementação, em 14 de junho
havia sido suscitada e debatida na década de 1980, pelo então
de 2005, junto ao Edifício Anexo II, do Supremo Tribunal
deputado Nelson Jobim, inclusive com o sufrágio da Ordem
Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília/DF.
*CAROLINA FÁTIMA DE SOUZA ALVES (Autora) – Mestranda em Direito Econômico e Social na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em
Direito Civil e Comercial pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogada.
Professora Titular nos cursos de Direito das Faculdades Dom Bosco e Faculdades Integradas Santa Cruz, em Curitiba/PR. [email protected]
**CLÁUDIA MARIA BARBOSA (co-autora) – Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Titular da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Vice-Presidente do Ibrajus – Instituto Brasileiro de Administração de Sistema Judiciário. Coordenadora da Especialização em Política Judiciária e
Administração da Justiça da PUCPR. [email protected].
1
86,7% dos entrevistados pela Universidade de Brasília disseram acreditar que há necessidade de um órgão para fiscalizar a Justiça brasileira enquanto outros 83,8%
querem que a sociedade faça parte desta fiscalização.
2
Frase constante das fls. 95 do Relatório Anual 2005 confeccionado pelo CNJ e encaminhado ao Congresso Nacional.
8
Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações
Portanto, somente com a promulgação da Emenda
“(...) é necessário estabelecer um sistema de controle.
45/2004 é que se avalizou e determinou
É oportuno lembrar aqui a atitude de Thomas
a criação de um órgão interno ao Poder Judiciário, cujo
Jefferson, que defendeu com firmeza a independência
objetivo precípuo é o controle deste, exercendo fiscalização
dos juízes e tribunais, mas admitiu que tinha medo do
da gestão administrativa e financeira dos tribunais, bem como
corporativismo dos magistrados, o que pode significar
o controle de atuação e conduta ética dos magistrados que o
não só uma comunhão de interesses, mas também
compõem, inclusive com competência punitiva destes, após o
um relacionamento afetivo. Daí a conveniência de
devido processo legal sem, contudo, imiscuir-se ou adentrar na
um órgão controlador, integrado, em sua maioria,
autonomia concedida constitucionalmente ao Poder Judiciário:
por magistrados, mas também por profissionais de
estava criado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
outras áreas jurídicas, como se tem feito para compor
2. Necessidade de um sistema de controle do Poder Judiciário –
magistratura. Não se pode esquecer que o Poder
Constitucional n
o
Anseio social – Composição híbrida
Consoante exposto, há muito a sociedade clamava
por um órgão interno ao Poder Judiciário, mas com legítima
autonomia e liberdade, que pudesse exercer o controle
e a fiscalização daquele Poder, bem como conduzir seu
planejamento político e estratégico.
bancas examinadoras de concurso de ingresso na
Judiciário exerce poder público, age em nome do povo,
embora seus membros não sejam escolhidos por meio
de eleição popular. Por isso é necessário um controle
democrático de seu desempenho, que assegure a
obediência as regras legais e a prevalência do interesse
público, mantendo o requisito fundamental, que é a
garantia da independência dos juízes.” (Grifou-se)
Fartos e notórios são os exemplos da crise enfrentada
pelo Poder Judiciário, ensejadores de sua reforma, como
“venda de sentenças”, desvios de verbas, assessoria prestada
por magistrados a particulares em processos que estavam sob
sua alçada, nepotismo, falta de compromisso com o curso e a
eficácia do processo (mormente com a celeridade), desinteresse
do Judiciário na execução de suas próprias decisões (em
especial quando o pólo passivo é o poder público), etc.
Destaque-se, também, a opinião do juiz Luiz Flávio
Gomes4 sobre o assunto, previamente à criação do CNJ:
“(...) O Judiciário necessita de um órgão nacional de
controle, que receba as reclamações contra as atividades administrativas dos juízes e tribunais, assim
como contra a qualidade do serviço judicial prestado,
excluindo-se a estrita atividade jurisdicional que já
Some-se a isso outros relevantes fatores como a
está sujeita ao controle recursal. Os Tribunais devem
existência de juízes cada vez mais tecnicistas, extremamente
controlar os juízes e o Conselho Nacional deve con-
preocupados com o rigor da lei em menosprezo a
trolar diretamente os Tribunais e indiretamente todos
preponderância do fato social (entenda-se, justiça), isto é, cada
os juízes, mas sempre no que diz respeito ao âmbito
vez mais distantes das necessidades sociais e deslumbrados
administrativo e disciplinar. (...) O que desejamos é
com a honorabilidade dos cargos.
um eficiente, criterioso e sobretudo transparente con-
Tal situação caótica, extremamente prejudicial para a
sociedade, pode ser resumida na própria “negação do direito”,
porquanto
violados
diversos
princípios
constitucionais
fundamentais, como ampla defesa, contraditório, decisões
fundamentadas, celeridade como pressuposto para a eficácia
da prestação jurisdicional, dentre tantos outros.
Fazia-se imprescindível, portanto, a instituição de
um órgão interno ao Judiciário, que se fizesse encarregado de
exercer o controle dos atos de gestão administrativa, financeira
e ética de seus integrantes.
Diante desta necessidade e, muito antes da efetiva
criação do CNJ, Dalmo de Abreu Dallari3 sustentava:
trole interno, de responsabilidade das corregedorias e
tribunais assim como do Conselho Nacional.”
Nesse sentido, visando efetivar o anseio social e
jurídico acerca da criação de um órgão de controle interno do
Poder Judiciário, deu-se a criação e implementação do CNJ, na
Emenda Constitucional no 45/2004.
Evidentemente que, ao se falar na implementação de
um órgão de controle do Poder Judiciário – com legitimidade
administrativa, financeira e inclusive disciplinar – não se está a
defender a revogação dos benefícios constitucionais outorgados
à Magistratura para o bom desenvolvimento de sua função
precípua, qual seja, a prestação jurisdicional.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Juízes independentes, judiciário sob controle social. Revista da associação dos magistrados do Estado do Rio de Janeiro. ano 2, n. 8, p. 33.
GOMES, Luiz Flávio. A questão do controle externo do Poder Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 5, 1993, p. 36-38.
3
4
9
Artigo 01
Entretanto, não se pode olvidar que as prerrogativas
No particular, urge transcrever as sábias palavras do
e garantias conferidas aos integrantes do Poder Judiciário
5
Min. Cezar Peluso, no voto proferido na ADIN no 3367-1, a
o foram (e são), no exclusivo intuito de possibilitar a estes
respeito da autonomia e independência do Poder Judiciário – que
desenvolver, com independência, clareza e lisura, sua função
restaram respeitadas na criação e composição híbrida o CNJ – que,
pública, ou seja, tais benefícios não foram concedidos no
em verdade, representam a satisfação do anseio social:
intuito de afastar o julgador do meio social, tampouco aliená“Talvez ocorra a alguém que, na prática, essa
lo deste.
Ao contrário!
composição
Nesse sentido, urge salientar as palavras de José
independência interna e externa do Judiciário. A
Reinaldo de Lima Lopes6:
“É da maior importância, hoje, não confundir
autonomia e independência do Judiciário com seu
isolamento social.”
O jurista norte-americano Owen Fiss7 também se
pronunciou a respeito:
híbrida
poderia
comprometer
a
objeção não é forte, porque os naturais desvios que,
imputáveis a falibilidade humana (...) são inerentes a
todas as instituições, por acabadas e perfeitas que se
considerem. (...) é sobremodo importante notar que
o Conselho não julga causa alguma, nem dispõe de
nenhuma atribuição, de nenhuma competência, cujo
exercício fosse capaz de interferir no desempenho de
função típica do Judiciário, a jurisdicional. (...) E
“Simplesmente não é verdade que, quanto maior o
não seria lógico nem sensato levantar suspeitas de
isolamento, melhor, porque um Judiciário que está
que, sem atribuição jurisdicional, possa comprometer
isolado das instituições governamentais sujeitas a
independência que jamais se negou a órgãos
controle popular – o Legislativo e o Executivo – tem
jurisdicionais (...).”
o poder de interferir nas ações ou decisões dessas
instituições e, assim, o poder de frustrar a vontade
Portanto, a participação de pessoas não integrantes
popular. (...). Estamos, portanto, diante de um dilema.
do Poder Judiciário na composição do Conselho Nacional
A independência é tida como uma das virtudes
de Justiça, além de atender ao clamor social, é imprescindível
cardinais do Judiciário, mas deve-se reconhecer que
no Estado Democrático de Direito, possibilitando aos
muita independência pode ser uma coisa negativa.
representantes populares exercerem maior controle do
Nós queremos isolar o Judiciário das instituições
Judiciário e, assim, por conseqüência, aproximando a sociedade
sujeitas a maior controle popular, mas deveríamos
desse Poder.
admitir, ao mesmo tempo que alguns elementos de
controle político deveriam remanescer.”
É o que propõe o Conselho Nacional de Justiça:
exercer o controle administrativo, financeiro e disciplinar do
Poder Judiciário – haja vista a inexistência de independência em
sentido absoluto –, inclusive via implementação de uma política
judiciária em nível nacional.
Contudo, para melhor eficácia, o controle do Poder
Judiciário não poderá ser relegado à competência exclusiva
de um órgão institucional. A participação da sociedade
no acompanhamento dos atos do Conselho Nacional de
Justiça – figurando este, portanto, como órgão de composição
híbrida – significa a concretização de um Judiciário mais
saudável e transparente.
3. Natureza jurídica e competência(s) legal(is) do Conselho
Nacional de Justiça – Função fiscalizatória
As competências outorgadas ao Conselho Nacional
de Justiça estão previstas nos incisos do parágrafo 4o, do
artigo 103-B, da Constituição Federal que, além de lhe atribuir
responsabilidade pelo planejamento político estratégico do Poder
Judiciário – que, consoante já exposto, não é objeto deste estudo
– concedeu-lhe o exercício do controle administrativo, financeiro
e disciplinar dos integrantes do Judiciário, não estando o CNJ
autorizado a adentrar na análise meritória das demandas, pois,
isto sim implicaria em afronta à autonomia e independência do
Judiciário e dos magistrados que o integram e, por conseqüência,
na violação ao princípio do pacto federativo.
Inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios, consoante artigo 95 da Carta Magna.
LIMA LOPES, José Reinaldo de. Crise da norma jurídica e reforma do judiciário. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 76.
7
FISS, Owen. Um novo processo civil – estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. (Trad.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 17.
5
6
10
Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações
Entretanto, uma vez instituído, diversas dúvidas e
Nesta esteira, configurando-se o CNJ como órgão
questionamentos foram suscitados a respeito da legitimidade
integrante do Poder Judiciário pátrio, como se dá sua atuação?
do Conselho, de sua composição e de eventual afronta à
Estaria o CNJ apto e legitimado a exercer o controle externo
independência dos poderes, ensejando, inclusive, a Ação
do Judiciário?
Direta de Inconstitucionalidade no 3367-1, proposta perante
Prefacialmente, não se pode olvidar da existência
o Supremo Tribunal Federal pela Associação dos Magistrados
de órgãos efetivamente externos ao Poder Judiciário, que
Brasileiros (AMB) em face do Congresso Nacional.
também exercem poder fiscalizatório sobre este, tais como as
Diante de relevantes alterações procedidas pela
Corregedorias de Justiça9, os Tribunais de Contas (art. 7110,
Emenda mencionada, fez-se imprescindível perquirir a
CF), o Ministério Público e os demais Poderes da República
respeito da natureza jurídica do Conselho Nacional de Justiça:
que, em tese, exerceriam o controle externo do Judiciário;
sua atuação dá-se como órgão de controle externo do Poder
externo eis que tais órgãos não se subordinam ao Judiciário, ao
Judiciário? Ou se trata de mais um órgão burocrático, dentre
contrário do CNJ que está àquele totalmente vinculado.
tantos, destinados a fiscalização do Judiciário?
Não se pode olvidar que a Emenda Constitucional
no 45/2004, alterou o artigo 92, inciso I da Lei Maior, nele
inserindo o inciso I-A, por intermédio do qual prescreve,
expressamente, que o Conselho Nacional de Justiça é um órgão
integrante do Poder Judiciário, verbis:
“Art. 92 – São órgãos do Poder Judiciário:
I – o Supremo Tribunal Federal;
I-A – o Conselho Nacional de Justiça.”
Ao que parece, o legislador não teve interesse em
criar um órgão fiscalizatório alheio à estrutura do Judiciário,
pois não descuidou de incluir o Conselho Nacional de Justiça
no rol de órgãos do art. 92, da Constituição Federal, acima
do Superior Tribunal de Justiça, porém abaixo do Supremo
Tribunal Federal8.
Portanto, indubitável a natureza jurídica do Conselho
Nacional de Justiça como órgão integrante do Poder Judiciário
brasileiro.
Destaque-se que o Supremo Tribunal Federal,
Feita tal ressalva, convém salientar que o controle
outorgado ao Conselho Nacional de Justiça foi delimitado
no artigo 103-B da Constituição Federal ao “controle da
atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário
e do cumprimento de deveres funcionais dos juízes”
(art. 103-B, par. 4o, CF/88) figurando, pois, o CNJ como
símbolo do rompimento com o corporativismo que “obscurece
os
procedimentos
investigativos,
debilita
as
medidas
sancionatórias e desprestigia o Poder .”
11
Assim, embora referida função outorgada ao CNJ
tenha ficado notoriamente conhecida como controle externo
do Poder Judiciário, urge notar que o controle fiscalizatório
exercido pelo Conselho não pode ser compreendido como
externo12, haja vista: 1) sua vinculação ao Poder Judiciário
(art. 92, inciso I-A, CF/88); 2) sua conseqüente subordinação
hierárquica ao STF (art. 102, “r”, CF/88) e, por fim, 3) sua
composição que, em grande maioria, dá-se por membros
integrantes do Judiciário.
no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
Figura o Conselho Nacional de Justiça, portanto,
no 3.367-1 retromencionada, além de declarar expressamente a
como órgão interno ao Poder Judiciário, com abrangência
constitucionalidade de referido Conselho, reconheceu-o como
nacional e que possui, dentre outras funções, a de fiscalizar as
órgão integrante do Poder Judiciário, contudo, desprovido
atividades administrativas, financeiras, bem como disciplinares
de poder jurisdicional haja vista sua função exclusivamente
dos integrantes desse Poder.
fiscalizatória.
Como órgão fiscalizatório, ao Conselho não é
Dúvidas não podem existir, portanto, a respeito de que
permitido imiscuir-se no mérito das decisões proferidas pelos
o Conselho Nacional de Justiça consubstancia-se como órgão
Magistrados, isto porque, dentre suas funções, consoante
judiciário, ou seja, integrante do Poder Judiciário brasileiro,
já exposto, encontra-se a de “zelar pela autonomia do
contudo, sem poder jurisdicional.
Poder Judiciário” (inciso I, do parágrafo 4o do art. 103-B da
Pois bem.
Constituição Federal), o que significa dizer que também ele,
O que não poderia ser diferente, visto que o STF é a instância jurisdicional máxima do país, e o CNJ não detendo competência jurisdicional, possuindo tão-somente
atribuição administrativa, deve posicionar-se abaixo da Corte Suprema.
9
Importa ressaltar que, uma vez que as corregedorias se situam no âmbito dos tribunais, “tradicionalmente, a atividade correicional é exercida sobre o primeiro grau de
jurisdição e somente sobre ele”, ficando os tribunais livres de quaisquer fiscalizações. (GRAMSTRUP, Erik Frederico. Conselho Nacional de Justiça e controle externo:
roteiro geral in Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coord.) et al. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 199.
10
“Art. 71 – O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: (...)”.
11
Consoante voto proferido pelo Ministro Cézar Peluso.
12
Nesse aspecto, o Ministro Cezar Peluso, em voto proferido na ADIN 3367-1, salienta que há um “erro de tomar o Conselho Nacional de Justiça por órgão de controle
externo.” (fls. 225/226 do voto mencionado)
8
11
Artigo 01
CNJ, deverá respeitar os atos jurisdicionais expedidos pelos
no modelo brasileiro de harmonia e equilíbrio entre
integrantes desse Poder.
os poderes, não conformará nem informará – nem
Saliente-se que a ausência de poder jurisdicional do
mesmo afetará – o dever-poder de decidir conforme
Conselho resta ainda mais evidente face à sua total e irrestrita
a Constituição e as leis que vincula os membros da
subordinação ao Supremo Tribunal Federal que, a teor do
magistratura. (...) Embora órgão integrante do Poder
previsto no art. 102, alínea “r”, da Constituição Federal de
Judiciário – razão pela qual desempenha autêntico
1988, poderá rever todos os atos e decisões administrativas
controle interno – não exerce função jurisdicional.”
proferidas por referido Conselho.
(fls. 282 – grifamos)
E não poderia ser de outra forma, sob pena de afronta
ao Pacto Federativo que prevê e determina a independência e
autonomia dos poderes estatais (art. 2o, CF/88).
Entretanto, sem olvidar das demais competências
outorgadas ao CNJ pela Emenda supracitada13, o significado
Nem mesmo um órgão interno a um dos Poderes
da expressão controle da atuação administrativa merece maior
está(ria) autorizado a obstaculizar a autonomia do Poder que
atenção, haja vista sua amplitude. Qual o limite do controle
integra. Nesse sentido, esclarecedoras as palavras do Min.
administrativo do Poder Judiciário exercido pelo CNJ?
Cezar Peluso:
“(...) sem profanar os limites constitucionais da
independência do Judiciário, agiu dentro de sua
competência reformadora o poder constituinte
derivado, ao outorgar ao Conselho Nacional de
Justiça o proeminente papel de fiscal das atividades
administrativas e financeiras daquele Poder. A bem
da verdade, mais que encargo de controle, o Conselho
recebeu aí uma alta função política de aprimoramento
do autogoverno do Judiciário cujas estruturas
burocráticas dispersas inviabilizam o esboço de uma
estratégia político-institucional de âmbito nacional.
São antigos os anseios da sociedade pela instituição
de um órgão superior, capaz de formular diagnósticos,
tecer críticas construtivas e elaborar programas que,
nos limites de suas responsabilidades constitucionais,
dêem respostas dinâmicas e eficazes aos múltiplos
problemas comuns em que se desdobra a crise do
Poder.” (fls. 231)
Consoante já exposto, o controle administrativo
conferido ao CNJ não lhe outorga qualquer poder jurisdicional,
haja vista que lhe é defeso imiscuir-se nos julgamentos
proferidos pelo Poder Judiciário, não obstante algumas
resoluções por ele expedidas possam ser visualizadas como o
pleno exercício da jurisdição (!).
Entretanto, quer nos parecer que o controle ou gestão
administrativa deferida ao Conselho Nacional de Justiça vai
muito além da expedição de resoluções que determinem, por
exemplo, que os Magistrados devem residir na Comarca na
qual estejam vinculados14.
Parece-nos que o controle administrativo outorgado
ao Conselho defere-lhe o poder-dever de formular e/ou
conduzir o planejamento político estratégico do Poder
Judiciário, competindo-lhe planejar a atuação desse Poder de
forma segura e célere, sem qualquer intromissão no mérito dos
julgamentos proferidos.
E nesse ponto a questão torna-se, por vezes,
controvertida. Quando se aduz que o CNJ está apto a conduzir
o planejamento político estratégico do Poder Judiciário, está se
Sobre a limitação da competência do Conselho
reconhecendo a função política exercida pelo Conselho, no
Nacional de Justiça eis o esclarecedor voto proferido pelo
sentido de implantar e conduzir uma política pública para o
Ministro Eros Grau, na Ação Direta de Inconstitucionalidade
Poder Judiciário.
promovida pela A.M.B.:
A atribuição do planejamento político estratégico
“(...) ao Conselho Nacional de Justiça não é atribuída
do Poder Judiciário significa que se conferiu ao Conselho
competência nenhuma que permita sua interferência
Nacional de Justiça a competência de reger e orquestrar o
na independência funcional do magistrado. Cabe a ele
planejamento de políticas públicas visando a facilitar o acesso
exclusivamente o “controle da atuação administrativa
ao Poder Judiciário, bem como a torná-lo mais célere, eficaz e
e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento
próximo da sociedade que dele necessita.
dos deveres funcionais dos juízes”, nada mais do que
isso. Sua presença, como órgão do Poder Judiciário,
Função das mais árduas, tendo em vista as condições
atuais da máquina judiciária.
Controle da atuação financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, e planejamento político estratégico desse Poder.
Ato da Corregedoria Nacional de Justiça, expedido em 18.1.2008, por intermédio do Min. César Asfor Rocha.
13
14
12
Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações
Nesse sentido, percebe-se que a função política
Os opositores da Resolução no 07 acusaram o Conselho
atribuída ao Conselho Nacional de Justiça, como responsável
de extrapolar suas atribuições e de agir inconstitucionalmente,
pelo planejamento político estratégico do Judiciário, é inegável
na medida em que estaria legislando através de resoluções e,
e não macula qualquer preceito constitucional. E não poderia
assim, invadindo a competência privativa do Poder Legislativo.
ser de outra forma haja vista que, citando como exemplos, a
Segundo aqueles, não existiria lei proibindo as nomeações e,
constitucionalização de novos direitos bem como o fenômeno
sendo assim, tais seriam absolutamente lícitas, haja vista que
da judicialização da política têm tornado cada vez mais tênue
ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
as distintas funções outorgadas aos Poderes estatais.
senão em virtude de lei, garantia expressa na Constituição.
Conclui-se, pois, que ao Conselho Nacional de Justiça,
Sendo assim, caberia ao Poder Legislativo, e não ao CNJ,
nos termos da Emenda Constitucional no 45/2004, como órgão
disciplinar a matéria em lei específica, proibindo ou não as
interno do Poder Judiciário, incumbe o exercício de funções
nomeações.
precípuas e primordiais, quais sejam: o exercício do controle
A polêmica encerrou-se quando o Supremo Tribunal
da atuação administrativa e financeira e do cumprimento dos
Federal entendeu ser legítima a Resolução no 07 expedida pelo
deveres funcionais dos Magistrados, bem como a condução do
CNJ, ratificando-a.
planejamento político estratégico do Poder Judiciário nacional,
restando totalmente destituído de poder jurisdicional.
Noutro diapasão, a Resolução no 13, de 21/03/2006,
também causou impacto no meio judiciário, haja vista que
tocou numa das maiores “feridas” do sistema, estabelecendo
4. Decisões atuais do Conselho Nacional de Justiça com maior
teto salarial para os exercentes da Magistratura17, o que há
repercussão – Breves considerações
muito se solicitava, haja vista a diversidade de subsídios,
Consoante exposto na mídia nacional, desde
estabelecidos aleatoriamente por cada Estado da federação.
sua implementação em junho/2005, o CNJ tem atuado
Mais recentemente, precisamente em 18.1.2008,
diligentemente sobre a administração da política judiciária
a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça18, por
nacional, causando repercussão geral decisões como a
intermédio do Min. César Asfor Rocha, conferindo efetividade
Resolução no 07, de 18/10/2005, por intermédio da qual restou
a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN – Lei
vedado o nepotismo15, proibindo-se o exercício de cargo de
Complementar no 35, de 14/3/1979), estabeleceu que os juízes
provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito
deverão residir na sede da Comarca à qual estejam vinculados,
do Tribunal ou juízo, por cônjuge, companheiro ou parente,
atendendo assim, à LOMAN, bem como ao anseio da sociedade
em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau,
em manter um integrante da Magistratura, diuturnamente, na
inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados, bem
Comarca em que atua, o que, até então, por vezes, vinha sendo
como dos servidores investidos em cargo de direção ou de
descumprido, haja vista a condição de juízes que, embora
assessoramento.
designados para comarcas do interior, continuavam a residir
Tal medida, embora bem recebida socialmente, gerou
muita polêmica no meio jurídico16, dando ensejo a diversas
nos grandes centros urbanos, despendendo várias horas entre
o transcurso residência-comarca, ausentando-se desta.
demandas judiciais propostas por exercentes dos chamados
Finalmente, o Conselho Nacional de Justiça também
“cargos de confiança” preenchidos sem o devido e prévio
tem atuado no combate à morosidade da Justiça19, via incentivo
concurso público.
às audiências de conciliação20, criação e implementação do
Nepotismo pode ser compreendido como sinônimo de favoritismo, ou seja, a nomeação de pessoas levando em consideração critérios meramente subjetivos, tais como
relações de parentesco ou afinidade, concedendo a uns privilégios e favores que não são conferidos aos demais. E, note-se, favorecer alguém no âmbito da Administração
Pública, em detrimento do interesse público, configura conduta imoral e verdadeiro atentado à moralidade administrativa.
16
A decisão, que gerou a Resolução CNJ n. 7, de 18 de outubro de 2005, determina a exoneração, em 90 dias, no âmbito de todos os tribunais, de cônjuges, companheiros
ou parentes em linha reta, colaterais ou por afinidade, até terceiro grau, de juízes ou de servidores de direção e assessoramento (vedando, inclusive, contratação cruzada
entre magistrados conhecido como nepotismo cruzado). Tamanho foi o alcance da medida, que restou proibida até mesmo contratação e manutenção de prestadoras de
serviço que possuam parentes de magistrados no quadro funcional.
17
Nos termos do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal, combinado com o seu art. 93, inciso V, no âmbito do Poder Judiciário da União, fixou o valor do teto
remuneratório como sendo o subsídio de Ministro do Supremo Tribunal Federal que corresponde a R$ 24.500,00 (vinte e quatro mil e quinhentos reais) e, no âmbito do
Poder Judiciário dos Estados o teto remuneratório é o valor do subsídio de Desembargador do Tribunal de Justiça, que não pode exceder a 90,25% (noventa inteiros e
vinte e cinco centésimos por cento) do subsídio mensal de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
18
Órgão integrante do Conselho Nacional de Justiça, que possui como atribuição exercer o controle disciplinar e promover a correta administração da justiça, delegando
atribuições e instruções, zelando pelo bom funcionamento dos serviços judiciários, consoante previsto no § 5o do art. 103-B, da Constituição Federal.
19
Consoante Rui Barbosa “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada.”
20
Projeto “Conciliar é legal.”
15
13
Artigo 01
processo eletrônico21, que se configura como ferramenta que
Embora a resolução dos problemas ora expostos,
busca auxiliar os juízes e tribunais no cumprimento de suas
dentre tantos outros, não deva ser imposta exclusivamente ao
funções, de forma menos burocrática, dentre outras medidas
Poder Judiciário e ao CNJ, mas, também e inclusive, aos demais
em estudo.
Poderes do Estado, bem como à sociedade, as conquistas
auferidas não pertencem somente ao Conselho Nacional
5. Conclusão
de Justiça, mas, outrossim, à sociedade e ao próprio Poder
De todo o exposto, embora o caminho a percorrer
Judiciário; Poder integrado pelo CNJ (art. 92, I-A, da CF/88)
ainda seja longo, conclui-se que em quase três anos de existên-
que, ao criá-lo dotando-o de competência e legitimidade,
cia, o Conselho Nacional de Justiça demonstrou a importância
deu os primeiros passos visando satisfazer o anseio social
de sua criação e respeito à confiança que lhe foi depositada,
da construção de um Judiciário célere, eficaz e com decisões
adotando importantes medidas e tocando em pontos cruciais
morais e transparentes.
nunca dantes enfrentados, que passaram a ser equacionados,
6. Referências
planejados e executados.
Consoante Alexandre de Moraes , em artigo
22
publicado no Jornal Folha de São Paulo:
BARROSO, Luis Roberto. Constitucionalidade e legitimidade
da criação do conselho nacional de justiça. In: RANAULT,
Sérgio Rabello Tamm; BOTTINI, Pierpaolo. Reforma do
problemas centenários existentes no Judiciário, (...),
Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 53-85.
como a garantia de maior efetividade da prestação
jurisdicional com a vedação de férias coletivas e a
BARBOSA, Cláudia Maria. Crise de função do poder
fixação de critérios para a promoção por merecimento
judiciário no estado contemporâneo. In: Ordem dos Advogados
dos juízes, determinando que as votações sejam
do Brasil – seccional Paraná. (Org.). Revista da Comissão da
abertas e fundamentadas a partir de requisitos
Mulher Advogada – seccional Paraná. 1 ed. Curitiba: Editora
objetivos, tornando mais democrática a ascensão
da OAB, 2006, v. 1, p. 113-122.
funcional, foram solucionados.
. A crise do poder judiciário inserida na crise do
Com a edição da Resolução no 07, o CNJ corajosamen-
estado contemporâneo. In: Seminário GEDIM/RED&S: os
te combateu um dos maiores problemas do serviço público em
direitos nacionais face à globalização, 2001, Rio de Janeiro,
geral, proibindo o nepotismo, proclamando ser este incompa-
2001. Direito e Globalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
tível com as normas constitucionais de impessoalidade, mora-
v. 1. p. 157-173.
lidade e eficiência do serviço público.
Também solveu outro grande entrave judiciário que,
apesar de inúmeras tentativas no âmbito dos três Poderes da
União, não havia sido resolvido: após diversos estudos técnicos
e contatos com os membros do Judiciário, em suas diversas
. A reforma judiciária e seus desafios. In: III
Seminário Brasileiro de Sociologia Juridica. Porto Alegre,
2007. Anais do III Seminário Brasileiro de Sociologia Jurídica,
2007.
instâncias e associações, fixou o teto salarial aos magistrados
BERMUDES, Sérgio. A reforma do judiciário pela emenda
de todo o país, para que a questão remuneratória dos juízes
constitucional, n. 45, p. 137.
seja absolutamente transparente e respeite os parâmetros
constitucionais.
CAMARGO, Maria Auxiliadora Castro. Reforma do
Várias foram, portanto, as conquistas perpetradas a
judiciário. Tribunal constitucional e conselho nacional de
partir da implantação do Conselho Nacional de Justiça, em
Justiça. Controles externos ou internos? Revista de Informação
junho/2005.
Legislativa. Brasília, a. 41, n. 164, out–dez 2004, p. 373.
Segundo Sérgio Renato Tejada Garcia, secretário geral do Conselho Nacional de Justiça, em nota lançada no site www.cnj.gov.br em 09/05/2006, “além de combater a
morosidade processual, o processo virtual ainda melhora o acesso à Justiça e a transparência do Poder Judiciário. O processo eletrônico funciona através de um portal
de internet no qual os usuários – magistrados, servidores da Justiça e advogados públicos e privados – são previamente cadastrados e identificados com login e senha.
Comparecendo o cidadão na sede da Justiça, sua pretensão é lançada diretamente no sistema. Se preferir constituir advogado, este elaborará a petição inicial e, de seu
próprio escritório, a encaminhará. Acionado o botão “enviar”, seja pelo servidor da Justiça, seja pelo advogado, a petição inicial será distribuída instantaneamente e,
nesse momento, o interessado receberá na tela do computador a informação de que o processo foi distribuído, que número obteve no protocolo, qual é a vara e qual juiz
julgará a causa. Recebendo a ação virtual, o juiz, depois de verificar a regularidade da causa e decidir eventual pedido de liminar, determinará a citação do réu, que é feita
também eletronicamente, clicando um botão. (...). Além de funcionar em tempo real, o processo eletrônico faz desaparecer todas as barreiras impostas pelo tempo e pela
distância, podendo o processo ser acessado a todo o momento e por todos os interessados ao mesmo tempo e de qualquer lugar.”
22
MORAES, Alexandre de. A Atuação do Conselho Nacional de Justiça tem sido benéfica para o Poder Judiciário? – Sim. União pelo fortalecimento. Folha de São Paulo,
25 mar. 2006, – Tendências e Debates.
21
14
Conselho Nacional de Justiça e o Exercício da Função Fiscalizadora do Poder Judiciário – Breves Considerações
CHAVES, José Pericles. Reforma do Poder Judiciário, fatos
LIMA LOPES, José Reinaldo de. Crise da norma jurídica e
históricos e alguns aspectos polêmicos. Disponível em: <http://
reforma do judiciário. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direitos
www1.jus.com.br/doutrina/texto> Acesso em: 22 jan. 2008.
humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2002,
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO
p. 76.
BRASIL DALLARI, Dalmo de Abreu. Juízes independentes,
MORAES, Alexandre de. A Atuação do Conselho Nacional
judiciário sob controle social. Revista da Associação dos
de Justiça tem sido benéfica para o Poder Judiciário? – Sim.
Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, ano 2, n. 8, p. 33.
União pelo fortalecimento. Folha de São Paulo, 25 de mar.
FISS, Owen. Um novo processo civil – estudos norte-americanos
2006, Tendências e debates.
sobre jurisdição, constituição e sociedade (Trad.). São Paulo:
SADEK, Maria Tereza. Controle externo não resolve os
Revista dos Tribunais, 2004, p. 17.
problemas do judiciário. Folha de São Paulo, 10 nov. 2003,
GOMES, Luiz Flavio. A questão do controle externo do poder
judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 5, 1993, p. 36-38.
HERKENHOFF, João Baptista. Direito e Utopia. São Paulo:
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Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN – Lei
Complementar n. 35, de 14 mar.1979).
Entrevista p. A-12.
SANTOS, Edvaldo Borges dos; NAZARETH, Marco Antônio
Luz et al. O controle e a fiscalização do poder Judiciário. Disponível
em: <http://www.jus.com.br/doutrina/texto> Acesso em: 21
jan. 2008.
Site do Conselho Nacional de Justiça: www.cnj.gov.br
15
Artigo 02
Artigo 02
Conhecimento e Consciência: o despertar para o
meio ambiente
Evilásio Gentil de Souza Neto
1. Introdução. 2. O desenvolvimento sustentável e o problema do meio ambiente. 3. Desenvolvimento sustentável: um
conceito com ênfase social. 4. Interdisciplinaridade das relações. 5. Consciência e ação. 6. Referências.
1. Introdução
tendo como uma das linhas de atuação o conceito de desenvol-
Constata-se em publicações de diferentes áreas que
vimento sustentável. Como resposta à questão da desigualdade
pressupostos de uma revolução epistemológica têm dominado a
econômica, buscam-se interligar causas e repercussões
ciência contemporânea, inclusive no campo do meio ambiente.
dele no meio ambiente, insurgindo questionamentos que
Tal assertiva encontra fundamento na ruptura das certezas
colocam em cheque o futuro do gênero humano. Essa simples
determinísticas oriundas da mecânica newtoniana, que passam
análise interdisciplinar demonstra a estreita ligação de causa e
a serem gradativamente substituídas pela emergência do
efeito dos problemas socioeconômicos, seguidos da questão da
indeterminado que, por sua vez, pressupõe que haver nenhum
atividade econômica, que atualmente é exercida segundo pa-
fundamento único, último, seguro do conhecimento.
drões não-sustentáveis, gerando conflitos constantes acerca do
As evoluções das ciências biofísicas são aplicadas de
equilíbrio do meio ambiente.
forma interdisciplinar ocupando interstícios de outros saberes
Do paradigma do desenvolvimento sustentável
e se encaminham para uma transição paradigmática qual pode
passa-se, em seguida, à necessidade de uma nova hermenêutica
surgir nova tradição de ciência normal, que “está longe de
da realidade, que deve ser vista como um sistema complexo, in-
ser um processo comutativo obtido através da articulação do
terdependente e inter-relacionado, aberto para o futuro. Com
velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos
isso a humanidade assume a necessidade de um novo desafio
a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas
para o paradigma do desenvolvimento de uma nova cultura,
das generalizações teóricas mais elementares do paradigma,
mas cultura ainda em desenvolvimento.
bem como de seus métodos e aplicações” .
1
Verifica-se, neste momento, ao menos no âmbito das
ciências sociais, as influências da física, astrofísica, biologia
2. O desenvolvimento sustentável e o problema do meio
ambiente
e bioquímica, desenvolvidas no decorrer deste século, que
A expressão “desenvolvimento sustentável” surge em
desencadearam essa necessidade de ajuste, de desconforto
meio à uma necessidade cada vez maior de proteção ao meio
teórico, característica transição que se converte nos traços do
ambiente. Ao longo da história, o próprio direito ambiental
que se convencionou chamar de pós-modernidade.
sempre foi condenado à revelia: entre as nações, pairava domi-
De todas as frentes que se encaminham em relação
nante a idéia de inexauribilidade dos recursos naturais. Desse
ao conhecimento, a opção das ciências sociais em geral é pelo
modo, a exploração da natureza era feita de maneira irracio-
conhecimento que eleve a maneira de agir como um princípio
nal, acabando por gerar o processo de degradação ambiental e
de solidariedade que procura eliminar a condição de trabalhar
a direta escassez dos recursos. Os dramáticos acontecimentos
o outro como objeto, reconhecendo-o como sujeito2.
do início da década de 1970, como a “crise do petróleo” e as
Em meio a todas essas questões de transição paradig-
especulações referentes a um possível colapso energético e de
mática, insere-se a questão da manutenção do meio ambien-
recursos naturais, fizeram crescer de maneira notável a cons-
te, que busca respostas a problemas atuais em nível mundial,
ciência do problema ambiental. Passando a discussão de um
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, p. 116.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. v. 1, p. 30.
1
2
1
Conhecimento e Consciência: o despertar para o meio ambiente
círculo fechado de ambientalistas para o cenário de discussões
seguem padrões de crescimento econômico não-sustentáveis
internacionais, culminando com a Conferência de Estocol-
em longo prazo.
mo (1972), organizada pela Organização das Nações Unidas
A tendência é surgirem novas formas de organização
(ONU), quando se debateram as alternativas para as realida-
com a participação da sociedade civil na gestão de interesses
des e perspectivas do meio ambiente3.
a que anteriormente apenas o Estado atendia, a qual introduz
O problema ambiental foi um assunto difícil desde o
mudança qualitativa na medida em que incorpora outros níveis
início do debate. Da Declaração de Estocolmo às conferências
de poder além do Estado. Isso se pode configurar como um
sobre Mudança Climática de Kyoto (dezembro de 1997) e de
ato de autodesenvolvimento que se alcançado numa sociedade
Buenos Aires (outubro de 1998), por meio dessa percepção, pro-
participativa que contribua para a formação de uma cidadania
curam-se novos horizontes para evitar o choque entre a neces-
qualificada integrada ao terceiro setor. É na esfera privada
sidade do desenvolvimento socioeconômico, especialmente de-
da sociedade que se tornou publicamente relevante a relação
fendido pelos países industrializados e a cultura da preservação
moderna entre esfera pública e esfera privada mediante a
do meio ambiente que muitas vezes apenas foi tratado de forma
formação social6.
retórica pelos países mais abastados4.
Parte
da
população
mundial
Nesse cenário, têm-se, então, as entidades criadas por
que
grupos de cidadãos dispostos a lutarem por um ideal social de
necessita atuar no meio socioambiental, unindo-se a outra
reconhece
voluntariado em prol dos menos afortunados, para a defesa de
parte para concretizar projetos e mobilizações que causem
uma causa de interesse social.
impacto na sociedade, sobretudo amenizando o impactos
A sociedade busca por diversos caminhos, recuperar
gerados pelo modo de produção reinante. Exemplo dessas
as atribuições historicamente delegadas às estruturas estatais
atuação são os chamados grupos “verdes” que, na década de
que não estão conseguindo um bom desempenho. BOBBIO7
70, iniciaram os ataques com veemência contra as noções
tradicionais de desenvolvimento e as práticas vigentes nos setores
produtivos, apontando-os como os principais responsáveis pela
deterioração do meio ambiente. Tudo isso abriu caminho para
um debate acalorado, que ainda prossegue, entre os ativistas
ambientais e os mais importantes setores econômicos.
observa a passagem da visão do interesse individual para o
coletivo, num exemplo da contextualização da proteção ao
ecossistema:
(...) ocorreu a passagem da consideração do indivíduo humano uti singularus, que foi o primeiro sujeito ao
A expressão “desenvolvimento sustentável” foi
qual se atribuíram direitos naturais (ou morais) – em
cunhada, portanto, num contexto dramático e polêmico, como
outras palavras, da “pessoa” –, para sujeitos diferen-
salienta por BURCKART5. Contudo parece que as ações
tes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas
vindouras são aplicadas de forma paliativa, como que para
e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto
questões tópicas emergenciais, e não como medidas preventivas
(...); e, além dos indivíduos humanos considerados
que deveriam preparar o país para o “desenvolvimento social
singularmente ou nas diversas comunidades reais ou
sustentado”. Essas ações induzem ao processo de desestatização
de toda a economia, forçando os Estados, em contrapartida, a
participar de forma mais ativa, como atores do diálogo, frente
às perspectivas de impacto que o “aquecimento global” e
outras realidades socioambientais podem desencadear.
3. Desenvolvimento sustentável: um conceito com ênfase social
A proposta de desenvolvimento sustentável teve a
vantagem de denunciar como inviáveis os atuais modelos de
desenvolvimento, tanto no hemisfério Norte como no Sul, que
ideais que os representam, até mesmo para sujeitos
diferentes dos homens, (...). Nos movimentos ecológicos, está emergindo quase que um direito da natureza
a ser respeitada ou não explorada, onde as palavras
‘respeito e ‘exploração’ são exatamente as mesmas
usadas tradicionalmente na definição e justificação
dos direitos do homem.
A 19a sessão especial da Assembléia Geral das Nações
Unidas (junho de 1997), cinco anos após a histórica conferência
BURCKART, Hans. Desenvolvimento sustentável e gerenciamento empresarial: elementos para um novo paradigma de gestão. In: BRUNI, Luigino (Org.). Economia de
comunhão: uma cultura econômica de várias dimensões. Tradução de: STUMMER, Thereza Christina F. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2002, p. 79-86.
4
Ibidem, p. 81.
5
A expressão “desenvolvimento sustentável” foi usada oficialmente pela primeira vez num documento do WWF (Fundo Mundial para a Vida Selvagem) no início da
década de 1980, num contexto puramente ambiental.
6
HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. p. 169-170.
7
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direito. 8. ed. Tradução de: COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 69.
3
17
Artigo 02
de cúpula Eco 92 do Rio de Janeiro, tinha por objetivo avaliar
suas leis eram explicados somente através das ciências naturais.
e reavivar os esforços pra a atuação do desenvolvimento
De fato, o mundo apresenta certas necessidades de índole
sustentável.
técnica que, certamente, encontram ressonância nas ciências
A Assembléia Geral, indicando medidas práticas de
implantação do desenvolvimento sustentável, estabeleceu três
naturais. Entretanto também apresenta interesses distintos da
condição social, mediante a influência de uma cultura.
áreas principais de trabalho para o período 1997–2002, cuja
Embora haja o reconhecimento de que, atualmente,
importância primordial e universal para o desenvolvimento
as ciências buscam um diálogo entre suas fronteiras do
sustentável foi sublinhada de forma decisiva na 7a sessão da
conhecimento, há certa resistência contra a contaminação de
Comissão da ONU para o desenvolvimento sustentável (CSD-
uma área por outra e os limites das fronteiras do conhecimento
7, 19-30.4.99). São as seguintes: a) erradicação da pobreza,
ainda permanecem fortes, prejudicando o diálogo necessário
com ênfase no acesso às rendas sustentáveis e oportunidades
para os estudos ambientais. E as experiências de cada uma das
empresariais; b) mudança de padrões de consumo; c) mudança
partes perdem em significado quando não existe entrelaçamento
dos padrões de produção.
das várias manifestações da vida10.
Nota-se imediatamente que a ONU tem uma
Somente um estudo interdisciplinar pode compreender
concepção de desenvolvimento sustentável que vai muito
a complexidade ambiental. A transição de uma área de
além da questão ambiental, que passa primeiramente por
conhecimento para outra, como alternativa para crise da
uma abordagem social, apresentando uma proposta ampla e
modernidade11, deve permitir a visão global. A dimensão
integradora para a visão ambiental:
ambiental deve estar presente nas diversas áreas do
conhecimento, respeitando as organizações, os objetos
Estamos convencidos de que a consecução do
e as necessidades das múltiplas relações. A produção do
desenvolvimento sustentável exige uma integração
conhecimento dessa concepção construída deve ser validada e
dos seus componentes econômicos, ambientais e
apropriada pelos grupos sociais.
sociais. Empenhamo-nos novamente em colaborar –
com espírito de solidariedade mundial – afim de
5. Consciência e ação
multiplicar os nossos esforços conjuntos para
As breves análises feitas indicam que, para existir
satisfazer de modo equânime às necessidades das
um meio ambiente ecologicamente equilibrado, se deve estar
gerações presentes e futuras (19a sessão especial da
consciente de que se trata de um bem de uso comum do povo e
Assembléia da ONU).
que a realização desse direito fundamental está intrinsecamente
A Comissão Mundial da ONU para o Meio Ambiente
e o Desenvolvimento, criada em 1983, notou que é suficiente
falar isoladamente do problema do meio ambiente, mas que se
trata de uma realidade complexa e interdependente. Salientou,
além disso, que a tecnologia e a globalização significam para
o desenvolvimento que grandes problemas querem grandes
oportunidades. Tudo isso levou à necessidade de uma visão
holística, global e sistêmica do mundo, da humanidade e do
conceito de desenvolvimento8.
ligada à sua realização social.
Sobre essa realidade, percebe-se que há uma valorização
excessiva da razão instrumental, significando que a hegemonia
da modernidade tecnológica, que estimula, ainda que indiferentemente, o consumismo desregrado, característica principal
da sociedade contemporânea, inviabiliza a comunicação entre
os seres humanos, limitando suas ações para atender a seus
interesses particulares12.
Para se ter um conhecimento que demande uma ação
solidária social, não se pode fechar os olhos à disparidade da
4. Interdisciplinaridade das relações
distribuição de renda no país nem à população marginalizada
A lógica aristotélica privilegiou as fragmentações do
pela sociedade que não dispõe do mínimo para que seus
conhecimento, sublinhando as especializações como forma de
integrantes se considerem membros de uma sociedade. Tem
compreensão do mundo . Isso gerou compartimentalização do
que se criar condições mínimas para melhorar o modo de ser
saber, obedecendo a uma lógica positivista de que o universo e
da sociedade, inclusive na questão ambiental.
9
BURCKART, Op. cit. p. 83.
SAINT-SERNIN, Bertrand. A razão no século XX. p. 181.
10
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinaridade: o currículo integrado. p. 60.
11
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade, p. 97.
12
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 72.
8
9
18
Conhecimento e Consciência: o despertar para o meio ambiente
Assim é totalmente viável o projeto de “re-criar”
BURCKART,
Hans.
Desenvolvimento
sustentável
e
a leitura do mundo natural que se possui, com base em
gerenciamento empresarial: elementos para um novo paradigma
pressupostos fundados numa proposta para a mudança de
de gestão. In: BRUNI, Luigino (Org.). Economia de comunhão:
cultura. A discussão acerca do meio ambiente não se resume
uma cultura econômica de várias dimensões. Tradução de:
a uma tarefa da ecologia, ou, na área jurídica, do direito
STUMMER, Thereza Christina F. Vargem Grande Paulista:
ambiental. “Re-pensar” as atitudes humanas quanto ao meio
Cidade Nova, 2002.
ambiente passa, necessariamente, por uma atitude de “recriação” da leitura que se possui acerca da natureza e que eleve
a maneira de agir como um princípio de solidariedade que
procura eliminar a condição de trabalhar o outro como objeto,
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo:
Max Limonad, 1997.
ONU. Conferência do Rio, Agenda 21. 1992.
reconhecendo-o como sujeito13.
Tem-se de afirmar que os conceitos de desenvolvi-
. 19a Sessão especial da assembléia geral. Programa
mento sustentável e de integração das áreas de conhecimento e
para a continuação da implantação da Agenda 21. Nova York,
atuação levam a uma mudança de enormes proporções, que
1997.
requer cultura nova, baseada na questão social, de modo particular na erradicação da pobreza em nível global; uma cultura caracterizada por grande respeito à natureza, baseada em
novos paradigmas econômicos, tecnológicos e legislativos que
PENA-VEIGA,
Alfredo;
ALMEIDA,
Elimar
Pinheiro
de. (Org.). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da
modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.
abranjam os padrões de produção e de consumo. É preciso re-
SAINT-SERNIN, Bertrand. A razão no século XX. Tradução
conhecer que se está no início do caminho para conceber essa
de: PONTES, Mario. Rio de Janeiro: José Olympo; Brasília:
mudança e desenvolver elementos necessários para essa nova
UnB, 1998.
cultura.
6. Referências
SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e interdisciplinaridade:
o currículo integrado. Porto Alegre: Artmed, 1998.
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 6. ed. Rio de
SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a
Janeiro: Lumen Juris, 2002.
ciência, o direito e a política na transição paradigmática. v. 1.
BOBBIO, Norberto. A era dos direito. 8. ed. Tradução de:
COUTINHO, Carlos Nelson. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BUARQUE, Cristovam. O pensamento em um terceiro mundo.
3. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Tradução de:
EDEL, Elia Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1994.
In: BURSTYN, M. (Org.). Para pensar o desenvolvimento
sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 58-80.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. p. 30.
13
19
Artigo 03
Artigo 03
A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
Flávia Piovesan1
1.Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: gênese e principiologia. 2. O Estado Brasileiro em Face do
Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos. 3.A Incorporação dos Tratados Internacionais de Proteção de
Direitos Humanos pelo Direito Brasileiro. 4. O Impacto dos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
na Ordem Jurídica Brasileira. 5.Considerações finais.
A proposta deste artigo é enfocar os tratados
Em face do regime de terror, no qual imperava a lógica
internacionais de proteção aos direitos humanos à luz da
da destruição e segundo o qual as pessoas eram consideradas
Constituição Brasileira de 1988, com destaque às inovações
descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra
introduzidas pela Emenda Constitucional n. 45/2004.
Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do valor dos
Nesse sentido, primeiro serão apresentadas as especificidades desses tratados, bem como de sua fonte – o Direito Inter-
direitos humanos, como paradigma e referencial ético para
orientar a ordem internacional.
nacional dos Direitos Humanos. Num segundo momento, será
Assim, em meados do século XX surge o “Direito
dado destaque à posição do Brasil em face dos instrumentos in-
Internacional dos Direitos Humanos” surge em decorrência
ternacionais de proteção dos direitos humanos. Em seguida, será
da Segunda Guerra Mundial e seu desenvolvimento pode ser
feita uma avaliação do modo pelo qual a Constituição Brasileira de
atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da
1988 tece a incorporação desses tratados e, por fim, será analisado
era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderiam
o impacto juridico que esses tratados apresentam. Neste momen-
ser prevenidas se existisse um efetivo sistema de proteção
to, serão analisados casos concretos da aplicação desses tratados.
internacional de direitos humanos3.
Ao tratar do Direito Internacional dos Direitos
1. Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos:
gênese e principiologia
Os tratados internacionais de direitos humanos
têm como fonte um campo do Direito extremamente recente,
denominado “Direito Internacional dos Direitos Humanos”,
conhecido como Direito do pós-guerra, o qual surgiu como
resposta às atrocidades e aos horrores cometidos pelo nazismo2.
Humanos, afirma Richard B. Bilder:
O movimento do direito internacional dos direitos
humanos é baseado na concepção de que toda nação
tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de
seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade
internacional têm o direito e a responsabilidade de
protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações.
Professora doutora da disciplina de Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora de Direitos Humanos dos
Programas de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Pablo de Olavide de
Sevilha (Espanha); visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies, da University of Oxford
(2005), visiting fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007), procuradora do estado de São Paulo, membro do
Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e da SUR – Human Rights University Network. Este artigo foi produzido com base no livro de minha
autoria, intitulado Temas de Direitos Humanos, capítulo 1, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2008.
2
Como explica Louis Henkin: “Subsequentemente à Segunda Guerra Mundial, os acordos internacionais de direitos humanos têm criado obrigações e responsabilidades
para os Estados, com respeito às pessoas sujeitas à sua jurisdição, e um direito costumeiro internacional tem se desenvolvido. O emergente Direito Internacional dos
Direitos Humanos institui obrigações aos Estados para com todas as pessoas humanas e não apenas para com estrangeiros. Este Direito reflete a aceitação geral de que
todo indivíduo deve ter direitos, os quais todos os Estados devem respeitar e proteger. Logo, a observância dos direitos humanos é não apenas um assunto de interesse
particular do Estado (e relacionado à jurisdição doméstica), mas é matéria de interesse internacional e objeto próprio de regulação do Direito Internacional”. (HENKIN,
Louis et al. International law: cases and materials. 3. ed. Minnesota: West Publishing, 1993. p. 375-376).
3
Na lição de Thomas Buergenthal: “Este código, como já observei em outros escritos, tem humanizado o direito internacional contemporâneo e internacionalizado os
direitos humanos, ao reconhecer que os seres humanos têm direitos protegidos pelo direito internacional e que a denegação desses direitos engaja a responsabilidade
internacional dos Estados independentemente da nacionalidade das vítimas de tais violações”. (BUERGENTHAL, Thomas. Prólogo. In: Cançado Trindade, Antonio
Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. XXXI).
1
20
A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
O Direito Internacional dos Direitos Humanos
proteção dos direitos humanos; isto é, permitem-
consiste num sistema de normas internacionais,
se formas de monitoramento e responsabilização
procedimentos e instituições desenvolvidas para
internacional, quando os direitos humanos forem
implementar essa concepção e promover o respeito
violados5;
dos direitos humanos em todos os países, no
2) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve
âmbito mundial. (...) Embora a idéia de que os seres
ter direitos protegidos na esfera internacional, na
humanos têm direitos e liberdades fundamentais que
condição de sujeito de Direito.
lhe são inerentes tenha há muito tempo surgido no
Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a
pensamento humano, a concepção de que os direitos
forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida
humanos são objeto próprio de uma regulação
como um problema de jurisdição doméstica, decorrência em
internacional, por sua vez, é bastante recente. (...)
sua soberania.
Muitos dos direitos que hoje constam do “Direito
Inspirada por essas concepções, surge, a partir do
Internacional dos Direitos Humanos” surgiram
pós-guerra, em 1945, a Organização das Nações Unidas. Em
apenas em 1945, quando, com as implicações do
1948 é adotada a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
holocausto e de outras violações de direitos humanos
pela aprovação unânime de 48 Estados, com 8 abstenções6.
cometidas pelo nazismo, as nações do mundo
A inexistência de qualquer questionamento ou reserva feita
decidiram que a promoção de direitos humanos e
pelos Estados aos princípios da Declaração e a inexistência
liberdades fundamentais deve ser um dos principais
de qualquer voto contrário às suas disposições, conferem à
propósitos das Organizações das Nações Unidas4.
Declaração Universal o significado de um código e plataforma
comum de ação. A declaração consolida a afirmação de uma
Nesse cenário, fortalece-se a idéia de que a proteção
dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado
ética universal7, ao consagrar um consenso sobre valores de
cunho universal, a serem seguidos pelos Estados.
do Estado, isto é, não deve se restringir à competência
A declaração de 1948 introduz a concepção contem-
nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque
porânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e
revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez,
indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque a con-
essa concepção inovadora aponta para duas importantes
dição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titula-
conseqüências:
ridade de direitos, sendo a dignidade humana o fundamento
1) a revisão da noção tradicional de soberania
dos direitos humanos. Indivisibilidade porque, ineditamente,
absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo
o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálo-
de relativização, na medida em que são admitidas
go dos direitos econômicos, sociais e culturais. Ao consagrar
intervenções no plano nacional, em prol da
direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e cultu-
BILDER, Richard B. An overview of international human rights law. In: HANNUM, Hurst (Editor). Guide to international human rights practice. 2. ed. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press. 1992. p. 3-5.
5
A respeito disso, destaca-se a afirmação do Secretário Geral das Nações Unidas, no final de 1992: “Ainda que o respeito pela soberania e integridade do Estado seja uma
questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então concebida
teoricamente. Uma das maiores exigências intelectuais de nosso tempo é a de repensar a questão da soberania (...). Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos
povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo
como um todo. É um movimento que, cada vez mais, encontra expressão na gradual expansão do Direito Internacional”. (BOUTROS-GHALI, Boutros. Foreign Affairs.
Empowering the United Nations. v. 89, p. 98-99, 1992/1993, apud HENKIN, Louis, et al, International law: cases and materials. op. cit. p. 18.) Transita-se, assim, de uma
concepção “hobbesiana” de soberania, centrada no Estado, para uma concepção “kantiana” de soberania, centrada na cidadania universal. Para Celso Lafer, de uma
visão ex parte príncipe, fundada nos deveres dos súditos com relação ao Estado, passa-se a uma visão ex parte populi, fundada na promoção da noção de direitos do
cidadão. (LAFER, Celso. Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 145.)
6
A Declaração Universal foi aprovada pela Resolução 217 A (III), da Assembléia Geral, em 10 de dezembro de 1948, por 48 votos a zero e oito abstenções. Os oito Estados
que se abstiveram foram: Bielorússia, Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, União Soviética, África do Sul e Iugoslávia. Observa-se que em Helsinki, em
1975, no Ato Final da Conferência sobre Seguridade e Cooperação na Europa, os Estados comunistas da Europa expressamente aderiram à Declaração Universal. Sobre
o caráter universal da declaração, observa René Cassin: “Séame permitido, antes de concluir, resumir a grandes rasgos los caracteres de la declaración surgida de nuestros
debates de 1947 a 1948. Esta declaración se caracteriza, por una parte, por su amplitud. Comprende el conjunto de derechos y facultades sin los cuales un ser humano no puede
desarrolar su personalidad física, moral y intelectual. Su segunda característica es la universalidad: es aplicable a todos los hombres de todos los países, razas, religiones y
sexos, sea cual fuere el régimen político de los territorios donde rija. De ahí que al finalizar los trabajos, pese a que hasta entonces se había hablado siempre de declaración
“internacional”, la Asamblea General, gracias a mi proposición, proclamó la declaración “Universal”. Al hacerlo conscientemente, subrayó que el individuo es miembro directo
de la sociedad humana y que es sujeto directo del derecho de gentes. Naturalmente, es ciudadano de su país, pero también lo es del mundo, por el hecho mismo de la protección
que el mundo debe brindarle. Tales son los caracteres esenciales de la declaración.(...) La Declaración, por el hecho de haber sido, como fue el caso, adoptada por unanimidad
(pues sólo hubo 8 abstenciones, frente a 48 votos favorables), tuvo inmediatamente una gran repercusión en la moral de las naciones. Los pueblos empezaron a darse cuenta de
que el conjunto de la comunidad humana se interesaba por su destino”. (CASSIN, René. El problema de la realización de los derechos humanos en la sociedad universal. In:
Viente años de evolucion de los derechos humanos. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1974. p. 397.)
7
Cf. Eduardo Muylaert Antunes: “A Declaração Universal dos Direitos Humanos se impõe com “o valor da afirmação de uma ética universal” e conservará sempre seu
lugar de símbolo e de ideal”. (Natureza jurídica da Declaração Universal de Direitos Humanos. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 446, p. 35, dez. 1972.)
4
21
Artigo 03
rais, a declaração ineditamente combina o discurso liberal e o
da sucessão “geracional” de direitos, na medida em que se acolhe
discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberda-
a idéia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos
de ao valor da igualdade8. Segundo Louis B. Sohn e Thomas
humanos consagrados, todos essencialmente complementares
Buergenthal:
e em constante dinâmica de interação. Logo, apresentando os
A Declaração Universal de Direitos Humanos se
distingue das tradicionais Cartas de direitos humanos
que constam de diversas normas fundamentais e
constitucionais dos séculos XVIII e XIX e começo
do século XX, na medida em que ela consagra não
apenas direitos civis e políticos, mas também direitos
econômicos, sociais e culturais, como o direito ao
trabalho e à educação9.
direitos humanos uma unidade indivisível, revela-se esvaziado
o direito à liberdade, quando não assegurado o direito
à igualdade e, por sua vez, esvaziado revela-se o direito à
igualdade, quando não assegurada a liberdade11.
