Diretor Geral: Ms. Carlos Alberto Portela
Diretora Acadêmica: Dra. Ilza Maria Tavares Gualberto
Coordenador do Curso de Direito: Dr. Régis André
Coordenação Geral da Revista: Dr. Amauri Cesar Alves e Dr. Fabrício Veiga Costa
Conselho Editorial:
Dr. Amauri César Alves – Doutor em Direito- CV: http://lattes.cnpq.br/3793361325936134
Dr.
Carlos
Alberto
Reis
de
http://lattes.cnpq.br/9007588247356396
Paula
–
Doutor
em
Direito
-
Dr. Fabrício Veiga Costa – Doutor em Direito - http://lattes.cnpq.br/7152642230889744
Dr. Francis Albert Cotta – Doutor em História - http://lattes.cnpq.br/1511398240326461
Dra.
Ilza
Maria
Tavares
Gualberto
http://lattes.cnpq.br/6450690336087450
–
Doutora
em
Linguística
Dr. Régis André – Doutor em Direito - http://lattes.cnpq.br/7489658090456744
-
Apresentação.
A falibilidade do conhecimento científico é o pressuposto para a realização
da pesquisa como instrumento de investigação dos fenômenos sociais. O
inacabamento e a provisoriedade são vistos como os referenciais lógicos para a
reflexão cientifica, produto do aprimorado debate de proposições teóricopragmáticas que direcionarão asistemática do 1ºvolume da SENSO CRÍTICO –
Revista Jurídica da Fundação Pedro Leopoldo.
Estimular a produção cientifica é um dos objetivos da Educação Superior no
Brasil. Trata-se de meio legitimo e democrática de produção do conhecimento,
superando as amarras de uma ciência dogmática e imune à crítica. O pluralismo e a
diversidade social, aliado aos avanços da engenharia genética, a busca pela inclusão
social e digital, o desenvolvimento sustentável como uma das prioridades da
sociedade contemporânea e os novos paradigmas de entendimento e de
compreensão da história e da Ciência do Direito são alguns dos inúmeros critérios
que norteiam a divulgação da produção cientifica dos docentes e dos discentes no
curso de Direito da Fundação Pedro Leopoldo.
O espaço acadêmico deve ser visto como um lócus do debate e do
florescimento de idéias inovadoras que permitam aos estudantes e aos profissionais
do Direito refletirem sobre todos os dilemas que permeiam as relações humanas na
contemporaneidade. A ressemantização jurídica dos espaços público e privado
certamente é considerada um dos maiores e mais sérios desafios do século XXI a
ser enfrentado pelos pesquisadores, haja vista que a convivência simultânea do
individual como coletivo, sem permitir a exclusão ou a sobreposição de direitos,
certamente integra o alicerce de toda a reflexão jus filosófica do Estado Democrático
de Direito. O profissional do Direito da atualidade não deve estar preparado apenas a
reproduziras proposições jurídicas preexistentes, haja vista que o grande desafio que
se impõe é pensar o Direito no contexto do dinamismo cultural, religioso, político e
social
que
circunscreve
e
que
integra
as
relações
interpessoais.
3
A ousadia do pesquisador em enfrentar temas e problemáticas cientificas
devem ser vistas como o pressuposto da evolucionariedade crítico-epistemológica
do conhecimento jurídico, uma vez que o papel das proposições teóricas é
norteara reflexão e a compreensão dinâmico-sistematizada do mundo, afim de
superar o unilateralismo como a forma mais utilizada de pensar e de refletir.
É com imensa satisfação que apresento à comunidade jurídica uma rica
coletânea de artigos científicos produzidos por estudantes da graduação, docentes
e demais profissionais do Direito, afim de compartilhar todo o conhecimento
científico produzido e,com isso, viabilizar a construção de uma via de interlocução
com todos os estudiosos dispostos a pensar criticamente a Ciência do Direito. A
última seção destina-se a homenagear a contribuição cientifica de juristas
consagrados para o desenvolvimento critico-reflexivo do Direito.
Quero agradecer todo o apoio e o incentivo do Diretor Geral, Ms. Carlos
Alberto Portela; Diretora Acadêmica Dra. Ilza Maria Tavares Gualberto;
Coordenador do Curso de Direito Dr. Régis André; professor Dr. Amauri
Cesar Alves, que sempre foram muito abertos, solícitos e cientes da importância
de um periódico para o curso de bacharelado em Direito.
Fabrício Veiga Costa.
Doutor em Direito
TERCEIRIZAÇÃO INTERNA E REDUNDÂNCIAS:
análise crítica para identificação do menor dos males.
Prof. Dr. Amauri Cesar Alves1
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Inconstitucionalidade e
desnecessidade da Súmula 331 do TST e do PL 4330/2004,
PLC 30/2015; 3. Atividade-fim e Atividade-meio em modelos
produtivos fordistas e toyotistas.; 4. Insegurança jurídica?
Atividade-fim, atividade-meio, empresa especializada de objeto
social único, serviços determinados específicos; 5.
Terceirização e Precarização: concubinato necessário no
modelo atual; 6. Terceirização e Sindicato: atuação por um
mínimo de civilidade na relação triangular; 7. Conclusão; 8.
Referências
1.Introdução
Diz uma expressão muitíssimo comum que, em diversas situações fáticas,
deve-se optar entre os males, elegendo o menor. Aparentemente o intérprete atual
das relações terceirizadas terá que se valer do adágio: dos males, o menor... Tal
opção se estabelece em decorrência da presença cada vez maior da terceirização
no Brasil, bem como das alternativas que estão postas majoritariamente: PL
4330/2004 (PLC 30/2015) que prevê terceirização em todas as atividades do
contratante ou a ideia básica fixada na Súmula 331 do TST, que permite a relação
trilateral em atividade-meio.
O ideal, conforme defende o Prof. Márcio Túlio Viana, seria proibir
definitivamente a terceirização interna2, sendo presumível a ilicitude da terceirização
externa.3
1
Infelizmente
tal
compreensão,
ainda
que
fundamentada
Doutor e Mestre em Direito pela PUC.Minas. Professor da Fundação Pedro Leopoldo desde 2002.
“Na primeira, a empresa se serve de trabalhadores alheios, como se inserisse uma outra dentro de
si. É o que acontece, por exemplo, se o capitalista A quer se dedicar apenas á fabricação de
parafusos, livrando-se de seu pessoal de limpeza, e então pede a B que lhe forneça esse pessoal. Ou
quando um banco contrata uma agência de vigilantes. Note-se, desde logo, que a empresa
contratada nada produz ou comercializa – a não ser os próprios trabalhadores.” (VIANA, 2015)
3
“Já na segunda, a empresa faz o movimento inverso, jogando para fora de si não só trabalhadores,
como algumas da – ou mesmo todas as – etapas de seu ciclo produtivo, como se se lançasse dentro
de outra. É o que ocorre, por exemplo, quando uma fábrica de relógios, que antes fazia relógios
inteiros, descarta para outra – em geral, menor – a produção de uma das peças. No limite, pode até
se transformar em mera gerenciadora da rede, num movimento inverso ao dos tempos fordistas. É o
2
constitucionalmente, não parece ter o merecido espaço no debate atual. O
Congresso Nacional aparentemente concentra o debate entre a terceirização ampla,
geral e irrestrita (Câmara dos Deputados) e restrita às atividades-meio do
contratante (Senado da República). Aparentemente não haverá discussão sobre a
essência da terceirização, que é a discriminação remuneratória que existe entre
trabalhadores em igualdade de condições socioeconômicas: o empregado
diretamente contratado pelo tomador dos serviços e o trabalhador terceirizado.
O presente artigo discutirá a terceirização conforme posta à apreciação do
Congresso Nacional e do Poder Judiciário Trabalhista nos dias atuais, cabendo
ressaltar, sempre, compreensão civilizatória no sentido do erro que será legalizar a
desigualdade injusta.
De início a discussão será concentrada na tese civilizatória mais ampla, em
perspectiva
constitucional,
consubstanciada
na
inconstitucionalidade
e
desnecessidade tanto da Súmula 331 do TST quanto dos termos elementares do PL
4330/2004 (PLC 30/2015).
Em seguida, sabendo que a citada inconstitucionalidade não está em pauta, é
necessária a discussão sobre os conceitos de atividade-fim e atividade-meio em
modelos produtivos fordistas e toyotistas.
Em seguida a crítica necessária àqueles que entendem inviável a distinção
entre atividade-fim e atividade-meio, com destaque para os novos termos fixados no
PL 4330/2004 (PLC 30/2015), que traz institutos como “empresa especializada de
objeto social único” e “serviços determinados específicos”.
Também importante, no cenário que se apresenta hoje para o fenômeno da
terceirização de serviços, revelar a irmandade umbilical entre terceirização e
precarização no Brasil.
Por fim proposta de atuação do sindicato para tentar minimizar os prejuízos
advindos à classe trabalhadora com a relação terceirizada.
A análise será empreendida tendo como parâmetro a terceirização interna,
que é aquela que mais precariza, que mais se mostra presente na realidade
socioeconômica no Brasil e que em síntese justifica a edição da Súmula 331 do TST
e a elaboração do PL 4330/2004 (PLC 30/2015).
que alguns vêm chamando de ‘empresa vazia’. Um exemplo é a multinacional italiana Benetton, uma
fábrica que não é. Assim, a terceirização pode levar à terciarização.” (VIANA, 2015)
A redundância sistêmica no âmbito da discussão atual sobre terceirização se
deve ao fato de ser a terceirização interna, por si só, precarizante e discriminatória4,
conforme desenvolvimento que seguirá. Não existe terceirização que não seja
fraudulenta. Não existe terceirização sem precarização. Não existe terceirização que
não considere o trabalhador terceirizado uma mera mercadoria a ser colocada no
mercado para fazer a riqueza de contratante (tomador dos serviços) e contratada
(interposta). Assim, falar-se em precarização na terceirização é redundância, embora
seja possível e necessário optar pelo menor dos males.
2. “Inconstitucionalide” e Desnecessidade da Súmula 331 do TST e do PL
4330/2004, Plc30/2015
O debate atual sobre terceirização é claramente marcado por amplo dissenso,
com disputas ferrenhas sobre posições políticas e jurídicas bem marcadas. É claro o
antagonismo entre forças neoliberais (aí incluídos partidos políticos, patrões,
federações, confederações, sindicatos e principalmente a Força Sindical) e
progressistas (partidos políticos, Auditores Fiscais do Trabalho, Magistratura e
Ministério Público Trabalhistas, Academia, federações, confederações, sindicatos e
principalmente a Central Única dos Trabalhadores). Não obstante o dissenso há
aparente consenso, equivocado porém, com relação à necessidade de criação de
regra geral regulamentadora da terceirização no país ou da manutenção da Súmula
331 do TST5. Tal consenso decorre de uma suposta ausência de lei geral sobre a
matéria.
A ideia consensual de vazio normativo teria forçado o TST à edição de sua
Súmula 331 que, na prática atual, “regulamenta” o fenômeno sociojurídico, fixando
seus limites. Ainda com base em tal consenso a Câmara dos Deputados “votou”6 em
22/04/2015 o texto final do PL 4330/2004, imediatamente enviado ao Senado da
4
“De um lado, porque – se o Direito Civil está em alta – a norma civilista que mais poderia nos ajudar
– a que reprime as discriminações – não chega ao ponto de levar o intérprete a concluir (como
deveria) que o terceirizado é sempre discriminado. Ou seja: é discriminado pelo simples fato de ser
terceirizado, pelo menos quando se trata de terceirização interna.” (VIANA, 2015).
5
Alguns Ministros do TST entendem possível a manutenção da Súmula 331 como suficiente a dirimir
situações controvertidas no âmbito do Poder Judiciário Trabalhista.
6
Na verdade a votação mais pareceu um atropelamento daqueles trágicos que são vistos diariamente
nas ruas do país. As imagens constrangedoras da votação revelam uma infeliz tendência de arroubos
ditatoriais na Câmara dos Deputados.
República e lá tramitando sob a referência PLC 30/2015. Não obstante tal percepção
consensual, outras leituras são possíveis a respeito da regulamentação da
terceirização no Brasil. A primeira é no sentido de que há, sim, regra legal
suficientemente abrangente para regular a terceirização: a Lei 6.019/1974. Uma
segunda linha é no sentido da aplicação direta e imediata de normas constitucionais
(regras e princípios) para fixar os limites (também constitucionais) sobre a
terceirização.
De início, sempre prioritariamente, a aplicação direta e imediata de princípios
constitucionais nas situações triangulares de contratação de trabalho. Partindo do
consenso (equivocado) de inexistência de regra geral sobre terceirização deveria o
intérprete, sem problemas ou dúvidas, aplicar normas constitucionais para a
completa regulação da avença. Nesta esteira, princípios constitucionais como os da
dignidade da pessoa humana (C.R., artigo 1º, inciso III), do valor social do trabalho
(C.R., artigo 1º, inciso IV), da igualdade ou não-discriminação (C.R., artigo 5º,
caput), da vedação ao retrocesso social (C.R., artigo 5º, § 2º), da prevalência dos
direitos humanos (C.R., artigo 4º, inciso II), bem como os princípios e regras
constitucionais trabalhistas específicos dos artigos 7º, 8º e 9o devem prevalecer
também no âmbito das relações terceirizadas. Tais princípios constitucionais
constituem normas fundamentais inafastáveis e autoaplicáveis às relações de
trabalho. No contexto da normatividade dos princípios e da melhor hermenêutica
constitucional é possível a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações
jurídicas de emprego, sendo então oponíveis os valores constitucionais no âmbito da
relação terceirizada independentemente de regulamentação infraconstitucional.
É cediço, entretanto, que o Poder Judiciário Trabalhista resiste à aplicação
direta e imediata de princípios constitucionais para dirimir situações controvertidas
concretas, preferindo a aplicação da legislação infraconstitucional. Se é assim, que
se aplique então a regra legal brasileira que trata das relações trabalhistas trilaterais:
a Lei 6.019/1974.7 É muito simples. Caso haja necessidade de terceirização deve o
contratante (tomador
dos serviços)
demonstrar necessidade
transitória de
substituição de pessoal ou, então, necessidade decorrente de acréscimo
extraordinário de serviços (Lei 6.019/1974, artigo 2º). Em ambos os casos o prazo
máximo da relação triangular será de três meses (Lei 6.019/1974, artigo 10),
7
Permitida também a terceirização de serviços de vigilância, nos termos da Lei 7.102/1983.
devendo haver pagamento de salário equitativo8 (Lei 6.019/1974, artigo 12, alínea
“a”). Ainda que não exatamente nesta mesma linha interpretativa percebeu a Justiça
do Trabalho mineira que as razões para a edição e aplicação da Lei 6.019/1974 se
verificam também nos casos de terceirização de trabalho permanente.9
A análise acima desenvolvida privilegia a função normativa ou eficácia direta
dos princípios constitucionais.10 Além da função interpretativa os princípios
constitucionais atuam também, de modo inequívoco, como instrumento fundamental
de interpretação. A eficácia interpretativa dos princípios constitucionais diz respeito à
revelação do sentido de uma norma, que deve ser feita “tendo em conta os valores e
fins abrigados nos princípios constitucionais” (BARROSO, 2012, p. 343). No que
interessa ao cerne do presente item é de se destacar a eficácia negativa dos
princípios constitucionais, que implica “a paralisação de qualquer norma ou ato
jurídico que esteja em contrariedade com o princípio constitucional” (BARROSO,
2012, p. 344) em análise no caso concreto.
Especificamente no que concerne à “inconstitucionalidade”11 da Súmula 331
do TST é possível afirmar que há dois vícios ou situações de contrariedade à norma
constitucional. De início o fato de não ser o Tribunal Superior do Trabalho
competente para a criação de comandos gerais tendentes à fixação de obrigações
ou restrições para os sujeitos da relação empregatícia. Tal competência
8
“remuneração equivalente à percebida pelos empregados da mesma categoria da empresa
tomadora. O salário equitativo, resultante deste preceito, é que tem propiciado, ao longo das últimas
décadas, a interpretação jurisprudencial e doutrinária construtiva que vem aproximando as vantagens
trabalhistas dos temporários do padrão geral dominante no Direito do Trabalho do país.” (DELGADO,
2012)
9
“...se o trabalhador temporário, que normalmente fica na empresa tomadora de serviços por noventa
dias (a não ser em virtude de prorrogação expressamente autorizada pelo órgão do MTE), tem
assegurado, por preceito legal expresso, tal proteção, não se pode conceber, do ponto de vista lógico
e jurídico, que trabalhadores que, como o reclamante, prestaram serviços de forma permanente à
empresa tomadora, tenham menos direitos. Inteiramente cabível, portanto, a incidência por analogia
daquele preceito legal ao caso dos autos, de resto autorizada expressamente pelo artigo 8º, caput, da
CLT.” (TRT, 3ª Região, 5ª Turma, processo RO 00077-2008-140-03-00-6, relator Desembargador José
Roberto Freire Pimenta, publicação em 29/11/2008, disponível em www.trt3.jus.br).
10
A eficácia dos princípios é direta quando o “princípio incide sobre a realidade à semelhança de uma
regra, pelo enquadramento do fato relevante na proposição jurídica nele contida.” (BARROSO, 2012,
p. 342).
11
Tecnicamente sequer seria possível se falar de inconstitucionalidade de súmula, vez que não
possui caráter normativo. Embora muitos não percebam ou até compreendam em sentido contrário,
súmula de jurisprudência do TST não deve ser compreendida como norma jurídica (geral, abstrata,
erga omnes, pro futuro, emanada do Poder Legislativo), não sendo portanto suficiente a fixar o direito
de alguém ou a afastá-lo no caso concreto. Trata-se apenas de orientação para decisões de 1º e 2º
graus de jurisdição trabalhista, sem força vinculante ou cogente. A jurisprudência consolidada do TST
tem natureza jurídica de decisão judicial reiterada e uniforme, de caráter persuasivo e não vinculativo.
Inconstitucional é a norma, e não a jurisprudência, ainda que consolidada em súmula. O presente
artigo preservará, entretanto, a compreensão ordinária...
constitucional cabe ao Poder Legislativo, nos termos dos artigos 48 e seguintes da
Constituição da República, observado sempre o princípio consagrado em seu artigo
2º. Sendo assim a Súmula 331 do TST não poderia restringir a aplicação da
terceirização às atividades-meio do tomador dos serviços, ainda que na prática tal
medida tenha representado, ao longo dos últimos anos, controle civilizatório mínimo
do trabalho terceirizado. Em verdade a Súmula 331 do TST não poderia ir além dos
permissivos contidos na Lei 6.019/1974, que traz as situações (excepcionais e
transitórias) de terceirização lícita no Brasil. Outro ponto, já sinalizado anteriormente,
diz respeito à permissão da jurisprudência consolidada de tratamento desigual entre
trabalhadores em situação de igualdade substancial, o que fere o disposto no artigo
5º, caput, da Constituição da República. Ora, se o empregado da interposta trabalha
no interesse direto e imediato do tomador dos serviços, da mesma forma que seus
empregados diretos, então há que se aplicar o princípio constitucional de igualdade,
garantindo a todos um mesmo patamar remuneratório. Márcio Túlio Viana, ao
defender a isonomia, lembra que tanto o empregado terceirizado quanto o
empregado contratado diretamente pela contratante (tomadora dos serviços)
trabalham efetivamente na mesma empresa, que é aquela que se beneficia do
trabalho de ambos: “Aliás, se trocarmos a forma pelo fundo, notaremos que – em
última análise – quem desembolsa o valor que vai custear os salários é o tomador,
embora quem os pague seja o fornecedor, depois de descontada a sua
parte.”(VIANA, 2012)
Possível argumentar, na linha doutrinária de Sebastião Vieira Caixeta, ofensa
à Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 23, inobservância à
Convenção 100, da OIT e descumprimento do disposto no artigo 7º, inciso XXXII da
Constituição da República (CAIXETA, 2013). Com Gabriela Neves Delgado é
possível perceber agressão aos princípios constitucionais fundamentais da
dignidade da pessoa humana e da valorização social do trabalho (artigo 1º, incisos
III e IV, Constituição da República).12
12
“Sabendo-se que a terceirização é uma modalidade de contrato precário prevista pelo Direito do
Trabalho brasileiro e que, por óbvio, fragmenta direitos e piora a infra-estrutura de labor para os
empregados terceirizados, é que se pode afirmar, sob o ponto de vista social, que tal fenômeno é
uma afronta ao princípio da dignidade do ser humano. Apesar de considerado um processo de
otimização de gastos e maximização dos lucros pelas grandes empresas, para o empregado constitui
meio de labor que, na maioria das vezes, implica perda de renda efetiva. (...) Já que a terceirização
fomenta hipótese de pactuação precária da força de trabalho, evidente concluir que é, por si só, uma
afronta ao qualificativo “social” imputado ao trabalho pela Constituição de 1988.” (DELGADO, 2003, p.
175-176).
Em análise preliminar, que demandará maior aprofundamento em estudo
próprio, é relativamente simples perceber também a desconformidade do disposto
no PL 4330/2004 (atualmente em tramitação no Senado da República sob referência
PLC 30/2015) com princípios constitucionais elementares, já aqui citados,
principalmente aqueles fundamentais previstos no artigo 1º, incisos III e IV, que
tratam da dignidade humana e do valor social do trabalho e 5º, caput, que exige
igualdade ou não-discriminação. Ora, se o empregado da contratada trabalha no
interesse direto e imediato da contratante, da mesma forma que seus empregados
diretos, então há de se aplicar o princípio constitucional de igualdade, garantindo a
todos um mesmo patamar remuneratório. Aqui o risco de precarização injustificada
(inconstitucional) é ainda maior, visto o permissivo de que o contratante terceirize
toda e qualquer atividade sua. É de rigor, então, que a agregação sindical
(enquadramento sindical) dos empregados diretos e terceirizados seja a mesma, em
releitura que se espera possível (e cada vez mais necessária) do disposto no artigo
8º da Constituição da República e no artigo 511 da CLT.13
É possível concluir que a Súmula 331 do TST não está em conformidade com
a Constituição da República, por contrariedade ao disposto em seus artigos 48 (e
seguintes), 2º e 5º caput, além de ser desnecessária em face do já previsto pela Lei
6.019/1974. Também é imperioso concluir liminarmente, sem prejuízo de maior
aprofundamento posterior, que o PL 4330/2004, PLC 30/2015, não está em
conformidade com a Constituição da República, por contrariedade ao disposto em
seus artigos 1º, incisos III e IV, e 5º caput, além de ser desnecessário em face do já
previsto pela Lei 6.019/1974.
3. Atividade-Fim, Atividade-Meio e Especialização na Reestruturação produtiva pósfordista
As polêmicas instauradas no Brasil sobre a terceirização e as críticas à
Súmula 331 do TST giram também, dentre outros fatores, em torno da possibilidade
ou não de se diferenciar atividade-fim e atividade-meio no atual modelo de
organização empresarial prevalecente no país.
13
Sobre o tema ver ALVES, Amauri Cesar. Pluralidade Sindical: nova interpretação
constitucional e celetista. São Paulo: LTr., 2015.
Ainda que seja “inconstitucional” e desnecessária a Súmula 331 do TST,
muitos preferem seus termos à regra prevista no PL 4330/2004, atual PLC 30/2015,
que não traz qualquer controle civilizatório para as relações triangulares de trabalho.
Bem ou mal a jurisprudência consolidada do TST fixou critérios para que haja,
validamente, contratação de trabalhadores terceirizados no Brasil, sendo centrais a
tal construção os conceitos de atividade-fim e atividade-meio.
O TST na prática “regulamentou” a terceirização permanente em atividademeio, entendendo ser possível tal prática desde que inexistente a pessoalidade e a
subordinação direta na linha do trabalho, ou seja, trabalhador-tomador dos
serviços.Neste ponto reside a possibilidade da precarização injusta e excepcional da
força produtiva através da terceirização, que será regra se aprovado o texto principal
do PLC 30/2015.
No que concerne então à Súmula 331 do TST deve o intérprete fazer a
distinção entre o que é atividade-meio, e portanto apta à terceirização, e atividadefim, que não permite contratação pela via da interposição. O senso-comum indica
que atividade-meio é aquela que não se refere ao objetivo essencial do
empreendimento do tomador, ou seja, refere-se às tarefas que não são
indispensáveis à realização do objetivo social do contratante.
O cerne do presente item não é a interpretação jurídica construída ao longo
dos anos pelo Poder judiciário Trabalhista sobre a distinção, mas a possibilidade ou
não de se diferenciar atividade-fim e atividade-meio no atual modelo de organização
empresarial prevalecente no país.14 O foco é a construção elaborada pela
Administração de Empresas e pela Sociologia do Trabalho.
A terceirização trabalhista é fenômeno jurídico e social que vem se
desenvolvendo gradativa e amplamente no Brasil desde a década de 1970. É fácil
verificar no cotidiano das relações produtivas, em todos os ramos de atividade
econômica, o trabalho terceirizado. A Administração de Empresas, responsável pelo
desenvolvimento inicial da terceirização, conceitua o fenômeno como “um processo
de gestão pelo qual se repassam algumas atividades para terceiros – com os quais
se estabelece uma relação de parceria – ficando a empresa concentrada apenas em
tarefas essencialmente ligadas ao negócio em que atua.”(GIOSA, 1993)
14
Inobstante não tratar o PL 4330/2004(PLC 30/2015) da diferenciação entre atividade-meio e
atividade-fim o tema ainda é relevante, vez que há uma pressão consistente para que a discussão
seja retomada no Senado Federal.
O léxico consagra o termo terceirização com sentido de “forma de
organização estrutural que permite a uma empresa transferir a outra suas
atividades-meio, proporcionando maior disponibilidade de recursos para sua
atividade-fim,
reduzindo
a
estrutura
operacional,
diminuindo
os
custos,
economizando recursos e desburocratizando a administração.”(HOUAISS, 2009).Ou
ainda, a “atribuição a empresas independentes, i.e., a terceiros, de processos
auxiliares à atividade principal de uma empresa.” (FERREIRA, 2008).Atenção aos
temas e aos termos próprios à Administração de Empresas: “parceria”,
“concentração”, “processos auxiliares”. Em tese, então, o objetivo da terceirização
parece ser “otimizar”, para usar também um termo deste ramo do saber, a “gestão”
de mão-de-obra. Não há, e nem se poderia supor uma declaração em tal sentido,
nenhuma referência à redução de custos através da precarização da exploração de
trabalho.
A Sociologia do Trabalho situa a terceirização de serviços no contexto pósfordista do final do século XX, em que houve a substituição do modelo produtivo
taylorista-fordista, cujo padrão é a grande fábrica com produção em massa e em
série de produtos, pela especialização flexível, também conhecida como toyotismo.
No modelo taylorista-fordista o industrial se ocupa de todo o processo produtivo,
controlandotempos, movimentos, técnicas e modos uniformes de produção através
de chefias ostensivas. Nada deve escapar ao controle patronal direto. No novo
modelo pós-fordista ou toyotista o padrão é a reestruturação da grande fábrica em
pequenas e especializadas “unidades de negócio”. A fragmentação da fábrica (sua
especialização) fez surgir também alterações na clássica relação bilateral
trabalhista. Com as crises econômicas e com o crescimento da concorrência global o
mercado não mais absorvia, como antes, a produção em larga escala da fábrica
fordista. Era necessário diminuir os custos para não perder lucro e, como soe
acontecer, os salários e os empregos sofreram redução sensível. Mas era
necessário algo mais. Como não havia um mercado tão receptivo como antes, pois
este se revelou mais “exigente”, era necessária, além dos cortes de praxe, uma
“reengenharia” para adequar a grande fábrica ao mercado em retração. “Enxugar” a
fábrica sem acarretar perda de mercado e muito menos de lucro.