Vale dizer, sem a efetividade dos direitos econômicos,
sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a
meras categorias formais, enquanto sem a realização dos
direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade
entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos e
Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da
sociais carecem de verdadeira significação. Não há mais como
igualdade, a declaração demarca a concepção contemporânea
cogitar da liberdade divorciada da justiça social, como também
de direitos humanos, pela qual os direitos humanos passam
infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade. Em
a ser concebidos como uma unidade interdependente, inter-
suma, todos os direitos humanos constituem um complexo
relacionada e indivisível. Assim, partindo-se do critério
integral, único e indivisível, em que os diferentes direitos estão
metodológico, que classifica os direitos humanos em gerações10,
necessariamente inter-relacionados e interdependentes entre si.
adota-se o entendimento de que uma geração de direitos não
substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a idéia
Como estabeleceu a Resolução no 32/130 da Assembléia
Geral das Nações Unidas:
Quanto à classificação dos direitos constantes da declaração, adverte Antonio Cassesse: “Mas vamos examinar o conteúdo da Declaração de forma mais aprofundada.
Para este propósito, é melhor nos deixarmos orientar, ao menos em determinado sentido, por um dos pais da Declaração, o francês René Cassin, que descreveu seu escopo
do modo a seguir. Primeiramente, trata a Declaração dos direitos pessoais (os direitos à igualdade, à vida, à liberdade e à segurança, etc. – arts. 3o a 11). Posteriormente,
são previstos direitos que dizem respeito ao indivíduo em sua relação com grupos sociais no qual ele participa (o direito à privacidade da vida familiar e o direito ao
casamento; o direito à liberdade de movimento no âmbito nacional ou fora dele; o direito à nacionalidade; o direito ao asilo, na hipótese de perseguição; direitos de
propriedade e de praticar a religião – arts. 12 a 17). O terceiro grupo de direitos se refere às liberdades civis e aos direitos políticos exercidos no sentido de contribuir para
a formação de órgãos governamentais e participar do processo de decisão (liberdade de consciência, pensamento e expressão; liberdade de associação e assembléia; direito
de votar e ser eleito; direito ao acesso ao governo e à administração pública – arts. 18 a 21). A quarta categoria de direitos se refere aos direitos exercidos nos campos
econômicos e sociais (ex: aqueles direitos que se operam nas esferas do trabalho e das relações de produção, o direito à educação, o direito ao trabalho e à assistência
social e à livre escolha de emprego, a justas condições de trabalho, ao igual pagamento para igual trabalho, o direito de fundar sindicatos e deles participar; o direito ao
descanso e ao lazer; o direito à saúde, à educação e o direito de participar livremente na vida cultural da comunidade – arts. 22 a 27)”. (CASSESSE, Antonio. Human
rights in a changing world. Philadelphia: Temple University Press, 1990. p. 38-39). Sobre o tema, observa José Augusto Lindgren Alves que mais acurada é a classificação
feita por Jack Donnelly, quando sustenta que a declaração de 1948 enuncia as seguintes categorias de direitos: 1) direitos pessoais, incluindo os direitos à vida, à
nacionalidade, ao reconhecimento perante a lei, à proteção contra tratamentos ou punições cruéis, degradantes ou desumanas e à proteção contra a discriminação racial,
étnica, sexual ou religiosa (arts. 2o a 7o e 15); 2) direitos judiciais, incluindo o acesso a remédios por violação dos direitos básicos, a presunção de inocência, a garantia de
processo público justo e imparcial, a irretroatividade das leis penais, a proteção contra a prisão, detenção ou exílio arbitrários, e contra a interferência na família, no lar e
na reputação (arts. 8o a 12); 3) liberdades civis, especialmente as liberdades de pensamento, consciência e religião, de opinião e expressão, de movimento e resistência, e de
reunião e de associação pacífica (arts. 13 e de 18 a 20); 4) direitos de subsistência, particularmente os direitos à alimentação e a um padrão de vida adequado à saúde e ao
bem-estar próprio e da família (art. 25); 5) direitos econômicos, incluindo principalmente os direitos ao trabalho, ao repouso e ao lazer, e à segurança social (arts. 22 a 26);
6) direitos sociais e culturais, especialmente os direitos à instrução e à participação na vida cultural da comunidade (arts. 26 e 28); 7) direitos políticos, principalmente os
direitos a tomar parte no governo e a eleições legítimas com sufrágio universal e igual (art. 21), acrescido dos aspectos políticos de muitas liberdades civis”. (DONNELLY,
Jack. International human rights: a regime analysis. In: International organization. Massachussetts Institute of Technology, Summer 1986. p. 599-642, apud LINDGREN
ALVES, José Augusto. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos e o Brasil. Arquivos do Ministério da Justiça, Brasília, v. 46, n. 182, p. 89, jul./dez.1993).
Na lição de Celso D. de Albuquerque Mello, a Declaração Universal “tem sido dividida pelos autores em quatro partes: a) normas gerais (arts. 1o e 2o, 28, 29 e 30); b)
direitos e liberdades fundamentais (arts. 3o a 20); c) direitos políticos (art. 21); d) direitos econômicos e sociais (arts. 22 e 27)”. (Curso de direito internacional público.
6. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1979. p. 531.)
9
International protection of human rights. Indianapolis: The Bobbs-Merrill Company, 1973. p. 516.
10
A partir desse critério, os direitos de primeira geração correspondem aos direitos civis e políticos, que traduzem o valor da liberdade; os direitos de segunda geração
correspondem aos direitos sociais, econômicos e culturais, que traduzem, por sua vez, o valor da igualdade; já os direitos de terceira geração correspondem ao direito
ao desenvolvimento, direito à paz, à livre determinação, que traduzem o valor da solidariedade. Sobre a matéria, ver ESPIELL, Hector Gross. Estudios sobre derechos
humanos, Madrid: Civitas, 1988, p. 328-332. Do mesmo autor a obra: Los derechos economicos sociales y culturales en el sistema interamericano. San José, Libro libre,
1986. Ainda sobre a idéia de gerações de direitos humanos, explica Burns H. Weston: “A este respeito, particularmente útil é a noção de “três gerações de direitos
humanos” elaborada pelo jurista francês Karel Vasak. Sob a inspiração dos três temas da Revolução francesa, estas três gerações de direitos são as seguintes: a primeira
geração se refere aos direitos civis e políticos (liberté); a segunda geração aos direitos econômicos, sociais e culturais (égalité); e a terceira geração se refere aos novos
direitos de solidariedade (fraternité)”. (WESTON, Burns H. Human rights, In: CLAUDE, Richard Pierre, WESTON, Burns H (Editores). Human rights in the world
community, p. 16-17). Sobre a matéria consultar ainda LUÑO, A. E. P. (Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1988); T. H. Marshall (Cidadania, classe social e
status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.)
11
Sobre a indivisibilidade dos direitos humanos, afirma Louis Henkin: “Os direitos considerados fundamentais incluem não apenas limitações que inibem a interferência
dos governos nos direitos civis e políticos, mas envolvem obrigações governamentais de cunho positivo em prol da promoção do bem-estar econômico e social,
pressupondo um Governo que seja ativo, interventor, planejador e comprometido com os programas econômico-sociais da sociedade que, por sua vez, os transforma
em direitos econômicos e sociais para os indivíduos”. (The age of rights. New York: Columbia University Press, 1990. p. 6-7). No entanto, difícil é a conjugação desses
valores, e em particular difícil é a conjugação dos valores da igualdade e liberdade. Como pondera Norberto Bobbio: “As sociedades são mais livres na medida em que
são menos justas e mais justas na medida em que são menos livres”. (A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 43.)
8
22
A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
todos os direitos humanos, qualquer que seja o tipo a
que pertencem, se inter-relacionam necessariamente
entre si, e são indivisíveis e interdependentes12. Essa
concepção foi reiterada na Declaração de Viena de
1993, ao afirmar, em seu § 5o, que os direitos humanos
são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados.
Seja por fixar a idéia de que os direitos humanos são
universais, inerentes à condição de pessoa e não relativos às
peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade,
seja por incluir em seu elenco não só direitos civis e políticos,
mas também direitos sociais, econômicos e culturais, a
declaração de 1948 demarca a concepção contemporânea dos
direitos humanos.
Uma das principais qualidades da declaração é constituir-se em parâmetro e código de atuação para os estados
integrantes da comunidade internacional. Ao consagrar o reconhecimento universal dos direitos humanos pelos estados, a
declaração consolida um parâmetro internacional para a proteção desses direitos. Nesse sentido, ela é um dos parâmetros
fundamentais pelos quais a comunidade internacional “deslegitima” os estados. Um estado que sistematicamente viola a
declaração não é merecedor de aprovação por parte da comunidade mundial13.
A partir da aprovação da Declaração Universal
de 1948 e da concepção contemporânea de direitos humanos
por ela introduzida, começa a se desenvolver o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção
de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção
de direitos fundamentais. Os instrumentos internacionais
de proteção refletem, sobretudo, a consciência ética
contemporânea compartilhada pelos estados, na medida
em que invocam o consenso internacional acerca de temas
centrais aos direitos humanos. Nesse sentido, cabe destacar que,
até junho de 2006, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos contava com 156 Estados-partes; o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com
153 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava
com 141 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação
da Discriminação Racial contava com 170 Estados-partes;
a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a
Mulher contava com 183 Estados-partes e a Convenção sobre
os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com
192 Estados-partes14 .
Forma-se o sistema normativo global de proteção dos
direitos humanos, no âmbito das Nações Unidas. Esse sistema
normativo, por sua vez, é integrado por instrumentos de
alcance geral (como os Pactos Internacionais de Direitos Civis e
Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966)
e por instrumentos de alcance específico, como as convenções
internacionais, que buscam responder a determinadas violações
dos direitos humanos, como a tortura, a discriminação racial,
a discriminação contra as mulheres, a violação dos direitos das
crianças, dentre outras formas de violação.
Firma-se assim, no âmbito do sistema global, a
coexistência dos sistemas geral e especial de proteção dos
direitos humanos, como sistemas de proteção complementares.
O sistema especial de proteção realça o processo da especificação
do sujeito de direito, no qual o sujeito passa a ser visto segundo
sua especificidade e concreticidade (ex: protege-se a criança, os
grupos étnicos minoritários, os grupos vulneráveis, as mulheres,
etc.). Já o sistema geral de proteção (ex: os Pactos da ONU de
1966) tem por endereçado toda e qualquer pessoa, concebida
segundo sua abstração e generalidade.
Ao lado do sistema normativo global, surge o sistema
normativo regional de proteção, que busca internacionalizar
os direitos humanos no plano regional, particularmente na
Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência
do sistema global – integrado pelos instrumentos das Nações
Unidas, como a Declaração Universal de Direitos Humanos,
o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e as
demais Convenções internacionais – com instrumentos do sistema
regional, por sua vez integrado pelos sistemas interamericano,
europeu e africano de proteção aos direitos humanos.
Os sistemas global e regional não são dicotômicos,
mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios
da Declaração Universal, esses sistemas compõem o
universo instrumental de proteção dos direitos humanos no
Sobre a Resolução n. 32/130 afirma Antonio Augusto Cançado Trindade: “Aquela resolução (32/130), ao endossar a asserção da Proclamação de Teerã de 1968,
reafirmou a indivisibilidade a partir de uma perspectiva globalista, e deu prioridade à busca de soluções para as violações maciças e flagrantes dos direitos humanos. Para
a formação deste novo ethos, fixando parâmetros de conduta em torno de valores básicos universais, também contribuiu o reconhecimento da interação entre os direitos
humanos e a paz consignado na Ata Final de Helsinque de 1975”. (A proteção internacional dos direitos humanos no limiar do novo século e as perspectivas brasileiras.
In: Temas de Política Externa Brasileira, II, v. 1, 1994. p. 169).
13
Cf. Cassesse, Antonio, Human rights in a changing world, op. cit. p. 46-47. Louis B. Sohn e Thomas Buergenthal afirmam que: “A Declaração Universal de Direitos
Humanos tem, desde sua adoção, exercido poderosa influência na ordem mundial, tanto internacional como nacionalmente. Suas previsões têm sido citadas como
justificativa para várias ações adotadas pelas Nações Unidas e têm inspirado um grande número de Convenções internacionais no âmbito das Nações Unidas ou fora
dele. Estas previsões também exercem uma significativa influência nas Constituições nacionais e nas legislações locais e, em diversos casos, nas decisões das Cortes. Em
algumas instâncias, o texto das previsões da Declaração tem sido incorporado em instrumentos internacionais ou na legislação nacional e há inúmeras instâncias que
adotam a Declaração como um código de conduta e um parâmetro capaz de medir o grau de respeito e de observância relativamente aos parâmetros internacionais de
direitos humanos”. (Sohn, Louis B. e ; Buergenthal, Thomas, op. cit., p. 516.)
14
Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, Status of Ratifications of the Principal International Human Rights Treaties. Disponível em: <http://www.
unhchr.ch/pdf/report.pdf>
12
23
Artigo 03
plano internacional. Em face desse complexo universo de
Assim, a partir da Carta de 1988, importantes
instrumentos internacionais, cabe ao indivíduo que sofreu
tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados
violação de direito a escolha do aparato mais favorável, tendo
pelo Brasil. Dentre eles, destaca-se a ratificação:
em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados
por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional,
a) da Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989;
ou ainda, de alcance geral ou especial. Sob essa ótica, os
b) da Convenção contra a Tortura e outros
diversos sistemas de proteção dos direitos humanos interagem
Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
em benefício dos indivíduos protegidos. De acordo com a visão
de Antônio Augusto Cançado Trindade:
em 28 de setembro de 1989;
c) da Convenção sobre os Direitos da Criança, em
24 de setembro de 1990;
O critério da primazia da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado expressamente em tantos
tratados de direitos humanos, contribui em primeiro
d) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, em 24 de janeiro de 1992;
e) do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
lugar para reduzir ou minimizar consideravelmente
Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992;
as pretensas possibilidades de “conflitos” entre instru-
f) da Convenção Americana de Direitos Humanos,
mentos legais em seus aspectos normativos. Contribui,
em 25 de setembro de 1992;
em segundo lugar, para obter maior coordenação entre
g) da Convenção Interamericana para Prevenir,
tais instrumentos em dimensão tanto vertical (tratados
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em
e instrumentos de direito interno), quanto horizontal
(dois ou mais tratados). (...) Contribui, em terceiro lugar, para demonstrar que a tendência e o propósito da
coexistência de distintos instrumentos jurídicos – garantindo os mesmos direitos – são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção15.
Feitas essas breves considerações a respeito dos
tratados internacionais de direitos humanos, passa-se à
análise do modo pelo qual o Brasil se relaciona com o aparato
internacional de proteção dos direitos humanos.
2. O Estado Brasileiro em Face do Sistema Internacional de
Proteção dos Direitos Humanos
27 de novembro de 1995;
h) do Protocolo à Convenção Americana referente à
Abolição da Pena de Morte, em 13 de agosto de
1996;
i) do Protocolo à Convenção Americana referente
aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(Protocolo de San Salvador), em 21 de agosto de
1996;
j) da Convenção Interamericana para Eliminação de
todas as formas de Discriminação contra Pessoas
Portadoras de Deficiência, em 15 de agosto de
2001;
k) do Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal
Internacional, em 20 de junho de 2002;
No que se refere à posição do Brasil em relação
l) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a
ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos,
Eliminação de todas as formas de Discriminação
observa-se que somente a partir do processo de democratização
contra a Mulher, em 28 de junho de 2002;
do país, deflagrado em 1985, é que o estado brasileiro passou a
m) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os
ratificar relevantes tratados internacionais de direitos humanos.
Direitos da Criança sobre o Envolvimento de
O marco inicial do processo de incorporação de
Crianças em Conflitos Armados, em 27 de janeiro
tratados internacionais de direitos humanos pelo Direito
de 2004;
brasileiro foi a ratificação, em 1989, da Convenção contra
n) do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os
a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Direitos da Criança sobre Venda, Prostituição e
Degradantes. A partir dessa ratificação, inúmeros outros
Pornografia Infantis, também em 27 de janeiro de
importantes instrumentos internacionais de proteção dos
2004; e
direitos humanos foram também incorporados pelo Direito
Brasileiro, sob a égide da Constituição Federal de 1988.
o) do Protocolo Facultativo à Convenção contra a
Tortura, em 11 de janeiro de 2007.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos. In: Arquivos do Ministério
da Justiça, Brasília, v. 46, n. 182, p. 52-53, jul./dez. 1993.
15
24
A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
As inovações introduzidas pela Carta de 1988 –
especialmente no que tange ao primado da prevalência dos
direitos humanos, como princípio orientador das relações
internacionais – foram fundamentais para a ratificação desses
importantes instrumentos de proteção dos direitos humanos16.
Além das inovações constitucionais, como importante
fator para a ratificação desses tratados internacionais,
acrescente-se a necessidade do Estado brasileiro reorganizar
sua agenda internacional, de modo mais condizente com
as transformações internas decorrentes do processo de
democratização. Esse esforço se conjuga com o objetivo de
compor uma imagem mais positiva do Estado brasileiro no
contexto internacional, como país respeitador e garantidor
dos direitos humanos. Adicione-se que a subscrição do Brasil
aos tratados internacionais de direitos humanos simboliza
ainda o aceite do Brasil para com a idéia contemporânea de
globalização dos direitos humanos, bem como para com a idéia
da legitimidade das preocupações da comunidade internacional,
no tocante à matéria. Por fim, há que se acrescer o elevado
grau de universalidade desses instrumentos, que contam com
significativa adesão dos demais estados integrantes da ordem
internacional.
Logo, faz-se clara a relação entre o processo de
democratização no Brasil e o processo de incorporação de
relevantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos
humanos, tendo em vista que, se o processo de democratização
permitiu a ratificação de relevantes tratados de direitos
humanos, por sua vez essa ratificação permitiu o fortalecimento
do processo democrático, por meio da ampliação e do reforço
do universo de direitos por ele assegurado.
O valor da dignidade humana – ineditamente
elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do
art. 1o, III – impõe-se como núcleo básico e informador do
ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de
valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema
constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana
e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios
constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos
valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema
jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser
dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo
o universo constitucional e servindo como critério interpretativo
de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.
É nesse contexto que há de se interpretar o disposto
no art. 5o, § 2o do texto, que, de forma inédita, tece a interação
entre o Direito brasileiro e os tratados internacionais de direitos
humanos. Ao fim da extensa Declaração de Direitos enunciada
pelo art. 5o, a Carta de 1988 estabelece que os direitos e garantias
expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte”. À luz desse dispositivo constitucional, os direitos
fundamentais podem ser organizados em três distintos grupos:
a) o dos direitos expressos na Constituição;
b) o dos direitos implícitos, decorrentes do regime e
dos princípios adotados pela Carta constitucional; e
c) o dos direitos expressos nos tratados internacionais subscritos pelo Brasil. A Constituição de 1988
inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados
3. A Incorporação dos Tratados Internacionais de Proteção de
nos tratados internacionais de que o Brasil seja
Direitos Humanos pelo Direito Brasileiro
signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Carta
Preliminarmente, é necessário frisar que a Constituição
está a atribuir aos direitos internacionais uma
Brasileira de 1988 constitui o marco jurídico da transição
hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de
democrática e da institucionalização dos direitos humanos
norma constitucional.
no Brasil. O texto de 1988, ao simbolizar a ruptura com o
Essa conclusão advém de interpretação sistemática e
regime autoritário, empresta aos direitos e garantias ênfase
teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva
extraordinária, situando-se como o documento mais avançado,
dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais,
abrangente e pormenorizado sobre a matéria, na história
como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do
constitucional do país.
fenômeno constitucional17. A esse raciocínio se acrescentam o
Para J. A. Lindgren Alves: “Com a adesão aos dois Pactos Internacionais da ONU, assim como ao Pacto de São José, no âmbito da OEA, em 1992, e havendo
anteriormente ratificado todos os instrumentos jurídicos internacionais significativos sobre a matéria, o Brasil já cumpriu praticamente todas as formalidades externas
necessárias à sua integração ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Internamente, por outro lado, as garantias aos amplos direitos entronizados
na Constituição de 1988, não passíveis de emendas e, ainda, extensivas a outros decorrentes de tratados de que o país seja parte, asseguram a disposição do Estado
democrático brasileiro de conformar-se plenamente às obrigações internacionais por ele contraídas”. (Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva/
Fundação Alexandre de Gusmão, 1994. p. 108.)
17
Para José Joaquim Gomes Canotilho: “A legitimidade material da Constituição não se basta com um “dar forma” ou “constituir” de órgãos; exige uma fundamentação
substantiva para os actos dos poderes públicos e daí que ela tenha de ser um parâmetro material, directivo e inspirador desses actos. A fundamentação material é hoje
essencialmente fornecida pelo catálogo de direitos fundamentais (direitos, liberdades e garantias e direitos econômicos, sociais e culturais)”. (Direito constitucional. 6. ed.
rev. Coimbra: Almedina, 1993. p. 74.)
16
25
Artigo 03
princípio da máxima efetividade das normas constitucionais
detêm natureza de norma constitucional. Esse tratamento
referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza
jurídico diferenciado se justifica, na medida em que os
materialmente constitucional dos direitos fundamentais18, o
tratados internacionais de direitos humanos apresentam um
que justifica estender aos direitos enunciados em tratados o
caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais
regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias
comuns. Enquanto estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade
fundamentais. Essa conclusão decorre também do processo de
de relações entre Estados-partes, aqueles transcendem os
globalização, que propicia e estimula a abertura da Constituição
meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes,
à normação internacional – abertura que resulta na ampliação
tendo em vista que objetivam a salvaguarda dos direitos do
do “bloco de constitucionalidade”, que passa a incorporar
ser humano e não das prerrogativas dos Estados. No mesmo
preceitos asseguradores de direitos fundamentais. Adicione-se,
sentido, argumenta Juan Antonio Travieso:
ainda, o fato de as Constituições latino-americanas recentes
conferirem aos tratados de direitos humanos um status
Los tratados modernos sobre derechos humanos en
jurídico especial e diferenciado, destacando-se, nesse sentido,
general, y, en particular la Convención Americana
a Constituição da Argentina que, em seu art. 75, § 22, eleva os
no son tratados multilaterales del tipo tradicional
principais tratados de direitos humanos à hierarquia de norma
concluidos en función de un intercambio recíproco
constitucional.
de derechos para el beneficio mutuo de los Estados
Logo, por força do art. 5 , §§ 1 e 2 , a Carta de 1988
contratantes. Su objeto y fin son la protección de
atribui aos direitos enunciados em tratados internacionais a
los derechos fundamentales de los seres humanos
hierarquia de norma constitucional, incluindo-os no elenco
independientemente
dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam
frente a su proprio Estado como frente a los otros
aplicabilidade imediata. A hierarquia constitucional dos
Estados contratantes. Al aprobar estos tratados sobre
tratados de proteção dos direitos humanos decorre da previsão
derechos humanos, los Estados se someten a un orden
constitucional do art. 5 , § 2 , à luz de uma interpretação
legal dentro del cual ellos, por el bién común, asumen
sistemática e teleológica da Carta, particularmente da
varias obligaciones, no en relación con otros Estados,
prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao princípio
sino hacia los individuos bajo su jurisdicción. Por
da dignidade da pessoa humana. Essa opção do constituinte
tanto, la Convención no sólo vincula a los Estados
de 1988 se justifica em face do caráter especial dos tratados
partes, sino que otorga garantías a las personas. Por
de direitos humanos e, no entender de parte da doutrina, da
ese motivo, justificadamente, no puede interpretarse
superioridade desses tratados no plano internacional, tendo
como cualquier otro tratado20.
o
o
o
o
o
de
su
nacionalidad,
tanto
em vista que integrariam o chamado jus cogens (direito cogente
e inderrogável).
Enfatize-se que, enquanto os demais tratados
internacionais têm força hierárquica infraconstitucional19,
Esse caráter especial vem a justificar o status
constitucional atribuído aos tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos.
nos termos do art. 102, III, “b” do texto (que admite o
Conclui-se, portanto, que o Direito brasileiro faz op-
cabimento de recurso extraordinário de decisão que declarar
ção por um sistema misto, que combina regimes jurídicos dife-
a inconstitucionalidade de tratado), os direitos enunciados
renciados: um regime aplicável aos tratados de direitos huma-
em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos
nos e um outro aplicável aos tratados tradicionais. Enquanto
Sobre o tema, José Joaquim Gomes Canotilho afirma: “Ao apontar para a dimensão material, o critério em análise coloca-nos perante um dos temas mais polêmicos
do direito constitucional: qual é o conteúdo ou matéria da Constituição? O conteúdo da Constituição varia de época para época e de país para país e, por isso, é
tendencialmente correcto afirmar que não há reserva de Constituição no sentido de que certas matérias têm necessariamente de ser incorporadas na Constituição pelo
Poder Constituinte. Registre-se, porém, que, historicamente (na experiência constitucional), foram consideradas matérias constitucionais, par excellence, a organização
do poder político (informada pelo princípio da divisão de poderes) e o catálogo dos direitos, liberdades e garantias. Posteriormente, verificou-se o “enriquecimento” da
matéria constitucional através da inserção de novos conteúdos, até então considerados de valor jurídico-constitucional irrelevante, de valor administrativo ou de natureza
sub-constitucional (direitos econômicos, sociais e culturais, direitos de participação e dos trabalhadores e constituição econômica)”. (Direito constitucional, op. cit.
p. 68). Prossegue o mesmo autor: “Um topos caracterizador da modernidade e do constitucionalismo foi sempre o da consideração dos “direitos do homem” como ratio
essendi do Estado Constitucional. Quer fossem considerados como “direitos naturais”, “direitos inalienáveis” ou “direitos racionais” do indivíduo, os direitos do homem,
constitucionalmente reconhecidos, possuíam uma dimensão projectiva de comensuração universal”. (idem, p. 18).
19
Sustenta-se que os tratados tradicionais têm hierarquia infraconstitucional, mas supralegal. Esse posicionamento se coaduna com o princípio da boa-fé, vigente no
direito internacional (o pacta sunt servanda), que tem como reflexo o art. 27 da Convenção de Viena, segundo o qual não cabe ao Estado invocar disposições de seu direito
interno como justificativa para o não cumprimento de tratado.
20
TRAVIESO, Juan Antonio. Derechos humanos y derecho internacional. Buenos Aires: Heliasta, 1990. p. 90. Compartilhando do mesmo entendimento, leciona Jorge
Reinaldo Vanossi: La declaración de la Constitución argentina es concordante con as Declaraciones que han adoptado los organismos internacionales, y se refuerza con la
ratificación argentina a las convenciones o pactos internacionales de derechos humanos destinados a hacerlos efectivos y brindar protección concreta a las personas a través de
instituciones internacionales. (La Constitución Nacional y los derechos humanos. 3. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1988. p. 35.)
18
2
A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos
No entanto, estabelece o § 3o do art. 5o que os tratados
– por força do art. 5o, §§ 1o e 2o – apresentam hierarquia de
internacionais de direitos humanos aprovados, em cada Casa
norma constitucional e aplicação imediata, os demais trata-
do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
dos internacionais apresentam hierarquia infraconstitucional
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
e se submetem à sistemática da incorporação legislativa. No
à Constituição.
que se refere à incorporação automática, diversamente dos
Desde logo, há que afastar o entendimento segundo
tratados tradicionais, os tratados internacionais de direitos
o qual, em face do § 3o do art. 5o, todos os tratados de direitos
humanos irradiam efeitos concomitantemente na ordem
humanos já ratificados seriam recepcionados como lei federal,
jurídica internacional e nacional, a partir do ato da ratifica-
pois não teriam obtido o quorum qualificado de três quintos,
ção. Não é necessária a produção de um ato normativo que
demandado pelo aludido parágrafo.
reproduza no ordenamento jurídico nacional o conteúdo do
Observe-se que os tratados de proteção dos direitos
tratado, pois sua incorporação é automática, segundo os ter-
humanos ratificados anteriormente à Emenda Constitucional
mos do art. 5o, § 1o, que consagra o princípio da aplicabilida-
no 45/2004 contaram com ampla maioria na Câmara dos
de imediata das normas definidoras de direitos e garantias
Deputados e no Senado Federal, excedendo, inclusive, o quorum
fundamentais.
dos três quintos dos membros em cada Casa. Todavia, não
Observa-se, contudo, que há quatro correntes
foram aprovados por dois turnos de votação, mas em um único
doutrinárias acerca da hierarquia dos tratados internacionais
turno de votação em cada Casa, uma vez que o procedimento
de proteção dos direitos humanos, que sustentam:
de dois turnos não era tampouco previsto.
a) a hierarquia supra-constitucional desses tratados;
b) a hierarquia constitucional;
Reitere-se que, por força do art. 5o, § 2o, todos
os tratados de direitos humanos, independentemente do
c) a hierarquia infra-constitucional, mas supra-legal e
quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais,
d) a paridade hierárquica entre tratado e lei federal .
compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado
21
No sentido de responder à polêmica doutrinária
e jurisprudencial concernente à hierarquia dos tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos, a Emenda
Constitucional no 45, de 8 dezembro de 2004, introduziu um
§ 3o no art. 5o, dispondo:
está tão-somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um
lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados,
propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados
de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Como já
defendido por esse trabalho, na hermenêutica emancipatória
dos direitos há que imperar uma lógica material e não
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes
às emendas à Constituição.
formal, orientada por valores, a celebrar o valor fundante da
prevalência da dignidade humana. À hierarquia de valores deve
corresponder uma hierarquia de normas23, e não o oposto. Vale
dizer, a preponderância material de um bem jurídico, como é o
caso de um direito fundamental, deve condicionar a forma no
plano jurídico-normativo, e não ser condicionado por ela.
Em face de todos os argumentos já expostos, sustenta-
Não seria razoável sustentar que os tratados de
se que a hierarquia constitucional já se extrai da interpretação
direitos humanos já ratificados fossem recepcionados como
conferida ao próprio art. 5 , § 2 , da Constituição de 1988. Vale
lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia
dizer, seria mais adequado que a redação do aludido § 3o do
constitucional exclusivamente em virtude de seu quorum de
art. 5 endossasse a hierarquia formalmente constitucional
aprovação. A título de exemplo, destaque-se que o Brasil é
de todos os tratados internacionais de proteção dos direitos
parte da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos
humanos ratificados, afirmando – tal como o fez o texto
ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes desde 1989,
argentino – que os tratados internacionais de proteção de
estando em vias de ratificar seu Protocolo Facultativo. Não
direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm
haveria qualquer razoabilidade se a este último – um tratado
hierarquia constitucional22.
complementar e subsidiário ao principal – fosse conferida
o
o
o
A respeito, ver PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 8. ed. revista, ampliada e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2007,
p. 51-81.
22
Defendi essa posição em parecer sobre o tema, aprovado em sessão do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, em março de 2004.
23
MELLO, Celso de Albuquerque. O parágrafo 2o do art. 5o da Constituição Federal. In: Teoria dos direitos fundamentais, p. 25.
21
27
Artigo 03
hierarquia constitucional, e ao instrumento principal fosse
Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido
conferida hierarquia meramente legal. Tal situação importaria
aprovado com quórum de lei ordinária, é de se ressaltar que
em agudo anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda,
ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não
a teoria geral da recepção acolhida no direito brasileiro .
obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais. De
24
Ademais, como realça Celso Lafer, “o novo parágrafo 3o
acordo com o citado §3o, a Convenção continua em vigor, desta
do art. 5o pode ser considerado como uma lei interpretativa des-
feita com força de emenda constitucional. A regra emanada
tinada a encerrar as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias
pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados
suscitadas pelo parágrafo 2 do art. 5 . De acordo com a opinião
internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o
doutrinária tradicional, uma lei interpretativa nada mais faz do que
Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do
declarar o que pré-existe, ao clarificar a lei existente” .
país como normas de hierarquia constitucional. Não se pode
o
o
25
Uma vez mais, corrobora-se o entendimento de que os
escantear que o §1o supra determina, peremptoriamente, que
tratados internacionais de direitos humanos ratificados anterior-
“as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
mente ao mencionado parágrafo, ou seja, anteriormente à Emen-
têm aplicação imediata”. Na espécie, devem ser aplicados,
da Constitucional n 45/2004, têm hierarquia constitucional, si-
imediatamente, os tratados internacionais em que o Brasil
tuando-se como normas material e formalmente constitucionais.
seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica foi resgatado
Esse entendimento decorre de quatro argumentos:
pela nova disposição (§3o do art. 5o), a qual possui eficácia
o
a) a interpretação sistemática da Constituição, de
retroativa. A tramitação de lei ordinária conferida à aprovação
forma a dialogar os §§ 2 e 3 do art. 5 , já que o
da mencionada Convenção (...) não constituirá óbice formal
último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés,
de relevância superior ao conteúdo material do novo direito
ser interpretado à luz do sistema constitucional;
aclamado, não impedindo a sua retroatividade, por se tratar de
o
o
o
b) a lógica e racionalidade material que devem
orientar a hermenêutica dos direitos humanos;
c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e
d) a teoria geral da recepção do Direito brasileiro.
acordo internacional pertinente a direitos humanos”26.
Esse julgado revela a hermenêutica adequada a ser
aplicada aos direitos humanos, inspirada por uma lógica e
racionalidade material, ao afirmar o primado da substância
sob a forma27.
A respeito do impacto art. 5o, § 3o, destaca-se a decisão
O impacto da inovação introduzida pelo art. 5o, § 3o e
do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do
a necessidade de evolução e atualização jurisprudencial foram
RHC 18799, tendo como relator o Ministro José Delgado, em
também realçadas no Supremo Tribunal Federal, quando do
maio de 2006:
julgamento do RE 466.34328, em 22 de novembro de 2006, em
emblemático voto proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira
(...) o §3o do art. 5o da CF/88, acrescido pela EC n. 45,
Mendes, ao destacar:
é taxativo ao enunciar que os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos
respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.
(...) a reforma acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos
demais tratados de reciprocidade entre Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. (...) a mudança constitucional ao
A título de exemplo, cite-se o Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966), que, embora seja lei ordinária, foi recepcionado como lei complementar,
nos termos do artigo 146 da Constituição Federal.
25
LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais, Barueri: Manole, 2005. p. 16.
26
RHC 18799, Recurso Ordinário em Habeas Corpus, data do julgamento: 09/05/2006, DJ 08.06.2006.
27
Em sentido contrário, destaca-se o RHC 19087, Recurso Ordinário em Habeas Corpus, data do julgamento: 18/05/2006, DJ 29.05.2006, julgado proferido pelo Superior
Tribunal de Justiça, tendo como relator o Ministro Albino Zavascki. A argumentação do referido julgado, ao revés, inspirou-se por uma lógica e racionalidade formal,
afirmando o primado da forma sob a substância. A respeito, destaca-se o seguinte trecho: “Quanto aos tratados de direitos humanos preexistentes à EC 45/2004, a
transformação de sua força normativa – de lei ordinária para constitucional – também supõe a observância do requisito formal de ratificação pelas Casas do Congresso,
por quórum qualificado de três quintos. Tal requisito não foi atendido, até a presente data, em relação ao Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de
Direitos Humanos)”.
28
Ver Recurso Extraordinário 466.343-1, São Paulo, relator Ministro Cezar Peluso, recorrente Banco Bradesco S/A e recorrido Luciano Cardoso Santos. Note-se que o
julgamento envolvia a temática da prisão civil por dívida e a aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos. Até novembro de 2006, oito dos onze Ministros
haviam votado pela inconstitucionalidade da prisão para o devedor em alienação fiduciária, tendo sido pedida vista dos autos pelo Ministro Celso de Mello para maior
reflexão sobre a revisão do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Em 1995, diversamente, no julgamento do HC 72.131-RJ, o Supremo Tribunal
Federal, ao enfrentar a mesma temática, sustentou a paridade hierárquica entre tratado e lei federal, admitindo a possibilidade da prisão civil por dívida, pelo voto de
oito dos onze Ministros.
24
28
A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
menos acena para a insuficiência da tese da legalidade
ordinária dos tratados já ratificados pelo Brasil, a
qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento
do RE no 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier
de Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977)
percorrer o procedimento demandado pelo § 3o. No mesmo
e encontra respaldo em largo repertório de casos jul-
formalmente como normas constitucionais, devem
gados após o advento da Constituição de 1988. (...)
obedecer ao item previsto no novo parágrafo 3o do
Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Su-
art. 5o29.
sentido, Celso Lafer afirma:
Com a vigência da Emenda Constitucional no 45, de
08 de dezembro de 2004, os tratados internacionais a
que o Brasil venha a aderir, para serem recepcionados
premo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem
de ser revisitada criticamente. (...) Assim, a premente
Isto porque, a partir de um reconhecimento explícito
necessidade de se dar efetividade à proteção dos direi-
da natureza materialmente constitucional dos tratados de
tos humanos nos planos interno e internacional torna
direitos humanos, o § 3o do art. 5o permite atribuir o status
imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel
de norma formalmente constitucional aos tratados de direitos
dos tratados internacionais sobre direitos na odem
humanos que obedecerem ao procedimento nele contemplado.
jurídica nacional. É necessário assumir uma postura
Logo, para que os tratados de direitos humanos a serem
jurisdicional mais adequada às realidades emergentes
ratificados obtenham assento formal na Constituição, requer-
em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmen-
se a observância de quorum qualificado de três quintos dos
te à proteção do ser humano. (...) Deixo acentuado,
votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional,
também, que a evolução jurisprudencial sempre foi
em dois turnos – que é justamente o quorum exigido para a
uma marca de qualquer jurisdição constitucional.
aprovação de emendas à Constituição, nos termos do art. 60,
(...) Tenho certeza de que o espírito desta Corte, hoje,
§ 2o, da Carta de 1988. Nessa hipótese, os tratados de direitos
mais que que nunca, está preparado para essa atuali-
humanos formalmente constitucionais são equiparados às
zação jurisprudencial.
emendas à Constituição, isto é, passam a integrar formalmente
o Texto Constitucional.
Por fim, concluiu o Ministro pela supralegalidade dos
tratados de direitos humanos.
Acredita-se que o novo dispositivo do art. 5o, § 3o, vem
Vale dizer, com o advento do § 3o do art. 5o surgem
duas categorias de tratados internacionais de proteção de
direitos humanos:
a reconhecer de modo explícito a natureza materialmente cons-
a) os materialmente constitucionais; e
titucional dos tratados de direitos humanos, reforçando, desse
b) os material e formalmente constitucionais. Frise-
modo, a existência de um regime jurídico misto, que distingue os
se: todos os tratados internacionais de direitos
tratados de direitos humanos dos tratados tradicionais de cunho
humanos são materialmente constitucionais,
comercial. Isto é, ainda que fossem aprovados pelo elevado
por força do § 2o do art. 5o30. Para além de serem
quorum de três quintos dos votos dos membros de cada Casa
materialmente constitucionais, poderão, a partir
do Congresso Nacional, os tratados comerciais não passariam
do § 3o do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade
a ter status formal de norma constitucional tão-somente pelo
de formalmente constitucionais, equiparando-se
procedimento de sua aprovação.
às emendas à Constituição, no âmbito formal.
Se os tratados de direitos humanos ratificados
anteriormente à Emenda no 45/2004, por força dos §§ 2o e
4. O Impacto dos Tratados Internacionais de Proteção dos
3o do art. 5o da Constituição, são normas material e formalmente
Direitos Humanos na Ordem Jurídica Brasileira
constitucionais, com relação aos novos tratados de direitos
Relativamente ao impacto jurídico dos tratados
humanos a serem ratificados, por força do § 2o do mesmo art. 5o,
internacionais de direitos humanos no Direito brasileiro, e
independentemente de seu quorum de aprovação, serão normas
considerando a hierarquia constitucional desses tratados, três
materialmente constitucionais. Contudo, para converterem-
hipóteses poderão ocorrer. O direito enunciado no tratado
se em normas também formalmente constitucionais deverão
internacional poderá:
LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005. p. 17.
Como Ingo Wolfgang Sarlet leciona: “Inobstante não necessariamente ligada à fundamentalidade formal, é por intermédio do direito constitucional positivo (art.
5o, parágrafo 2o da CF) que a noção de fundamentalidade material permite a abertura da Constituição a outros direitos fundamentais não constantes de seu texto, e,
portanto, apenas materialmente fundamentais, assim como há direitos fundamentais situados fora do catálogo, mas integrantes da Constituição formal” (A eficácia dos
direitos fundamentais, p. 81.)
29
30
29
Artigo 03
a) coincidir com o direito assegurado pela Constitui-
a) direito de toda pessoa a um nível de vida
ção (neste caso a Constituição reproduz preceitos
adequado para si próprio e sua família, inclusive
do Direito Internacional dos Direitos Humanos);
à alimentação, vestimenta e moradia, nos termos
b) integrar, complementar e ampliar o universo de
do art. 11 do Pacto Internacional dos Direitos
direitos constitucionalmente previstos;
c) contrariar preceito do Direito interno.
Econômicos, Sociais e Culturais;
b) proibição de qualquer propaganda em favor
Na primeira hipótese, o Direito interno brasileiro,
da guerra e proibição de qualquer apologia ao
em particular a Constituição de 1988, apresenta dispositivos
ódio nacional, racial ou religioso, que constitua
que reproduzem fielmente enunciados constantes dos tratados
incitamento à discriminação, à hostilidade ou
internacionais de direitos humanos. A título de exemplo, me-
à violência, em conformidade com o art. 20 do
rece referência o disposto no art. 5o, inciso III, da Constituição
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
de 1988 que, ao prever que “ninguém será submetido a tortura,
e art. 13 (5) da Convenção Americana;
nem a tratamento cruel, desumano ou degradante”, é reprodução literal do art. V da Declaração Universal de 1948, do
art. 7o do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e
ainda do art. 5o (2) da Convenção Americana. Por sua vez, o
princípio da inocência presumida, ineditamente previsto pela
Constituição de 1988 em seu art. 5o, LVII, também é resultado
de inspiração no Direito Internacional dos Direitos Humanos,
nos termos do art. XI da Declaração Universal, art. 14 (3) do
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e art. 8o (2)
da Convenção Americana. Esses são apenas alguns exemplos
que comprovam o quanto o Direito interno brasileiro tem
como inspiração, paradigma e referência, o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
c) direito das minorias étnicas, religiosas ou
lingüísticas de ter sua própria vida cultural,
professar e praticar sua própria religião e usar sua
própria língua, nos termos do art. 27 do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e
art. 30 da Convenção sobre os Direitos da
Criança;
d) proibição do reestabelecimento da pena de morte
nos Estados que a hajam abolido, de acordo com
o art. 4o (3) da Convenção Americana;
e) possibilidade de adoção pelos Estados de medidas,
no âmbito social, econômico e cultural, que
A reprodução de disposições de tratados internacio-
assegurem a adequada proteção de certos grupos
nais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira reflete
raciais, no sentido de que a eles seja garantido o
não apenas o fato do legislador nacional buscar orientação e
pleno exercício dos direitos humanos e liberdades
inspiração nesse instrumental, mas ainda revela a preocupação
fundamentais, em conformidade com o art. 1o (4)
do legislador em equacionar o Direito interno, de modo a que
da Convenção sobre a Eliminação de todas as
se ajuste, com harmonia e consonância, às obrigações interna-
formas de Discriminação Racial;
cionalmente assumidas pelo Estado brasileiro. Nesse caso, os
f) possibilidade de adoção pelos Estados de medidas
tratados internacionais de direitos humanos reforçam o valor
temporárias e especiais que objetivem acelerar
jurídico de direitos constitucionalmente assegurados, de forma
a igualdade de fato entre homens e mulheres,
que eventual violação do direito importará não apenas em res-
nos termos do art. 4o da Convenção sobre a
ponsabilização nacional, mas também em responsabilização
Eliminação de todas as formas de Discriminação
internacional.
contra a Mulher;
Já na segunda hipótese, os tratados internacionais de
direitos humanos estarão a integrar, complementar e estender
a declaração constitucional de direitos. Com efeito, a partir dos
instrumentos internacionais ratificados pelo Estado brasileiro,
é possível elencar inúmeros direitos que, embora não previstos
no âmbito nacional, encontram-se enunciados nesses tratados
e, assim, passam a se incorporar ao Direito brasileiro. A título
de ilustração, cabe menção aos seguintes direitos:
g) vedação da utilização de meios destinados a
obstar a comunicação e a circulação de idéias e
opiniões, nos termos do art. 13 da Convenção
Americana31;
h) direito ao duplo grau de jurisdição como garantia
judicial mínima, nos termos dos arts. 8, “h” e 25,
parágrafo 1o da Convenção Americana32;
A respeito, ver julgamento TRF 3a R – RHC 96.03.060213-2-SP- 2a T, Relatora para o Acórdão Juíza Sylvia Steiner, DJU 19.03.1997.
Com fundamento nesses preceitos, há julgados que afirmam o direito de apelar em liberdade, determinando que seja afastada a incidência do artigo 594 do Código de
Processo Penal, que estabelece a exigência do recolhimento do réu à prisão para apelar. Nesse sentido, ver Apelação n. 1.011.673/4, julgada em 29.05.1996, 5a Câmara,
Relator designado Dr. Walter Swensson, RJTACRIM 31/120.
31
32
30
A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
i) direito do acusado ser ouvido, nos termos do art.
8, parágrafo 1 da Convenção Americana ;
contra a Tortura, concluída em Cartagena (1985) e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da
33
j) direito de toda pessoa detida ou retida ser julgada
Costa Rica), formada no âmbito da OEA (1969) – permitem
em prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem
a integração da norma penal em aberto, a partir do reforço do
prejuízo de que prossiga o processo, nos termos
universo conceitual relativo ao termo “tortura”. Note-se que
do art. 7, (5) da Convenção Americana e
apenas em 7 de abril de 1997 foi editada a lei n. 9455, que define
34
k) proibição da extradição ou expulsão de pessoa a
o crime de tortura.
outro Estado quando houver fundadas razões
Como essa decisão claramente demonstra, os
que poderá ser submetida à tortura ou a outro
instrumentos internacionais de direitos humanos podem
tratamento cruel, desumado ou degradante, nos
integrar e complementar dispositivos normativos do Direito
termos do art. 3o da Convenção contra a Tortura e
brasileiro, permitindo o reforço de direitos nacionalmente
do artigo 22, VIII da Convenção Americana .
previstos – no caso, o direito de não ser submetido à tortura.
35
Esse elenco de direitos enunciados em tratados
Contudo, ainda é possível uma terceira hipótese no
internacionais de que o Brasil é parte inova e amplia o universo
campo jurídico: a hipótese de um eventual conflito entre o Di-
de direitos nacionalmente assegurados, na medida em que não
reito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno.
se encontram previstos no Direito interno. Observe-se que
Essa terceira hipótese é a que encerra maior problemática, sus-
esse elenco não é exaustivo, mas tem como finalidade apenas
citando a seguinte indagação: como solucionar eventual con-
apontar, exemplificativamente, direitos que são consagrados
flito entre a Constituição e determinado tratado internacional
nos instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil e que
de proteção dos direitos humanos?
se incorporaram à ordem jurídica interna brasileira. Desse
Poder-se-ia imaginar, como primeira alternativa, a
modo, percebe-se como o Direito Internacional dos Direitos
adoção do critério “lei posterior revoga lei anterior com ela
Humanos inova, estende e amplia o universo dos direitos
incompatível”, considerando a hierarquia constitucional dos
constitucionalmente assegurados.
tratados internacionais de direitos humanos. Todavia, um
O Direito Internacional dos Direitos Humanos
exame mais cauteloso da matéria aponta para um critério de
ainda permite, em determinadas hipóteses, o preenchimento
solução diferenciado, absolutamente peculiar ao conflito em
de lacunas apresentadas pelo Direito brasileiro. A título de
tela, que se situa no plano dos direitos fundamentais. E o
exemplo, merece destaque decisão proferida pelo Supremo
critério a ser adotado se orienta pela escolha da norma mais
Tribunal Federal acerca da existência jurídica do crime de
favorável à vítima. Vale dizer, prevalece a norma mais benéfica
tortura contra criança e adolescente, no Habeas Corpus
ao indivíduo, titular do direito. O critério ou princípio da
n. 70.389-5 (São Paulo; Tribunal Pleno – 23.6.94; Relator:
aplicação do dispositivo mais favorável às vítimas é não apenas
Ministro Sidney Sanches; Relator para o Acórdão: Ministro
consagrado pelos próprios tratados internacionais de proteção
Celso de Mello). Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal
dos direitos humanos, mas também encontra apoio na prática
enfocou a norma constante no Estatuto da Criança e do
ou jurisprudência dos órgãos de supervisão internacionais.
Adolescente que estabelece como crime a prática de tortura
Isto é, no plano de proteção dos direitos humanos interagem
contra criança e adolescente (art. 233 do Estatuto). A polêmica
o Direito internacional e o Direito interno, movidos pelas
se instaurou em razão de o fato dessa norma consagrar um
mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas que
“tipo penal aberto”, passível de complementação no que se
melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia
refere à definição dos diversos meios de execução do delito de
é da pessoa humana. Os direitos internacionais constantes
tortura. Nesse sentido, entendeu o Supremo Tribunal Federal
dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e
que os instrumentos internacionais de direitos humanos – em
fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção
particular, a Convenção de Nova York sobre os Direitos da
dos direitos consagrados no plano normativo constitucional.
Criança (1990), a Convenção contra a Tortura, adotada pela
Na lição lapidar de Antonio Augusto Cançado Trindade:
Assembléia Geral da ONU (1984), a Convenção Interamericana
A este respeito, ver RHC 7463/DF, recurso ordinário em habeas-corpus (98/0022262-6), de 23.06.1998, tendo como relator o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro.
Sobre a matéria, ver STJ, RHC n. 5.239-BA, relator Ministro Edson Vidigal, 5a Turma, v.u., j. 07.05.1996, DJU 29.09.1997. Note-se que esse direito acabou por ser
formalmente constitucionalizado em virtude da inclusão do inciso LXXVIII no art. 5o, fruto da Emenda Constitucional n. 45/2004.
35
A respeito, ver Extradição 633, setembro/1998, relator Ministro Celso de Mello, em que foi negada a extradição à República Popular da China de pessoa acusada de
crime de estelionato, lá punível com a pena de morte.
33
34
31
Artigo 03
(...) desvencilhamo-nos das amarras da velha e ociosa
hipótese do inadimplemento de obrigação alimentícia e a do
polêmica entre monistas e dualistas. Neste campo
depositário infiel.
de proteção, não se trata de primazia do direito
Observa-se que, enquanto o Pacto Internacional
internacional ou do direito interno, aqui em constante
dos Direitos Civis e Políticos não prevê qualquer exceção ao
interação: a primazia é, no presente domínio, da
princípio da proibição da prisão civil por dívidas, a Convenção
norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos
Americana excepciona o caso de inadimplemento de obrigação
consagrados da pessoa humana, seja ela uma norma
alimentar. Ora, se o Brasil ratificou esses instrumentos sem
de direito internacional ou de direito interno .
qualquer reserva no que tange à matéria, há que se questionar
36
a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário infiel.
Logo, na hipótese de eventual conflito entre o Direito
Mais uma vez, atendo-se ao critério da norma
Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno,
mais favorável à vítima no plano da proteção dos direitos
adota-se o critério da norma mais favorável à vítima. Em outras
humanos, conclui-se que merece ser afastado o cabimento
palavras, a primazia é da norma que melhor proteja, em cada
da possibilidade de prisão do depositário infiel37, conferindo-
caso, os direitos da pessoa humana. A escolha da norma mais
se prevalência à norma do tratado. Isto é, no conflito entre
benéfica ao indivíduo é tarefa que caberá fundamentalmente
os valores da liberdade e da propriedade, o primeiro há de
aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do
prevalecer. Ressalte-se que se a situação fosse inversa – se a
direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao
norma constitucional fosse mais benéfica que a normatividade
ser humano.
internacional – aplicar-se-ia a norma constitucional, inobstante
A título de exemplo, um caso a merecer enfoque
os aludidos tratados tivessem hierarquia constitucional e
refere-se à previsão do art. 11 do Pacto Internacional dos
tivessem sido ratificados após o advento da Constituição.
Direitos Civis e Políticos, ao dispor que “ninguém poderá
ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação
contratual”. Enunciado semelhante é previsto pelo art. 7o
(7) da Convenção Americana, ao estabelecer que ninguém
deve ser detido por dívidas, acrescentando que este princípio
não limita os mandados judiciais expedidos em virtude de
inadimplemento de obrigação alimentar.
Novamente, é preciso lembrar que o Brasil ratificou
ambos os instrumentos internacionais em 1992, sem efetuar
qualquer reserva sobre a matéria.
Ora, a Carta constitucional de 1988, no art. 5o, inciso
LXVII, determina que “não haverá prisão civil por dívida, salvo
a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável
de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Assim, a
Constituição brasileira consagra o princípio da proibição da
prisão civil por dívidas, admitindo, todavia, duas exceções – a
Vale dizer, as próprias regras interpretativas dos tratados
internacionais de proteção aos direitos humanos apontam a
essa direção, quando afirmam que os tratados internacionais
só se aplicam se ampliarem e estenderem o alcance da
proteção nacional dos direitos humanos. Note-se que, no
caso da prestação alimentícia, o conflito de valores envolve os
termos liberdade e solidariedade (que assegura muitas vezes
a sobrevivência humana), merecendo prevalência o valor da
solidariedade, como assinalam a Constituição Brasileira de
1988 e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
Em síntese, os tratados internacionais de direitos humanos inovam significativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados – ora reforçando sua imperatividade
jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo
preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos
TRINDADE, Cançado Augusto Antonio. A proteção dos direitos humanos nos planos nacional e internacional: perspectivas brasileiras. San José de Costa Rica/Brasília:
Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1992. p. 317-318. No mesmo sentido, Arnaldo Sussekind afirma: “No campo do Direito do Trabalho e no da Seguridade
Social, todavia, a solução dos conflitos entre normas internacionais é facilitada pela aplicação do princípio da norma mais favorável aos trabalhadores.(...) mas também
é certo que os tratados multilaterais, sejam universais (p. ex: Pacto da ONU sobre direitos econômicos, sociais e culturais e Convenções da OIT), sejam regionais (p. ex:
Carta Social Européia), adotam a mesma concepção quanto aos institutos jurídicos de proteção do trabalhador, sobretudo no âmbito dos direitos humanos, o que facilita
a aplicação do princípio da norma mais favorável”. (Direito internacional do trabalho. São Paulo: LTR, 1983. p. 57). A respeito, elucidativo é o disposto no art. 29 da
Convenção Americana de Direitos Humanos que, ao estabelecer regras interpretativas, determina: “Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no
sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los
em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos
Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados (...)”.
37
Nesse sentido, merece destaque o louvável voto do Juiz Antonio Carlos Malheiros, do Primeiro Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo, na Apelação n. 613.053-8.
Ver também Apelação n. 601.880-4, São Paulo, 1a Câmara, 16.9.1996, relator Juiz Elliot Akel, v.u., e Habeas Corpus n. 3.545-3 (95.028458-8), Distrito Federal, 10.10.1995,
Rel. Min. Adhemar Maciel. Note-se não ser esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal, ainda que vencidos à época os Ministros Carlos Velloso, Marco Aurélio
e Sepulveda Pertence. A respeito, ver HC 72.131-RJ, 22.11.1995; RE 206.482-SP; HC 76-561-SP, Plenário, 27.5.1998 e RE 243613, 27.4.1999. Acrescente-se que para o
então Ministro Carlos Velloso “a prisão do devedor-fiduciante é uma violência à Constituição e ao Pacto de São José da Costa Rica, que está incorporado ao direito
interno” (RE-243613, Rel. Min. Carlos Velloso, 19.2.1999). Verifica-se uma tendência de mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do já
citado Recurso Extraordinário 466.343-1, em que, ineditamente, oito dos onze Ministros já haviam se manifestado pela inconstitucionalidade da prisão para o devedor
em alienação fiduciária, em novembro de 2006.
36
32
A Costituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos
humanos. Em todas essas três hipóteses, os direitos internacio-
fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos.
nais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a
Testemunha-se o processo de internacionalização do Direito
aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de
Constitucional somado ao processo de constitucionalização
proteção dos direitos consagrados no plano normativo consti-
do Direito Internacional.
tucional.
A Carta de 1988 e os tratados de direitos humanos
lançam um projeto democratizante e humanista, cabendo
5. Considerações finais
Como demonstrado por este estudo, os tratados
aos operadores do direito introjetar e incorporar os seus
valores inovadores. Os agentes jurídicos hão de se converter
internacionais de direitos humanos podem contribuir de forma
em
agentes
propagadores
de
uma
ordem
renovada,
decisiva para o reforço da promoção dos direitos humanos no
democrática e respeitadora dos direitos humanos, impedindo
Brasil. No entanto, o sucesso da aplicação desse instrumental
que se perpetuem os antigos valores do regime autoritário,
internacional de direitos humanos requer a ampla sensibilização
juridicamente repudiado e abolido.
dos agentes operadores do Direito, no que se atém à relevância
Hoje, mais do que nunca, os operadores do Direito
e à utilidade de advogar esses tratados perante as instâncias
estão à frente do desafio de resgatar e recuperar no aparato
nacionais e internacionais, o que pode viabilizar avanços
jurídico seu potencial ético e transformador, aplicando a
concretos na defesa do exercício dos direitos da cidadania.
Constituição e os instrumentos internacionais de proteção
A partir da Constituição de 1988 intensifica-se a
de direitos humanos por ela incorporados. Estão, portanto, à
interação e conjugação do Direito internacional e do Direito
frente do desafio de reinventar, reimaginar e recriar seu exercício
interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos direitos
profissional, a partir deste novo paradigma e referência: a
fundamentais, com uma principiologia e lógica próprias,
prevalência dos direitos humanos.
33
Artigo 04
Artigo 04
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente
da Acusação pela Prática de Crime Doloso diante
do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis,
Hermeneuta Brasileiro?*
Gisela Maria Bester**
Vivian Hey Wescher***
Quando um direito constitucional desaparece, nenhum dos outros se deve presumir seguro.
BARBOSA, Rui. Obras completas. V. XX, tomo IV, p. 138.
1. Introdução. 2. Processo interpretativo: supremacia formal e material, filtragem constitucional e recepção de normas
infraconstitucionais pela nova Constituição. 2.1 Análise do art. 118, inciso I, 1a Parte, da Lei de Execução Penal, à luz da
Constituição de 1988: sentença penal condenatória e prisões cautelares. 3. Princípio da presunção de inocência – acepções
e relevância no ordenamento jurídico brasileiro. 4. Regressão de regime dentro do sistema constitucional brasileiro.
4.1. Divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a regressão pela acusação de prática de crime doloso.
4.2 Conseqüências da regressão de regime pela acusação da prática de crime doloso sem sentença condenatória com
trânsito em julgado. 5. Síntese conclusiva: quo vadis, hermeneuta brasileiro? 6. Referências.
1. Introdução
notadamente no que se refere à sua principal função, que é a
Este artigo versa sobre a regressão de regime
de servir como parâmetro de interpretação das demais normas.
motivada pela prática de crime doloso no Brasil, analisada
Dentre os princípios constitucionais, um dos que possui maior
sob a ótica do princípio constitucional da presunção de
relevância nas matérias penais é o da presunção de inocência,
inocência. Nele, primeiramente se ressalta que é a mesma
o qual influi diretamente na matéria probatória do processo e,
supremacia da Constituição que, ao determinar que as
principalmente, no tratamento despendido ao acusado. Assim,
normas infraconstitucionais devem sempre ser interpretadas e
notória se faz sua incidência na seara da Execução Penal.
aplicadas de acordo com a Lei Fundamental e seus princípios,
No que concerne especificamente à regressão de
também orienta os hermeneutas no que se refere às normas
regime ensejada pela prática de crime doloso, verifica-se que
anteriores ao advento de uma nova Constituição, ditando aí a
o seu dispositivo legal (art. 118, inciso I, 1a parte da LEP)
necessidade de elas serem materialmente conformes a esta, sob
não foi recepcionado pela vigente Constituição da República
pena de não passarem pelo processo de filtragem constitucional
brasileira, na medida em que há patente violação ao princípio
que as leva à recepção pela novel Carta Magna. Outrossim, por
da presunção de inocência. Todavia esse preceito normativo
serem os princípios constitucionais dotados de normatividade,
continua sendo aplicado e causando discórdia doutrinária.
têm eles uma aplicação imediata e direta nos casos concretos,
Nesse sentido, em virtude de ainda não haver suspensão
o que denota sua importância no ordenamento jurídico,
expressa da eficácia do aludido artigo pelo Senado Federal
Artigo resultante de excerto remodelado do trabalho final de pesquisa empreendido pelas autoras no 2o semestre de 2006 e no 1o de 2007, no contexto da política
institucional das então Faculdades Integradas Curitiba em prol da integração entre pós-graduação stricto sensu e graduação. O trabalho de pesquisa contou também com
a valiosa orientação do professor Maurício Kuehne, ao qual as autoras muito agradecem.
**
Mestra e Doutora em Direito. Professora Titular de Direito Constitucional, pesquisadora e Coordenadora do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário
Curitiba.
***
Acadêmica quintanista do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba; estagiária do Ministério Público do Estado do Paraná, onde trabalha na
Promotoria de Execução de Penas e Medidas Alternativas de Curitiba.
*
34
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
como etapa corolária no contexto do controle difuso de
a partir de então, com base na norma fundamental desse novo
constitucionalidade, nem mesmo a revogação expressa da
ordenamento.
norma por parte do Congresso Nacional, há necessidade de os
Conforme leciona Jorge Miranda, o termo mais
magistrados da Execução Penal adequarem-no ao princípio da
apropriado seria “novação” e não “recepção”, posto que as
presunção de inocência durante seu processo hermenêutico, de
normas anteriores devem ter seu sentido recriado à luz do novo
modo a somente determinarem a regressão de regime após a
texto constitucional. Por isso é que o autor elenca as seguintes
superveniência de uma decisão condenatória irrecorrível.
conseqüências de tal acontecimento jurídico:
Outrossim a diferenciação entre os institutos da
regressão de regime e da prisão cautelar, visando a demonstrar
a) Os princípios gerais de todos os ramos de Direito
o caráter de pena do primeiro, propicia fazer emergir a
passam a ser os que constem da Constituição ou
antecipação de sanção que ele proporciona. Enfim, ainda que
os que dela se infiram direta ou indiretamente
se evidenciem, desde logo, a ilegitimidade e a incompatibilidade
[...];
dessa regressão de regime à luz do princípio da presunção de
b) As normas legais e regulamentares vigentes à
inocência, convida-se o leitor a conhecer também a indicação
data da entrada em vigor da nova Constituição
das conseqüências que podem ser produzidas por ela, as quais
têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas
reforçam cabalmente sua inviabilidade.
subsistem se conformes com as suas normas e os
seus princípios;
2. Processo interpretativo: supremacia formal e material, filtragem constitucional e recepção de normas infraconstitucionais
c) As normas anteriores contrárias à Constituição
não podem subsistir [...].3
pela nova Constituição
São princípios totalmente confluentes os da supremacia – formal e material – da Constituição e da continuidade da
ordem jurídica. Como, pelo primeiro, toda e qualquer norma
infraconstitucional deve guardar compatibilidade com o texto
constitucional por ser este o fundamento de validade daquelas,
ele “[...] condena à invalidade e à ineficácia toda e qualquer
norma incompatível com a Carta Constitucional”1. Em estrita
ligação, o segundo princípio diz respeito à preservação da vigência e da eficácia das normas anteriores à nova Constituição
que com ela não forem incompatíveis.
Ora, é consabido que o surgimento de uma nova
Como já se disse alhures, trata-se de um processo de
filtragem constitucional, haja vista que,
atendendo ao postulado da preeminência normativa
da Constituição, sempre que uma nova Constituição
entrar em vigor, necessária se faz uma releitura de
toda a ordem jurídica infraconstitucional anterior,
isto para aferir a adequação das normas inferiores
anteriores a valores, princípios e regras ao complexo
normativo constitucional atualmente vigente.4
Infere-se, porquanto, que é indispensável a correlação
Constituição traz a lume um novo ordenamento jurídico.
lógica e axiológica (perspectiva formal e material) entre as
Todavia não há viabilidade prática nem conveniência econômica
normas trazidas no bojo do texto constitucional e as demais
em se criar novamente todas as normas de diferentes searas
normas pertencentes ao ordenamento jurídico, quando do
do Direito para compor esse novo ordenamento jurídico que
processo hermenêutico. E se neste instalar-se um conflito entre
se inicia. Assim, tem-se que as normas infraconstitucionais
qualquer espécie normativa da legislação infraconstitucional
anteriores à novel Constituição sobrevivem a esta, caso
anterior e a nova Constituição, há que se considerarem as únicas
guardem compatibilidade com ela. Vale dizer que, não havendo
saídas apontadas pelo estado da arte da temática no Brasil:
discrepância entre os dispositivos da nova Carta Magna e as
a) revogação automática, uma vez que o Supremo
normas ordinárias anteriores a ela, estas serão recepcionadas
Tribunal Federal, ao não admitir a chamada
por aquela automaticamente. E a recepção, segundo ensinou
“inconstitucionalidade superveniente” determina,
Norberto Bobbio2, não é pura e simples permanência do velho
em tais casos, a aplicação da conhecida doutrina
no novo, no sentido de que as normas comuns ao velho e ao
de Kelsen: “[...] as normas infraconstitucionais
novo ordenamento passam a pertencer todas ao novo, válidas
anteriores à Constituição, com esta incompatíveis,
BARROSO, Luís R. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. p. 68.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. p. 177 (grifo do autor).
3
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo II. 5. ed, p. 308-309.
4
BESTER, Gisela Maria. Direito constitucional: fundamentos teóricos. p. 176.
1
2
35
Artigo 04
não são por ela recebidas. Noutras palavras, ocorre
Ainda, para além de outros ditos modernos métodos
derrogação, pela Constituição nova, de normas
de interpretação, como os apontados por Márcia Porto de
infraconstitucionais com esta incompatíveis. [...]5;
Carvalho,8 há um postulado primordial a ser observado na
b) a suspensão (por resolução senatorial, cf. art. 52,
interpretação das normas ordinárias: o da interpretação
X, CF/88) da execução, no todo ou em parte, com
conforme a Constituição, com base no qual o aplicador da
efeitos erga omnes, de lei declarada inconstitucio-
norma infraconstitucional, “dentre mais de uma interpretação
nal por decisão definitiva do Supremo Tribunal
possível, deverá buscar aquela que a compatibilize com a
Federal;
Constituição, ainda que não seja a que mais obviamente
c) a revogação expressa da norma incompatível
decorra do seu texto”9.
com a Constituição, o que no entanto somente
se pode operar entre normas de igual hierarquia,
Esse postulado justifica-se pela noção de supremacia
que a Carta Magna detém. Por isso, afirma-se que
ou de idêntica densidade normativa, e, portanto,
somente pelo mesmo poder que as criou, ou seja,
[...] o princípio guarda suas conexões com a unidade
pelo Poder Legislativo.
do ordenamento jurídico e, dentro desta, com a
Contudo, independentemente do instrumento e do
supremacia da Constituição. Disso resulta que as leis
respectivo procedimento que se escolham para combater a
editadas na vigência da Constituição, assim como as
norma infraconstitucional anterior que antagoniza o texto
que procedam de momento anterior, devem curvar-se
constitucional em vigor, certo é que, em termos práticos,
aos comandos da Lei Fundamental e ser interpretadas
a conseqüência deverá ser a mesma: a inaplicabilidade do
em conformidade com ela.10
dispositivo legal desconforme à Constituição. E certo é
também que, até que sobrevenha a suspensão com eficácia
perante todos da norma inconstitucional pelo Senado Federal,
ou mesmo a revogação (derrogação ou ab-rogação) da norma
maculada pelo vício da inconstitucionalidade material, todo o
hermeneuta deve, em respeito ao princípio da supremacia da
No entendimento de Lenio Streck, “[...] a interpretação
conforme a Constituição constitui-se em mecanismo de
fundamental importância para a constitucionalização dos
textos normativos infraconstitucionais”11. O autor conclui
ainda:
Constituição, posicionar-se de modo a sempre considerar tal
Alçado à categoria de princípio, a interpretação
norma como sendo tacitamente revogada.
conforme a Constituição é mais do que princípio,
É também consabido que a hermenêutica das normas
é um princípio imanente da constituição, até porque
infraconstitucionais à luz dos preceitos constitucionais
não há nada mais imanente a uma Constituição do
impõe que se utilizem os métodos clássicos de interpretação
que a obrigação de que todos os textos normativos do
das normas jurídicas elencados pela doutrina a saber: o
sistema sejam interpretados de acordo com ela. Desse
gramatical, o histórico, o teleológico e o sistemático. Porém
modo, em sendo um princípio (imanente), os juízes e
a insuficiência dos dois primeiros modelos, aliada à idéia
tribunais não podem (so)negar a sua aplicação, sob
de que, “no centro do sistema, irradiando-se por todo o
pena de violação da própria Constituição.12
ordenamento, se encontra a Constituição, principal elemento
de sua unidade, porque a ela se reconduzem todas as normas
Tal excerto realça a importante função desempenha-
no âmbito do Estado”6, denota a necessidade de o intérprete
da pela Constituição como regente do processo interpretativo
se reportar à Constituição para o resultado do processo
das normas jurídicas, merecendo destaque neste, igualmente,
interpretativo obter êxito, sendo, em virtude disso, que se
os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Como
pode dizer: “o método sistemático disputa com o teleológico
observa Luís Roberto Barroso, a razoabilidade deve ser verifi-
a primazia no processo interpretativo”7.
cada primeiramente na própria lei que está sendo interpretada,
Cf.: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 396386. 2a Turma. Rel. Min. Carlos Velloso. Brasília, DF, 29 jun. 2004. Publicado no Diário de
Justiça em 13 ago. 2004, p. 285.
6
BARROSO, Luís R. Op. cit. p. 136.
7
Idem, ibidem.
8
CARVALHO, Márcia H. P. de. Hermenêutica constitucional: métodos e princípios específicos de interpretação. p. 50-51.
9
BARROSO, Luís R. Op. cit. p. 372.
10
Idem, ibidem, p. 192.
11
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. p. 243.
12
STRECK, Lenio. Op. cit. p. 243-244 (grifo do autor).
5
3
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
a fim de se constatar “[...] a existência de uma relação racional
13
e proporcional entre seus motivos, meios e fins” . Caso exista
o direito infraconstitucional, significando a interpretação e
leitura de seus institutos à luz da Constituição”17 .
uma “razoabilidade interna”, é preciso aferir sua “razoabilida-
Nessa perspectiva é que Lenio Streck, discorrendo
de externa”, “[...] isto é: sua adequação aos meios e fins admiti-
sobre a crise da justiça, afirma que um dos sintomas dessa crise
dos e preconizados pelo texto constitucional. Se a lei contravier
se revela justamente pela “falta de uma filtragem hermenêutico-
valores expressos ou implícitos no texto constitucional, não
constitucional dos textos normativos infraconstitucionais”,
será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que
eis que “a dogmática jurídica não convive pacificamente com
14
o seja internamente” . Já o princípio da proporcionalidade se
princípios constitucionais como os da proporcionalidade,
caracteriza pela conjugação de três subprincípios: adequação,
razoabilidade, subsidiariedade, etc. [...]”18.
pelo que se deve utilizar o meio ou instrumento mais perti-
Assim, partindo-se da premissa de que o ordena-
nente à realização do objetivo almejado; necessidade, que diz
mento jurídico pátrio é orientado pela imperiosa supremacia
respeito à escolha do meio que não acarrete tanto gravame ou
da Constituição, deve-se rechaçar todo e qualquer processo
prejuízo aos cidadãos; e, proporcionalidade em sentido estrito,
simplório de interpretação que se atenha apenas à letra da lei
entendida esta como “[...] a ponderação entre o ônus imposto
individualmente apreendida, não levando em consideração o
e o benefício trazido, para constatar se é justificável a inter-
contexto sistemático de superioridade hierárquica constitucio-
15
ferência na esfera dos direitos dos cidadãos” . Porquanto o
nal em que todas as normas estão inseridas no ordenamento.
comando da proporcionalidade implica moderação do próprio
Trata-se, em última análise, de que se torne forçosa a necessi-
exercício da jurisdição, vindo a pôr em cheque a obrigatorie-
dade de os vulgos “operadores do direito” deixarem de lado
dade das disposições legais em casos concretos, ainda quan-
os apegos conservadores e, principalmente, fáceis e cômodos à
do sejam estas formalmente inobjetáveis e se justifiquem sob
mera leitura gramatical das normas, para dar espaço ao papel
outras circunstâncias fáticas, mas que, concretamente, revelem
primordial e transformador da Constituição na condução de
inadequação à consecução de seus fins, desproporção de meios
todo o processo interpretativo, único caminho capaz de levar a
ou, ainda, aptidão a produzir danos exagerados em pondera-
uma interpretação mais adequada da Constituição.
16
ção com os objetivos de proteção .
Aqui uma vez mais se faz presente a Carta
2.1 Análise do art. 118, inciso I, 1a parte, da Lei de Execução
Magna, como respaldo do processo interpretativo que tem
Penal à luz da Constituição de 1988: sentença penal condenatória
como parâmetros os mandamentos da razoabilidade e da
e prisões cautelares
proporcionalidade. No primeiro, sua necessidade transparece
Passa-se a usar a premissa fixada imediatamente
no momento de verificação da denominada “razoabilidade
anterior para proceder à análise de um dos mais polêmicos
externa”, quando se devem coadunar os meios e fins legais
preceitos de uma das mais importantes leis infraconstitucionais
com os valores constitucionais. No segundo, a Constituição
do Brasil, à luz do texto constitucional em vigor.
torna-se imprescindível no momento de escolha do meio ou
Abre-se a exposição deste item servindo-se de autores
instrumento que não infrinja garantias dos cidadãos de modo
cuja lúcida análise é capaz de fornecer o necessário liame lógico
a lhes causar prejuízos, posto que o principal rol dos direitos
na seqüência deste artigo. Trata-se de Sérgio Salomão Shecaira
dos cidadãos consta no texto constitucional. Daí a imperiosa
e Alceu Corrêa Junior, que, em colaboração, fizeram ver que
função desses princípios constitucionais intrínsecos no processo
“nem sempre uma constituição precede cronologicamente à lei
interpretativo.
penal”, apontando que, assim como o Código Penal, de 1940,
Neste ponto, reafirma-se a necessidade da filtragem
também as Leis consubstanciadas em 1984 (no 7.209 e 7.210,
constitucional, eis que, de acordo com Luís Roberto Barroso,
que impuseram um novo sistema de penas e de sua execução)
a ascensão política e científica do direito constitucional
precisariam de uma necessária relação e, em grande monta,
brasileiro “[...] conduziu-o ao centro do sistema jurídico, onde
revisão diante da Constituição Federal de 1988, isso porque
desempenha uma função de filtragem constitucional de todo
esta, “[...] ao inaugurar uma nova era no direito pátrio, fez com
BARROSO, Luís R. Op. cit. p. 226.
Idem, ibidem, p. 226.
15
Idem, ibidem, p. 229.
16
SCHROEDER, Simone. Regressão de regime: uma releitura frente aos princípios constitucionais. Abordagem crítica. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Crítica à
execução penal: doutrina, jurisprudência e projetos legislativos. p. 605.
17
BARROSO, Luís R. Op. cit. p. 343 (grifo do autor).
18
Em seguida o autor menciona diversas decisões equivocadas, referentes à seara criminal, em que os mais variados absurdos jurídicos foram cometidos em nome da mera
literalidade da lei. Cf. STRECK, Lenio L. Op. cit. p. 280-281, em nota de rodapé n.º 511.
13
14
37
Artigo 04
que a própria ordem jurídica exigisse uma discussão sobre o
(pressupostos cautelares insculpidos no art. 312 do CPP21 , que
que se deve punir, a quem se deve punir e como aplicar esta
são autorizadores da prisão preventiva e servíveis como baliza
punição”19.
para as demais prisões de natureza cautelar) não são abalados,
Pois bem. A Lei de Execução Penal (LEP) foi criada
mesmo que o executado esteja cumprindo a reprimenda em
em 1984, sob a égide da Constituição de 1969. Em 1988 foi
regime aberto, posto que sob o crivo desse regime também são
promulgada a Carta Magna atualmente em vigor, tornando
impostas restrições, tais como a impossibilidade de se viajar
necessária uma “filtragem constitucional” com o escopo de se
sem prévia autorização judicial, o compromisso de comparecer
aferir se a legislação ordinária anterior guarda compatibilidade
em juízo periodicamente para prestar satisfações acerca das
com as disposições constitucionais em vigência. Nessa
suas atividades, dentre outras consignadas na LEP em seu
perspectiva, verifica-se então que, muito embora a LEP fosse
artigo 115. Assim, fica evidenciado que a hipótese de regressão
integralmente válida perante a Constituição de 1969, alguns
de regime contida no art. 118, inciso I, 1a parte, da LEP, não
de seus dispositivos podem não o ser à luz da Constituição de
se reveste de cautelaridade, mas sim de eminente penalidade
1988. Veja-se em especial, seu art. 118, inciso I, 1a parte, que
antecipada.
preconiza: “A execução da pena privativa de liberdade ficará
sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer
Esse entendimento é corroborado pelo magistrado
Ricardo da Costa Tjader:
dos regimes mais rigorosos, quando o condenado: I – praticar
fato definido como crime doloso [...]”20 .
Poderiam sustentar alguns que a regressão do regime
Depreende-se desse dispositivo que a mera prática do
de pena teria um caráter cautelar, assemelhado ao da
crime doloso já enseja a regressão do apenado para um regime
prisão preventiva, [...]. Entretanto o caráter cautelar
de cumprimento de pena mais gravoso. Com efeito, a norma
deve ser imediatamente excluído, pois medidas desta
não exige sentença condenatória com trânsito em julgado, a
natureza não têm prazo mínimo para a revogação
fim de se apurarem de maneira definitiva a materialidade do
da medida, que deve ser mantida apenas enquanto
delito, bem como a culpabilidade do agente, para que, ao final,
for absolutamente necessária como cautela social.
se opere a regressão do seu regime. Todavia a Constituição da
Enquanto isso, em tema de regressão de regime, existe
República de 1988, ao contrário das constituições anteriores,
prazo mínimo para que seja ‘desfeita’ a regressão,
que silenciavam a respeito da presunção de inocência, dispõe
o qual é de 1/6 do tempo de pena faltante. Só este
em seu artigo 5 (LVII) que “ninguém será considerado culpado
elemento já mostra que a regressão tem caráter de
até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
pena [...], e não de cautela [...].22
o
Assim, verifica-se que a Lei de Execução Penal, ao
determinar a regressão de regime ao executado, pela prática de
conduta criminosa, dispende a este um tratamento de como se
já culpado fosse, haja vista que não exige sentença condenatória
transitada em julgado.
Tal opinião bem ilustra que a regressão de regime pela
prática de crime doloso não possui os mesmos fundamentos
da prisão cautelar, a qual foi recepcionada pela Constituição
da República de 1988. Desse modo, é descabida a alegação de
Porém não se trata somente da não-exigência de
que a regressão de regime ensejada pela conduta criminosa
sentença condenatória transitada em julgado, visto que as
da qual não há decisão condenatória definitiva tenha sido
prisões cautelares previstas no Código de Processo Penal
recepcionada pela atual Constituição pátria, e que a negação
ocorrem sem que haja sentença condenatória com trânsito
disso seria o equivalente à argüição da não-recepção da prisão
em julgado e, de certo modo, foram recepcionadas pela
cautelar pela mesma Lei Fundamental em vigor. É que se pode
Carta Magna de 1988. Ocorre que a regressão de regime
definir a regressão de regime como sendo a mudança de um
não se equipara à prisão cautelar, na medida em que possui
regime de cumprimento de pena menos rigoroso para outro
um caráter de pena. Tal caráter é revelado pelo fato de que,
tipo de regime mais severo. Na prática equivale à alteração
como o apenado já se encontra cumprindo pena, a garantia
do regime aberto para o semi-aberto ou deste para o regime
da ordem pública, da ordem econômica, a conveniência da
fechado. Já a prisão cautelar é sinônimo de prisão sem pena.
instrução criminal e a segurança da aplicação da lei penal
Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho, “[...] nada
SHECAIRA Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Pena e constituição: aspectos relevantes para sua aplicação e execução. p. 15-16 (grifou-se).
BRASIL. Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984.
21
BRASIL. Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 out. 1941.
22
TJADER, Ricardo Luiz da Costa. As garantias individuais e a regressão do regime de pena. Boletim Informativo do Bonijuris, Curitiba, no 159, a. v, 30 maio 1993,
p. 1 738.
19
20
38
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
mais é do que uma execução cautelar de natureza pessoal [...]
na matéria referente à hipótese de regressão de regime aqui
e que se justifica como medida imprescindível para assegurar
tratada, uma vez que os motivos anteriormente citados são
o império da lei penal”23. Conforme esse doutrinador, a prisão
comumente utilizados para justificar a regressão de regime
cautelar consiste na prisão em flagrante, prisão preventiva,
antes da prolação de uma decisão irrecorrível. Com efeito,
prisão temporária, prisão decorrente de decisão de pronúncia
vislumbra-se que o caráter desta medida é essencialmente
ou de sentença condenatória recorrível24.
sancionador, posto que emerge o claro condão de se punir
Assim como qualquer outra medida cautelar, a prisão
o executado pela incursão em eventual prática criminosa.
dessa natureza tem como pressupostos o fumus boni iuris
Logo, há que ser refutada a pretensão de se fazer com que tal
(indício de que o sujeito passivo da referida prisão é mesmo o
regressão tenha natureza cautelar.
autor do delito) e o periculum in mora (necessidade da medida).
Além de tais pressupostos, cada modalidade de prisão
cautelar possui outros requisitos que devem estar presentes
para decretação da constrição. Desse modo, quando uma
dessas exigências não é preenchida, isto é, quando qualquer
um dos pressupostos estiver ausente, não se autoriza a prisão
cautelar; ou, caso esta já tenha ocorrido, porque ao tempo
de sua decretação os pressupostos existiam, a prisão deve ser
revogada imediatamente. Isso equivale a dizer que a duração
da providência acautelatória é regulada exclusivamente pela
existência dos pressupostos autorizadores da medida.
A regressão de regime, por sua vez, possui prazo
mínimo para ser desfeita, fato que, conforme Ricardo Luiz
da Costa Tjader, lhe denota um caráter de pena e não de
medida acautelatória25. Em razão disso, não há que se falar
em qualquer similaridade entre a prisão cautelar e a regressão
de regime decorrente da prática de crime doloso, que se opera
antes de uma decisão irrecorrível.
Ademais, em se tratando de “nova” infração
criminosa, seria totalmente descabido o magistrado da execução
penal regredir de regime o apenado, caso o juiz do processo
penal em trâmite não decrete qualquer medida cautelar, em
especial a prisão preventiva, por não estarem preenchidos os
pressupostos autorizadores da constrição. Outrossim, mesmo
que o juiz da ação penal superveniente entenda cabível a
providência acautelatória, não deve o magistrado que cuida da
execução da pena regredir o regime, tendo em vista que, se um
dos pressupostos cautelares deixar de existir e, portanto, ter de
ser revogada a medida, o trâmite para se desfazer a regressão
é muito mais complicado, dado o prazo mínimo que deve ser
atingido para tanto, além de acarretar prejuízos irreparáveis
ao réu e onerosidade ao Estado. Tais constatações indicam a
desnecessidade da regressão, não só quando o juiz da ação
penal em trâmite não decreta nenhuma medida cautelar,
mas também quando ele assim o faça. Nessa senda, então, é
Assim, a regressão de regime realizada antes de
ausente pelo menos o requisito do periculum in mora, pelo que
sobrevir uma decisão definitiva da nova ação penal, quando
se evidencia mais uma vez que tal regressão não possui caráter
tem como fundamento os argumentos da defesa social ou
cautelar.
da Prevenção, revela, em verdade, o travestido desiderato
Mesmo nos casos em que o apenado é preso em
da punição ao indivíduo, pelo que se transforma em uma
flagrante, igualmente se mostra impertinente a regressão
antecipação da pena. Por isso considera-se útil o alerta de
antes do proferimento de decisão irrecorrível, em primeiro
Adriano Almeida Fonseca:
lugar porque, conforme for a natureza do crime praticado,
Ao se decretar uma prisão preventiva sob os argumentos retóricos da ‘defesa social’, ‘exemplaridade’
ou ‘prevenção’, estar-se-à a inverter as finalidades da
prisão cautelar com a prisão-sanção, numa verdadeira
antecipação da pena, sem a observância da presunção
de inocência e do devido processo legal, do qual são
corolários os princípios do contraditório e da ampla
defesa26 .
Em que pese o autor se ter dirigido ao tema da
prisão preventiva, suas considerações têm perfeito cabimento
a posterior unificação de penas pode resultar num regime
de cumprimento no qual o executado já se encontra, o que
implicaria em prejuízo a este; em segundo lugar, porque, se a
natureza do crime demonstrar que de fato não seja possível ao
apenado permanecer sob o regime no qual se encontra, alguns
aspectos que podem culminar com a sua absolvição (estado
de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever
legal ou exercício regular de direito) muitas vezes só são
desvendados com o deslinde da ação penal, e não no momento
do flagrante em si, em que pese o contido no art. 310, caput,
do CPP.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v. 3, p. 392.
Idem, ibidem, p. 392.
25
TJADER, Ricardo L. da C. Op. cit. p. 1 738.
26
FONSECA, Adriano Almeida. O princípio da presunção de inocência e sua repercussão infraconstitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, no 36, nov. 1999. Disponível
em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=162> Acesso em: 24 abr. 2007.
23
24
39
Artigo 04
Mediante essas considerações, evidencia-se que a
regressão de regime prevista no artigo 118, inciso I, 1a parte da
LEP definitivamente não se assemelha com as prisões cautelares
elencadas no Código de Processo Penal, visto que não detém a
natureza jurídica de medida cautelar, nem tampouco se mostra
cabível, na medida em que pode gerar prejuízos ao executado,
bem como dispêndios ao Poder Estatal.
Resta, pois, demonstrado que, à luz da Constituição
atual, o art. 118, inciso I, 1a parte da LEP não foi recepcionado.
Portanto tal dispositivo legal não pode ser aplicado sem a
existência de uma sentença condenatória transitada em julgado,
a confirmar que a autoria do delito pertença ao executado. Na
senda do que foi aqui exposto sobre o processo de recepção
de normas ordinárias pela Constituição, não se deve promover
a regressão de regime pela prática de crime doloso antes de
sobrevir alguma decisão definitiva acerca deste, a pretexto de
providência cautelar.
3. Princípio da presunção de inocência – acepções e relevância no
ordenamento jurídico brasileiro
Insculpido no art. 5o, inciso LVII, da Constituição
da República brasileira, este princípio tem como enunciado:
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória”. Porquanto tem ele como
principais corolários o brocardo in dubio pro reu (na dúvida,
deve-se decidir a favor do réu), que preconiza, em caso de dúvida,
mesmo que mínima, acerca da autoria ou da materialidade do
crime, a absolvição do acusado, bem como o brocardo nulla
poena sine culpa (não há pena sem culpa), que pressupõe a
aplicação de pena ao acusado somente após a certeza de sua
culpa na autoria do crime. A aplicação desses brocardos remete
diretamente o operador do direito à condição de inocência
inerente ao acusado. Logo, faz-se indispensável sua observância
quando se tem o dever, e não simplesmente o mero objetivo, de
assegurar a todos as garantias constitucionalmente previstas,
tendo em vista o estado democrático de direito em que se está
inserido. É que neste, ao contrário da época pré-iluminista
– em que o processo penal era inquisitório e desconhecia as
garantias de quem era acusado e a presunção era de culpa do
Para Antonio Magalhães Gomes Filho, o princípio
aqui estudado possui quatro diferentes acepções, explicando
que a primeira delas, parafraseando Mario Pisani, é “[...]
de uma presunção política, na medida em que exprime uma
orientação de fundo do legislador, qual seja a de garantia da
posição de liberdade do acusado diante do interesse coletivo
à repressão penal”28. A segunda acepção apontada relacionase com o âmbito probatório, porque, tendo em vista que o
acusado goza de uma presunção iuris tantum de inocência,
o ônus da prova recai totalmente sobre a acusação. Além
disso, o princípio em comento também incide no objeto do
procedimento probatório, visto que impõe a averiguação da
imputação propriamente dita. Outra vertente do princípio
constitucional em seara probatória é em relação à faculdade
que o acusado tem de colaborar ou não com a investigação dos
fatos, posto que deva ser inibida qualquer pretensão de forçálo a cair em confissão. Por fim, se durante a instrução criminal
é obtida uma prova de culpabilidade, mas que se revele dúbia
à luz do princípio da presunção de inocência, o fato nela
apresentado deve ser tido como não-provado29.
A terceira acepção do princípio diz respeito à
inocência como condição do acusado, traduzindo uma
norma de comportamento diante deste, segundo a qual são
ilegítimos e inconstitucionais quaisquer efeitos negativos
que possam decorrer exclusivamente da imputação, ou seja,
toda antecipação de medida punitiva, ou que importe o
reconhecimento da culpabilidade, antes da sentença final30.
O princípio da presunção de inocência também
implica na exposição dos fatos pela imprensa de maneira
cautelosa, ou seja, desprovidos do caráter de definitividade,
antes da prolação da sentença final. Outrossim convém frisar
que a publicidade dos atos processuais é regra, ou seja, existem
exceções, motivadas no interesse público. Há que se observar
ademais que, às autoridades e funcionários que atuam nas
atividades processuais, cabe tratar o acusado de modo digno e
respeitoso. Em virtude disso, entende-se que o uso de algemas
deve limitar-se somente às situações necessárias31. Quanto a
isso, Antonio Magalhães Gomes Filho argumenta:
acusado, que tinha que provar sua inocência sem ao menos
Como regra de tratamento do acusado, o princípio
tomar conhecimento das acusações e das provas que pesavam
da presunção de inocência tem ainda aplicação no
contra ele – a liberdade individual passou a prevalecer em
terreno das conseqüências extra-processuais da
relação aos interesses estatais punitivos. Logo, a presunção de
imputação; é o caso das restrições ao exercício de
culpa cedeu lugar para a presunção de inocência27.
outros direitos em virtude da mera acusação, ou até
COSTA, Breno Melaragno. O princípio constitucional da presunção de inocência. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO
FILHO, Firly (Orgs.). Os princípios da constituição de 1988. p. 342-343.
28
GOMES FILHO, Antonio M. Op. cit. p. 37 (grifo do autor).
29
Idem, ibidem, p. 37-41.
30
Idem, ibidem, p. 43.
31
Idem, ibidem, p. 41-46.
27
40
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
indiciamento em inquérito policial, e também das
e excepcionalidade. [...] A prisão preventiva é hoje
referências constantes de certidões expedidas pelos
considerada medida extrema [...]35.
órgãos públicos relativamente ao andamento de
processos criminais.32
Essa incidência tão salutar do princípio da presunção
de inocência na seara criminal e, em especial, no instituto
A quarta acepção apontada refere-se ao devido
da prisão preventiva se justifica na medida em que são áreas
processo legal. Para ocorrer o reconhecimento da culpabilidade
do ordenamento jurídico que implicam algumas restrições
do acusado, não basta o mero desenrolar de um processo, mas
de direitos. Logo, o princípio da presunção de inocência é
de um processo justo, no qual haja um contraditório real, que
um dos instrumentos mais aptos a evitar eventual arbítrio
assegure ao acusado amplo direito de defesa, devendo este ser
estatal no tratamento jurídico do acusado. Ademais, ao inibir
entendido como a participação em todos os atos processuais,
tais arbitrariedades, contribui também para a afirmação do
por meio de um defensor, bem como a efetiva e plausível
próprio estado democrático de direito, visto ser uma garantia
assistência deste .
constitucionalmente prevista, que deve ser preservada.
33
De status constitucional, a presunção de inocência
Assim, não obstante a inflamação do discurso, importa
configura-se como garantia, situando-se entre os ditos princí-
consignar que, apesar de muitos inocentes serem injustamente
pios-garantia. E em que pesem os princípios constitucionais
apenados por atos que não praticaram, se ao menos um
terem repercussão por todo o ordenamento jurídico, o prin-
deles for absolvido, já terá valido a pena a observância desse
cípio da presunção de inocência incide essencialmente na sea-
princípio.
ra criminal, que abrange o direito penal, o processo penal e a
execução penal. Assim, é nesses âmbitos do ordenamento que
4. Regressão de regime dentro do sistema constitucional
o princípio de presunção de inocência alcança maior relevo,
brasileiro
devendo as normas daqueles ajustarem-se às finalidades deste.
Diante da limitação de extensão deste texto, passar-
Por isso, entende-se que tal princípio é “[...] inspirador da polí-
se-á ao largo dos princípios reitores da execução penal: o da
tica criminal”34. Daí sua destacada relevância.
legalidade36, o da secularização37 , o da individualização da
Conforme já foi destacado, a presunção de inocência
pena38 , o da humanidade da pena, o da igualdade39 , o do devido
possui diversas acepções. Ela influi no ônus probatório do
processo legal 40 e, finalmente, o da presunção de inocência, este
processo penal, relaciona-se com o tratamento despendido ao
um dos maiores nortes a seguir durante a execução da pena,
acusado, com as condições de defesa que este tem durante o
pois, uma vez que o condenado tem direito à ampla defesa
trâmite processual, dentre outras acepções já mencionadas.
e a contraditar qualquer denúncia ou decisão a seu respeito,
Mas é sobretudo na prisão preventiva que a presunção de
é incoerente presumir-se-lhe culpado e, mais, aplicar-se-lhe
inocência teve e ainda tem atuação fundamental.
medidas que remetam a tal presunção (de culpabilidade).
Para além disso, consigne-se que, como o direito da execução
O espírito dos ideais Iluministas, berço da presunção
penal é parte integrante de um sistema normativo, todas as
de inocência, afastou por completo as atitudes
suas previsões legais, bem como sua tramitação devem estar
preventivas que representaram uma verdadeira
vinculadas às garantias e aos princípios insculpidos na Lei
aplicação adiantada de pena. Evitou, assim, que sob
Fundamental, pelo que, somando-se aos princípios de matriz
o pretexto da prevenção o acusado já sofresse uma
constitucional que norteiam a execução da pena, devem estar
prévia punição. [...] A prisão preventiva passou a ser
assegurados aos executados os demais direitos fundamentais
regida pelos princípios da legalidade, subsidiariedade
e as garantias individuais inerentes a todos os cidadãos,
GOMES FILHO, Antonio M. Op. cit. p. 45-46.
GOMES FILHO, Antonio M. Op. cit. p. 46-49.
34
COSTA, Breno M. Op. cit. p. 346.
35
COSTA, Breno M. Op. cit. p. 356-357.
36
Vejam-se, no entanto, importantes e claros esclarecimentos sobre este princípio na via executória em: BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena
na execução penal. p. 131, e em GOULART, José Eduardo. Princípios informadores do direito da execução penal. p. 91-92 e 94.
37
Para saber especificidades desse princípio no âmbito da execução penal, consulte-se: GOULART, José Eduardo. Princípios informadores do direito da execução penal.
p. 91-92, e BONHO, Luciana Tramontin. Uma abordagem crítica do princípio da secularização na legislação penal atual. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n.º 841, 22 out.
2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7458> Acesso em: 09 abr. 2007.
38
Veja-se BARROS, Carmen S. de M. Op. cit. p. 132-133, e GOULART, José Eduardo. Op. cit. p. 106.
39
Consulte-se BARROS, Carmen S. de M. Op. cit. p. 132, e GOULART, José E. Op. cit. p. 107.
40
Veja-se BARROS, Carmen S. de M. Op. cit. p. 134-135.
32
33
41
Artigo 04
independentemente de o indivíduo estar cumprindo pena ou
em procedimento administrativo no estabelecimento prisional,
não, visto que o fato de este possuir ou não sentença criminal
devendo serem observadas as garantias da ampla defesa e do
condenatória em seu desfavor não lhe retira a sua condição de
contraditório, bem como a comunicação da falta grave ao
cidadão amplamente considerado.
juízo da execução41.
A partir disso, passa-se à enumeração das hipóteses
Frise-se que o § 2o do artigo 118 da LEP preconiza a
de regressão de regime previstas na lei, para posterior análise
prévia oitiva do executado nas hipóteses de regressão estatuídas
de sua compatibilidade no sistema constitucional brasileiro
no inciso I e § 1o desse artigo, sob pena de se infringirem as
atual. A LEP traz, no seu artigo 118, como causas taxativas
mesmas garantias constitucionais do contraditório e da ampla
que ensejam a regressão de regime: praticar fato definido como
defesa.
crime doloso; praticar alguma das faltas graves arroladas no
artigo 50 da aludida lei; sofrer condenação por crime anterior,
4.1 Divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a regressão
cuja pena, somada ao remanescente da pena já em execução,
pela acusação de prática de crime doloso
torne inviável o regime. Ademais, são estabelecidas ainda duas
Como já se adiantou a regressão de regime decorrente
hipóteses específicas de regressão para os condenados em regime
da prática de conduta definida como crime doloso tem gerado
aberto, as quais preconizam que se deverá operar a regressão
certa celeuma entre os doutrinadores do direito da execução
de regime, se o executado frustrar os fins da execução, ou não
penal, em razão de o art. 118, inciso I, 1a parte da LEP ter sido
pagar a multa que lhe é cumulativamente imposta, quando o
redigido de forma um tanto quanto simplista. A problemática
apenado possui condições de pagá-la.
reside na exigência ou não de uma sentença condenatória
No que tange à primeira causa ensejadora da
regressão de regime aqui citada, foco deste artigo, constata-
com trânsito em julgado, antes de ser proferida decisão
determinando a regressão de regime ao apenado.
se certo equívoco na medida em que a Lei de Execução Penal
Segundo Renato Marcão, “não é necessário que
também determina a regressão pela prática de falta grave. Ora,
o crime doloso tenha sido objeto de sentença condenatória
a prática de fato definida como crime doloso é considerada
transitada em julgado. Não ocorre, na hipótese, violação ao
falta grave, segundo os termos do artigo 52 da LEP. Diante
princípio da presunção de inocência ou estado de inocência”42.
disso, não era necessário o legislador fazer menção específica
Concorda com a essa opinião Haroldo Caetano da Silva:
à hipótese de regressão pela prática de conduta tida como
crime doloso, vez que a mesma já seja abrangida no rol das
Evidente que não demonstra adaptação ao regime
faltas graves. Outrossim faz-se oportuno salientar que a LEP,
mais brando o condenado que, beneficiado com a
ao impor a regressão de regime pela prática de ilícito doloso,
progressão ou mesmo iniciando a execução da pena em
não estabelece parâmetros quanto à oportunidade em que
regime não-severo, vem a cometer crime doloso. Não
o magistrado deva proceder com a regressão. Dito de outro
se exige, nesse caso, condenação pelo crime praticado.
modo, não é definido pela referida lei se a mera instauração
A simples prática do crime é razão suficiente para a
de inquérito policial significa que ocorreu efetivamente o
medida.43
crime doloso, ou se é necessário o recebimento da denúncia no
processo penal de conhecimento para que se opere a regressão,
ou se uma prisão em flagrante já caracteriza a ocorrência da
conduta criminosa; ou, ainda, se seria mais prudente e legítimo
Em abono a tais entendimentos, concorre Julio
Fabbrini Mirabete, para quem não é necessário o crime
doloso ter sido objeto de sentença condenatória transitada em
aguardar uma sentença condenatória transitada em julgado,
julgado, pois entende que, “quando a lei exige a condenação
que elucide a autoria bem como a existência do crime. Diante
ou o trânsito em julgado da sentença, é ela expressa a respeito
de tais considerações, verifica-se certa dificuldade prática para
dessa circunstância, como aliás o faz no inc. II do art. 118”44.
se operar a regressão de regime decorrente de ilícito doloso. Até
Para Sérgio Hamilton, a regressão de regime realizada
porque, para o magistrado decidir pela regressão em razão da
antes de sobrevir alguma decisão definitiva da nova ação
incorrência do executado em falta grave, é necessário apuração
penal é necessária, pois “a tutela antecipada teve por fim, no
SILVA, Haroldo Caetano da. Manual da execução penal. p. 96.
MARCÂO, Renato. Curso de Execução Penal. p. 145 (grifo do autor).
43
SILVA, Haroldo C. da. Op. cit. p. 171 (grifo do autor).
44
MIRABETE, Julio F. Execução penal: comentários à Lei no 7.210, de 11 jul. 1984. p. 486.
41
42
42
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
caso, resguardar os elevados interesses do Estado diante do
No que tange ao art. 52 da LEP, há que se observar
condenado que não faz por merecer as benesses do regime
que, para que não seja evidentemente inconstitucional
prisional menos severo”45.
por ferir o princípio da ´presunção de inocência´, a
Note-se que os autores citados representam peque-
única interpretação que lhe pode ser dada é que a
na amostra dos doutrinadores que possuem o mesmo posi-
prática de fato previsto como crime constitui falta
cionamento abordado. Nessa mesma esteira de pensamento
grave desde que haja sentença penal condenatória
vêm sendo emanadas decisões que impõem a regressão antes
transitada em julgado.47
de haver condenação do executado pelo crime superveniente.
Tome-se como exemplo a RT 595/343, a RJTCRIM 49/218,
a RT 651/334, a RT 584/453, a JTJ 222/357, a RT 636/291, a
RJDTACRIM 26/33, a RT 568/271, a RT 762/632, dentre outras. Inclusive o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou
nesse sentido:
Maurício Kuehne, reportando-se a uma eventual
absolvição advinda do novo crime, relata:
Quando dirigimos a Colônia Penal Agrícola Manoel
Ribas, deparamo-nos com situações em que ficou
constatado que as imputações eram graciosas,
RECURSO ESPECIAL. PENAL. LEI No 7.210/84.
matéria entretanto que demandou exame de todo
CONDENADO QUE PRATICA CRIME DOLOSO
um contingente probatório, com sérios prejuízos
OU FALTA GRAVE. REGRESSÃO DE REGIME.
aos réus. Esse aspecto se encontra bem salientado
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE
no trabalho referido, desrecomendando, assim, a
INOCÊNCIA. INOCORRÊNCIA. PROVIMENTO.
regressão imediata. [...] A regressão, sem dúvida, só
1. Ao que se extrai da letra mesma da lei, ao
com a condenação.48
condenado que incide nas disposições dos incisos
I e II do artigo 118 da Lei no 7.210/84, é imposta a
regressão ao regime de cumprimento de pena mais
gravoso, não havendo falar em violação do princípio da
presunção de inocência, uma vez que a permanência do
apenado em regime menos rigoroso implica, à evidência,
o cumprimento das condições impostas, dentre as quais,
as restrições de não praticar fato definido como crime
doloso ou mesmo falta grave. 2. Não há exigir, em
casos tais, trânsito em julgado da condenação pela nova
infração, na exata razão de que reduziria a um nada a
efetividade do processo de execução, exigindo-se, por
isso mesmo, um quanto de certeza suficiente quanto ao
crime e sua autoria, bem certificada pelo recebimento
da denúncia. 3. A levar-se ao pé da letra o decisum
impugnado, as faltas disciplinares culminariam por
Nessa linha, Simone Schroeder aduz:
O legislador, no art. 118 da Lei no 7.210/84, referendou
que o condenado ter ‘praticado’ fato definido como
crime doloso ensejaria a regressão para regime
prisional pior, sustenta-se a infringência dos princípios
constitucionais, pois implicaria num prejulgamento
do réu, ao equiparar a sentença condenatória com
trânsito em julgado, com os mesmos efeitos de uma
prática delituosa, sem a devida instrução processual.
Perquire-se a violação dos princípios do devido
processo legal, ampla defesa e o contraditório,
inclusive o princípio da presunção de inocência [...]. 49
Vale mencionar também o pensamento de Ricardo
Luiz da Costa Tjader:
reclamar, para que tivessem função na execução,
reexame obrigatório judicial e aperfeiçoamento na
A prática de nova infração criminosa somente gera
coisa julgada. [...].
regressão de regime [...] após a existência da respectiva
46
sentença condenatória transitada em julgado, por respeito
Entretanto alguns doutrinadores têm manifestado
entendimento diverso, como Carmen Silvia de Moraes Barros:
aos princípios constitucionais do devido processo legal e
da igualdade de todos perante a lei [...].50
HAMILTON, Sérgio Demoro apud KUEHNE, Maurício. Lei de execução penal anotada. p. 378.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 564971. 6a Turma. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. Brasília, DF, 7 out. 2004. Publicado no Diário de Justiça
em 17 dez. 2004, p. 606 (grifou-se).
47
BARROS, Carmen S. de M. Op. cit. p. 162.
48
KUEHNE, Maurício. Op. cit. p. 377-378.
49
SCHROEDER, Simone. Op. cit. p. 614-615.
50
TJADER, Ricardo L. da C. Op. cit. p. 1738.
45
46
43
Artigo 04
Ademais convém noticiar que tal entendimento já tem
O direito penal que parte de uma concepção
sido pacificado na 4 Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
antropológica que considera o homem incapaz de
do Rio Grande do Sul. Assim argumenta o Desembargador
autodeterminação [...] só pode ser um direito penal de
Amilton Bueno de Carvalho, em acórdão do qual é relator:
autor: o ato é sintoma de uma personalidade perigosa
a
[...] Não obstante, [...] nem todo o direito penal de
O art. 118 e seu I, da Lei das Execuções Penais, define
autor é direito penal de periculosidade [...] Há uma
a regressão de regime quando o condenado ‘praticar
concepção do direito penal de autor que é também direito
fato definido como crime doloso...’ (sic). Assim, tendo-
penal de culpabilidade e que [...] parte da premissa de
se presente o princípio da presunção de inocência
que a personalidade que se inclina ao delito é gerada
que, por ser fundamento do sistema, é norte de toda
na repetição de condutas [...] e, portanto, postula que
a interpretação, a leitura possível daquele artigo da
a reprovação que se faz ao autor não o é em virtude
Lei das Execuções Penais (sic) é a que possibilita a
do ato, mas em função da personalidade que este ato
regressão quando emergir sentença condenatória
revela [...].52
irrecorrível: momento em que a presunção de
inocência é destruída. Ou seja, a ‘prática de fato
A respeito do processo inquisitivo, Salo de Carvalho
definida como crime’ só pode gerar efeitos ao apenado
assevera que esse sistema “[...] exclui o contraditório, limita a
quando efetivamente este fato ficar definido como
ampla defesa e obstaculiza, quando não inviabiliza, a presunção
crime: sentença condenatória trânsita em julgado.
de inocência, cuja comissividade é o postulado básico do
(4 Câmara Criminal do TJRS; agravo em execução
garantismo processual”53.
a
n 295047534-Alegrete; 11/10/95; rel. Amilton Bueno
o
de Carvalho).
51
Depreende-se, pois, que os fundamentos nos quais se
baseiam os doutrinadores favoráveis à regressão nos termos
do art. 118, I, 1a parte, da LEP, não se coadunam com os
Verifica-se assim uma cisão na doutrina e na
princípios e as garantias insculpidos na Carta Magna pátria,
jurisprudência, em que uns argumentam favoravelmente
principalmente com o princípio da presunção de inocência.
à regressão nesses termos explicitados e, outros, à sua
Assim, tem como ponto limitação a mera interpretação literal
impossibilidade. Contudo atente-se ao fato de que aqueles
do comando legal, sem levar em consideração o sistema
que consideram legítima a regressão de regime sem a
normativo e, principalmente, sem invocar a norma que está no
existência de sentença irrecorrível se valem tão-somente de
ápice do ordenamento jurídico e que jamais deve deixar de ser
uma interpretação literal do dispositivo legal em estudo. Tal
observada: a Constituição. É bem verdade que o Estado tem
interpretação pode, sorrateiramente, conduzir os operadores
o dever de coibir a violência. Porém não tem e nem pode ter o
do direito a um retrocesso histórico, que os remete ao processo
dever de punir ilimitadamente. Segundo Salo de Carvalho,
inquisitivo, em que se operava um direito penal de autor.
Ora, a justificativa para ocorrer a regressão, que aduz que o
A construção do processo civilizatório via pacto
executado, por ter eventualmente praticado novo delito não
social, desde a versão lockeana, [...] pressupõe que
é merecedor de permanecer em regime menos severo, visto
os indivíduos, cansados de viver na incerteza do
que demonstraria certa periculosidade, revela um preconceito
gozo dos bens [...], tenham criado um ente abstrato
enrustido, na medida em que apresenta claramente o condão
garantidor (Estado). O pacto se constitui, pois, em
de sancionar o apenado pelo que ele é (mala in se) e não pela
instrumento de deveres e de direitos recíprocos entre
conduta praticada (mala prohibita). Até porque a autoria e
Estado e indivíduo. O soberano recebe o poder de
materialidade da conduta criminosa só serão absolutas após
regulamentar a sociedade com lei, adquirindo, em
o trânsito em julgado da decisão condenatória. Eugenio
contrapartida, o dever de garantir a ‘segurança’ dos
Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli esclarecem que há
bens. Ao cidadão é imposto o dever de obediência às
o direito penal de autor pela sua periculosidade e pela sua
leis, correspondendo o direito de exigir as garantias
culpabilidade. Veja-se:
pactuadas .54
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo em execução no 295047534. 4a Câmara Criminal. Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho. Porto Alegre, RS,
11 out. 1995.
52
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. p. 118-119 (grifou-se).
53
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. p. 18 (grifou-se).
54
CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. p. 10-11.
51
44
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
Desta feita, não é dado ao Estado, simplesmente
além de uma restrição ao cerceamento de direitos e garantias
porque o indivíduo transgrediu a norma uma vez, pressupor
intrínsecos aos indivíduos. Por isso, reputa-se mais legítima
que ele a transgredirá novamente e, assim, deixar de lhe
a corrente que defende a regressão de regime ensejada pela
conferir as garantias às quais têm direito. Conforme o excerto
conduta criminosa somente após decisão condenatória com
transcrito ilustra, não só o cidadão possui direitos e deveres,
trânsito em julgado.
também o Estado os possui.
Outrossim se, vislumbra uma contradição no próprio
4.2 Conseqüências da regressão de regime pela acusação da
sistema de execução penal brasileiro, na medida em que se
prática de crime doloso sem sentença condenatória com trânsito
tratando de suspensão condicional da pena e livramento
em julgado
condicional, o ordenamento jurídico (mais precisamente o
Já se mencionou anteriormente que a regressão de
Código Penal55 , em seus arts. 81,I e 86, I) prevê sua revogação
regime decorrente da prática de crime doloso que se dê antes da
quando sobrevém condenação irrecorrível. Inclusive o referido
prolação de uma sentença irrecorrível pode acarretar prejuízos
diploma legal estabelece uma espécie de “suspensão” do curso
não só ao apenado como também ao próprio aparato estatal.
dos aludidos institutos da execução penal, no caso de sobrevir
A primeira conseqüência poderia ser a revogação da
notícia da prática de um crime superveniente (arts. 81, § 2o e 89
própria regressão de regime, em função da prolação de decisão
do CP). Ou seja, aos condenados que cumprem pena de acordo
com a suspensão condicional da pena ou com o livramento
condicional, é despendido tratamento totalmente diverso
daquele conferido aos executados que cumprem pena somente
pelo regime aberto ou semi-aberto. Eis que, aos primeiros, o
sistema de execução penal garante a sua presunção de inocência,
ao passo que aos últimos, não. Feita essa observação, é de
se evidenciar que se verifica, nesse caso, uma contrariedade
inclusive ao princípio da isonomia, visto que um mesmo fato
(eventual prática de crime doloso) gera conseqüências diversas
(para os apenados com os regimes aberto e semi-aberto, a
regressão de regime e, para os condenados ao cumprimento
da suspensão condicional da pena e livramento condicional, a
suspensão do benefício, ocorrendo ulterior revogação somente
com o trânsito em julgado da decisão condenatória) para um
mesmo grupo de pessoas (todos são condenados criminalmente,
isto é, todos fazem parte do sistema de execução penal).
Demonstra-se assim que, em alguns momentos o legislador
se preocupou em salvaguardar o princípio da presunção de
inocência e, em outros, não. Todavia, considerando o aludido
princípio status constitucional, deve ter uma aplicação universal
e integral no território brasileiro. Assim, é inadmissível alguns
terem essa garantia de presunção de inocência assegurada e
outros ficarem à margem dela.
absolutória irrecorrível. Vale dizer: com o desfecho da ação
penal superveniente, o magistrado ou o tribunal chega à
conclusão de que o réu deva ser absolvido. Desse modo, não
é relevante o motivo que culminou com a absolvição, sendo
imperativo ao juiz da execução penal desfazer a regressão de
regime imposta ao apenado. Sobre isso, Maurício Kuehne
esclarece: “[...] a absolvição quanto à prática do novo crime
não pode gerar a regressão, impondo-se, caso tenha ocorrido,
com o retorno ao estágio anterior”56.
Todavia esse processo não é simples, pois existe um
prazo mínimo para se desfazer a regressão, o qual consiste
em 1/6 do tempo de pena faltante57. Além do mais, o aparato
estatal arcaria com dispêndios primeiro para proceder à
regressão de regime e depois para desfazê-la. Como também é
notório que as Varas de Execuções Penais estejam abarrotadas
de processos de execução, e demorando meses para apreciar
pedidos de progressão de regime, saídas temporárias, entre
outros tantos requerimentos, não é difícil perceber que a
revogação de uma regressão de regime fatalmente demoraria
a ocorrer. Assim, resta inevitável que o maior prejudicado
seria o próprio apenado, na medida em que, durante o tempo
de cumprimento da pena no novo regime, deixa de usufruir
certos benefícios aos quais teria direito caso estivesse sujeito
A par das considerações expostas, infere-se que o
ao regime de cumprimento de pena menos severo. Sobre
entendimento de que a regressão pela prática de crime doloso
esse tempo de cumprimento de pena de forma mais gravosa,
só possa operar-se após sentença condenatória irrecorrível
Ricardo Tjader é incisivo ao afirmar: “[...] é tempo perdido,
apresenta uma conformidade com o texto constitucional,
desperdiçado, pois não existe na esfera penal forma justa e
principalmente no que concerne ao princípio da presunção
legal de reparar essa injustiça, especialmente porque não é
de inocência. Também se impõe uma preocupação com a
possível voltar no tempo e fazer as coisas acontecerem de
imposição de certos limites ao poder sancionatório estatal,
forma diferente”58.
BRASIL. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dezembro 1940.
KUEHNE, Maurício. Op. cit. p. 377.
57
TJADER, Ricardo L. da C. Op. cit. p. 1738.
58
TJADER, Ricardo L. da C. Op. cit. p. 1738.
55
56
45
Artigo 04
Dessa maneira, é de se perquirir inclusive acerca
No
que
concerne
à
vinculação
aos
direitos
da responsabilidade civil do Estado, principalmente quando
fundamentais, há que ressaltar a particular relevância
sobrevém decisão absolutória da ação penal superveniente,
da função exercida pelos órgãos do Poder Judiciário,
visto que tal regressão de regime viola a garantia constitucional
na medida em que não apenas se encontram, eles
à presunção de inocência do apenado e gera sentimento de
próprios, também vinculados à Constituição e aos
estigmatização nele, que se vê plenamente injustiçado pelo
direitos fundamentais, [...] de tal sorte que os tribunais
Estado, acarretando-se então sofrimento de ordem moral
dispõem [...] simultaneamente do poder e do dever de
no indivíduo. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, o
não aplicar atos contrários à Constituição, de modo
dever público de indenizar nasce quando a vítima teve um
especial os ofensivos aos direitos fundamentais,
inclusive declarando-lhes a inconstitucionalidade.62
direito lesado59. Essa lesão pode ter cunho tanto econômico
como jurídico. Vale dizer: a lesão jurídica provocada pelo
Estado também é passível de indenização, conforme destaca
o doutrinador:
O dano juridicamente reparável nem sempre pressupõe
um dano econômico. Pode ter havido única e
exclusivamente um dano moral. [...] A Constituição de
1988 expressamente prevê (no art. 5o, X) indenização
por dano material ou moral decorrente de violação da
intimidade, da vida privada, da honra ou da imagem
das pessoas, sem distinguir se o agravo provém de
pessoa de Direito Público ou de Direito Privado.60
Ou seja, havendo dano moral, o Estado também
pode ser responsabilizado. Outrossim há necessidade de o
dano sofrido ser certo, isto é, “[...] não apenas eventual [...].
Nele se englobam o que se perdeu e o que se deixou de ganhar (e se ganharia, caso não houvesse ocorrido o evento lesivo)”61. A partir dessas considerações gerais sobre o tema da
Para consolidar ainda mais a colocação feita neste
trabalho acerca da atuação do magistrado, consigna-se a
seguinte enfatização desse autor: “[...] é de destacar-se o dever
de os tribunais interpretarem e aplicarem as leis em conformidade
com os direitos fundamentais, assim como o dever de colmatação
de eventuais lacunas à luz das normas de direitos fundamentais
[...]”63.
Salo de Carvalho igualmente destaca:
O vínculo do julgador à legalidade não deve ser outro
que à legalidade constitucionalmente válida, sendo
imperante sua tarefa de superador das incompletudes,
incoerências e contradições das leis inferiores, em
respeito ao estatuto maior. A denúncia de invalidade
(constitucional) das leis permite sua exclusão do
sistema, gerando a otimização do próprio princípio
da legalidade e não, como querem alguns afoitos, sua
negação.64
responsabilidade civil do Estado, depreende-se que o direito
Se houver, entretanto, algum questionamento acerca
à indenização do executado frente ao poder público se origina
de certa legitimidade que o magistrado teria para aplicar o
da culpa do magistrado, que não interpreta o referido disposi-
aludido artigo na sua forma literal, vale dizer: para regredir
tivo legal em consonância com a Carta Magna, especialmen-
o regime sem a existência de uma decisão definitiva da ação
te no que se reporta ao princípio da presunção de inocência
penal superveniente, reitera-se uma vez mais a diretriz de que
trazido em seu bojo, visto que, conforme exposto ao longo
os operadores jurídicos têm o dever de sempre se pautar pelo
do trabalho, o hermeneuta e aplicador do direito deve ter
arcabouço constitucional. Diante da peculiar condição do Poder
como baliza para interpretação das normas a Constituição
Judiciário, que, sendo simultaneamente vinculado à Constituição
com seus princípios, até porque o magistrado tem como uma
(e aos direitos fundamentais) e às leis, possui o poder-dever de
de suas funções a incumbência de fazer o controle difuso de
não aplicar as normas inconstitucionais. Lembra Ingo Sarlet
constitucionalidade das normas que incidem em dado caso
“[...] que eventual conflito entre os princípios da legalidade e da
concreto. A esse respeito transcrevem-se os ensinamentos de
constitucionalidade (isto é, entre lei e Constituição) acaba por
Ingo Wolfgang Sarlet:
resolver-se em favor do último”65.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. p. 826.
MELLO, Celso A. B. de. Op. cit. p. 827-828 (grifo do autor).
61
Idem, ibidem, p. 828.
62
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. p. 335.
63
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 335 (grifou-se).
64
CARVALHO, Salo de. Op. cit. p. 105.
65
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 336 (grifou-se).