Maria da Graça Druck (2001, p. 123) trata da terceirização no Japão, berço do
toyotismo, em suas múltiplas faces. Contempla a autora no mínimo quatro relações
entre sociedades empresárias: “a)kogaisha – empresa filial; b) kyoryokugaisha–
empresa cooperadora; c) kankeigaisha – empresa com a qual se tem relações,
empresa coligada; d) shitaukegaisha – empresa subcontratada ou terceirizada.” Não
há, neste contexto, uma clara distinção entre atividades (meio e fim) passíveis de
terceirização. A citada autora destaca que, no Brasil, o modelo de terceirização é
apresentado teoricamente como “possibilidade de crescimento e multiplicação de
oportunidades para as pequenas e médias empresas e até mesmo para
trabalhadores se transformarem em empresários”.
Para o empregador capitalista a terceirização é uma das estratégias para a
readequação de suas estruturas para o mercado mais exigente. A tese é a da
especialização, da ênfase em sua atividade preponderante, da redução de custos e
aumento da lucratividade. Tais teses, ainda que meramente retóricas por ser a
redução de custos o ponto central da terceirização, influenciaram diretamente a
redação da Súmula 331 do TST e principalmente do PL 4330/2004 (PLC 30/2015).
A Súmula 331 do TST se sustenta amplamente e atua diretamente através da
distinção entre atividade-fim e atividade-meio. O PL 4330/2004 (PLC 30/2015) se
sustenta teoricamente em especialização de atividades15, muito embora permita a
terceirização em toda e qualquer atividade da contratante dos serviços. Assim,
devem inicialmente a Administração de Empresas e a Sociologia do Trabalho fixar
seus contornos conceituais básicos.
Jerônimo Leiria, citado por Maria da Graça Druck (2001, p. 132), entende que
a terceirização deve ser um chamamento à competitividade para alcançar a
modernidade, o que exige qualidade e produtividade. Para o autor citado “tudo o que
não é vocação de uma empresa deve ser entregue para especialistas”. Aqui o cerne
é a especialização do que não é vocação empresarial direta, ou seja, terceirização
de atividades periféricas (atividades-meio). Há hoje, na prática empresarial brasileira,
diferentes formas de terceirização de serviços, inclusive em atividades-fim e
independentemente do conteúdo da Súmula 331 do TST. No que concerne
àsatividades-meio são consideradas aquelas periféricas. São serviços de apoio que
permitem à contratante centrar seus esforços empresariais na gestão de seu produto
principal (DRUCK, 2001). As atividades-fim são aquelas essenciais à concretização
dos objetivos centrais do empreendimento, que reúnem as tarefas necessárias à
produção de bens ou serviços no âmbito do contratante.
15
Em tal sentido as regras do artigo 2º, incisos II e III, bem como do artigo 20 do PL 4330/2004, em
sua redação final, atual PLC 30/2015 no Senado da República.
Na mesma linha a Administração de Empresas deverá contribuir para a
conceituação do que seja especialização de atividades, caso aprovado e sancionado
como está o texto do PLC 30/2015. A Confederação Nacional da Indústria tem
centrado seus esforços argumentativos na ideia de especialização, na certa para
negar o principal objetivo da terceirização, que é redução de custos e fragmentação
da representação sindical dos trabalhadores.16
Enfim é possível concluir pela possibilidade de se estabelecer diferenciação
entre atividade-fim e atividade-meio de uma sociedade empresária contratante
(tomadora) de serviços terceirizados. A análise, no plano dos fatos, é até
relativamente simples. Sempre que for possível, abstrata e mentalmente, retirar a
atividade terceirizada do contexto produtivo do tomador dos serviços e, mesmo
assim, vislumbrar o resultado final, então a atividade é meio. Ao contrário, se do
exercício de análise abstrata não for possível o resultado final sem a atividade
terceirizada, a atividade será fim e, portanto, a terceirização será irregular. O
argumento empresarial de que a atividade produtiva é dinâmica, e o que é meio hoje
pode ser fim amanhã não é empecilho à diferenciação entre atividade-meio e
atividade-fim, nos termos aqui propostos. A análise é sempre do caso concreto, em
cada momento e local de terceirização, sendo facilmente aplicável o conceito às
mais diversas situações fáticas. Não se trata de conceito fechado, mas, sim, de ideia
que se amolda a todos os casos de acordo com a realidade vivenciada.
4. Insegurança jurídica? Atividade-Fim, Atividade-Meio, Empresa Especializade de
Objeto Social Único, Serviços Determinados Específicos
Um dos principais argumentos dos defensores do Projeto de Lei 4330/2004
enquanto tramitou na Câmara dos Deputados foi existência de insegurança jurídica
acarretada tanto pela ausência de norma legal suficientemente abrangente sobre
terceirização quanto pela pretensa imprecisão conceitual do disposto no inciso III da
16
A terceirização é uma tendência mundial que objetiva ganhos de especialidade, qualidade,
eficiência, produtividade e competitividade. Tudo isso gera riqueza para o país, que por sua vez, cria
maiores oportunidades de emprego. Setores como construção civil, nanotecnologia, biotecnologia,
naval, mecatrônica, hospitalidade, tecnologia da informação, entre outros, só serão mais eficientes,
produtivos e competitivos com a terceirização de serviços especializados. Por exemplo, a construção
de um prédio sem especialistas em terraplanagem, concretagem, hidráulica, eletricidade, pintura, etc,
por exemplo, não é viável. Os apartamentos ou salas deste prédio ficariam caríssimos se uma só
empresa tivesse que comprar todos os equipamentos e contratar diretamente todos os empregados
que trabalhariam em apenas uma das várias etapas da obra e no tempo restante ficariam ociosos.
Súmula 331 do TST. Tal argumento, equivocado (falso) mas repetido à exaustão
para que pudesse convencer, pode ser assim resumido na visão da Confederação
Nacional da Indústria:
É necessário regulamentar a terceirização, pois não há no
ordenamento jurídico nacional normas que tratem especificamente
da matéria. Ante a ausência de legislação e diante dos inúmeros
conflitos judiciais, o Tribunal Superior do Trabalho, na busca de uma
solução para as divergências jurisprudenciais, consolidou
entendimento, na sua Súmula 331, no sentido de que a terceirização
somente é permitida se ligada à atividade meio da empresa
contratante. Contudo, além de não por fim as demandas judiciais,
esta certamente não é a solução mais adequada às exigências do
mercado moderno. Na prática não é possível diferenciar com
precisão a atividade meio da atividade fim de uma empresa. Isso
acarreta interpretações diferentes, insegurança e conflitos judiciais.
Ainda, que fosse possível esta identificação, na dinâmica empresarial
em pouco tempo uma atividade meio pode converter-se em atividade
fim e vice versa. (2015)17
As polêmicas instauradas no Brasil sobre terceirização e as críticas à Súmula
331 do TST giram também, dentre outros pontos, em torno da possibilidade ou não
de se diferenciar atividade-fim e atividade-meio no atual modelo de organização
empresarial aplicado amplamente no país, conforme visto em perspectiva
multidisciplinar.
Ainda que seja “inconstitucional” e desnecessária a Súmula 331 do TST,
repita-se, são preferíveis seus termos à regra geral prevista no PL 4330/2004, atual
PLC 30/2015, que não traz qualquer controle civilizatório para as relações
triangulares de trabalho. Além de não prever controle civilizatório (igualdade
remuneratória) para as terceirizações o PL 4330/2015, conforme aprovado na
Câmara dos Deputados, traz outros conceitos jurídicos que em tese poderiam ser
vistos como imprecisos e que também poderão ensejar a tão temida “insegurança
jurídica”. São eles empresa especializada de objeto social único e serviços
determinados específicos. Assim, o temor da insegurança jurídica não se resolve
com o texto do PL 4330/2004 (PLC 30/2015).
17
CNI,
Disponível
em
http://www.portaldaindustria.com.br/cni/iniciativas/programas/terceirizacao/2013/06/1,17156/o-quee.html.Acesso em 06 maio 2015.
O TST na prática “regulamentou” a terceirização permanente em atividademeio, entendendo ser possível tal prática desde que inexistente a pessoalidade e a
subordinação direta na linha do trabalho, ou seja, trabalhador-tomador dos serviços.
O cerne do presente artigo é a possibilidade ou não de o operador do direito definir,
juridicamente, o que vem a ser atividade-fim e atividade-meio. A melhor doutrina e a
jurisprudência construída ao longo das últimas décadas já fazem tal distinção com a
segurança necessária.
O Prof. Maurício Godinho Delgado (2015, p. 489) estabelece juridicamente o
conceito de atividade-meio:
Por outro lado, atividades-meio são aquelas funções e tarefas
empresariais e laborais que não se ajustam ao núcleo da dinâmica
empresarial do tomador dos serviços, nem compõem a essência
dessa dinâmica ou contribuem para a definição de seu
posicionamento no contexto empresarial e econômico mais amplo.
São, portanto, atividades periféricas à essência da dinâmica
empresarial do tomador dos serviços. São, ilustrativamente, as
atividades referidas, originalmente, pelo antigo texto da Lei n. 5.645,
de 1970: “transporte, conservação, custódia, operação de
elevadores, limpeza e outras assemelhadas.” São também outras
atividades meramente instrumentais, de estrito apoio logístico ao
empreendimento (serviço de alimentação aos empregados do
estabelecimento, etc.).
Segue o citado jurista com a conceituação de atividade-fim:
Atividades-fim podem ser conceituadas como as funções e tarefas
empresariais e laborais que se ajustam ao núcleo da dinâmica
empresarial do tomador dos serviços, compondo a essência dessa
dinâmica e contribuindo inclusive para a definição de seu
posicionamento e classificação no contexto empresarial e
econômico. São, portanto, atividades nucleares e definitórias da
essência da dinâmica empresarial do tomador dos serviços.
(DELGADO, 2015, p. 489).
Na mesma linha Sebastião Vieira Caixeta (2013) esclarece, em crítica à ideia
de terceirização ampla e irrestrita para qualquer atividade empresarial:
Dessa forma, o sistema trabalhista – e a legislação correlata – define
que o empregador deve contratar diretamente, ao menos, os
empregados que serão responsáveis imediatos pela consecução do
empreendimento econômico, ou seja, aqueles alocados na atividadefim da empresa. Trata-se da clássica forma de contratação
estabelecida no ordenamento jurídico pátrio, que leva,
necessariamente, à conclusão de que a terceirização é sempre
excetiva.
Há quem entenda (minoritariamente) que toda e qualquer atividade presente
na rotina do tomador dos serviços será, para ele, essencial, vez que o capitalista não
contrata
esforços
inúteis.
Assim,
toda
e
qualquer
atividade
terceirizada,
ressalvadosos casos do trabalho temporário, da vigilância e da conservação e
limpeza, seria irregular.
O Prof. Antônio Álvares da Silva, em crítica à dicotomia atividade-fim x
atividade-meio defende o seguinte:
O fim de toda empresa é o lucro e, para isto, organiza os fatores da
produção de tal maneira que, entre o custo e o preço de venda, haja
uma margem que se denomina ‘lucro’. Para atingir este fim, tudo o
mais seria meio. Note-se que tanto a especialização como o meio se
prestam à obtenção de um fim. São parte de um outro serviço que se
executa em sentido amplo, maior naturalmente do que a
especialização. Especialização e meio, na atividade econômica, são
conceitos instrumentais que podem variar de empresa para empresa
ou de atividade para atividade. O que é hoje especializado pode
tornar-se genérico e o que é fim pode se transformar em meio para a
obtenção de um novo fim. Se a discussão for levada para o interior
da empresa para, por meio de raciocínio dedutivo, distinguir entre
atividade-meio e atividade-fim, ou entre serviços especializados e
genéricos, cairemos nas mesmas perplexidades insolúveis, que não
podem ser mensuráveis em termos decisórios, a não ser com grande
dose de arbítrio e discriminação (SILVA, 2011, p. 77).
É possível inferir, entretanto, em uma análise casuística em conformidade
com a jurisprudência do TST, que se for possível abstrata e mentalmente retirar a
atividade terceirizada do contexto produtivo do tomador dos serviços e, mesmo
assim, vislumbrar o resultado final, então a atividade é meio. Ao contrário, se do
exercício de análise abstrata não for possível o resultado final sem a atividade
terceirizada, a atividade será fim e, portanto, a terceirização será irregular.
Sendo assim, somente no caso concreto de cada empreendimento será
possível perceber se a atividade é fim ou meio. Eis a jurisprudência:
TERCEIRIZAÇÃO
ILÍCITA.
FORMAÇÃO
DO
VINCULO
EMPREGATÍCIO DIRETAMENTE COM O TOMADOR DE
SERVIÇOS. A terceirização dos serviços, figura jurídica importante e
verdadeira necessidade de sobrevivência das empresas em
competitivo mercado, traduz realidade inatacável e não evidencia
prática ilegal, por si só. Entretanto, constitui fraude aos princípios
norteadores do Direito do Trabalho a dissimulação de intermediação
de mão-de-obra sob a forma de contrato de prestação de serviços
que tenha por objeto a realização de tarefa ínsita à atividade fim do
tomador. Assim é que a terceirização é admitida na contratação de
empresa especializada em atividades paralelas ou de suporte, desde
que não haja distorção em sua essência e finalidade, com a
substituição dos empregados próprios por outros oriundos de
empresa interposta. Observando-se, na hipótese, que o empregado
oferecido por empresa prestadora se via engajado na atividade
essencial do tomador de serviços, participando integrativamente do
processo de produção, trata-se, por certo, de intermediação
fraudulenta de mão-de-obra, o que autoriza a confirmação da r.
sentença recorrida. Recurso a que se nega provimento. (TRT 3ª
Região, 4ª Turma, processo n. 00196-2007-088-03-00-0, relator
Desembargador Caio Luiz de Almeida Vieira de Melo, publicação em
15/12/2007).
É possível e necessário que se fixe, de qualquer modo, presunção de
irregularidade da terceirização em atividade-meio, vez que a tutela justrabalhista
mais ampla é conferida na relação bilateral, sendo esta o cerne do Direito do
Trabalho. Compete então aos interessados na mão-de-obra terceirizada (contratante
e contratado) provar sua validade jurídica excepcional.18
Não há, portanto, óbice jurídico, por impossibilidade conceitual, à manutenção
da exigência de caracterização de atividade-meio para a validade jurídica das
relações terceirizadas no Brasil.
5. Terceirização e Precarização: concubinato necessário no modelo atual
A terceirização, em modelos teóricos nacionais e estrangeiros, é estratégia de
gestão para melhorar a produtividade empresarial através da especialização de
atividades periféricas, o que permite ao gestor dedicar-se ao que é essencial à
obtenção do lucro. Na prática nacional e internacional, entretanto, a terceirização é
sistema de rebaixamento do preço da mão-de-obra e de fragmentação da
organização sindical dos trabalhadores.19 Com a maestria de sempre, fundada na
singeleza de suas sábias lições, Márcio Túlio Viana explica:
Quanto ao trabalhador terceirizado, não é diferente, sob alguns
aspectos, do burro de carga ou do trator que o fazendeiro abastado
aluga aos sitiantes vizinhos. Jogado daqui para ali, de lá para cá, é
18
“Em síntese, considerada a autorização restritiva que a ordem jurídica, inclusive constitucional,
confere à terceirização – mantendo-a como prática excetiva – as atividades-meio têm de ser
conceituadas também restritivamente.” (DELGADO, 2015, p. 490).
19
É simples: pergunte-se a um terceirizado qual é seu objetivo profissional. Em seguida faça a
mesma pergunta a um trabalhador empregado não terceirizado. O sonho de um é o pesadelo do
outro...
ele próprio – e não apenas sua força de trabalho – que se torna
objeto do contrato, ainda que dentro de certos limites. Num passe de
mágica, e sem perder de todo sua condição humana, o trabalhador
se vê transformado em mercadoria. Seu corpo está exposto na
vitrine: a empresa tomadora vai às compras para obtê-lo, e de certo
modo o pesa, mede e escolhe. (VIANA, 2012)
O capitalista necessariamente vive de fazer contas. Um dos principais
cálculos cotidianos que o empregador faz diz respeito ao preço da força de trabalho.
Não é razoável supor uma relação triangular que não seja, antes de qualquer coisa,
economicamente viável para quem produz (contratante) e para quem é mero
intermediário de força produtiva (contratado). Perceba-se que necessariamente duas
pessoas devem ganhar na relação trilateral: o contratante (tomador dos serviços) e o
contratado. Nessa relação econômica trilateral, se dois ganham alguém perde... Não
há milagre da multiplicação do dinheiro para todos aqui. Márcio Túlio Viana fala
sobre o intermediário, em crítica ácida e consistente:
O que esse intermediário quer não é o mesmo que o empresário
quer. Ele não utiliza a força-trabalho para produzir bens ou serviços.
Não se serve dela como valor de uso, mas como valor de troca. Não
a consome: subloca-a.
O que ele consome, na verdade, é o próprio trabalhador, na medida
em que o utiliza como veículo para ganhar na troca. Em outras
palavras, o mercador de homens o utiliza tal como o fabricante usa
os seus produtos e todos nós usamos o dinheiro.
Por isso, do seu ponto de vista, o que importa é antes a quantidade
que a qualidade. Mas como, aos olhos de seu cliente, a qualidade
também pesa, o mercador alardeia as virtudes de sua mercadoria – a
mesma mercadoria que, ao comprar, ele deprecia, ofertando baixos
salários.
(...)
É verdade que o trabalhador pode aceitar ou não ser negociado. Em
teoria, o mercador lida com homens livres. Mas como a liberdade é
condicionada pela necessidade, talvez não haja tanta diferença entre
ele e o traficante do Brasil-Colônia, que em cima de um caixote, no
cais do porto, exibia nos leilões os dentes e os músculos do escravo
– não sem antes lamber-lhe o corpo, para sentir sua saúde. (VIANA,
2015).
A viabilidade econômica necessariamente vem do rebaixamento do valor da
mão-de-obra comparativamente ao custo de um empregado direto. O resto é
discurso. Uma pergunta então se impõe, neste ponto: quais os reflexos da
terceirização no mundo do trabalho?
Maria da Graça Druck (2001, p. 97) explica os objetivos da terceirização no
modelo japonês de reestruturação produtiva, que afinal é o berço do sistema
triangular de relações no mundo:
Trata-se de parte integrante e indispensável do modelo, que precisa
preservar este “trabalho sujo” como componente da estrutura
produtiva da economia japonesa. É uma das formas de sustentação
do “trabalho limpo”, “participativo”, “qualificado” e “estável” das
grandes corporações. A subcontratação aparece não só no plano
econômico como forma de redução de custos, mas também como
estratégia política, à medida que institui um amplo segmento de
trabalhadores de “segunda categoria”, que se distanciam dos de
“primeira categoria”. Desta forma, contribui, decisivamente, para
dissolver qualquer identidade de classe, identidade esta, diga-se de
passagem, muito fraca na sociedade japonesa, marcada por uma
identidade muito mais corporativa dos trabalhadores, integrados às
grandes empresas e que correspondem a 30% da força de trabalho.
(DRUCK, 2001, p. 97).
A realidade japonesa lembra muito a brasileira. Lembra particularmente o
discurso da grande multinacional do vestuário que, surpreendida com trabalho
escravo na fabricação de suas roupas defendeu-se dizendo tratar-se de
terceirização, pela qual ela não poderia responder... É o trabalho sujo que explora
empregados de segunda classe para tentar sustentar uma marca aparentemente
limpa.
O problema elementar da terceirização é, nos termos expostos por Márcio
Túlio Viana (2012), a transformação do trabalhador em mercadoria, inserido que
está, quase como objeto, em um contrato de marchandage. O sentimento (ou o não
sentir-se nada) do trabalhador terceirizado internamente ao estabelecimento de seu
tomador é o aspecto mais relevante a ser considerado:
Nas terceirizações internas, pode até acontecer, vez por outra, que
ele se sinta exatamente como o tratam: objeto ou animal. No limite,
porém, é também possível que nem mesmo o fato de ser convertido
– já agora, sem disfarces – em trator ou burro de carga consiga
realmente tocá-lo. Sua nova qualidade de mercadoria se espalha de
tal maneira em seu corpo e em sua alma que ele já não percebe sua
verdadeira condição humana. E, nesse caso, não sentir nada talvez
seja ainda pior do que sentir-se coisa.” (VIANA, 2012, p. 205).
Assim, “terceirização que não precariza é uma contradição em seus próprios
termos” (VIANA, 2012, p. 212).
O ponto mais relevante da precarização de mão-de-obra decorrente da
terceirização está na desigualdade remuneratória existente entre o trabalhador
empregado terceirizado, vinculado juridicamente à interposta (contratada), e o
trabalhador empregado diretamente contratado pelo tomador dos serviços
(contratante). Tal elemento distintivo precarizante se situa predominantemente no
âmbito do Direito Coletivo do Trabalho, embora necessariamente irradie efeitos no
plano do contrato individual.
A regra geral de fixação da agregação do trabalhador ao seu sindicato se dá
por aplicação do conceito de categoria profissional, o que pressupõe, nos termos da
lei, similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em
situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas
similares ou conexas (CLT, artigo 511, § 2º).20 Há, no plano jurídico, distinção entre
os sindicatos representativos da categoria dos trabalhadores terceirizados e da
categoria dos empregados do tomador. Regra geral o patamar de direitos coletivos
sindicais dos terceirizados é bastante inferior àquele percebido pelos empregados
do tomador dos serviços.
Assim, como regra geral, trabalhadores em uma mesma circunstância fática e
que prestam serviços ao mesmo tomador terão conteúdos jurídicos protetivos
coletivos
diversos,
(consequentemente)
dada
de
a
multiplicidade
sindicatos
de
empregadores
representativos
de
envolvidos
diferentes
e
categorias
profissionais.
Possível inferir que para sua própria existência o sindicato representativo dos
terceirizados deve oferecer aos seus representados patamar jurídico protetivo
inferior àquele estabelecido pelo ente representativo dos empregados do tomador. É
que se a “ordem natural” se inverte, a terceirização se inviabiliza economicamente.
Se a terceirização se inviabiliza economicamente, deixa de existir, em situações
fáticas diversas, o empregador interposto. Se o empregador interposto se extingue o
sindicato representativo de tais trabalhadores também necessariamente tem o
mesmo destino, dado o critério de agregação sindical por categoria profissional. Se o
custo do trabalho do terceirizado (somado ao custo e lucro da interposta) for mais
significativo do que aquele dos empregados diretamente contratados, todo o
discurso da organização empresarial se esvai, com a transparência da relevância
20
Nova leitura da agregação sindical é possível, conforme ALVES, Amauri Cesar. Pluralidade
Sindical: nova interpretação constitucional e trabalhista. São Paulo: LTr., 2015.
econômica do modelo trilateral. Infelizmente, então, o sindicato dos trabalhadores
terceirizados desempenha, regra geral, papel negativo na engrenagem do sistema
precarizante. Em discurso confuso (para dizer o mínimo) proferido em 08/04/2015 o
Sr. Deputado Paulo Pereira da Silva, Paulinho da Força Sindical, disse o seguinte
em sessão da Câmara:
A segunda emenda repara um problema grave. Na medida em que
os trabalhadores são terceirizados, com a confusão que é hoje a
terceirização, eles saem da categoria a que pertencem. Na medida
em que uma empresa terceiriza esse serviço, esse trabalhador
perde a convenção coletiva do seu sindicato. Ele até tem os
outros direitos, mas a convenção do seu sindicato normalmente
é
uma
convenção
melhor.
Então, nós fizemos uma alteração no art. 8º, que já foi aceita aqui
pelo Relator Arthur Maia. A emenda que muda o art. 8º diz o
seguinte: Quando o contrato de prestação de serviços especializados
a terceiros se der entre empresas que pertençam à mesma categoria
econômica, os empregados da contratada envolvidos no contrato
serão representados pelo mesmo sindicato que representa os
empregados da contratante, na forma do art. 511 da Consolidação
das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de
maio de 1943. Esta emenda é importante porque, quando é
terceirizado, o que o trabalhador perde? Na medida em que tem
os direitos garantidos na Constituição, como férias, décimo
terceiro, Fundo de Garantia, ele perde principalmente a
convenção do seu sindicato. Eu quero repetir isso porque é isso
que ele perde. Ele deixa de ter esses direitos que estão
garantidos na convenção do seu sindicato. Esta emenda repõe
esse direito. O trabalhador terceirizado continua na categoria em
que estava antes. Portanto, ele não perde mais a convenção, de
acordo com o art. 511 da CLT, que determina todas as categorias.
(BRASIL, 20015)21
O ouvinte crédulo da sessão legislativa pensou ser este o início do fim da
terceirização, ao contrário de ser o começo da precarização desmedida. A fala na
Tribuna deixava transparecer que haveria uma única representação para
empregados diretos e terceirizados. Se fosse verdadeiro, significaria a inviabilidade
econômica da terceirização através da positivação infraconstitucional do princípio da
isonomia. Ocorre que, ao final, o texto era patético e não condizia minimamente com
as premissas fixadas no discurso do parlamentar. Será que houve uma
21
Câmara dos Deputados, Notas Taquigráficas, Sessão de 08/04/2015, 19:26h., Disponível em:
http://www.camara.gov.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=064.1.55.O&nuQua
rto=164&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=19:26&sgFaseSessao=OD%20%20%20%20
%20%20%20%20&Data=08/04/2015&txApelido=PAULO%20PEREIRA%20DA%20SILVA&txEtapa=C
om%20reda%C3%A7%C3%A3o%20final). Acesso 10 maio 2015.
incompreensão por parte do deputado “sindicalista”, sobre o alcance da regra que
leu em Plenário? Na verdade o texto era e é óbvia constatação da desigualdade e
da injustiça, ideias que permeiam todo o citado PL 4330/2004 (PLC 30/2015),
expressas aqui em seu artigo 8º:
Art. 8º Quando o contrato de prestação de serviços especializados a
terceiros se der entre empresas que pertençam à mesma categoria
econômica, os empregados da contratada envolvidos no contrato
serão representados pelo mesmo sindicato que representa os
empregados da contratante, na forma do art. 511 da Consolidação
das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de
1º de maio de 1943.
Será que existe, em tal realidade multifacetada que é a terceirização, uma
única coincidência entre atividades econômicas de contratante (tomador dos
serviços) e contratada (interposta) neste país? Será que bancos irão contratar outros
bancos para terceirizar serviços bancários? Será que indústrias metalúrgicas
contratarão outras indústrias metalúrgicas para o fornecimento de mão-de-obra
interna ao seu estabelecimento? Não há no artigo 8º do PL 4330/2004 nenhuma
novidade em relação à Súmula 331 do TST ou ao disposto classicamente no artigo
511 da CLT. A “emenda” encomendada pelo deputado é inútil.22
A situação de hoje (Súmula 331 do TST) e de amanhã (PLC 30/2015) é
simples, embora grave e perversa: o trabalhador empregado do tomador dos
serviços (contratante) trabalha lado a lado com o empregado da contratada; ambos
são empregados celetistas, mas o primeiro terá patamar remuneratório superior ao
do segundo, vez que seus sindicatos são distintos, um mais atuante e comprometido
do que o outro.