59
60
4
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
Assim, se o magistrado verificar no caso concreto que
de inocência [...] quando exercitados por agentes
uma norma vai de encontro com as disposições constitucionais,
ministeriais, delegados de polícia e juízes de direito,
ele deve procurar interpretá-la conforme a Constituição, se
violando dessa forma as garantias fundamentais
houver margem – e no caso da norma em comento há, posto
da cidadania e o código deontológico; falha
que o magistrado poderá aplicá-la somente quando sobrevir
judicial agravada quando os órgãos superiores da
decisão condenatória definitiva e desse modo adequá-la ao
administração de justiça se omitem ante esta falta
princípio da presunção de inocência – ou fazer o controle
funcional.66
difuso de constitucionalidade, sob pena de se perquirir a
responsabilização estatal, caso essa violação à lei fundamental
Esse autor também enfatiza que “em nenhuma
decorrente de uma incorreta aplicação da norma produza
atividade ou setor estatal se admitem erros ou falhas, muito
danos ao indivíduo.
menos na Justiça Penal, que restringe o direito de ir e vir do
Observe-se que no caso em exame (regressão de
regime decorrente da prática de crime doloso), há flagrante
contrariedade à garantia constitucional da presunção de
inocência, e essa violação causa danos morais no indivíduo
(em especial, se posteriormente ele vier a ser absolvido), na
medida em que este é estigmatizado pela sociedade, que o
vê como alguém dotado de periculosidade, posto que já tem
pena a cumprir, bem como lhe impõe o ônus de ser privado
mais severamente da liberdade, por uma condenação criminal
que ainda nem sequer existe, tudo em nome dos interesses
dessa sociedade e da defesa social. Ademais, vislumbra-se a
possibilidade da produção de danos materiais ao apenado que
é vilipendiado na sua condição de inocente presumido, como
no caso, por exemplo, do executado submisso ao regime aberto
que esteja trabalhando e contribuindo para o sustento familiar
e sofra a regressão inoportuna para o regime semi-aberto,
ficando impossibilitado, desse modo, de continuar exercendo
sua atividade laboral.
Destaque-se ainda o que salvaguarda a Constituição
federal em seu art. 5o, inciso XXXVI: “A lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Assim,
denota-se o cabimento em se requerer em juízo indenização por
danos causados em virtude da regressão de regime operada
antes de existir uma decisão irrecorrível, especialmente quando
dessa decisão sobrevém uma absolvição.
Registrem-se
também
alguns
posicionamentos
doutrinários a respeito desse tema. Para Cândido Furtado
Maia Neto, seria uma das espécies de erros judiciários,
cidadão”67.
Há que se atentar ainda, no que se refere à atuação do
magistrado, para o que observa Augusto do Amaral Dergint:
[...] do art. 37, §6o, da Carta de 1988 [...], não se infere
apenas a aplicabilidade da teoria da responsabilidade
objetiva do Estado, fundada no risco, mas também
da teoria da responsabilidade subjetiva do Estado,
fundada na falta do serviço (que abrange o nãofuncionamento, o mau funcionamento e o retardado
funcionamento do serviço, bem como as faltas
pessoais dos agentes que o operam).68
Para o autor, quando se trata da prisão preventiva
e posteriormente advier uma absolvição, não há que se falar
de erro judiciário, mas de falta de serviço público. Ainda que
não se trate exatamente da situação aqui estudada, posto que
se está a abordar a regressão de regime inoportuna, existem
semelhanças e o embasamento é praticamente o mesmo. Por
isso, guardadas as devidas proporções, vale o pronunciamento
desse autor: “nos casos de atuação dolosa ou culposa do
magistrado [...] cumpre aplicar a teoria da falta do serviço [...]: a
absolvição do preventivamente preso demonstra ter ocorrido o
defeituoso funcionamento do serviço judiciário”69. No entanto
Dergint adverte que “não há por que tratar diferenciadamente
o erro judiciário (condenação injusta) e a prisão preventiva
injustificada quer quanto aos fundamentos, quer quanto às
conseqüências”70. Ele salienta ainda que, por meio “[...] da
prisão preventiva, o réu inocente sofre uma carga injusta e
[...] que causam sérios prejuízos sociais ao nível
desigual, devendo, pois, a coletividade responder em atenção
individual e coletivo [...]: [...] h) efetuar manifestações
ao princípio da igualdade”. Eis que a privação da liberdade
processuais antecipadas de culpabilidade ou de
“[...] normalmente gera graves transtornos, com conseqüências
condenação, ferindo o princípio da presunção
de ordem profissional, social e econômica”71.
MAIA NETO, Cândido F. Erro judiciário, prisão ilegal e direitos humanos (indenização às vítimas de abuso de poder à luz do garantismo jurídico-penal). In:
D´ANGELIS, Wagner Rocha (Org.). Direito internacional do século XXI: integração, justiça e paz. p. 296-297.
67
MAIA NETO, Cândido F. Op. cit. p. 299.
68
DERGINT, Augusto do Amaral. Responsabilidade civil do estado por atos judiciais. p. 241.
69
Idem, ibidem, p. 179-180.
70
Idem, ibidem, p. 179
71
Idem, ibidem, p. 178.
66
47
Artigo 04
Para Rômulo José Ferreira Nunes, a prisão
ilegitimamente aplicada pode ser tipificada como uma espécie
das leis feitas pelo juiz, se lesivo, poderá dar origem a uma
responsabilidade por ato lícito”77.
de erro judiciário:
Com efeito, todas as considerações tecidas convergem
para uma responsabilização estatal, caso se proceda à
É que a prisão provisória representa, inegavelmente,
regressão de regime pela prática de crime doloso sem existir
uma antecipação de pena a ser eventualmente
uma decisão irrecorrível da ação penal superveniente. Essa
sancionada, o que poderia ser visto como uma
responsabilização pode ser embasada na equivocada atuação
afronta ao direito de liberdade, ao se contrapor ao
do magistrado, se este não interpretar o art. 118, inciso I, 1a
princípio constitucional de que a culpa só emerge com
parte da LEP em conformidade com a Constituição e, dessa
o trânsito em julgado de sentença penal condenatória
forma, determinar de plano a regressão de regime pela mera
[...] principalmente quando o acusado, ao invés de ser
prática de crime doloso. Certo é que, se tal dispositivo legal não
considerado culpado, é declarado inocente e sofreu,
for interpretado e aplicado em consonância constitucional, se
nessa condição, os dissabores da injusta privação no
viola a garantia da presunção de inocência e, em ocorrendo
seu jus libertatis.72
danos oriundos daí, há também a possibilidade jurídica de
Juary Silva diz que a prisão preventiva com a posterior
absolvição torna admissível a pretensão indenizatória contra
o Estado, ainda que a lei não a preveja de forma expressa73.
Todavia entende que “[...] a responsabilidade estatal encontra
perfeita guarida na fórmula genérica da responsabilização
suscitar a reparação de danos pelo Estado ao cidadão que teve
seu direito vilipendiado.
As palavras de Cândido Maia Neto bem se aplicam
a esse tema da responsabilidade civil do Estado, por ressaltar
que
conexa ao funcionamento do serviço judiciário, este concebido
[...] a falta de estrutura administrativa e de recursos
como público”74.
humanos do Estado não justifica o cometimento de
Maria Helena Diniz assim discorre sobre o assunto:
A prisão preventiva, se injusta [...], dará também
origem à responsabilidade do Estado, que deverá
indenizar os danos dela decorrentes, que poderão ser
até tão ou mais graves quanto os do erro judiciário,
visto que, se o acusado for absolvido, ao final da
instrução criminal [...] verifica-se que, em prol do
interesse da sociedade, [...] um cidadão foi onerado, de
nenhuma espécie de erro judiciário, mesmo que seja
pela mais grandiosa das causas, como, por exemplo,
da repressão à criminalidade violenta ou organizada.
Os princípios fundamentais e constitucionais precisam
ser mantidos e assegurados em nome do estado
democrático de direito, do garantismo jurídico e da
imperiosa necessidade de sempre se realizar a Justiça
Penal [...].78
modo desigual, pelas cargas públicas; logo, nada mais
Ademais, pode-se apontar como uma das possíveis
equânime que essa mesma sociedade, isto é, o Estado,
conseqüências da regressão de regime ensejada pela eventual
que lhe impôs um sacrifício anormal e excepcional,
prática criminosa da qual ainda não existe condenação
o indenize pelos danos causados no cumprimento do
irrecorrível a propositura do instrumento de argüição de
dever de apurar crimes e responsabilidades.75
descumprimento de preceito fundamental (prevista no art.
102, §1o da CF e regulamentada pela Lei no 9.882/99),
E argumenta: “[...] se o cidadão que suportou sozinho
pois o art. 1o dessa lei traz como objeto desse instrumento
as conseqüências danosas do funcionamento de um serviço
processual constitucional “[...] reparar ou evitar lesão a
público ficasse sem indenização, a igualdade dos encargos
preceito fundamental, resultante de ato do poder público.”
públicos romper-se-ia” .
Ora, a presunção de inocência, como garantia constitucional
76
Quanto à atuação do magistrado, entende a autora
individual que é, configura-se como preceito fundamental,
que “o erro jurídico, ou melhor, a interpretação e a aplicação
sendo possível, porquanto, constituir matéria de debate em
NUNES, Rômulo J. F. Responsabilidade do estado por atos jurisdicionais. p. 120.
SILVA, Juary C. A responsabilidade do estado por atos judiciários e legislativos: teoria da responsabilidade unitária do poder público. p. 206.
SILVA, Juary C. Op. cit. p. 206.
75
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil Brasileiro: responsabilidade civil. 19. ed. p. 649-650.
76
DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p. 650.
77
Idem, ibidem, p. 651.
78
MAIA NETO, Cândido F. Op. cit. p. 301.
72
73
74
48
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
ADPF79, de acordo com o parâmetro de controle já fixado
relação a qualquer ser humano sujeito à sua jurisdição (cf. seu
pelo STF para essa modalidade do sistema concentrado de
art. 1o, 1). Assim, caso seja violada alguma garantia aí expressa,
constitucionalidade . Mesmo que no caso em exame seja difícil
o Estado sujeita-se a uma responsabilização perante o Sistema
conceber a utilização da ADPF para evitar a lesão à presunção
Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos82.
80
de inocência do executado que ainda não foi regredido de
É perfeitamente cabível então a responsabilização
regime – principalmente porque existindo uma divergência
do Brasil no plano internacional, por violar o princípio da
doutrinária e jurisprudencial acerca da regressão de regime
presunção de inocência, ao regredir de regime o executado
ensejada pela prática de crime doloso, há a possibilidade de o
acusado de cometer crime doloso, antes de haver uma sentença
magistrado possuir o entendimento de que somente deva determinar
condenatória definitiva, havendo a possibilidade, inclusive, de
a regressão quando sobrevir decisão condenatória. É certo que, se
o apenado ser indenizado pelo Estado Brasileiro.
a ADPF é proposta com o condão de evitar a lesão ao preceito
fundamental e é julgada procedente, em tese não há porque
de se falar em direito à indenização do apenado, na medida
em que, não ocorrendo a violação ao preceito fundamental,
se torna difícil vislumbrar algum dano produzido; todavia, se
a ADPF é promovida com a finalidade de reparar a lesão ao
preceito fundamental e é julgada procedente, significa que o
aludido preceito fora lesionado, existindo, logo, a possibilidade
da produção de algum dano decorrente de tal violação, pelo que,
nessa hipótese, é de se acionar a responsabilização estatal.
Aproveita-se, neste caso, uma das novidades trazidas
pela regulamentação da ADPF (art. 1o, p. único, I, da Lei
9.882/99): o seu cabimento na análise de dispositivo legal
anterior à atual Constituição, na qual a LEP (de 1984) se
enquadra perfeitamente81. Consigne-se, também, que a decisão
tomada em uma ADPF possui efeito erga omnes e vincula os
demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3o, da Lei 9.882).
Finalmente, se o Estado brasileiro não reconhecer
Outrossim, cogitando-se ainda a hipótese de sobrevir
uma decisão absolutória, a conseqüência relacionada ao
requisito temporal para fins de requerimento de progressão de
regime pelo executado deve ser no sentido de se computar o
tempo de cumprimento de pena em que o apenado permaneceu
sujeito ao regime mais severo, decorrente da regressão, “[...]
pois, caso contrário, o condenado seria duplamente castigado:
primeiro, por causa da regressão do regime; segundo, porque
não poderia contar o tempo da regressão para obtenção da
progressão”83.
Destaque-se também que, diante da atual e notória
situação carcerária do País, é inconcebível manter no regime
fechado um indivíduo que poderia continuar cumprindo sua
pena no regime semi-aberto enquanto não lhe sobreviesse
notícia de condenação superveniente, sendo ainda muito pior
manter em regime semi-aberto um indivíduo que a pudesse
cumprir no regime aberto.
essa contrariedade ao princípio da presunção de inocência,
Vislumbra-se enfim, que a regressão de regime
há a possibilidade de a própria vítima da violação do direito
motivada pela prática de crime doloso, quando operada antes
humano apresentar denúncia à Comissão Interamericana
do proferimento de uma decisão condenatória ou absolutória
de Direitos Humanos, desde que tenha esgotado os recursos
definitiva, pode gerar desde prejuízos ao próprio Estado (gastos
internos e não tenha sido solucionada a questão, pleiteando a
com a efetivação e a revogação da regressão caso sobrevenha
responsabilização do Brasil no âmbito internacional. Isso porque
a absolvição do apenado e com possível reparação de danos a
o supracitado princípio é salvaguardado pela Convenção
este), como também implicar em gravames ao executado, além
Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa
de, na prática, não se coadunar com a própria política criminal
Rica, art. 8o, 2), ratificada pelo Estado Brasileiro em 25/9/1992.
estatal, posto que leva às já superlotadas prisões indivíduos
Signatário dessa convenção, o Brasil comprometeu-se a aplicar
que poderiam estar em liberdade por ter a possibilidade de
e respeitar suas disposições, em relação aos seus nacionais e em
continuar cumprindo sua pena em regime aberto.
Mesmo que os legitimados a propor uma ADPF sejam somente aqueles do art. 103 da CF, o interessado poderá solicitar ao procurador-geral da República a sua
propositura, cabendo-lhe analisar os pressupostos de admissibilidade e a pertinência para ingressar ou não com o instrumento processual, nos termos do art. 2o, §1o, da
Lei 9.882/99. Desse modo, na hipótese da regressão de regime que importe violação à condição de inocência, o próprio executado, por intermédio de seu procurador,
poderia num primeiro momento provocar a atuação do procurador-geral da República, a fim de que fosse suscitada a análise de compatibilidade do art. 118, inciso I, 1a
parte da LEP com a Constituição federal.
80
Veja-se: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. APDF no 33-MC. Voto do Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 29 out. 2003.
81
Sobre a extensão do controle abstrato de normas no Brasil também ao direito pré-constitucional, ou seja, a possibilidade de exame da compatibilidade do direito préconstitucional com norma da Constituição federal, veja-se: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. APDF no 33-MC. Voto do Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 29 out.
2003.
82
Sobre as sanções ao Estado conforme seus enquadramentos advenham da Comissão ou da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vide: GALLI, Maria Beatriz;
DULITZKI, Ariel E. A Comissão interamericana de direitos humanos e o seu papel central no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. In: GOMES,
Luiz Flávio; PIOVESAN, Flavia (Coord.) O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o Direito brasileiro. p. 62, 70-71 e passim.
83
Conforme ROCHA, Eduardo M. Apud KUEHNE, Maurício. Op. cit. p. 378.
79
49
Artigo 04
5. Síntese conclusiva: quo vadis,* hermeneuta brasileiro?
penal. Essa decisão é a mais adequada constitucionalmente
Tratou-se neste artigo de um dos temas mais polêmicos
quer pela eficácia interpretativa, quer pela eficácia negativa
que permeiam o direito da execução penal brasileiro, qual seja
desse princípio constitucional e só assim o hermeneuta estará
a regressão de regime decorrente da prática de crime doloso,
adequando o texto do dispositivo infraconstitucional com o
à luz do sistema constitucional, essencialmente no que tange
enunciado contido no art. 5o, inciso LVII da CF. Outrossim,
ao princípio da presunção de inocência. Ao longo do seu
como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
enfrentamento verificou-se que, no processo hermenêutico das
também têm destaque no processo interpretativo, verifica-
normas infraconstitucionais anteriores à nova Constituição,
se que a interpretação meramente gramatical do referido
boa parte dos hermeneutas as interpretam sem considerar
dispositivo da LEP não demonstra razoabilidade, posto que
a supremacia que a lei fundamental irradia por todo o
não apresenta adequação com os meios e fins preconizados
ordenamento jurídico – cumprindo papel decisivo na resolução
pela Constituição, tampouco se mostra proporcional, visto
de conflitos desde a recepção das normas quando da entrada
que a opção feita por se regredir o regime antes de sobrevir
em vigor de uma nova constituição até o oferecimento do
uma decisão irrecorrível da ação penal superveniente afeta
parâmetro fundamentador do controle de constitucionalidade
diretamente a garantia constitucional do apenado, que é a
de tais normas. Essa falta de obediência a um dos princípios
presunção de inocência.
basilares de todo o estado de direito constitucional, que é o
Não obstante todas as conclusões parciais dessa
da constitucionalidade, acaba interferindo negativamente na
análise constitucional-principiológica da regressão de regime
atuação desses hermeneutas, legando-lhes um resultado que
decorrente da prática de crime doloso antes de sobrevir
não é o mais adequado na interpretação e na aplicação das
sentença condenatória trânsita em julgado, apontadas ao longo
normas.
do texto, viu-se que há ainda muitos autores e magistrados que
É que quando uma nova constituição entra em vigor
persistem na afirmação de que tal medida não implica violação
no ordenamento jurídico, as normas infraconstitucionais
ao princípio da presunção de inocência, acobertados tão-
anteriores a ela são recepcionadas desde que seu conteúdo
somente pelos argumentos da defesa social, da periculosidade
seja consigo compatível; havendo discrepância entre a
do apenado e da interpretação literal do dispositivo, o qual
norma ordinária anterior e a lei fundamental posterior, a
silencia a respeito da necessidade de haver decisão condenatória
conseqüência, em termos práticos, será a inaplicabilidade do
passada em julgado. Isso apesar de ter-se demonstrado ao
dispositivo legal contrário à Constituição. Deve o hermeneuta
longo do trabalho que essa hipótese de regressão de regime não
operar aí, sempre, o processo mais amplo da filtragem
possui natureza cautelar como alguns pretendem, pelo que se
constitucional, pelo qual deve toda a ordem jurídica – sob a
conclui que detém um caráter de penalidade antecipada. Assim
perspectiva formal e material, e assim os seus procedimentos
sendo, resta evidente a violação ao princípio da presunção de
e valores – ser submetida ao filtro axiológico da Constituição
inocência, além da contrariedade ao princípio da secularização,
federal, que impõe a cada momento de aplicação do direito
posto que se pune antecipadamente o indivíduo por se pressupor
a releitura e a atualização de suas normas. Sob essa diretriz
que seja perigoso, haja vista já possuir condenação criminal, o
hermenêutica, conclui-se que o art. 118, inciso I, 1 parte da
que remete a um direito penal de autor. Ademais, diante do
LEP não foi recepcionado pela Constituição da República
contexto sistemático em que as normas estão inseridas, em que
de 1988, na medida em que a hipótese de regressão de
reina a supremacia da Constituição, é inconcebível se valer
regime que refere não possui caráter cautelar (acolhida pela
apenas de uma interpretação literal para defender a aplicação
Constituição), mas sim de penalidade antecipada, o que viola
de medida apta a acarretar séria restrição de direito, como
o princípio da presunção de inocência. Portanto a regressão
pretende a regressão de regime nesses moldes.
a
de regime ensejada pela prática de crime doloso não pode
Verificou-se, ademais, que a regressão de regime
ser promovida sob o pretexto de providência cautelar. Desse
inoportuna gera muitas conseqüências, tais como: a
modo, tendo em vista que a regressão de regime motivada pela
revogação da própria regressão de regime quando sobrevém
prática de crime doloso contraria o princípio constitucional
absolvição; a responsabilização estatal, especialmente quando
da presunção de inocência quando realizada antes de sobrevir
sobrevém absolvição, tendo em vista a atuação equivocada do
decisão condenatória definitiva, por demonstrar ter um caráter
magistrado, que não coaduna o dispositivo legal da LEP com a
de pena antecipada, deve operar-se apenas quando sobrevir
Constituição e, dessa forma, pode acarretar danos ao apenado,
decisão condenatória irrecorrível oriunda da nova ação
que podem ser tanto morais como materiais; a propositura
“Para onde vais?”, em alusão à obra clássica da literatura polonesa Quo vadis, de Henryk Sienkiewicz (1846-1910), publicada na forma de livro em 1896.
*
50
A Inconstitucional Regressão de Regime Decorrente da Acusação pela Prática de Crime Doloso
diante do Princípio da Presunção de Inocência: Quo Vadis, Hermeneuta Brasileiro?
de argüição de descumprimento de preceito fundamental,
entanto, se em razão da ação penal superveniente, o indivíduo
podendo ser provocada inclusive de forma mediata pelo
for preso cautelarmente, propõe-se a suspensão cautelar da
próprio executado, ensejando, se procedente, a inaplicabilidade
execução até ulterior decisão superveniente irrecorrível85 .
do aludido dispositivo da LEP nos seus termos literais; a
Isso porque, em se tratando de cumprimento de pena em
responsabilização do Brasil no âmbito internacional, caso não
regime aberto, o executado fica impossibilitado de cumprir as
reconheça internamente a violação ao princípio da presunção
condições deste, então seria incoerente deixar a execução da
de inocência, havendo a possibilidade de condenação do
pena em curso, sem que o apenado possa efetivamente cumpri-
Estado brasileiro ao pagamento de indenização ao apenado na
la. Já em se tratando de execução em regime semi-aberto,
Corte Interamericana de Direitos Humanos; a contabilização
em virtude da aplicação da suspensão de regime, o apenado
do período em que o executado permaneceu preso sob o
permanece encarcerado, mas sem direito às saídas temporárias
regime mais severo, para fins de progressão de regime, no caso
(o que é próprio da suspensão cautelar de regime). Assim, não
de sobrevir absolvição da ação penal superveniente. Na forma
é regredido seu regime e é satisfeita a determinação do juízo da
reflexa, também se pode apontar como conseqüência dessa
ação penal em trâmite, que entende que o indivíduo deva ficar
inconstitucional regressão de regime o apinhar dos cárceres
preso cautelarmente, em razão do possível cometimento de um
por condenados que poderiam estar cumprindo suas penas
novo delito.
em liberdade, o que vai de encontro à própria política criminal
Diante disso tudo, conclui-se finalmente que muito
estatal, que prevê o desencarceramento como a principal
embora o STF ainda não se tenha pronunciado acerca da
maneira de evitar a reincidência.
incompatibilidade do art. 118, inciso I, 1a parte da LEP com a
Constata-se, assim, que a regressão de regime
Constituição, devem todos os hermeneutas, mas especialmente
ensejada pela prática de crime doloso, quando realizada antes
os juízes da execução penal86, interpretar e aplicar as normas
de sobrevir uma decisão condenatória definitiva da ação penal
de acordo com a lei fundamental, dada a sua supremacia no
superveniente, é ilegítima perante o Sistema Constitucional
ordenamento jurídico. Portanto há necessidade de se adequar
pátrio vigente, além de se mostrar inviável frente às
a hipótese de regressão de regime aqui estudada com o
conseqüências perversas que pode acarretar. Desse modo, na
princípio constitucional da presunção de inocência, pelo que
hipótese de não ser decretada nenhuma prisão cautelar pelo
da presunção de inocência; ao contrário, se o indivíduo for
a regressão de regime decorrente da prática de crime doloso
somente deve ser determinada quando sobrevier decisão
condenatória irrecorrível da ação penal superveniente. Para
onde vão, porém, os hermeneutas todas as vezes em que assim
não resolverem esse conflitos interpretativos? Para a senda
da inconstitucionalidade. E esse caminho é na verdade um
reprodutor de inconstitucionalidades: na atuação estatal e na
vida do apenado. Por isso mesmo é que se insiste na pergunta
absolvido, ele deve dar continuidade ao cumprimento da
reflexiva: quo vadis, hermeneuta brasileiro?
juízo da ação penal superveniente, propõe-se a continuidade
no cumprimento de pena pelo executado, enquanto tramita
essa nova ação penal84 . Se o desfecho desta – que se dá
somente após a prolação de uma decisão definitiva – se der
durante a execução da pena e o indivíduo for condenado, aí
sim a regressão de regime estará autorizada à luz do princípio
execução, e a ele nenhum prejuízo será causado por decorrência
dessa ação penal instaurada. Se, todavia, o deslinde dessa nova
ação penal ocorrer após o cumprimento de pena pelo executado
e ele for condenado, tal condenação não produzirá efeitos para
6. Referências
BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena
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constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
regime dessa sentença condenatória que será executada. Caso
transformadora. 6. ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Saraiva, 2004.
o indivíduo já tenha cumprido a pena e venha a ser absolvido
nessa ação penal superveniente, ele quita suas obrigações
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perante o Poder Judiciário e nenhum prejuízo lhe é causado. No
Rio de Janeiro: Forense, 1980.
Com base no que propõe Andrei Schmidt, na hipótese de sobrevir notícia de cometimento de novo crime para os casos de livramento condicional. Cf. SCHMIDT,
Andrei Zenkner. Direitos, deveres e disciplina na Execução Penal. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Op. cit. p. 276 (nota de rodapé no 38).
85
Com base nos autores: KUEHNE, Maurício. Op. cit. p. 376; FERNANDES, Antonio Scarance. Execução penal: aspectos jurídicos. Revista CEJ, Brasília, v. 3, n. 7,
jan./abr. 1999. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero7/artigo8.htm> Acesso em: 2 out. 2007.
86
É bem verdade que entre estes há aqueles que sempre são primorosos na “leitura” adequada da Constituição. O mesmo se dá entre os hermeneutas doutrinadores, donde
se podem citar os luminares exemplos de posturas críticas advindas de Sérgio Salomão Shecaira (especialmente com sua obra Criminologia), de Pedro Sérgio dos Santos
(na sua obra de vanguarda Direito processual penal & a insuficiência metodológica: a alternativa da mecânica quântica) e de Salo de Carvalho (em tudo quanto publica).
84
51
Artigo 04
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Revista dos Tribunais, 2002.
53
Artigo 05
Artigo 05
Responsabilidade Pressuposta*
Evolução de fundamentos e de paradigmas da responsabilidade civil na contemporaneidade
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka**
Em todo o mundo jurídico, de sistemas ocidentalizados especialmente, tem-se buscado alcançar este desiderato, quer dizer,
a construção ou consolidação de uma noção que seja um portador geral ou um denominador comum ou um critério suficiente, mas
que seja capaz de assegurar a reparação efetiva e adequada aos danos sofridos em razão das especificidades do modus contemporâneo
de atuação humana, exatamente porque , – diz João Baptista Villela em extraordinária síntese – ‘na teoria da responsabilidade civil,
o que se procura obter, em última análise, é a restauração de uma igualdade destruída; qualquer que seja o fundamento que se lhe
dê – culpa ou risco – é a um resultado igualitário que se objetiva’.1
1. Primeiras palavras: as razões de se buscar a estrutura de uma responsabilidade pressuposta. 2. A posição da
responsabilidade civil no direito brasileiro entre 1916 e 2002: de Clóvis Bevilaqua a Miguel Reale. 3. O instituto da
responsabilidade civil e o percurso entre a culpa e o risco: um importante passo na evolução. 4. O passo além que tem sido
intentado pelos doutrinadores contemporâneos e a admissão de um fundamento distinto a justificar a responsabilidade
civil, hoje. 5. Em síntese: qual seria o perfil de uma mise en danger otimizada e qual seria, por conseqüência, o perfil do
critério que se tem intentado buscar?
1. Primeiras palavras: as razões de se buscar a estrutura de uma
no sentido do favorecimento do direito das vítimas, para dar
responsabilidade pressuposta
mais, a essa interpretação que correu no sentido de melhor
O presente artigo tem por escopo ordenar uma
breve síntese do pensamento contemporâneo acerca da busca
favorecer o interesse do demandado em não reparar o dano
causado.
doutrinária que se faz – em boa parte do mundo jurídico
Não sem estar coberto de razão, já havia escrito, ao
ocidental, principalmente – de um novo critério capaz de
final do século anterior, o eminente civilista brasileiro Caio
fundamentar e de justificar uma proposta voltada à organização
Mário da Silva Pereira, que “a evolução da responsabilidade
de um novo sistema de responsabilidade civil, ao qual se
civil gravita em torno da necessidade de socorrer a vítima,
denomina, pioneiramente, de responsabilidade pressuposta.
o que tem levado a doutrina e a jurisprudência a marchar
A grande questão, em sede da responsabilidade civil
adiante dos códigos, cujos princípios constritores entravam
contemporânea, a se envolver nas dobras do pensamento
o desenvolvimento e a aplicação da boa justiça”2. A lúcida
jurídico da pós-modernidade, afinal de contas, é aquela que
razão do autor se encontra nessa imperiosa necessidade de
mostra a atual tendência de revolta contra as torrentes de
se definir, de modo consentâneo, eficaz e ágil, um sistema
construções doutrinárias e jurisprudenciais que visaram,
de responsabilização civil que tenha por objetivo precípuo,
precipuamente, a dar menos à interpretação dos textos legais,
fundamental e essencial a convicção de que é urgente que
Este estudo corresponde a um extrato da tese de livre-docência defendida pela autora, junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em maio de 2003,
tese que se encontra publicada sob o título Responsabilidade Pressuposta, pela Editora Del Rey, Belo Horizonte: 2005. A autora conta com a especial autorização de sua
editora para a publicação deste extrato. Para a verticalização ou o aprofundamento dos estudos, recomenda-se a leitura da obra original.
**
Doutora e livre-docente em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), professora associada do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
1
João Baptista Villela. Para além do lucro e do dano: efeitos sociais benéficos do risco – Repertório IOB de Jurisprudência, São Paulo, no 22/91, 2a quinz., nov. 1991, cad.
3:490-489.
2
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. III, 10. ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro: 1999, p. 362.
*
54
Responsabilidade Pressuposta
deixemos hoje, mais do que ontem, um número cada vez mais
busca apenas um critério tão geral que possa, sob um padrão
reduzido de vítimas irressarcidas.
de melhor segurança, constituir-se em fundamento essencial e
Mais que isso. O momento atual dessa trilha evolutiva,
intrínseco de um sistema de responsabilização porvir. Mas se
isto é, a realidade dos dias contemporâneos, detecta uma
busca um critério que se possa, perfeitamente, se determinar
preocupação – que cada vez mais ganha destaque – no sentido
em prol dessas intenções e exigências primordiais, quais
de ser garantido o direito de alguém de não mais ser vítima de
sejam, em que o número de vítimas irressarcidas de danos
danos. Esse caráter de prevenção da ocorrência de danos busca
que permanecem irressarcidas fosse um número – a cada vez e
seu espaço no sistema de responsabilidade civil, em paralelo ao
sempre – significativamente menor.
espaço sempre ocupado pela reparação dos danos já ocorridos.
O contorno fundamental da principiologia de
Há um novo sistema a ser construído, ou pelo menos,
amparo e o matiz de sustentação do viés axiológico de
há um sistema já existente que reclama transformação, pois as
resguardo de tal reestruturação sistemática deverá estar, por
soluções teóricas e jurisprudenciais até aqui desenvolvidas, e
isso mesmo, indelevelmente vinculado ao respeito à dignidade
ao longo de toda a história da humanidade, encontram-se em
da pessoa humana, esta que é, enfim, o sentido e a razão de
crise, exigindo revisão em prol da mantença do justo.
toda e qualquer construção jurídico-doutrinária ou jurídico-
Estrutura-se,
paulatinamente,
um
sistema
de
normativa. Tudo exatamente para que o direito, pensado em
responsabilidade civil que já não se sustenta mais pelos
sua gênese, cumpra seu papel mais extraordinário, o papel de
tradicionais pilares da antijuridicidade, da culpabilidade e do
responsável pela viabilização da justiça e da paz social.
nexo de causalidade, apenas. Organiza-se, já, um sistema que
não recusa – como outrora se recusava, por absolutamente
2. A posição da responsabilidade civil no direito brasileiro entre
inaceitável – a existência de um dano injusto, por isso indenizável,
1916 e 2002: de Clóvis Bevilaqua a Miguel Reale
decorrente de conduta lícita. Apresenta-se, nos dias de hoje,
Antes de ingressar propriamente no desdobramento
um sistema de responsabilidade civil que já não se estarrece
analítico do tema central deste artigo, é útil mostrar, ainda que
com a ocorrência de responsabilidade independentemente de
com brevidade, qual a situação do direito positivo brasileiro,
culpa de quem quer que seja.
na trajetória de seus dois códigos civis, e como ele tratou (ou
As perguntas que insistem em latejar na mente do
pesquisador e do observador social e jurídico são: Qual é a
não) as preocupações que agora geram essas reflexões sobre o
que se tem denominado de responsabilidade pressuposta.
efetiva razão de ressarcir? Qual é o verdadeiro pressuposto do
Como se sabe, o Código Civil de 1916 filiou-se
dever de indenizar? Quais são o novo contorno e o conteúdo da
à teoria subjetiva para a composição das regras jurídicas
reparação? Qual é, então, o marco teórico da responsabilidade
acerca da responsabilidade civil, como se verificava no
civil, neste tempo das primeiras pegadas do novo milênio?
art. 159, do qual se dizia ser o hábitat legal da responsabilidade
Sobre isso discorre o que se tem chamado
derivada da culpa3. Mas tal posicionamento não impediu que
de responsabilidade pressuposta, na condição de uma
o legislador, em passagens esparsas, houvesse considerado
responsabilidade de novo perfil, que se descortina por meio
a adoção da responsabilidade objetiva, baseada no risco e
de um critério que a fundamente e justifique, como já se
não na culpa. Ambas as posições coexistiram pacificamente
disse antes, isto é, um verdadeiro critério de imputação da
no corpo do código anterior, estando a responsabilidade
responsabilidade sem culpa, elevado à categoria de règle à
objetiva – posto que obrigação legal de indenizar, como
valeur d’ordonnancement juridique.
não poderia deixar de ser – invariavelmente prevista na lei,
Não é simples encontrar um critério assim, que seja
imputando a responsabilidade de ressarcir o dano a certas
portador de qualidades que lhe permitam posicionar-se como
pessoas, independentemente da prática de ato ilícito, pessoas
um denominador comum de variadas hipóteses danosas, já
essas a quem não se admite qualquer escusa subjetiva no
ocorridas ou não, e que seja um critério que tenha qualidades
sentido de pretender demonstrar a sua não-culpa.
e atributos tão suficientes que possam arrebanhar as hipóteses
No momento atual, sob a égide do novo Código
todas, subsumindo-as à sua determinação de responsabilização.
Civil Brasileiro4 , observa-se, sem dúvida, a presença de certo
Não é simples encontrar um critério assim porque não se
avanço que o Projeto de Código Civil, conhecido como
Art. 159 CC/1916: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o
dano.”
4
O novo Código Civil Brasileiro, Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor no dia 10 de janeiro de 2003. Este capítulo foi escrito em março de 2002 e tomou
por base as considerações já expendidas pela autora do presente estudo, no ano anterior, quando proferiu a palestra Tendências atuais da Responsabilidade Civil: marcos
teóricos para o direito do século XXI, opus cit. passim.
3
55
Artigo 05
Projeto Miguel Reale, do ano de 1975 pôde produzir, há cinco
refazimento de sua circunstância jurídico-patrimonial afetada
lustros. Nem perfeito, nem retrógrado. Nem ambicioso, nem
pelo dano sofrido, mas, especialmente, pelo refazimento de sua
descomprometido com a realidade, mas com certo viés de
condição de titular do direito à dignidade constitucionalmente
coragem, caso se considere a inserção de um sistema geral
plasmada enquanto valor máximo da pessoa humana, pela
de responsabilidade objetiva ao lado do sistema geral de
imposição do dever indenizatório ao causador do dano. Ainda
responsabilidade subjetiva ou, caso se considere a abertura
que incapaz. Embora o atual Código Civil não estabeleça
cometida em nome da eqüidade, assunto que absolutamente
expressamente essa consignação, a oportunidade da inserção
não habitou o sistema do Código Civil de 1916, ao tempo de
legislativa se sobreleva naquelas hipóteses em que o incapaz
sua promulgação, no início do século anterior.
causador do dano é, na verdade, um relativamente capaz e
O Código Civil de 2002, cerne da estruturação
titular de patrimônio suficiente.
legislativa da responsabilidade civil, introduziu uma regra geral
Cuidadoso, o legislador não deixou de avisar que a
bem distinta daquela contida na legislação anterior. Vale dizer,
aplicação dessa regra tem, como pressuposto inafastável, a
introduziu a imputação do dever de indenizar por atribuição
certeza de que a cominação do dever de indenizar não pro-
meramente objetiva, não a tendo feito pontualmente em
moverá a privação do incapaz, relativamente àquilo que mini-
situações individualizadas, delimitadas, mas a fez como sistema
mamente necessita para si próprio. O bom senso do magistrado
geral, transmudando o caráter da responsabilidade objetiva –
zeloso – que aplicará a nova forma de expressão legislativa do
até então meramente excepcional – em regra, isto é, em preceito
direito civil no que respeita à responsabilidade civil e ao dever
legal geral. O art. 927 parágrafo único, do novo código destaca
de indenizar danos causados – levará em conta essa bipolari-
assim, em vivas letras, aquilo que é uma necessidade crescente
zação de interesses, conjugando-os eqüitativamente, conforme
entre nós: o dever de indenizar independentemente de culpa, nos
convém à nova arquitetura legislativa.
5
casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente
Por outro lado, e ainda sob a consideração do
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza,
Código Civil de 2002, destaca-se essa especialíssima questão
grande risco para os direitos de outra pessoa.
referente à expansão dos critérios endereçados à quantificação
tendência
ou mensuração dos valores indenizatórios por dano moral.
objetivista da responsabilidade civil, na lei nova, não se encontra
Obviamente,
apesar
dessa
marcante
Equilibrada e moderna, além de justa, a nova legislação
abandonada a responsabilidade por culpa, continuando
civil eleva e destaca valores éticos imorredouros, tais como a
consagrada na Parte Geral, entre os dispositivos que formatam
probidade, a boa-fé e, principalmente a eqüidade. Todo esse
o Título relativo aos atos ilícitos , repetindo-se adiante no
novo perfil normativo traz enormes mudanças na aplicação do
arcabouço da responsabilidade civil propriamente dita7.
direito, exatamente porque confere ao magistrado uma saudável
6
Relativamente à responsabilidade do incapaz, avançou
responsabilidade na composição pecuniária da indenização,
o novo código8 ao prever que ele responde pelos danos a que der
tornando-a equânime e, por isso, mais justa, atuação essa que
causa, se seus responsáveis não tiverem a obrigação de indenizar
é inovadora entre nós, mas que tem por paradigma a moldura
ou se o patrimônio destes, desde que responsabilizados, não
da common law. Contudo o que mais se destaca, talvez, como
for suficiente para atender ao reclamo da vítima. Trata-se de
novidade a ser considerada é a revolução provocada pela
interessantíssimo avanço já conhecido de outras legislações
nova lei em matéria de responsabilidade por fato de outrem,
estrangeiras e que atende rigorosamente a esse paradigma da
pela adoção da teoria do risco-proveito e pelo conseqüente
pós-modernidade que aponta o foco de atenção, do direito e
abandono, enfim, do frágil estratagema da inversão do ônus
da lei para a pessoa da vítima e para a imprescindibilidade de
da prova. E assim, o colossal art. 933 do novo código9 , em
Art. 927. [...] Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (g.n.).
6
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito.
7
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem é obrigado a repará-lo.
8
Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de o fazer ou não dispuserem de meios suficientes.
Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se ela privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.
9
Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
I – os pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
II – o tutor e o curador pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
III – o empregador ou comitente por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e
educandos;
V – os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.
Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a III do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali
referidos.
5
5
Responsabilidade Pressuposta
caráter coadjuvante, determina que as pessoas indicadas no
fundamentais de um sistema de responsabilidade civil distinto
artigo antecedente (os pais, o tutor, o curador, o empregador)
daquele que até o anterior século pareceu bastar. Os pensadores
do direito, jusfilósofos e jus-sociólogos, buscaram critérios de
identificação para as novas ocorrências e exigências da vida
dos homens, como se buscassem – diga-se assim – um padrão
de fundamentação ou uma tábua de pressupostos ou, ainda,
um denominador comum que fosse capaz de se expressar,
enfim, como fonte e fundamento do dever de indenizar o dano
que alguém injustamente sofra.
Ao lado dessa prodigalidade de formulações teóricas
se instalaram também, e de modo igualmente pródigo, as mais
diferentes tendências jurisprudenciais, com respostas distintas
para casos semelhantes, com respostas semelhantes para casos
distintos e com idênticas respostas para casos semelhantes
ou não, mas oriundas de fundamentação diversa. O século
XX – não há como negar – produziu uma verdadeira torre
responderão pelos atos daqueles indicados e a eles relacionados
(os filhos menores, os pupilos, os curatelados e os empregados),
ainda que não haja culpa de sua parte. Trata-se da tão ansiada
transição da culpa presumida e do ônus probatório invertido
para uma objetivação efetiva dessa responsabilidade in casu.
Indo além, o legislador do novo código estabeleceu a
solidariedade10 entre as pessoas responsabilizadas pelos danos
causados por terceiros e estes próprios, situação não presente
na Lei Civil anterior, mas muito discutida doutrinária e
jurisprudencialmente, no curso da vigência do código de 1916.
Sem pretender a análise pontual dos dispositivos que
compõem o Título IX do Livro I da Parte Especial do Código
Civil de 2002 – artigos. 927-954 – anotam-se os fundamentais
plexos ou paradigmas da responsabilidade civil na nova
legislação, à guisa de reconhecer as tendências de outrora já
fixadas na lei nova, como ponto de partida e reflexão para o
evolver do novo século:
a) reparação do dano causado por culpa do agente,
ou independentemente de sua culpa11 ;
b) reparação do dano moral12 ;
de Babel, em termos de apreciação, análise e aplicação da
responsabilidade civil.
O espaço de tempo de cem anos, se contado desde
1899 e até 1999 – quer dizer, o lapso temporal que liga e
relaciona Clóvis Bevilaqua a Miguel Reale15 –, pode dar bem a
noção do quanto se alterou, em termos doutrinários e em sede
jurisprudencial, a maneira de tratar a responsabilidade civil.
Olhando esse passado relativamente recente, no Brasil
c) repressão ao abuso do direito13 .
e fora dele, resta sempre, ao investigador, a dúvida, tão bem
3. O instituto da responsabilidade civil e o percurso entre a culpa
e o risco: um importante passo na evolução
A crise do sistema clássico de responsabilidade civil
está a exigir uma revisão crítica que se fará obrigatoriamente
por intermédio da releitura da própria história dos povos,
da reedição do diálogo entre o direito e a sociedade e da
reapreciação dos fatos da vida como se apresentam hodiernamente e como influenciam a trajetória e a esfera jurídica dos
homens. A era da globalização, mais do que qualquer outra
antes dela, é exigente de uma interpretação sistêmica cuidadosa,
traduzida por Luiz Edson Fachin: se o passo à frente que se
esboça é uma mudança efetiva ou tão-só a última fronteira de
um sistema moribundo que agoniza, mas ainda não esgotou16.
Ora, todo tema investigatório que pertença ao
contexto geral da ciência jurídica, como no caso do instituto da
responsabilidade civil, trará consigo as mesmas preocupações
e as mesmas angústias acerca de se desvendar qual o melhor
percurso para definir, a contento, a cientificidade da investigação
por ele levada a efeito, assim como se o faz, a priori, com a
própria ciência que o contempla.
A ciência do direito é uma inquietude ante o problemático,
de modo a permitir que cada coisa, natural ou artificial, seja
afirma Maria Helena Diniz17 ; por isso, a escolha do método de
redefinida em relação com o todo planetário .
investigação se torna imprescindível à delimitação do objeto a ser
14
Ao longo do século XX, dezenas de teorias foram
desenvolvidas para explicar ou para criar parâmetros
investigado e à certeza do investigador acerca do que realmente
tenciona fazer e do lugar onde efetivamente deseja chegar.
Art. 942. [...] Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem é obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
12
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito. (g.n.)
13
Art. 187. Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes. (g.n.).
14
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 171.
15
Referência aos dois projetos de Código Civil de maior destaque em toda a história do direito no Brasil, isto é, o Projeto de 1899, de Clóvis Bevilaqua, que se transformou
no primeiro Código Civil brasileiro, em 1916, e o Projeto 624-B/75, supervisionado por Miguel Reale, que atualmente, já sancionado pela Presidência da República,
aguarda o prazo da vacatio legis para entrar em vigor como novo Código Civil brasileiro.
16
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 16.
17
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 29.
10
11
57
Artigo 05
É certo que a escolha de um método não exclui,
seus vieses, a matizar os seus contornos com os princípios e
obrigatoriamente, a interferência positiva de outro, desde que
valores de uma ciência que não se amalgama ou se confunde
não conflitem os espectros e os paradigmas perseguidos, sempre
com outra ciência.
em prol da qualidade, da validade e da segurança dos resultados
A análise mais paciente de algumas dessas variações
que se visam a obter. Pode ocorrer de ser o método selecionado
tendentes a teorizar a origem, a natureza e os limites da ciência
um método histórico, ou um método de concepções analíticas
jurídica, bem como a especificidade de seu objeto e o seu método
ou um método de experimentação do cotidiano em busca das
de especulação podem encaminhar à revisão de certas direções
estruturas positivadas. Pode ocorrer de ser uma mistura possível
filosóficas que se afirmam ao longo da história do direito dos
de dois deles, como uma simbiose, ou uma infiltração oportuna
homens, uma após as outras, mas repetindo-se, às vezes, em
de um em outro. Importa, verdadeiramente, a justificação do
diferentes momentos dessa mesma trajetória. A exemplo de
recurso metodológico e a sua adequação ao quanto se tem em
Colombo, descobrindo de longe as costas da América, quem
vista perseguir e demonstrar. Tarefa não exatamente simples,
escolheu por se interessar pela filosofia do direito ignora ainda
não exatamente fácil.
que está a ponto de abordar um continente misterioso.
De toda a sorte, não há como negar, o instituto da
Mas é justamente, quiçá, essa ousadia do pesquisador
responsabilidade civil é instituto que pertence ancestralmente à
que, sendo salutar, pode permitir imersão mais eficiente do
estrutura geral do direito civil e é parte desse sistema global de
pensamento jurídico em busca da concreção da idéia de justiça,
experiências sociais unidas de modo pleno, coerente e dinâmico.
deixando acontecer o confronto – nem sempre bélico – entre o
O movimento próprio desse sistema jurídico é responsável
relativo e o absoluto, para deixar exposta, como o faz Frédéric
pela impossibilidade de seu fechamento em si mesmo ou da
Rouvillois, a questão de indagar quais podem ser os vínculos
cristalização de seus cometimentos, ainda que justamente em
do direito com a coação, a razão, o tempo e a ética19. Reclama, e
face de alguns de seus princípios e de alguns de seus valores
com razão, o autor que a omissão de um viés prático do direito,
historicamente imutáveis. A renovação, pois, não prejudica
pelo filósofo tendente a encastelar-se na torre de marfim da
a ordenação sistemática, mas a revitaliza e lhe concede – ou
idéia pura, pode causar a dissociação indesejável das verdades
visa a conceder – uma perene adequação aos novos anseios
que se perfilam em par, impedindo a consagração do direito
e às novas necessidades, oriundas de um novo tempo, mas
em sua mais extraordinária concreção, qual seja, como se disse,
sempre sob a mesma tábua valorativa maior que é a que busca,
essa busca eterna, ainda que renovável, da realização do justo
eternamente, a realização do justo e do equânime.
e do equânime.
O fundamento e a justificação do instituto, assim como
Talvez a mais significativa de todas as teorizações
o fundamento e a justificação da própria ciência do direito
jurídicas seja a que se denomina jusnaturalismo, segundo
encontram sua base de sustentação e de reflexo na clássica e
a qual – por tendência natural humana, ou por princípio
dicotômica concepção filosófica do fenômeno jurídico que
norteador da vida honesta – o homem não deve lesar o seu
o desvenda, ora sob as luzes do jusnaturalismo, ora sob o
próximo. Neminem laedere, é a arcaica regra, simplificada
tecido do positivismo jurídico. Assim e se a sistematicidade é o
regra, na verdade, do preceito maior originado nos Jura
principal argumento a favor da cientificidade do conhecimento
Praecepta do direito romano, conhecido como honeste vivere,
jurídico, como bem registra Tércio Sampaio Ferraz18 , entre
neminem laedere, suum cuinque tribuere. Desde sempre – e como
outros importantes jusfilósofos nacionais e estrangeiros,
exigência do modo honesto de viver20 – em hipótese de lesão a
epistemologicamente o assunto se desenlaça por meandros dis-
outrem causada, haveria de se devolver o que dele é, ou o que
crepantes entre si, mas que, diferente do que se possa imaginar,
perdeu, por meio da reparação do dano. Assim agir decorre da
não infertilizam essa seara de busca do objeto da investigação
natural noção de que o dever de reparar o dano derivado da
jurídica e de sua cientificidade, mas, contrariamente, denotam
injusta invasão da esfera jurídica alheia integra a completude
o fortalecimento filosófico da ciência jurídica.
do honeste vivere.
Em face do saber jurídico, várias posições epistemológicas
se alinham, tendentes a delinear o seu âmbito, a desenhar os
Afinal, o direito não é apenas uma técnica; é uma
ciência e é uma arte; é a virtude na perseguição do justo21.
FERRAZ, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 1977, p. 13.
ROUVILLOIS, Frédéric. Le droit. Paris: GF Flammarion. 1999, p. 11-16. (Collection Corpus)
20
Aqui, a concepção referida independe da concepção cristã de honestidade, mas tem aquele caráter teorético mais amplo, conforme convém.
21
VILLELA, João Baptista, mencionado verbalmente em aula do curso de Mestrado da Faculdade de Direito de Bauru/ITE, no 2o semestre de 1999. As ciências, em
sua acepção mais ampla, podem ser classificadas em três modalidades fundamentais; algumas se limitam a investigar “o que é” – são as chamadas ciências teóricas
ou especulativas; outras, procuram orientar as condutas humanas indicando-lhes “como agir” – são as ciências éticas ou morais; e, finalmente, aquelas que orientam a
atividade produtiva ou as realizações externas do homem, indicando-lhe “como fazer” – são as ciências técnicas. O direito pode ser considerado, exatamente como o faz
João Baptista Villela, sob a tríplice perspectiva da teoria, da técnica e da ética, o que o torna complexo e belíssimo.
18
19
58
Responsabilidade Pressuposta
De um lado o dever. De outro lado o direito. A
dualidade eterna, o verso e o reverso, o côncavo e o convexo.
projeta o dever de reparação para além dos confins da conduta
culposa dos indivíduos24.
Mesmo sem intentar a recuperação das teorizações à volta
‘Foi efetivamente a insuficiência de soluções,
de direito subjetivo e de direito objetivo, não parece reclamar
modernamente registradas, para atender aos milhares de
dúvida que ao direito da vítima à reparação do dano que
distintos casos de danos – que, perpetrados, se transmudam em
injustamente sofra corresponde um dever de recuperação
fatores de atribuição de responsabilização pelos prejuízos deles
ou, ao menos, de reaproximação do estado anterior à lesão
advindos –, que se pôs a exigir uma significativa reformulação
causada.
do atual sistema bipolarizado de responsabilidade civil, isto é,
Norberto Bobbio se pronunciou
– a respeito de
a responsabilidade decorrente do descumprimento contratual
se constituírem os direitos do homem numa classe variável –
(responsabilidade contratual) e aquela conseqüente da prática
dizendo que o elenco dos direitos do homem se modificou,
de ato ilícito (responsabilidade extracontratual)’25. ‘O ingresso,
e continua a se modificar, com a mudança das condições
no campo de repercussão e de aplicação da responsabilidade
históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das
civil, de fatores objetivos mostrou-se como incomensurável
classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos
avanço, quando a questão de fundo, a mira central, o interesse
mesmos, das transformações técnicas, etc. [...] Não é difícil
crucial a ser atendido – como se consagra indiscutivelmente
prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que
hoje – é o interesse da vítima’26.
22
no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito a
Afinal, a responsabilidade nada mais é do que o
não portar armas contra a própria vontade ou o direito de respeitar
dever de indenizar o dano, que surge sempre quando alguém
a vida também dos animais e não só dos homens. O que prova –
deixa de cumprir um preceito estabelecido num contrato ou
conclui o filosófo – que não existem direitos fundamentais por
quando deixa de observar o sistema normativo que rege a
natureza23.
vida do cidadão27. Ou seria possível também compreendê-la,
De acordo, ou não, com as conclusões de Bobbio, o
em sua extensão mais vasta, e como ela se desenha e recorta,
que é inegável é esse caráter variável dos direitos humanos ou
hoje, no cenário jurídico brasileiro, especialmente, como sendo
fundamentais, e o que é completamente verdadeiro, conforme
a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar
o depoimento da própria vida e da própria história, é o fato
o dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão
de que novas pretensões, a respeito das quais nem se cogita,
de ato por ela mesmo praticado, por pessoa por quem ela
poderão surgir, impondo a geração de novos direitos. É assim,
responde, por alguma coisa a ela pertencente ou por simples
exatamente assim, o que ocorre no plano da responsabilidade
imposição legal.28
civil, cuja trajetória, ao longo do tempo, certamente abona
‘A responsabilidade subjetiva fundamenta-se na
a afirmação. Gustavo Tepedino se expressa, sobre essa longa
existência de culpa do agente. Não havendo culpa, não há
estrada de construção, variação e transformação das relações
responsabilidade, ainda que presente o dano, pois a imputação
privadas sob o matiz da responsabilidade civil, da seguinte
da responsabilidade derivada de sua causação depende
forma: A responsabilidade civil derivada não do ato ilícito,
da conduta culposa do agente. A culpabilidade, também
mas de fonte legislativa (ex lege), ampliou-se sobremaneira na
denominada culpa em sentido amplo, poder-se-ia definir como
atualidade, expressão de tendência que se solidifica, no caso
uma conduta do agente desaprovada pela lei, ou seja, uma
brasileiro, com a Constituição de 5 de outubro de 1988, que
conduta caracterizada pela reprovabilidade ou censurabilidade
Pronunciou-se, assim, Norberto Bobbio, no discurso de abertura levado a efeito no Simpósio Internacional dos Direito do Homem, realizado entre 1o e 3 de dezembro
de 1967, em Turim, por iniciativa da Sociedade Italiana para a Organização Internacional, discurso este publicado em sua obra A era dos direitos, cit., p.15-24, sob o
título Sobre os fundamentos dos direitos do homem.
23
Idem, ibdem, p. 18.
24
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. O autor refere-se especificamente aos princípios da solidariedade social e da justiça distributiva,
capitulados no art. 3o, incisos I a III, da Constituição, segundo os quais se constituem em objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa
e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, não podem deixar de moldar os novos contornos da
responsabilidade civil (p. 175-176).
25
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos para o direito do século XXI, palestra (não-publicada)
proferida no Congresso Jurídico – Brasil 500 Anos, promovido pelo Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, coordenado pelo Prof. Francisco Amaral, no Rio
de Janeiro, entre os dias 13 e 16 de setembro de 2000, em homenagem póstuma ao Prof. Rubens Limongi França, da Faculdade de Direito da USP.
26
Idem, ibdem.
27
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral das obrigações. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 272.
28
DINIZ, Maria Helena. Indenização por dano moral: a problemática da fixação do quantum, Revista Consulex, Ano I, n. 3, mar. 1997.
22
59
Artigo 05
legal. E é assim que a doutrina mais apurada e destacada a define,
configuração; no entanto não desapareceu completamente a
como o faz, por exemplo, entre nós, Maria Helena Diniz :
culpa, nem desaparecerá, visto que a evolução não equivale
29
à substituição de um sistema por outro. Essa advertência
A culpa em sentido amplo, como violação de um
já houvera sido considerada por Savatier, que previu que,
dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência
se uma responsabilidade fundada no risco se justifica
de fato intencional ou de omissão de diligência
plenamente em nosso direito moderno, é preciso não lhe
ou cautela, compreende: o dolo, que é a violação
atribuir nem função única, nem mesmo o primeiro lugar32.
intencional do dever jurídico, e a culpa em sentido
Culpa e risco, anunciou o renomado jurista, devem deixar
estrito, caracterizada pela imperícia, imprudência
de ser considerados como fundamentos da responsabilidade
ou negligência, sem qualquer deliberação de violar
civil, para ocupar o lugar que efetivamente ocupam, isto é, a
um dever. Portanto não se reclama que o ato danoso
posição de fontes da responsabilidade civil, sem importar se
tenha sido, realmente, querido pelo agente, pois
uma delas tem primazia sobre a outra, sem a preocupação de
ele não deixará de ser responsável pelo fato de não
que uma aniquila a outra, mas importando saber que, embora
se ter apercebido do seu ato nem medido as suas
tão mais freqüentes os casos de responsabilidade subjetiva,
conseqüências.
embasada na culpa, persistem existindo os casos em que se
São essas, pois, as tradicionais formas de culpabilidade ou
culpa em sentido mais amplo: o dolo e a culpa propriamente
dita. Insistentemente se tem registrado a ausência de significado
dessa distinção para o direito civil, em que pese sua absoluta
importância para o direito penal, eis que, neste campo, a
distinção influi decisivamente na determinação da pena e da
sua extensão’30.
Modelo insuficiente, capaz de deixar lacunas a respeito
de reparação ou indenização de danos causados, a teoria da
culpa não podia continuar atuando solitária no cenário da
responsabilidade civil. Carlos Alberto Ghersi31 não parece
demonstrar qualquer constrangimento por exagero quando
afirma que
registrará a insuficiência dessa fonte, quando, então, se abrirá
a oportunidade da reparação do dano pelo viés da nova fonte,
a do risco. Convivem, portanto, as duas teorias, e conviverão
provavelmente por longo tempo. Tem razão absoluta Caio
Mário da Silva Pereira33 quando afirma que, em nosso sistema
jurídico, convivem as duas teorias: subjetiva como norma geral
e objetiva como preceituação especial34 .
Foi a partir da segunda metade do século XIX,
então, que se iniciou o vasto movimento de expansão da
responsabilidade civil, fomentado por idéias, doutrinas e
concepções, cujos efeitos se prolongaram por todo o século
XX. Patrice Jourdain menciona que um duplo fenômeno de
objetivação e de coletivização inverteu o curso – inclusive o
subjetivo, estruturado sobre a base da culpa – da evolução35.
así como la destrucción de la Bastilla simbolizó el fin
del antiguo régimen monárquico, o la demolición del
muro de Berlín representó la caída del comunismo,
la insuficiencia de la responsabilidad subjetiva para
dar solución a los miles de damnificados por las
más diversas causas, sin duda puede servir como
paradigma de la alocada construcción de máquinas
que marca el final de un método, de una filosofia, de
una historia.
Ao mesmo tempo em que se multiplicaram as atividades perigosas, o homem passou a aceitar, menos conformadamente, os golpes do destino. Patrice Jourdain escreve, com
razão, que o ser humano recusa o azar e exige a reparação de
todo o dano sofrido, sempre face de uma apreciação cada vez
mais intensa da valorização da pessoa humana, o que contribuiu para que os cidadãos passassem a exigir sempre mais
providências do Estado.
“Os hábitos de proteção e de assistência os quais
da
a sociedade mantém – escreve o autor francês –
responsabilidade acabou, então, por provocar certo declínio
aumentam a necessidade de segurança do indivíduo
da culpa na condição de elemento imprescindível à sua
e os encorajam a ser mais exigentes: a reparação
A
ampliação
do
campo
de
abrangência
DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil. Responsabilidade Civil. 10. ed., São Paulo: Saraiva, 1996. v. 7, p. 35.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Noves. Responsabilidade Civil – Aspectos Fundamentais, cap. 3, Quarta Parte, Direito Civil-estudos, Belo Horizonte: Del Rey,
2000, p. 293-316, especialmente p. 294.
31
GHERSI, Carlos Alberto. Teoría general de la reparación de daños. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1997, p. 2.
32
Mencionado por PEREIRA, Caio Mário da Silva, Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 271.
33
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil, op.cit. p. 273.
34
Assim já havia se expressado a autora deste artigo na palestra citada, Tendências atuais da responsabilidade civil: marcos teóricos para o direito do século XXI, passim.
35
JORDAIN, Patrice. Les principes de la responsabilité civile. 5. ed. Paris: Éditions Dalloz, 2000, p. 10. (Coletion ‘Connaissance du droit’)
29
30
0
Responsabilidade Pressuposta
dos danos torna-se um direito. Nesse contexto, a
culpa para o risco. A esse respeito, informa Carlos Roberto
compaixão social que até então favorecia, sobretudo,
Gonçalves38 que a teoria do risco procura demonstrar que
os responsáveis de suas próprias culpas volta-se,
“toda pessoa que exerce alguma atividade cria risco de dano
repentinamente, ao lado das vítimas. A culpa, como
para terceiro. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua
fundamento único da responsabilidade civil, parece
conduta seja isenta de culpa”. A corrente de pensamento
ser, então, um vestuário bem apertado para indenizar
conhecida como objetivista, que teve Saleilles como um de
todas as vítimas. Quando a função indenizatória do
seus maiores criadores, procurou desvincular a obrigação de
instituto se afirma, os fundamentos espiritualista
ressarcir o dano da idéia de culpa’39.
e individualista que o código civil havia lhe dado
‘Segundo essa teoria, todo risco deve ser garantido,
parecem cada vez mais inadequados. A partir de
visando à proteção da pessoa humana. De um modo
1870, alguns autores, preparando a evolução seguinte,
particular, essa proteção jurídica buscou alcançar, primeiro, os
recomendaram “deixar a culpa à margem” e substituí-
trabalhadores e as vítimas de acidentes do trabalho, para livrá-
la pela idéia de risco. Em seguida, as pessoas não
seriam mais somente responsáveis por suas culpas,
mas também pela realização dos riscos que criaram.
Em vez de se ligar ao comportamento do sujeito
responsável, o direito se orientava com o objeto da
responsabilidade civil: a reparação dos danos36.”
las da insegurança material decorrente. A indenização, nesse
caso, decorreria não da culpa, mas se assentaria no conceito
material o fato danoso. Trata-se exatamente da evolução da
responsabilidade em razão do seu fundamento, vale dizer, em
razão pela qual alguém passa a ser titular do dever de indenizar.
Os autores são unânimes ao se referirem à insuficiência da culpa
‘A responsabilidade objetiva, embasada na teoria do
como origem do dever de indenizar, descrevendo, todos eles,
risco, advoga exatamente nesse sentido. Quer dizer que todo
as mudanças dos tempos, suas novas exigências, a tecnização
dano é indenizável e deve ser reparado por quem a ele se liga
crescente, o uso cada vez maior de máquinas e as conseqüências
por um nexo de causalidade, independentemente da culpa. A
danosas daí geradas, como as fundamentais razões dessa
teoria do risco – que não anulou a teoria da culpa, mas convive
reformulação da teoria da responsabilidade civil, humanizando
com ela – cobre inúmeras circunstâncias geradas pela atividade
os seus contornos’40. Maria Helena Diniz41 , a respeito dessa
normalmente desenvolvida pelo autor do dano, mas que, a par
reformulação, assim se refere:
dessa normalidade, representa, de alguma forma, risco para o
direito de terceiros.
“[...] representa uma objetivação da responsabilidade,
sob a idéia de que todo risco deve ser garantido,
“Campo fértil aos debates e litígios, a responsabilidade
visando à proteção jurídica à pessoa humana, em
civil tem procurado libertar-se do conceito tradicional
particular aos trabalhadores e às vítimas de acidentes,
de culpa. Esta é, às vezes, constritora e embaraça com
contra a insegurança material, e todo dano deve ter um
freqüência a expansão da solidariedade humana.
responsável. A noção de risco prescinde da prova da
A vítima não consegue, muitas vezes, vencer a
culpa do lesante, contentando-se com a simples causa
barreira processual e não logra convencer a Justiça
externa, bastando a prova de que o evento decorreu
dos extremos da imputabilidade do agente. Desta
do exercício da atividade, para que o prejuízo por ela
sorte, continuando, embora, vítima, não logra
criado seja indenizado.”
o ressarcimento. É verdade que a tendência é o
alargamento do conceito de culpa e a conseqüente
As causas da evolução objetiva podem ser agrupadas
ampliação do campo da responsabilidade civil ou do
em três blocos de justificativas, segundo a proposta de Patrice
efeito indenizatório37.”
Jourdain42, referindo-se o primeiro deles à transformação
radical pela qual passou a sociedade ao longo do século XX,
Como se depende das palavras de Caio Mário da Silva
como, por exemplo, a revolução industrial e a mecanização
Pereira, a evolução histórica sobre a responsabilidade civil
das atividades humanas, responsáveis pela multiplicação e pelo
processou-se de sorte a deslocar a fundamentação exclusiva da
agravamento dos danos. A evolução técnica corre em paralelo à
JOURDAN, Patrice. Les príncipes de la responsabilité civile. op. cit. passim. [tradução livre].
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, passim.
38
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 1995, passim.
39
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade civil – Aspectos Fundamentais, Op. cit. passim.
40
Idem, ibdem.
41
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 1996. v. 7.
42
JOURDAN, Patrice. Les príncipes de la responsabilité civile, op. cit. p. 10.
36
37
1
Artigo 05
geração dos chamados riscos tecnológicos e faz nascer a noção
“essa jurisprudência, de certo modo tumultuada e que
jurídica de dano acidental que, conforme Patrice Jourdain, é o
se formou à base de vários e subseqüentes julgados, se
“dano essencialmente inesperado correspondente a nada mais,
foi afirmando sempre na mesma direção, embora sem
nada menos, que à realização de um risco nascido da atividade
muita nitidez quanto aos pormenores, até que outro
humana”43 .
marco se fixou [...] .”44
Esse autor francês, professor da Université PanthéonSorbonne – Paris I, em sua obra sintética, mas extremamente
Os partidários da teoria do risco, como Saleilles e Joserand,
proveitosa no que diz respeito à recuperação dos passos dessa
viram nessa decisão de 1896 um avanço significativo e
evolução – mormente no assento de seu país, mas que, afinal,
sintomático em prol da teoria do risco, mas, por outra parte,
desenha o que ocorreu na maior parte dos países de sistema
os partidários da teoria da culpa, como os irmãos Mazeaud,
jurídico romano-germânico – registra que foi a jurisprudência,
inicialmente, que desencade ou esse movimento de expansão
da responsabilidade civil, ao admitir que ela se estabelecesse
independentemente da culpa do responsável. Já em 1885, na
não demonstraram tanto beneplácito a favor da sentença,
continuando a ver, nela, os indícios da presença da culpa.
Somente 35 anos depois, em 13 de fevereiro de 1930,
França, a Corte Suprema concedia, independentemente da
é que outra decisão solene da Corte de Cassation – que ficou
culpa provada, às vítimas de danos causados por animais o
conhecida pelo nome de l’arrêt Jand’Heur – confirmou a
direito à reparação, restringindo muito a possibilidade de
proposição, no caso dos acidentes de automóvel, dessa marcha
exoneração do dono ou do guarda do animal, excepcionando-
irresistível em direção à noção de garantia social, abandonando,
se essa hipótese para praticamente apenas os casos de caso
na interpretação do art. 1384, 1a alínea do Código Civil
fortuito ou de força maior. A decisão Teffaine, de 1896, e a
francês, a expressão présomption de faute [déjà inconciliable
decisão Jand’heur, de 1930, a respeito dos vícios ocultos da
avec la jurisprudence]45 por présomption de responsabilité,
coisa e a respeito da responsabilidade pela guarda da coisa,
independentemente da culpa.
respectivamente, a segunda generalizando a solução pela
presunção da culpa que a primeira implantou, são mencionadas
pelo autor em comento como precedentes importantes dessa
trajetória de objetivação da responsabilidade civil, na primeira
metade do século passado, na França.
A primeira decisão fundamental da Corte de
Cassation foi dada em 16 de junho de 1896 e ficou conhecida,
então, pelo nome de l’arrêt Teffaine. Dizia respeito à morte
acidental de um operário, em decorrência de uma explosão num
rebocador a vapor. A Corte Suprema desencadeou, à época,
um novo princípio segundo o qual a pessoa era responsável
pela coisa que lhe pertencia. O proprietário do rebocador não
Em seguida, o autor refere-se à construção legislativa
francesa, que já dava mostras de cuidado desde o final do
século XIX, criando os regimes especiais de responsabilidade
sem culpa do responsável. São leis sobre os acidentes de
trabalho ou ligadas à utilização de coisas perigosas, como
aeronaves, teleféricos, energia nuclear ou relativas a transporte
e acidentes de tráfego ou a produtos defeituosos ou no domínio
dos danos ao meio ambiente e, ainda, no que diz respeito à
responsabilidade por atos médicos e por riscos terapêuticos.
Mais de cem anos de proliferação legislativa marcam essa
evolução, na França.
pôde, portanto, exonerar-se da responsabilidade, provando
a culpa do construtor do rebocador, e indenizou a viúva e
4. O passo além que tem sido intentado pelos doutrinadores
as crianças do operário morto. Essa decisão fundamental
contemporâneos e a admissão de um fundamento distinto a
costuma ser referida como o primeiro passo em direção, pela
justificar a responsabilidade civil, hoje
via jurisprudencial francesa, da noção de risco social, porque
A objetivação da responsabilidade civil em face das
absorveu a idéia de que, com o progresso técnico e o avanço
atividades que, embora lícitas, sejam perigosas – e, por isso
de enigmas perigosos, o exclusivo campo de atuação da culpa
mesmo, geradoras de prejuízos ou danos – é uma realidade
individual estava diminuindo.
em países de perfis legislativos derivados do sistema romano-
Silvio Rodrigues informa que esse percurso não foi
fácil nem simples, e que
germânico e do sistema de common law. No Brasil, igualmente,
o assunto já tem conformação doutrinária bem assentada,
Idem, ibdem. [tradução livre].
RODRIGUES, Silvio. Direito civil. v. 4. – Responsabilidade civil, 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. Atualizada com o novo Código Civil (Lei no 10.406, de 20/1/2002).
Conforme SAVATIER, Le risque general du fait des coses, mencionado por SILVIO RODRIGUES, op. cit.
43
44
45
2
Responsabilidade Pressuposta
especialmente em face da obra de Carlos Alberto Bittar46 , assim
responsabilização civil, neste momento, daquele padrão de
como já se insculpe, no direito positivado, a previsão legal de
fundamentação ou daquela tábua de pressupostos ou daquele
determinados casos de imputação do dever de indenizar como
denominador comum (aos quais já se referiu na abertura deste
obrigação legal, quer dizer, independentemente de culpa do
estudo), mas que fossem capazes, enfim, de se expressarem
imputado ou de quem quer que seja, como, por exemplo, (e
como fonte ou matriz, como fundamento ou causa, do eterno
são bem parcos os exemplos), a Lei 6.453/77, que estabelece
dever de indenizar o dano que alguém venha a sofrer.
a responsabilidade civil do executor de atividade nuclear,
Essa tendência do pensamento jurídico contempo-
independente da existência de culpa, pela reparação de dano
râneo já é observada na reflexão cuidadosa de doutrinadores
causado por acidente nuclear47.
estrangeiros, aqui e ali, e no âmago de outros sistemas ociden-
No entanto, se é verdade que houve um tempo em
tais de direito.
que a insuficiência da culpa como critério norteador ou como
Entre os doutrinadores estrangeiros contemporâneos,
fundamento certeiro do dever de indenizar se fez claramente
destaca-se seguramente Genéviéve Schamps, excepcional
sentir, é bem verdade, outrossim, que apenas aguardar a
jurista belga da contemporaneidade49 , que logrou avanços em
previsão legal, caso a caso, para a conformação do viés objetivo
sua pesquisa, especialmente no que respeita aos contornos do
da responsabilização é circunstância que tantas vezes tem
direito europeu – italiano, neerlandês anglo-saxão, sempre em
atado a percuciência do direito, tem engessado seu exercício
correspondência com os direitos belga e francês, definindo bem
em face do dano concretizado e tem, insuportavelmente,
o percurso e afinando suas conclusões à volta do padrão que
deixado sem resultado a situação prejudicial enfrentada pela
preferiu denominar mise en danger50. Ela produziu um sistema
vítima de danos. Pensar em tal circunstância faz voltar à tona
de estudo do direito estrangeiro, comparando-o ao direito
do pensamento contemporâneo a reflexão tão lúcida do jurista
belga, especialmente, e buscando a verificação da existência, ou
do século passado que inspira as conclusões deste tempo:
não, desse padrão de caracterização de determinadas situações
Fosse possível traçar normas jurídicas perfeitas, que
delimitassem, dentro de contornos inconfundíveis,
as prerrogativas conferidas aos indivíduos; se a
inteligência e a sabedoria humanas pudessem enfeixar
nos preceitos legais as diretrizes a seguir no exercício
dos direitos, a solução dos conflitos jurídicos seria,
sem dúvida, tarefa menos árdua e não caberia à
doutrina e à jurisprudência o papel tão preeminente,
que ora desempenham, na solução do problema da
responsabilidade civil.48
que expõem as pessoas a determinado risco, desnudando e
fragilizando as vertentes da exclusão de responsabilidades e
buscando apresentar, isso sim, os responsáveis pela ocorrência
de danos absolutamente ressarcíveis. Ela escreveu, ao longo de
seu excelente estudo, mas também em suas conclusões:
Muitos mecanismos podem melhorar a indenização
das vítimas de mise en danger, de certa intensidade,
notadamente o seguro direto, a previdência social
ou a responsabilidade sem culpa. No entanto, não
se tratava de focalizar as vantagens e inconvenientes
de cada um, mas de determinar um conceito de
É o tempo de iniciar um desvendar – quem sabe se o
mise en danger, justificando uma responsabilidade
desiderato não é precoce ou frágil demais, ainda – de rumos
civil, derrogando o direito comum. Os dramas que
novos, em busca de se tentar imaginar, para o sistema da
se produziram a partir do fim do século passado até
BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade civil nas atividades nucleares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, 242 p.
Lei 6453/77, art. 4o – Será exclusiva do operador da instalação nuclear, nos termos desta Lei, independentemente da existência de culpa, a responsabilidade civil pela
reparação de dano nuclear causado por acidente nuclear: I – ocorrido na instalação nuclear; II – provocado por material nuclear procedente de instalação nuclear, quando
o acidente ocorrer: a) antes que o operador da instalação nuclear a que se destina tenha assumido, por contrato escrito, a responsabilidade por acidentes nucleares
causados pelo material; b) na falta de contrato, antes que o operador da outra instalação nuclear haja assumido efetivamente o encargo do material; III – provocado
por material nuclear enviado à instalação nuclear, quando o acidente ocorrer: a) depois que a responsabilidade por acidente provocado pelo material lhe houver sido
transferida, por contrato escrito, pelo operador da outra instalação nuclear; b) na falta de contrato, depois que o operador da instalação nuclear houver assumido
efetivamente o encargo do material a ele enviado.
48
LIMA, Alvino. Culpa e Risco, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1960. p. 218.
49
SCHAMPS Genéviéve. La mise en danger: un concept fondateur d’ un príncipe general de responsabilité (analyse de droit compare). Bruxelas: Bruylant e Paris: L.G.D.J.;
1998 – 1140 p. 5. Esta obra situa-se, no contexto geral do arcabouço bibliográfico utilizado para a minha tese de livre-docência na Universidade de São Paulo, em 2003,
como obra de fundamental importância. Depois que logrei suficientemente entender a pesquisa, a intenção e as conclusões de Mme. Schamps, tive o prazer de ser recebida
por ela, em Bruxelas (dez. 2001) para uma preambular conferência de identidade de pesquisas, em dez. 2001. Desta minha tese de livre-docência resultou, enfim, a obra
Responsabilidade pressuposta, publicada pela Editora Del Rey, da qual este artigo é rigorosamente um extrato.
50
Mise en danger: o verbo mettre, no francês, significa pôr, colocar. Seu particípio passado é mis-mise, no entanto, quando vem acompanhado de um complemento, passa
a ter um sentido de expressão idiomática, indicando uma ação. Ex. mise en scène = encenar uma peça de teatro, significando a organização material do espetáculo, o
script dos atores, a decoração, enfim, uma situação fática nova. Vale dizer, significa uma ação rápida que passa a uma situação ou estado novo. É o ato de pôr, porém,
mudando de posição, em relação à anterior. Portanto, mise en danger pode ser traduzido como uma ação de pôr em perigo ou em risco (danger), como indicativo de
perigo ou de atenção. Neste artigo, contudo, prosseguirei usando a expressão em língua francesa (mise en danger), por entender que permanece bem melhor o sentido do
que se quer dizer.
46
47
3
Artigo 05
nossos dias, em razão das novas mises en danger,
A respeito desse art. 2.050 e dos artigos dele avizinha-
ligadas ao progresso da ciência e da tecnologia, deram
dos (especialmente os posteriores), certo segmento doutrinário
nascimento a movimentos tendentes à melhoria da
(minoritário, infelizmente) entendeu que as hipóteses legisla-
proteção da vida humana, valor essencial prevalente
das eram alcançadas pelo mesmo espírito da mise en danger
sobre a liberdade individual. Esse cuidado se reflete
que organizou, no art. 2.050, uma responsabilidade por expo-
igualmente na concepção atual da responsabilidade
sição a perigo, cujo alcance é tão geral que equivale, quanto
civil em que a ênfase está muito mais sobre o papel
à importância e em termos de efetiva abrangência, à própria
de prevenção e de compensação dos danos, mais que
responsabilidade por culpa prevista no art. 2.043, inaugural,
sobre aquele da sanção de um comportamento, em
naquele Código, do sistema de responsabilidade civil. Mas en-
um contexto de generalização de seguro.
tendeu esse segmento doutrinário ainda mais longe, por considerar que nem mesmo seria preciso esperar que outras leis
Segundo se pode apurar da visão de Genèviève
específicas viessem regular certas mises en danger, para que se
Schamps, afinal, a dificuldade de se identificar uma mise en
as pudesse invocar, e que aquelas normas expressamente cita-
danger como elemento constitutivo primordial do exercício
das pelo legislador seriam de aplicação específica52.
de uma atividade perigosa pode residir no estabelecimento do
A maior crítica que receberam os partidários dessa
critério que desenhará um limiar de periculosidade, isso é certo.
opinião diz respeito ao fato de defenderem que, se houvesse
Mas também parece ser seguro afirmar que a definição
mesmo um critério geral e unitário no bojo do art. 2.050,
desse limite e a fixação desse potencial de perigo é que poderão
isso seria despropositado, tendo em vista a sobreposição das
muito bem servir de pano de fundo para se alcançar, no futuro,
demais normas.
um padrão de caracterização das circunstâncias prejudiciais
Outro
segmento
doutrinário
entendeu
que
o
que justifiquem a imputação de um dever de indenizar, além
art. 2.050 conteria simplesmente uma importante função re-
do sistema subjetivo e além do sistema de prefixações objetivas
sidual, o que outorgaria ao dispositivo legal a potencialidade
de responsabilidades, tendo em vista a impossibilidade de se
de reger toda a situação nova que não se relacionasse espe-
eliminar, em todas as hipóteses consideradas, o perigo, por
cificamente aos arts. 2.051 a 2.054, distanciando-se completa-
meio da adoção das medidas de precaução razoáveis.
mente da regência da responsabilidade por culpa, referente ao
A esse nível de otimização, talvez, seja possível chegar
art. 2.043. Essa posição de identificação com uma função re-
em tempo nem tão distante, quiçá, de sorte a se obter, enfim,
sidual, no entanto, não foi igualmente aceita pela jurisprudên-
um critério geral de fundamentação do regime objetivo de
cia, que considerou, de outra parte, que o dispositivo
responsabilidade civil, situado além da solução legal casuística, critério esse que visasse a atender mais eficientemente os
organiza uma hipótese particular de responsabilidade
direitos das vítimas de danos, levando em conta, precipuamen-
ligada ao exercício de uma atividade perigosa para
te, os princípios constitucionais da solidariedade social e da
terceiros, que não se sobrepõe às outras, mas coexiste
dignidade humana, e que se portasse, enfim, como um verda-
unicamente com elas.
deiro – e suficientemente abrangente – autocritério de justificação da responsabilização civil na contemporaneidade.
Toda a base de identificação dessa mise en danger,
conforme o recorte que dela faz Genèviève Schamps, se
encontra, primordialmente, no famoso art. 2.050 do Código
Civil italiano de 1942, que dispõe:
Assim foi, por exemplo, que o legislador italiano regulamentou
hipóteses de responsabilização oriundas de mise en danger que
são hipóteses particulares, sem nenhum alcance geral, como a
referente ao domínio automobilístico previsto no art. 2.054.
Certamente, o maior movimento deflagrado acerca de
se identificarem outras hipóteses de ocorrências danosas que
‘qualquer um que cause um dano a outrem no
possam advir de uma mise en danger, no Código Civil italiano,
desempenho de uma atividade perigosa por sua
foi aquele liderado por Trimarchi na década de 60, que concebeu a
natureza, ou pela natureza dos meios adotados, deve
responsabilidade dos comitentes (art. 2.049) e a responsabilidade
repará-lo, se não provar ter adotado todas as medidas
pelo fato das coisas (arts 2.051 e 2.053) como noções fortemente
adequadas para evitá-lo’. (tradução livre)
influenciadas pelas teoria do risco de empresa.
51
Art. 2050 do Código Civil italiano: (Responsabilità per l’esercizio di attività pericolose) – Chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento di un’attività pericolosa, per
sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, e tenuto al risarcimento, se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno.
52
Pensa assim, por exemplo, M. Comporti, que escreveu Esposizione al pericolo e responsabilità civile, já mencionado antes e citado por Geneviève Schamps, La mise en
danger, p. 91, nota 348.
51
4
Responsabilidade Pressuposta
De acordo com essa concepção, a presunção de
culpa cedia um passo a favor da responsabilidade objetiva,
sentido de melhor favorecer o interesse do demandado em não
reparar o dano causado.
cujo denominador comum para essas tais hipóteses seria o
Provavelmente será necessário revisar, reler, reconsiderar
risco de empresa, baseada sobre uma teoria econômica de
sem demora, e em tempo já não tão distante de chegar, aquelas
distribuição de custos e benefícios, condicionando as escolhas
mesmas objeções levantadas ao longo da segunda metade do
de produção.
século que findou, contra a efetiva possibilidade de se fundar,
Pois bem. Os opositores da colocação de um critério,
sobre a noção de mise en danger – ou sobre outra noção que
como o mise en danger, na condição de capaz de sustentar a
se desenhe, a partir dela –, um mecanismo de reparação de
fundamentação de um sistema geral de responsabilização
danos cometidos às vítimas, que não fosse simplesmente um
objetiva (ou dito de outro modo: que a idéia de se apresentar
mecanismo assentado sobre a velha noção de culpa, mas que
a exposição a um perigo como critério geral de justificação do
fosse um tal mecanismo no qual a exposição ao risco pudesse
dever de reparar) argumentam que isso continuaria a reproduzir
representar algo além da mera identificação causal do dano
uma idéia de sanção, uma idéia de comportamento anti-social
e que, por isso, a mise en danger corresponderia, implicitamente,
a uma conduta reprovável. Rebate, vigorosamente, Geneviève
Schamps, argumentando que esse raciocínio é falho e
reparável, apresentando-se, como já se mencionou no início
deste estudo, como verdadeiro critério de imputação da
responsabilidade sem culpa, elevado à categoria de règle à
valeur d’ordonnancement juridique.
Ora, a pretensão de se chegar a ter um regime
passível de crítica, pois, a aplicação desse artigo,
específico de responsabilidade civil derivado da utilização de
pela jurisprudência, volta a submeter a realização da
substâncias perigosas, ou, mais amplamente, de uma mise en
mise en danger prevista por essa disposição a uma
danger, deve-se, sempre, ou às lacunas de lei ou à pesada carga
responsabilidade objetiva .
probatória da culpa ou do vício. Mas parece, mesmo, que,
53
Afinal de contas, seria um absurdo pensar que a
ordem jurídica entendesse que toda hipótese de realização de
uma atividade humana com exposição ao perigo fosse nefasta à
sociedade em princípio e que o banimento de toda a ingerência
perigosa fosse a meta de uma ordem perfeita.
O que se procura, com um sistema aperfeiçoado
se de um lado, vibra a coragem do legislador em estabelecer
ou regras casuísticas específicas ou – quando mais ousado e
corajoso – princípios gerais de imputação de responsabilidade
sem culpa, por outro lado, remanesce à espreita o fantasma da
culpa e de sua quase sempre traumática prova.
Tem sido assim nas legislações que apresentaram
dispositivos “inovadores” até aqui.
de responsabilidade civil, não é, obviamente, evitar todo
O que se quer é, certamente, algo mais aproximado
o perigo, o que seria impraticável, inviável e inimaginável; a
do que produziu o legislador, no direito suíço, que cuidou de
finalidade objetivada seria, isto sim, a diminuição do dano.
introduzir um princípio geral ou, como preferiram denominar,
A partir do momento em que a impossibilidade de evitar o
uma cláusula geral de responsabilidade sem culpa, derivada de
dano é aceita, a disciplina jurídica da responsabilidade civil
uma mise en danger bem definida.
deveria visar à redução do custo social que ele representa, seja
A cláusula geral de responsabilidade por mise en
por meio da adoção de medidas de prevenção, seja porque
danger, estruturada na legislação suíça recebeu um alcance
alguém responderá por ele, por força de uma responsabilidade
assim, bem geral, identificável em extensão e importância
pressuposta, fundada num critério-padrão de imputação.
àquele reconhecido no campo da responsabilidade baseada
A grande questão, em sede da responsabilidade civil
na culpa, admitindo ao intérprete e ao aplicador da lei uma
contemporânea, a se envolver nas dobras do pensamento
flexibilização bastante significativa, no momento de sua
jurídico da pós-modernidade, afinal de contas, parece mesmo
concretização. A cláusula geral apresenta um substrato de
revoltar-se contra as torrentes de construções doutrinárias
risco qualificado54 e só a sua realização justifica a reparação
que visaram, precipuamente, a dar menos à interpretação
dos danos eventualmente ocasionados às vítimas. Esse risco
dos textos legais, no sentido do favorecimento do direito das
qualificado resulta da periculosidade contida numa certa
vítimas, para dar mais a essa interpretação que corresse no
atividade, periculosidade essa que, por si só, seria suficiente
Conf. Geneviève Schamps, La mise en dange: un concept fondateur d’un príncipe general de responsabilité (analyse de droit compare), Bruxelas: Bruylant e Paris: LGDJ,
1998, p.125 , item 137 (tradução livre).
54
Os autores do anteprojeto escolheram uma solução intermediária entre a teoria da causalidade adequada, que é o direito comum e a Schutznormtheorie. Com efeito,
alguns reprovam a primeira de colocar um “prognóstico retrospectivo objetivo” para qualificar de adequado um encadeamento causal. Para eles, a apreciação da causalidade
disfarçaria uma outra atitude que consiste em verificar se o dano é coberto pela norma, justificando a obrigação de reparar. (Geneviève Schamps, op. cit. p. 406, item 225
– tradução livre).
53
5
Artigo 05
para interditar a sua prática, mas, tendo em vista a função
Portanto e a partir desta súmula do que se idealiza
social inerente ao seu desempenho, o privilégio atribuído por
quanto a uma mise en danger, provavelmente seria possível
força da autorização de se realizar a atividade deve estar, então,
retratar o critério buscado para lhe conferir o status de uma
respaldado pela imputação da responsabilidade objetivada
règle de valeur, da seguinte maneira:
que da cláusula deriva, no sentido da reparação dos danos
1)
este critério deve descrever a potencialidade
perigosa das atividades que podem ensejar a
eventualmente causados.
responsabilização pelo viés da mise en danger;
5. Em síntese: qual seria o perfil de uma mise en danger otimizada
2) não deve ser taxativo ou enumerativo, para não
e qual seria, por conseqüência, o perfil do critério que se tem
fechar as portas para futuros danos, ainda não
intentado buscar?
conhecidos;
Segundo a nossa visão e com base em incansável
3) não deve ser tão elástico que acabe por suportar
reflexão acerca do assunto, até aqui, uma mise en danger
(ou por deixar entrar) variáveis que não se
otimizada tenderia a corresponder ao que chamamos de
encaixem na verdadeira potencialidade perigosa
responsabilidade pressuposta e poderiam ser descritos assim
de uma atividade;
4) estabelecido o nexo causal (dano x atividade
os traços principais que ela contém:
1) risco caracterizado (fator qualitativo): é a
potencialidade, contida na atividade, de se realizar
um dano de grave intensidade, potencialidade
essa que não pode ser inteiramente eliminada,
não obstante toda a diligência que tenha sido
razoavelmente levada a cabo, nesse sentido;
2) atividade especificamente perigosa (fator quantitativo): subdivide-se em:
a) probabilidade elevada: corresponde ao caráter
inevitável
do
risco
(não
da
responsável pela reparação (tout court);
5) essa responsabilidade civil deve ter como finalidade
exclusivamente a reparação da vítima, sem
qualquer abertura à exoneração dos responsáveis,
em face de provas liberatórias (assemelhadas às
contraprovas, nas presunções juris tantum);
6) não deve admitir excludente de responsabilidade;
7) pode, eventualmente, admitir o regresso (ação de
regresso), mas que se dará pelas provas de que o
ocorrência
demandado possa fazer nessa outra ação e que
danosa em si, mas do risco da ocorrência). A
demonstrariam a culpa de outrem, contra o qual
impossibilidade de evitar a ocorrência nefasta
perigosa), o executor da atividade é considerado
regressaria.
acentua a periculosidade, fazendo-a superior a
Neste breve estudo, então, intentou-se organizar
qualquer hipótese que pudesse ter sido evitada
um extrato do pensamento contemporâneo acerca da
pela diligência razoável;
indiscutivelmente necessária evolução da responsabilização
b) intensidade elevada: corresponde ao elevado
civil, bem como desenhar a súmula daquilo que a autora tem
índice de ocorrências danosas advindas de
procurado descrever como responsabilidade pressuposta.
certa atividade (as subespécies deste segundo
Renova-se o convite, aos interessados, para a leitura mais
elemento podem, ou não, aparecer juntas; não
detalhada do assunto, por meio da obra referida na nota de
obrigatoriamente).
rodapé preambular deste presente artigo.
A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania
Artigo 06
A Responsabilidade Social das Empresas como
Forma de Efetivação da Cidadania
THE SOCIAL RESPONSABILITIES OF THE COMPANIES AS A MANNER OF
CITIZENSHIP EFFECTUATION
LA RESPONSABILIDAD SOCIAL DE LAS EMPRESAS COMO FORMA DE
AFIRMAR LA CIUDADANIA
Irineu Galeski Hunior*
1. Introdução. 2. O Estado e a Empresa. 2.1. A gênese da empresa – do individualismo exacerbado como foco de crise
estatal. 2.2. O poder de empresa e a submissão estatal. 3. A responsabilidade Social da Empresa. 3.1. O porquê da
responsabilidade social empresarial. 3.2. Breve resenha histórica do pensamento. 4. A responsabilidade social no Brasil.
4.1. Breve resenha histórica do pensamento no Brasil. 4.2. O Tratamento Legislativo Impositivo. 4.3. O tratamento
legislativo de incentivo. 5. Conclusão. 6. Referências.
Resumo
o cumprimento das normas mediante o exercício legítimo da
Com o desenvolvimento das relações sociais, a empresa
violência. Entretanto, antes de impor, deve o Estado fomentar
deixou de ser mero instrumento para a realização individual de
tais condutas, com os instrumentos colocados à disposição, em
sustento e acúmulo e assumiu o papel de ator social, ou seja, é
especial os tributários, dos quais a Lei Rouanet é um exemplo.
lícito afirmar que se tornou uma espécie de instituição ao lado
de outras, como a família e o Estado. Outrossim a interpretação
do fenômeno estatal e empresarial permite a conclusão de que
seus conceitos tradicionais sofreram significativas alterações
por um processo dialético: de um lado, a empresa deixou de
ser fenômeno estritamente privado para assumir obrigações
públicas, num crescente projeto de transferência de serviços
para a iniciativa privada; de outro, no âmbito de direito
Palavras-chave: empresa, função, social, imposição e
incentivo
Abstract
With the development of the social relations, the
company left of being a mere instrument for the individual
accomplishment of sustenance and accumulation and started
to assume a role of social actor, that is, is licit to affirm that it
sistêmico-mundial, os Estados estão sofrendo mitigação em
becomes a kind of institution beside the others, as the family
seu poder soberano ao receber imposições empresariais para
and the State. Furthermore, the interpretation of the state
adequação de uma agenda mínima de obrigações, sob pena
and empresarial phenomenon allows the conclusion that its
de sanções econômicas. Diante desse quadro, a empresa é
traditional concepts had suffered significant alterations by a
chamada a cumprir um papel de responsabilidade perante
dialectical process: from one side, the company left of being
terceiros, vale dizer, com aqueles que não mantêm relação
a strict private phenomenon to assume public obligations in
contratual direta com o fenômeno da produção. Isso é
an increasing project of transference of services for the private
possível por meio de normas impositivas, pois, a despeito dos
initiative; and, from another side, in an ambit of systemic-
entendimentos, segundo os quais a Empresa e o Estado estão
world-wide rights, the States are suffering mitigation in its
num mesmo patamar hierárquico de instituição social, este
sovereign power when suffering empresarial impositions for an
ainda tem o diferencial de ostentar o poder de legislar e impor
adequacy of a minimal schedule of obligations, duly warned to
Pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC-PR, Mestrando em Direito Social e Econômico pela PUC-PR, professor da Unicuritiba.
*
7
Artigo 0
suffer economic sanctions. In front of this picture, the company
1. Introdução
is called to fulfill a paper of responsibility before the others,
A empresa, de forma introdutória, pode ser
matter to say, with those that don’t keep directly contractual
conceituada como atividade racional destinada a abranger a
relationship referring to the phenomenon of the production:
relação de mercancia e indústria, que é a forma de produção
this is possible through imposing norms, so, in spite of the
com fins de exceder à necessidade do produtor, objetivando a
agreements, according to which the Company and the State
criação de ativos para a troca.
are in the same hierarchic platform of social institution, this
Ocorre que, com o desenvolvimento das relações
still has the differential to flaunt the power to legislate and to
sociais, a empresa deixou de ser mero instrumento para a
impose the fulfillment of the norms by means of the legitimate
exercise of the violence. However, before imposing, the State
must foment such behaviors, with the instruments placed to
the arrangement, in special, the tributaries, of which the Law
Rouanet is an example.
realização individual de sustento e acúmulo e assumiu papel de
ator social, ou seja, é lícito afirmar que se tornou uma espécie
de instituição ao lado de outras, como a família e o Estado.
Aliás, é possível afirmar ainda que, em certo contexto,
a situação que hoje se visualiza é de que a empresa está
vencendo o poder tradicional dos Estados, quando passa a
Words-key: company, function, social, imposition and
submeter a soberania, especialmente na vertente de criação
incentive
e manutenção dos direitos, com exigências passíveis de serem
impostas com a coação do poder econômico.
Resumen
Nesse processo de tonificação, veio sendo chamada
Con el desarrollo de las relaciones sociales, la empresa
a empresa ao papel da responsabilidade para com o terceiro,
dejó de ser un mero instrumento para la realización individual
vale dizer, com aquele que não mantém relação contratual
de mantenimiento y acumulación, y pasó a asumir un papel de
direta em relação ao fenômeno da produção, conhecido como
actuación social, es decir, es lícito afirmar que se volvió una
stakeholder, com vias a suprir necessidades antes cumpridas
especie de institución al lado de otras, como la familia y el Estado.
pelo Estado, numa contextualização peculiar ao século XX,
Otrosí, la interpretación del fenómeno estatal y empresarial
própria do pós-welfare state.
permite la conclusión de que sus conceptos tradicionales
sufrieron significativas alteraciones por un proceso dialéctico:
por un lado, la empresa dejó de ser un fenómeno estrictamente
privado para asumir obligaciones públicas en un creciente
proyecto de transferencia de servicios a la iniciativa privada;
y, por otro lado, en un ámbito de derecho sistémico mundial,
los Estados están sufriendo mitigación en su poder soberano
debido a las imposiciones empresariales para la adecuación de
una agenda mínima de obligaciones, bajo pena de tener que
enfrentar sanciones económicas. Ante dicho panorama, la
Portanto, o objetivo do presente trabalho é tratar
da institucionalização do papel da empresa, que passou de
atividade organizada com mero fim de sustento egoístico para
um espaço de realização de necessidades sociais. Em seguida,
buscar-se-á contextualizar o fenômeno no Brasil, apresentando,
de um lado, os esboços de uma imposição de conduta e, de
outro, formas de incentivo estatal para a adoção de condutas
socialmente responsáveis.
2. O Estado e a Empresa
empresa es incitada a cumplir un papel de responsabilidad ante
2.1 A gênese da empresa – do individualismo exacerbado como
terceros, es válido aclararlo, con aquellos que no mantienen
foco de crise estatal
vínculo contractual directo relacionado al fenómeno de la
producción. Eso es posible a través de normas impositivas, pues
a pesar de los entendimientos, según los cuales la Empresa y el
Estado están en un mismo nivel jerárquico de institución social,
éste cuenta además con el diferencial de ostentar el poder de
legislar e imponer el cumplimiento de las normas mediante el
ejercicio legítimo de la violencia. Entretanto, antes de imponer,
el Estado debe fomentar tales conductas, con los instrumentos
puestos a disposición, en especial, los tributarios, de los que la
Ley Rouanet es un ejemplo.
De início, válido situar o desenvolvimento histórico
da empresa. Segundo LUX, K. (1993, p. 37), no século XIII,
o filósofo e teólogo São Tomás de Aquino acreditava que a
relação entre trabalhar e ganhar dinheiro visava somente
a atender às necessidades de vivência do indivíduo. Já na
economia moderna, a partir de Adam Smith, a atividade
empresarial é entendida como o refúgio do interesse próprio,
sendo apenas necessário cada indivíduo agir egoisticamente
para o bem-estar coletivo ser atingido.
Frise-se que o conceito de empresa deva ser delimitado
como o exercício racional da produção e circulação das
Palabras-clave: empresa, función social, imposición e
riquezas, guardando tal definição estrita ligação com o sistema
incentivo
de produção capitalista.
8
A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania
WEBER, Max (1980, p. 181) foi o que melhor ex-
a precária situação de existência. Esse é um fim indiscutível
plicou a criação da empresa capitalista, elaborando seu corte
do Estado, defendido até os dias de hoje, como bem observa
epistemológico ao explicar a relação ética protestante de não
CASTRO, Belmiro Valverde Jobim (2006, p. 14):
manter postura contemplativa da vida para, ao revés disso,
adotar uma conduta regrada e racional com objetivo de agir
É preciso sempre ter em mente que o fim último do
correta e permanentemente, o que impôs uma atividade con-
Estado, aquela organização supra-individual dotada
creta e racional na produção dos bens, com o constante desen-
do monopólio da violência legal, é equilibrar os
volvimento e aprimoramento.
interesses e os apetites dos indivíduos e dos grupos
Entretanto, para Max Weber, a despeito de a empresa
que compõem uma sociedade, para que a vida humana
capitalista em seus primórdios guardar ligação com a religião
em associação seja possível. Ao Estado cabe coibir a
protestante, não é correto afirmar que a empresa deixou
violência dos mais fortes contra os mais fracos, dos
de ter uma vertente unicamente individualista. Vale dizer: o
mais organizados contra os menos organizados, para
empresário protestante não tinha a obrigação de voltar sua
evitar que as leis da barbárie prevaleçam ou o processo
atividade para ajudar ao próximo em caráter de filantropia;
legislativo e político seja desmoralizado.
muito pelo contrário, pois o indivíduo perante Deus era
predestinado, de forma que suas ações não reverteriam uma
situação de condenação eterna que já recebia quando do
nascimento.
Dessa forma, deveria apenas guardar um padrão de
comportamento médio, para obter a salvação, caso ele fosse o
escolhido, ou seja, não se exigia o comportamento filantropo,
Voltando ao contexto histórico, naquela época, falar
em atendimento médico fornecido pelo Estado, saneamento
básico, formas de subsistência alimentícia fornecida diretamente pelo Estado, sistema de previdência era incongruente
com o papel estatal, que foi criado para o indivíduo poder provocar a aplicação da força racional contra seu próximo. Em
mas apenas que cumprisse seu sustento dentro de um padrão
contraprestação a isso, eram recolhidos os tributos gerados
médio de ética individual.
pela atividade empresarial, que se foi racionalizando com o
Assim, conclui-se que a atividade empresarial surgiu
tempo, como visto anteriormente.
unicamente como um dos vértices da divisão social do tra-
Com o decorrer do tempo, e a profissionalização
balho para cada qual contribuir individualmente para o seu
da atividade empresarial, a balança do sustento individual
sustento.
desequilibrou-se. Se, antes dos meios racionais, cada qual
Verifica-se então que com o advento do Estado
produzia para seu sustento, de forma que o capital acumulado
Moderno, a empresa capitalista era apenas manifestação
era x, a partir da profissionalização, a produção passou a ser
da atividade econômica dos indivíduos. Numa gradação de
x multiplicado pelo quanto mais poderia ser produzido por
importância, estava abaixo do poder estatal e quiçá ao lado
máquinas que não necessitavam de descanso e alimentação.
dos indivíduos, a partir do momento que teve sua inserção no
O pequeno produtor precisou submeter sua força de trabalho
plano jurídico, com a contemplação de personalidade jurídica
para obter o próprio sustento, pois não podia concorrer com o
advinda de uma teoria ficcional para a criação da pessoa
empresário profissional.
jurídica em contraposição à pessoa natural, até então o único
sujeito de direito.
Ostentando personalidade jurídica, a empresa passou
Em resumo: o empreendedor passou a acumular mais
do que antes e o antigo produtor, agora trabalhador, submeterse à exploração.
a ser titular de direitos e obrigações. Estas se limitavam
Obviamente, se antes uma incipiente “economia
basicamente ao campo privado, vale dizer, relacionadas ao
de mercado” regularizava a condição dos indivíduos, não
contrato, sendo de ínfima proporção as obrigações no campo
propiciando acúmulo individual – o que inviabilizava a
público, em geral relacionadas ao pagamento de tributos.
submissão –, com esse desnivelamento, passou a ser necessária
Improvável se afirmar que a empresa ostentasse obrigações
a intervenção do Estado para proporcionar um mínimo de
públicas com quem não mantivesse relação contratual.
assistência que possibilitasse a existência do afligido. Essa
O Estado era o ponto central de poder, pois, antes da
conduta também interessava à empresa, pois sem dispor do
era dos capitais, ele conseguia manter de forma monopolizada
capital empregado para a manutenção e sobrevivência, garantia
tudo o que interessava ao cidadão, basicamente obter proteção
a mão-de-obra que passou a ser mantida pelo Estado, com a
do próximo. A segurança era o foco da relação cidadão-
utilização da poupança comum dos tributos. Estava desenhada
Estado, considerando que o indivíduo estava acostumado com
a figura do welfare state.
9
Artigo 0
A observação desse modelo permite concluir que
Na concepção do autor, o direito reside nos seis
seu equilíbrio é delicado, por estar baseado em certo ponto
espaços estruturais de forma específica para cada um deles,
de estagnação de poder econômico, que estava dividido
assim como cada qual possui uma forma de poder e uma forma
paritariamente entre Estado e empresa. Entretanto, com o
de epistemologia. Conceitua o direito com sendo (SANTOS,
desenvolvimento desta, multiplicando o número de indivíduos
2000, p. 272):
submissos, o Estado passou a ter mais gasto, ou seja, a
balança econômica lucro versus tributo pendeu negativamente
adopto aqui uma concepção ampla de direito: o
contra a estrutura estatal, enquanto a empresa resultou mais
direito é um corpo de procedimentos regularizados
fortalecida.
e de padrões normativos, considerados justificáveis
num dado grupo social, que contribui para a criação e
A análise lógico-matemática da situação importou
prevenção de litígios e para a sua resolução através de
uma conclusão fatalista: o Estado, como forma de democratizar
um discurso argumentativo, articulado com a ameaça
o acesso aos meios de existência, estava fadado à morte, e
de força. Dizem-se justificáveis os procedimentos
o mercado era o novo espaço para manifestação da nova
e os padrões normativos com base nos quais se
instituição que vinha a dominar a sociedade: a empresa.
fundamentam pretensões contraditórias e se geram
Vê-se, portanto, que, de atividade empírica e individual
litígios susceptíveis de serem resolvidos por terceiras
para satisfação pessoal das necessidades, a empresa ganhou
partes não directamente envolvidas neles (juízes,
existência distinta das pessoas naturais que a compunham,
árbitros, mediadores, negociadores, facilitadores,
começou a agregar capital na medida em que a produção
etc.).
do capital pôde ser multiplicada pelo trabalho mecânico e
submeteu aos cuidados do Estado aquele que foi obrigado a
Dentre os tipos de direito sugeridos pelo autor,
vender o trabalho, mas foi posto ao largo da apropriação da
assume especial importância aquele chamado sistêmico, que é
propriedade.
(SANTOS, 2000, p. 273):
Importante, entretanto, fazer breve esclarecimento:
não se defende uma posição maniqueísta neste trabalho. A
o direito sistêmico é a forma de direito do espaço
despeito das colocações feitas, não se afirma que a empresa é
mundial, o conjunto de regras e padrões normativos
o instrumento da dominação do mal e o Estado, o benfeitor
que organizam a hierarquia centro/periferia e as
sobrecarregado. Trata-se apenas da observação do contexto.
relações entre os Estados-nação no sistema interestatal.
2.2 O poder de empresa e a submissão estatal
Pois bem... Apresentado esse contexto, é fato que
Há mais: não bastando a situação de crise econômica
hoje, nas relações comerciais internacionais, alguns países
do Estado, é possível afirmar que o fenômeno empresarial
vêm adotando como diferencial de custo a vilipendiação
massificado provoca um questionamento da própria soberania
de direitos humanos, em regra relacionados ao direito do
estatal algumas vezes, felizmente.
trabalho, ou seja, menos gasto com encargos e garantias aos
Para melhor contextualizar esse processo, vale adotar
a lição de SANTOS, Boaventura de Souza (2000, p. 272), para
trabalhadores representaria maior competitividade no mercado
internacional.
o qual as sociedades capitalistas apresentam basicamente seis
Assim, uma empresa situada num país que adota um
modos de produção que, por sua vez, apresentam seis formas
padrão mínimo de direitos estaria em desvantagem em relação
de direito, seis formas de poder e seis formas de conhecimento
a outra do mesmo ramo que atua num Estado que não o prevê
epistemológico. No que toca ao direito, afirma que a regulação
ou garante as mesmas garantias.
social não tem fonte única, mas sim o efeito global da com-
Sobre o tema, bem explana AMARAL JUNIOR,
binação de diferentes formas de direito e dos respectivos mo-
Alberto do (1999, p. 179), para quem a ligação do comércio
dos de produção. São seis os espaços estruturais que o autor
internacional e dos direitos humanos estaria justamente na
entende existentes: doméstico, da produção, de mercado, da
questão das vantagens competitivas de Estados que não
comunidade, da cidadania e mundial.
cumpririam uma agenda mínima de direitos e, com isso,
Afirma que o poder do Estado, o direito do Estado e o
obteriam maior margem em sua balança de exportação, prática
conhecimento científico têm sua importância, mas não podem
chamada pelos EUA e pela Comunidade Européia de dumping
ser superestimados diante da complexa realidade.
social.
70
A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania
Afirma que, contra tal prática, foi criada a chamada
sobre determinado território.
cláusula social, que seria uma série de observações a serem
seguidas pelos países da comunidade internacional, com
3. A Responsabilidade Social da Empresa
vistas a não tornar a exploração do trabalho como modo
3.1 O porquê da responsabilidade social empresarial
de competitividade desleal. Em suas palavras (AMARAL
JUNIOR, 1999, p. 179):
Conforme visto, em algumas hipóteses, como a
cláusula social, felizmente o poder de empresa promove
a melhoria das condições de desenvolvimento humano.
na esfera internacional, os benefícios oriundos da
Então, com esse crescer de importância, surge o discurso
liberdade de comércio pressupõem a ordenação do
aparentemente contraditório (discurso liberal-individualista)
mercado global por meio de marcos jurídicos insti-
de que a empresa deva cumprir uma função social em vias de
tucionais, acordados em negociações multilaterais,
substituir a atividade estatal. Contraditório porque a empresa
que garantam tanto a previsibilidade de expectativas
antes de tudo é apenas atividade para o empreendedor subsistir
dos agentes econômicos como a solução de conflitos
de forma pessoal. Em seus primórdios, não guardava relação
entre as partes. O sistema regulatório assim criado
com filantropia.
deve especificar o domínio do permitido, bem como
Não obstante isso, no momento em que o interesse
as condutas nocivas ao comércio internacional. (...)
do indivíduo deixou de ser a segurança física – já conquistada
o vínculo entre direitos humanos e comércio interna-
com a sofisticação dos aparatos jurídico-coercitivos para ser
cional residiria na ligação cada vez mais perceptível
a realização econômica e a empresa passou a ser a titular de
entre as vantagens comparativas em matéria comer-
maior domínio econômico, ela deixou de ser mera coadjuvante
cial e as discrepâncias de regimes trabalhistas entre
na gradação hierárquica dos sujeitos sociais, para assumir
os países, muitas das quais resultam da violação de
papel de instituição ao lado do Estado.
direitos constantes de tratados e convenções internacionais. (...) o tema da cláusula social como ficou
conhecida nas discussões internacionais a associação
entre direitos trabalhistas e comércio envolve pelo
menos quatro dimensões principais: a) a preocupação
com as práticas desleais de comércio; b) a busca de
soluções que reduzam os níveis de desemprego nas
Sobre esse contexto histórico, explana muito bem
JUSTEN FILHO, Marçal (1998, p. 109):
O Estado Nacional vai reduzindo progressivamente
sua importância, em virtude dos mais variados
fatores.
De
um
ponto
de
vista
estritamente
econômico, o Estado Nacional não dispõe mais de
recursos suficientes para enfrentar todas as tarefas
economias que sofrem as conseqüências do processo
que pretendeu assumir. Mais ainda, constatou-se
de globalização; c) a expansão do desconforto ético
que a utilização dos recursos estatais tende a ser
e moral com a violação dos direitos humanos; d) o
ineficiente: quanto mais intensas e amplas as funções
temor de que tais argumentos venham a favorecer o
atribuídas ao Estado, tanto maior o desperdício de
protecionismo, afetando as exportações dos países em
recursos verificado. (...) A empresa é o instrumento
desenvolvimento.
fundamental para a realização dos objetivos contidos
Independentemente da motivação da cláusula social,
seja ela ética seja protecionista, observa-se que se trata de
uma imposição econômica do sistema empresarial dos países
ditos centrais, para que os periféricos adotarem uma agenda
mínima de garantias sociais para seu acervo laboral, sob pena
de sanções políticas e econômicas.
Portanto a cláusula social, dentro da teorização de
no art. 3o da CF/88. Essa afirmativa é tanto mais
afirmativa quanto mais se consagram as concepções
neoliberais. (...) a atividade empresarial passou a ser
uma espécie de sucedâneo da atividade estatal na
implementação de certos objetivos fundamentais, de
interesse coletivo. A ampliação da margem de atuação
e o incremento da relevância da empresa modificaram
seu perfil e suas responsabilidades.
Boaventura de Souza Santos, nada mais é que um instrumento
empresarial de coerção no campo do sistema do direito
Alerte-se que a empresa passou a concorrer de tal
sistêmico-mundial, cuja marca é submeter a autonomia
forma com o Estado que outrora algo impensável, como a
legislativa dos Estados Nacionais, subvertendo o próprio
privatização dos serviços públicos, passou a ser o discurso
conceito estatal, que sempre foi baseado no domínio soberano
obrigatório, inclusive como imposição pelos novos sujeitos de-
71
Artigo 0
tentores de capital que são as instituições financeiras privadas
Justiça americana do caso de Henry Ford, presidente e acionis-
de caráter supranacional como o Banco Mundial.
ta majoritário da Ford Motor Company, e seu grupo de acio-
Nesse contexto, passou-se então a falar em
responsabilidade social das empresas, mais como forma de
nistas liderado por John e Horace Dodge, que contestavam a
idéia de Ford.
solução extra-estatal de resolução de necessidades do que
Em 1916, argumentando a realização de objetivos
como discurso ético de comportamento, apesar de alguns
sociais, Ford decidiu não distribuir parte dos dividendos aos
doutrinadores tratarem do tema ainda de forma aparentemente
acionistas e investiu na capacidade de produção, no aumento de
ingênua, como, por exemplo, BENEDICTO, G. C. de (1997,
salários e em um fundo de reserva para a diminuição esperada
p. 76), que afirma:
de receitas, em virtude da redução dos preços dos carros. A
Suprema Corte de Michigan decidiu a favor dos Dodges,
toda empresa tem uma responsabilidade social. É
entendendo que as corporações existem para o benefício de
seu dever pensar no bem-estar da sociedade, e não
seus acionistas e que os diretores precisam garantir o lucro,
apenas no lucro. A preocupação com o social passou
não podendo usá-lo para outros fins. Assim, entendeu-se que
a ser até uma questão de sobrevivência. É uma forma
responsabilidade corporativa e investimento na imagem da
de marketing... A responsabilidade social pode
empresa para atrair consumidores só poderiam ser realizados
ser definida como o dever da empresa de ajudar a
à medida que favorecessem os lucros dos acionistas.
sociedade a atingir seus objetivos. É uma maneira de a
Durante a Segunda Guerra Mundial, a idéia de que
empresa mostrar que não existe apenas para explorar
a empresa deveria responder apenas seus acionistas começou
recursos econômicos e humanos, mas também para
a receber críticas. Sendo os acionistas proprietários passivos
contribuir com o desenvolvimento social. É, em
que abdicavam do controle em prol dos diretores, estes, sim,
síntese, uma espécie de prestação de contas.
poderiam assumir responsabilidades com o seu público.
De outro lado, não se acredita válido o discurso radical
a inserção da empresa na sociedade e suas responsabilidades:
no sentido de não se constatar a realidade, ou seja, de que o
o caso A. P. Smith Manufacturing Company versus seus
sistema estatal como posto está fadado ao fracasso diante do
acionistas, que contestavam a doação de recursos financeiros à
déficit público, como acreditam outros doutrinadores. Veja-se
Universidade de Princeton. Nesse período, a Justiça estabeleceu
o exemplo de COMPARATO, Fábio Konder (1996, p. 42):
a Lei da Filantropia Corporativa, determinando que uma
Outro fato trouxe a público, em 1953, a discussão sobre
corporação poderia promover o desenvolvimento social.
...a tese da função social das empresas apresenta hoje o
Na década de 50 nos Estados Unidos e no
sério risco de servir como mero disfarce retórico para
final da década de 60 na Europa, os meios empresarial e
o abandono, pelo Estado, de toda política social, em
acadêmico discutiram a importância da responsabilidade
homenagem à estabilidade monetária e ao equilíbrio
social promovida pelas ações de seus dirigentes. Durante
das finanças públicas. Quando a Constituição define
a evolução da idéia de responsabilidade social, entretanto,
como objetivo fundamental de nossa República
alguns estudiosos acreditavam que cabia ao governo, igrejas,
“construir uma sociedade livre, justa e solidária”
sindicatos e organizações não-governamentais o suprimento
(art. 3o, I), quando ela declara que a ordem social tem
das necessidades comunitárias por meio de ações sociais
por objetivo a realização do bem-estar e da justiça
organizadas, e não às corporações que, na verdade, precisavam
social (art. 193), ela não está certamente autorizando
satisfazer a seus acionistas.
uma demissão do Estado, como órgão encarregado de
guiar e dirigir a nação em busca de tais finalidades.
Nos anos 60, autores europeus se destacaram apresentando problemas sociais e suas possíveis soluções. E nos Estados Unidos, as empresas já se preocupavam com a questão
Fugindo ao discurso meramente ético-filantrópico e ao
ambiental e em divulgar suas atividades no campo social. A
radical-econômico, a questão é que a empresa tem obrigações
década de 70 trouxe a preocupação com o como e quando a
públicas que devem ser cumpridas diante do contexto atual.
empresa deveria responder por suas obrigações sociais. A demonstração para a sociedade das ações empresariais tornou-se
3.2 Breve resenha histórica do pensamento
extremamente importante.
Segundo ASHLEY, P. A., COUTINHO, R. B. G.,
Com maior participação de autores na questão da
TOMEI, P. A (2000, p. 63), a questão da responsabilidade
responsabilidade social, a década de 90 apresentou a discussão
corporativa tornou-se evidente em 1919, com o julgamento na
sobre os temas ética e moral nas empresas, o que contribui de
72
A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania
modo significativo para a definição do papel das organizações
apresentem porte de relevância, iniciativa esboçada pelas
e a conceituação de responsabilidade social.
então deputadas federais Marta Suplicy, Maria da Conceição
4. A Responsabilidade Social no Brasil
Tavares e Sandra Starling, com o Projeto de Lei (PL) 3.116/97,
4.1 Breve resenha histórica do pensamento no Brasil
Quanto à responsabilidade social no Brasil, pode-se
considerar seu início com a criação, em 1960, da Associação
dos Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE), que reconheceu
a função social da empresa associada.
Em 1982, a Câmara Americana do Comércio de São
Paulo lançou o prêmio Eco de cidadania empresarial. Em 1984,
a Nitrofértil destacou-se por ser a primeira empresa brasileira
a publicar um balanço social.