Além de reduzir gastos o tomador dos serviços terceirizados consegue
prejudicar sensivelmente a atuação dos sindicatos representativos dos interesses
dos seus empregados, pois o fenômeno da terceirização, conforme exposto,
fragmenta a classe trabalhadora23 ao permitir e forçar a coexistência de diversos
22
Pouco crível que tenham pretendido as elites autoras do texto apenas repetir o óbvio. Pode ser (o
tempo dirá) que se trate de uma estratégia para forçar uma interpretação conservadora (que não é
conforme a Constituição da República) contra a estratégia protetiva de aplicação do direito que
certamente virá do TST.
23
“... a terceirização também fragmenta por fora e por dentro a classe trabalhadora, neutralizando
conflitos coletivos. A própria dissociação entre quem paga e quem dirige ‘tende a separar a
reivindicação salarial (...) da contestação da organização do trabalho’. De resto, como já notamos, o
terceirizado de hoje pode se tornar o empregado direto amanhã, e vice-versa, o que leva cada um a
ambicionar ou a temer o destino do outro”. (VIANA, 2012, p. 210).
sindicatos, com patamares remuneratórios também diversos, em um mesmo espaço
laborativo.
O problema se irradia para todo o Direito do Trabalho, pois este ramo jurídico
especializado necessita da existência de um sindicato forte e atuante, com a classe
trabalhadora coesa e organizada, para que sua estrutura possa prevalecer sobre os
interesses do capital. Sindicatos fracos impõem fragilidades ao Direito do Trabalho.
Observe-se ainda que, na prática, a interposição normalmente enseja a
contratação de prestação laborativa menos especializada, ao contrário do que
defendem os administradores de empresas, pois os salários oferecidos devem ser
menores do que aqueles praticados pela tomadora dos serviços, conforme já
exposto. A fiscalização da segurança no trabalho tende a não ser tão efetiva, pois a
responsável primeira é a interposta empregadora, muitas vezes despreparada ou
apressada na realização das suas tarefas. São comuns, então, diversos acidentes
envolvendo
trabalhadores
terceirizados
e
“quarteirizados”.24
Máquinas
e
equipamentos de segunda classe, segunda linha e segunda-mão tendem a ser
utilizados pelas interpostas, que buscam oferecer sempre serviços mais baratos
para os tomadores dos serviços, o que aumenta em consequência o lucro de ambos
(VIANA, 2012) em detrimento da segurança do trabalhador.
Este é o contexto sóciojurídico básico da terceirização de serviços e que
precisa ser compreendido pelos operadores do Direito do Trabalho: trabalhadores
em igualdade de situação fática, que desenvolvem seu labor no interesse direto e
imediato de um mesmo favorecido, mas com tratamento jurídico diferenciado.
6. Terceirização e Sindicato: atuação por um mínimo de civilidade na relação
triangular
É necessário, de início, reafirmar que “terceirização que não precarizaé uma
contradição em seus próprios termos” (VIANA, 2012, p. 212). Entretanto é
ingenuidade supor que o Brasil se verá livre deste mal em curto ou médio prazo,
sobretudo se depender da classe política brasileira em geral. Independentemente do
resultado da normatização sobre terceirização que virá do Congresso Nacional é (e
24
Não bastasse a terceirização, surgem e se desenvolvem no Brasil fenômenos como a
quarteirização e quinteirização. Em ambos os casos há, entre o trabalhador e o tomador dos seus
serviços, empresas interpostas (uma, no caso da terceirização, duas, no caso da quarteirização, e
três, no caso da quinteirização).
será) possível uma nova interpretação do sistema sindical brasileiro, no sentido da
possibilidade de igualdade da representação coletiva de trabalhadores terceirizados
e
empregados
diretos
do
contratante.25
Tal
postura,
fundamentada
constitucionalmente e em consonância com as transformações sociais, econômicas,
políticas, normativas e interpretativas havidas nos últimos anos, deverá solucionar
(ou pelo menos minimizar) os graves problemas causados pela terceirização no
Brasil.
Já visto que o ponto mais relevante da precarização de mão-de-obra
decorrente da terceirização está na desigualdade remuneratória existente entre o
trabalhador empregado terceirizado e o trabalhador empregado diretamente
contratado pelo tomador dos serviços (contratante). Tal distinção precarizante se
situa predominantemente no âmbito do Direito Coletivo do Trabalho, embora
necessariamente irradie efeitos no plano do contrato individual. Os Tribunais
Trabalhistas aplicam a regra do artigo 511 da CLT sem uma necessária percepção
sobre as evoluções sociais e normativas havidas nos últimos anos, com destaque
para a Constituição da República promulgada em 1988.26São hoje distintos os
sindicatos representativos da categoria dos trabalhadores terceirizados e da
categoria dos empregados do tomador, o que em síntese justifica economicamente a
terceirização.
Uma releitura do sistema sindical é possível e urgente no Brasil e pode ser
feita tanto pela alteração e ampliação do conceito de categoria profissional em um
ambiente jurídico de unicidade sindical27 como através do reconhecimento da
25
Tal análise vale também enquanto vigente a Súmula 331 do TST e/ou seus pontos centrais
(distinção entre atividade-fim e atividade-meio, diferença de agregação sindical, diferença
remuneratória).
26
A CLT, em seu artigo 511, § 2º, define a categoria profissional. Destaque para a expressão “mesma
atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas.” O ponto de agregação é a
vinculação dos trabalhadores a empregadores que tenham atividades econômicas idênticas, similares
ou conexas. A regra, então, é a agregação do trabalhador ao sindicato conforme a atividade
econômica preponderante do seu empregador. Excepcionalmente contempla a legislação brasileira a
agregação através de sindicato organizado por ofício ou profissão. São sindicatos que agregam
trabalhadores em virtude de sua profissão, independentemente da atuação econômica do
empregador. São os denominados sindicatos de “categoria diferenciada”, como aeronautas,
jornalistas, médicos, músicos, etc. Tais trabalhadores serão representados por seus sindicatos
específicos independentemente daquilo a que se dedica o seu empregador.
27
As ideias aqui lançadas referentes à ampliação do conceito de categoria profissional também (e
melhor) atuam em um contexo de liberdade sindical com pluralidade, mas a análise presente terá em
vista o sistema da unicidade.
pluralidade
sindical.
Ambas
as
possibilidades
interpretativas
serão
aqui
apresentadas em síntese.28
Inicialmente os efeitos dos novos contornos da subordinação jurídica nas
relações sindicais.
Embora a subordinação seja hoje reconhecida como o elemento fático-jurídico
mais significativo na distinção entre relações de trabalho sem vínculo empregatício e
emprego, não faz referência a CLT aos seus termos no artigo 3º, que fixa
“dependência” como requisito para a caracterização da figura do empregado. Assim
sendo há espaço interpretativo amplo para que se reconheça a dependênciaprevista
na norma básica celetista tanto como subordinação clássica quanto como objetiva,
integrativa, reticular ou estrutural. Fato inconteste é, entretanto, que tal debate não
tem sido suficientemente estendido ao Direito Coletivo do Trabalho, embora possa
haver influência de seus resultados fáticos no âmbito do sindicalismo brasileiro,
conforme será visto. A análise é relativamente simples: a relação de emprego
clássica se ampliou através dos novos conceitos de subordinação, devendo tal
ampliação repercutir positivamente nos critérios de agregação do trabalhador ao
sindicato (“enquadramento sindical”).
Inicialmente a subordinação objetiva, que antecede às demais perspectivas
que são desenvolvidas atualmente no âmbito do Direito do Trabalho como critério
distintivo entre trabalho e emprego. Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena (1999) já
destacava o seguinte em sua obra “Relação de Emprego: estrutura legal e
supostos”:
A subordinação, elementarmente, parte da atividade, e se concentra
na atividade. Seu exercício, porém, implica intercâmbio de condutas,
porque essa atividade consuma-se por pessoas que se congregam,
que se organizam e que compõem um quadro geral de ordem e de
segurança no processo da produção de bens e/ou serviços.
(...)
Patenteia-se com isso que a integração (ou inserção) na empresa
não se dá na pessoa do trabalhador, mas na de sua atividade. Dá-se
o acoplamento da atividade do prestador na atividade da empresa.
(...)
Não se contrata a subordinação, mas a prestação de serviços, que
se desenvolve subordinadamente ou não.
(...)
28
Sobre o assunto ver ALVES, Amauri Cesar. Pluralidade Sindical: nova interpretação constitucional
e celetista. São Paulo: LTr., 2015.
Tem-se, pois, conceitualmente, a subordinação como a participação
integrativa da atividade do trabalhador na atividade do credor de
trabalho.
Percebe-se o destaque para a atividade laborativa como essencial para a
fixação da subordinação jurídica objetiva, com pouca relevância para as pessoas de
empregado e empregador.
Ora, se hoje quem desenvolve parte substancial da atividade empresarial na
“fábrica-mínima” pode não ser o empregado diretamente por ela contratado, então é
importante repensar a ideia de categoria profissional. A subordinação objetiva pode,
em diversas situações fáticas, exigir uma nova compreensão da agregação do
trabalhador ao sindicato, que não mais considere essencial a figura do empregador,
mas, sim, as atividades básicas desenvolvidas por diversos trabalhadores em um
mesmo contexto produtivo.
A realidade social que ensejou a construção da regra legal celetista de
“enquadramento” não é mais a mesma de hoje. Em certo sentido, o empregador
tende a perder centralidade no sistema pós-fordista ou de especialização flexível,
pois boa parte das atividades essenciais de diversas empresas foi distribuída para
outras tantas (terceirizadas), que parcelam as tarefas necessárias à concretização
do empreendimento. O trabalho se fragmenta na medida em que as atividades são
postas sob a responsabilidade de diversos fornecedores de mão-de-obra
(interpostos). Na terceirização o trabalhador não produz diretamente para o seu
empregador, mas para um contratante deste (tomador dos serviços), que é quem se
apropria, em última análise, da mão-de-obra da pessoa natural.
Sendo assim não
é mais possível fixar o ponto de agregação do trabalhador ao sindicato
(enquadramento sindical) somente pela vinculação a certo tipo de empregador, de
acordo com o que ele desenvolve, mas sim, também e principalmente, pela
percepção de quem é o destinatário final da atividade entregue, verificada a
circunstância fática, in casu, com aplicação do conceito de subordinação objetiva.
A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em
comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades
econômicas similares ou conexas pode ser vista de acordo com o que empreende
aquele que fixa a atividade cotidiana do trabalhador, e que dela se vale, em última
análise, independentemente de quem seja o empregador direto. Assim, a agregação
do trabalhador terceirizado deve se dar conforme a atividade preponderante do
tomador dos seus serviços (contratante), destinatário final da atividade entregue, e
não de seu empregador formal. Afinal, na terceirização a mão-de-obra é empregada
(aplicada) no estabelecimento do tomador dos serviços. A situação de emprego diz
respeito à atividade econômica de quem se apropria do trabalho do empregado
terceirizado.
É também importante neste contexto a ideia de subordinação estrutural. O
Professor Maurício Godinho Delgado, com particular acuidade, reformulou
recentemente, no sentido da necessária ampliação, seu conceito de subordinação
jurídica. Para o citado autor a subordinação pode se revelar no plano dos fatos tanto
em sua conformação clássica, que pressupõe ordens diretas quanto ao modo da
prestação laborativa, quanto em sua forma estrutural.
Estrutural é, finalmente, a subordinação que se expressa pela
inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços,
independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas
acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de organização e
funcionamento. Nesta dimensão da subordinação, não importa que o
trabalhador se harmoniza (ou não) aos objetivos do empreendimento,
nem que receba ordens diretas das específicas chefias deste: o
fundamental é que esteja estruturalmente vinculado à dinâmica
operativa da atividade do tomador de serviços. (DELGADO, 2011. p.
294).
Percebe-se o destaque para a vinculação do trabalhador à dinâmica operativa
do tomador de serviços como essencial para a fixação da subordinação jurídica
estrutural, com pouca relevância para as pessoas de empregado e empregador.
Ora, se hoje quem desenvolve parte substancial da atividade empresarial na
“fábrica-mínima” pode não ser o empregado diretamente por ela contratado, pois o
modelo não é mais o de estruturação fordista, então é importante repensar a ideia
de categoria profissional, repita-se. A subordinação estrutural pode, em diversas
situações fáticas, exigir uma nova compreensão da agregação do trabalhador ao
sindicato, que não mais considere essencial a figura do empregador e suas ordens
diretas, mas, sim, a inserção do trabalhador na dinâmica do tomador dos seus
serviços.
Não é mais possível fixar a agregação do trabalhador ao sindicato somente
pela vinculação a certo tipo de empregador, de acordo com o que este desenvolve,
mas sim pela percepção de quem é o destinatário final da atividade entregue,
verificada a circunstância fática, in casu, com aplicação do conceito de subordinação
estrutural.
A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em
comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades
econômicas similares ou conexas pode ser vista de acordo com quem fixa,
estruturalmente, a dinâmica de organização e funcionamento da prestação
laborativa entregue. Assim, a agregação do trabalhador terceirizado deve se dar
conforme a atividade preponderante do tomador dos seus serviços (contratante),
que é quem fixa a dinâmica da prestação laborativa, e não de seu empregador
formal. Afinal, na terceirização a mão-de-obra é empregada (aplicada) no
estabelecimento do tomador dos serviços. A situação de emprego diz respeito à
atividade econômica de quem se apropria do trabalho do empregado terceirizado.
Por fim a subordinação reticular e seus reflexos na agregação do trabalhador
ao sindicato. Sobre o tema “subordinação reticular”, originalmente proposto por José
Eduardo de Resende Chaves Jr., os esclarecimentos de Luiz Otávio Linhares
Renault e DárlenPrietsch Medeiros:
A expressão subordinação reticular foi originalmente proposta por José
Eduardo de Resende Chaves Júnior e Marcus Menezes Barberino Mendes.
De acordo com ela, esse pressuposto não poderia mais ser visto apenas
sob o prisma jurídico. Indispensável a sua ampliação para o aspecto
econômico, visando-se, com ela, a ampliação do alcance das normas
trabalhistas.
Chaves Júnior explica que a nova organização produtiva concebeu a
empresa-rede, que se irradia por meio de um processo de expansão e
fragmentação, que, por seu turno, tem necessidade de desenvolver uma
nova forma correlata de subordinação: a reticular. Ou seja, o modelo atual
apresenta empresas interligadas em rede, que no final dessa cadeia irão
beneficiar uma empregadora. A partir daí, tem-se que, havendo
subordinação econômica entre a empresa prestadora de serviços e a
tomadora, esta seria diretamente responsável pelos empregados daquela,
configurando a subordinação estrutural reticular. (RENAULT; MEDEIROS,
2011. p. 183).
Percebe-se o destaque para a irradiação de poder econômico de uma
empresa sobre outra e, consequentemente, sobre os empregados desta, e não mais
na relação formal jurídica bilateral entre empregado e empregador.
Ora, se hoje quem desenvolve parte substancial da atividade empresarial na
“rede” não é mais empregado diretamente contratado pela empresa tomadora, mas,
sim, trabalhador vinculado a empresa prestadora de serviços (terceirizado), então é
importante repensar a ideia de categoria profissional. A subordinação reticular pode,
em diversas situações fáticas, exigir uma nova compreensão da agregação do
trabalhador ao sindicato, que não mais considere essencial a figura do empregador,
mas, sim, o aspecto econômico da interligação fática.
Enfim, a similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em
comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades
econômicas similares ou conexas pode ser vista de acordo com quem se apropria
direta e finalmente, no âmbito da rede de empresas, da prestação laborativa
entregue. Assim, a agregação do trabalhador terceirizado deve se dar conforme a
atividade preponderante do tomador dos seus serviços (contratante), que é quem se
apropria diretamente da prestação laborativa entregue no âmbito da rede de
empresas, e não de seu empregador formal.
Um óbice à presente linha interpretativa pode ser lançado pelo leitor atento:
se
trabalhadores
terceirizados
embora
indiretamente
contratados
são
estruturalmente (ou por subordinação reticular, integrativa, objetiva) subordinados ao
tomador dos seus serviços (contratante), então são empregados deste, e não de
quem é seu empregador formal (contratada). Tal possibilidade está suficientemente
contemplada pela doutrina brasileira, sobretudo como decorrente do reconhecimento
da “terceirização ilícita”, nos termos da Súmula 331 do TST. Seria então
desnecessária qualquer releitura do conceito de categoria profissional para garantir
direitos sindicais em isonomia entre trabalhadores terceirizados e empregados
diretos. Ocorre que a comprovação jurídica (e judicial) de cada vínculo direto
demandaria uma profusão de processos (regra geral individuais), o que nem sempre
garante a esperada justiça nos casos concretos. Ademais, tal interpretação ainda
depende da aplicação da Súmula 331 do TST, que provavelmente não será mantida
por muito tempo. A releitura do conceito de categoria profissional, em consonância
com aspectos objetivos da subordinação jurídica, pode levar, imediatamente e sem
exclusões injustas, a resultados mais efetivos no plano da igualdade remuneratória,
por aplicação das regras autônomas advindas de sindicatos com melhor capacidade
negocial coletiva. Ademais, há forçosamente a ampliação da base de representação,
que pode, também, concorrer para maior efetividade do ente coletivo obreiro.
Por fim a pluralidade sindical, que permitirá à classe trabalhadora a escolha
da melhor representação.
A liberdade sindical, nos termos preconizados na Convenção 87 da OIT, tem
ampla previsão normativa no direito interno brasileiro em âmbito constitucional,
inobstante a regra da unicidade prevista no inciso II do artigo 8º da Constituição da
República, sendo que sua aplicação e produção de efeitos não depende de regras
infraconstitucionais e não se limita ou reduz em decorrência destas.29
Antes de iniciar a análise específica dos efeitos decorrentes da liberdade
sindical no âmbito da terceirização é importante ressalvar que os sindicatos
brasileiros devem afirmar tal valor na prática, principalmente pela consagração de
direitos por criatividade autônoma. Não deve a liberdade sindical com pluralidade
significar perdas ou supressão de direitos por intermédio de uma “mais livre” ou
“mais ampla” negociação coletiva, que continua restrita à observância ao princípio
da adequação setorial negociada.30 Há a necessidade, sempre, de se igualar as
forças entre capital e trabalho para que a liberdade sindical plena possa construir e
não destruir direitos. Liberdade, por si só, não garante direitos, e deve ser vinculada
a instrumentos que possibilitem ao sindicato atuação em igualdade de condições
negociais com o capital.
Duas são, basicamente, as possibilidades de compreensão da liberdade
sindical e, de acordo com cada uma delas, os efeitos jurídicos decorrentes:
inconstitucionalidade da norma constitucional do inciso II do artigo 8º ou
interpretação restritiva do alcance da unicidade sindical apenas para a revelação do
sindicato mais representativo. Ambas as possibilidades interpretativas e seus efeitos
práticos no contexto da terceirização serão aqui analisados. Em todas as estratégias
o primeiro pressuposto será a maior amplitude do princípio da liberdade sindical,
aqui compreendida como direito fundamental do cidadão trabalhador, individual e
coletivamente considerado, que garante ao seu ente representativo atuação
autônoma face ao Estado e ao empregador, competindo aos representados a
definição de seu âmbito de atuação e sua estruturação interna. Também são
pressupostos a ratificação dos termos elementares da liberdade sindical por força de
29
Sobre o tema ver ALVES, Amauri Cesar. Pluralidade Sindical: nova interpretação constitucional e
celetista. São Paulo: LTr., 2015.
30
O princípio da adequação setorial negociada, com base na doutrina de Maurício Godinho Delgado
(2013) oferece um critério de harmonização entre as regras jurídicas oriundas da negociação coletiva
e as regras originárias da legislação heterônoma estatal. A pergunta básica é: em que medida as
normas autônomas juscoletivas podem se contrapor às normas imperativas estatais? A resposta
consagra o princípio. As normas negociadas coletivamente prevalecem sobre as heterônomas se
observados dois critérios: 1) quando as normas autônomas implementam um padrão salarial superior
ao padrão geral heterônomo; 2) quando as normas autônomas transacionam parcelas de
disponibilidade apenas relativa e não de indisponibilidade. Importante destacar que a renúncia a
direitos trabalhistas é inaceitável na negociação coletiva. Normas indisponíveis são as constitucionais
(nas quais não há ressalva) e as concernentes à saúde e à segurança do trabalhador.
tratados internacionais de direitos humanos pelo Brasil e a sua consagração como
direito fundamental de consequente aplicabilidade imediata no contexto da
normatividade dos princípios constitucionais.
Em apertada síntese afirma-se a inconstitucionalidade da regra constitucional
do inciso II do artigo 8º em face do disposto em seu caput e inciso I. Para tal
compreensão é necessário ter como pressuposto a existência, no seio da
Constituição da República, de uma hierarquia normativa, sendo o princípio da
liberdade sindical norma jurídica de grau superior à regra da unicidade, resolvendose tal contradição pelo reconhecimento de sua inconstitucionalidade. A regra da
unicidade seria norma constitucional meramente formal que, em confronto com a
norma constitucional material da liberdade sindical, seria inconstitucional.
Também possível argumentar a aplicabilidade direta e imediata do direito
fundamental de liberdade sindical, que não pode ser limitado em seu conteúdo
essencial mas pode ser ponderado em face da regra da unicidade. A ideia aqui, ao
contrário da anterior, é a preservação da integridade do Texto Constitucional. A
colisão entre normas constitucionais poderia ser resolvida por ponderação ou por
interpretação tópico-sistemática. No primeiro caso, em uma dada situação
juscoletiva envolvendo sindicatos o intérprete, por ponderação, poderá restringir o
alcance da regra da unicidade (artigo 8º, inciso II, da Constituição da República),
pois tal medida limitadora seria adequada, necessária e razoável tendo em vista a
importância do interesse consistente em liberdade sindical (artigo 8º, caput e inciso I,
da Constituição da República).31 O resultado da limitação da norma constitucional da
unicidade será sua aplicação para a definição do sindicato mais representativo em
um cenário de pluralidade sindical. No segundo caso a melhor interpretação das
normas constitucionais em colisão será sempre a que consagra os princípios em
patamar superior às regras, ainda que não possa, neste plano, haver supressão de
um pelo outro. Assim, a liberdade sindical, enquanto princípio, prevalece sobre a
regra da unicidade, sendo ambas preservadas internamente ao Texto Constitucional,
havendo restrição do seu alcance à fixação do sindicato mais representativo.
31
O problema de tal compreensão fundada em ponderação, que parte do pressuposto de não haver
hierarquia entre normas constitucionais, é que em outra situação concreta o julgador poderá, em tese,
afirmar a unicidade e limitar o direito fundamental de liberdade sindical, desde que tal medida se-lhe
afigure proporcional.
Tais constatações, qualquer que seja a estratégia interpretativa, exigem uma
nova leitura do sistema brasileiro de representação sindical e, especificamente, do
modelo jurídico de terceirização adotado no Brasil.
O sistema jurídico coletivo sindical brasileiro é o da liberdade sindical ampla,
que pressupõe o direito de constituir organizações conforme escolha dos
interessados. As normas jurídicas estão consagradas no artigo 2 da Convenção 87
da OIT; na alínea “a” do item 1 do artigo 8º do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, da ONU; e no artigo 8º, caput e inciso I da
Constituição da República, não obstando tal compreensão a regra de seu inciso II.
Art. 2 – Os trabalhadores e os empregadores, sem distinção de
qualquer espécie, terão direito de constituir, sem autorização prévia,
organizações de sua escolha, bem como o direito de se filiar a essas
organizações, sob a única condição de se conformar com os
estatutos das mesmas. (OIT, 2013).
a) O direito de toda pessoa de fundar com outras, sindicatos e de
filiar-se ao sindicato de escolha, sujeitando-se unicamente aos
estatutos da organização interessada, com o objetivo de promover e
de proteger seus interesses econômicos e sociais. O exercício desse
direito só poderá ser objeto das restrições previstas em lei e que
sejam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da
segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger os direitos
e as liberdades alheias; (BRASIL, 1992).
Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o
seguinte:
I - a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de
sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao
Poder Público a interferência e a intervenção na organização
sindical;
II - é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em
qualquer grau, representativa de categoria profissional ou
econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos
trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser
inferior à área de um Município; (BRASIL, 1988).
Consequência lógica e jurídica é a inaplicabilidade, tal como hoje fixada, da
regra da unicidade sindical no direito brasileiro como restrição à liberdade sindical
com pluralidade. É imperativa a releitura, constitucional, das regras celetistas de
agregação do trabalhador ao sindicato (“enquadramento sindical”). A regra do artigo
511 da CLT deve ser interpretada à luz do Texto Constitucional democrático de
1988, e não o contrário:
Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e
coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de
todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou
trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam,
respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou
profissões similares ou conexas.
§ 1º A solidariedade de interesses econômicos dos que empreendem
atividades idênticas, similares ou conexas, constitui o vínculo social
básico que se denomina categoria econômica.
§ 2º A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou
trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade
econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas,
compõe a expressão social elementar compreendida como categoria
profissional.
§ 3º Categoria profissional diferenciada é a que se forma dos
empregados que exerçam profissões ou funções diferenciadas por
força de estatuto profissional especial ou em consequência de
condições de vida singulares.
§ 4º Os limites de identidade, similaridade ou conexidade fixam as
dimensões dentro das quais a categoria econômica ou profissional é
homogênea e a associação é natural. (BRASIL, 2013).
Vale lembrar que a OIT admite que a ordem jurídica de cada país, mantendo
observância à Convenção 87, estabeleça conceitos para o agrupamento sindical
(por profissão, por ramo, por atividade). É possível, então, criar definições de
sistemas de agregação na organização das associações de base (sindicatos) e
ainda assim preservar a liberdade sindical preconizada na ordem internacional.
(LOGUERCIO, 2000, p. 237). No caso brasileiro as definições constam da CLT em
seu artigo 511, em interpretação conforme o disposto no artigo 8º, caput e inciso I da
Constituição da República.
Possível e necessário implementar, doravante, uma releitura da CLT (artigo
511), à luz deste contexto normativo constitucional de pluralidade sindical, que traz
aos empregadores e trabalhadores diversas possibilidades de construção da
representação coletiva: atividade, profissão, profissões similares, profissões
conexas, profissões ou funções diferenciadas por força de estatuto próprio,
empresa,
categoria
econômica
e
categoria
profissional,
competindo
aos
interessados, inclusive trabalhadores terceirizados, a definição da estrutura sindical
pela aplicação dos diversos pontos de agregação. Em verdade, em um modelo de
organização sindical plural será mais relevante a atuação do sindicato do que a sua
estruturação básica, conforme entende Antônio Álvares da Silva:
A forma de organização é assunto que hoje se relega à liberdade
sindical, conforme recomendação da Convenção 87 da OIT. O
importante é que seja livre para constituir-se e para atuar. Portanto,
num regime de pluralismo, onde cada sindicato lutará para adquirir a
maior expressividade e representação, importa menos o modo de
formação e mais a forma de atuação. Só sobreviverão os que
prestarem melhores serviços (SILVA, 1990, p. 34).