Em 1992, o Banespa divulgou todas as suas ações
sociais. Tal ação é contemporânea da Eco 92, realizada no Rio
de Janeiro, que discutiu a importância do meio ambiente e sua
preservação. Em 1993, o sociólogo Herbert de Souza lançou
que criava e tornava obrigatório o balanço social para todas
as empresas públicas e para as empresas privadas com cem ou
mais empregados. Segundo o Projeto de Lei:
Art. 2o Balanço Social é o documento pelo qual a
empresa apresenta dados que permitam identificar
o perfil da atuação social da empresa durante o ano,
a qualidade de suas relações com os empregados, o
cumprimento das cláusulas sociais, a participação dos
empregados nos resultados econômicos da empresa e
as possibilidades de desenvolvimento pessoal, bem
como a forma de sua interação com a comunidade e
sua relação com o meio ambiente.
a Campanha Nacional da Ação da Cidadania contra a Fome,
Dentre as informações que devem estar listadas no
a Miséria e pela Vida, com o apoio do Pensamento Nacional
balanço social, encontram-se as seguintes: os empregados – nú-
das Bases Empresariais (PNBE), que constituiu o marco da
mero de empregados existentes no início e no final do ano, es-
aproximação dos empresários com as ações sociais. Em 1997,
colaridade, sexo, cor e qualificação dos empregados, número
Betinho lançou um modelo de balanço social e, em parceria
de empregados por faixa etária, número de dependentes meno-
com o jornal Gazeta Mercantil, criou o selo do Balanço
res, total da remuneração paga a qualquer título às mulheres
Social para estimular as empresas brasileiras a divulgar seus
na empresa, percentagem de mulheres em cargos de chefia em
resultados na participação social.
relação ao total de cargos de chefia da empresa; valor dos en-
Em 1998 foi criado o Instituto Ethos de Empresas
cargos sociais pagos; valor dos tributos pagos; alimentação do
e Responsabilidade Social pelo empresário Oded Grajew. O
trabalhador; educação valor dos gastos com treinamento pro-
instituto serve como ponte entre os empresários e as causas
fissional, programas de estágios; saúde dos empregados valor dos
sociais. Seu objetivo é disseminar a prática da responsabilidade
gastos com planos de saúde, assistência médica, programas de
social empresarial por meio de publicações, experiências,
medicina preventiva; segurança no trabalho valor dos gastos
programas e eventos para interessados na temática.
com segurança no trabalho, especificando os equipamentos
Em 1999, a adesão ao movimento social se refletiu na
publicação do seu balanço social no Brasil por 68 empresas.
de proteção individual e coletiva na empresa; outros benefícios
seguros (valor da parcela paga pela empresa), gastos com atividades recreativas, transportes, creches e outros benefícios ofe-
4.2 O Tratamento Legislativo Impositivo
recidos aos empregados; previdência privada planos especiais
Em termos legislativos, é possível afirmar que a Cons-
de aposentadoria, fundações previdenciárias; investimentos na
tituição federal de 1988 e a legislação infraconstitucional que
comunidade valor dos investimentos na comunidade nas áreas
dela derivou são retratos da ‘jurisdicização’ da responsabili-
de cultura, esportes, habitação, saúde pública, saneamento, as-
dade social das empresas. Segundo NETTO BESSA, Fabiane
sistência social segurança, urbanização, defesa civil, educação,
Lopes Bueno (2006, p. 95), há dispositivos constitucionais que
obras públicas, campanhas públicas e outros; investimentos em
impõem condutas socialmente responsáveis, como a repressão
meio ambiente – reflorestamento, despoluição, gastos com in-
ao abuso econômico, e infraconstitucionais, como a possibili-
trodução de métodos não-poluentes.
dade de desconsideração da personalidade jurídica no Código
Pela análise dos descritivos, percebe-se que a
Civil, bem como a predominância da intenção sobre a forma.
interpretação do fenômeno empresarial por parte do Estado
Continua afirmando que o Código Civil adotou cláusulas ge-
significa transpor suas obrigações para o âmbito privado.
rais que se completam pelas condutas e, que dentre as previs-
Existe especial preocupação com o tema da previdência
tas, vale ressaltar a boa-fé objetiva.
privada e segurança no trabalho, cujos indicativos impactam
Outrossim já há movimento para tornar obrigatória
diretamente os gastos públicos, bem como a menção a assuntos
a apresentação do balanço social por parte das empresas que
até então impensáveis de se exigir de uma empresa, como a
73
Artigo 0
aplicação de recursos em, por exemplo, saneamento básico nas
cogentemente (ato de autoridade), sacrificadoras
imediações das instalações da empresa.
da iniciativa e dos bens privados, almejando a
Não há até agora uma perspectiva de que as infor-
redistribuição para os infortunados e o controle das
mações prestadas possam vincular-se em alguma obrigação
fases econômicas (produção, circulação e consumo),
jurídica por parte da empresa, mas talvez não tarde a inicia-
criando campo fértil para a obtenção dos bens.
tiva pública em buscar um alargamento da responsabilidade
Os incentivos fiscais, ao contrário dos meios estatais
objetiva da empresa pelos danos que ocasione, conforme vem
ocorrendo no campo ambiental.
que sacrificam sujeitos e suas respectivas propriedades, são
instrumentos propulsores quando o efeito, positivamente
4.3 O tratamento legislativo de Incentivo
considerado, é causa de desenvolvimento. Ao mesmo tempo
Nem só de imposições é feita a previsão legal da
em que impulsionam determinadas atividades, os incentivos
responsabilidade social empresarial. No campo tributário,
fiscais emitem reflexos negativos – desincentivos –, causando
as isenções e os incentivos promovem um pensamento
empreendedor-solidário.
A utilização de um instrumento jurídico capaz de
permitir redução tributária para o empresário, criando um
diferencial em sua contabilidade e, conseqüentemente, em seus
a retração no campo das atividades não-beneficiadas. Assim
ocorre quando o Estado cria incentivos fiscais regionais:
está usando um processo (de dedução, de isenção etc.) que,
movimentado pelo mecanismo tributário, vai proporcionar o
desenvolvimento da região beneficiada.
custos, que ao mesmo tempo seja boa estratégia de marketing,
Analisada sob prisma material ou substancial, a norma
no sentido de atingir seu público-alvo e divulgar o nome
jurídica concessiva de benefícios fiscais pode ser considerada,
e a marca de sua empresa, é uma forma político-jurídica de
simultaneamente, como norma de concessão de subsídios.
Com efeito, mediante a concessão de isenções e
incentivar o comportamento socialmente responsável.
Afinal, como afirma MALERBI, Diva Prestes Marcondes (1984, p. 44):
outros instrumentos tributários, as empresas socialmente
responsáveis são instadas a aplicar no desenvolvimento
social e, com isso, melhoram sua imagem perante o pleno dos
o particular visa a obter com sua atividade econômica,
consumidores. Aparentemente, não há como se negar o caráter
determinado resultado e compreende que para tanto
de planejamento tributário a tal forma de manejo de incentivos
o direito positivo lhe empresta formulações jurídicas
fiscais.
diversificadas, mas de alguma forma equivalentes,
que recebem, outrossim, tributações mais ou menos
gravosas. Daí, então, elege para alcançar aquele
Acerca do tema, esclarece AUGUSTO, Ana Maria
Ferraz (1997, p. 281):
resultado econômico perseguido a via jurídica que se
...a legislação brasileira de incentivos fiscais, inde-
lhe oferece, em termos fiscais, menos gravosa.
pendentemente do objetivo visado, ora atendendo à
necessidade de recuperação econômica regional ou ao
Os incentivos fiscais são, antes de tudo, técnicas usadas
fortalecimento da economia nacional, ora estimulando
pelo Estado para a realização de determinados objetivos de
a formação de capital e desenvolvimento social, tem
sua política econômica. O sistema de incentivos corresponde
usado de três formas pelas quais atenua, isenta ou
a um processo pelo qual o Estado propulsiona ou desestimula
declara a não-incidência dos tributos. Assim, confor-
determinadas atividades econômicas.
me seja o tipo de concessão, o alcance ou o conteúdo
Em verdade, conforme as palavras de SANCHES,
Marcelo Elias (1998, p. 125):
...o Estado é o único ente que pode realmente
e reduções. Estas são as três formas de concessão de
incentivos através do mecanismo tributário.
oferecer uma fonte certa e precisa para se chegar ao
Não há que se olvidar: atualmente, a fiscalidade, na
bem comum, pois, dotado de soberania, faz valer
sua essência de arrecadação de tributos, passou a ser utilizada
a sua vontade como ato incontrastável de Poder. A
pelo Estado como instrumento incentivador das áreas em que
manifestação estatal provém de regras de natureza
a atuação estatal é hipossuficiente ou inexistente.
jurídica, indicadoras de condutas a serem seguidas
74
da norma legal, encontram-se: imunidades, isenções
Desse modo, os objetivos estritamente econômicos
A Responsabilidade Social das Empresas como Forma de Efetivação da Cidadania
dos incentivos fiscais passaram a dividir a posição com
ções gratuitas de ingressos para eventos de caráter artístico-
objetivos sociais.
cultural por pessoas jurídicas a seus empregados e dependen-
Para ilustrar o que foi dito, tomar-se-á como exemplo
tes; despesas efetuadas por pessoas físicas ou jurídicas, visando
a Lei de Apoio à Cultura ou Lei Rouanet (Lei n 8.313 de 23
a conservar, preservar ou restaurar bens de sua propriedade ou
de dezembro de 1991), que foi ontologicamente concebida
posse, tombados pelo governo federal.
o
As transferências para a efetivação de doações e
para reverter a renúncia fiscal da União em benefícios diretos e
concretizados sob a forma de projetos culturais.
patrocínios não estão sujeitas ao imposto de renda na fonte.
A Constituição federal de 1988 previu, em seu artigo
A pessoa jurídica doadora ou patrocinadora tributada
215, que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
pelo lucro real poderá deduzir do IR devido na declaração
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e
os valores efetivamente contribuídos em favor de projetos
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais aprovados, nos percentuais de 40% das doações e
culturais”. O mesmo artigo, em seu parágrafo 3 , previu que “a
30% dos patrocínios.
o
Quando a empresa socialmente responsável usa desses
lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento
incentivos fiscais para promover a cultura pode atingir enorme
de bens e valores culturais”.
Três anos depois, esse artigo constitucional foi regu-
gama de beneficiários, podendo ser entendidos como os grupos
lamentado pela Lei n 8.313/91, que instituiu o PRONAC –
de interesses diretamente vinculados às atividades de fomento
Programa Nacional de Apoio à Cultura, entidade com o obje-
da empresa. São os stakeholders.
o
MARTINS, Rogério Vital Gandra Silva (1995, p. 130)
tivo de fomentar a produção artística e cultural do país. Dois
anos depois, foi também aprovada a Lei n 8.685/93, que tem por
o
afirma:
objetivo o incentivo e o fomento das áreas ligadas ao
audiovisual.
a união faculta às pessoas físicas ou jurídicas a
O PRONAC, que tem por finalidade captar e canalizar
opção pela aplicação de parcelas do imposto sobre
recursos para o setor de cultura, atua através do FNC – Fundo
a renda e proventos de qualquer natureza a título de
Nacional de Cultura; do Ficart – Fundos de Investimento
doações e patrocínios, nas seguintes modalidades:
Cultural e Artístico; e dos incentivos fiscais a projetos culturais,
em favor do próprio contribuinte do IR, desde que
método também conhecido como mecenato.
este seja proprietário ou titular de posse legítima
O Decreto 1.494/95 define o mecenato como “a
de bens imóveis tombados pela União; em favor
proteção e o estímulo das atividades culturais e artísticas por
de outras, através de numerários, bens ou serviços,
parte de incentivadores”.
abrangendo: pessoas físicas ou jurídicas de natureza
O sistema jurídico do mecenato (homenagem aos
cultural, caráter privado, não-instituídas ou mantidas
antigos mecenas, patronos e protetores das artes) tem como
pelo poder público, sob a forma de doações; pessoas
dispositivo básico a possibilidade de aplicação em projetos
jurídicas de natureza cultural, com ou sem fins
culturais, de recursos que inicialmente seriam destinados ao
lucrativos, sob a forma de patrocínio; em favor do
recolhimento de imposto de renda. Por esse sistema, a empresa
Fundo Nacional de Cultura – FNC, com destinação
calcula o montante a ser recolhido aos cofres públicos, a título
prévia ou livre, a critério do contribuinte; e empregados
de imposto de renda, e reverte parte desse crédito tributário
ao incentivo de projetos. Os valores aplicados pela empresa
entram na declaração e recolhimento do imposto de renda sob
a forma de doações e patrocínio, e devendo ser comunicados à
Receita Federal.
Nos termos da Lei 8.313/91, são consideradas
patrocínio a transferência de valor, com finalidade promocional
ou cobertura de gastos, bem como a utilização de bem móvel
ou imóvel do seu patrimônio, sem a transferência de domínio,
para a realização de atividade cultural com ou sem finalidade
lucrativa.
Pela Lei 8.313/91, consideram-se doações: distribui-
e dependentes legais, através de distribuição gratuita
de ingressos para eventos de caráter cultural, sempre
por intermédio das organizações de trabalhadores na
empresa.
Somente para exemplificar, o Estado do Rio Grande
do Sul também possui um sistema de financiamento e incentivo
às atividades culturais, em vigor por força da Lei no 10.846/96 e
do Decreto no 36.960/96. A sistemática de incentivo consiste na
compensação de 75% do valor investido em projetos culturais
como isenção fiscal, no limite de 3% do ICMS devido por
período pela pessoa jurídica.
Assim, a empresa que apresenta conduta socialmente
responsável, ao menos em tese, cria enorme potencial para
75
Artigo 0
o marketing social e isso à custa de um valor supostamente
AUGUSTO, Ana Maria Ferraz. Incentivos: Instrumentos
“perdido”; vale diz: promove sua marca de forma subsidiada
Jurídicos do Desenvolvimento. In: Revista de Direito Público,
pelo Estado.
ano IX, n. 47-48, São Paulo: RT, 1997.
5. Conclusão
A empresa, de organização racional e destinada ao
atendimento individual das necessidades, assumiu papel de
relevo dentro do território do país em que está instalada, num
BENEDICTO, G. C. de. A responsabilidade social da empresa:
exigências dos novos tempos. Cadernos da Faceca, v. 6, no 15,
p. 76-84, jul./dez. 1997.
processo de institucionalização em concorrência com o próprio
BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade Social
Estado-poder, dividindo obrigações.
das Empresas – práticas sociais e regulação jurídica. Rio de
Acredita-se que, atualmente, a interpretação do
Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
fenômeno estatal e empresarial permite a conclusão de que
seus conceitos tradicionais sofreram significativas alterações
CASTOR, Belmiro Valverde Jobim. A terceirização do estado.
por um processo dialético: de um lado, a empresa deixou de ser
In: Gazeta do Povo, 2 jul. 2006.
um fenômeno estritamente privado para assumir obrigações
públicas, num crescente projeto de transferência de serviços
para a iniciativa privada; de outro, no âmbito de direito
sistêmico-mundial, os Estados estão sofrendo mitigação em
COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função
social, Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 85, v. 732, out.
1996.
seu poder soberano ao receber imposições empresariais para
JUSTEN FILHO, Marçal. Empresa, ordem econômica e
adequação de uma agenda mínima de obrigações, sob pena de
constituição. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de
sanções econômicas.
Janeiro, abr./jun. 1998.
Diante dessa paridade de forças, releva-se pertinente
o início de uma instituição legal da responsabilidade das em-
LUX, K. O erro de Adam Smith. São Paulo: Nobel, 1993.
presas. Vale dizer: agregar, a direitos e obrigações tradicionais
MALERBI, Diva Prestes Marcondes. Elisão Tributária. São
da empresa obtidos com a criação da ficção da pessoa jurídica,
Paulo: RT, 1984.
uma nova obrigação pública e social. E isso é possível, pois, se
a empresa e o Estado estão num mesmo patamar hierárquico
SANCHES, Marcelo Elias. A teoria da imposição tributária e
de instituição social, este ainda tem o diferencial de ostentar o
a teoria da justiça, In: Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 6,
poder de legislar e impor o cumprimento das normas mediante
n. 24, jul./set. 1998.
o exercício legítimo da violência.
Entretanto, antes de impor, deve o Estado fomentar
tais condutas, com os instrumentos colocados à disposição, em
especial os tributários, dos quais a Lei Rouanet é um exemplo.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente:
contra o desperdício da experiência. v. 1. São Paulo: Cortez,
2000.
Em síntese: o que era privado agora cumpre função
SILVA MARTINS, Rogério Vital Gandra da. Incentivos fiscais
pública; o que era soberano agora se submete ao interesse
à atividade cultural e artística no Brasil – síntese normativa da
privado.
lei 8.313 de 23 de dezembro de 1991 e decreto 1.494 de 17 de
maio de 1995. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 3, no 11,
6. Referências
AMARAL JUNIOR, Alberto do. Direitos humanos e
comércio internacional: reflexões sobre a “cláusula social”.
In: AMARAL JR., Alberto. O cinqüentenário da declaração
universal dos direitos do homem. São Paulo: Edusp, 1999.
ASHLEY, P. A.; COUTINHO, R. B. G.; TOMEI, P. A.
Responsabilidade social corporativa e cidadania empresarial:
uma análise conceitual comparativa. São Paulo: Enanpad,
2000.
7
abr./jun. 1995.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
Textos selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX
Artigo 07
A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber
Criminológico no Brasil do Século XIX
Luana de Carvalho Silva1
Em nome da religião, disse o sublime gnosta, autor do quarto evangelho: no príncipio era a palavra (in principio erat verbum);
em nome da poesia, disse Goethe: no princípio era o acto (im Amfang war die Taht); em nome das sciencias naturaes, disse
Carus Sterne: no princípio era o carbono (im Amfang war der Kohlenstoff); em nome da philosophia, em nome da intuição
monistica do mundo, quero dizer: no principio era a força, e a força estava junto ao homem, e o homem era a força. Desta
força conservada e desenvolvida, é que tudo tem-se produzido, inclusive o próprio direito, que em ultima analyse não é producto
natural, mas um produto cultural, uma obra do homem mesmo.
Tobias Barreto, em introdução a Menores e Loucos em Direito Criminal, 1886.
1. Introdução. 2. Primeiras Faculdades de Direito. 2.1. Formação universitária: período de Olinda. 3. Faculdade de Direito
do Recife. 4. Condição histórica do saber criminológico. 5. Criminologia e Escola do Recife: importância de Tobias Barreto.
6. Referências.
1. Introdução
Nesse sentido, segundo Foucault, saberes humanos,
O limite entre as épocas clássica e moderna,
política, economia, filosofia e direito foram possíveis por meio
segundo as reflexões de Michel Foucault, foi palco para um
da emergência dessa certa regularidade discursiva presente no
acontecimento fundamental de um novo tempo: o aparecimento
solo da modernidade.
do indivíduo como centro da experiência e do saber possíveis.
Mas essa regularidade discursiva não é apenas
A modernidade nascente passou a figurar sob um signo de
mediada por saberes autônomos. Se o discurso é o que produz as
ruptura com um passado, um signo novo caracterizado pelo
verdades, ele é, por conseguinte, uma relação de poder essencial
homem, pelo sujeito.
na modernidade capaz de criar realidades. É nesse sentido que
Essa centralidade no sujeito tomou forma mediante
um conjunto de discursos e práticas que não estava marcado
pela linearidade ou completude de seus conteúdos, sendo,
pelo contrário, delineado a partir da sua dispersão, da sua
complexidade. Registros médicos, regimes jurídicos, artes e a
literatura podem parecer, à primeira vista, elementos sem nada
em comum, entretanto, nos aponta Foucault, essa aparente
disparidade está relacionada, ou melhor, está possibilitada por
Foucault afirma a “materialidade” do discurso, pois:
Em toda sociedade a produção do discurso é ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada
e redistribuída por certos números de procedimentos
que têm por função conjugar seus poderes e perigos,
dominar seus acontecimentos aleatórios, esquivar sua
pesada e temível materialidade2.
uma mesma trama discursiva responsável por articular o que é
Quem produz discurso tem o poder de selecionar a
possível de ser vivido, pensado e experimentado, enfim, o que é
verdade de seu tempo, o poder de definir regras, ditar normas e
verdade num espaço-tempo determinado.
ditar uma história, um poder concreto de autoridade capaz de
Artigo apresentado por Luana de Carvalho Silva, bacharel em Direito (Puc-Pr) e Psicologia (UFPR), especialista em Direito Criminal e Criminologia pelo IPCC e
UFPR, mestranda em Direito do Estado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito pela UFPR, professora de Psicologia Jurídica e Direito Penal na Faculdade Dom
Bosco.
2
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2003, p. 9.
1
77
Artigo 07
selecionar, organizar, segregar, dispor das tecnologias de saber
pré-conceitos desenvolvidos pelas relações de poder nacionais.
e poder dispostas em seu tempo, a fim de atender a qualquer
Com isso, começamos a esbarrar nas primeiras dificuldades.
interesse.
Afinal, como escapar do discurso de ”autoridade” que por
Assim, seria possível analisar as vicissitudes do
tanto tempo impera nas análises históricas nacionais? Como
discurso jurídico na modernidade, um discurso permeado
escapar da sedução da linearidade histórica e da explicação
de práticas judiciais, de doutrinas e de leis atrelado ao poder
meramente casuística dos acontecimentos históricos narrados?
soberano e, também, a outros dispositivos de poderes que
E como lidar com as dificuldades e lacunas produzidas pela
controlam, segregam, organizam, e, ainda, estabelecem os
escassez de fontes históricas?
procedimentos de interdição e de estabelecimento de privilégios
Ciente dessas dificuldades, a pretensão de elaborar
difusos no seio social. Como qualquer outro discurso, o
uma pesquisa histórica perde um tanto de seu fôlego. Mas
jurídico pertence uma trama discursiva única e concreta, que
ainda sobra vontade. Desse modo, preza-se a possibilidade de
só deve ser compreendida dentro de um espaço-tempo certo e
realizar uma pesquisa histórica tomando o período em questão
nunca a partir de uma universalidade. Portanto, a compreensão
em sua singularidade, procurando desviar-se das atitudes
da dimensão desse “discurso” apenas teria lugar, segundo
universalizantes do nosso tempo atual.
Fonseca, “a partir de uma análise interna que compreenda seu
O ponto de partida é a constituição e a trajetória
significado e seus efeitos na sociedade, ou seja, uma análise
dos primeiros cursos jurídicos no Brasil, em especial a Escola
eminentemente histórica”3 .
do Recife, na primeira metade do século XIX. A formação
O discurso jurídico, portanto, está assentado sobre
desses cursos é essencial para o aparecimento das primeiras
uma configuração discursiva própria da época moderna,
reflexões jurídicas nacionais, enfim, para a formação de um
delimitada por uma relação especial entre saberes e poderes
“cultura jurídica brasileira”4 . É no interior desses cursos, por
mediados a partir da noção de sujeito. E a compreensão de
meio da formação dos “lentes”, da publicação de revistas, das
tal discurso leva em conta suas condições de aparecimento, ou
grades curriculares, dos debates entre alunos e da atividade
seja, sua condição histórica.
acadêmica, que um saber jurídico vai ganhando corpo,
Com isso, é possível adentrar nos singelos objetivos
criando e aceitando certas idéias ou rejeitando outras. O foco
do presente artigo. Objetivos estes desenhados a partir de uma
da pesquisa é o posterior desenvolvimento, a partir dos
tímida incursão na história da formação da “cultura jurídica
anos 70 do mesmo século, na Escola do Recife, de uma
brasileira” no século XIX, experimentada pela “Escola do
“mentalidade” científica – germânica – no estudo do direito
Recife”, especialmente no tocante ao desenvolvimento ali
criminal, possibilitando, com Tobias Barreto, a fundamentação
experimentado de saberes criminológicos (“positivistas”),
de um tipo de saber jurídico-criminológico.
saberes esses que tiveram grande impacto nas noções de
criminalidade desenvolvidas em nosso país desde então.
2. Primeiras Faculdades de Direito
De fato, esta pesquisa não tem nenhuma pretensão
Com a independência política do Brasil em 1822, cla-
de “desvelar” algum conhecimento oculto ou descobrir
mou-se pela necessidade imediata de ruptura com o passado
qualquer “verdade” encoberta pela passagem dos anos.
colonial e pela construção de um novo ideário para a nação.
Este estudo objetiva reconstruir uma linearidade perdida
No plano econômico, o desafio era a articulação da estagnada
ou buscar nos acontecimentos passados fragmentos para
economia colonial patriarcalista e escravocrata com as possi-
melhor explicar
que a “evolução”, até o presente, carece
bilidades prometidas pelas doutrinas liberais; no plano políti-
de sentido verdadeiramente “histórico”, parecendo estar
co, a euforia da liberdade dividiu lugar com certo continuísmo
apenas comprometida com um discurso de autoridade,
com a antiga metrópole veiculada na figura do Imperador.
com a produção de “verdades” relacionada com um jogo de
No plano social, ficou embutido um sentimento de mudança
poder qualquer. Fazer uma “história” a partir do discurso de
manifestada na clara preocupação em construir uma “intelli-
“autoridade” sobre a formação do entendimento doutrinal da
gentsia” local, capaz de conhecer e enfrentar os problemas na-
criminalidade no Brasil seria o mesmo que justificar os mesmos
cionais. Segundo Schwarcz, “era necessário provar ‘para fora
FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX. Conferência apresentada no I Congresso Brasileiro de História
do Direito, realizado em Florianópolis entre os dias 8 e 11 de setembro de 2005, p. 2.
4
Para Fonseca, a formação de uma “cultura jurídica” brasileira só foi possível diante da criação dos cursos jurídicos, neste sentido: “E para o bem e para o mal, serão estas
faculdades de direito (as duas únicas em todo país no período imperial) elementos catalisadores fundamentais daquilo que doravante vai se fazer e pensar em termos de
direito no Império. A hipótese que aqui se coloca é que sobretudo a partir dos anos cinqüenta do século XIX se podem evidenciar características mais claras e específicas
no sentido de ser possível definir contornos de uma genuína cultura jurídica brasileira.” FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda
metade do século XIX, p. 5.
3
78
A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX
e para dentro’ que o Brasil imperial era de fato independente,
como nação “moderna”. Destacam-se, nesse sentido, o Códi-
faltando para tanto“ não apenas novas leis, mas também nova
go Criminal do Império de 1830 e a Lei de Terras de 1850.
consciência” .
Tais legislações apresentaram o país a um modelo liberal que
5
Nesse sentido, foi organizada a formação dos
contrastava intensamente com a realidade da estrutural social
dois primeiros cursos jurídicos do país, em Olinda e em São
brasileira, uma realidade marcada pelo domínio oligárquico,
Paulo, visando à formação intelectual e burocrática de uma
pela economia rural e pelo escravismo.
elite genuinamente nacional, desvinculada de laços culturais
Assim, a estruturação jurídica e política nacional,
e acadêmicos com Portugal, pois: “a idéia era substituir a
como define Fonseca, foi marcada por um contexto de “tensão”
hegemonia estrangeira – fosse ela francesa ou portuguesa –
entre um ideário liberal e uma realidade social, tensão que
pela criação de estabelecimentos de ensino de porte,
se tornou uma particularidade experimentada pelo Estado
como as escolas de direito, que se responsabilizariam pelo
brasileiro, resultando na criação de determinadas soluções e
desenvolvimento de um pensamento próprio e dariam à nação
alternativas diferentes das vividas na Europa, mas que, sem
uma nova constituição” .
dúvida, estavam relacionadas com as condições históricas
6
A partir desse contexto foi aprovado o projeto de
vividas no país9 .
31 de agosto de 1826, convertido em lei em 11 de agosto de
Essa tensão podia ser vivida também na formação
1827, que criava dois centros de estudos dedicados ao Direito
dos cursos jurídicos. Especialmente nos primeiros anos de
no país.
funcionamento das escolas de direito, quase a totalidade
A localização dos dois primeiros cursos de direito
da formação jurídica estava fundamentada na realidade de
provocou inicialmente, segundo Schwarcz, uma série de
Coimbra. Tanto a formação dos “Lentes” quanto a doutrina e
debates, e a decisão acabou por levar em consideração o
a legislação ensinadas eram importadas de terras portuguesas.
atendimento das populações em diferentes partes do país.
Dada a formação jesuítica de tal escola, o ensino jurídico
Assim, a população do Norte contava com a Escola de Olinda
também se encontrava fortemente marcado pelo Direito
(que se transferiu para o Recife em 1854) e a população do Sul
Canônico e pela filosofia cristã. Pouco a pouco, os lentes
teria sua escola localizada em São Paulo7 .
(fortemente influenciados inclusive por políticas públicas)
Os cursos iniciaram suas atividades em 1828 e em
passaram a desenvolver seus próprios “compêndios”, que eram
pouco tempo a posição do “bacharel” passou a figurar entre
aprovados pelas Assembléias. E com a chegada e assimilação
as mais disputadas pelas elites nacionais. O bacharel em
das idéias liberais o ensino de “Coimbra” cedeu espaço para
direito tornou-se o grande intelectual de uma sociedade em
novas articulações teóricas. O Direito Canônico passou a
formação, posto almejado tanto por aqueles que desejavam
conviver com um Direito Natural de inspiração liberal.
destacar-se entre as fileiras do pensamento acadêmico, como, e
Paralelamente, outra situação marcou esse contexto
principalmente, pelo destaque político atribuído ao profissional
de tensão. Os jovens alunos das escolas jurídicas provinham,
do direito.
em grande parte, das oligarquias rurais brasileiras e tomavam
Entretanto, os primeiros anos dessas escolas não
conhecimento nas academias das idéias liberais. Seriam esses
cumpriram imediatamente a aspiração de independência
alunos os futuros responsáveis pela formação de uma elite
cultural da metrópole. Segundo Fonseca, o país, logo após
cultural do jovem Estado, o que talvez explique as características
a Independência, não contava com aparatos institucionais
bastante próprias que os ideais liberais tomaram no Brasil, como,
culturais necessários para a criação e circulação de um saber
por exemplo, a conciliação entre a liberdade de agir consagrada
e um aparato jurídico. Assim, não restou outra saída senão
no Código Penal de 1830 e a figura do escravo.
recorrer às velhas leis da Metrópole, como as Ordenações
Filipinas e a legislação portuguesa colonial, contando ainda
com intensa influência da formação jurídica de Coimbra .
8
2.1. Formação universitária: período de Olinda
Segundo Schwarcz, a cidade de Olinda não foi
A nova, nação, entretanto, foi recebendo paulatina-
escolhida por acaso para abrigar uma escola de Direito.
mente, novo conjunto de idéias oriundas da Europa, marcadas
De fato, pairava sobre toda a Província de Pernambuco um
pelo signo liberal, que possibilitaram a delimitação do Brasil
sentimento “revolucionário e intelectual”, talvez conseqüência
SCHWARCZ, Lilia Moreitz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, p. 141.
SCHWARCZ, L. M. Ibidem, p. 142.
7
SCHWARCZ, L. M. Idem, p. 142.
8
FONSECA, R. M. Os juristas e a cultura jurídica Brasileira na segunda metade do século XIX, p. 5.
9
FONSECA, R. M. Idem.
5
6
79
Artigo 07
dos importantes acontecimentos políticos vividos em 1817,
noções liberais, muitas vezes aprendidas nas salas de aula do
1821 e 1824. Schwarcz sugestiona que tal escolha poderia ser
interior do Seminário.
ainda uma forma de conter “certo espírito republicano” de
inspiração liberal que vigiava a região10 .
Na ocasião da abertura do curso jurídico em
Olinda esses anos revolucionários ainda estavam presentes no
Essa inspiração intelectual guiada pelas idéias liberais,
imaginário da cidade. Entretanto, o curso iniciado em 15 de
segundo Pereira, iniciou-se ainda entre os muros do Seminário
maio de 1828 no mosteiro de São Bento desde logo se mostrou
de Olinda, um “velho colégio de jesuítas” transformado num
uma perfeita antítese dos anos liberais anteriores.
centro de idéias com formação humanística, lugar de destaque
O curso de Direito de Olinda foi a consolidação
na formação de uma consciência de liberdade política da
direta das idéias portuguesas, uma cópia “colonial” do curso
Província. Como aponta Pereira:
de Coimbra, tanto que até os alunos vestiam-se à moda
A consciência de liberdade fez do Seminário de Olinda
aquilo que o Monsenhor Muniz Tavares – herói e
historiador da Revolução de 1817, chamou uma
“sementeira das idéias novas”. Como poderíamos
resumir essas idéias novas? Parece que bastaria uma
palavra – no seu tempo mágica – para dizer tudo:
Liberalismo. Seria o liberalismo apenas uma atitude
contra o absolutismo? Em parte, sim; mas não será
exagero dizer que era “cultura” na sua significação
genérica. Era essa “cultura” quase essencialmente
européia, mas também americana, que o Seminário
iria fornecer aos padres ou simplesmente àqueles que,
mais tarde, na expressão do próprio Muniz Tavares,
seriam “jovens hábeis a empregos”. Enfim, uma
espécie de Escola de estudos superiores, como já ficou
dito. Mas também uma escola de liberalismo nesta
primeira fase, que, entre a Conspiração dos Suassuna
e a Revolução de 1817, recebeu a influência das idéias
que, em Portugal, haviam modificado o Estatuto da
Universidade de Coimbra sob a influência de Pombal.
O curioso é que tais mudanças, em Portugal, haveriam
de produzir no Seminário de Olinda, em plena
revolução de 1817, um radicalismo antilusitano que
nos levaria a descolonização, da qual a Convenção
de Beribéri, em 1821, seria uma página definitiva,
proclamando Pernambuco um governo autônomo,
sob a presidência de Gervásio Pires Ferreira, onze
meses antes do grito de 7 de setembro de 182211 .
Diante da aclamação de um ideal revolucionário e
lusitana, usando “chapéu alto, fraque e sobrecasaca”. Segundo
Schwarcz, “devido ao isolamento da Província, tudo vinha de
Portugal: os costumes, a maioria dos professores e mesmo boa
parte dos alunos”12 .
Funcionando com instalações precárias, corpo docente mal remunerado, despreparado e com ausências freqüentes, acabou promovendo uma revolta dos alunos perante o descaso com a situação do curso.
No que diz respeito à produção acadêmica, a Escola
de Olinda pouco contribuiu, restando marcada pela influência
intensa da Igreja e o jus-naturalismo católico, pela rigidez dos
cursos e pela predominância de obras estrangeiras.
O orgulho republicano pernambucano encontravase definitivamente diluído entre as casacas religiosas e
conservadoras do curso de Direito.
A partir de 1851, segundo Pereira, começaram a
circular em Olinda boatos sobre uma possível transferência da
“Academia de Ciências Sociais e Jurídicas” para o Recife. Uma
transferência que acabou se consumando em 1854, mas não sem
antes provocar uma série de manifestações de inconformismo.
Segundo Pereira, a própria Câmara Municipal de Olinda dirigiu
dois Memoriais, um ao Imperador, datado em 30 de julho de
1853, e outro endereçado como representação à Assembléia
Geral, na data de 9 de agosto de 1852. Ambos os Memoriais
lamentavam a destituição da Academia de Olinda, a perda
de seus lentes, de seus alunos e da sua “tradição literária”.
O argumento de permanência da Escola era sua semelhança
com hábitos e costumes de Coimbra. Nesses memoriais, que
realizavam um apelo pela importância histórica da província,
chamava-se o Recife de “feliz rival”13 .
da participação efetiva dos padres nas revoltas políticas, não
Vinte e seis anos após sua fundação, a Escola de
restou alternativa para a Coroa senão fechar o Seminário de
Direito transferiu-se de Olinda para o Recife, dando início
Olinda, que só foi reaberto em 1822. Assim, sufocou-se debaixo
a uma nova etapa na construção do saber jurídico nacional,
de castigos ferozes uma iniciativa republicana inspirada em
marcado pelo desenvolvimento criativo e inovador do Direito.
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 143.
PEREIRA, Nilo. A faculdade de direito do Recife 1927-1977. Ensaio biográfico. v. 1. Recife: Ed. Universitária, 1977, p. 106.
12
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 144.
13
PEREIRA, N. A faculdade de Direito do Recife 1927-1977. Ensaio biográfico, p. 138.
10
11
80
A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX
3. Faculdade de Direito do Recife
brasileiro. Alguns dos antigos problemas, como a precariedade
A transferência da Faculdade de Direito de Olinda
das instalações físicas, permaneceram, entretanto, em relação
para o Recife pode ser considerada uma virada intelectual,
à produção intelectual, sem dúvida, estávamos diante de outra
pois, na nova localidade, teve início um inovador processo
realidade.
de produção acadêmica. Aos poucos, a opressiva influência
Outras importantes modificações decorreram das
da Igreja e de Coimbra foi mitigada, abrindo espaço para
mudanças curriculares empreendidas nos anos seguintes.
assimilação de outros ideários importantes na construção do
Segundo Schwarcz, a reforma curricular de 1879 estabeleceu
saber jurídico nacional. De fato, segundo Fonseca, foi a partir
o chamado “ensino livre”, abolindo a obrigatoriedade das
da segunda metade do século XIX que se pode identificar a
presenças e dividindo o curso em duas partes distintas:
consolidação de uma “cultura jurídica” brasileira, da produção
“sciencias juridicas e sciencias sociais”. Assim:
de um saber jurídico experimentado diante de uma nova
realidade no interior dos cursos jurídicos14 .
A partir dessa data, ao programa de “sciencias
A nova etapa de Recife iniciou-se a partir da realiza-
jurídicas” corresponderiam os cursos de direito
ção de uma reforma acadêmica em 1854 (Decreto 1386), tendo
natural, romano, constitucional, civil, criminal,
como mote a disciplina e a moralização da organização do cur-
comercial, legal, teoria e prática do processo. Já o curso
so. Desse modo, passaram a ser realizados exames preparató-
de “sciencias sociais” seria composto pelas cadeiras
rios sérios, com calendário rígido de aulas (entre 15 de março
de direito natural, público, universal, constitucional,
e 15 de outubro), normas disciplinares duras (que contavam
eclesiástico, das gentes, administrativo, e diplomacia,
inclusive com castigos) para alunos e a limitação do número
história dos tratados, ciência da administração,
de reprovações possíveis, além da redução das ausências dos
higiene pública, economia e política18 .
lentes15 .
Todavia, a estrutura curricular do curso não foi muito
alterada nesse momento. Segundo Fonseca:
Todas essas medidas tomadas em conjunto sinalizaram
para uma nova possibilidade acadêmica em formação.
Uma “guinada teórica” foi aclamada por intelectuais lentes
Agora, como também antes, se estudavam no primeiro
e alunos, interessados em afastar definitivamente a influência
ano as cadeiras de direito natural, público, análise da
religiosa e, especialmente, a “metafísica”, das reflexões jurídicas
Constituição do Império, além de direitos das gentes
para, desse modo, encontrar o estatuto “científico” do direito.
e diplomacia. No segundo ano havia a continuação
Estava consolidada a chamada “Nova Escola do Recife”.
das matérias do ano anterior, bem como o estudo de
direito público eclesiástico .
16
São notórios os intelectuais que se destacaram nessa
empresa acadêmica, com destaque para Tobias Barreto e,
depois, Silvio Romero. Em relação a Romero, ficou famosa sua
Seria possível supor, diante do conteúdo disciplinar do
curso, certo vigor de um tipo de saber jurídico predominante
nesse tempo, marcado por um “jusnaturalismo teológico e
pré-liberal”. A influência católica dividiu espaço com teorias
defesa de doutoramento realizada em 1875, em que, diante de
sua banca, decretou enfaticamente a “morte da metafísica”19 .
Mas qual era o conteúdo desse cientificismo buscado
por esses intelectuais?
modernizantes, sendo a “reflexão jurídica deste período está
Não foi apenas a influência da metafísica e das
marcada por uma penetração um tanto problemática do
doutrinas religiosas que o grito de Romero atingiu. A geração
racionalismo iluminista europeu, que ingressa no meio cultural
de acadêmicos que se estava se formando, influenciada pelo
do direito num ecletismo de concepções teóricas de difícil
ideário positivista, tinha como objetivo transformar uma
conciliação”17 .
antiga realidade jurídica e social num novo signo, do moderno,
Todavia, o início dos 70 significou a formação de um
da “civilização”. Os novos modelos teóricos adotados eram
novo tempo. Foi nessa época que chegaram ao país um novo
influenciados precisamente pelo naturalismo, o evolucionismo
conjunto de idéias marcadas pelo “positivismo-evolucionista”,
darwinista e a biologia, apresentados ao Recife a partir das
que influenciou intensamente a produção do saber jurídico
leituras de Tobias Barreto sobre autores alemães como
FONSECA, R. M. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX, p. 6.
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p.146.
16
FONSECA, R. M. Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do século XIX, p. 6.
17
FONSECA, R. M. Idem.
18
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 147.
19
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p.148.
14
15
81
Artigo 07
Haerckel e Bucckle, bem como da aceitação de autores como
para formatar a realidade dos conteúdos jurídicos ministrados
Spencer, Darwin, Littré, Leplay, LeBon e Gobineau.
nessas aulas.
A meta de transformar o direito em ciência perseguida
Presume-se, a partir do Código Criminal Imperial
por essa geração tinha como escopo a interceção entre o saber
de 1830, que o estudo do direito penal esteve marcado por
jurídico e as determinações das “ciências” naturalizadas.
certa tendência liberal. Essa tendência pode ser vislumbrada
A “Lei” deveria seguir os mesmos mecanismos da biologia
ainda na adoção de uma bibliografia nos cursos composta por
evolutiva e da antropologia física e determinista, pautadas
Beccaria, Benthan e Filangieri21 .
por critérios experimentados, certos e totalmente afastados
A forte marca liberal contida na codificação criminal
da nebulosidade dos subjetivismos. As palavras de Schwarcz
de 1830 contrastava em muito com uma opressora organização
apontam bem esse acontecimento:
social. Os ideais iluministas e a marca da noção de um sujeito
de direito dotado de livre arbítrio conviviam com a realidade
A insistência na cientificidade e na especificidade dessa
escravocrata da sociedade brasileira. O garantismo clássico
prática era tamanha que talvez a melhor definição para
delineado pela defesa das liberdades individuais e de uma
esses homens tenha sido encontrada por Laurindo
sociedade livre e igualitária tornou-se, pouco a pouco, uma
Leão, professor de Direito Criminal dessa faculdade.
teoria jurídica descolada das relações jurídicas (especialmente
Servindo-se de uma explicação do antropólogo
penais) vividas diariamente.
Topinard, o jurista defendia a existência de “três
De fato, a partir da segunda metade do século XIX,
ordens do espírito: os observadores, os creadores, e
especialmente durante os anos 70, as demandas sociais, os
os mixtos. Aos creadores corresponderiam os artistas,
arranjos classistas, a figura do povo e, principalmente, as
aos mixtos os filósofos e aos observadores os que
questões da raça, tomaram parte nas reflexões acadêmicas22 .
produzem sciencia. No Brasil, os que produzem o
Direito positivo20 .
Estava promovido o afastamento do saber jurídico
das chamadas “humanidades”, inaugurando a era a instância
científica. No Recife, a experiência das ciências naturais
marcou decisivamente a produção acadêmica da Faculdade,
influenciando em certos aspectos diferentes áreas do direito.
Foi, entretanto, na produção acadêmica vinculada os estudos
criminais que essa mentalidade científica encontrou campo
fecundo e, diante das idéias de Lombroso e Ferri, um saber do
tipo criminológico passou a se delinear na cidade de Recife.
4. Condição histórica do saber criminológico
Ao atribuir uma historicidade ao saber criminológico
Os ideais liberais do classicismo penal perderam
fôlego diante da possibilidade “moderna” de se construir uma
ciência específica capaz de dar conta do elemento humano, um
instrumental científico mais de acordo com a necessidade de
compreensão da ordem social e do desenvolvimento da nação.
A assimilação entusiasmada do ideário positivistanaturalista produziu no país uma nova postura, segundo
Schwarcz, ainda desconhecida, que procurava entender as
demandas sociais (e jurídicas) através de um “olhar científico”,
de uma experiência que “implicou não apenas a absorção das
interpretações estrangeiras como sua utilização enquanto
matrizes de pensamento”23 . Se era preciso encontrar uma saída
para os problemas da nação, era necessário um instrumento de
análise social e individual ambicioso.
Nessa linha, o grande destaque foi a figura do mestiço.
construído no século XIX em nosso país, o presente artigo
A miscigenação, a “mestiçagem” da população brasileira
busca compreender – dentro dos limites possíveis as condições
tornou-se centro de uma série de debates científicos, como uma
de possibilidade de formação de tal saber. Condições essas que
forma – para o bem ou para o mal de lidar com os problemas
foram experienciadas no interior de uma realidade histórica
nacionais.
única, no caso, os acontecimentos vividos desde a formação da
A questão da raça ganhou uma relevância muito forte
Escola do Recife e seu posterior desenvolvimento na segunda
a partir das teorias evolucionistas-darwinistas. Num país em
metade do século XIX.
que predominam mestiços, multiplicam-se as possibilidades de
Já no período olindense da Faculdade de Direito,
trabalho “experimental”. O “critério etnográfico” tornou-se
o ensino do direito penal figurava entre as disciplinas
chave para desvelar os problemas sociais. Destaca-se a figura
ministradas. Entretanto, ainda faltam fontes históricas precisas
de Silvio Romero, importante intelectual da Escola do Recife,
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 149.
FREITAS, Ricardo de Brito. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 256.
22
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 146.
23
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 153.
20
21
82
A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX
um entusiasta da ciência “naturalista e evolucionista” que
direito penal era a noção de crime (conduta necessariamente
acreditava (como poucos) que a mestiçagem era uma saída
descrita em lei) como um ato de vontade livre e autônoma do
para uma possível “homogeneidade nacional”24 .
indivíduo. Sob o impacto das “ciências positivistas”, o crimi-
Para Romero, a noção de “raça” era central para
noso tornou-se o centro de toda reflexão jurídico-penal. As
o desenvolvimento de qualquer tipo de conhecimento,
causas da criminalidade deveriam ser procuradas, analisadas
especialmente o jurídico. Tudo devia passar pelo crivo dessa
e experimentadas a partir do homem que cometeu o crime,
mestiçagem de forma a aparecer como produto final de
que aparece como um corpo individualizado, portador de al-
uma sociedade (brasileira) em formação. Entretanto, para
gum traço degenerado ou não capaz de dizer a verdade desse
Schwarcz, tal “elogio à mestiçagem” do discurso romeriano
crime.
estava longe de ser uma defesa da igualdade entre os homens.
Não demorou muito para que as primeiras reflexões
Como um “bom” teórico de seu tempo, Romero acreditava no
jurídicas sob influência do positivismo ganhassem força na
determinismo social, segundo o qual cada homem era desigual
doutrina nacional. Inúmeros artigos sobre a importância
por natureza, estando os mais aptos vitoriosos na seleção
do método científico na explicação do criminoso foram
natural da vida . O destaque de Romero no assentamento
publicados em revistas, em especial na Revista acadêmica da
do ideário positivista na produção jurídica nacional foi bem
faculdade de direito do Recife de 1891. Idéias que inflamaram
delineado por Schwarcz:
a partir da rápida chegada ao Brasil das obras de Lombroso,
25
Ferri, Garofalo, entre outros, apenas alguns anos depois de
Sem entrar nos meandros da teoria de Romero,
suas publicações em seus países de origem.
mais importa entendê-lo enquanto uma grande
Logo também foram iniciadas tentativas de reforma
influência, um espécie de “pai-fundador”. É na
da legislação penal brasileira de acordo com princípios mais
predileção do tema da mestiçagem; no apego aos
“modernos”, “científicos” e genuinamente nacionais. Se o
modelos deterministas biológicos e etnográficos; na
Código Penal de 1830, de inspiração liberal, sofria com sua
fala radical e cientificista, que vemos a força desse
desarticulação com a realidade social escravista, o novo
mestre que elabora a teoria e cria um grupo. A partir
ataque partia agora da necessidade de buscar uma legislação
de Romero, o direito ganha um estatuto diferente no
nacionalizada que atendesse às demandas específicas da
Brasil. Passa a combinar com antropologia, se elege
sociedade brasileira mediante uma leitura científica, razoada27 .
como “sciencia” nos moldes deterministas da época e
Nesse sentido, os saberes jurídico-penais existentes
se dá o direito de falar e determinar os destinos e os
no país encontravam-se numa situação inusitada: de um lado,
problemas da nação .
o alicerce teórico do Código Penal pautado em idéias liberais;
26
de outro, um novo tipo de saber delineado pela experiência da
O ideário positivista provocou a emergência de uma
ciência positiva, que colocava a figura do criminoso no centro
nova forma de se conceber a experiência jurídica, de construir
da reflexão jurídica. Esse tipo de saber positivo denominou-se
seus critérios de saber e verdade. A centralidade dessa nova
“criminologia”.
experiência era o homem (positivado, naturalizado) como
Como definição, a criminologia só foi possível a
produto do meio natural e social específico. Um homem que
partir da entrada dos saberes “científicos”, naturalizados,
deixa de possuir um substrato universalizante, livre, e torna-se
características do ideário positivista presente a partir dos anos
coisificado, determinado.
70, especialmente na Escola do Recife.
Tal ideário encontra campo fecundo no direito penal
Essas duas formas de pensar os saberes penais
brasileiro. A assimilação do positivismo provoca uma relativa
conviveram durante o desenvolvimento dessa escola. Entre o
desconstrução no saber penal delineado pela experiência libe-
Código Penal e as reflexões acadêmicas positivadas, um novo
ral clássica. A entrada o homem como centro de todo saber
tipo de saber se desenhou. Talvez isso explique o surgimento de
possível implicou numa nova construção das relações entre
vários pensadores que tentavam conciliar a realidade da lei, as
crime e criminoso. Sob a influência liberal, a centralidade do
reflexões da ciência e a realidade brasileira.
SCHWARCZ, L. M., Idem.
SCHWARCZ, L. M., Ibidem, p. 155.
26
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 155.
27
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 156.
24
25
83
Artigo 07
5. Criminologia e Escola do Recife: importância de Tobias
Código de Leis único e científico para todo o território nacional
Barreto
e a temática da delinqüência ganharam destaque nas produções
O ideário positivista atrelado ao estudo do direito
intelectuais de então. A preferência pelo direito criminal ficou
penal e da criminologia encontrou ambiente fecundo no interior
evidente no esforço para a articulação dos modelos científicos
da Escola do Recife. Lá surgiram importantes pensadores
disponíveis com as determinações raciais tão próprias da
criminais responsáveis pela assimilação e propagação da
sociedade brasileira.
proposta “científica e evolutiva” de um direito penal mais
Mas que tipo de conhecimentos migraram para esfera
apropriado para pensar as questões sociais modernas e afastar
penal? O fenômeno do criminoso apareceu a partir das lentes
definitivamente o “fantasma” metafísico.
da antropologia criminal determinista, da antropometria, da
Nesse sentido, observou Moniz Sodré, em 1907:
frenologia, da fisiognomonia, da psiquiatria organicista, entre
outros saberes oriundos do vasto arsenal médico então conhe-
O aparecimento das novas doutrinas que abrigaram
cido. E justamente coube a um médico, Cesare Lombroso, a
amplos e fecundos horizontes ao direito criminal
transposição desse conhecimento para a experiência jurídica
nada mais foi do que uma conseqüência inevitável
do criminoso.
da lei natural da evolução que consiste, no campo da
Moniz Sodré assim definiu a antropologia criminal:
ciência, na aplicação do método positivo ao estudo de
todos os ramos do conhecimento humano. O direito
Nós podemos definir a antropologia criminal como o
penal, como ciência social e jurídica, atravessa no
ramo da antropologia geral que trata do delinqüente
momento presente a mesma fase por que já passou,
e dos seus tipos fundamentais. Nela se estuda o crimi-
anos atrás, a medicina e a patologia mental, despindo-
noso sob o ponto de vista somático e psíquico, isto é,
se de todas as velharias da metafísica no exame dos
suas qualidades anatômicas, fisiológicas e psicológi-
seus problemas capitais .
cas, bem como ainda sua vida de relação como o meio
28
físico e social. E por esses estudos, executados com o
Segundo Schwarcz, talvez houvesse motivos especiais
maior rigor científico, de acordo com as exigências do
para o grande desenvolvimento desse “ideário”, por vezes
método experimental, ela chega a conclusão de que
radical, no Recife. Tal apego às possibilidades científicas e à
o criminoso representa uma variedade antropológica,
idéia de modernização do direito e da sociedade podem ser
distinguindo-se profundamente do homem são, de-
explicadas pelo afastamento da Escola dos centros de decisão
senvolvido e civilizado, por um conjunto de anoma-
política do país, o que contribuiu para a consolidação de um
lias orgânicas e psíquicas, hereditárias e adquiridas, as
sentimento profundo de vanguarda científica. A devoção à
quais tornam possível sua classificação em diferentes
ciência beirava um radicalismo sem precedentes. A aplicação
categorias ou tipos especiais30.
do determinismo positivista rompeu as cadeiras jurídicas e
abarcou todo tipo de conhecimento, como a literatura, a poesia
Selecionar, medir e classificar uma infinidade de
e a crítica, apontado não mais para uma teoria científica, mas,
rostos, tipos, narizes, testas, tatuagens, crânios, enfim, esgotar
sim, para uma “atitude científica” por parte dos acadêmicos.
as possibilidades de anomalias cerebrais, faciais ou qualquer
O direito penal correspondeu como nenhuma outra
traço incomum capaz de explicar a origem de um criminoso
área do direito aos anseios positivos. Tanto que grande
se tornou a grande experiência de saber criminológico. A forte
número de artigos foram publicados na revista Acadêmica,
preocupação com a “mestiçagem” e uma suposta “degeneração
seguidos de publicações de vários professores. Schwarcz dá
da raça” visualizada na figura do criminoso formou, sem
conta em sua pesquisa de um dado generoso: examinados
dúvida, ambiente acolhedor para o desenvolvimento de uma
194 artigos publicados ao longo de 40 anos – 1891 a 1930 –
criminologia etiológica.
51 versavam sobre direito criminal, número inferior apenas aos
Entre os principais intelectuais da época figurou João
61 artigos relacionados à própria faculdade do Recife . Ainda
Vieira de Araújo, professor de direito criminal da Faculdade de
segundo a pesquisadora, esses números revelam uma correlação
Direito do Recife, a quem coube a realização da primeira obra
entre ensaios produzidos por professores e alunos e os grandes
de importância sob influência do positivismo, o “Código criminal
temas do momento. A preocupação com a elaboração de um
brasileiro. Comentário philosophico-scientífico”, editado em 188931 .
29
MONIZ SODRÉ, Antonio Aragão. As três escolas penais. 5. ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos S.A. 1952.
SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930, p. 158.
30
MONIZ SODRÉ, Antonio Aragão. As três escolas penais, p. 58.
31
FREITAS, Ricardo de Brito. As razões do positivismo penal no Brasil, p. 303.
28
29
84
A Escola do Recife e a Condição Histórica do Saber Criminológico no Brasil do Século XIX
Adelino Filho, é outro importante pensador positi-
Por último, resta destacar a importante figura de To-
vista oriundo do Recife, publicou na revista Acadêmica da Fa-
bias Barreto, considerado o mais célebre criminalista brasileiro
culdade de Direito do Recife, em 1891, um artigo sob o título A
da época, a quem coube um dos primeiros contatos com novo
nova escola de direito criminal, uma saudação entusiasmada das
ideário germânico que acabou por transformar a forma de pro-
novas idéias científicas recém chegadas do velho continente32 .
dução de conhecimento jurídico no Recife e em nosso país. Foi
Viveiros de Castro foi outro famoso criminalista
formado pelo Recife, autor da primeira obra brasileira sobre
sociologia criminal, A nova escola penal de 189433.
um dos principais nomes da geração dos anos 70, responsável
por se auto-definir como “o arauto de um novo tempo”.
Sob o impacto de autores alemães como Haerckel
Moniz Sodré, embora professor da faculdade da
e Bucckle, e de outros como Spencer, Darwin, Littré, Leplay,
Bahia, foi outra importante figura na construção das idéias
LeBon e Gobineau, Barreto liderou em nosso país a formação e
criminológicas-positivas em nosso país. Escreveu a importante
consolidação de um novo tempo, de uma nova forma de pensar
(e até hoje muito lembrada pelos criminalistas) obra As três
a sociedade e o homem brasileiro, segundo uma “modernidade
escolas penais, de 1907, em que tece poderosos elogios à
cultural” assentada nas recentes notícias científicas.
nova mentalidade do direito penal, que considerava uma
A recepção desse novo ideário científico possibilitou
conseqüência da “evolução” das idéias, uma conseqüência
o questionamento da antiga ordem social instituída tanto
inevitável do desenvolvimento humano34 .
pelo Império quanto pela excessiva influência da Igreja.
Aureliano Leal, promotor público na Bahia, destacou-se
A modernidade perseguida por esse grupo e seu discurso
pela publicação de Germens do crime em 1896, propondo reformas
contestador assegurou a entrada de saberes secularizados e
práticas com base em teses positivas de Garofalo e Ferri35 .
temporais no interior do cientificismo nacional. O afastamento
Phaelante da Câmara escreveu em 1891 o artigo
da metafísica, das abstrações universalizantes e da irrealidade
Algumas idéias expendidas ao começar o curso do processo
social levou Barreto a questionar o jusnaturalismo presente
criminal na segunda cadeira da quarta série jurídica, em que
na Escola e buscar uma forma de entender o direito em
se dedica a tratar o tema da pena de morte sob o enfoque
conjunto com a realidade social, apoiado na razão inerente
positivista36 .
ao ser humano. Dessa forma, afirma Freitas, Barreto afastou-
José Hygino Duarte Pereira, professor da Faculdade
se das teses liberais defendidas pela academia. Procurou nos
do Recife e ministro do Supremo Tribunal Federal, foi
germânicos a possibilidade de construção de um saber jurídico
responsável pela tradução do Tratado de direito penal alemão
que valorizasse o homem e sua realidade.
de Von Liszt para o português em 1899. O prefácio que
Em relação ao saber criminológico, Barreto nos
escreveu à obra é considerado um dos mais importantes textos
proporcionou importantes obras como Menores e loucos em
do positivismo brasileiro37 .
direito criminal e Prolegômenos do estudo de direito criminal.
Tito Rosas publicou em 1895 um artigo na revista
Essas obras revelaram forte tendência a aceitar os postulados
Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, intitulado Sobre
positivistas, incluindo uma notícia sobre a obra de Lombroso:
a tendência do direito criminal moderno38.
Laurindo Leão, professor da Faculdade de Direito do
Não há muito veio-me ás mãos a celebre obra – L’Uomo
Recife, e ainda Clóvis Bevilácqua, importante jurista nacional
delinquente, – do grande psychiatra e professor italiano
que em alguns momentos de sua vasta obra deitou seu olhar
Cesare Lombroso. É uma obra que pertense ao
sobre a problemática do direito penal e da criminologia,
pequeno numero dos livros revolucionários, aos qaues
publicou, nesse sentido, A aplicação do método comparativo ao
todo o leitor consciente póde applicar as palavras de
estudo do direito, na revista Acadêmica da Faculdade do Recife
Ezequiel, fallando daquelle volume que Deus lhe dera
e Criminologia e direito, destacando forte traço positivista
para devorar: – Et comedi illud; et factum est in ore
nessas produções39.
meo sicut mel Dulce. Eu também a devorei40.
FREITAS, R. B. Ibidem, p. 312.
FREITAS, R. B. Ibidem, p. 297.
34
MONIZ SODRÉ, Antonio Aragão. As três escolas penais, p. 16.
35
FREITAS, Ricardo de Brito. As razões do positivismo penal no Brasil, p. 313.
36
FREITAS, R. B. Ibidem, p. 324.
37
FREITAS, R. B. Ibidem, p 325.
38
FREITAS, R. B. As razões do positivismo penal no Brasil, p. 328.
39
FREITAS, R. B. Ibidem, p. 336.
40
BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Obra em fac-símile. Brasília, 2003, p. 65.
32
33
85
Artigo 07
E prosseguiu:
Colocou-se ao lado das teorias de Darwim e
Haeckel, destacando a noção de “herança” psico-física como
Com effeito, qualquer que seja a admiração que se
importante fator no desenvolvimento do criminoso45. Apesar
seinta diante dos thesouros de saber accumulados na
de se preocupar com as causas da criminalidade, entretanto,
obra mencionada, não se póde reprimir uma pequena
Barreto não abriu mão de uma teoria do delito, percebendo e
censura, que essa mesma riqueza de sciencia occasiona
mantendo uma dupla dimensão, formal e material, do delito.
e provoca. Não sou suspeito neste meu juízo. O livro
Esses ligeiros apontamentos revelam parte da
de Lombroso, seja-me licito dize-lo, é italianamente
complexidade das reflexões de Tobias Barreto sobre o direito
escripto e germanicamente pensado41.
penal e a criminologia brasileira. Foram suficientes, no entanto,
Entretanto, o louvor ao método lombrosiano (e
ao modelo positivista em geral) encontrou limite teórico.
Foram precisos seus elogios às possibilidades classificatórias
da antropologia criminal para o estudo do criminoso, mas
Barreto não abandonou algumas noções “clássicas” sobre a
teoria do delito.
Segundo Freitas, Barreto, apesar de adepto do
positivismo, ainda mostrou-se partidário do livre-arbítrio como
conceito indispensável à dogmática penal. A vontade livre, para
ele, não podia ser negada pela causalidade da natureza. Era,
assim, uma conquista histórica do ser humano, resultado da
evolução humana e social, não determinada mecanicamente,
mas, sim, mediante uma força voluntária e livre42.