Assim, aqueles trabalhadores que optarem pela agregação em torno da
categoria profissional deverão se inserir em um mesmo contexto de atividade
econômica, independentemente de quem seja seu empregador, desde que
envolvidos em uma mesma situação socioeconômica básica, aplicável, neste caso, o
conceito aqui proposto de categoria profissional. Por categoria profissional, nestes
termos, pode-se compreender o critério de agregação do trabalhador ao sindicato
cujo núcleo é a prestação laborativa no interesse direto e imediato de um mesmo
sujeito que se apropria, direta ou indiretamente, da disposição de trabalho,
independentemente de ser ou não empregador. O que se deve compreender, para
que se fixe a agregação por categoria profissional, não é mais quem é o
empregador. O que se deve buscar é quem se aproveita, essencialmente, da força
produtiva entregue. O ponto de agregação decorre de se identificar para quem o
trabalho é entregue em essência e não quem é empregador direto. Portanto, todo e
qualquer trabalhador (terceirizado ou diretamente contratado) que se insere em um
mesmo contexto socioeconômico de prestação laborativa no interesse direto ou
indireto daquele que se aproveita de seu trabalho pode optar por constituir
representação por categoria profissional idêntica. Importante destacar que não há
necessidade de qualquer alteração normativa, constitucional ou infraconstitucional,
para que se compreenda tal agregação por categoria profissional, que, na prática, é
apenas evolução interpretativa do disposto no artigo 511 da CLT em resposta e em
atenção às múltiplas possibilidades de interpretação do disposto no artigo 3º da CLT
e à reestruturação produtiva pós-fordista.
A “situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades
econômicas similares ou conexas” prevista na CLT significa, hoje, repita-se, não
mais agregação por vinculação a um único empregador, mas, sim, pela identificação
de quem se aproveita, em essência, da prestação laborativa entregue. É importante
destacar, ainda, que a agregação por categoria profissional em tais termos
independe da ideia de pluralidade sindical, pois mesmo a atuação interpretativa
conservadora atual sobre a vigência do critério de unicidade permite sua aplicação
às situações concretas, bastando a ampliação do conceito com nova leitura do artigo
511 da CLT.
Márcio Túlio Viana recentemente concluiu de modo parecido com o aqui
exposto, embora com fundamentação diferente:
Basta lembrar que, quando a CLT fez a categoria profissional
corresponder à econômica, foi por concluir que as pessoas que
trabalham num mesmo ramo de atividade empresarial se unem por
laços de solidariedade. Ora: no caso dos terceirizados que ficam
longo tempo na mesma empresa tomadora, esses laços se formam
com o pessoal que está ali, e não com os outros terceirizados, que
eles nem conhecem. (VIANA, 2015).
Em todos e em qualquer dos critérios de agregação não há exclusividade da
representação, podendo coexistir, a critério dos trabalhadores, múltiplos sindicatos
representativos em uma mesma base e em concorrência. A presente conclusão
decorre do cenário de pluralidade sindical possibilitado pela liberdade sindical em
decorrência da inconstitucionalidade ou da inaplicabilidade (nos termos atuais) da
regra do inciso II do artigo 8º da Constituição da República.
Os avanços havidos no Direito, sobretudo no campo dos princípios, bem
como as transformações sociais das últimas duas décadas, devem iluminar a
interpretação das regras constitucionais e infraconstitucionais sobre as relações
sociocoletivas, conforme já exposto. Normas constitucionais insculpidas nos artigos
1º, incisos III e IV; 5º caput e incisos XVII, XXII e XXIII; 7º caput e incisos XVII, XXVI
e XXVII; 8º caput e incisos I, II e VI; além dos artigos 170, inciso IV e 193 não podem
ser olvidadas pelo intérprete no momento de aplicação da regra trabalhista nos mais
diversos contextos de contratação de trabalho terceirizado.
7. Conclusão
Visto então que a terceirização é uma estratégia empresarial precarizante
aplicada em diversos países capitalistas, com destaque negativo para a atual
situação brasileira. Por se referir, em última análise, à relação empregatícia deve a
situação ser tratada pelo Direito do Trabalho, com ênfase na centralidade do Texto
Constitucional de 1988.
A Súmula 331 do TST não está em conformidade com a Constituição da
República, pois agride frontalmente o disposto nos artigos 48 (e seguintes), 2º e 5º
caput, além de ser desnecessária em face do já previsto pela Lei 6.019/1974.
Também é imperioso concluirque o PL 4330/2004 (PLC 30/2015) não está em
conformidade com a Constituição da República, por contrariedade ao disposto em
seus artigos 1º, incisos III e IV, e 5º caput, além de ser desnecessário em face do já
previsto pela Lei 6.019/1974.
Não obstante as conclusões supra, é cediço que a situação da terceirização
no Brasil não se resolverá em termos de inconstitucionalidade ou desnecessidade
de novo regramento. É necessário, então, estabelecer diferenciação entre atividadefim e atividade-meio de uma sociedade empresária contratante (tomadora) de
serviços terceirizados. O argumento empresarial de que a atividade produtiva é
dinâmica, e o que é meio hoje pode ser fim amanhã não é empecilho à diferenciação
entre atividade-meio e atividade-fim, nos termos aqui propostos. A análise é sempre
do caso concreto, em cada momento e local de terceirização, sendo facilmente
aplicável o conceito às mais diversas situações fáticas. Não se trata de conceito
fechado, mas, sim, de ideia que se amolda a todos os casos de acordo com a
realidade vivenciada.
Infelizmente trabalhadores em igualdade de situação fática, que desenvolvem
seu labor no interesse direto e imediato de um mesmo favorecido, recebem hoje e
provavelmente no futuro próximo tratamento jurídico injustificadamente diferenciado.
Tal situação favorece a precarização da mão-de-obra, não sendo possível
reconhecer terceirização que se dê em conformidade com princípios básicos da
República. Não sendo esta, entretanto, a conclusão da maioria da doutrina e da
jurisprudência é necessária uma estratégia protetiva, que necessariamente partirá
de uma melhor atuação dos sindicatos no país.
A “situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades
econômicas similares ou conexas” prevista na CLT significa, hoje, repita-se, não
mais agregação por vinculação a um único empregador, mas, sim, pela identificação
de quem se aproveita, em essência, da prestação laborativa entregue. Os sindicatos
são então conclamados a assumir papel de destaque no cenário da terceirização,
pois cabe a eles garantir, na prática, dos males o menor.
8. Referências:
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celetista. São Paulo: LTr., 2015.
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conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva,
2012.
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terceirização no Brasil: por uma legislação que evite a barbárie e o aniquilamento do
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Solange Barbosa de Castro. Trabalho e Justiça Social: Um Tributo a Maurício
Godinho Delgado.São Paulo: LTr., 2013.
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Míni Aurélio. 7. ed. Curitiba: Positivo, 2008
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pelo Supremo Tribunal Federal. São Paulo: LTr., 2011.
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um novo tratamento da matéria. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 78, p.
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VIANA, Márcio Túlio. Para entender a terceirização. (no prelo). 2015.
VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de Emprego: estrutura legal e
supostos.2. ed. São Paulo: Ltr., 1999.
IMPARCIALIDADE DO JUÍZO E A CONSCIÊNCIA DO JULGADOR NO ATO DE
DECIDIR
Fabrício Veiga Costa32
SUMÁRIO:1- Introdução; 2- A dogmática como
fundamento da norma jurídica posta e pressuposta frente
à liberdade do decididor no ato de julgar: uma breve
revisitação da historicidade da atuação do magistrado no
ato de julgar; 3- A construção de um modelo de processo
autocrático;
4O
processo
como
instituição
constitucionalizada no Estado Democrático de Direito; 5Releitura critica do principio da imparcialidade como
corolário da obrigatoriedade de fundamentação das
decisões judiciais; 6- Um estudo de caso da Portaria
09/2011 da Comarca de Santo Antônio do Monte; 7Conclusão; Referências.
1. Introdução
A liberdade do dedicidor julgar nos ditames de sua consciência e
subjetividade, visando absolutizar e perpetuar a ideologia da justiça e da paz
social é mero reflexo de um concepção autocrática e de um modelo de processo
que se desenvolve a partir do entendimento teórico de que a jurisdição é uma
atividade pessoal do magistrado, cuja legitimação decorre de argumentos e de
fundamentos pressupostos que coincidem com a sacralização e a divinização da
pessoa do julgador. A construção de todo o pensamento teórico concernente,
especificamente, ao processo e a jurisdição encontra-se diretamente vinculado à
autoridade do juiz, pessoa dotada, no entendimento da maioria dos estudiosos, de
32
Doutor em Direito Processual pela Pucminas. Mestre em Direito Processual pela Pucminas;
Especialista em Direito Processual e Especialista em Direito de Família pela Pucminas. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Advogado militante nas comarcas de Belo Horizonte
e Pará de Minas. Professor da graduação em Direito da Faculdade de Pará de Minas; Faculdade
Pedro Leopoldo e Faculdade Pitágoras Unidade Divinópolis. Professor da pós-graduação lato sensu
em Direito Processual do Instituto de Educação Continuada da Pucminas. Membro do Instituto dos
Advogados de Minas Gerais. Relator da Comissão de Ética e Disciplina da OAB/MG- Belo Horizonte.
Membro do Grupo de Estudos Metodológicos da Universidade Federal de Uberlândia –GEM/UFU. Email: [email protected].
uma sabedoria inata capaz de diluir e solucionar os conflitos de interesses a partir
de sua percepção individual, pressuposta e inata sobre o que é o justo.
O maior desafio da Filosofia e da Ciência do Direito é compreender a
amplitude polissêmica, dicotômica e, muitas vezes, vazia sobre o justo sem incorrer
na clássica armadilha da utilização da subjetividade e da consciência como
referenciais para explicar a justiça. É exatamente nessa realidade utilitarista e
pragmática que se encontra inserida a sociedade cognominada pós-moderna, mas
que ao mesmo tempo convive com a universalização de ideologias pautadas na
irracionalidade e na subjetividade daquele que decidirá.
O que propõe a presente pesquisa é demonstrar a necessidade de os
estudiosos apresentarem proposições teóricas construídas a partir da Hermenêutica
Constitucional Democrática, que representa o contraponto da discricionariedade do
juiz, cujo referencial são juízos axiologizantes e de equidade.
A imparcialidade do juízo não pode trazer no seu bojo a ideologização de
neutralidade do juiz, até porque, no momento de decidir o julgador obrigatoriamente
tem que se posicionar e não agir com neutralidade. O que é preciso compreender
inicialmente é que imparcialidade é um principio corolário da obrigatoriedade de
fundamentação jurídico-constitucional de todos os atos processuais, ou seja,
consiste na superação da prevalência de argumentos metajurídicos e subjetivos
como referenciais para decidir o caso concreto. Mesmo sabendo-se que o julgador é
uma pessoa que sofre influência da sociedade, dos costumes e da cultura onde se
encontra inserido, sabe-se que a leitura mais coerente e adequada com a
processualidade
democrática
é
aquela
que
privilegia
a
argumentação,
a
interpretação e a leitura jurídica das pretensões deduzidas em juízo, em detrimento
da utilização da emoção, do mito do justo e da tradição de que o juiz é o sujeito
legitimado a distribuir a justiça entre aquelas pessoas envolvidas em determinado
conflito de interesses.
É nesse contexto que se pretende demonstrar que a consciência do julgador
não pode ser o norte a reger e a conduzir a construção da decisão judicial. No
momento em que uma pretensão é levada ao Judiciário a última expectativa do
jurisdicionado deve ser aquela referente à opinião ou à visão subjetiva do julgador
sobre um determinado caso concreto. O direito de ação no Estado Democrático
materializa-se na oportunidade que o jurisdicionado tem de não se submeter a uma
jurisdição sacerdotal, de poder discutir efetivamente as questões de fato e de direito
que integram o mérito da pretensão deduzida em juízo e, acima de tudo, obter um
provimento discursivamente construído pelas partes interessadas a partir de um
debate que se desenvolve mediante critérios objetivamente jurídicos, em que a
subjetividade do julgador fica para segundo plano, devendo prevalece a
Hermenêutica Constitucional como referencial para a análise da pretensão deduzida.
A crítica jurídica é o parâmetro para a apresentação de proposições teóricodemocráticas, cujo propósito é viabilizar a superação de um modo de pensar o
direito a partir de valores, ideologias, subjetividade e argumentações pressupostas.
É necessário a ressemantização do discurso jurídico, para construir uma
Hermenêutica em que seja viável efetivamente pensar o direito na perspectiva
epistemológica, buscando-se superar o dogmatismo jurídico, considerado o
referencial para a perpetuação daquela concepção positivista, taxonômica e
engessada através da qual o máximo que o julgador consegue desenvolver é a
reprodução do Direito decorrente de sua subjetividade e da mera adequação do fato
à norma juridica.
O provimento final deverá ser reflexo da ampla discursividade das questões
de fato e de direito que integram o mérito processual, cuja construção deverá
decorrer do exercício do contraditório, da ampla defesa, da isonomia processual, do
devido processo legal e da obrigatoriedade de fundamentação jurídica coerente com
a pretensão deduzida. Os limites de atuação dos magistrados são definidos pelo
principio da legalidade, o que implica dizer que constitui dever do julgador apreciar e
se posicionar juridicamente sobre todas as questões suscitadas pelas partes no
âmbito processual. Todas as vezes que o magistrado se esquiva, fica inerte ou se
omite quanto à análise jurídica de uma ou mais questões fático-jurídicas trazidas
pelas partes no processo haverá a configuração do cerceamento de defesa, tendo
em vista constituir seu dever a análise jurídica de tudo o que for alegado e tiver
relação direta ou indireta com a pretensão deduzida em juízo.
2.
A dogmática como fundamento da norma jurídica posta e pressuposta frente á
liberdade do dedicidor no ato de julgar: uma breve revisitação da historicidade da
atuação do magistrado no ato de julgar
A consciência do juiz na tradição européia é um tema que permeia toda a
história da humanidade. Esse breve resgate histórico nos permite compreender a
formação do pensamento ideológico vigente de que a figura do juiz se equipara à de
entidades divinizadas. Sob o ponto de vista cronológico, é historicamente difícil
situar o surgimento do juiz oriental, de forma a expor linearmente o desenvolvimento
de sua função, tendo em vista que durante os períodos antigos da história o poder
de julgar pertenceu, durante muito tempo, aos chefes de família (LAFONT, 2010, p.
25-26).
No período do Direito Romano “a consciência do juiz constitui, em geral, um
dado estrutural da ontologia do direito e, inversamente, o direito é o testemunho da
consciência moral” (TOUYA, 2010, p. 59). No período medieval verifica-se que a
consciência do juiz é, antes de tudo, cristã, tendo em vista que tem deveres para
com Deus, o Juiz supremo e modelo para os juizes terrenos (CARBASSE, 2010, p.
80).
No período da Idade Moderna o juiz passa a exercer suas atribuições de modo
livre, vinculando-se à norma jurídica se considerá-la justa, podendo, inclusive, violála em nome de um principio moral ou religioso que ele considere superior
(SCHIOPPA, 2010, p. 113). Especificamente na França do século XVI o ato de julgar
se equiparava a uma função divina, visto que o pensamento jurídico da época
encontrava-se diretamente impregnado pelos preceitos advindos das Sagradas
Escrituras (THIREAU, 2010, p. 157). Ainda no século XVI os magistrados franceses
permanecem fiéis à tradição cristã e à voz de Deus (ZAGAMÉ, 2010, p. 185).
O século XIX caracteriza-se pela superação do pensamento sistemático
legado pelo jusnaturalismo e o advento do racionalismo jurídico, que culminou com a
positivação do direito escrito emanado de um poder constituído responsável pela
sistematização da norma jurídica a partir de regras costumeiras. Trata-se de um
direito posto pelo legislador no contexto de um Estado absolutista, que refletia
claramente a ideologia de perpetuação da autoridade estatal mediante a
pulverização da proclamação da universalização dos direitos à igualdade e liberdade
(FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 72-73). Sob o ponto de vista crítico, pode-se afirmar que
o direito proposto pelo Estado Liberal é de cunho essencialmente individualista e
que no contexto processual representou significativa contribuição teórica para a
construção de um modelo de processo através do qual o juiz obrigatoriamente se
colocava em posição hierarquicamente superior às partes, exercendo a jurisdição
como uma atividade pessoal voltada à distribuição da justiça e da paz social entre as
pessoas envolvidas direta ou indiretamente em conflitos de interesses.
O juiz do século XIX começa a ser visto com o sujeito dotado de uma
percepção inata de justiça e, por isso, utiliza essa sua sabedoria sacerdotal no ato
de interpretação e de aplicação da lei. É por isso que se pode afirmar que “o juiz do
século XIX não trata a fundamentação de suas decisões de maneira tão fria quanto
seu antecessor” (BEIGNIER, 2010, p. 327). Com o advento do positivismo jurídico
verifica-se na atuação do juiz do século XIX a tendência de adequação do fato a
norma, ou seja, “o juiz do século XIX tem por missão aplicar estritamente a vontade
legisladora (A) que ele chegará, às vezes, a elucidar por referências aos métodos
tradicionais de interpretação da lei (B)” (BEIGNIER, 2010, p. 329).
O que se pode depreender desse período da história da humanidade é que a
aplicação do direito ao caso concreto ficou um tanto engessada pelas proposições
juspositivistas perpetradas pelo legislador. A atuação dos magistrados em adequar o
caso concreto à letra fria da lei retirava qualquer possibilidade das partes em obter
um provimento jurisdicional suficiente a levar em consideração as peculiaridades
fáticas e os desdobramentos jurídicos específicos da pretensão deduzida em juízo.
Em 1868, o jurista alemão OskarvönBülow, autor da Teoria das Exceções e
dos Pressupostos Processuais, e considerado precursor do Movimento do Direito
Livre (LEAL, 2008, p. 45), propõe que o processo é uma relação jurídica33 entre
pessoas (juiz, autor e réu) em que o juiz é considerado o intérprete especializado da
lei, exerce a jurisdição como uma atividade pessoal e se coloca hierarquicamente
em posição superior às partes envolvidas no conflito de interesses.
A jurisdição era vista como o poder-dever do juiz dizer o direito no caso
concreto, ressaltando-se que dizer o direito poderia consistir em adequar o fato à
norma; deixar de aplicar a norma se considerá-la injusta ou criar a norma mais
adequada ao caso concreto. A atividade jurisdicional não se submetia a qualquer
tipo de controle, tendo em vista que o julgador detinha ampla liberdade no ato de
decidir, haja vista que o seu compromisso era garantir às partes uma decisão judicial
33
Essa relação jurídica processual, a própria essência do processo, diversamente do que ocorre com
as demais relações jurídicas, caminha gradualmente, encontrando-se emcontínuo movimento.
Enquanto as relações jurídicas de direito privado – que constituem o objeto da atividade judicial –
aparecem apenas quando já concluídas; a relação processual é percebida desde a origem e concluise por meio de um contrato de direito público pelo qual o juiz assume a obrigação de decidir (declarar
e atuar o direito deduzido em juízo), e as partes se obrigam a submeter-se ao resultado dessa
atividade (AGUIAR; COSTA; SOUZA; TEIXEIRA, 2005, p. 23).
justa. Nesse contexto, sabe-se que o principio da imparcialidade estava
intrinsecamente relacionado com o conceito de justiça subjetivamente definido pelo
juiz no ato de julgar.
É a partir da obra de Bülow que se identifica a proliferação do dogma da
jurisdição enquanto atividade pessoal do julgador34, o que certamente levou o jurista
mineiro Ernane Fidelis dos Santos afirmar que “para assegurar a imparcialidade do
Juiz, é ele dotado de completa independência, a ponto de não ficar sujeito, no
julgamento, a nenhuma autoridade superior. No exercício da jurisdição o juiz é
soberano. Não há nada que a ele se sobreponha. Nem a própria lei” (STRECK,
2012, p. 35). Isso evidencia claramente que a atividade jurisdicional não se submete
a qualquer tipo de controle, tendo em vista que “depois de tantos anos, os juízes
aprendem como moldar seu sentimento aos fatos trazidos nos autos e ao
ordenamento jurídico em vigor. Primeiro se tem a solução, depois se busca a lei
para fundamentá-la” (STRECK, 2012, p. 35).
Está impregnada entre os juristas a clássica ideologia de que o juiz é um ser
humano que no ato de decidir deve levar em consideração suas convicções
pessoais com o condão de conseguir construir uma decisão justa. Dessa forma,
abandona-se o projeto de construção de uma Hermenêutica Constitucional como
referencial teórico e objetivo para as decisões para utilizar como referenciais no ato
de julgar a justiça, a criatividade e a sensibilidade do juiz. Nesse sentido se
posiciona Lídia Reis de Almeida Prado ao afirmar que “A restrição do Direito à
norma – de caráter abstrato e geral – não consegue conviver com a nova lei de
justiça, que implica uma grande confiança no poder criativo do julgador, de quem se
espera uma sensibilidade muito refinada para lidar com o sempre mutante contexto
social” (2010, p. 88).
Admitir que um julgador decida a partir de sua criatividade e senso de justiça
é uma forma clara de reconhecer e legitimar a violação do principio da segurança
34
Para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina indica o caminho para a interpretação,
colocando a consciência ou a convicção pessoal como norteadores do juiz, perfectibilizando essa
“metodologia” de vários modos. E isso “aparecerá” de várias maneiras, como na direta aposta na: a)
interpretação como ato de vontade do juiz ou no adágio “sentença como sentire”; b) interpretação
como fruto da subjetividade judicial; c) interpretação como produto da consciência do julgador; b)
crença de que o juiz deve fazer a “ponderação de valores” a partir de seus “valores”; e) razoabilidade
e/ou proporcionalidade como ato voluntarista do julgador; f) crença de que “os casos difíceis se
resolvem discricionariamente”; g) cisão estrutural entre regras e princípios, em que estes proporciona
(ria) uma “abertura se sentido” que deverá ser preenchida e/ou reproduzida pelo intérprete (STRECK,
2012, p. 33).
jurídica. Ou seja, no momento em que o jurisdicionado é surpreendido com uma
decisão decorrente das convicções pessoais (e não das percepções jurídicoconstitucionais) do julgador acerca do caso concreto, certamente é violado no que
tange a proteção de seus próprios Direitos. Assim, o judiciário passa a ser visto
como um recinto em que nem sempre os direitos dos jurisdicionados são protegidos.
A proteção jurídica dos direitos das partes, nesse contexto, fica absolutamente
condicionada às convicções pessoais, às crenças e a forte carga de subjetividade do
julgador quando da análise do caso concreto.
Nesse contexto teórico, a sentença ou qualquer decisão judicial é vista como
um ato de vontade solitária do julgador, do decisionismo, do solipsismo, ou seja, o
principio da imparcialidade fica reduzido ao juízo da autoridade de quem decide,
algo que contraria absolutamente a Hermenêutica Constitucional , considerada um
ramo da Filosofia do Direito que tem como escopo trazer maior objetividade,
racionalidade e critérios científicos no ato de pensar o Direito e de definir os critérios
mais adequados constitucionalmente para a análise das pretensões deduzidas em
juízo sob o prisma da processualidade democrática. A reprodução desse modelo
ontológico é a forma mais clara de conferir discricionariedade ao juiz no ato de
decidir, tendo como referencial o paradigma epistemológico da filosofia da
consciência “que se faz presente no imaginário dos juristas” e umbilicalmente
vinculado ao sujeito solipsista, produto e reflexo direto do positivismo jurídico”
(STRECK, 2012, p. 57).
Importante ressaltar que a critica que se faz à discricionariedade do juiz no
ato de julgar não representa uma proibição de interpretar o direito a ser aplicado ao
caso concreto. A compreensão do principio da imparcialidade sob o viés
democrático pressupõe a definição de critérios lógicos, constitucionalizados, jurídicolegais e objetivos de ver, analisar, interpretar, compreender e apreciar as
peculiaridades vinculadas a cada pretensão deduzida em juízo.
O principio da imparcialidade nada mais é do que a parcialidade do juízo vista
como corolário da obrigatoriedade de fundamentação jurídica das decisões judiciais.
Trata-se
da
superação
da
subjetividade
do
julgador
pela
Hermenêutica
Constitucional Democrática dos Direitos Fundamentais. Para Lênio Luiz Streck “[...] o
drama da discricionariedade que critico reside no fato de que esta transforma os
juízes em legisladores. E, para, além disso, esse poder discricionário propicia a
criação do próprio objeto do conhecimento, típica manifestação do positivismo”
(2012, p. 93).
A intensa carga axiológica e metajurídica no ato de julgar são questões que
ultrapassam a esfera do debate jurídico justamente pelo fato do respectivo tema não
ser, na maioria das vezes, objeto de compreensão a partir da Hermenêutica
Constitucional, considerada como referencial teórico para a implementação dos
Direitos Fundamentais no Estado Democrático.
A própria etimologia da palavra sentença relaciona-se diretamente ao
sentimento do juiz no ato de decidir35. Para LuisRecasénsSiche, citado por Lídia
Reis de Almeida Prado, “”[...] na produção do julgado, destaca-se o papel do
sentimento do juiz, cuja importância fica evidenciada pela etimologia da palavra
sentença, que vem de sentire, isto é, experimentar uma emoção, uma intuição
emocional” (2010, p. 18).
A intuição como critério regente das decisões judiciais traz no seu bojo a
significação de que o jurisdicionado encontra-se em absoluta condição de
subserviência ao subjetivismo do julgador. Nesse mesmo sentido, Joaquim Dualde
afirma que “[...] torna-se necessário que o juiz utilize a sensibilidade e a intuição
como método de penetrar na realidade, corrigindo as desfigurações advindas da
busca do conhecimento através de conceitos” (PRADO, 2010, p. 19). Tais
entendimentos perpetrados pelos estudiosos ora mencionados denotam claramente
que os julgadores são vistos como pessoas pressupostamente dotadas de uma
sabedoria inata, de natureza divino-sacerdotal, com a responsabilidade de assegurar
às partes uma decisão justa, produto de seu sentimento e subjetividade. Seriam os
magistrados pessoas escolhidas por entidades míticas para fazer valer a justiça
entre os homens?
No Brasil, o jurista Miguel Reale, ao propor sua Teoria Tridimensional do
Direito, enfatiza a necessidade da humanidade do juiz na implementação da justiça,
uma vez que os juízos valorativos (subjetividade do julgador) devem ser vistos como
os referenciais lógicos do magistrado no ato de julgar (PRADO, 2010, p. 22-23).
Esses autores certamente contribuem para a mitologização da figura do juiz
como entidade divinizada e garantidora da justiça aos jurisdicionados, reforçando
35
O juiz aplica a lei em sua alma e consciência. Essa fórmula sacramental e ritualizada encerra uma
conotação mística, e encontra suas raízes na história. Possui, igualmente, uma conotação moral, uma
vez que, segundo a opinião comum, ela significa que continuamos a nos dirigir ao juiz para lhe pedir
que pronuncie o bem e o mal (COULON, 2010, p. 387).
substancialmente a autoridade e a autocracia daquele sujeito responsável por
decidir.
O próprio uso da toda traz simbolicamente o exercício do poder e da
autoridade do juiz no ato de decidir, conforme preceitua Joseph Campbell: “Quando
o juiz adentra ao recinto de um tribunal e todos se levantam não estão se levantando
para o individuo, mas para a toga que ele veste e para o papel que ele vai
desempenhar”. Nesse mesmo sentido sabe-se que “quando se torna juiz um homem
deixa de ser o que era e passa a ser o representante de uma função eterna [...]. As
pessoas percebem que estão diante de uma personalidade mitológica” (1993, p. 12).
Dotados de uma potencialidade inata de pensar, sentir, agir e decidir de forma
justa, esse arquétipo de juiz ideologicamente construído para representar o poder do
Estado vem corroborar o fenômeno do mito da autoridade, da subordinação da
massa de jurisdicionados e de perpetuação da estabilidade social tão idealizada.
Os símbolos da Deusa da Justiça, da toga, da retórica, do uso habilidoso da
palavra, da intervenção estatal nas liberdades individuais são todos exemplos que
visam demonstrar o poder do Estado materializado na pessoa do juiz, sujeito
legitimado a representá-lo, distribuir a justiça entre os homens e, se necessário for,
utilizar-se da força como forma de garantir a manutenção da autoridade e do poder.
Para esses estudiosos a sensibilidade e a criatividade do juiz é uma forma
legitima para assegurar a justiça e a democracia de suas decisões. Considerando-se
que o Estado Democrático de Direito tem como um dos seus pilares o sistema
participativo, o principio da legalidade, do contraditório, da ampla defesa, da
isonomia processual, do devido processo legal, a obrigatoriedade de fundamentação
jurídica das decisões judiciais e o dever de implementação dos Direitos
Fundamentais previstos no plano constituinte e instituinte, pode-se afirmar que os
respectivos argumentos e proposições são de natureza peremptória e pautada em
juízos a priori, além de serem absolutamente contrários às proposições teóricas
utilizadas como referencial para entender o que é o Estado Democrático de Direito.
Tal critica cientifica justifica-se no sentido de que a jurisdição constitucional
não pode ser vista como uma atividade pessoal do julgador, tendo em vista que está
constantemente sujeita à ampla e irrestrita fiscalidade, sempre que o julgador fizer
prevalecer sua subjetividade e emoção em detrimento da construção participada e
discursiva do provimento final, produto de critérios objetivamente jurídicos e
decorrentes da Hermenêutica Constitucional.
O processo visto como uma instituição constitucionalizada e lócus da ampla
discursividade e fiscalidade da atuação jurisdicional deve ser compreendido como
um recinto de formação participada do mérito processual por todos os interessados
no provimento final. Por isso, a decisão final não pode ser reflexo de meras
conjecturas metafísicas, metajurídicas e axiológicas, e nem do decisionismo pautado
na ideológica concepção de justiça decorrente do pessoalismo do julgador.
A imparcialidade do juízo (não do juiz enquanto pessoa, haja vista que a
jurisdição no Estado Democrático de Direito não é uma atividade pessoal do
julgador) é a garantia assegurada ao jurisdicionado de que sua pretensão será
objetivamente apreciada a partir de argumentos e fundamentos de ordem jurídicoconstitucional.
3. A construção de um modelo de processo autocrático.
A partir dos séculos XVIII e XIX são desenhados de forma mais clara e
evidente os contornos de um modelo de processo decorrente de raízes contratuais,
ou seja, a relação processual “se constituía pela contratual aceitação prévia dos
contendores em acatar a decisão do juiz” (LEAL, 2009, p. 77). Em 1850 Savigny
sistematizou a Teoria do Processo como quase-contrato “[...] porque a parte que
ingressava em juízo já consentia que a decisão lhe fosse favorável ou desfavorável,
ocorrendo um nexo entre o autor e o juiz, ainda que o réu não aderisse
espontaneamente ao debate” (LEAL, 2009, P. 78).
A duas primeiras teorias do processo tem gênese no direito privado e são de
natureza contratualista. Deixam clara a concepção autocrática de processo, uma vez
que as partes são colocadas em absoluta posição de subserviência em relação ao
julgador. Na verdade são obrigadas a se submeterem às determinações impostas
pelo decididor.
Em 1868 o jurista alemão Oskar Von Bulow, autor da Teoria do Processo
como Relação Jurídica, destaca-se no cenário jurídico como o precursor do marco
da autonomia do Processo ante ao direito material (LEAL, 2009, p. 78). O processo
passa a ser visto como uma relação jurídica entre pessoas, relação essa a qual o
julgador é colocado hierarquicamente em posição superior à partes. A validade
jurídica da constituição da relação processual decorria da observância dos
pressupostos processuais de existência e desenvolvimento do processo. “[..] A
relação processual é percebida desde a origem e conclui-se por meio de um
contrato de direito público pelo qual o juiz assume a obrigação de decidir (declarar e
atuar o direito deduzido em juízo), e as partes se obrigam a submeter-se ao
resultado dessa atividade” (AGUIAR; COSTA; SOUZA; TEIXEIRA, 2005, p. 23).
No inicio do século XX o jurista italiano Giuseppe Chiovenda teoriza a ação
como um direito voltado para garantir às partes interessadas a atuação da vontade
concreta da lei, ou seja, “[...] a autonomia e independência da ação torna-se patente
nos casos em que a ação tende a um bem impossível de alcançar-se por via da
obrigação, só se podendo alcançar através do processo” (PIMENTA; MARQUES;
QUEIROZ, VIEIRA, 2004, p. 36). A ação como um direito potestativo materializa-se
na premissa de que a mesma “[...] é o poder jurídico de dar vida à condição para a
atuação da vontade da lei” (PIMENTA; MARQUES; QUEIROZ, VIEIRA, 2004, p. 27).
Nessa seara o processo é compreendido como uma relação jurídica através da qual
o magistrado é o responsável por garantir entre as partes a efetivação da atuação da
vontade concreta da lei, ou seja, “o processo surge como um instrumento de justiça
nas mãos do Estado, não para manifestar a vontade da lei, porquanto essa já se
formou antes (legislativamente) da existência do processo, mas, tão somente,
certificar-se de qual é esta vontade e executá-la” (PIMENTA; MARQUES; QUEIROZ,
VIEIRA, 2004, p. 52).
Ainda na primeira metade do século XX Piero Calamandrei sistematiza o
processo como uma relação jurídica conduzida diretamente pela autoridade do
julgador. Mesmo propondo um modelo de processo em bases dialéticas, a
concepção de processo sistematizada por Calamandrei continua reproduzindo um
modelo autocrático, através do qual a relação processual é conduzida diretamente
pelo julgador e subserviência das partes em se submeterem ao conteúdo do que foi
unilateralmente
decidido.
Importante
destacar
nesse
contexto
que
“o
estabelecimento regular da relação processual entre as partes e perante o juiz
decorre da instauração efetiva do contraditório, ou seja, da oportunização ao réu de
participar diretamente da dinâmica do processo” (COSTA, 2012, p. 41). Não se pode
esquecer nesse contexto que o contraditório em questão é visto na perspectiva
formal, ou seja, o magistrado não fica vinculado às alegações das partes no
momento em que decide e julga a pretensão deduzida, até porque, sua decisão
decorrerá de seu senso inato de justiça e da percepção subjetiva, metajurídica e
axiologizante que permeia as peculiaridades do caso concreto.
Pautado nas concepções teóricas desenhadas por Bulow e Chiovenda, o
jurista italiano Francesco Carnelutti adota a Teoria da Relação Jurídica, “para o qual
o processo é visto como um método para a formação ou a aplicação do direito, ou
seja, o processo consistiria numa relação jurídica de origem em normas
instrumentais que determinariam poderes e sujeições para a solução da lide”
(COSTA, 2012, p. 45). A justa composição da lide é o objetivo seguido pelo
magistrado no modelo de processo proposto por Carnelutti, ou seja, o julgador tinha
o condão de decidir de forma justa, mesmo que para isso tivesse que se vincular ao
texto frio da lei; abandonar o texto frio da lei se o considerá-lo injusto ou buscar
outras fontes metajurídicas como critério de construção de uma decisão considerada
no seu senso subjetivo36 como justa. Fica evidente nesse cenário que o julgador é
quem detém absoluta liberdade no ato de julgar, uma vez que a atividade
jurisdicional não se submete a qualquer tipo de controle, haja vista que o referencial
para considerar uma decisão judicial como legítima juridicamente é que a mesma
seja considerada justa por quem a proferiu.
Enrico TullioLiebman, jurista italiano erradicado no Brasil a partir da década
de quarenta do século XX, propõe um modelo de processo centrado na idéia de
relação jurídica através da qual o juiz é visto como o intérprete qualificado da lei. Ou
seja, “o processo é uma relação jurídica constituída pelas partes (autor e réu),
perante o Judiciário, através da qual o juiz se coloca em posição hierarquicamente
superior, excluindo toda e qualquer forma de participação direta ou indireta das
partes na construção do mérito processual” (COSTA, 2012, p. 52).
O Código de Processo Civil brasileiro de 1973 abocanhou todas as
proposições teóricas acima mencionadas e que reproduzem um modelo de processo
em que o julgador é o verdadeiro legitimado a conduzir toda a relação processual.
Pautado na ideologia do julgamento justo, o juiz tem liberdade para valorar provas e
conduzir toda a instrução processual de modo a formar seu convencimento.
Ressalta-se que esse convencimento do julgador normalmente materializa a
36
A quase totalidade dos processualistas envolvidos pelo fascínio de argumentos que se
desenvolvem em nome da justiça social e de indicações estratégicas de ação, insiste em conceituar o
processo como relação jurídica entre pessoas (autor, réu e juiz) impregnando o direito e a jurisdição
de subjetividade do juiz, como se ele, mediante sua sensibilidade, pudesse canalizar os sentimentos
da nação, colocando os sujeitos de direito como meros expectadores da ordem jurídico-política”
(ALMEIDA, 2005, p. 64-65).
concepção através da qual a decisão precisa ser justa, mesmo que seja necessário
utilizar-se de critérios metajurídicos como referenciais para decidir. Esse é o modelo
autocrático37 de processo objeto da respectiva crítica científica, cujo decisionismo
decorre da percepção pessoal que o juiz tem acerca do caso concreto, entendimento
esse que não se compatibiliza com a processualidade democrática pautada em
proposições de cunho jurídico-constitucional.
4. O processo como instituição constitucionalizada no Estado Democrático de
Direito.
A Constituição brasileira de 198838 trouxe uma proposta teórica de um modelo
de processo visto essencialmente como um lócus da formação participada do mérito
processual através da atuação direta de todos os interessados juridicamente na
pretensão deduzida. Os próprios destinatários do provimento são seus co-autores. O
contraditório39 é visto como um princípio constitucional explícito que legitima todos
os interessados no direito de argumentação fática e jurídico-legal da questão (ponto
controverso) levado ao Judiciário. A implementação do contraditório decorre da
obrigatoriedade de o magistrado ter que se posicionar e fundamentar juridicamente
toda questão suscitada pelos interessados no provimento. No momento em que o
julgador se esquiva ou se omite quanto à apreciação de uma ou mais questões
suscitadas pelas partes deixa de assegurar efetivamente o principio do contraditório
37
A concepção do processo como relação jurídica entre as pessoas, desenvolvida por Bülow em
1868, foi aprimorada por Chiovenda, Carnelutti, Liebman e predomina nos códigos e leis processuais.
Admite que o processo é um vínculo entre sujeitos (juiz, autor e réu), em que um pode exigir do outro
uma determinada prestação, conduta. Segundo esta teoria, o processo instaura a subordinação entre
as partes e o juiz (ALMEIDA, 2005, p. 62).
38
A partir daí, a institucionalização do processo efetivada pela Constituição de 1988 determina que o
ato judicante não mais pode ser abordado como instrumento posto à disposição do Estado para
atingir objetivos metajurídicos por via da atividade solitária do julgador. A justiça não mais é do
julgador, mas a do povo (fonte única do Direito), que a faz inserir em leis democraticamente
elaboradas.
Assim, no plano decisional, o contraditório, referido no art. 5º, LV, da CR/88, deve ser entendido, na
atualidade, como principio constitucional que atua como referente inafastável na leitura do Código de
Processo Civil e da legislação procedimental no plano infraconstitucional.
O contraditório, como componente de uma estrutura jurídico-institucional, passa a impor, per se,
modificações à própria idéia de Processo (LEAL, 2002, p. 102-103).
39
Mais do que garantia de participação das partes em simétrica paridade, portando, o contraditório
deve efetivamente ser entrelaçado com o princípio (requisito) da fundamentação das decisões de
forma a gerar bases argumentativas acerca dos fatos e do direito debatido para a motivação das
decisões (LEAL, 2002, p. 105).
no caso concreto. O cerceamento de defesa decorre essencialmente desse não
enfrentamento de todas ou de parte das questões levadas pelas partes ao Judiciário.
A ampla defesa também é um principio constitucional explícito que autoriza o
jurisdicionado a produzir todas as provas e a se utilizar de todos os meios de provas
suficientemente legítimos e coerentes com o objeto da demanda. Eventual
indeferimento do pedido de produção de alguma prova40 especifica deverá ser
pautado na fundamentação fática e jurídico-legal da incoerência e desnecessidade
de produção da respectiva prova como referencial lógico para o esclarecimento
objetivo das questões trazidas a juízo. O cerceamento de defesa fica evidente no
momento em que o decididor indefere o pedido de produção de provas pautado na
ideologia de que já está convencido acerca dos pontos controversos que integram a
pretensão deduzida. A valoração subjetiva pelo julgador das provas produzidas em
juízo, absolutamente desvencilhada da racionalidade discursiva, torna a decisão
judicial nula e contrária ao texto constitucional.
Já o principio do devido processo legal41, também explicitamente previsto no
texto constitucional, deverá ser inicialmente compreendido como o direito que o
jurisdicionado tem de não ser surpreendido com uma decisão solitariamente
proferida pelo magistrado. Trata-se de principio que garante às partes interessadas
o direito de serem efetivamente co-autores do provimento jurisdicional, de modo a
interferir e participar diretamente da construção discursiva da decisão que é mero
reflexo daquilo que foi objeto do debate realizado pelas partes no âmbito processual.
A constitucionalização do processo é a forma utilizada para garantir a
legitimidade democrática das decisões. A obrigatoriedade de fundamentação das
decisões judiciais é uma garantia assegurada ao jurisdicionado de que não será
40
Nessa perspectiva, portanto, torna-se patente a obsolescência das abordagens tradicionais a que
nos referimos, principalmente quanto à apreciação da prova, porque, como visto, fixam-se somente
no fato de que o julgador está adstrito a fundamental racionalmente suas decisões – o que não basta
ao novo processo constitucionalizado.
A questão de fundo que é deslembrada pela afirmativa de que o juiz é livre para decidir, bastando que
motive racionalmente sua decisão, é exatamente da própria racionalidade decisional no Estado
Democrático de Direito, porque o juiz, mediante mera indicação de textos legais e de fórmulas de que
se utiliza para aplicação das normas ao caso posto extirparia das partes o direito fundamental de
construir discursivamente a própria racionalidade decisória (LEAL, 2002, p. 104-105).
41
A viga-mestra do processo constitucional é o devido processo legal, cuja concepção é desenvolvida
tomando-se por base os pontos estruturais adiante enumerados, que formaram o devido processo
constitucional ou modelo constitucional do processo a) o direito de ação (direito de postular a
jurisdição); b) o direito de ampla defesa; c) o direito ao advogado ou ao defensor público; d) o direito
ao procedimento desenvolvido em contraditório; e) o direito à produção da prova; f) o direito ao
processo sem dilações indevidas; g) o direito a uma decisão proferida por órgão jurisdicional
previamente definido no texto constitucional (juízo natural ou juízo constitucional) e fundamentada no
ordenamento jurídico vigente (reserva legal); h) o direito aos recursos (DIAS, 2010, p. 92-93).
surpreendido por conjecturas subjetivas decorrentes do senso inato de justiça que
macula a atividade jurisdicional. Nesse sentido se posiciona Ronaldo Bretas de
Carvalho Dias
A importância do principio da fundamentação das decisões
jurisdicionais é demonstrada ao se constatar sua recepção em
enunciados normativos expressos nos ordenamentos jurídicos
modernos, quer no plano constitucional, quer no plano
infraconstitucional, impondo aos órgãos jurisdicionais do Estado o
dever jurídico de motivarem seus pronunciamentos decisórios,
visando a afastar o arbítrio judicial, caracterizado por anômalas ou
patológicas intromissões de ideologias do julgador na motivação das
decisões, de forma incompatível com os princípios que estruturam o
Estado Democrático de Direito (2010, p. 125-126).
A revisitação teórica do modelo de processo calcado em raízes autocráticas
passa diretamente pela constitucionalização do discurso utilizado como referencial
para a construção dos provimentos jurisdicionais. Trata-se da forma mais adequada,
legítima e coerente de criticar juridicamente o arbítrio do julgador no ato de decidir. A
segurança jurídica do jurisdicionado quanto aos provimentos está diretamente
vinculada ao direito que o mesmo tem de não ter sua pretensão julgada a partir de
argumentos axiologizantes.
A Hermenêutica Constitucional deve ser o referencial lógico e jurídico das
decisões judiciais, ou seja, o magistrado, a partir de uma análise e apreciação
minuciosa de todas as questões trazidas pelas partes deverá encontrar a
argumentação jurídico-constitucional mais adequada e condizente com o caso
concreto. Submeter o jurisdicionado à subjetividade do decididor é obrigá-lo a ter
que suportar a absoluta insegurança jurídica de se ver obrigado a aderir à decisão
ora proferida solitariamente pelo magistrado.
5. Releitura crítica do principio da imparcialidade como corolário da obrigatoriedade
de fundamentação das decisões judiciais.
Imparcialidade do juízo é o direito que o jurisdicionado tem de que sua
pretensão será objetivamente julgada a partir de critérios de cunho jurídicoconstitucional. Ou seja, a imparcialidade não se confunde com a neutralidade.
Imparcial é o julgador que se posiciona diante do caso concreto, utilizando-se de
fundamentos de natureza constitucional. Neutro é todo aquele juiz que se esquiva de
se posicionar quanto ao caso concreto, proferindo uma decisão obscura, que muitas
vezes não garante nem nega direitos ao jurisdicionado.
A imparcialidade é um principio jurídico que precisa ser revisitado. Agir com
imparcialidade é o mesmo que decidir de forma parcial, fundamentando jurídicoconstitucionalmente sua decisão. É por isso que o principio da obrigatoriedade de
fundamentação das decisões judiciais é corolário da imparcialidade do juízo. O juiz
que decide no Estado Democrático de Direito de forma imparcial é aquele que
fundamenta objetivamente seu provimento, encontrando a argumentação jurídicoconstitucional mais pertinente e coerente com as questões de fato inerentes à
pretensão deduzida em juízo. O principio da fundamentação das decisões
jurisdicional é a garantia constitucional do processo no Estado Democrático de
Direito:
A importância do principio da fundamentação das decisões
jurisdicionais é demonstrada ao se constatar sua recepção em
enunciados normativos expressos nos ordenamentos jurídicos
modernos, quer no plano constitucional, quer no plano
infraconstitucional, impondo aos órgãos jurisdicionais do Estado o
dever jurídico de motivarem seus pronunciamentos decisórios,
visando a afastar o arbítrio judicial, caracterizado por anômalas ou
patológicas intromissões de ideologias do julgador na motivação das
decisões, de forma incompatível com os princípios que estruturam o
Estado Democrático de Direito (DIAS, 2010, p. 125-126).
Como exposto, sabe-se que a fundamentação jurídica das decisões judiciais é
uma garantia constitucional assegurada a todo jurisdicionado de que suas
pretensões não serão apreciadas a partir de concepções e pressuposições
decorrentes da subjetividade e do pessoalismo do julgador. Nesse sentido, a
imparcialidade do julgador vincula-se diretamente com a obrigatoriedade de
fundamentação jurídico-constitucional de todos os seus atos, levando-se em
consideração todas as peculiaridades do caso concreto.
O cerceamento de defesa materializa-se quando o contraditório ou a ampla
defesa não são oportunizados; quando o julgador oportuniza formalmente o
contraditório, concedendo ao jurisdicionado o direito de apresentar suas alegações e
simplesmente desconsiderando todas ou parte dessas alegações no momento de
decidir; quando o juiz julga com base em critérios subjetivos, metajurídicos,
axiológicos e absolutamente contrários às provas dos autos; quando sumariza a
cognição e limita o espaço de debate legitimo das questões controversas que
integram a pretensão deduzida em juízo.
A releitura critica do principio da imparcialidade torna-se juridicamente
relevante no momento em que se percebe que quando o magistrado decide de
forma pessoal certamente cerceia o direito de defesa das partes, tornando, assim, a
decisão ora proferida absolutamente nula.
A superação dessa cultura jurídica da valoração do caso concreto pelo
julgador passa diretamente pela Hermenêutica Jurídica, considerada o referencial
teórico balizador da atividade jurisdicional, de modo que as partes interessadas
compreendam e visualizem o provimento final como reflexo da leitura jurídica que o
magistrado fez acerca do caso concreto e a partir de todas as alegações e
argumentações de cunho fático e jurídico trazidas pelas partes ao processo. O
provimento final deve ser conseqüência do debate jurídico da pretensão, ocorrido no
âmbito processual, e não mera conseqüência das percepções pessoais do julgador
no ato de decidir.
6. Um Estudo de Caso da Portaria 09/2011 da Comarca de Santo Antônio do Monte.
No dia 30 de junho de 2011 a juíza de Direito da Comarca de Santo Antônio
do Monte, Estado de Minas Gerais, editou a Portaria 09/2011 proibindo a distribuição
no Juizado Especial Cível de execuções extrajudiciais e ações de conhecimento
(ações de cobrança) cujos valores sejam inferiores a um salário mínimo. A
justificativa inicial utilizada como parâmetro pela douta magistrada foi a ausência de
efetividade processual no recebimento de valores irrisórios. Os princípios da
proporcionalidade, razoabilidade, economicidade e celeridade processual foram
também invocados como argumento para proibir que o Judiciário mineiro fosse
transformado em verdadeiro escritório de cobrança com inúmeras execuções e
ações de conhecimento de valor irrisório.
Importante esclarecer que no mês de março de 2012 a respectiva portaria foi
revogada por determinação da Corregedoria do Tribunal de Justiça de Minas Gerais
sob o argumento de violação do principio constitucional da inafastabilidade do
controle jurisdicional, expressamente previsto no artigo 5º, inciso XXXV da
Constituição brasileira de 1988.
De forma surpreendente, após a revogação da presente portaria, alguns advogados
da Comarca de Santo Antônio do Monte publicaram manifesto de apoio à juíza de
Direito responsável pela edição da Portaria 09/2011, momento em que apresentam
os seguintes argumentos e justificativas:
MANIFESTO DE APOIO À DRA. LORENA TEIXEIRA VAZ DIAS
COM RELAÇÃO A PORTARIA Nº 09/2011
OS ADVOGADOS QUE ESTA SUBSCREVEM, militantes na
Comarca de Santo Antônio do Monte/MG, vem manifestar total apoio
à Portaria da MM. Juíza de Direito, Dra. Lorena Teixeira Vaz Dias,
que estipulava valor mínimo para ingresso com ações de cobrança
perante o Juizado Especial Cível da Comarca de Santo Antônio do
Monte/MG, mas que contudo fora revogada, o que fazem utilizandose deste meio de comunicação:
A honrada Comarca de Santo Antônio do Monte, cuja instalação data
de 30/03/1892, sempre teve o privilégio de ter uma Justiça célere,
seja por causa dos Juízes, Promotores, Serventuários e dos próprios
advogados que aqui militam ou já militaram.
Dificilmente nesta Comarca um processo tem ou teve seu trâmite
além do esperado, ou seja, distribuições ágeis, serventuários
promovendo rapidamente os processos, prazos de conclusão para os
Juízes rápidos, intervenções do Ministério Público em tempo
oportuno.
O que foi dito acima permanece sendo uma realidade relativamente
aos feitos que tramitam na Justiça Comum. Porém, relativamente ao
Juizado Cível, infelizmente já não se pode dizer o mesmo.
Desde que a existência do Juizado Cível passou a ser notória nesta
Comarca, infelizmente, muitas pessoas passaram a utilizá-lo como
um verdadeiro “balcão de cobrança”. Consequentemente, mais e
mais ações passaram a tramitar perante o Juizado, especialmente
ações de cobrança. E mais, cobranças de R$30,00, R$50,00,
R$200,00 e, assim por diante, inundaram o Juizado, ocasionando
então a “quebra da tradição” desta Comarca de rapidez na prestação
jurisdicional.
Como se não bastasse, a maioria destas cobranças ínfimas são
destinadas a devedores notórios da Comarca, que ainda que
tivessem condições não pagariam o que lhes é cobrado.
Assim, uma lei que a princípio foi instituída para imprimir maior
agilidade no Judiciário (Lei nº 9.099/95), acabou por fazer efeito
inverso, ao menos na Comarca de Santo Antônio do Monte (BRASIL,
2014)42.
42
Disponível
https://www.facebook.com/permalink.php?id=121433507954181&story_fbid=245921642172033.
Acesso em 25 jun. 2014.
em
Contrariando toda a lógica jurídica, a legislação infraconstitucional e as
normas constitucionais o respectivo manifesto utilizou-se de argumentos de cunho
metajurídico com o condão de limitar o acesso à jurisdição aos cidadãos que
pretendiam receber legitimamente seus créditos perante o Judiciário. No momento
em que houve a negativa da jurisdição, questiona-se: o cidadão que foi proibido de
exigir judicialmente um crédito e, em razão disso, foi surpreendido com a prescrição,
de quem seria a responsabilidade civil? Esse é um dentre tantos outros
questionamentos surgidos em razão dessa negativa de prestação jurisdicional
decorrente do exercício arbitrário da jurisdição.
Inexistem fundamentos coerentes para justificar a validade jurídica da
respectiva Portaria perante o Direito brasileiro, pelos argumentos e justificativas a
seguir expostos.
A Lei 9009/95, ao instituir os Juizados Especiais Cíveis, em seu artigo 3º,
inciso I é clara ao estabelecer que o Juizado Especial Cível tem competência para o
processamento e julgamento de causas cíveis de menor complexidade, cujo valor
não exceda a quarenta salários mínimos. Pela análise da literalidade do texto legal
verifica-se que em momento algum o legislador infraconstitucional estabeleceu um
valor mínimo como condição para a propositura de ação de cobrança ou de
execução junto ao Juizado Especial Cível. No momento em que a magistrada editou
a respectiva Portaria usurpou de sua função, extrapolando o exercício legitimo da
jurisdição, ou seja, considerando-se que a atividade típica do julgador é apreciar
objetivamente as pretensões deduzidas em juízo não teria, assim, legitimidade para
legislar contrariamente ao próprio texto legal. Configura-se, assim, clara violação ao
principio constitucional da separação das funções estatais.
Certamente a edição da portaria em questão decorre de toda uma tradição
historicista que ideologiza a figura mítico-transcendental do magistrado que, no
exercício de suas atribuições, pensa, certamente, que sua atividade não se submete
a qualquer tipo de controle ou limite imposto pelo texto constitucional e legislação
infraconstitucional.
Está evidente, no presente caso, a utilização da subjetividade da magistrada
no ato em que editou a respectiva portaria, uma vez que tal diploma de cunho
legislativo é mero reflexo das percepções pessoais levantadas pela juíza na
comarca onde atua. Verifica-se, assim, que a subjetividade do julgador, além de ser
critério utilizado nos julgamentos, também é um parâmetro muitas vezes, utilizado
para limitar ou retirar do jurisdicionado do direito de amplo acesso à jurisdição.