O direito foi definido como “a disciplina das forças
para colocá-lo como principal criminalista de sua época. Um
merecido elogio a um pensador que, diante do caldeirão de
idéias presentes em sua época, soube avaliá-las e deu linha para
a formação de um saber com jeito “nacionalizado”.
Um saber como a criminologia aporta em nosso país
carregado com as condições de saber e poder presentes naquele
momento histórico e cresceu em nosso país graças a juristas
que ousaram a pensar o “novo”.
6. Referências
BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Obra
em fac-símile. Brasília, 2003.
FREITAS, Ricardo de Brito. As razões do positivismo penal no
Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.
sociaes, o principio da selecção legal na lucta pela existência. De
FONSECA, Ricardo Marcelo. Os juristas e a cultura jurídica
accordo com a philosofia monistica e com os dados da sciencia
brasileira na segunda metade do século XIX. Conferência
moderna, posso ainda defini-lo: o processo de adaptação das
apresentada no I Congresso Brasileiro de História do Direito,
acçoes humanas à ordem pública, ao bem estar da comunhão
realizado em Florianópolis entre os dias 8 e 11 de setembro de
política, ao desenvolvimento geral da sociedade”43.
2005.
E o crime “é um produto da força voluntária e livre;
onde quer que não exista nexo de causalidade entre essa força e
o fato malsinado de criminoso, aí também não existe crime”44 .
Barreto propôs, segundo Freitas, um método para
a ciência penal “histórico-filosófica”, procurando conciliar
a atividade dogmática com a crítica do jurista. A dogmática
seria um trabalho de exegese e a crítica ocupa-se-ia das lacunas
da lei. Assim, com base nesse método seria possível afastar o
direito penal da metafísica.
Quanto às causas da criminalidade, Barreto admitiu
uma variedade de fatores que contribuem para a criminalidade,
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 9. ed. São Paulo:
Loyola, 2003.
SODRÉ, Antonio Aragão Moniz. As três escolas penais.
5. ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos S.A., 1952.
SCHWARCZ, Lilia Moreitz. O espetáculo das raças. Cientistas,
instituições e a questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo:
Companhia das Letras.
PEREIRA, Nilo. A Faculdade de Direito do Recife 1927-1977,
Ensaio biográfico. v. 1. Recife: Universitária, 1977.
como as influências químicas, físicas, e sociais, mas procurou
corrigir certos “exageros” deterministas.
BARRETO, T. Ibidem, p. 66.
FREITAS, R. B. As razões do positivismo penal no Brasil, p. 288.
43
BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Obra em fac-símile. Brasília, 2003, p. 11.
44
FREITAS, R. B. Ibidem, p. 289.
45
FREITAS, R. B. Ibidem, p. 291.
41
42
8
Crimes Tributários na Legislação Brasileira
Artigo 08
Crimes Tributários na Legislação Brasileira
Maicon Guedes1
Leis ditadas com o fim de atribuir benesses ou impor perseguições pessoais trazem consigo o vício típico de desvio de finalidade
e violam o princípio da igualdade2 .
1. Resumo. 2. Introdução Histórica. 3. Crimes de Natureza Material. 3.1. Omissão de informação ou prestação de
declaração falsa. 3.2. Fraude. 3.3. Falsidade material. 3.4. Utilização de documento falso. 3.5. Recusa ou omissão de
fornecimento de documento. 3.6. Desatendimento de exigência de autoridade fazendária. 4. Crimes de natureza formal
ou de mera conduta. 4.1. Omissão de informação ou prestação de declaração falsa sobre rendas, bens ou fatos. 4.2. Nãorecolhimento de tributo cobrado ou retido. 4.3. Corrupção no incentivo fiscal. 4.4. Desvio de finalidade de incentivo
fiscal. 4.5. Sistema de processamento de dados paralelo. 5. Crimes perpetrados por funcionários públicos. 5.1. Extravio de
documentos fiscais. 5.2. Corrupção passiva tributária. 5.3. Advocacia administrativa fiscal. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. Resumo
Inarredável a importância da arrecadação para o
A preocupação, além de ligada à necessidade/
viabilidade de criminalização do desvio ardiloso da esfera
Estado, sem a qual este não poderá, salvo se maciçamente
tributária,
é
focada,
primacialmente,
na
unidade
do
presente no mercado, oferecendo bens e serviços, na busca do
Sistema Penal e na manutenção da isonomia preconizada
lucro, manter seu caráter de interventor social, alcançando
constitucionalmente.
à população bens/serviços que a sociedade civil não
Com o arsenal de possibilidades posto em favor
forneceria/produziria por falta de lucratividade ou mesmo
do contribuinte que frauda a Ordem Tributária para furtar-
pela necessidade de atendimento de classes sociais que não
se à Lei Penal tributária, a sensação criada é de impunidade
podem retribuir por itens que lhe são necessários, v.g. saúde,
perante toda a sociedade. Desconfiança que invade os demais
educação, alimentação, transportes, acesso ao judiciário. O
setores do Direito Penal, criando um ar de seletividade social
descumprimento da obrigação tributária, em regra utilizando-
para a persecução penal.
se de meios fraudulentos, implica na incidência do Direito
Penal como forma de prevenir e retribuir a conduta desviante.
Abstract
O discurso declarado do Estado passa a idéia de
Inarredável the importance of the collection for the
punição severa àqueles que afrontam fraudulentamente a
State, without which this will not be able, saved if massive
Ordem Tributária. Desde a onda criminalizante iniciada na
present in the market, offering goods and services, in the
década de 90, no afã de tutelar direitos difusos, o Estado
search of the profit, to keep its character of social interventor,
busca, num diapasão demagógico, insinuar que promove a
reaching to the population good/services that the civil society
criminalização de atos de todos os estamentos sociais.
would not supply/would produce due to same profitability or
Entretanto, o discurso real prega um afrouxamento
for the necessity of attendance of social classrooms that cannot
da política criminal quando a clientela se trata de classes
repay for item that it is necessary, v.g. saúde, education, feeding,
sociais mais abastadas.
transports, access to the judiciary one. The descumprimento of
Maicon Guedes, advogado, Professor de Direito Penal e Processo Penal da UnicenP, Faculdades Santa Cruz, Faculdade Dom Bosco e Uniguaçú. Especialista em Direito
Tributário (UFRGS), Mestre em Direito Penal (UFPR). [email protected]
2
BARROS, Suzana Toledo de. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2. ed. Brasília: Brasília
Jurídica, 2000. p. 185.
1
87
Artigo 08
the obligation tax, in rule if using of fraudulent means, implies
No entanto, não existia um sistema normativo que abarcasse
in the incidence of the Criminal law as form to prevent and to
todo o país, existindo sistemas para cada ente arrecadador.
repay the desviante behavior.
Historicamente, as sanções penais ligadas à matéria
The declared speech of the State passes the idea of
tributária têm sua primeira aparição na repressão ao
severe punishment to that they confront the Order fraudulently
contrabando, tipificado nos Códigos Penais de 1830, 1890
Tax. Since the criminalizante wave initiate in the decade of
e 1940, considerando-se, entretanto, que o bem/interesse
90, in the eagerness to tutor diffuse rights, the State searchs,
jurídico protegido não era a lesão ao Erário Público, mas a
in a demagógico diapasão to insinuate that she promotes the
segurança nacional. Em momento posterior, a Lei 3.807/60,
criminalização of acts of all the social estamentos.
versando sobre a Previdência Social, considerou como crime
However, the real speech nails a afrouxamento of the
criminal politics when the clientele if deals with supplied social
classrooms more.
de apropriação indébita o não-recolhimento das contribuições
dos empregados retidas pelos empregadores.
A Lei 4.357/65 estendeu a figura ao Imposto de Renda
The concern, beyond on to the necessity/viability of
retido na fonte e de selo, e o Decreto-Lei 326/67 criou a figura
criminalização of the ardiloso shunting line of the sphere tax,
da apropriação indébita referente ao Imposto sobre Produtos
is focada, primacialmente, in the unit of the Criminal System
Industrializados4 . A criminalização da delinqüência tributária,
and the maintenance of the isonomy praised constitutionally.
de forma específica, no ordenamento brasileiro, tem sua gênese
With the armory of possibilities rank for the contributor
somente na década de 1960, juntamente com o estabelecimento
who embezzles the Order Tax to steal it the Criminal Law tax,
de uma nova ordem constitucional no país, por meio da qual se
the bred sensation is of impunity before all the society. Diffidence
consolidou um regime político de exceção.
that invades the too much sectors of the Criminal law, creating a
air of social selectivity for the criminal persecution.
O regime militar elaborou a Lei 4.729/65, definindo
o crime de sonegação fiscal, descrevendo condutas ilícitas
de forma casuística, em sua maioria relacionadas a deveres
2. Introdução Histórica
específicos do contribuinte em relação ao fisco. As condutas,
Ao longo da história, o processo de exação tributária
que caberiam genericamente na tipificação dos artigos 171,
vem sofrendo contínuo frenamento. Enquanto na Idade Antiga
297 ou 298 (respectivamente, estelionato e crimes de falsidade
os representantes da Igreja e do Monarca adentravam os lares
material ou ideológica de documentos) do Código Penal,
tomando o dinheiro e os bens dos cidadãos de Roma, sem
foram tipificadas de forma a reduzir a pena que receberiam, se
critérios ou bases preestabelecidas, hoje a ciência do Direito
aplicados fossem os dispositivos do Código Penal.
Tributário prevê limites e garantias ao contribuinte, aliás,
Objetivando frenar ainda mais a sonegação fiscal,
disciplina do Direito com princípios norteadores em similitude
laborou-se legislação mais severa com os sonegadores, sendo
com Direito Penal, destacando-se a legalidade, anterioridade e
erigida a Lei 8.137, de 27/12/1990. Sobre a tipificação dos delitos
tipicidade taxativa.
em matéria tributária e sua relação com o Estado, é interessante
A problemática ganha vulto quando percebido que,
após passadas quatro décadas da criação da primeira lei penal
a observação de JUARY SILVA, ao referir que a legislação sobre
crimes tributários tenha surgido em dois períodos de exceção:
específica, objetivando o combate à sonegação fiscal no Brasil,
esta cada vez ganha mais terreno. Na verdade, os índices de
Significativamente que o embrião legislativo do
sonegação foram incrementados na mesma proporção em que
Direito Penal Tributário tenha surgido no Brasil em
a carga tributária foi sendo majorada de forma infrene.
dois períodos de exceção: com a Lei 4729/65, sob o
A repressão específica à criminalidade tributária teve
guante do AI-1, que se superpunha à Constituição [...];
sua gênese legal, no Brasil, com o advento da Lei no 4.795/65,
com a Lei 8137/90, quando, a despeito da aparente
dispondo acerca do crime de sonegação fiscal que, inclusive,
vigência do Estado de Direito, o país atravessava séria
em seu art. 3o, preceituava: “Somente os atos previstos nesta Lei
crise institucional, máxime nos campos econômico
poderão constituir crime de sonegação fiscal” .
e psicossocial, após o desastroso plano econômico
3
Em todas as sociedades, a figura do tributo como
editado em março de 1990, que implicou, de fato, em
forma de nutrir financeiramente o Estado sempre se mostrou
estabelecer a lei marcial no domínio econômico, sem
presente. No Brasil, os tributos remontam à época colonial.
abolir a Constituição5.
MACHADO, Hugo de Britto. Estudos de direito penal tributário. São Paulo: Atlas, 2002. p. 222/229.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Da sanção tributária. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 8.
5
SILVA, Juary. Elementos de direito penal tributário. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 8.
3
4
88
Crimes Tributários na Legislação Brasileira
Destarte, é salutar a releitura das premissas para
Art. 1o – Constitui crime contra a ordem tributária
a criminalização dos crimes tributários em tempos de
suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e
democracia um pouco mais decantada. Indubitavelmente, o
qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:11
legislador, ao dar gênese a atual lei de repressão aos delitos
tributários, Lei 8.137 de 27 de dezembro de 1990, tinha dois
É de se ressaltar que quando o tipo invoca o ato
objetivos presentes: contornar as lacunas de aplicação da lei
de suprimir/reduzir o tributo12 , destaca que o mero trânsito
penal tributária, revogando, a saber, Lei 4.729/65, bem como
pelas condutas preconizadas em seus incisos, sem o posterior
dar fôlego à nova onda que invadia o país com a política “caça
ou imediato dano ao Erário, pela redução dos pagamentos
marajás”, impressa, por curtíssimo lapso temporal, pelo então
efetuados à Fazenda, não configura o crime previsto no caput,
Presidente da República Sr. Fernando Collor de Mello.
cumprindo analisar se a conduta não configura, per si, crime
Em seu primeiro objetivo, a nova lei obteve êxito, pois
formal previsto no art. 2o do mesmo diploma.
transpôs a lei revogada que, apesar de propor-se a combater
Para a confirmação dos delitos previstos nesse artigo,
a sonegação fiscal no país, foi continuamente rechaçada
é necessário o procedimento do agente em reduzir ou eliminar
pelos pretórios, pois utilizou como premissa a casuística e o
seu passivo tributário, deixando de recolher aos cofres públicos
exemplificativismo, técnicas rudimentares não só na seara
o que de fato era devido após a realização de alguma espécie de
penal, mas em todos os campos do Direito, que deveria ser
fraude elencada nos incisos correspondentes13.
orientado pela abstração, uma lei que nascia com o vírus da
Por fim, cumpre ressaltar que o momento da
consumação do crime previsto no art. 1o é o do recolhimento
revogação incubado6.
Depreende-se que a referida lei, numa leitura
parcial do tributo ou o vencimento do tributo. Quando este
respeitante dos princípios da legalidade e na analogia in malam
foi totalmente suprimido pela conduta e em casos que o
partem, que ela somente comportaria a reprimenda de um rol
pagamento do tributo de várias operações é feito de forma una
ínfimo de formas de se burlar o fisco7 , afrontando até mesmo
(mensalmente, anualmente, etc.), o delito terá se perpetuado
o princípio da isonomia, pois contribuintes com atitudes
apenas uma vez, mesmo que condutas fraudulentas tenham
semelhantes, causando o mesmo dano ao Erário, teriam
ocorrido em diversas relações tributárias ao longo do período
tratamentos díspares pelo Direito Penal Tributário .
do exercício fiscal14.
8
Como objetivo secundário, a lei seguiu à risca a
cartilha do Direito Penal Econômico do Terror, imposta pela
3.1. Omissão de informação ou prestação de declaração falsa
política fiscal/econômica do início da década de 1990. A lei
Elencada como conduta primeira das formas de
acabou indo além, punindo de forma severa todas as condutas
crimes tributários, está a omissão de informações ou o al-
com qualquer conotação de fraude que fosse praticada contra
cance para a Fazenda de declaração que não convirja com
o Sistema Tributário Nacional. Tragicamente, o Direito Penal
a realidade da movimentação financeira/negocial ocorrida:
Tributário passou não só a reprimir os danos ao Erário ligados
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades
a fraudes, mas o mero inadimplemento, como ocorre no art. 2
fazendárias.
o
da Lei 8.137/909.
Nessa modalidade se enquadra a forma mais
corriqueira de crime tributário, a sonegação de informações
3. Crimes de Natureza Material
sobre as rendas auferidas ao longo do exercício fiscal, ou a
Reside nos verbos nucleares do tipo previsto no
informação distorcida do padrão financeiro do contribuinte.
art. 1o 10 , “suprimir” ou “reduzir”, o ponto de partida para a
Exemplo patente que aflora é a sonegação do Imposto de
configuração da natureza material dos delitos complementados
Renda. Imposto dependente de lançamento pelo sujeito passivo
pelos seus incisos, ad verbo:
da obrigação tributária é a convergência do auferimento de
CORREA, Antonio. Dos crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 71.
EISELE, Andreas. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Dialética, 1998. p. 148.
CORREA, Antonio. Obra citada. p. 71.
9
OLIVEIRA, Ricardo Rachid de. A Relevância penal da inadimplência tributária. Tese (Doutorado em Direito) apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2006.
10
Evitando uma miríade de referências à Lei 8.137/90, optamos por suprimir sua reiterada lembrança. Assim, na constância de artigos sem respectiva menção da lei que
o comporta, leia-se a norma como sendo pertencente à Lei 8.137/90, objeto primacial do desenvolvimento desta pesquisa.
11
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
12
Apesar de a lei falar em tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, falar-se-á ao longo do estudo apenas em tributo, visando à síntese do texto. Além disso, o
legislador laborou em desnecessário preciosismo, visto que as contribuições sociais são consideradas tributos pelo sistema constitucional tributário.
13
LOVATTO, Alécio Adão. Crimes tributários: aspectos criminais e processuais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 76.
14
Neste sentido ver DECOIMAN, obra citada, p. 60. Contra: COSTA Jr. Paulo José da, DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
1996, que consideram o momento da conduta como sendo o momento do crime.
6
7
8
89
Artigo 08
receita ou disponibilidade financeira do contribuinte, podendo
Essa delimitação é importante para escoimar as
ser reticente ou mendaz na prestação de informações15.
Com efeito, a informação prestada de forma desviada,
ou mesmo negligenciada, para ser configurada como elementar
do inciso I, deverá ser exigida através de lei, sendo atinente a
aspectos tributários, econômicos ou contábeis do contribuinte,
devendo ser diretamente influente na possibilidade de
supressão/redução do tributo16.
A inspiração para o legislador foi o Direito Penal
Tributário germânico, que prevê, no art. 370 de seu Código
Tributário, que será punido quem prestar informações
incorretas ou incompletas sobre fatos fiscais importantes17.
Ocorrida a negligência ou alteração das informações prestadas
e a posterior desistência do contribuinte em suprimir/reduzir
o tributo, recolhendo seu valor correto, há que se falar em
consumação do crime do art. 1o, I, contudo, restará incidente
no delito do art. 2o, I, este inexigindo o dano ao Erário18 .
situações em que o crime é praticado com inserção
3.2. Fraude
A conduta do inciso II: fraudar a fiscalização
tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação
de qualquer natureza, documento ou livro exigido pela lei fiscal,
ao contrário do primeiro inciso, diz com prestação/negligência
de informações de forma qualificada, pois tal atitude se dá
em documentos/livros fiscais, referida informação poderia ser
prestada ou omitida através de documentos auxiliares, não
exigidos pela lei tributária19.
Inexoravelmente, referida conduta guarda parecença
com o delito de falsidade ideológica, pois em ambos se faz
presente a simulação, oclusão ou alteração de fatos, incutindo
falsa ilação ao agente fiscal20. Para Costa Jr. e Denari, o dolo
requerido para a consumação do delito é o direto21 , em que
o agente tem a vontade de fraudar a fiscalização tributária,
contudo possuindo a intenção especial de posterior supressão/
redução do tributo22.
O mero equívoco do contribuinte na inserção de
dados equivocados no registro fiscal ou recolhimento posterior
do quantum correto do tributo não redunda na configuração
do crime em análise23. Complementa o raciocínio nesse sentido
Andrade Filho:
de informação incorreta que tenha sido gerada
por terceiro, e de cujo ardil o contribuinte não se
beneficiou, de qual quer forma24 .
A rotulação dessa conduta visa, paralelamente
à redução da sonegação fiscal, à correta escrituração dos
livros fiscal-contábeis, que poderão ser contrapostos com
operações entre contribuintes, o que facilitará a descoberta de
demais fraudes ou imperfeições, além da lisura no trato com
documentos que, em geral, portam caráter público25.
3.3. Falsidade material
Novamente, o legislador decidiu cercar-se de todas
as cautelas no sentido de coibir qualquer forma de fraude,
seja qual for o estágio na transação tributária. Veja-se que o
inciso I, num diapasão genérico, relaciona a fraude correlata
à prestação de informações; no inciso II, tangencia-se a
escrituração e o registro das operações visando a obstaculizar
a possibilidade de a fiscalização in loco ser conduzida ao erro e,
agora, no inciso III, seu foco está na veracidade dos caracteres
formativos do documento atinente à própria relação jurídica,
in litteris: falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota
de venda ou qualquer outro documento relativo à operação
tributável.
A falsidade aqui delineada pode ocorrer de duas
formas, conforme preconiza Andrade Filho:
A falsificação a que se refere a lei poderá ser da espécie
falsidade ideológica, caso o documento relativo à
operação tributável vier a ser concebido, por vontade
deliberada do agente, contendo uma declaração não
verdadeira.
Por outro lado, se houver alteração nas declarações
contidas no documento fiscal, sucederá falsidade
material, em que a intenção de fraudar ou iludir
a legislação se manifesta após a confecção ou
preenchimento do documento fiscal26 .
CORREA, Antonio. Obra citada, p. 87.
SILVA, Juary. Elementos de direito penal tributário. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 188
COSTA Jr. Paulo José da, DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 108-109.
18
DECOIMAN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. 3. ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 1997. p. 52.
19
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada. p. 120.
20
EISELE, Andreas. Obra citada, p. 130.
21
Os autores que iniciam a escrita sobre Crimes Tributários no Brasil adotam nomenclaturas como dolo genérico e específico. Optamos, no entanto, por filiação à corrente
da Moderna Teoria do Fato Punível defendida por CIRINO DOS SANTOS, pela classificação do dolo em direto e eventual, ocorrendo divisão do dolo específico em
elementos subjetivos especiais, motivos e tendências de agir.
22
COSTA Jr. Paulo José da, DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 121. Acompanhado de SILVA, Juary. Obra citada, p. 200.
23
LOVATTO. Alécio Adão. Obra citada, p. 101.
24
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário: crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 1994. p. 102.
25
DECOIMAN, Pedro Roberto. Obra citada, p. 53.
26
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Obra citada, p. 123.
15
16
17
90
Crimes Tributários na Legislação Brasileira
Sem embargo, o rol apresentado no corpo do
incorporarão o ardil contra a Fazenda Pública: IV – elaborar,
inciso é exemplificativo, visto que, além de arrolar inúmeros
distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou
documentos fiscais, deixa qualquer outro ali não-descrito,
deva saber falso ou inexato.
mas que seja relativo a uma operação tributável, como alvo
Costa Jr. e Denari colacionam rápido, mas elucidativo,
da norma . Eficientemente, Costa Jr. e Denari apresentam
desmembramento de linguagem dos verbos nucleares da
conduta do inciso IV:
Elaborar é preparar, arranjar, dispor, formar,
organizar.
Distribuir é dar, entregar, repartir para diferentes
partes.
Fornecer equivale a entregar, a suprir, a título oneroso
ou gratuito.
Utilizar-se do documento importa em apresentá-lo
como genuíno, se materialmente falsificado; ou como
verídico, se ideologicamente falso31.
27
a diferenciação, no caráter fenomênico, das duas formas de
perfectibilização da conduta do artigo em voga:
Falsificar é inovar com fraude. É contrafazer, é
reproduzir, imitando. A falsificação pode ser total, ou
parcial. Será total quando o documento, anteriormente
inexistente, vier a ser formulado ex novo et ex integro.
A falsificação parcial consiste na formação ex novo de
um documento, que em precedência não existia.
Alterações são modificações que se imprimem ao documento autêntico, após achar-se ele definitivamente
formado28.
Na verdade, a intenção aqui do legislador era cercar
até mesmo documentos que não estão compreendidos no
inciso II, exigidos pela lei fiscal. Veja-se que um documento
como a duplicata não necessariamente é emitido numa
transação tributária, servindo mais como forma de garantia
de recebimento do valor pelo credor29. Porém, mesmo com a
falsificação/adulteração de qualquer documento relativo à
transação tributária, sem a conseqüente supressão/redução do
tributo, não restará configurado o crime.
Como exemplo, cita-se a emissão de duplicatas
frias, com valor superior ao da nota fiscal, visando a realizar
a operação de desconto junto ao banco e suprir necessidade
de caixa. Com o recolhimento do tributo pelo valor superior
das duplicatas, não se implementará o crime fiscal, apesar
de a cártula ser falsa em relação à realidade contratual, visto
que não reduzido/suprimido o tributo. Seguindo a regra dos
crimes do art. 1o, o dolo da conduta deverá ser o direto, com o
elemento subjetivo especial de supressão/redução do tributo30.
3.4. Utilização de documento falso
Mais uma vez o falsum comparece como conduta
complementar ao caput do artigo 1o, desta vez abrangendo o
fabrico ou as formas de circulação do documento falso que
O objetivo da norma é fixar o jus persequendi contra
toda a cadeia envolvida na fraude que, ao final, redundará na
supressão/redução de tributo, seja o tipógrafo que imprimiu
nota sem lastro em competente AIDOF; o médico que emite
um recibo de consulta inexistente para dar lastro à isenção de
rendimento no imposto de renda32 ; o contribuinte que se utiliza
do documento falso/inexato contra a Fazenda33.
Com efeito, para a configuração da chamada
“indústria das notas frias”, é requisito a divisão de trabalhos,
com a sempre presente alegação sobre a ignorância do destino
ou origem dos documentos falsificados34. Novamente, o rol de
documentos alcançáveis pela norma não é taxativo, podendo
se tratar de nota fiscal, nota fiscal-fatura, duplicata, nota de
produtor rural, cédulas de crédito, conhecimentos de depósito,
conhecimentos de frete.
Todavia, o documento deve servir como prova e ter,
antes de tudo, relevância fiscal. O documento que não possui
higidez ou elementos suficientes para lastrar ou registrar
relação jurídica tributária restará como inválido para fundar
subsunção do fato à norma do inciso IV35.
A questão relativa à inexatidão do documento
tem cunho de maior complexidade, pois aqui a fraude pode
substanciar-se não em mendacidade quanto ao valor ou às
partes envolvidas, mas em pequenos detalhes como data da
operação, localidade, que acabarão gerando efeitos quanto
à competência do exercício fiscal ou ente tributante36. A
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 115.
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Idem, ibidem. Mesmo entendimento de EISELE, Andreas. Obra citada, p. 133.
DECOIMAN, Pedro Roberto. Obra citada, p. 59.
30
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Idem, p. 116
31
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 116.
32
Frise-se que a nota fria apresentada para isentar rendimento, para configurar o crime tributário deverá dar ensejo à supressão/redução do tributo. Caso o efeito da nota
fria seja aumentar o tributo a ser restituído ao contribuinte, restar-se-á, pois, crime de estelionato.
33
MONTEIRO, Samuel. Crimes fiscais e abuso de autoridade. 2. ed. São Paulo: Hemus, 1994. p. 164.
34
LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada, p. 108-109
35
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 119.
36
MONTEIRO, Samuel. Obra citada. p. 166.
27
28
29
91
Artigo 08
expressão “deva saber falso ou inexato” permite a presença do
dolo eventual para a configuração do delito37.
3.6. Desatendimento de exigência de autoridade fazendária
Finalizando, o inciso em comento foi delineado para
ser compartimentado com os demais, visando a coibir atos
fraudulentos desde sua raiz, transpondo a punição exclusiva
do contribuinte beneficiado com o ardil.
crimes de natureza material, surge no parágrafo único, conduta
3.5. Recusa ou omissão de fornecimento de documento
Inegavelmente, tem-se aqui o caso mais usual de
meio para implementar a sonegação fiscal: V – negar ou deixar
de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal, ou documento
equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de
serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com
a legislação.
O sujeito passivo da obrigação tributária, ao realizar
um negócio com efeitos tributários, deixa de emitir a respectiva
nota fiscal ou o documento equivalente e apto a ensejar a
escrituração contábil da operação, ou mesmo negligencia
pleito da outra parte envolvida, interessada na emissão de tal
documento.
Cumpre referir, por oportuno, que a negligência do
contribuinte deve ser relacionada ao documento de emissão
obrigatória pela lei tributária, não cabendo perquirir sobre a
não-emissão de documento relevante, mas não exigido, pois
se estaria contrariando preceito constitucional no sentido de
que ninguém precisa fazer ou deixar de fazer algo, senão em
virtude do texto legal prévio38.
Pode-se, dessa forma, ter uma conduta omissiva ou
comissiva, bastando tão-somente perquirir a conduta da outra
parte envolvida, mas pouco importante para efeitos práticos da
subsunção da norma penal39. Noutra via, existe a possibilidade
de o agente fornecer o documento fiscal em dissonância com a
prescrição legal. Nesse caso, se inexistir proveito com economia
fiscal, o agente apenas terá incidido em infração tributária, não
comportando a punição na esfera penal.
Como exemplo patente, tem-se o fornecimento de mero
recibo ao contratante/comprador, em oportunidade que a emissão
de nota fiscal era necessária. Até mesmo a via da nota deve ser
respeitada, cabendo a 1a via ao comprador, não outra40.
Não destoando dos demais tipos do art. 1o, a conduta
ora ventilada requer, para sua penalização, a presença de
elemento subjetivo especial de suprimir/reduzir tributos com a
negligência. O mero olvidamento, com posterior emissão, não
configura o crime em questão.
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 120-121.
CORREA, Antonio. Idem, p. 138.
39
LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada, p. 111.
40
LOVATTO, Alécio Adão. Idem, p. 110.
41
MONTEIRO, Samuel. Obra citada, p. 167.
42
LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada, p. 114
43
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 123.
37
38
92
Fechando o artigo 1o, eminentemente recheado por
que em última análise nem mesmo poderia comportar exegese
em conjunto com seu caput: Parágrafo único: A falta de
atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez)
dias, que poderá ser convertido em horas, em razão da maior
ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto
ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista
no inciso V.
O parágrafo debatido revela a equiparação da conduta
de inércia ou demora no atendimento pelo contribuinte de
exigência de vista de documento pela autoridade fiscal com
as condutas sonegatórias em si. Muitos são os equívocos na
redação desse malfadado parágrafo.
Inicialmente, totalmente descabida a interpretação
analógica feita ao inciso V, visto que naquele inexiste o
fornecimento do documento fiscal com a conseqüente
falta de escrituração e tributação. Dessa forma, estar-se-ia
argumentando pela responsabilização objetiva penal, visto
presumir-se que se não foi atendida a exigência é porque tal
documento não existe ou foi emitido sob irregularidade.
Seguindo o rol de equívocos, atente-se para o fato tentar
configurar-se aqui crime num rol de delitos de natureza
material, equiparado a um crime material (inciso V), quando,
na verdade, o dano pode nem mesmo ter ocorrido.
Por fim, veja-se que a lei colaciona o prazo de até 10 dias,
podendo ser reduzido até mesmo a horas, quando na verdade a
exigência, para ser cumprida, pode exigir até mesmo um mês,
como no caso de empresas com diversas filiais no Brasil, que
mantêm seu arquivo contábil de forma centralizada, convertendose a exigência até mesmo em abuso de autoridade, esgrimível por
meio de habeas corpus ou mandado de segurança41.
A conduta pode ser praticada inclusive por terceiros,
que não se aproveitaram da “presumível” sonegação, como
o caso de documentos em posse de terceiros que não o
contribuinte. A demora ou recusa não caracterizará o delito de
desobediência (art. 330, do CP, 6 meses a 2 anos de detenção
e multa), mas o crime do parágrafo em comento, 2 a 5 anos
de reclusão e multa42. Pensando ser crime próprio ou especial,
estão Costa Jr. e Denari, para quem o delito só pode ser
promovido pelo próprio contribuinte43.
Crimes Tributários na Legislação Brasileira
Parece que a conduta, para configurar-se, terá de ser
paralela à prova de redução/supressão do tributo. Nesse sentido,
ainda, está a vedação à obrigatoriedade de produção de prova
contra si, visto que o contribuinte está numa encruzilhada: ou
mostra os livros e prova culpa num eventual crime tributário
ou os omite e mesmo assim é punido, agora por presunção. A
omissão do livro seria uma garantia constitucional de não se
auto-incriminar (art. 5o, LXIII, da CR/88)44.
Outrossim, após desvelada a forma com que o tributo
foi sonegado, a conduta certamente se enquadrará num dos cinco
incisos anteriores, não havendo concurso material de crimes. A
atitude mais acurada do legislador seria inserir tal negativa de
informações como agravante dos incisos do art. 1o, caso as condutas
fossem promovidas, juntamente com o dano ao Erário45.
4. Crimes de natureza formal ou de mera conduta
Bem de ver que os delitos preconizados no art. 2o
da Lei 8.137/90 guardam relação muito mais com omissões
do contribuinte do que com fraudes, advindas de atitudes
positivas. Na verdade, os incisos desse artigo que revelam ação
delituosa fraudulenta acabam, geralmente, sendo arredados
em razão da subsunção ocorrida com os delitos previstos no
artigo 1o do mesmo diploma, in verbis: Art. 2o – Constitui crime
da mesma natureza46.
Com efeito, as condutas arroladas nos incisos do
artigo em comento, para se configurarem fatos puníveis,
prescindem de dano, pois, ao contrário do que ocorre com o
artigo anterior do diploma penal fiscal, inexiste o elemento
normativo “suprimir ou reduzir tributo”.
Dessa forma, caracterizam-se esses delitos por sua
natureza de crimes formais ou de mera conduta. Veja-se que
o dano ao Erário não é figura presente nos tipos do art. 2o,
ocorrendo apenas o desvalor da ação pela potencialidade
da supressão/redução do tributo. Para a configuração desses
crimes é necessário o elemento subjetivo especial47.
Caso o contribuinte seja flagrado no iter entre a
realização dos delitos previstos nesse artigo, será por eles
punido; contudo, se já tiver promovido o dano ao Erário, com
a supressão/redução do tributo, sua conduta será incursionada
na esfera penal pelos tipos previstos no art. 1o. Assim, resta,
em tese, problemática a configuração da desistência voluntária
sobre os crimes do art. 1o.
4.1. Omissão de informação ou prestação de declaração falsa
sobre rendas, bens ou fatos
De início, o art. 2o traz como conduta primeira,
tipificada em seu inciso I, a figura da sonegação de informações
ou sua prestação de forma inverossímil à autoridade fiscal
competente: I – Fazer declaração falsa ou omitir declaração
sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para
eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo.
Figura que pouco transita pelos pretórios, pois para
sua configuração descarta-se a presença do dano, representado
pelo recolhimento parcial ou até mesmo por sua inexistência,
quando o tributo devido é superior ao declarado ou omitido.
Ocorre que para a persecução penal ocorrer sobre
essa rubrica, o contribuinte deverá ter omitido/falseado
informações, mas até o vencimento da obrigação tributária,
acometido pelo clamor da função simbólica da pena ou por um
sentimento altruístico, decida recolher o quantum realmente
devido pela relação jurídica tributada.
Presenciando-se a normalidade, é dizer, com a
conseqüente redução/supressão do tributo, que o contribuinte
passará a constar como incurso no tipo penal preconizado no
art. 1o, I, pois já se encontra configurado o crime de dano com
natureza material48.
4.2. Não-recolhimento de tributo cobrado ou retido
Denota-se desse tipo penal um sujeito passivo da
norma que não age sob o pálio de nenhuma fraude ou irregularidade, mas apenas deixa de recolher tributo já cobrado ou
retido, in litteris: II – deixar de recolher, no prazo legal, valor
de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na
qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher
aos cofres públicos.
A conduta descrita revela um contribuinte que não
tem o interesse de manipular as informações a fim de ludibriar
o Estado. Ele simplesmente não recolhe o tributo, que o
Estado, muitas vezes, já tem até mesmo conhecimento sobre
o valor devido49.
A conduta diz, no mais das vezes, com casos em que
ocorre a substituição tributária. O contribuinte de direito é
ente que cobrou/reteve valor de pagamento a terceiro a título
de tributos, pois a legislação tributária assim o ordena. Assim
é o caso do IPI, em que o industrial cobra, além do valor da
mercadoria, o valor relativo ao tributo, ficando incumbido de
recolhê-lo aos cofres públicos50.
LOPES, Rodrigo Fernando de Freitas. Crime de sonegação fiscal. In: A crise do Estado como causa de exclusão de culpabilidade. Curitiba: Juruá, 2002. p. 82. Ainda,
SALOMÃO, Heloisa Estellita. Crimes tributários nos tribunais superiores. Revista Brasileira de Ciências Criminais. ano 14. n. 58. São Paulo: RT, 2006. p. 100.
45
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveria. Obra citada, p. 136.
46
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
47
LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada. p. 117.
48
DECOIMAN, Pedro Roberto. Obra citada, p. 80.
49
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Crimes contra a ordem tributária. In: Pesquisas tributárias. n. 1. 3. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 45.
50
LOVATTO, Obra citada, p. 123.
44
93
Artigo 08
A conduta é omissiva, devendo estar presente o
elemento subjetivo especial de não recolher aos cofres a quantia
que lhe foi confiada pelo contribuinte de fato, com base em lei.
O mero atraso no recolhimento, desacompanhado da intenção
de sonegar, não caracteriza o delito51.
No entendimento de CORREA, ao ocorrer a retenção
do valor, em última análise, de propriedade da Fazenda Pública,
invertida estaria a posse, configurando legítima hipótese de
apropriação indébita52. O valor retido/cobrado nem sempre
deve (como diz a lei) ser recolhido diretamente aos cofres
públicos. Por vezes, o contribuinte de direito retém valores
a título de tributo, entretanto, em se tratando de impostos
indiretos, podem ocorrer compensações dos valores retidos
com créditos tributários que esse contribuinte possua. Pode
acontecer de nada ser recolhido em virtude da compensação.
O pagamento é apenas escritural, sem o ato de entrega de valor
ao Poder Público53.
Noutro norte, caso o contribuinte de direito não
tenha cobrado ou retido o tributo, quando lhe era exigido pela
lei, apesar de o Erário ser de igual forma prejudicado, o delito
em voga não se configura, pois os verbos do tipo, cobrado ou
descontado, restam ausentes. A questão passa, então, ao campo
das infrações tributárias54.
Noutro viés, não se descarta a hipótese de restar
inserto no art. 2o, II, da Lei penal fiscal, uma possível afronta
ao texto constitucional, em especial ao art. 5o, LXVII: não
haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia
e a do depositário infiel55.
A questão semântica envolvendo a espécie da prisão
é vertida como justificativa para sua validade. Veja-se que a
Constituição preconiza vedação à prisão civil e, no caso da
lei aqui investigada, fala-se em prisão penal, o que habilitaria
a legitimidade de sua manutenção56. Com efeito, a celeuma
incrustada na doutrina será o reflexo da objetividade jurídica
permeada pelo tipo em questão. Se o alvo do delito for a mera
cobrança do tributo, a criminalização é inconstitucional,
conforme leciona BERTOLUCI:
Questão central é saber se o legislador pode criminalizar o inadimplemento de uma dívida tributária. De
acordo com a construção garantista, a qual, dentre
vários postulados, sustenta a necessidade de eliminação das antinomias do sistema jurídico, isto seria
incompatível. A Constituição Federal, ao estabelecer
que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do
responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável da obrigação alimentícia e a do depositário
infiel”, estabelece limitações ao legislador ordinário.
A norma constitucional que proíbe a prisão por
dívida alberga o direito à liberdade, colocando-o em
patamar superior ao direito de receber um crédito57 .
4.3. Corrupção no incentivo fiscal
O inciso em análise é direcionado a dirigentes,
empregados e intermediários de instituições financeiras que
operem no recolhimento e posterior utilização de verbas fiscais
resultantes da minoração da carga tributária, em função de
incentivos fiscais, corrupção passiva, além do contribuinte,
quando se fala em corrupção ativa58 : III – exigir, pagar ou
receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer
percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de impostos
ou de contribuição como incentivo fiscal.
O primeiro verbo do tipo, exigir, refere-se a ato dos
agentes acima elencados na oportunidade em que impõem ao
contribuinte o recebimento de quantia para efetivar desconto
tributário em virtude de incentivo fiscal. Ao contrário da
primeira modalidade, que versa sobre verdadeira concussão
promovida pelo agente recebedor, pagar é conduta de
corrupção ativa do contribuinte, que alcança ao captador dos
recursos vantagem financeira, objetivando o enquadramento
em plano de incentivo fiscal. Por fim, a atitude do agente
captador de tributos ao receber valores ofertados em troca da
implementação do enquadramento no programa de incentivo
fiscal, é verdadeira hipótese de corrupção passiva.
Não se faz necessário o dano, quer dizer, a efetiva
dedução do tributo em razão do incentivo fiscal, bastando a
realização da corrupção ativa e/ou passiva para configuração do
delito, já que se trata de crime de natureza formal59. A localização
do tipo no rol de crimes formais promovidos por particulares é
equivocada. Veja-se que o delito, em dois de três de seus verbos, é
promovido por pessoa investida em função de interesse público,
logo deveria estar elencado no rol do art. 3o, em que se verificam
os delitos promovidos por funcionários públicos60.
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 127.
CORREA, Antonio. Obra citada, p. 175.
EISELE, Andreas. Apropriação indébita e ilícito penal tributário. São Paulo: Dialética, 2001, p. 85.
54
LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada, p. 125.
55
CAMPOS, Dejalma de. O crime de sonegação fiscal: evolução legislativa; análise do tipo na lei vigente (Lei 8.137/90); sonegação e simples inadimplemento (CF Art. 5o,
LXVII). In: OLIVEIRA, Antonio Cláudio Mariz de; CAMPOS, Dejalma de. (Coord.) Direito penal tributário contemporâneo. Estudo de especialistas. São Paulo: Atlas,
1995. p. 40.
56
OLIVEIRA, Ricardo Rachid de. A Relevância penal da inadimplência tributária. Tese (Doutorado em Direito) apresentada no Programa de Pós-graduação em Direito
da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2006. p. 139.
57
BERTOLUCI, Marcelo Machado. A inconstitucionalidade do art 2o, II, da Lei n. 8.137/90. In: FAYET JR, Ney. (Org.) Ensaios penais em homenagem ao professor
Alberto Rufino Rodrigues de Sousa. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003. p. 546.
58
DECOIMAN, Pedro Roberto. Obra citada, p. 95.
59
COSTA Jr. Paulo José da; DENARI, Zelmo. Obra citada, p. 130.
60
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Obra citada, p. 143.
51
52
53
94
Crimes Tributários na Legislação Brasileira
4.4 Desvio de finalidade de incentivo fiscal
Novamente o legislador demonstra preocupação
com a má versação das verbas tributárias abdicadas em
função de incentivos fiscais. No inciso anterior, o propósito
era desestimular o ingresso irregular no campo dos programas
de incentivos; agora, seu escopo foca-se na utilização, no
aproveitamento que o contribuinte vai assegurar ao valor do
tributo não-cobrado/bem/serviço que obteve, valendo-se de
isenção ou redução de alíquotas: IV – deixar de aplicar, ou
aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas
de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento.
O benefício, ao momento em que foi ofertado, era
válido e o contribuinte fazia jus a ele. Porém, posteriormente,
não implementa a forma de uso (que justificou o incentivo
fiscal) do imposto não-devido/serviço/bem que lhe teve
alcançado com economia de tributos. Trata-se, pois, de desvio
de finalidade para o benefício que fora concedido.
Os programas de incentivos visam ao desenvolvimento
de determinada região, à ascensão de determinado estrato
social ou baseada em alguma desigualdade que justifique a
ação afirmativa, nos dizeres de Correa:
Como o Estado é direcionador das atividades, mas
não empregador, foi a maneira encontrada esta de,
através da transferência de parcela de impostos – como
opção dos devedores, que se agregam aos grupos,
e, mais ainda, dos grandes pagadores de tributos
que poderiam beneficiar-se criando novas empresas,
permitindo que se atingisse o esperado61.
No momento em que o contribuinte beneficiado
passa a desviar o uso daquela benesse que lhe foi alcançada,
passa, ao mesmo tempo, a desmerecer o incentivo, gerando
verdadeiro débito com os demais contribuintes que, em última
análise, lhe financiaram o proveito fiscal.
Seguindo a regra, o elemento subjetivo especial em
não implementar ou desviar o uso do benefício auferido é
necessário para configurar o delito em espécie, não sendo
relevante penalmente o mero atraso, desde que justificado, na
aplicação correta do incentivo fiscal62.
4.5 Sistema de processamento de dados paralelo
Tem-se, no último inciso do art. 2o, um requinte do
que vulgarmente se chama “caixa 2”. Aqui, a contabilidade
paralela é ministrada por meio de programa eletrônico em
duplicidade: V – utilizar ou divulgar programa de processamento
de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária
possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei,
fornecida à Fazenda Pública.
Veja-se que basta o uso ou a divulgação do programa para
configurar o delito aqui versado, pois se trata de crime formal.
No entanto, o delito em comento é figura praticamente
inexistente nos pretórios, haja vista que requer o elemento
subjetivo especial de sua utilização, com fins de possuir
verdadeira contabilidade paralela, alimentado por informações
divergentes das prestadas ao fisco.
Nesse caso, existindo dolo, certamente o sistema
estará ocultando lançamentos, receitas ou operações na versão
ofertada para a Fazenda Pública, conseqüentemente já tendo
gerado desfalques à coletividade.
Dessa forma, com a ocorrência de dano, a conduta é
deslocada para o art. 1o, não se falando mais no crime formal63.
5. Crimes perpetrados por funcionários públicos
Não há dúvida de que os funcionários públicos são
os braços de atuação do Estado. Ninguém mais do que estes
devem propugnar pela retidão das contas públicas.
Em virtude disso, verifica-se no artigo em comento
as penas mais elevadas para os crimes tributários, podendo
chegar a oito anos de reclusão, pois este é o último degrau
entre o contribuinte e a perfectibilização da sonegação fiscal,
justificando-se maior grau de reprovabilidade do que nos
crimes promovidos por particulares: Art. 3o – Constitui crime
funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no
Decreto-lei no 2.848, de 7 dezembro de 1940 – Código Penal,
(Título XI, Capítulo I)64 .
5.1. Extravio de documentos fiscais
A conduta do presente artigo guarda íntima relação
com o crime previsto no art. 314, do Código Penal; seus verbos
nucleares guardam similitude.
Contudo, havendo a conotação fiscal, o agente
estará incurso na Lei Penal Fiscal, a saber: I – extraviar livro
oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a
guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou
parcialmente, acarretando pagamento indevido ou inexato de
tributo ou contribuição social.
Para a ocorrência do extravio, tem-se a perda total
ou parcial de documento/processo/livro sob a guarda de
autoridade fiscal, objetivando com tal ato a supressão/redução
de tributo, é dizer, estando no auxílio de contribuinte em busca
de seu desiderato sonegador.
Sonegar, neste tipo, será a resistência do agente público
em dar vista do documento/processo/livro, quando solicitado,
CORREA, Antonio. Dos crimes contra a ordem tributária. p. 190.
MONTEIRO, Samuel. Obra citada, p. 186.
63
LOVATTO, Alécio Adão. Crimes tributários... p. 126.
64
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
61
62
95
Artigo 08
ou mesmo ocultá-lo para que providências não sejam tomadas
objetivando a cobrança do crédito tributário65. Por fim, há
a conduta de inutilizá-lo, quando o agente anula, devasta o
documento, de modo a impossibilitar o conhecimento de seu
teor definitivamente.
Os documentos devem ser de natureza fiscal, exigidos
pela lei tributária, assim como os processos devem versar
sobre tributos. Sendo eles de natureza diversa, o funcionário
incorrerá no crime previsto no Código Penal66. Poderá ocorrer
a co-autoria de particulares, mas não a do contribuinte
em específico, que responderá pelos crimes do art. 1o. Os
particulares aqui seriam os que apenas auxiliaram o agente
público, sem, contudo aproveitar-se do tributo sonegado.
Nas condutas descritas, além da presença do
elemento subjetivo especial, visando a ludibriar a Fazenda
Pública, ocultando-lhe dados, o ato do agente público deve,
obrigatoriamente, redundar em pagamento indevido ou inexato
do tributo. Logo, tem-se a natureza de crime material.
5.2. Corrupção passiva tributária
Aqui, novamente, o delito é próprio, a ser perpetrado
por funcionário público, sendo possível a co-autoria de
particular quando a elementar se comunicar: II – exigir, solicitar
ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda
que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão
dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem,
para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social,
ou cobrá-los parcialmente.
A conduta do funcionário pode se dar de três formas
possíveis, tais quais os verbos nucleares do tipo. Na exigência,
o agente verdadeiramente impõe, obriga ao contribuinte o
pagamento de vantagem, para si ou para outrem, objetivando
a economia fiscal ilícita para aquele: estar-se-ia a falar na
concussão do Código Penal, especializada aqui pelo cunho
fiscal. Solicitar, é o ato de pedir, sem o temor reverencial,
como ocorre na exigência, embora a punição em abstrato seja
mesma. Por fim, existe a conduta de efetivamente receber, a
qual prescinde da exigência ou solicitação anterior. O mero
recebimento, curvando-se à corrupção ativa do contribuinte, já
é assaz para efetivar a consumação do delito em tela.
As condutas de solicitar e receber guardam similitude
com o delito de corrupção passiva previsto no Código Penal67 ,
sendo que aqui o crime encerra o aspecto fiscal.
Enquanto a solicitação, assim como ocorre na
exigência, é delito formal, abstraindo a existência de resultado,
que restará como mero exaurimento e reflexivo na dosimetria
da pena, o recebimento é verbo nuclear que conduz a natureza
material desse tipo de ação variada. Nesse caso, a efetiva
corrupção, com entrega da vantagem indevida, é necessária
para a consumação do delito.
5.3. Advocacia administrativa fiscal
Por fim, para fechar o rol de tipos penais fiscais,
perpetrados por funcionários públicos, está a advocacia
administrativa: III – patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração fazendária valendo-se da
qualidade de funcionário público68:
Apesar do nome advocacia, a conduta não é própria
de advogado, podendo ser realizada por qualquer funcionário
público, em razão de sua atividade, ou ainda terceiro quando
agindo em concurso de pessoas com aquele. O ato de pleitear
interesse privado de terceiro perante a administração fiscal não
precisa ter êxito, visto que se trata de crime formal, em que
a punição eclode com a atitude de agir de forma impessoal,
ferindo a moralidade administrativa, e não sobre o efetivo
ganho do terceiro interessado. O dano ao fisco será encarado
como efeito do exaurimento, influindo na aplicação da pena.
Não importa se o interesse é lícito ou ilícito, bastando
que a atividade do funcionário público vá além daquelas que
lhe são inerentes, funcionando como favorecimento pessoal ou
mesmo infração de dever funcional. Sem embargo, o conflito
aparente de normas havido com o delito preconizado no
art. 321 do Código Penal – Advocacia Administrativa – é
afastado pela especialidade do envolvimento fiscal da ação.
6. Conclusão
O tributo representa, sem embargo, a forma de ingresso
financeiro no Estado, legítima e necessária, para permitir a
este que alcance ao seu povo instrumentos e políticas sociais
tipicamente estatais ou mesmo em setores de desinteresse pela
iniciativa privada. Neste norte, o Estado demanda pelas receitas
ingressantes com o pagamento dos tributos para implementar sua
ação. A fraude ou o inadimplemento contra o sistema tributário
representa, em certa medida, a deficiência dessas contraprestações.
Através dessa perspectiva, verifica-se deveras necessário e válido
o comparecimento de instrumentos de repressão à inadimplência
tributária, seja ela fraudulenta ou não.
A Lei de Execuções Fiscais, de número 6.830, do ano
de 1980, garante procedimento mais ágil que o procedimento
alcançado aos créditos de natureza não-fiscal. Além disso,
o crédito tributário goza de privilegiada posição na lista de
preferências para satisfação em procedimentos executivos
individuais ou coletivos. Essa proteção objetivando a cobrança,
MONTEIRO, Samuel. Obra citada. p. 193.
LOVATTO, Alécio Adão. Obra citada. p. 132.
67
Art. 317. – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em função dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.
68
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
65
66
9
Crimes Tributários na Legislação Brasileira
diante do fato de o tributo não estar no patamar de bem jurídico
penal, é suficiente, mostrando-se a punição penal uma política
de terror.
Passando ao problema da quebra do sistema, temse que o Estado demonstra, de inúmeras formas, o interesse
único em receber tributos, não em punir com o Direito Penal.
Às vezes essa sanção nem mesmo acontece na esfera tributária.
A utilização do Direito Penal em microssistemas, como é
o caso da esfera penal tributária, valendo-se de normas de
cariz casuístico, desprovida de uma correlação clara com bem
jurídico e dano efetivo, implica numa odiosa sobreposição de
princípios de controle sobre regras constitucionais penais.
Preocupado com o crescimento da inadimplência
tributária, o governo federal, levando a reboque os governos
estaduais e municipais, implementou planos de reestruturação
fiscal. Nestes, o contribuinte viu-se livre do pagamento de
multas, apenas adimplindo com o principal acrescido da
taxa Selic. Assim, o contribuinte resta sem sanções penais
ou administrativas. Ainda, eventuais fraudes cometidas no
intento da redução/supressão do tributo, absorvidas pelo crime
tributário, têm sua punibilidade extinta segundo a previsão do
art. 9o da Lei 10.684/03. Dessa forma, com a hipótese de extinção
da punibilidade, sem ater-se a qualquer limitação temporal no
que diz respeito à satisfação integral do débito, comprova-se
onde está o maior interesse do Estado: na satisfação da dívida
e não na sanção ou utilização do Direito Penal.
Quis o legislador, na verdade, tão-somente, tipificar
a conduta delitiva como forma de intimidar o contribuinte
ao pagamento do tributo, cuja natureza, da exação, é
eminentemente social. O adimplemento das obrigações fiscais,
no caso de ser alvo de investigação pelo fisco/Ministério
Público, pode até mesmo ser considerado como risco calculado.
Frauda-se a Ordem Tributária, suprime-se o tributo, caso seja
alvo de um processo criminal, e o simples pagamento desonera
o criminoso de qualquer sanção penal ou administrativa.
Assim, a lei penal que serviria de mero e espúrio utensílio de
cobrança, intimidando o sonegador, talvez esteja até mesmo
laborando no decréscimo de receitas tributárias, visto que
o receio pela punição, seja ela de qualquer natureza, resta
afastado. Prejudica-se, ainda, o registro simbólico denotado
pelas normas penais e suas conseqüências.
Não se pode mercantilizar o Direito Penal, pensandoo a partir de premissas puramente econômicas. Estar-se-ia
confrontando verbas com a liberdade e porque não dizer a vida
dos cidadãos. Com a demonstração evidente de interesse estatal
pelo adimplemento da obrigação tributária e não pela sanção
penal, verifica-se que o bem jurídico que sustenta a norma é o
crédito, e nesse caso, entendemos se tratar de mero interesse.
7. Referências
ANDRADE FILHO, Edmar Oliveira. Direito penal tributário:
crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 1994.
BARROS, Suzana Toledo de. O princípio da proporcionalidade
e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos
fundamentais. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
BERTOLUCI, Marcelo Machado. A inconstitucionalidade
do art 2o, II, da Lei n. 8.137/90. In: FAYET JR., Ney (Org.).
Ensaios penais em homenagem ao professor Alberto Rufino
Rodrigues de Sousa. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003.
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97
Artigo 09
Artigo 09
A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do
Contratante Vulnerável
Marcelo Junqueira Calixto1
1. A função social do contrato como princípio do direito contratual. 2. A função social e sua ligação com a causa do
contrato. 3. A função social do contrato e a proteção do consumidor. 4. Conclusão. 5. Referências.
Resumo
O artigo defende a aproximação entre a função social,
agora expressamente prevista pelo Código Civil, e o instituto
da causa do contrato, que não encontra previsão expressa em
nosso ordenamento. A partir desta leitura, defende um maior
controle sobre o conteúdo do contrato, em especial quando
presente uma relação de consumo, o que se justifica pela
proteção constitucionalmente dispensada ao consumidor.
Palavras-chave: Função social do contrato; causa contratual;
vulnerabilidade do consumidor; proteção constitucional do
consumidor; controle do conteúdo do contrato.
1. A função social do contrato como princípio do direito
contratual
A superação do liberalismo econômico e do excessivo
individualismo trouxe como conseqüência mais evidente a
socialização de certos institutos jurídicos. De fato, em primeiro
lugar, foi possível afirmar a função social da propriedade e,
a seguir, passou-se igualmente a falar em função social do
contrato, a qual restou finalmente consagrada no Código Civil
de 2002. É o que se pode ler no art. 421 deste diploma: “Art.
421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato”2 .
Essa função social, no entanto, não deve ser entendida
como criação do legislador ordinário, mas deve antes encontrar
seu fundamento na Constituição de 1988. Em verdade, é
neste último diploma que se observa, como fundamento da
República Federativa do Brasil, “os valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa” (art. 1 , IV)3. Além disso, afirma-se que a
“ordem econômica” tem por fim “assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social”4.
A partir desses dispositivos, é possível dizer que a
função social do contrato apresenta-se como princípio de índole
constitucional a ser observado tanto pelo legislador ordinário
quanto, especialmente, pelos particulares que cotidianamente
celebram seus negócios jurídicos. Defende-se, assim, a eficácia
direta das normas constitucionais, de maneira que a cláusula
Doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor adjunto do Departamento de Direito da PUC-RJ e professor dos
cursos de Pós-Graduação da PUC-RJ, FGV, UERJ e UCAM, advogado.
2
Além deste artigo, a função social do contrato foi expressamente referida no § único do art. 2.035, no qual pode ser considerada como requisito de validade do negócio
jurídico. De fato, afirma o dispositivo: “Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao
disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver
sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os
estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.
Interessante aplicação do disposto neste artigo ocorreu por ocasião do julgamento do REsp. 691.738/SC (STJ, 3a T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 12.05.2005, publ.
DJ em 26.09.2005). A questão central versava sobre a possibilidade de aplicação do disposto no art. 1.488 do Código Civil de 2002 a contrato celebrado anteriormente
à vigência desse diploma, o que teria, por conseqüência, o levantamento da hipoteca daquelas unidades imobiliárias que já tinham sido pagas pelos promitentescompradores. O recurso especial foi parcialmente conhecido e, nessa parte, provido, tendo o voto condutor da Ministra Relatora afirmado que “o art. 1.488 do CC/02
consubstancia um dos exemplos de materialização do princípio da função social dos contratos, que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a idéia que está
por trás dessa disposição é a de proteger terceiros que, de boa-fé, adquirem imóveis cuja construção – ou loteamento – fora anteriormente financiada por instituição
financeira mediante garantia hipotecária. Inúmeros são os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as prestações para a aquisição de
imóvel – pagamentos esses, muitas vezes, feitos às custas de enorme esforço financeiro – são surpreendidos pela impossibilidade de transmissão da propriedade do bem
em função da inadimplência da construtora perante o agente financeiro”. E, logo a seguir, ainda afirma que “o princípio da função social dos contratos, portanto, clama
aplicação no caso concreto”. Recorde-se ainda, por oportuno, que o mesmo STJ editou a súmula 308, segundo a qual “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente
financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
3
O art. 1o da Constituição da República dispõe: “Art. 1o. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”.
4
É o que se lê no art. 170, verbis: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre
concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e
serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido
para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre
exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.
Para NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2a. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 209, contudo, – por força do entendimento que adota em
relação à função social do contrato –, esta “encontra fundamento constitucional no princípio da solidariedade, a exigir que os contratantes e os terceiros colaborem
entre si, respeitando as situações jurídicas anteriormente constituídas, ainda que as mesmas não sejam providas de eficácia real, mas desde que a sua prévia existência
seja conhecida pelas pessoas implicadas”.
1
98
A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do Contratante Vulnerável
geral prevista no diploma civil, sendo constitucionalmente
qualificada, deverá incidir em toda relação contratual celebrada
por particulares5.
Esta visão permite igualmente que se afirme ser a
função social do contrato um princípio do direito contratual,
a ser acrescentado a outros princípios já estudados há mais
tempo pela doutrina nacional6.
Mas esta mesma visão não responde a outra grave questão,
justamente aquela relativa ao significado que se deve atribuir à
função social quando aplicada ao direito contratual. Neste sentido,
é possível observar ao menos duas posições doutrinárias.