No momento em que a magistrada publicou a portaria em questão certamente
se colocou acima do próprio texto constitucional, que é claro e categórico ao
estabelecer que o acesso à jurisdição é um Direito Fundamental consagrado
expressamente na Constituição brasileira de 1988.
A própria edição e aprovação da Lei 9099/95 é reflexo de todo um movimento
jurídico, político e social de ampliação e de democratização das vias de acesso ao
Judiciário. Reconhecer como válida a presente portaria é contrariar todas essas
conquistas jurídicas e legitimar o arbítrio do julgador decorrente de um modelo de
processo autocrático.
Outro argumento coerente para a crítica jurídica em tela encontra-se no
principio da supremacia da constituição e no principio da reserva legal, considerados
dois referenciais teóricos para o modelo de processo constitucional. A jurisdição é
um Direito Fundamental considerado corolário ao exercício efetivo da cidadania e
nesse sentido Luis Roberto Barroso afirma que “por força da supremacia
constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode
subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental” (2009, p. 165). O
processo deve ser visto como uma garantia constitucional do cidadão contra
qualquer tipo de abuso praticado no âmbito jurisdicional e nesse sentido Ronaldo
Bretas de Carvalho Dias é pontual ao afirmar que “os únicos critérios diretivos para o
exercício da função jurisdicional [...] são aqueles ditados pelo principio da
permanente vinculação dos atos da jurisdição ao Estado Democrático de Direito”
(2010, Pp. 119).
Sabe-se que a constitucionalização do processo é a forma mais legitima de
superação, pelo menos sob o ponto de vista teórico, do modelo de processo
autocrático e centrado na autoridade sacerdotal e decorrente da subjetividade do
decididor.
7. Conclusão
O modelo autocrático de processo vigente no Brasil, estampado nos Códigos
e Legislações Processuais, legitima a atuação soberana do julgador, permitindo-lhe
decidir com base em fundamentos de cunho metajurídico, axiologizante e pessoal. É
nesse cenário que encontramos a valoração de provas pelos julgadores e a
ideologização das decisões justas. A função mítica do juiz é garantir a perpetuação
da justiça entre os homens e, para alcançar as cognominadas decisões justas,
poderá o julgador decidir exatamente com base no texto literal da lei; julgar contrário
ao texto de lei se considerá-lo injusto ou criar a própria lei aplicada ao caso concreto,
em caso de lacuna, pautando-se nos costumes, analogias e outras fontes estranhas
à Hermenêutica Jurídica.
A jurisdição é vista como o sacerdócio da justiça, uma vez que atividade do
magistrado não se submete a qualquer tipo de controle, senão àquele decorrente de
sua própria consciência e percepção pessoal do caso concreto. Um Estado que
legitima a atuação soberana dos magistrados certamente coloca o jurisdicionado em
absoluta condição de subserviência aos abusos e arbítrios decorrentes do exercício
ilegítimo da jurisdição.
Contrapondo-se a todas essas proposições teóricas decorrentes da
dogmática jurídica encontramos o modelo de processo pautado nos princípios da
supremacia da Constituição, reserva legal, obrigatoriedade da fundamentação das
decisões judiciais, contraditório, ampla defesa, direito ao advogado e devido
processo legal. Com o advento da Constituição brasileira de 1988 o processo deixa
de ser um recinto de perpetuação do arbítrio do julgador e passa a ser visto com um
lócus de discursividade da pretensão deduzida por todos os sujeitos juridicamente
interessados na construção do provimento final. Da mesma forma a jurisdição passa
a ser vista como um Direito Fundamental corolário do exercício da cidadania no
Estado Democrático de Direito.
Nessa seara torna-se relevante revisitar teoricamente o principio da
imparcialidade, ou seja, imparcial é o julgador que decide de forma jurídicoconstitucionalmente parcial o mérito processual da pretensão deduzida. Parcial é o
magistrado que profere julgamentos pautados em argumentos metajurídicos e
axiológicos, afastando-se da Hermenêutica Constitucional e gerando insegurança
jurídica ao jurisdicionado. O juiz imparcial não pode ser confundido com o juiz
neutro, até porque, agir com neutralidade é não se posicionar diante do caso
concreto enquanto agir com imparcialidade é justamente se posicionar de forma
jurídica sobre o caso concreto levado ao Judiciário.
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do Juiz na Tradição Jurídica Européia. Organizadores: Jean-Marie Carbasse e
Laurence Depambour-Tarride. Belo Horizonte: Livraria Tempus Ltda, 2010.
ZAGAMÉ, Marie-France Renoux. Assegurar a obediência: a consciência do juiz na
doutrina judicial no inicio da modernidade. A consciência do Juiz na Tradição
Jurídica Européia. Organizadores: Jean-Marie Carbasse e Laurence DepambourTarride. Belo Horizonte: Livraria Tempus Ltda, 2010.
O DIREITO À DIFERENÇA: A PERMISSÃO DAS TÉCNICAS DE
REPRODUÇÃO ASSISTIDA A CASAIS HOMOSSEXUAIS EM FACE DO PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE HUMANA
Catarina Araújo Silveira Woyames Pinto43
Gabriela Maciel Lamounier44
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Os Direitos Fundamentais e a
Reprodução Assistida; 3. O planejamento familiar e técnicas de
reprodução assistida; 3.1 Modalidades de reprodução assistida;
3.1.1 Inseminação artificial homóloga; 3.1.2 Inseminação
artificialheteróloga;
3.1.3
Criopreservação;
3.1.4
Fertilização in vitro; 4. Aspectos jurídicos da reprodução
assistida; 4.1 O entendimento da matéria no Brasil; 4.2 O
entendimento da matéria em Portugal; 5. Paternidade
socioafetiva e paternidade biológica; 6. Conclusão; 7.
Referências.
1. Introdução
O
alargamento
dos
direitos
fundamentais
constitucionais
aos
direitos
sociaisfoiuma das dimensões da resposta do Estado Social de Direito à questão social
herdada da revolução industrial e às reivindicações de movimentos operários para quem,
sobretudo nas difíceis condições econômicas e sociais da época, não havia verdadeira
proteção da liberdade e da autonomia do cidadão. As reservas que esta atitude merece
nem se dirigem tanto à importação das dúvidas sobre o merecimento constitucional
material dos direitos sociais, já que, nesse plano, a discussão fazia e faz todo o sentido.
Tais reservas incidem antes sobre a importação não criticamente refletida de
conceitos como “o mínimo social”, “a distinção entre direitos sociais originários e
derivados” e “o princípio de proibição do retrocesso”, que, tendo uma explicação e
43
Mestra em Direito Internacional Público e Europeu e Doutoranda em Direito Público pela Universidade de
Coimbra.
44
Advogada. Professora universitária do Centro Universitário Newton Paiva, da Faculdade Minas Gerais e
da Fundação Pedro Leopoldo. Especialista em Direito Processual e Direito Ambiental. Mestra e Doutora em
Direito Público pela PUC/MG.
fazendo sentido no contexto germânico onde surgiram, perdem função, justificação e
interesse dogmático em contextos de Constituição com direitos sociais.
Atualmente, o direito da saúde é parte de um conjunto de direitos chamados de
direitos sociais, que têm como inspiração o valor da igualdade entre as pessoas. O
Estado deve proporcionar às pessoas recursos para uma vida digna, visando melhorar as
condições de vida dos hipossuficientes, exercendo, para isso, um controle social.
No Brasil, este direito apenas foi reconhecido na Constituição Federal de 1988,
antes disso o Estado apenas oferecia atendimento à saúde para trabalhadores com
carteira assinada e suas famílias, as outras pessoas tinham acesso a estesserviços como
um favor e não como um direito. Durante a Constituinte de 1988 as responsabilidades do
Estado são repensadas e promover a saúde de todos passa a ser seu dever.
Este artigo não deve ser lido apenas como uma promessa ou uma declaração de
intenções, este é um direito fundamental do cidadão que tem aplicação imediata, isto é,
pode e deve ser cobrado.
Não será abordada a questão econômica, mas sim, a social, tendo em vista um
Estado Social que deve, em princípio, ser o garantidor dos direitos dos seus cidadãos. A
saúde é um direito de todos por que sem ela não há condições de uma vida digna, e é um
dever do Estado por que é financiada pelos impostos que são pagos pela população.
Desta forma, para que o direito à saúde seja uma realidade, é preciso que o Estado crie
condições de atendimento em postos de saúde, hospitais, programas de prevenção,
medicamentos, etc. E, além disto, é preciso que este atendimento seja universal e
integral.
A criação do SUS (Sistema Único de Saúde) está diretamente relacionada a
tomada de responsabilidade por parte do Estado. A ideia do SUS é maior do que
simplesmente disponibilizar postos de saúde e hospitais para que as pessoas possam
acessar quando necessitarem. A proposta é que seja possível atuar antes disso, através
dos agentes de saúde que visitam frequentemente as famílias para se antecipar os
problemas e conhecer a realidade de cada família (como por exemplo, o médico da
família), encaminhando as pessoas para os equipamentos públicos de saúde quando
necessário.
Desta forma, organizado com o objetivo de proteger, o SUS deve promover e
recuperar a saúde de todos os brasileiros, independente de onde moram, trabalham e
quais os seus sintomas. Infelizmente este sistema ainda não está completamente
organizado e ainda existem muitas falhas. No entanto, seus direitos estão garantidos pela
constituição e devem ser cobrados para que sejam cumpridos.
Já em Portugal, nos últimos trinta anos de vigência da Constituição portuguesa de
1976, os direitos sociais e econômicos se tornaram parte integrante do regime
democrático-constitucional, discutindo-se, para tal como, e em que medida, estes direitos
têm sido objeto de lutas sociais e políticas; e como, e em que medida, estas lutas foram
transformando o nosso entendimento desses direitos, designadamente à medida que eles
foram sendo reinterpretados e aplicados quer como fundamento de políticas públicas,
quer pela jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Na segunda metade do século, por influências sociais, políticas econômicas, a
família passou por modificações acentuadas, contribuindo em grande parte para isto o
surgimento de uma nova perspectiva sobre as questões de gênero. A condição feminina
foi se modificando e, concomitantemente, houve mudanças também no papel masculino,
gerando reformulações na relação conjugal e, naturalmente, na relação pais-filho.
Com a emergência de novas tecnologias que passam a fazer parte do cotidiano
das pessoas, mais rapidamente novos comportamentos são adquiridos, surgindo novas
necessidades e expectativas. Estes e outros fatores vão se agregando e contribuindo
para que a estrutura familiar tradicional – pai, mãe e filhos – não seja a única forma de
relacionamento familiar, abrindo-se um espaço significativo a outras configurações
familiares.
Posto isto, a pergunta que tentará ser respondida ao longo deste artigo é: o direito
às técnicas de reprodução assistida, direito da saúde, tão importante para uma vida digna,
deveria ser garantido a casais homossexuais?
Não se pretende fazer um estudo a respeito da discriminação sofrida pelos
homossexuais, apesar de ser relevante ao estudo, o que se pretende é demonstrar que
se trata de um direito constitucional assegurado a todos, sem distinção.
Entende-se que deve haver a discussão de soluções jurídicas para outras formas
de entidades familiares e também aqueles que desejam ter filhos sem um companheiro ou
companheira, todavia, por uma questão de delimitação temática, somente o acesso a
técnicas de reprodução assistida a casais homossexuais será tratada no presente
trabalho.
2. Os Direitos Fundamentais e a reprodução assistida
Os direitos sociais, assim como os econômicos e culturais são procedentes dos
movimentos sociais democratas e visam garantir um padrão mínimo de vida, para que as
pessoas possam desenvolver suas potencialidades. (GUERRA, 2013)
Na visão de Carlos Henrique Bezerra Leite (2010), esses direitos, pertencentes à
segunda dimensão de direitos fundamentais, correspondem aos direitos de inclusão
social, uma vez que requerem políticas públicas que efetivem o exercício das condições
materiais em busca de uma existência digna.
Essa inclusão social, obviamente, abrange os homossexuais.
A reprodução assistida é um conjunto de técnicas que possibilitam casais estéreis
terem filhos. Por esta técnica, ainda muito rejeitada pela sociedade brasileira, é possível o
armazenamento do material genético, a doação de gametas e a fertilização heteróloga.
O Biodireito é a disciplina que trata da reprodução assistida e de seus aspectos
jurídicos. O Biodireito, que trata dos direitos relativos à genética, hoje é tratado por alguns
estudiosos, como disciplina dos direitos fundamentais da quarta dimensão ou geração.
Nas palavras de Emanuel Marques,
O Biodireito é um novo ramo do Direito que trata da teoria, dos princípios,
da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da
conduta humana, em face dos avanços da biologia, da biotecnologia e da
medicina. O Biodireito concede tratamento ao homem não como ser
individual, mas, acima de tudo, como espécie a ser preservada.
(MARQUES, 2013)
Acílio Rocha (2010) alega que à preservação do patrimônio genético e a não
exploração comercial do genoma humano, são direitos de quarta dimensão, decorrentes
dos avanços científicos e tecnológicos que permeiam a crescente globalização do mundo.
Maria Helena Diniz (2002) esclarece que o Biodireito deve contribuir para o
desenvolvimento das ciências da vida, garantindo o respeito à dignidade da pessoa
humana.45
3. O planejamento familiar e as técnicas de reprodução assistida
45
O art. 1º, III da Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 prevê como fundamento do
Estado Democrático de Direito a Dignidade Humana.
Em seu livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis (2010, p.
03) escreve: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”
Ou seja, o fato de não poder ter um filho, sempre assombrou tanto pessoas reais como
alguns personagens da literatura.
A decisão de gerar um filho pode encontrar sérias limitações que, em um primeiro
momento, inviabilizam a realização desse desejo, como, por exemplo, a infertilidade.
Quem podia imaginar que pessoas estéreis ou que, por questão de orientação
sexual, poderiam ter filhos? O que somente acontecia em filmes de ficção científica,
passou a ser um tema discutido na sociedade mundial.
A tecnologia evoluiu e, estas pessoas, que antes não podiam ter o tão sonhado
filho, hoje em dia, podem escolher entre algumas opções: a adoção ou a reprodução
artificial ou técnicas de reprodução assistida.
Nas palavras de MarillynStrathern,
É, aliás, por o fazermos constantemente que estou a levantar esta
questão. As novas tecnologias da reprodução são apresentadas como
abrindo novas perspectivas ao nível das opções reprodutivas, oferecendo
assim uma visão da biologia sob controle de famílias que estão livres para
escolher a forma que irão assumir. Por muito fantasiadas que sejam estas
imagens das opções futuras, também é verdade que, com a justificação de
se alargarem as possibilidade de realização humana, se aperfeiçoam
técnicas e se dão conselhos médicos, de tal forma que nos agarramos à
esperança de que os seres humanos só poderão beneficiar com a
engenharia genética. Por um lado, uma visão fantasiosa de opções, por
outro, a realização de decisões concretas: seja qual for a maneira como se
encare a questão, podemos agora pensar na procriação como algo que
está sujeito a preferências e opções pessoais duma maneira que nunca
anteriormente fora possível. A criança é literalmente – e em muitos casos,
como é evidente, com grande alegria – a encarnação do acto de optar.
(STRATHERN, 2008, p.1013)
Com o intuito de extinguir o sofrimento de não poder deixar um legado, existem
técnicas de reprodução assistida, solucionando assim, um possível trauma que pode
abalar seriamente a vida de uma pessoa ou mesmo, acabar com um casamento ou uma
união estável.
Contudo, o que se vê, é o direito, que deveria acompanhar o andamento da
sociedade, negando a entender essas novas tendências, omitindo-se. A união civil entre
pessoas do mesmo sexo não é expressamente regulada no Código Civil brasileiro de
2002. A Comissão Revisora e Elaboradora do Anteprojeto de Código Civil recebeu críticas
acerca da omissão.
O jurista Miguel Realeafirmou que:
Essa matéria não é de Direito Civil, mas sim de Direito Constitucional,
porque a Constituição criou a união estável entre homem e mulher. De
maneira que, para cunhar-se aquilo que estão querendo, a união estável
dos homossexuais, em primeiro lugar seria preciso mudar a
Constituição.Não era essa a nossa tarefa e muito menos a do Senado.
(REALE, 1999)
Outrora considerada como doença ou perversão, o homossexualismo não é visto
mais como tal.
O sufixo ismo, que significa “doença”, foi retirado e substituído pelo sufixo dade,
que designa “modo de ser”, por isso, a denominação Homossexualidade. (BRANDÃO,
2002)
Assim, a Organização Mundial de Saúderetirou a homossexualidade de sua lista
de doenças mentais (Código Internacional de Doenças – CID-10) por se tratar de um
estilo de comportamento, geneticamente prevalente. (MALUF, 2008)
Ou seja, a ideia é de que a orientação sexual é, na realidade, uma gama de
comportamentos e identidades e não uma condição. A homossexualidade é uma das
muitas variações do comportamento humano.
Fato é que, a busca pela felicidade levou ao surgimento de novas famílias que
florescerem através do afeto, pois o que se deseja é conciliar as vantagens da
solidariedade familiar com a liberdade individual.
Em opinião contrária, Francisco Muniz alega que:
As uniões estáveis de natureza homossexual podem ter relevância jurídica
em outros planos e sob outras formas – não como modalidade de
casamento ou entidade familiar. E, portanto, à luz do ordenamento jurídico
brasileiro, as uniões homossexuais não integram o Direito de Família.
(MUNIZ, 1993, p. 232)
Contudo, tal opinião não merece tanta atenção, afinal, há que se ter a visão
constitucionalista dessas uniões, e não meramente civilista.
O Supremo Tribunal Federal,em05 de maio de 2011, na ocasião do julgamento
da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Arguição de descumprimento de
preceito fundamental nº 132 reconheceu, por unanimidade, a união estável entre pessoas
do mesmo sexo em todo o território nacional, interpretando o artigo 226, §3º
da Constituição da República Federativa do Brasil de forma mais ampla. (BRANDÃO,
2002)
Portanto, esboçam-se na atualidade novas modalidades de família, mais
igualitárias e menos sujeitas às regras e/ouimposições.
O que se pretende com a tutela da autonomia no âmbito familiar, é a liberdade do
homem e da mulher de escolher como irão reger as suas vidas no núcleo familiar, não
podendo ter a sua intimidade afetada, tendo em vista, sempre, que a paternidade seja
feita de forma responsável.
Os direitos reprodutivos, que pertencem ao conjunto de direitos básicos dos
cidadãos, advêm do princípio ou garantia constitucional da dignidade da pessoa humana
que estão elencados por direitos individuais do homem e da mulher.
A dignidade da pessoa humana é “um valor autônomo e específico inerente aos
homens em virtude da sua simples personalidade. Consequentemente a República
baseia-se no homem como um sujeito e não como um objeto dos poderes ou relações de
domínio.” (CANOTILHO, 2007, p. 59)
O
planejamento
familiar
é
um
dos
direitos
reprodutivos
fundamentais
reconhecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 226, §
7º, em que institui o planejamento familiar como a base dos princípios da dignidade da
pessoa humana e da paternidade responsável.
O planejamento familiar pode ser conceituado como sendo “um conjunto de ações
de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou
aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”, de acordo com a Lei nº
9263/96, em seu artigo 2º.
Decorre daí a possibilidade de ajuda pelo Estado, através de medidas preventivas
e assistenciais, no caso de infertilidade, pois, nem os convênios médicos particulares
cobrem os tratamentos necessários para amenizar ou tratar a infertilidade.
Não se trata de um controle populacional, mas na ajuda didática as populações
menos favorecidas, de seus direitos e de suas possibilidades quando do nascimento de
seus filhos. Assim, o planejamento familiar não irá ditar regras sobre o comportamento
sexual dos casais e ainda, sobre a quantidade de filhos que um casal pode ou não ter.
O planejamento familiar é a livre escolha de um casal, heterossexual ou
homossexual,de se organizar como família, da forma que entender. Trata-se de um
direito, que deve ser exercido de forma responsável.
Como outros direitos sociais garantidos pela Constituição, tanto portuguesa como
brasileira, o direito à saúde faz com que o poder público esteja obrigado a oferecer
condições ao planejamento, tanto de não haver gravidez indesejadas como auxiliar os
que tanto desejam um filho, fonte da sua felicidade.
Certo é que o Estado deve garantir meios para que os cidadãos possam se
desenvolver livremente, em todos os aspectos da vida, incluindo, dessa forma, os direitos
reprodutivos.
Nos dizeres de Flávia Piovesan,
Vale dizer, a plena observância dos direitos reprodutivos impõem ao
Estado um duplo papel. De um lado, demanda políticas públicas voltadas a
assegurar a toda e qualquer pessoa um elevado padrão de saúde sexual e
reprodutiva,que implica em garantir acesso a informações, meios,
recursos, dentre outras medidas. Por outro lado, exige a omissão do
Estado em área reservado à decisão livre e responsável dos indivíduos de
sua vida sexual e reprodutiva, de forma a vedar a interferência estatal,
coerção, discriminação e violência em domínio da liberdade, autonomia e
privacidade do indivíduo. (PIOVESAN, 2003, p. 274)
Um dos eixos de ação dessa política é a introdução das tecnologias de
reprodução assistida no Sistema Único de Saúde, entre elas a inseminação artificial
heteróloga ou exogâmicas, cuja aplicação envolve aspectos éticos, morais e também
efeitos jurídicos ainda não regulamentados pelo nosso ordenamento.
Para um melhor entendimento, há que se destacar as principais modalidades de
reprodução assistida.
3.1 Modalidades de Reprodução Assistida
Conforme a Organização Mundial de Saúde, infertilidade é a capacidade de um
casal conceber após um ano de relacionamento sexual, sem uso de medidas
contraceptivas. Dessa forma, os casais que deverão buscar dessas técnicas e que,
depois de algum tempo tentando da forma convencional, não obtém sucesso.
As pessoas que não possuem problemas graves de infertilidade iniciam um
tratamento para melhorar a ovulação ou a produção de sêmen, para somente depois,
realizar a inseminação artificial homóloga, que é considerada a mais simples.
A reprodução assistida46 é um conjunto de métodos que proporcionam a
manipulação de gametas e embriões, com a finalidade de lutar contra a infertilidade
humana, com probabilidade de sucesso. (MARQUES, 2013)
3.1.1 Inseminação Artificial Homóloga
É a transferência do sêmen (do marido ou companheiro) pelo aparelho genital
feminino, substituindo a relação sexual. A fecundação ocorre no interior do corpo da
mulher. Neste tipo de inseminação artificial, o material genético pertence ao casal.
É utilizada nas situações em que o casal possui fertilidade, mas não é capaz da
fecundação por meio do ato sexual. (DIAS, 2011)
3.1.2 Inseminação ArtificialHeteróloga
É também conhecida como Inseminação Artificial com Doador. Nesta, o sêmen
transferido é objeto de doação. Ocorre nos casos de esterilidade masculina ou em casos
de produção independente ou mesmo em caso de mulheres homossexuais. (IDALÓ,
2011)
Na utilização desta técnica, observa-se de um lado um doador que se propõe
anônimo, oferecendo seus gametas para viabilizar o projeto parental de outrem e no outro
extremo, temos uma criança que, embora tenha mãe e pai, ao crescer poderá reclamar o
direito de conhecer sua ascendência genética.
Tem-se, então, um conflito entre o direito ao conhecimento da ascendência
genética e o direito à intimidade e uma nova discussão a respeito do direito de família,
todos revolucionados pelos progressos da engenharia genética.
3.1.3 Criopreservação
Neste tipo de reprodução assistida, há a doação de sêmen, mas este será
utilizado futuramente, em casos de homens que precisam se submeter a tratamentos
médicos como quimioterapia, radioterapia, vasectomia, etc. (IDALÓ, 2011)
46
No Brasil, a reprodução assistida é regulamentada pela Resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de
Medicina.
3.1.4 Fertilização in vitro
É a fecundação artificial na qual a fecundação ocorre em laboratório, fora do
corpo da mulher. Após a fecundação do espermatozóide e do óvulo, o embrião, agora
formado, pode ser transferido para o corpo da mãe, biológica ou não.
A fertilização in vitro, requer mais elaboração e trata-se de uma técnica mais cara,
pois, tanto os óvulos como os espermatozoides são coletados e fecundados novidro, na
proveta, para somente depois serem colocados no útero materno; por isto, o nome de
bebê de proveta.47
3.2 A reprodução assistida para os casais homossexuais
Existem casos de gestação de substituição, maternidade de substituição ou
barriga de aluguel. Esta maternidade pode ser conceituada como sendo um acordo, pelo
qual uma mulher gerará o filho de um casal e irá, depois, entregá-lo ao casal, abdicando
de qualquer direito sobre a criança que gerou.
No caso de casais de homens, é necessário que haja essa prestação de serviço
para que o tão sonhado filho seja gerado com o sêmen de um deles e uma doadora de
óvulos. Importante ressaltar que deve haver o consentimento de ambas as partes, como
bem menciona a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, no caso
brasileiro.
Com relação a Portugal, tal prática é proibida e pode ensejar em penalidade civil e
penal. Quanto ao ordenamento jurídico português, Vera Lúcia Raposo alega que:
(...) não proíbe de forma expressa os contratos de maternidade de substituição. A
sua recusa resulta somente de uma certa interpretação da lei. Nesse segundo
entendimento, será lícita a celebração de contratos no âmbito do estatuto pessoal,
dos quais nasçam direitos e obrigações. Cabe perguntar o que ocorrerá quando
ela se negue a comprimir. (RAPOSO, 2005, p. 116)
Em relação ao Brasil, a questão tem tomado um rumo diferente.
47
O nascimento do primeiro bebê de proveta (fecundação in vitro) foi o marco histórico da revolução
genética. Foi o nascimento de Louise Brown em 1978, em Oldham/Inglaterra.
Apesar de não existir, no Brasil, lei que regulamente as técnicas de reprodução
assistida, fica a cargo do Conselho Federal de Medicina seu regramento, o qual se dá
através da Resolução n. 1.957/2010, em vigor desde 06 de janeiro de 2011.
O próprio Conselho considera a infertilidade um problema de saúde que pode
sofrer implicações médicas e psicológicas e prevê a possibilidade de casais
homossexuais recorrerem às técnicas de reprodução assistida para procriarem, primando
pelos princípios da igualdade e da autonomia privada. (CONSELHO FEDERAL DE
MEDICNIA, 2010)
SegundoMaria Berenice Dias,
Também os parceiros homossexuais, a quem a justiça insiste em não
admitir a adoção, têm, cada vez mais, feito uso dos métodos modernos de
inseminação artificial para constituírem uma família. Assim, as lésbicas
utilizam o óvulo de uma que, fertilizado in vitro, é implantado no útero da
outra. A parceira que dá a luz não é a mãe biológica, mas acaba sendo ela
a mãe registral. Assim, ainda que a criança vá viver em um lar com duas
mães, como o vínculo jurídico se estabelece exclusivamente com relação a
que procedeu ao registro, trata-se de uma família monoparental. Os gays,
igualmente utilizam técnicas reprodutivas para terem um filho. Muitas
vezes é colhido esperma de ambos, até para não sanearem quem é o pai
da criança que irá nascer. Feira a fecundação em laboratório, faz o par uso
do que se chama barriga de aluguel. Ainda que o filho tenha dois pais, o
registro do filho é levado a efeito somente por um dos genitores,
constituindo-se uma família monoparental. (DIAS, 2011, p. 201-202)
É fato que os casais homossexuais têm direito à reprodução. E quando esses
casais fazem tal opção e exercem realmente o papel de genitores, há o reconhecimento
de uma filiação socioafetiva.
Conforme os ensinamentos de César Fiúza (2014), os papéis desempenhados
por homens e mulheresem relação aos filhos não correspondem, necessariamente, ao
papel que os mesmos exercem em relação ao sexo genital.
E mais, os direitos dos casais heterossexuais devem ser estendidos aos casais
homossexuais, inclusive o direito de utilizar técnicas de reprodução assistida.
(BOMTEMPO, 2015)
4. Paternidade versus ascendência biológica: aspectos jurídicos da reprodução assistida
As noções de sexualidade, vida privada, casamento, planejamento familiar,
confronta-se com uma evolução da sociedade e dos meios da biologia e da medicina, não
constituindo, assim, uma realidade imutável, limitada pelo plano histórico, sociológico ou
jurídico.
4.1 O direito à saúde: a reprodução heteróloga como solução para a homoparentalidade
O direito à saúde conflui no andar histórico da humanidade em uma perspectiva
crescente de agregação de garantias da saúde, mas sempre reduzida e limitada frente
aos requerimentos das necessidades humanas de uma saúde plena.
Considerar tal confluência de campos tão vastos do conhecimento humano
significa refletir sobre a demarcação de um novo campo de construção do conhecimento.
Trata-se de considerar o direito e a saúde como disciplinas isoladas e, com o intuito de
buscar uma aproximação mais ostensiva entre ambas, gerar fatos e novidades políticoinstitucionais na direção de uma articulação simbólica, capaz de dar respostas práticas na
vida concreta porque, o direito à saúde é garantido constitucionalmente, e é, para todos.
4.2 O entendimento da matéria no Brasil
Com o advento do Código Civil de 2002, esperavam-se soluções que não
surgiram. No artigo 1597, por exemplo, que trata do estabelecimento da filiação,
novamente, o problema não foi bem resolvido.
Há a dificuldade de se realizar tais técnicas, considerando o desgaste físico e
psicológico dos pacientes e até mesmo, o constrangimento, já que, em alguns casos, é
necessária a demonstração do amor que o casal tem. (NUNES; SANTOS, 2007)
De acordo com o Código Civil brasileiro:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os
filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a
convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade
conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o
marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões
excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia
autorização do marido. (BRASIL, 2002)
Tal artigo corresponde ao artigo 1.603 do Projeto na versão de 1975, época em
que não havia tanta discussão e preocupação social a respeito das técnicas de
reprodução assistida heteróloga, dessa forma, a omissão verificada no texto original sobre
os aspectos civis da reprodução assistida – incluindo a modalidade heteróloga. Inclui,
assim, os nascidos no casamento os filhos havidos por inseminação artificial, desde que
dela tenha conhecimento antecipado e acordado o cônjuge masculino.
Com relação ao inciso V, do artigo, presume-se que foi concebido na constância
do casamento o filho havido por técnicas de reprodução assistida heteróloga previamente
consentida pelo marido.
Entende-se forçoso reconhecer que a melhor técnica legislativa seria a de
considerar a certeza da paternidade, o que significaria a inconceptibilidade do marido
impugnar a paternidade relativamente à criança concebida e nascida da esposa com
prévio consentimento. (GAMA, 2003)
Contudo, isto só diz respeito a casais heterossexuais. É necessário acabar com a
hipocrisia e encarar a realidade. Com o surgimento dos métodos reprodutivos de
reprodução assistida e da manipulação genética, o sonho de ter filhos se aproximou da
realidade de todos. (DIAS, 2004)
A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 226, determina ser a família a
base da sociedade e tem especial proteção do Estado. (BRASIL, 1988).
Assim sendo, o Estado dará respaldo para a formação da família, incentivando o
casamento, reconhecendo a união estável como meio de se privilegiar o afeto.
A
Constituição adotou o pluralismo como um dos fundamentos, o que implica a aceitação de
uma multiplicidade das visões de mundo, que acarretam a possibilidade de cada pessoa
construir uma concepção própria do que seja bom para si mesmo, até porque, não há
mais a visão religiosa que tendia a unificar os mundos individuais, sendo que os valores
eram compartilhados e não, diversificados, pois, podia arruinar com a ordem posta.
O indivíduo passou a ser importante e a representar algo para a sociedade.
Todos, independentemente de seus projetos, têm a mesma valoração para o direito. “Por
isso, cada um possui, igualmente, direito de interpretar o que, para si, venha a ser
liberdade, bem como suas manifestações e projeções em sua própria vida (...). É
essencial que a sociedade e o Estado respeitem as diferenças individuais”. (SALES;
TEIXEIRA, 2011, p. 140).
Diante das possíveis dificuldades para a concretização da filiação biológica, a
utilização de técnicas de reprodução assistida, como a inseminação artificial, a
fecundação in vitro e a gestação de substituição, surgem como uma forma de concretizar
o tão sonhado desejo de ser pai ou mãe. E o avanço da medicina está aí para fazer com
que tal sonho, seja realizado, tendo em vista que a infertilidade humana e as formas
biomédicas adquiriram proporções cada vez maiores na atualidade, sendo tema de novas
Resoluções do Conselho Federal de Medicina brasileiro, no ano de 2011, de número:
1957/2010 que revogou a Resolução 1352/92, trazendo novos parâmetros deontológicos.
(SALES; TEIXEIRA, 2011)
Quando se fala em princípios norteadores da reprodução assistida, há princípios
do Biodireito e da Bioética, e princípios constitucionais, como, por exemplo, o princípio da
dignidade da pessoa humana, da paternidade responsável, do direito à filiação, etc.
O princípio da autonomia requer o respeito do profissional da saúde com o
paciente, levando em conta os seus valores sociais, éticos e religiosos. Consiste, em
síntese, em deixar o paciente atuar sem influência externa, livremente, decorrendo assim,
a exigência do livre consentimento informado.
Já o princípio da beneficência requer do médico ou geneticista uma maior atenção
aos interesses das pessoas envolvidas na prática biomédicas, evitando, quando possível,
qualquer dano.
O princípio da justiça, na ótica do Biodireito, visa a imparcialidade na distribuição
dos riscos e benefícios dos procedimentos, tratando os pacientes como desiguais
conforme seus níveis de desigualdade.
O ordenamento jurídico brasileiro acolhe os direitos humanos constitucionalmente
garantidos como direitos fundamentais como forma de proteção ao princípio da dignidade
da pessoa humana.
Independente da orientação sexual ou identidade de gênero do casal, os cônjuges
e parceiros, firmando o termo de consentimento informado podem fazer uso de técnicas
de reprodução assistida.
Segundo Maria Berenice Dias (2004), em dezembro de 2008, houve a primeira
decisão favorável ao registro dos filhos gêmeos no nome de duas mães que haviam se
submetido à técnica de reprodução in vitro.
Já os casais masculinos têm filhos mediante a técnica da gravidez por
substituição, em que consiste na escolha de uma barriga de aluguel, através da escolha
de um doador de sêmen ou podem optar pela escolha do material genético de ambos com
o intuito de não sabem, de fato, quem é o pai biológico do filho.
E, em 2012 o direito ao duplo registro do filho concebido por inseminação artificial
foi
reconhecido
pela
justiça
de
Pernambuco.
(TRIBUNAL
DE
JUSTIÇA
DE
PERNAMBUCO, 2014)
4.3 O entendimento da matéria em Portugal
O artigo 64º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à
proteção da saúde, determinando que a Lei Fundamental não limita a questão da saúde à
esfera, tão somente, da medicina. Sendo que, o Serviço Nacional de Saúde é
fundamental na garantia do direito a esta proteção. (PORTUGAL, 1976)
A possibilidade de procriação unilateral, ou seja, advinda de óvulos ou
espermatozóides doados por uma pessoa anônima, ignorada, poderia levar a uma
mudança radical no conceito de família.
Observa-se que no passado havia a certeza absoluta, inquestionável da
maternidade e as dúvidas surgiram somente com relação à paternidade. Hoje em dia,
com os inovadores procedimentos de procriação artificial, o panorama é completamente
diferente. Por isso, torna-se necessária a elaboração de legislação específica e de novos
institutos jurídicos, a fim de que não haja um distanciamento entre o ordenamento jurídico
e a realidade atual. (COSTA, 2000)
Face ao ordenamento jurídico português, a Lei nº 7, de 11 de maio de 2001,
adotou “as medidas de proteção das uniões da facto”, não fez depender a qualificação da
relação da orientação sexual dos seus membros, tendo como objetivo principal, a
equiparação do tratamento dado às relações de convivência homossexual. (PORTUGAL,
2001)
No mesmo sentido, a Lei nº 32, de 26 de julho de 2006, veio a reforçar o
entendimento de que “sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas aos dos
cônjuges há pelo menos dois anos”, em seu artigo 6º. E há, dessa forma, equiparação
legislativa entre cônjuges e conviventes homossexuais. De acordo com as regras que
presidem à atividade interpretativa, deve-se presumir que o legislador consagrou as
soluções mais acertadas.(PORTUGAL, 2006)
A lei portuguesanº 32, em seu artigo 7º.1 descreve que: “as técnicas de PMA não
podem ser utilizadas para conseguir melhorar determinadas características não médicas
do nascituro, designadamente, a escolha do sexo.”E também, trata-se de um método que
deve ser usado subsidiariamente, seguindo a tendência europeia, e enumerou que, não
somente para solucionar casos de infertilidade, mas para ser usado no tratamento de
doença grave ou quando do risco de transmissão de doença grave, de doenças de origem
genética, infecciosa, etc.(PORTUGAL, 2006)
O artigo 3º tende a reforçar os princípios da dignidade humana e da não
discriminação, já consagrados pelo Conselho da Europa, na Convenção sobre os Direitos
do Homem e a Biomedicina. (RAPOSO; PEREIRA, 2007)
As divergências dos tribunais portugueses com relação à matéria tem sido porque
não é considerada como uma família, mas sim, mas sim, uma ameaça à instituição
familiar.
Foi somente em 1999, no caso Salgueiro da Silva Mouta v. Portugal, levado ao
Tribunal Europeu do Direito do Homem, que, mesmo ambíguo com relação à matéria,
nesse caso concreto, o Tribunal decidiu que o poder parental não poderia ser negado
somente pelo fato de ter relação amorosa com pessoa do mesmo sexo.
Ao casal homossexual de mulheres, é facilitado o acesso a técnicas de
reprodução assistida, visto que somente terão que solicitar um sêmen, de um doador.
Contudo, como a maternidade de substituição ainda é vetada, pelo artigo 8º, I da Lei, nos
casos em que haja um casal formado por dois homens, ainda é impossível realizar o
sonho de ter um filho em Portugal.
5. Mais vale a paternidade socioafetiva do que a biológica?
Diante do atual contexto, vem se difundindo a utilização das práticas de
reprodução assistida. A fecundação pode ocorrer com material genético do par ou,
quando é doado por outra pessoa, chama-se heteróloga e, por isto, é que foi mais
amplamente estudada nesse artigo, pois, trata-se da possibilidade de que, casais
homossexuais têm de realizar um sonho: constituir família; ou, no termo jurídico:
constituição de uma parentalidadesocioafetiva.
O critério utilizado usualmente para impedir que casais homossexuais possam
participar de medidas de procriação medicamente assistida consiste no fato de que estes
não possam criar um filho porque a sociedade irá bani-lo, afinal, é o estranho no ninho, e
será sempre taxado pejorativamente.
A relação de pai (um pai e uma mãe, duas mães ou dois pais) é fundada na
afetividade, no afeto que se fortalece no dia a dia, e não necessariamente na origem
biológica. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência e não do sangue.
Há aí, entre os adeptos de que a constituição da família e do planejamento
familiar deva ficar entre casais heterossexuais, uma preocupação com o bem estar da
criança. Não há como afirmar que a homoparentalidade irá ser maléfica ao filho do casal,
pois esta, não é um fator determinante para o exercício da autoridade parental.
6. Conclusão
Com a ousadia pretensiosa dos operadores do Direito, tem-se, sempre, a melhor
expectativa, a de que, através de trabalhos de investigação científica, os legisladores
fiquem cada vez mais sensíveis ao tema.
Os caminhos que foram abertos pela biotecnologia e pela ciência da vida nos
últimas décadas levantaram algumas questões éticas e sociais. Tais progressos colocam
em voga o problema da necessidade de enquadramento normativo que conjugue-se as
grandes expectativas quanto às implicações médicas e o respeito aos princípios éticos
fundamentais.
Portanto, torna-se imprescindível que os legisladores definam posições concretas
e precisas sobre as novas aplicações das técnicas de procriação assistida, pois, a
sociedade encontra-se em constante mudança e de certa forma, desarmada legalmente.
Proibir que casais homossexuais tenham filhos por inseminação artificial é negar
o direito da saúde, um princípio constitucional e também o direito de família àqueles que
vivem sob o manto da solidariedade familiar, sobretudo, dos direitos fundamentais,
direitos constitucionais.
A função do direito é emancipar as pessoas em toda e qualquer situação jurídica
em que ela esteja inserida, sendo que tal direito é de todos, sem distinção de orientação
sexual. O Brasil tomou uma decisão correta em direção à igualdade e, Portugal está, aos
poucos, discutindo leis sobre o assunto. Respeitar o outro e não ter tabus para falar sobre
determinados temas. Estamos no caminho certo.
O Princípio da Dignidade Humana resume-se no tratamento do ser humano com
respeito e dignidade.
Contudo, aceitar a reprodução assistida tão-somente para fins ligados à
preservação da vida (saudável), não abarca por completo o Princípio da dignidade
humana, o qual também encontra-se presente nas técnicas de reprodução assistida
utilizadas por casais homossexuais que buscam a formação de uma família.
Ainda que haja interferência humana na reprodução natural, é certo que as
técnicas de reprodução natural auxiliam na criação da vida e na formação da família.
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f. Acesso: 20 dez 2014.
COISA JULGADA E PROCESSO COLETIVO: UMA ANÁLISE DA COISA
JULGADA E DO PROCESSO COLETIVO NA PERSPECTIVA DA AÇÃO
TEMÁTICA
Maria Luisa Costa Magalhães48
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Aspectos históricos acerca do
instituto da coisa julgada; 2.1 Considerações introdutórias; 2.2
Os limites subjetivos da coisa julgada; 2.2.1 Os limites
subjetivos da coisa julgada na legislação pátria; 3. A
necessidade de reformulação do instituto da coisa julgada para
a tutela dos direitos coletivos; 3.1 Da tutela dos interesses
individuais à proteção dos direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos; 3.2 Considerações sobre a coisa
julgada secundumeventum litis e o modelo de legitimação ad
causam nas ações coletivas; 4. As Ações Coletivas como
Ações Temáticas; 5. Conclusão; 6. Referências.
1. .............................................................................................................................
2. .............................................................................................................................I
ntrodução
A coisa julgada é instituto processual de função essencialmente prática no
mundo jurídico e existe para assegurar estabilidade à tutela jurisdicional dispensada
pelo Estado. No entanto, sobre coisa julgada tem se falado em sentidos diversos,
não alcançando, até mesmo os mais renomados juristas, base comum para
implantar as várias perspectivas sobre o tema.
Mais tormentosa, porém, é a análise do instituto da coisa julgada no
processo coletivo. Isto porque, em virtude da transformação de uma sociedade
individualista para uma sociedade de massas, direitos de outra ordem, coletivos e
difusos, passaram a clamar por proteção. Como os institutos processuais foram,
fundamentalmente, construídos para atender aos conflitos de interesses individuais,
a esfera dessas relações é tradicionalmente satisfeita pelo modelo dualístico de
tutela judiciária.
48
Mestre e Doutoranda em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Professora do Curso de Graduação em Direito do Instituto Metodista Izabela Hendrix – Professora do
Curso de Graduação
em Direito da Fundação Pedro Leopoldo FPL. E-mail:
mlcmagalhã[email protected].
Em contrapartida, quando se trata de direitos coletivos e difusos, é preciso
considerar uma série de relações que, longe de revelarem o interesse de uma única
pessoa, individualmente considerada, encaminham conflitos nos quais estão
envolvidos direitos de massa. Com a necessidade de tutela de direitos difusos, a
estrutura clássica do processo civil, tal como subsistia na generalidade dos
ordenamentos jurídicos, teve que passar por um processo de reformulação, o que
culminou na adoção de novas técnicas processuais capazes de tutelar bens que
afetam a um número indeterminado de pessoas.
Em face de uma realidade social, agora marcada pelos processos de
massificação dos conflitos, institutos como a legitimação para agir, o interesse
processual, a representação, a substituição processual, os limites subjetivos e
objetivos da coisa julgada, dentre outros, tiveram que ser repensados.
No que diz respeito à coisa julgada e à legitimação para a causa, há uma
questão a ser enfrentada. É que o modelo de processo coletivo vigente ainda se
assenta na lógica do processo individual, tendo adotado o modelo representativo de
legitimação para agir que, por sua vez, acabou por conferir a um rol de legitimados a
iniciativa para propor a ação coletiva.
Nesse sentido, a opção legislativa pelo modelo representativo restringiu a
possibilidade de defesa e discussão desses direitos em juízo, em especial dos
direitos difusos, pelos interessados naturais atingidos pelo bem, fato ou situação
jurídica, limitando, por sua vez, a participação desses interessados na formação do
objeto do processo, que se mantêm, nos moldes da legislação atual, atrelado ao
pedido formulado pelo legitimado legal.
Portanto, o que se propõe no presente trabalho é discutir criticamente o
Processo Coletivo, apresentando a Teoria das Ações Coletivas como Ações
Temáticas, uma vez que nestas, a formação do objeto ou do mérito se estabelece de
forma participada, posto que não se vincula ao sujeito que propõe a ação, mas será
definido a partir dos temas postos em juízo por todos aqueles que em maior ou
menor medida foram afetados pelo fato, bem ou situação jurídica. No que tange à
coisa julgada, demonstraremos que o modelo de coisa julgada secundumeventum
litis adotado pela legislação pátria é inapropriado exatamente por atrelar-se ao
modelo representativo e por fundar-se em um processo coletivo centrado no sujeito
e não no seu objeto. Por fim, pretende o presente trabalho compreender o instituto
da coisa julgada e o processo coletivo na contemporaneidade, considerando que os
temas, objeto de nosso estudo, deverão ser repensados sob o enfoque tanto do
Paradigma Procedimental de Estado Democrático de Direito, quanto do Modelo
Constitucional do Processo esculpido na Constituição da República Federativa do
Brasil.
2.Aspectos Históricos acerca do Instituto da Coisa Julgada
2.1 Considerações introdutórias
A natureza jurídica do instituto da coisa julgada continua a ser até os dias
atuais um dos temas mais polêmicos e, sem dúvida, um dos mais importantes para a
ciência processual.
Ao longo da história várias teorias foram formuladas, podendo-nos remontar
àquelas que sustentam ser a coisa julgada simples presunção de verdade, outras
que asseguram tratar-se de uma ficção, além das que a entendem como mera
verdade formal (PORTO, 1996).
Em conformidade com o que nos ensinou Enrico Túlio Liebman, a res
iudicata, durante muito tempo, foi considerada por parte da doutrina, ora como um
dos efeitos da sentença, ora como sua eficácia específica, podendo ser entendida
como o conjunto de conseqüências que a lei faz derivar da sentença ou como o
conjunto de requisitos exigidos para valer plenamente e ser considerada perfeita
(LIEBMAN, 1984).
Esta visão acerca da coisa julgada inspira-se em antiga e augusta tradição,
mais precisamente na romanística. Para os romanos, o particípio iudicataqualificava
o substantivo res, para indicar em relação a esta a situação particular que advinha
de já se ter proferido julgamento, tal como a expressão in iudicium deducta
qualificava a res submetida ao conhecimento do juiz, mas ainda não julgada. A res
iudicata outra coisa não seria para a concepção romana que a res iudicium deducta
depois que foi iudicata. Sem dúvida, porque era a sentença que produzia a
conversão da res in iudicium deducta em res iudicata (BARBOSA MOREIRA, 1970).
Já na Idade Média, quando se propagou o estudo do direito romano, utilizouse largamente o Direito Justiniano, tendo os glosadores, pós-glosadores e
canonistas preservado os textos romanos referente à res iudicata.
A partir desse período, são construídas duas grandes teorias civilistas sobre
a coisa julgada, as de Pothier e Savigny (BORGES, 1980).
Fundados em textos de Ulpiano, juristas da Idade Média identificavam a
autoridade da coisa julgada na presunção de verdade contida na sentença. Para
eles, a finalidade do processo era a busca da verdade. Entretanto, nem sempre a
sentença reproduzia a verdade esperada, existindo a possibilidade de sentenças
injustas adquirirem a qualidade de coisa julgada. Não seria por essa circunstância,
porém, que a sentença, apesar de nem sempre reproduzir a verdade, deixaria de
adquirir a autoridade de coisa julgada e, diante da impossibilidade de se afirmar que
a sentença sempre representaria a verdade material, encontraram na presunção de
verdade o fundamento jurídico para a sua autoridade.
É bom lembrar que a Teoria de Pothier alcançou, nos tempos modernos,
consagração no Código de Napoleão, daí estendendo-se para outros Códigos.
Disciplinada pelo Regulamento n° 737, de 1850, dispunha o artigo 185 que “São
presunções legais absolutas os fatos ou atos que a lei expressamente estabelece
como verdade, ainda que haja prova em contrário, como a coisa julgada.” (SANTOS,
1982, p. 433).
A teoria da ficção da verdade elaborada por Savigny, por seu turno, partiu da
constatação de que também as sentenças injustas adquiriam autoridade de coisa
julgada, assim como a teoria da presunção da verdade. Dessa forma, a sentença se
apresentava numa mera ficção da verdade, uma vez que a declaração nela contida
nada mais representava do que uma verdade aparente. E, nessa medida, produziase uma verdade artificial, uma ficção (PORTO, 1996).
Com a elaboração científica do direito processual, as teorias civilistas acerca
da coisa julgada foram paulatinamente abolidas, elevando-se a coisa julgada à
categoria de instituto processual e, portanto, de natureza essencialmente pública.
A propósito, acerca da assertiva acima, transcreve-se os seguintes
comentários do Professor Alexandre Isaac Borges:
A concepção publicística de que resultou o conceito do processo
como relação jurídica e da ação como um direito autônomo, teria
interferido nas idéias a respeito da coisa julgada, levando a doutrina
a duas concepções distintas, oriundas da pesquisa quanto à
natureza do vínculo dela resultante, para uns de direito material, para
outros de direito processual. À base dessas cogitações estava a
preocupação de saber se o julgado implica alteração nas relações
jurídicas deduzidas no processo, conferindo-lhes uma feição nova ou
de outra forma, se atém a uma preceituação de índole
exclusivamente processual. Em outros termos, se a coisa julgada
altera, em sua essência mesma, a relação jurídica decidida ou limitase – quando a essa relação - a uma qualificação processual,
vinculativa para as partes e para os órgãos jurisdicionais. (BORGES,
1980, p.116)
Na esteira de tais argumentações, juristas como Pagenstecher, Ihering, Ugo
Roco e Carnelutti, dentre outros, desenvolveram suas teorias no intuito de explicar o
fundamento jurídico da coisa julgada e, pela autoridade dos escritores que as
defenderam, foram largamente difundidas, em especial, a de Savigny e Pothier.
Uma revisão doutrinária acerca do tema nos permite citar as principais
teorias a que se referem a doutrina pátria, quais sejam: a “teoria da presunção da
verdade”, fundada em textos de Ulpiano; a “teoria da ficção da verdade”, elaborada
por Savigny; a “teoria da força substancial da sentença” de Pagenstecher; a “teoria
da eficácia da declaração” em escritos de Hellwig, Binder, Stein, como seus maiores
representantes; a “teoria da extinção da obrigação jurisdicional” em Ugo Roco; a
“teoria da estabilidade do ato” desenvolvida por Carnelutti; a “teoria da vontade do
Estado” por Chiovenda e a teoria de Enrico Túlio Liebman (SANTOS, 1995).
Entretanto, não deixando de lado a autoridade de tais orientações, são nos
ensinamentos de Chiovenda e Liebman que encontramos os verdadeiros
fundamentos para o estudo do tema.49
Como ensinou Liebman (1984) em seus apontamentos, muitas foram as
contribuições de Chiovenda para o estudo da coisa julgada. Segundo o autor, sua
teoria permitiu depurar o conceito e o fenômeno da coisa julgada de conceitos e
fenômenos afins, ou seja, separar o seu conteúdo propriamente jurídico de suas
justificações político-sociais.
Demais disso, Chiovenda distinguiu a autoridade da coisa julgada da simples
preclusão, que é a impossibilidade de se tornar a discutir no decurso do processo
49
Recente estudo sobre o instituto da coisa julgada em Chiovenda e Liebman foi publicado sob a
coordenação do ilustre professor Rosemiro Pereira Leal em: LEAL, Rosemiro Pereira (coord). O ciclo
teórico da coisa julgada: de Chiovenda a Fazzalari. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
uma questão já decidida e, consequentemente, distinguiu a autoridade da coisa
julgada do fato processual da irrecorribilidade de uma sentença ou de uma decisão
interlocutória. Nesse sentido, não só a força obrigatória da sentença derivava do
Estado, mas também a sua imutabilidade e indiscutibilidade. A teoria limitou a
autoridade da coisa julgada ao campo do mérito da ação, à decisão que declara
procedente ou improcedente o pedido do autor, subtraindo do conceito de coisa
julgada toda a atividade lógica desenvolvida pelo juiz no processo, considerando
apenas como fundamento da autoridade da coisa julgada a vontade do Estado,
ditado na sentença pelo órgão judiciário. Demais disso, acentuou a sua finalidade
prática, o seu caráter publicista, atribuindo ainda à sentença a qualidade de ato
estatal irrevogável e de força obrigatória (LIEBMAN, 1984).
Para Chiovenda, a autoridade da coisa julgada não era o resultado do
elemento lógico da sentença, mas do seu elemento volitivo, da vontade do juiz,
representante da vontade do Estado. A coisa julgada substancial consistiria, desta
feita, na indiscutibilidade da existência da vontade concreta da lei afirmada na
sentença e esta seria compreendida como a afirmação ou a negação da vontade do
Estado que garantia a alguém um determinado bem da vida.
Contudo, sem desmerecer o indubitável avanço doutrinário trazido pela
teoria da vontade do Estado desenvolvida por Chiovenda, a natureza jurídica da
coisa julgada permaneceu atrelada aos efeitos da sentença.
Já Enrico Túlio Liebman, ao contrário, entendeu que a coisa julgada não
expressaria, em si mesma, efeito algum, mas tão somente refere-se a uma
qualidade de permanecerem os efeitos da sentença imutáveis no tempo,
asseverando que “Ser uma coisa imutável é justamente uma qualidade dessa coisa,
como ser branca, ou boa, ou durável.” (LIEBMAN, 1984, p. 51).
No mesmo sentido, exemplifica que
[...] se a finalidade da construção de um arranha-céu ou de uma casa
de cimento armado é levantar um edifício muito alto ou muito sólido,
não são, em rigor, a altura ou a solidez o efeito, mas somente, uma
qualidade do resultado dessa atividade.(LIEBMAN, 1984, p. 51).