A primeira visão afirma que a função social importa
uma releitura do vetusto princípio da relatividade dos efeitos
contratuais, ao permitir que terceiros não contratantes – mas
sabedores da avença estipulada – venham a sofrer alguns
efeitos desse contrato, distinguindo-se, assim, entre relatividade
e oponibilidade dos efeitos7.
A segunda visão procura observar o conteúdo do
contrato, afirmando que é a função social que impõe uma
equivalência entre as prestações contratuais, garantindo, em um
certo sentido, à justiça contratual8.
Nesse sentido, a função social do contrato diferenciase, igualmente, da boa-fé objetiva, uma vez que esta observa a
conduta das partes em todo o desenrolar da relação jurídica
obrigacional, ao passo que aquela fixa-se unicamente no contrato,
determinando a validade ou invalidade de suas cláusulas9.
Sobre o tema a respeito da eficácia direta das normas constitucionais nas relações entre particulares pode ser visto o artigo de TEPEDINO, Gustavo. “Normas
constitucionais e relações de Direito Civil na experiência brasileira”, In: Temas de Direito Civil, tomo II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 21-46.
Para um conceito de cláusula geral, técnica legislativa utilizada na redação do art. 421, pode ser vista a obra de MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 273-304.
6
A constatação de que a teoria geral dos contratos deve ser informada por novos princípios não escapou à observação dos civilistas brasileiros reunidos em Brasília para
a III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, em 2004. Nesta ocasião, foi aprovado o enunciado n. 167, que dispõe: “167 – Arts. 421 a
424. Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual,
uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”. Neste sentido, igualmente, a doutrina de MATTIETTO, Leonardo. O Direito Civil
Constitucional e a nova teoria dos contratos. In: Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 182, quando afirma que “talvez a própria
consideração de uma nova teoria contratual fosse desnecessária em virtude do reconhecimento da relatividade histórica dos conceitos jurídicos, rompendo-se com o
dogmatismo da ciência jurídica. Entretanto, deve-se concordar que, se é mesmo que não se está diante de uma nova teoria dos contratos, pelo menos se tem hoje, no Brasil,
um direito dos contratos profundamente renovado” (grifos no original).
7
Tal é a doutrina de NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato, cit. p. 266-275.
Essa perspectiva é também desenvolvida por ROSENWALD, Nélson. A função social do contrato. In: HIRONAKA, Giselda; TARTUCE, Flávio (Coord.) Direito
Contratual: temas atuais, São Paulo: Método, 2007, p. 81-111, muito embora o autor, além dessa função social “externa”, também apresenta a função social “interna” do
contrato, muito mais próxima da segunda visão doutrinária aqui recordada. Também favorável às duas perspectivas da função social do contrato é a doutrina de FONSECA,
Rodrigo Garcia da. A função social do contrato e o alcance do artigo 421 do Código Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 243-249. Neste sentido, pode ser vista, igualmente,
a obra de GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, que fala do conteúdo inter partes e do conteúdo ultra partes da função
social do contrato. Também para TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002, 2a ed., São Paulo: Método,
2007, p. 239-411, é possível observar uma “eficácia interna” e uma “eficácia externa” da função social do contrato.
É interessante recordar que essa primeira visão foi a que prevaleceu na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em 2002, ocasião em que foi
aprovado o enunciado n. 21, que dispõe: “21 – Art. 421. A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do
princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”. Entretanto, por ocasião da IV Jornada, realizada em 2006, foi
aprovado o enunciado n. 360, que afirma: “360 – Art. 421. O princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes”.
Propondo uma nova visão sobre o velho princípio da relatividade dos efeitos contratuais pode ser visto o artigo de MULHOLLAND, Caitlin. O Princípio da Relatividade
dos Efeitos Contratuais. In: MORAES, Maria Celina Bodin de. (Coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 255-280.
8
A referência a esta justiça contratual pode ser depreendida, igualmente, do disposto no enunciado n. 22, aprovado na I Jornada de Direito Civil, realizada em 2002, afirma
que: “22 – Art. 421. A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato,
assegurando trocas úteis e justas”.
Embora sem se referir à justiça contratual, mas considerando “insuficiente” a análise da “função social do contrato apenas sob a ótica da tutela externa do crédito”, é a
opinião de COSTA, Pedro Oliveira da. Apontamentos para uma visão abrangente da função social dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.) Obrigações estudos
na perspectiva civil-constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 67.
9
Esta distinção foi encarecida em dois julgados da 3a Turma do STJ, ambos da relatoria da Ministra Nancy Andrighi (REsp. 783.404/GO, julg. em 28.06.2007, publ. DJ em
13.08.2007 e REsp. 803.481/GO, julg. em 28.06.2007, publ. DJ em 01.08.2007). A situação fática era semelhante e versava sobre contrato com preço fixo, mas cotado em
dólares americanos, de compra e venda de safra futura de soja. Os agricultores ajuizaram ações de revisão das cláusulas contratuais, pois se sentiram prejudicados pelo fato
de ter havido grande oscilação no valor do dólar americano frente ao real, tendo o Tribunal de Justiça goiano acatado seus argumentos. Contudo, os dois recursos especiais
foram conhecidos e providos, por unanimidade, entendendo-se ausentes os requisitos previstos no art. 478 do Código Civil. No que aqui interessa, vale a transcrição de
trecho do voto da Ministra Relatora, no qual afirma que “a função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel primário e natural, que é o econômico.
Este não pode ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma atividade beneficente. Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistência social. Por mais que o
indivíduo mereça tal assistência, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que não podem
ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu aplicador. A função social não se apresenta como objetivo do contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes
em promover a circulação de riquezas”. E, a seguir, ainda aduz que “quanto à boa-fé objetiva, esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta,
arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal”.
Também por ocasião do julgamento do REsp. 617.045/GO (STJ, 3a T., Rel. Min. Castro Filho, julg. em 28.10.2004, publ. DJ em 17.12.2004) considerou-se como ofensiva
à boa-fé objetiva a conduta da construtora que celebra contrato de financiamento com banco – dando como garantia as unidades imobiliárias – sem, contudo, informar o
promitente-comprador da hipoteca que grava o imóvel. Consta, de fato, da ementa deste julgado o seguinte: “É nula a cláusula que prevê a instituição de ônus real sobre
o imóvel, sem o consentimento do promitente-comprador, por ofensa ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no Código de Defesa do Consumidor”.
Essa visão da boa-fé objetiva como norma de conduta das partes é, aliás, a que resulta evidente da leitura do art. 422 do Código Civil, verbis: “Art. 422. Os contratantes
são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Para uma leitura crítica deste dispositivo pode
ser visto o artigo de AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva. In: Revista
dos Tribunais, n. 775, São Paulo. maio de 2000, p. 11-17.
Observe-se, contudo, que no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento no 853.052/SP (STJ, 5a T., Rel. Min. Laurita Vaz, julg. em 26.06.2007, publ. DJ em 06.08.2007),
entendeu-se que a análise das cláusulas contratuais, a fim de determinar se teria ou não havido violação à função social do contrato, importaria em ofensa ao disposto nas
súmulas 5 e 7, o que é “inviável na via estreita do recurso especial”.
Mas, por ocasião do julgamento do já citado REsp. 783.404/GO (STJ, 3a T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 28.06.2007, publ. DJ em 13.08.2007), foi debatida a matéria
relativa à eventual abusividade de certas cláusulas contratuais, colhendo-se do voto condutor do acórdão que “eventual abusividade de determinadas cláusulas acessórias do
contrato em tela não tem relevância para o deslinde desta ação. Ainda que, em tese, transgridam os princípios da boa-fé objetiva, da probidade e da função social do contrato
ou imponham ônus excessivo ao recorrido, tais abusos não teriam o condão de contaminar de maneira irremediável o instrumento, de sorte a resolvê-lo, até porque, como
visto, seu objeto principal se mostra absolutamente lícito. Estipulações como o risco exclusivo do produtor pela entrega da mercadoria ou multa em valor excessivo podem
eventualmente dar azo à revisão das respectivas cláusulas, mas não facultam, por si só, a resolução do contrato”. Na ocasião foi igualmente recordado o disposto no art. 184,
segunda parte, do Código Civil, que se transcreve: “Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida,
se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”.
5
99
Artigo 09
Com fundamento nesta segunda visão, ainda é
possível afirmar que a função social, ao permitir um controle
sobre a função do contrato, aproxima-se do instituto da causa
contratual, em especial quando se atribui a esta o significado
desenvolvido pela doutrina italiana, isto é, o significado de
síntese dos efeitos jurídicos essenciais do contrato10.
2. A função social e sua ligação com a causa do contrato
É corrente na doutrina nacional a afirmação
que o direito brasileiro, na esteira do sistema alemão que
teria inspirado o codificador de 1916, adotou uma posição
anticausalista ao prever os requisitos de validade do negócio
jurídico11. Em verdade, tal como já se observava no diploma
revogado, também hoje se afirma que o negócio jurídico, para
ser válido, exige tão somente a capacidade do agente, a licitude
e possibilidade do objeto e a observância de determinada forma
(Código Civil, art. 104)12. Da mesma forma, entre as hipóteses
de nulidade, ou mesmo de anulabilidade do negócio jurídico,
não há referência expressa à sua causa13.
Em sentido contrário a esta opinião majoritária,
porém, levanta-se a voz daqueles que enxergam na causa do
contrato a possibilidade de dar a esse instituto uma função. De
fato, esta ilustre doutrina recorda que todo instituto jurídico
tem uma estrutura, e deve igualmente apresentar determinada
função14. Tal função, por certo, só poderá merecer a guarida
do ordenamento jurídico se for obediente aos ditames
constitucionais15.
É necessário observar, contudo, que são duas as
principais visões sobre o instituto da causa. A primeira, que teve
maior prestígio na França, assume uma posição mais subjetiva
do instituto, aproximando-o dos motivos determinantes que
levaram os contratantes a estabelecer o negócio jurídico.
Já a segunda visão ganhou força na Itália e pode
ser reputada mais objetiva, uma vez que, em seu estágio mais
desenvolvido, passou a entender a causa como a síntese dos
efeitos (jurídicos) essenciais do contrato16.
Dessa forma, aceitando-se este último conceito de
causa do contrato, pode ser dito que este somente poderá
ser validamente estipulado e executado se aquela atender aos
ditames constitucionais, isto é, se os efeitos decorrentes do
negócio jurídico concretizarem os princípios consagrados na
Constituição da República.
Pode-se ainda dizer que a funcionalização do contrato
deve considerar elementos mais concretos e não, por exemplo, a
genérica capacidade das partes para celebrar negócios jurídicos
bilaterais. Em conseqüência, ao se considerar a relação jurídica
estabelecida, pode ser afirmado que se trata de relação jurídica
de consumo, o que impõe a observância da legislação especial
protetiva do consumidor.
Neste sentido, pode ser visto o “comentário” ao art. 421 constante da obra coletiva TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES. Maria Celina Bodin
de. et al., Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 13, onde se lê: “A partir de tal elaboração, aproximam-se
as noções de causa e função social. Aquela serve de diretriz à autonomia privada, na medida em que possibilita o controle dos atos negociais. Por outro lado, o negócio
jurídico que desatende a função social não terá sua causa considerada merecedora de tutela por parte do ordenamento (...). Tal controle, convém insistir, não se reduz ao
exame da licitude dos negócios, mas abrange o juízo de conformidade com o ordenamento jurídico, a ser levado a cabo, casuisticamente, pela jurisprudência, segundo
parâmetros e limites constitucionalmente estabelecidos (...)”.
11
Veja-se, por todos, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I, 20a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 508-509. (atualizada por Maria Celina
Bodin de Moraes)
12
Afirma o art. 104 do Código Civil: “Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita ou não defesa em lei”.
13
As hipóteses de nulidade do negócio jurídico estão previstas no art. 166 do Código Civil, verbis: “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I – celebrado por pessoa
absolutamente incapaz; II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV – não revestir
a forma prescrita em lei; V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII – a lei
taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção”. Além desse dispositivo, o art. 167 também prevê a nulidade do negócio simulado, ao afirmar
que: “Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. As hipóteses de anulabilidade dos negócios
jurídicos, por sua vez, constam do art. 171, verbis: “Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I – por incapacidade relativa
do agente; II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores”.
O fato da causa não constar dos requisitos de validade do negócio jurídico (CC, art. 104) é corretamente elogiado por RENTERÍA, Pablo. “Considerações acerca do
atual debate sobre o Princípio da Função Social do Contrato. In: Princípios do Direito Civil Contemporâneo, cit., p. 300, que assevera: “Além do mais, talvez não tenha
andado mal o Código ao não incluir a causa no elenco de requisitos de validade do negócio jurídico (art. 104). Afinal, a causa não é um elemento essencial do negócio
como o são os demais requisitos. A causa é um requisito de outra ordem, é um quid que ilumina o contrato na sua dimensão de valor e de regulamento de interesses. Daí
que melhor seja prevê-la isoladamente tal como uma cláusula geral, o que evitaria, de passagem, as confusões suscitadas naqueles ordenamentos em que a causa aparece
junto com os demais requisitos” (grifos no original).
14
Recorda-se aqui a doutrina de PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. por Maria Cristina De Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 1997, p. 94, que, ao se referir ao fato jurídico, recorda que “é da máxima importância identificar a estrutura e a função do fato jurídico. Preliminarmente,
pode-se dizer que estrutura e função respondem a duas indagações que se põem em torno ao fato. O ‘como é?’ evidencia a estrutura, o ‘para que serve?’ evidencia a
função”.
15
Esclarecedora é a opinião de KONDER, Carlos Nélson. Contratos Conexos: Grupos de Contratos, Redes Contratuais e Contratos Coligados, Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 33, quando afirma: “O principal instrumento de funcionalização no âmbito dos negócios jurídicos – especialmente dos contratos – é a causa. Nos
ordenamentos que a prevêem expressamente – como Itália, França e Espanha – a causa desempenha o relevante papel de controle da autonomia privada e, desse
modo, de constitucionalização do contrato. Ao se exigir a licitude da causa do negócio, permite-se uma interferência maior na atividade negocial de maneira a exigir
sua compatibilidade com os preceitos constitucionais. A causa também funciona como parâmetro de equilíbrio entre as partes e desempenha um papel extremamente
relevante no processo de interpretação-qualificação do contrato”.
16
As noções subjetiva e objetiva da causa são estudadas por MORAES, Maria Celina Bodin de. A Causa dos Contratos. In: Revista Trimestral de Direito Civil,
v. 21, Rio de Janeiro: PADMA, jan./mar. de 2005, p. 102-110. A autora, após passar em revista os diversos conceitos de causa, afirma (p. 108) que “nesta perspectiva,
sendo a causa elemento inderrogável do negócio, e considerando, por outro lado, que não pode existir negócio que, em abstrato, no seu esquema típico, não tenha efeitos,
entendeu-se que todo e qualquer negócio tem uma causa e que esta é, precisamente, a síntese dos seus efeitos jurídicos essenciais” (original grifado). Recorde-se que a
mesma autora já havia se debruçado sobre o tema no alentado artigo O Procedimento de Qualificação dos Contratos e a Dupla Configuração do Contrato de Mútuo no
Direito Civil Brasileiro. In: Revista Forense, v. 309, Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 33-61.
10
100
A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do Contratante Vulnerável
3. A função social do contrato e a proteção do consumidor
Recorde-se, inicialmente, que entre os princípios da
de cláusulas contratuais reputadas abusivas, as quais são
consideradas “nulas de pleno direito”19.
ordem econômica, tal como previstos pela Constituição da
Além dessas hipóteses que, repita-se, não são exaus-
República, encontra-se o princípio da “defesa do consumidor”
tivas, será possível afirmar a abusividade de todo contrato de
(art. 170, V). Essa mesma defesa foi ainda consagrada no
consumo que não apresenta uma função social conforme os
Título II da Lei Maior, dedicado aos “direitos e garantias
ditames constitucionais ou, em outras palavras, cuja causa seja
fundamentais”, que diz “o Estado promoverá, na forma da lei,
contrária a estes mesmos princípios constitucionais20.
a defesa do consumidor” (art. 5o, XXXII).
Pode ainda ser dito que este caráter abusivo
Assim, é possível afirmar que o constituinte originário
resultará mais evidente quando o contrato estabelecido
reconheceu a vulnerabilidade do consumidor, razão pela
pelas partes envolver, de forma direta ou indireta, interesses
qual estabeleceu, com prioridade temporal, a necessidade de
ligados à dignidade da pessoa humana (Constituição da
elaborar de uma lei que tutelasse este ente17.
República, art. 1o, III), uma vez que, dentre os fundamentos
Com a promulgação do Código de Proteção e Defesa
da República, é este que deve ser considerado com especial
do Consumidor tem-se o reconhecimento desta mesma
destaque. Coerentemente com essa visão, pode ser recordado
vulnerabilidade e referido diploma terá, entre suas finalidades,
que é o próprio CDC que determina a observância da pessoa
a busca do equilíbrio entre as partes de uma relação jurídica
potencialmente consumidora, vedando que o fornecedor se
naturalmente desequilibrada .
aproveite de sua condição de especial vulnerabilidade21.
18
Dessa forma, é possível afirmar que a função social
do contrato adquire especial relevância quando se trata de um
4. Conclusão
contrato em que se observa uma relação jurídica de consumo.
Concluindo, pode-se constatar que a referência à
A favor deste raciocínio deve ser inicialmente recordado que
função social do contrato permite igualmente uma análise de sua
o próprio CDC consagra, em um rol não exaustivo, uma série
causa, reputando-se abusiva e, portanto, inválida, toda cláusula
A prioridade temporal referida no texto consta do art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), verbis: “Art. 48. O Congresso Nacional, dentro
de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”. Sabe-se, no entanto, que esse prazo foi em muito superado, uma vez
que a Lei 8.078, que “dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências”, só foi promulgada em 11 de setembro de 1990, entrando em vigor 180 (cento e
oitenta) dias após sua publicação.
18
O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor consta do inciso I do art. 4o do CDC, que dispõe: “Art. 4o. A Política Nacional das Relações de Consumo tem
por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria
da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da vulnerabilidade
do consumidor no mercado de consumo”. A busca do equilíbrio na relação de consumo, além de constar do caput deste artigo, consta também do seu inciso III, que
se transcreve: “(...); III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de
desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base
na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.
Sobre a vulnerabilidade do consumidor e as conseqüências daí advindas seja consentido remeter a CALIXTO, Marcelo Junqueira. O Princípio da Vulnerabilidade do
Consumidor. In: Princípios do Direito Civil Contemporâneo, cit. p. 315-356.
19
É o que diz o art. 51 do CDC, cujo caput afirma: “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e
serviços que: (...)”. Deste dispositivo merece ser destacado o consignado no inciso IV, que se transcreve: “IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade”. Além disso, afirma o § 1o do mesmo dispositivo: “§ 1o.
Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II – restringe direitos ou obrigações
fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual; III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor,
considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso”.
20
Recorde-se, contudo, que, se for possível isolar a cláusula reputada abusiva, a nulidade não deve atingir todo o contrato, mas só a cláusula contrária ao sistema de
proteção do consumidor. Neste sentido, pode ser visto o disposto no § 2o do art. 51 do CDC, que se transcreve: “Art. 51. (...). § 2o. A nulidade de uma cláusula contratual
abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes”.
Interessante hipótese em que se afirmou o caráter abusivo de determinada cláusula contratual, mantendo-se a validade das demais, ocorreu por ocasião do julgamento do
REsp. 476.649/SP (STJ, 3a T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 20.11.2003, publ. DJ em 25.02.2004). A questão versava sobre o valor da multa moratória decorrente
do atraso no pagamento de mensalidades escolares. O consumidor, aluno da instituição ré, entendia aplicável o limite de 2% (dois por cento) previsto no art. 52, § 1o
do CDC, com redação determinada pela Lei 9.298/96; a instituição educacional, por sua vez, pleiteava a aplicação do montante de 10% (dez por cento) sobre o valor
da mensalidade, uma vez que seria inaplicável o disposto no art. 52 do CDC, pois não se tratava de empréstimo e sim de prestação de serviços educacionais. O recurso
especial não foi conhecido e, em seu voto, a Ministra Relatora afirma que “urge salientar, por último, que a limitação da multa moratória incidente sobre mensalidades
escolares determinada na origem encontra amparo na função social do contrato, e se harmoniza até mesmo com o art. 413 do CC/02, que veio tratar da matéria nos
seguintes termos: ‘a penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for
manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e finalidade do negócio’.
21
Neste sentido, pode ser visto o rol – também não exaustivo – de práticas abusivas, constante do art. 39 do CDC. Destaca-se aqui o disposto no inciso IV, verbis: “Art.
39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...); IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista
sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”.
Perfeita, igualmente, a defesa do paradigma da essencialidade, tal como formulada por NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato, cit., p. 342, que assevera: “Por esta via,
sugere-se a consagração, ao lado e como complemento ao paradigma da diversidade, do ‘paradigma da essencialidade’, a um só tempo metodologicamente adequado
aos novos critérios de diferenciação dos contratos, como, além disso, axiologicamente congruente com os valores constitucionais. O paradigma da essencialidade
consubstancia um modelo de pesquisa contratual, segundo o qual o regime do contrato deve ser diferenciado em correspondência com a classificação do bem contratado.
Esta classificação divide os bens em essenciais, úteis e supérfluos, levando em conta a destinação mais ou menos existencial conferida pelo sujeito contratante ao bem
contratado”.
17
101
Artigo 09
contratual que atentar contra aquela função, uma vez que, em
FONSECA, Rodrigo Garcia. A função social do contrato e o
verdade, o que se verificará é a violação dos princípios e valores
alcance do artigo 421 do Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
constitucionalmente consagrados, destacando-se o princípio
2007.
fundamental da proteção à dignidade da pessoa humana22.
Além disso, é possível afirmar que o exame do
caráter abusivo de certos contratos de consumo ou, ao menos,
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato.
São Paulo: Saraiva, 2004.
de algumas de suas cláusulas, não poderá prescindir da
KONDER, Carlos Nélson. Contratos Conexos: Grupos de
consideração da pessoa concreta do contratante, de maneira
Contratos, Redes Contratuais e Contratos Coligados. Rio de
que, por exemplo, os contratos de crédito em favor de jovens
Janeiro: Renovar, 2006.
consumidores, – ou de idosos –, deverão receber especial
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do
atenção por parte do julgador eventualmente chamado a
Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4. ed. São
apreciar sua validade.
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
5. Referências
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MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
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MATTIETTO, Leonardo. O Direito Civil Constitucional
boa-fé objetiva. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: 775, maio
e a Nova Teoria dos Contratos. In: TEPEDINO, Gustavo
de 2000, p. 11-17.
(Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de
BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin
Janeiro: Renovar: 2000, p. 163-186.
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MORAES, Maria Celina Bodin de. A Causa dos Contratos. In:
conforme a Constituição da República. V. II. Rio de Janeiro:
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v. 21, jan./mar. de 2005, p. 95-119.
CALIXTO, Marcelo Junqueira. O Princípio da Vulnerabilidade
. O Procedimento de Qualificação dos Contratos
do Consumidor. In: MORAES, Maria Celina Bodin de
e a Dupla Configuração do Contrato de Mútuo no Direito
(Coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de
Civil Brasileiro. In: Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense,
Janeiro: Renovar, 2006, p. 315-356.
v. 309, 1990, p. 33-61.
. Reflexões em torno do conceito de obrigação, seus
. BARBOZA, Heloísa Helena; TEPEDINO,
elementos e suas fontes. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.).
Gustavo et al. Código Civil Interpretado conforme a Constituição
Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de
da República. Rio de Janeiro: Renovar, v. II, 2006.
Janeiro: Renovar, 2005, p. 1-28.
MULHOLLAND, Caitlin. O Princípio da Relatividade dos
COSTA, Pedro Oliveira da. Apontamentos para uma visão
Efeitos Contratuais. In: MORAES, Maria Celina Bodin de
abrangente da função social dos contratos. In: TEPEDINO,
(Coord.) Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de
Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-
Janeiro: Renovar, 2006, p. 255-280.
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 45-68.
Neste sentido, é lapidar a afirmação de TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: A Parte
Geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, 3a ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. XXXII, quando afirma que: “Entende-se, então, o real
significado da cláusula geral da função social do contrato, prevista no art. 421 do Código de 2002, segundo a qual ‘a liberdade de contratar será exercida em razão e
nos limites da função social do contrato’. À luz do texto constitucional, a função social torna-se razão determinante e elemento limitador da liberdade de contratar, na
medida em que esta só se justifica na persecução dos fundamentos e objetivos da República acima transcritos. Extrai-se daí a definição da função social do contrato,
entendida como o dever imposto aos contratantes de atender – ao lado dos próprios interesses individuais perseguidos pelo regulamento contratual – a interesses
extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos. Tais interesses dizem respeito, dentre outros,
aos consumidores, à livre concorrência, ao meio ambiente, às relações de trabalho” (grifou-se).
Tal perspectiva é compartilhada por MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais, 4a ed, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 210-222, quando analisa o contrato “como ponto de encontro de direitos fundamentais”.
Essa nova percepção da função social do contrato não escapou à arguta observação da Ministra Nancy Andrighi que, por ocasião do julgamento do já citado REsp.
691.738/SC (STJ, 3a T., julg. em 12.05.2005, publ. DJ em 26.09.2005), afirmou o seguinte: “Assim também ocorrerá com o princípio da função social dos contratos. Para
que essa evolução se possa verificar, todavia, é necessário que esse princípio seja, reiteradamente, submetido ao duro teste da realidade. Somente a prática demonstrará
quais os limites em que o magistrado transitará em sua aplicação. Por isso é importante, em cada caso, relembrar o que levou o legislador a introduzir essa inovação em
nosso sistema jurídico e, especificamente para cada caso concreto, verificar se há harmonia no sistema, se há uma situação de fragilidade de uma das partes e se, dado
tudo isso, a aplicação do princípio se justifica”.
Embora sem fazer alusão à causa do contrato, é válida a referência ao enunciado n. 23, aprovado na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça
Federal, em setembro de 2002, que afirma: “23 – Art. 421. A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia
contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.
22
102
A Função Social do Contrato e a Tutela Jurídica do Contratante Vulnerável
NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas.
TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contratos: do Código
2a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. 2a ed. São
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo:
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil
20a ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I, 2004. (Atualizado por
Paulo: Método, 2007.
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e relações de
Direito Civil na experiência brasileira. In: Temas de Direito
Civil, tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 21-46.
Maria Celina Bodin de Moraes)
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução
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Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
. Crise de fontes normativas e técnica legislativa
na Parte Geral do Código Civil de 2002. In: TEPEDINO,
Gustavo (Coord.) A Parte Geral do Novo Código Civil: estudos
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RENTERÍA, Pablo. Considerações acerca do atual debate
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MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil
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ROSENWALD, Nélson. A função social do contrato. In:
TARTUCE, Flávio; HIRONAKA, Giselda. Direito Contratual:
temas atuais. São Paulo: Método, 2007, p. 81-111.
103
Artigo 10
Artigo 10
Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso
Jurídico
Walter Guandalini Jr.*
1. Introdução. 2. Karl Marx e o discurso como ideologia. 3. Michel Foucault e a “Ordem do Discurso”. 4. A luta: “contra
o Direito” ou “pelo Direito”? 5. Referências.
1. Introdução
Este trabalho procura examinar as conseqüências,
para o direito, de duas formas bastante distintas de se
compreensão das funções desempenhadas pelo discurso e pela
verdade na modernidade, jamais teve a pretensão de elaborar
algo como uma “teoria do discurso” própria.
compreenderem o discurso e suas funções na sociedade
Assim, mediante essas análises panorâmicas, busca-
moderna: a de Karl Marx e a de Michel Foucault. De um lado,
remos apresentar duas formas distintas de enxergar o direito,
Marx, com seu conceito de ideologia, tende a ver o discurso
das quais decorrem posturas antagônicas diante do fenômeno
(e, conseqüentemente, o discurso jurídico) como manifestação
jurídico. O operador jurídico preocupado com a emancipação
de superfície de fenômenos socioeconômicos mais profundos e
social tem o dever de conhecer esse debate e fazer sua opção:
ocultos; assim, o direito faria parte de um conjunto de discursos
se é necessário lutar, a luta deve ser contra o direito ou pelo
que atuam como “véu” da realidade, contribuindo para
direito?
distorcer a visão dos indivíduos a respeito de suas condições
materiais de existência, ocultando a situação econômica real
2. Karl Marx e o discurso como ideologia
da sociedade e perpetuando a existência de uma realidade
Segundo Eagleton (1997:82), podem-se encontrar
de exploração. Michel Foucault, por sua vez, ao se recusar a
na obra de Marx quatro sentidos conflitantes do conceito de
crer na existência de uma verdade mais profunda oculta por
ideologia:
um discurso que “engana”, tende a encarar o discurso como
aquilo através do que e por que se luta, mais preocupado em
A ideologia pode [1] denotar crenças ilusórias ou
compreender as características do discurso que permitem
socialmente desvinculadas que se vêem como fun-
sejam enunciadas determinadas verdades, por determinados
damento da história e que, distraindo homens e mu-
sujeitos, em determinados espaços, do que em encontrar “a
lheres de suas condições sociais efetivas, servem para
verdade” por detrás do discurso que engana. Trata o discurso,
sustentar um poder político opressivo. O oposto disso
dessa forma, não como véu que distorce a realidade, mas como
seria um conhecimento preciso, imparcial das con-
luta, duelo de espadas de cujo embate surgem “centelhas de
dições sociais práticas. Por outro lado, a ideologia
verdade” (FOUCAULT, 2001b:17).
pode [2] designar as idéias que expressam os interes-
Sabendo ser impossível estabelecer de forma definitiva
ses materiais da classe social dominante, os quais são
apenas uma concepção marxiana sobre a função do discurso
úteis na promoção do seu domínio. O contrário disso
na sociedade capitalista, e um conceito de ideologia, será
poderia ser o verdadeiro conhecimento científico ou
apresentado apenas um panorama geral da visão marxista
a consciência das classes não-dominantes. Finalmen-
a respeito do discurso, com breve exposição do conceito de
te, a ideologia pode ser ampliada para [3] abranger
ideologia e de suas características principais. O mesmo vale para
todas as formas conceptuais em que é travada a luta
Foucault, autor pouco dado a elaborações teóricas sistemáticas
de classes como um todo, o que, presumivelmente, in-
e que, apesar de ter dedicado grande parte de suas pesquisas à
cluiria a consciência válida das forças politicamente
Mestre e doutorando em Direito do Estado (UFPR), membro do Núcleo de Pesquisa Direito, História e Subjetividade (UFPR), professor da Faculdade de Direito Dom
Bosco e da Faculdade de Direito Opet, advogado da Companhia Paranaense de Energia. Contato: [email protected].
*
104
Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico
revolucionárias. O contrário disso poderia ser, pre-
de vida reais, demonstramos o desenvolvimento dos
sumivelmente, qualquer forma conceptual corrente-
reflexos e ecos ideológicos desse processo de vida [...]
mente não envolvida em tal luta.
Não é a consciência que determina a vida, mas a vida
que determina a consciência (MARX e ENGELS,
Além dessas três concepções, nos escritos econômicos
1984:22).
tardios aparece a quarta concepção de ideologia de Marx,
que deixa de tratá-la como resultado de a realidade tornar-se
Ou seja, a ideologia consiste num processo de inversão
invertida na mente, para passar a encará-la como resultado
da realidade, por meio do qual as formas de consciência (as
do fato de a mente refletir uma inversão real – transferindo
idéias) passam a ser consideradas a origem e o fundamento
a ideologia, dessa forma, da superestrutura para a base do
das condições materiais de existência, anteriores lógica,
sistema de produção capitalista:
ontológica e historicamente ao ser, quando, na verdade, é o ser
que precede, lógica, ontológica e historicamente a consciência,
Existe uma espécie de dissimulação ou duplicidade
determinando-a. Nas palavras de Marx e Engels (1984:33):
embutida nas próprias estruturas econômicas do
capitalismo, de tal modo que não pode deixar de se
O primeiro ato histórico é a produção da vida material.
apresentar à consciência de maneira distorcida quanto
[...] A primeira necessidade satisfeita conduz-se à
ao que efetivamente é. A mistificação, por assim dizer,
produção de novas necessidades. [...] A terceira relação
é um ‘fato objetivo’ incrustado no próprio caráter do
é esta: os homens que, dia a dia, renovam a sua própria
sistema: há uma contradição estrutural inevitável entre
vida começam a fazer outros homens, a reproduzir-se.
os conteúdos reais do sistema e as formas fenomenais
[...] A produção da vida surge agora imediatamente
em que esses conteúdos se oferecem espontaneamente
como uma dupla relação: por um lado, como relação
à mente (EAGLETON, 1997:84).
natural; por outro como relação social. [...] Revelase, assim, logo de princípio, uma conexão materialista
De qualquer modo, Eagleton (1997:86) afirma que,
dos homens entre si, condicionada pelas necessidades
em todas as concepções marxianas, a ideologia não parece
e pelo modo da produção. [...] Só agora, depois de já
ter nenhum propósito além de ocultar a verdade da sociedade
termos considerado quatro momentos, quatro facetas
de classes, devendo ser vista menos como uma força ativa na
das relações históricas primordiais, verificamos que o
constituição da subjetividade humana do que como um “véu”
homem também tem “consciência”.
que impeça um sujeito já constituído de compreender o que
esteja diante dele.
Sob este aspecto, portanto, ideologia é a crença no fato
Esse conceito de ideologia como véu que oculta
de que as idéias são autônomas e eficazes, atuando por conta
a realidade pode ser analisado a partir de duas dimensões
própria na transformação da realidade, quando, na verdade,
centrais: a dimensão cognitiva e a dimensão sociológica. A
a transformação só ocorre através de uma atuação direta nas
dimensão cognitiva (ou epistemológica) diz respeito a um
condições materiais de existência, nos processos históricos
pensamento que opera sob o princípio de inversão, que faz a
concretos, na vida real – e não nas formas de consciência. As
consciência se tornar desvinculada das práticas sociais que lhe
idéias só podem ser compreendidas como ecos/reflexos das
deram origem e passar a ser considerada fundamento da vida
condições materiais de existência; não são autônomas com
histórica. É com base nessa idéia que Marx constrói a metáfora
relação à realidade. Nesse sentido, a ideologia é uma visão
da câmara obscura, afirmando:
invertida da realidade, sendo o seu oposto “a verdade” –
fornecida pelo materialismo histórico, que permite conhecer as
A consciência nunca pode ser outra coisa senão o
condições reais de existência.
ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo
EAGLETON, Terry (1997:72) sintetiza magistralmente
real de vida. Se em toda ideologia os homens e as
as conseqüências políticas de tal visão da relação entre as
suas relações aparecem de cabeça para baixo, como
formas de consciência e as condições materiais de existência:
numa câmara obscura, esse fenômeno decorre de
seu processo de vida histórico. [...] Em completa
Se as idéias se situam na fonte mesma da vida
oposição à filosofia alemã, que desce do céu à terra,
histórica, é possível imaginar que se pode mudar a
aqui se sobe da terra para o céu. [...] Partimos dos
sociedade, combatendo-se as idéias falsas com idéias
homens reais e ativos e, com base em seus processos
verdadeiras; é essa combinação de racionalismo e
105
Artigo 10
idealismo que Marx e Engels rejeitam. Para eles, as
exerce, numa microfísica do poder. Para Foucault, “o discurso
ilusões sociais estão ancoradas em contradições reais,
não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo;
e somente pela atividade prática de transformar as
é, também, aquilo que é objeto do desejo; [...] o discurso não
últimas é que se podem abolir as primeiras. Uma
é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
teoria materialista da ideologia é inseparável de uma
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder
política revolucionária.
do qual nos queremos apoderar” (2001a:10). Desse modo, o
Há, porém, outra dimensão do conceito marxiano de
ideologia: a dimensão sociológica, que diz respeito ao papel
desempenhado pelas formas de consciência na manutenção
das relações de classe. Segundo Marx (1984:56), “as idéias da
classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes.
[...E] as idéias dominantes não são mais que a expressão ideal
das relações materiais dominantes”. A ideologia reproduz,
portanto, a dominação direta no campo do simbólico, da
consciência, promovendo a sua perpetuação no tempo; o
uso das formas simbólicas está associado a uma relação de
dominação, a ideologia é um instrumento de dominação.
Logo, a ideologia desempenha a função de exercer a
dominação no campo das idéias, ocultando-a e possibilitando
a reprodução das relações de produção. Através das funções
de universalização e naturalização, a ideologia é dissociada de
suas origens (a classe dominante) e oculta que, na realidade
(no âmbito do ser), há exploração. Ao tornar universais e
naturais as ilusões criadas pela classe dominante, a ideologia
filósofo rompe com a tradição marxista, que enxerga os níveis
da consciência numa relação de dependência com a “infraestrutura material” (o que leva Marx a afirmar, por exemplo,
que “a ideologia não tem história” – querendo dizer com isso
que ela não tem autonomia; sua história é a história da infraestrutura econômica). A consciência (o discurso) não representa
apenas uma tradução, em nível da superestrutura, das relações
de dominação existentes na infra-estrutura material; o
discurso tem independência, possui materialidade própria, não
constituindo um meio pelo qual se luta, mas aquilo pelo que se
luta, o poder do qual queremos nos apoderar.
Foucault inicia o estudo dos meios de controle do
discurso pelos procedimentos externos de exclusão, que podem
ser divididos em interdição, separação/rejeição e vontade
de verdade. Trata-se daqueles procedimentos de controle
e delimitação do discurso que se exercem do exterior e
“concernem à parte do discurso que põe em jogo o poder e o
desejo” (FOUCAULT, 2001a:21).
oculta origens, motivos e conseqüências reais das formas de
A interdição é o mais evidente dos procedimentos de
consciência, contribuindo para a manutenção de relações de
exclusão. Nem todos podem falar, nem sobre tudo, nem em
dominação e exploração. O oposto desse sentido de ideologia
qualquer circunstância. Os procedimentos de interdição são
seria a “verdade emancipatória” – fornecida pelo materialismo
o privilégio do sujeito (sobre certos assuntos apenas alguns
histórico. Só seria possível a extinção da ideologia com o fim
podem falar), o tabu do objeto (não se pode falar sobre tudo) e
das relações de dominação.
o ritual da circunstância (há certas ocasiões em que não se pode
falar). As regiões em que o discurso mais sofre interdições são
3. Michel Foucault e a “Ordem do Discurso”
Para Michel Foucault, contrariamente à tarefa
as regiões da sexualidade e da política, o que revela claramente
sua ligação com o desejo e o poder.
proposta por Marx, trata-se de analisar o discurso como
A separação e a rejeição representam a segregação
disputa, como jogo estratégico e polêmico, de ação e reação,
daquele discurso que não pode circular como os outros.
de luta. A preocupação de Foucault não é analisar o caráter
Foucault tem em mente principalmente a oposição entre
ideológico dos discursos; ele parte da hipótese de que “em
razão e loucura, nesta classificação. Historicamente, a
toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
palavra do louco é considerada nula, não tendo verdade nem
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
importância; ou se lhe atribuem poderes, como o de dizer
número de procedimentos que têm por função conjurar seus
uma verdade escondida, de pronunciar o futuro, de enxergar
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
o que os outros não podem perceber. Essa separação, longe
esquivar sua pesada e temível materialidade” (2001a:9). Ou
de estar, hoje apagada, ainda existe, apenas exercida de outro
seja, Foucault não pretende estudar as restrições impostas ao
modo. Basta pensar em todo o aparato de saber, toda a rede
discurso por um sujeito racional (individual ou de classe) e
de instituições que permite a alguém (médico, psicanalista)
capaz de avaliar vantagens, através de uma relação de poder;
escutar a palavra do louco e decifrá-la. Ou seja, todas essas
seu objetivo é analisar o “jogo de limitações e exclusões” que
formas de saber também veiculam poder, interditando de
o discurso, enquanto detentor de uma materialidade, sofre e
vários modos o discurso.
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Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico
A vontade de verdade diz respeito à oposição entre
da repetição. O novo não estaria no que é dito, mas no
o verdadeiro e o falso. Parece arriscado considerar essa oposi-
acontecimento à sua volta. Isso tudo fica extremamente claro no
ção, que não seria nem arbitrária nem modificável nem insti-
discurso jurídico; o comentário sobre a lei tem justamente esse
tucional nem violenta, como um terceiro sistema de exclusão.
papel de disfarçar a novidade, excluir o acaso, o acontecimento,
Contudo a separação entre “verdadeiro” e “falso” é historica-
da esfera da aplicação do direito, mascarando o voluntarismo
mente constituída. Com o decorrer do tempo, vão surgindo
do aplicador da lei ao caso concreto e garantindo a manutenção
novas formas na vontade de verdade, que substituem as for-
de uma relação de poder. Ao contrário do que afirma Kelsen
mas anteriores. Além disso, essa vontade de verdade, como os
(2001:395), no entanto, não é apenas a aplicação da lei ao
outros sistemas de exclusão, apóia-se sobre um suporte institu-
caso concreto que gera o novo, que “cria direito”. Também o
cional, sendo reforçada e reconduzida por todo um conjunto
comentário sobre a lei o faz, disfarçado de discurso descritivo,
de práticas como a pedagogia, as bibliotecas, as comunidades
científico; disfarçado de “ciência do direito”.
científicas, mas também pelo modo como o saber é aplicado
O princípio de autoria, por sua vez, não deve ser
numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e
entendido como o “indivíduo falante que pronunciou ou
atribuído. Desse modo (apoiada num suporte e numa distri-
escreveu um texto, mas como princípio de agrupamento do
buição institucional), a vontade de verdade tende a exercer so-
discurso, como unidade e origem de suas significações, como
bre os outros discursos uma espécie de pressão e um poder de
foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2001a:26). Nos discursos
coerção. Como se todos os discursos sociais (a literatura, as
religioso, literário, filosófico, científico, a indicação de um
práticas econômicas, a lei) não pudessem ser autorizados senão
autor, mais que apenas um indicador de verdade, “é aquele
por um discurso de verdade.
que dá à inquietante linguagem [...] suas unidades, seus nós de
Mas há também procedimentos internos de exclusão,
coerência, sua inserção no real” (FOUCAULT, 2001a:29).
procedimentos de controle e delimitação que são exercidos
O princípio da autoria é um procedimento de exclusão
pelos próprios discursos; funcionam a título de “princípios
do acaso bastante presente também no direito. Ao se afirmar a
de classificação, de ordenação, de distribuição, como se se
unidade do ordenamento jurídico, a interpretação sistemática,
tratasse, dessa vez, de submeter outra dimensão do discurso: a
o que mais se faz senão determinar uma espécie de autor, que
do acontecimento e do acaso” (FOUCAULT, 2001a:21). Trata-
confere coesão e unidade ao sistema, que lhe confere identidade?
se dos princípios do comentário, da autoria e das disciplinas.
Um sistema em que cada elemento(-lei) foi criado por pessoas
Sobre o comentário, Foucault supõe que nas sociedades
diferentes e em momentos históricos diferentes (ou, em outras
haja, muito regularmente, uma espécie de “desnivelamento
palavras, um conjunto de obras escritas por diferentes autores
entre os discursos”. Há os discursos que se dizem no correr
e em diferentes idades). Geralmente esse papel de princípio
dos dias e que passam com o ato mesmo que os pronunciou,
unificador do sistema é conferido à Constituição. Mas
e há os discursos que “estão na origem de certos números de
também a Constituição não tem autor, é criada em assembléia,
atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam
de que participam os mais diversos a(u)tores, representando
deles”. São uma espécie de discursos fundamentais, criadores,
os mais diversos interesses e as mais diversas intenções. A
que, “indefinidamente, para além de sua formulação, são
unidade da Constituição é falsa, abstrata, inventada, ficcional.
ditos, permanecem ditos e ainda estão por dizer” – como,
Não há “balanceamento de princípios”, mas realmente
por exemplo, os textos religiosos, jurídicos, literários ou
contradição insuperável entre eles, normas constitucionais
científicos (FOUCAULT, 2001a:22). Esse desnível entre o
e inconstitucionais, jogo caótico em que cada parte procura
“texto fundamental/origem” e o “comentário” desempenha
apoderar-se de um pedaço do discurso, em prol de interesses
dois papéis: por um lado, permite construir indefinidamente
materiais bem definidos. A idéia de sistema é apenas uma
novos discursos; o “texto fundamental”, em função do sentido
tentativa de superação dessas contradições, procedimento de
múltiplo ou oculto de que é detentor, funda uma possibilidade
exclusão do acaso no discurso jurídico (e que parte do próprio
aberta de falar; por outro, o comentário tem o papel de
discurso), com o intuito de se garantir (também por interesses
“dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto
materiais bem concretos) a segurança jurídica.
primeiro” (FOUCAULT, 2001a:25).
Também as disciplinas são princípio de limitação
Assim, o comentário exclui o acaso do discurso,
do discurso. Uma disciplina “se define por um domínio de
permitindo que se diga algo novo, além do texto mesmo, mas
objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições
com a condição de o próprio texto ser dito e realizado. A
consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de
multiplicidade, o novo, o acaso são disfarçados pela máscara
técnicas e de instrumentos”. Uma disciplina não é a soma de
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Artigo 10
tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa; para
Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e políticos
que certa proposição pertença a uma disciplina é necessário
estão intimamente ligados a essa prática.
que ela responda a condições, mais estritas e mais complexas
do que a pura verdade:
a) ela precisa dirigir-se a um corpo de objetos
determinado;
b) deve utilizar instrumentos conceituais ou técnicas
de um tipo bem definido;
c) deve poder inscrever-se em certo horizonte
teórico.
A função desempenhada pelas sociedades de discurso
é “conservar ou produzir discursos, mas, para fazê-los circular
em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras
estritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa
atribuição” (FOUCAULT, 2001a:39). Parece claro que o
discurso médico, o discurso econômico, o discurso político, o
discurso jurídico, além de todas as formas de discurso técnico
ou científico (Foucault cita o próprio “ato de escrever”)
funcionam nesse regime de exclusividade de divulgação.
Em resumo, proposição deve preencher exigências
Também os “grupos doutrinários” constituem sociedades de
complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto
discurso.
de uma disciplina; antes de ser declarada verdadeira
Finalmente, o princípio de apropriação social do
ou falsa, deve encontrar-se no verdadeiro; [...] é
discurso: de acordo com Foucault, a educação, embora seja
sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma
o instrumento pelo qual todo indivíduo pode ter acesso a
exterioridade selvagem; mas não nos encontramos
qualquer tipo de discurso, é determinada pelas linhas de
no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma
conflito, oposição e lutas sociais. Assim, “todo sistema de
‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um
educação é uma maneira política de manter ou de modificar
de nossos discursos (FOUCAULT, 2001a:35).
a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que
Existe, ainda, um terceiro grupo de procedimentos
de controle dos discursos, que não diz mais respeito à
tentativa de dominar os poderes que eles têm nem de conjurar
os acasos de sua aparição. São os procedimentos de rarefação
do sujeito:
Trata-se de determinar as condições de seu
funcionamento, de impor aos indivíduos que os
pronunciam certo número de regras e assim de
não permitir que todo mundo tenha acesso a eles.
Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam. Ninguém
entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas
exigências ou se não for, de início, qualificado para
fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do
discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas
são altamente proibidas, enquanto outras parecem
quase abertas a todos os ventos, sem restrição prévia,
à disposição de cada sujeito que fala (FOUCAULT,
2001a:37).
Em outras palavras, trata-se de restringir a participação
de sujeitos no discurso, através dos procedimentos do ritual,
das sociedades de discurso e das apropriações sociais.
eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2001a:44). Interessante o fato
de Foucault falar em manter ou modificar, o que significa que
tal apropriação social do discurso pode também desempenhar
uma função revolucionária ou emancipatória (dependendo
de como se dê essa apropriação social – que é, porém, sempre
apropriação). É claro que isso inclui todo o sistema universitário,
principalmente aquelas faculdades destinadas a determinados
setores da sociedade (como é o caso da Faculdade de Direito,
mas também de Medicina, Engenharia, etc.). Desse modo, um
discurso que já é bastante restrito e limitado se torna, ainda,
propriedade exclusiva de determinada classe social.
Ao analisar os procedimentos de restrição do discurso,
o objetivo de Michel Foucault, na verdade, é tratar não das
representações que pode haver por trás dos discursos, mas dos
discursos como séries regulares e distintas de acontecimentos.
O discurso como algo portador do acaso, do descontínuo, da
materialidade, e não somente como tradução de relações de
poder, de condições materiais de existência, ou da verdade “em
si” do mundo. O discurso é, ele próprio, uma relação de poder,
não apenas a sua representação.
4. A Luta: “contra o Direito” ou “pelo Direito”?
Após esse breve exame das concepções distintas
Segundo Foucault, o ritual define a qualificação
que Marx e Foucault têm do discurso, podemos avaliar suas
que devem possuir os sujeitos que falam; define os gestos, os
conseqüências para uma análise crítica do direito. De modo
comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de signos
geral, se o direito é visto, marxianamente, como parte de uma
que deve acompanhar o discurso. Determina, para os sujeitos
superestrutura ideológica que contribui para a perpetuação
que falam, propriedades singulares e papéis preestabelecidos.
de um sistema de exploração e dominação, parece ser dever
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Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico
do jurista comprometido com a emancipação lutar contra a
respeitados sem intervenção direta do aparelho repressor –
aplicação do direito em concreto, em todos os casos em que
apenas pela perspectiva de que, em caso de descumprimento,
essa aplicação contribuir para a manutenção da exploração
a repressão se fará sentir.
(em decisões contra legem), mas também contra a existência
Contudo as pessoas não obedecem aos deveres jurídi-
do direito em abstrato, lutando contra o sistema que reproduz
cos apenas em função da possibilidade de repressão; elas po-
relações de produção injustas e desiguais. Se analisarmos
dem fazê-lo por ter internalizado as condutas prescritas pelo
a questão sob o prisma foucaultiano, porém, veremos que a
direito, acreditando que têm o dever moral de agir em confor-
luta não deve ser contra o direito, mas pelo direito, no duplo
midade com elas. A razão por que agem em conformidade com
sentido que a expressão contém: como luta através do direito,
as regras, nesses casos, é por terem internalizado as ideologias
que se aproveita dos interstícios da lei para veicular contra-
jurídica e moral que servem de suplemento ao direito.
poder na decisão do caso concreto, mas também como luta que
Dessa forma, Althusser pôde afirmar que:
tem por objetivo o domínio do direito, que é objeto da luta,
visando à apropriação social dessa forma de discurso para a
O direito é um sistema formal sistematizado, não-
emancipação social de forma abstrata.
contraditório e saturado, que não tem existência
Numa visão marxista do direito moderno, Althusser
própria. Ele se apóia, por um lado, em uma parte
o conceitua como “um sistema de regras codificadas que são
do aparelho repressor do Estado e, por outro, na
aplicadas, isto é, respeitadas e contornadas na prática cotidiana”
ideologia jurídica e em um pequeno suplemento de
(1990:1). Ele afirma que suas principais características são a
ideologia moral [que desempenha o papel de policial
sistematicidade, a formalidade, e a repressividade.
ausente] (1990:12).
Em primeiro lugar, o direito assume a forma de
um sistema que tende à não-contradição e à saturação
internas. Assim, entre as regras desse sistema deve haver uma
coerência tal que não seja possível invocar determinada regra
contra a outra, de modo que se elimine toda possibilidade
de contradição. Além disso, deve ser saturado, de modo a
abranger todos os casos que possam ocorrer no mundo fático,
não havendo conflito que não possa ser resolvido dentro do
próprio sistema jurídico.
Para que a prática jurídica funcione, basta a ideologia
jurídico-moral; as relações de produção são facilmente
reproduzidas e as coisas funcionam por si sós. Ainda, a
ideologia jurídico-moral não intervém apenas na reprodução
das relações de produção, mas no próprio funcionamento.
O funcionamento do direito é, portanto, ininteligível fora
dessas duas realidades: o Estado (aparelho repressivo) e a
ideologia (aparelhos ideológicos). Mas o direito funciona de
O direito também é formal, pois não incide sobre o
maneira prevalente pela ideologia jurídico-moral, apenas
conteúdo das relações jurídicas, mas apenas sobre a sua forma.
apoiada por intervenções repressoras intermitentes, de modo
Essa formalidade, de fato, oculta os conteúdos aos quais se
que podemos considerá-lo como parte do aparelho ideológico
aplica a forma do direito, já que ele não teria sentido se não
de Estado. Logo, sua função específica dominante não seria
se aplicasse a conteúdos definidos os quais, sendo o direito
garantir diretamente a reprodução das relações de produção
caracteristicamente formal, se encontram fora do direito. Esses
(para a qual também contribui), mas assegurar diretamente o
conteúdos são as relações de produção e seus efeitos. O direito
funcionamento das relações capitalistas de produção.
tem como objeto concreto as relações capitalistas de produção
Numa visão mais otimista, o jusfilósofo marxista
enquanto faz abstração delas. Desse modo, o direito exprime
Roberto Lyra Filho (1980) tenta criar um direito marxista
as relações de produção, embora não faça qualquer menção a
que seja instrumental e não impeditivo da transformação
essas relações, escamoteando-as.
social. Assim, afirma que a lei sempre emana do Estado,
Finalmente, o direito é repressor, pois deve própria
permanecendo, em conseqüência disso, ligada à classe
existência à existência de um sistema correlativo de sanções.
dominante. Desse modo, a legislação é sempre direito e
Não há obrigação sem que exista uma sanção a se aplicar àquele
antidireito, o próprio direito e a sua negação, uma vez que
que a descumprir, de modo que o direito pressupõe a existência
é entortada pelos interesses de classe. A identificação entre
de um aparelho de repressão – o aparelho repressivo de Estado.
direito e lei seria uma racionalização ideológica da burguesia,
A prática do ato não repousa exclusivamente sobre a repressão
que pretende afirmar o fim das contradições na sociedade e
em ato, mas também sobre a repressão preventiva. Assim,
o caráter justo desse direito, que na verdade é de classe. Com
a repressão não intervém a não ser quando o dever jurídico
esse argumento, Lyra Filho pretende afirmar, implicitamente,
é descumprido, havendo enorme quantidade de contratos
a existência de um direito para além do direito de classe, um
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Artigo 10
direito que teria por fundamento o justo, independente do
Seja ela vista como fim de todo o direito (Althusser), seja
direito positivo, e que caberia ao jurista encontrar para aplicar
como fim do discurso do direito e transformação do discurso
ao caso concreto. Lyra Filho parte, portanto, do pressuposto
jurídico1 em “jusnaturalismo dialético” (Lyra Filho), a teoria
de que existe algo como uma Justiça que está acima das leis e
marxista não enxerga qualquer possibilidade de utilização e
que é o verdadeiro direito.
apropriação do direito burguês como ação instrumental para a
Reconhece, dessa forma, a existência de um germe
emancipação. Sendo o direito apenas “ideologia”, é impossível
de contestação possível no direito natural, que o torna
cogitar a possibilidade de seu uso para a transformação social.
afeiçoado às reivindicações supralegais, propício à utilização
Não apenas porque lei e doutrina reproduzem as relações
pelos grupos oprimidos. A partir desse reconhecimento
capitalistas de produção e atendem a interesses da classe
defende a existência de um “direito natural de combate”,
burguesa, mas também porque se trata apenas de idéias. E
através do qual se unificariam, num fôlego dialético, na
idéias não transformam o mundo. A exploração e as diversas
totalidade do processo histórico, os aspectos de positividade
formas de ideologia estão ancoradas em contradições reais, e
e justiça, legalidade e legitimidade. Esse direito superaria a
somente pela atividade prática se podem extinguir as formas de
antinomia entre direito positivo e direito natural, culminando
dominação. A luta política através do direito é, na melhor das
na totalidade histórico-social. Uma visão dialética poderia
hipóteses, apenas inútil. Um véu não é uma arma; deve apenas
retomar a unidade do direito, superando a oposição entre
ser retirado, para que os combatentes possam ter visão mais
positivismo e jusnaturalismo e criando algo como uma
clara do campo de batalha.
“teoria do direito marxista”.
A visão foucaultiana do discurso parece ser mais
O direito, para Lyra Filho, deve resultar justamente do
interessante para uma análise crítica do direito. Afinal, ao
embate entre os vários “direitos” (internacional, nacional, local
tratar o discurso, ele próprio, como uma relação de poder,
e inclusive o “direito anômico”, que representa os interesses
permite vislumbrar a possibilidade de resistência advinda do
de grupos e classes dominados que buscam, reivindicando a
interior do próprio discurso. Sendo o poder tratado de forma
validade e o reconhecimento dessas normas, a libertação de
relacional, a dominação transmitida do interior do discurso
sua situação de sujeição), atingindo a síntese jurídica que
jurídico contém, em si própria, os germes da própria extinção,
deveria indicar a direção do progresso da humanidade em
na possibilidade de resistência ao poder. Do mesmo modo
sua caminhada histórica (LYRA FILHO, 1988:108). Em
como não existe poder sem resistência ao poder, não existe
outras palavras: o direito deve hegelianamente compreender a
direito de dominação sem que, em seu interior, se encontre,
totalidade do processo histórico, gerando uma síntese dialética
também, o direito de libertação.
de todas as forças em conflito, que apontaria, através de um
O objetivo do jurista crítico deve ser, portanto, não
“vetor resultante”, a direção do progresso da humanidade.
simplesmente lutar contra o direito, exigindo sua extinção
Esse vetor resultante de todas as forças do processo histórico
em função da sua caracterização como “burguês”. Diga-se
seria representado (aproximadamente) pelos direitos humanos,
de passagem, outra manifestação do princípio da autoria.
que indicariam, portanto, a direção do progresso, devendo ser
O jurista crítico deve, enxergando o direito como campo de
o fundamento de todo direito positivo existente.
lutas, ser construído não somente pela burguesia, mas pelo
Percebe-se que a visão marxista a respeito do direito
conjunto das forças sociais em conflito, centelha que surge
se encontra presa num beco sem saída. Tratando o direito (e, de
das espadas em duelo. Ele também precisa saber aproveitar-
forma geral, o conjunto dos discursos correntes na sociedade)
se de seus interstícios e contradições, em prol da resistência
como racionalização ideológica que oculta e distorce, como
e da emancipação: desistir de levantar o véu e aprender a
um véu, as condições materiais de existência e as relações de
utilizá-lo como espada. Dessa forma, tornará-se-á possível
exploração econômica da sociedade capitalista, não consegue
‘reterritorializar’ o discurso jurídico, subvertido em instrumento
propor alternativa que não seja o fim do próprio direito.
de libertação.
Fazemos referência, nesse trecho, à distinção proposta por Correas (1995:73) entre discurso do direito e discurso jurídico. Segundo o autor, o discurso do direito é um
discurso prescritivo que organiza a violência, produzido por um funcionário do Estado, cujo sentido é autorizado (o seu conteúdo deôntico está previsto como o conteúdo
que esse funcionário pode produzir) e vinculante (produzido com a intenção de se dirigir à conduta do outro para determiná-la, ameaçando-o com a violência). Em
outras palavras, são “prescrições que ameaçam com a violência, reconhecidas como produzidas por funcionários e autorizadas conforme um sistema normativo eficaz”
(1995:114). Como exemplos, podemos mencionar o Código Civil, a Constituição, regulamentos expedidos por órgãos do Estado, etc. Os discursos jurídicos, por sua vez,
são “os discursos prescritivos ou descritivos que acompanham o direito no próprio texto ou constituem meta-discursos a respeito dele” (1995:114). São os fundamentos
de resoluções, preâmbulos de constituições, descrições dos professores, dos funcionários, dos cidadãos, dos cientistas, além de definições e prescrições que não ameaçam
com a violência, mas que têm uma efetividade específica por estar nos mesmos textos que o direito. Todos os discursos jurídicos têm o direito como referente.
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Entre o Véu e a Espada – Marx, Foucault e o Discurso Jurídico
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