A partir dessa constatação, o conceito de autoridade da coisa julgada foi
definido como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença. A coisa
julgada, na perspectiva Liebmaneana, não se restringiu à noção de definitividade e
intangibilidade do ato que pronuncia o comando, como efeito deste, mas, ao inverso,
passou a ser compreendida como uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que
se adere ao ato em seu conteúdo50, tornando, desta feita, imutável, “[...] além do ato
em sua essência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.”
(LIEBMAN, 1984, p. 54).
Ademais, por ser apenas o comando pronunciado pelo juiz a sofrer o efeito
da imutabilidade, a conclusão quanto ao limites objetivos seria uma só: a atividade
lógica exercida pelo juiz estaria excluída da coisa julgada. Quanto aos limites
subjetivos, a imutabilidade valeria apenas entre as partes, visto que apenas elas
participaram da relação jurídica processual, expondo suas razões e se fazendo
ouvir, para, ao final, com a consumação da prestação jurisdicional, serem atingidos
pelo decisum.
Em grande medida, os doutrinadores pátrios acolheram os ensinamentos de
Liebman, identificando o instituto da coisa julgada não como os efeitos ou a eficácia
da sentença, mas sim, como uma qualidade revestida na característica da
imutabilidade dos seus efeitos.
No entanto, a autoridade de coisa julgada que reveste o dispositivo da
sentença, tornando imutável e indiscutível a norma por ela declarada, está
condicionada a um determinado pedido e a uma específica causa de pedir, haja
50
Como representante da doutrina pátria, Barbosa Moreira vai além ao estudar a coisa julgada, não
se restringindo ao que propôs Liebman. Para ele, a coisa julgada não seria uma qualidade da
sentença e dos seus efeitos, mas apenas da sentença, ou melhor, do comando que emerge do
conteúdo dispositivo da decisão. A análise concreta da vida jurídica permitiu ao autor concluir que: se
algo escapa ao alcance da imutabilidade, seriam justamente os efeitos produzidos pela sentença,
permanecendo inerte apenas o seu conteúdo e não a relação jurídica propriamente dita, sobre a qual
se decidiu. A imutabilidade, inerente apenas à sentença, não alcançaria o arbítrio das partes que
poderiam alterar aquilo que fora delimitado pela decisão. A coisa julgada não se identificaria nem com
a sentença trânsita em julgado, nem com o especial atributo da imutabilidade, tampouco com a
eficácia da sentença. Seria sim, uma nova situação jurídica, que surgiria com a preclusão dos
recursos, revestida pelo caráter da imutabilidade. Contrariando o que dispunha Liebman, Barbosa
Moreira também demonstrou que no nosso ordenamento as sentenças produziriam seus efeitos
somente após o trânsito em julgado da sentença. Sobre o tema, consultar: BARBOSA MOREIRA,
José Carlos. Coisa julgada e declaração. Revista dos Tribunais, ano 60., v. 429., p. 21-27, jul. 1971;
BARBOSA MOREIRA, José Carlos, Conteúdo e efeitos da sentença: variações sobre o tema. Revista
de Processo, ano 10, v. 40, p. 7-12, out/dez. 1985; BARBOSA MOREIRA, José Carlos, Eficácia da
sentença e autoridade da coisa julgada. Revista de Processo, ano 09, v. 34, p. 273-285, jun. 1984.
vista que para a sua caracterização, há de se respeitar a tríplice identidade da
demanda. Esse é o entendimento que prevalece nos casos de tutela a direitos
puramente individuais, em que há um autor, um réu, possíveis intervenientes, uma
causa de pedir e um pedido. O problema ocorre, quando o dano ou o tema
encaminhado no processo atinge um número indeterminado de pessoas, rompendo
com a tradicional equação dos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada.
Assim, questão que se torna relevante ao estudo do tema proposto, diz
respeito ao alcance subjetivo da coisa julgada, qual seja, se esta atinge somente as
partes da relação processual originária ou se há a possibilidade de que terceiros ao
processo, da mesma feita, sejam por ela atingidos.
2.2 Os limites subjetivos da coisa julgada
Seguindo a tradição romana, regra geral, estipulou-se que apenas as partes
podem ser alcançadas pela autoridade da coisa julgada. Desta forma, terceiros, não
admitidos ao processo estariam imunes a esses efeitos, podendo, até mesmo,
ignorar sua existência. É nesse sentido o ensinamento de SANTOS:
No direito romano, estabelecida a litiscontestatio, pela qual as partes
se obrigavam a aceitar aquilo que fosse decidido, e, pois, se
obrigavam à decisão, somente elas eram atingidas pelos efeitos da
coisa julgada. Vários textos romanos consagram essa doutrina, tais o
de
Ulpiano
(D.
44.2.1.):
cum
res
interaliosiudicatanullumaliispraeiudiciumfacient – a coisa julgada não
produz nenhum prejuízo a terceiros, o de Macer (D. 44.1.63): res
interaliosiudicataaliis non praeiudicare – a coisa julgada não
prejudica terceiros; o de Paulo (D. 3. 2. 21): non
opportetexsententiasiveiustasiveiniusta,
pro
alio
habita
aliumpregravari – a sentença produzida entre as partes, seja justa ou
injusta, não deve atingir terceiros. (SANTOS, 2009, p. 73).
Há, contudo, um problema a ser enfrentado, pois, muito embora a regra
fundamental pensada pelos romanos afaste a possibilidade de que estranhos ao
processo sejam atingidos pela soberania da coisa julgada, certo é que os efeitos da
sentença podem, em certa medida, se estender aos terceiros, alheios ao processo.
A pergunta que se coloca, então, é: se a sentença produz efeitos para além das
partes no processo, estes terceiros seriam também atingidos pela soberania da
coisa julgada?
No intuito de responder a esses questionamentos, juristas, tanto no Direito
Romano, como no Direito Medieval e Moderno, se preocuparam em explicar o
fenômeno da extensão subjetiva da coisa julgada (SANTOS, 2009).
Para o ilustre processualista GRECO FILHO, a questão acerca da extensão
subjetiva da coisa julgada somente encontrou assento quando se fez a distinção
entre os efeitos da sentença e os efeitos da coisa julgada:
A sentença, ato de conhecimento e vontade do poder estatal
jurisdicional, quando é editada, põe-se no mundo jurídico e, como tal,
produz alterações em relações jurídicas de que são titulares
terceiros, porque as relações jurídicas não existem isoladas, mas
inter-relacionadas no mundo do direito. Assim, os efeitos das
sentenças podem atingir as partes (certamente) e terceiros (2007, p.
280).
A teoria da representação de Savigny deve ser lembrada, da mesma feita,
como marco teórico na evolução do tema nos tempos modernos. Sua proposta foi
explicar a extensão da coisa julgada a terceiros, em razão de laços de
representação que estes possuíssem com uma das partes e “também a terceiros
que tivessem seus interesses representados no processo” (SANTOS, 2009, p. 74).
Relevante, do mesmo modo, é a teoria dos efeitos reflexos da coisa julgada,
fundada no pensamento de Ihering. Para explicar a extensão subjetiva da coisa
julgada, propugnou o mestre que os atos jurídicos produzem efeitos diretos e
indiretos. Os primeiros, os efeitos diretos, representam os efeitos queridos e
previstos pelas partes, os segundos, os efeitos indiretos, seriam aqueles efeitos não
previstos, nem queridos, contudo, inevitáveis.
Assim, segundo a concepção da teoria dos efeitos reflexos, a coisa julgada
opera seus efeitos diretos entre as partes, por elas desejados e previstos, mas, por
sua vez, produz, do mesmo modo, efeitos indiretos ou reflexos em relação a
terceiros, não queridos, nem desejados pelas partes, porém, inafastáveis.
Esta teoria foi reconhecida por juristas de escol e adotada como base de
toda a construção teórica acerca do tema por Chiovenda, Betti, Segni, Redenti e
Carnelutti.
2.2.1 Os limites subjetivos da coisa julgada na legislação pátria
O artigo 472 do Código de Processo Civil brasileiro estabelece que a
sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando nem
beneficiando terceiros.
Essa é a regra fulcral a respeito dos limites subjetivos da coisa julgada no
campo dos direitos individuais.
Fundados na regra inscrita na legislação processual civil, serão atingidos
pelos efeitos da coisa julgada, portanto, os autores, os réus, os denunciantes, os
chamados, os opoentes e os nomeados que tenham sido admitidos ao processo,
excetuando-se desta regra terceiros que não participaram e que, por esta razão, não
tiveram a oportunidade de manifestar-se, de defender-se ou de expor suas razões.
Do contrário, ou seja, caso houvesse a possibilidade de terceiros serem atingidos
pela autoridade da coisa julgada, flagrante seria a violação às garantias do devido
processo legal, esculpido nos princípios do contraditório, da ampla defesa e da
isonomia (GONÇALVES, 2006).
Não se pretende, contudo, afirmar que estranhos possam ignorar a
sentença. Isto porque, adotou o legislador pátrio a concepção de Liebman de que a
eficácia natural da sentença vale para todos, como há de ocorrer sempre que
estivermos diante de qualquer ato jurídico. Entretanto, a autoridade da coisa julgada
atuará somente entre as partes.
Como nos ensina o ilustre professor Humberto Theodoro Júnior:
Não é certo, portanto, dizer que a sentença só prevalece ou somente
vale entre as partes. O que ocorre é que, apenas a imutabilidade e a
indiscutibilidade da sentença não podem prejudicar, nem beneficiar,
estranhos ao processo em que foi proferida a decisão trânsita em
julgado (THEODORO JÚNIOR, 2007, p. 616).
Insta observar que o modelo tradicional dos limites subjetivos da coisa
julgada às partes, disciplinado como está pelo Código de Processo Civil, atende
apenas à defesa de direitos e interesses individuais. Quando muito, como vimos, se
discute em sede doutrinária a extensão desses efeitos a terceiros. O desafio maior
surge, porém, quando o processo e a atividade jurisdicional atuam para o
reconhecimento de direitos supraindividuais ou metaindividuais, como o é o direito
do consumidor, do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico, urbanístico,
dentre outros.
Nessa perspectiva, a partir das décadas de 70 e 80 do século passado, a
doutrina do processo passou a defender a idéia de rompimento e da necessidade de
uma profunda metamorfose do direito processual tradicional, haja vista que os
institutos processuais individualistas e de concepção liberal em vigor encontravamse aptos, somente, a dar soluções a conflitos do tipo Caio versusTício.
3. A necessidade de reformulação do instituto da coisa julgada para a tutela dos
direitos coletivos
3.1 Da tutela dos interesses individuais à proteção dos direitos difusos, coletivos e
individuais homogêneos
Na contemporaneidade, como vimos, o instituto da coisa julgada teve de
assumir novos contornos. Isto porque nas últimas décadas do século XIX e nas
primeiras décadas do século XX, o intricado desenvolvimento das relações sociais,
econômicas e ambientais fez surgir problemas até então desconhecidos às lides
meramente individualistas.
Como nos ensina Mancuso,
Nessa sociedade de 'massa' não há lugar para o homem enquanto
indivíduo isolado; visto que ele é tragado pela roda-viva dos grandes
grupos em que se decompõe a sociedade; não há mais a
preocupação com as situações jurídicas individuais, o respeito ao
indivíduo enquanto tal, mas, ao contrário, indivíduos são agrupados
em grandes classes ou categorias, e, como tais, normatizados
(MANCUSO, 1991, p.75).
Em virtude dessa substancial transformação, da passagem de uma
sociedade individualista para uma sociedade de massas, valores de outra ordem,
coletivos e difusos, passaram a clamar por proteção.
Como
constata
Barbosa
Moreira,
os
institutos
processuais
foram,
fundamentalmente, construídos para atender aos conflitos de interesses individuais.
A esfera dessas relações é tradicionalmente satisfeita pelo modelo dualístico de
tutela judiciária, na qual se contrapõem, rotineiramente, duas pessoas, uma na
condição de credora, outra na condição de devedora (BARBOSA MOREIRA, 1982).
Foi, contudo, somente a partir de meados do século passado que se
observou uma maior preocupação doutrinária e legislativa com as denominadas
ações coletivas em sentido amplo.
Assim, na contemporaneidade, a discussão sobre a importância e o alcance
da coisa julgada adquiriu novo sentido com o reconhecimento de situações
conflituosas envolvendo coletividades mais ou menos amplas. Com a necessidade
de tutela de direitos difusos, a estrutura clássica do processo civil, tal como subsistia
na generalidade dos ordenamentos jurídicos, teve que passar por um processo de
reformulação, o que culminou na adoção de novas técnicas processuais capazes de
atender a direitos que pertencem a todos, ao mesmo tempo.
O instituto da coisa julgada, preservado desde a sua origem na maioria dos
ordenamentos jurídicos, mereceu revisão e ressurgiu, nesse contexto, adequado à
proteção desses direitos, sobretudo no que tange à tutela do direito do consumidor,
meio ambiente, da preservação de valores estéticos, históricos, paisagísticos, além,
é claro, da moralidade e legalidade dos atos da Administração Pública.
Contudo, como evidencia o ilustre professor Vicente de Paula Maciel Júnior,
há tempos não há “[...] avanços ou contribuições de relevo, com um significativo
abandono das pesquisas sobre o tema.”, haja vista que as principais publicações se
deram entre as décadas de 70 e 80 do século passado (MACIEL JÚNIOR, 2006, p.
121).
Importante lembrar que uma das maiores dificuldades para a realização do
acesso à justiça dos direitos difusos, segundo Cappelletti, diz respeito ao problema
da legitimação51. É que o processo, ainda vinculado a um excessivo rigor conceitual,
não admitia a tutela judiciária de direitos que não estivessem restritos ao titular do
51
Neste ponto, é preciso esclarecer que Fazzalari faz a distinção entre a “legitimação para agir”
trabalhada pelo Direito Processual Civil, da “legitimação” (conceito geral do direito) como gênero, do
qual “legitimação para agir” é espécie. A legitimação em gênero é considerada sob um duplo aspecto:
o da situação legitimante” e o da “situação legitimada”. Segundo Fazzalari, a situação legitimante
consiste em uma situação constituída perante a qual um poder, uma faculdade ou um dever são
conferidos a um sujeito. Nessa concepção, a “legitimação para agir” será deduzida do provimento e,
em conseqüência, da medida jurisdicional por ele emanada. O provimento, assim, será a base, o
ponto referencial, para se extrair da situação legitimante quem são os sujeitos do processo, aqueles
que estarão “legitimados para agir”. In: GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do
Processo. 1.ed. Rio de Janeiro: Aide Editora, 2001. p. 144 et seq.
interesse deduzido em juízo, o que frequentemente fechava as portas do judiciário à
tutela dos direitos difusos e coletivos (CAPPELLETTI, 1977, p. 131).
Com efeito, o cerne da discussão concentrava-se na necessidade de
revolucionar o conceito de legitimação para agir (já que o que se procurava era uma
eficiente e adequada representação desses novos direitos, em face da inconsistente
atuação dos órgãos públicos), estendendo essa legitimação também a sujeitos
privados, indivíduos e associações, diretamente ou, tão-somente, indiretamente
interessados e, consequentemente, a revisão dos efeitos subjetivos da coisa
julgada.
Em outras palavras, em virtude do reconhecimento de que o sujeito privado,
indivíduo ou grupo, poderia agir não só movido por um interesse egoístico, mas,
também, em razão de um valor comunitário, destinado a ter um significado que
transcende as partes em juízo, novas preocupações vieram a assolar os operadores
do direito. Mais precisamente, quanto ao aprimoramento das exigências de lealdade
das partes, dos efeitos das decisões e do controle do juiz sobre o processo.
Certo é que a necessidade de institucionalização de novas formas de
participação política e de mobilização sociais sugeriram uma reflexão crítica dos
mecanismos vigentes, com o propósito de adequar os instrumentos de composição
de conflitos individuais às novas e desafiadoras exigências do nosso tempo.
Em vista disso, contrariando o que dispõe a regra geral do Código de
Processo Civil, a Lei 4.717/65 que regulamenta a Ação Popular, a Lei 7.347/85, que
disciplina a Ação Civil Pública e a Lei 8.078/90 que estabelece Código de Defesa do
Consumidor,52 não nos esquecendo da Constituição Federal de 1988, que alçou a
defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos à categoria de
norma constitucional, acabaram por adequar a legislação processual para a defesa
de relações de massa que se expandem continuamente, bem como para o alcance
de problemas correlatos, fruto do crescimento da produção, dos meios de
52
Não podemos nos esquecer que há no nosso ordenamento, no plano infraconstitucional, além da
Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65), da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e do Código de
Defesa do Consumidor (Lei 8.069/90), outras normas voltadas à tutela dos direitos difusos e coletivos,
quais sejam: a Lei 7.853/89, para a proteção dos direitos difusos dos portadores de deficiência; a Lei
7.9130/89, para a tutela de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores no
mercado; a Lei 8.069/90, que trata da proteção à infância e à adolescência; a Lei 8.884/94, que
dispõe sobre a defesa do consumidor em face das infrações contra a ordem econômica; a Lei
8.429/92 que trata da improbidade administrativa e a Lei 10.741/2003, que disciplina a proteção ao
idoso.
comunicação, do consumo, do número de funcionários e dos trabalhadores, dentre
outros (MENDES, 2002).
Na atualidade, o tema ressurgiu em razão dos esforços despendidos para a
criação de um Código de Processo Civil Coletivo Brasileiro, após a aprovação do
Código-Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América pela Assembléia-Geral
do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual.53
Podemos afirmar, desta feita, que a legislação pátria inovou ao criar um
verdadeiro sistema na tentativa de permitir a tutela jurisdicional dos direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos.54
3.2 Considerações sobre a coisa julgada secundumeventum litis e o modelo de
legitimação ad causam nas ações coletivas
No que tange ao tratamento dado pela legislação à coisa julgada, objeto do
presente estudo, a legislação consumerista valeu-se das expressões erga omnes e
ultra partes para revelar que nas ações coletivas a imutabilidade do decisum
alcançará pessoas que não participaram da relação jurídica processual.
Mazzilli evidencia que embora sejam expressões semelhantes, pois ambas
transmitem a pretensão de que no processo coletivo a imutabilidade da sentença
produz seus efeitos para além das partes, é bem verdade que o legislador pátrio
tratou de forma diversa os seus efeitos (MAZZILLI, 2003).
É essa a noção que se extrai por meio da leitura que se faz do art. 103,
incisos I, II e III, do Código de Defesa do Consumidor.
Estabelece o referido artigo que na defesa dos direitos difusos (inciso I, do
parágrafo único do art. 81 do CDC), a sentença trânsita em julgado produz seus
53
Sobre o tema, consultar: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas nos países iberoamericanos: situação atual, Código Modelo e perspectivas. Revista de processo, São Paulo, ano 32,
n. 153, p. 189-216, nov. 2007; GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências em matéria de ações
coletivas nos países de civil law. Revista de processo, São Paulo, ano 33, n. 157, p. 147-164, nov.
2008 e ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da summadivisio direito
público e direito privado por uma summadivisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
54
Nas palavras de MANCUSO: “O mais importante, no campo da coisa julgada nas ações coletivas, é
sempre ter presente que ela há de se estender até onde se projete o interesse metaindividual cuja
tutela se pretende, e de modo a alcançar todos os sujeitos a ele concernentes. Não é possível, v.g.,
‘restringir a coisa julgada aos aderentes de uma associação de consumidores que tenha ajuizado
ação coletiva em defesa de interesses individuais homogêneos, porque o de que se trata é de uma
tutela judicial ao interesse metaindividual objetivamente considerado, e nem por outro motivo o art. 95
do CDC prevê uma condenação genérica.” (2001, p.157).
efeitos erga omnes, querendo com isso estabelecer que a imutabilidade da sentença
alcançará todo o grupo social, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar nova
ação, com idêntico fundamento, valendo-se, contudo, de nova prova. No caso de
julgamento de improcedência do pedido por motivo outro que não seja a
insuficiência de provas, a eficácia erga omnes permanecerá, não prejudicando, no
entanto, interesses individuais diferenciados.
Nestes casos, a sentença de procedência beneficiará os lesados individuais,
reunidos por interesses homogêneos, como pode ocorrer, por exemplo, em sede de
Ação Civil Pública que reconhecendo a materialidade do evento danoso e a
responsabilidade de indenizar o réu, estenderá seus efeitos para além das partes
originárias do processo, beneficiando outras vítimas, as quais apenas terão de
provar o nexo de causalidade entre o fato e o seu dano individual, haja vista que o
evento danoso e a responsabilidade do causador do dano já foram reconhecidos na
sentença coletiva transitada em julgado (MAZZILLI, 2003).
Na hipótese de defesa dos direitos coletivos (inciso II, do parágrafo único do
art. 81 do CDC), o legislador estabeleceu que a sentença trânsita em julgado produz
efeitos ultra partes. Pretende o legislador, aqui, alcançar mais que as meras partes
do processo originário, mas menos que todo o grupo social, uma vez que limitou a
imutabilidade da sentença ao grupo, classe ou categoria de lesados, exceto se o
julgamento for pela improcedência por falta de provas. Neste caso, como dito
anteriormente, nova ação poderá ser intentada por outro legitimado, desde que
fundada em nova prova. Caso a sentença seja de improcedência do pedido por
outro motivo que não a insuficiência de provas, permanece a eficácia ultra partes da
sentença coletiva. Os interesses individuais, entretanto, estarão protegidos de um
eventual julgamento de improcedência na ação coletiva, mesmo se a improcedência
se fundar em outro motivo que não a insuficiência de provas, mas para se valer da
coisa julgada em processo coletivo, o autor da ação individual deverá requerer a
suspensão do seu processo individual, nos termos do artigo 104 do Código de
Defesa do Consumidor (MAZZILLI, 2003).
Lado outro, no que tange à tutela dos interesses individuais homogêneos
(inciso III, do parágrafo único do art. 81 do CDC), a sentença produzirá efeitos para
além das partes somente se o resultado for de procedência do pedido, beneficiando
outras vítimas e sucessores. Para se beneficiar da coisa julgada formada em ação
coletiva, o autor da ação individual deverá requerer, da mesma feita, a suspensão do
processo nos exatos termos do artigo 104 do CDC. Demais disso, a extensão do
julgado somente ocorrerá in utilibus, ou seja, nos casos de procedência, pois se o
resultado for a improcedência, os lesados individuais que não intervieram como
assistentes litisconsorciais não estarão impedidos de propor suas ações individuais
(MAZZILLI, 2003).
Em síntese, o sistema de coisa julgada no Código de Defesa do Consumidor
trabalha com dois critérios, in utilibuse secundumeventum litis.
Ada Pellegrini Grinover, ao comentar as novas tendências do processo
coletivo para os países de tradição romano-germânica, aponta que as dificuldades
de informação, de conscientização de grande parcela da população e as mazelas
para o incremento do acesso à jurisdição, dentre outras razões, fizeram com que a
coisa julgada secundumeventum litis fosse adotada pela maioria dos países IberoAmericanos (GRINOVER, 2008).
Nesse sentido, a autora assim escreve:
Conhecem-se as críticas da doutrina processual tradicional sobre a
coisa julgada secundumeventum litis e estamos cientes que a
solução supra apontada privilegia os membros do grupo que, depois
de perder uma ação coletiva, ainda têm a seu favor a possibilidade
de ajuizar ações individuais (enquanto o demandado, que ganhou a
ação coletiva, pode ser novamente acionado a título individual). Mas
se trata de uma escolha consciente: entre prejudicar com uma coisa
julgada desfavorável o membro do grupo que não teve a
possibilidade de optar pela exclusão, pela técnica do opt out; entre o
risco de esvaziamento dos processos coletivos, pela técnica do opt
in, a grande maioria dos países ibero-americanos preferiu privilegiar
os membros do grupo, invocando um princípio de igualdade real (e
não apenas formal), que exige que se tratem diversamente os
desiguais. E certamente os membros de uma classe, desrespeitada
em seus valores fundamentais, merece o tratamento diferenciado
próprio das pessoas organizacionalmente mais vulneráveis.
Na prática, aliás, a solução supra apontada não é perversa como
poderia parecer à primeira vista: perdida a demanda coletiva, ainda
são possíveis as ações individuais, é certo. Mas a decisão contrária
proferida no processo coletivo terá sua carga de poderoso
precedente e poderá ser utilizada pelo demandado (não para impedir
o ajuizamento da demanda individual, como ocorreria se houvesse
coisa julgada, mas para influir no convencimento do novo juiz). Aliás,
na demanda coletiva julgada improcedente, o demandado já terá
exercido na maior plenitude possível todas as suas faculdades
processuais – inclusive as probatórias – e a(s) demanda(s)
individuais versarão sobre a mesma causa petendi, já enfrentada
vitoriosamente pelo demandado. (GRINOVER, 2008, p. 158).
Contudo, ao nosso sentir, neste ponto reside o problema da coisa julgada no
processo coletivo. Isto porque, como reconhece a autora, a opção do legislador à
adoção do modelo de coisa julgada secundumeventum litis e a conseqüente solução
dada para o processo coletivo é compatível com uma realidade na qual o indivíduo,
longe de se comprometer na construção de sua própria estória e na tutela dos
direitos difusos e coletivos, como forma de controle e fiscalização dos atos ilegais e
lesivos praticados pela Administração Pública ou na proteção de direitos
fundamentais, como o meio ambiente, o patrimônio histórico, paisagístico, a saúde
ou a educação, ao contrário, se submete a ela. Melhor dizendo, o indivíduo, nesse
modelo, está relegado à tutela de seus interesses privados, egoísticos, mormente
nas hipóteses em que há dano de cunho pecuniário.
E nem poderia ser de outra maneira, posto que o modelo da coisa julgada
secundumeventum litis está intimamente vinculado ao modelo representativo de
legitimação adotado para a tutela dos direitos difusos. É que o modelo
representativo, centrado na pessoa do sujeito, foi construído a partir da premissa de
uma eventual fragilidade do indivíduo no tratamento desses direitos. Como
consequência, retirou-se dos interessados naturais a possibilidade de agir em
defesa direta do bem afetado, restringindo sua participação ao se eleger órgãos
intermediários, como o Ministério Público, as associações, os sindicatos, dentre
outros, em flagrante violação aos ditames do paradigma do Estado Democrático de
Direito e do exercício de uma cidadania participativa no âmbito do processo judicial.
Em outras palavras, o processo coletivo que adota o modelo de representação
adequada dos legitimados naturais, mormente na tutela dos direitos difusos,
restringe a participação efetiva de todos aqueles que foram tocados pelo bem, fato
ou situação jurídica posta em juízo, o que inviabiliza a formação participada do
mérito, muito embora sejam interessados difusos e afetados pelo provimento judicial.
Mais precisamente no âmbito dos direitos difusos há, segundo o ilustre
professor Vicente de Paula Maciel, uma peculiar situação no que toca à legitimação
para agir. Isto porque não existe uma vontade difusa, mas sim interessados difusos.
É que na tutela dos direitos difusos não se pode afirmar que há uma renúncia tácita
por parte dos legitimados individuais de suas vontades individuais em prol de uma
vontade comum, única ou coletiva. Isto se afirma porque o direito difuso não é
organizado por meio de assembléias e deliberações de um grupo ou de uma
categoria de pessoas, como ocorre no plano do direito coletivo stricto sensu. Nessa
perspectiva, não há um interesse difuso, mas tão somente interessados difusos.
Nesse sentido, é bom lembrar que o interesse será sempre uma manifestação de
um sujeito em face de um bem, podendo existir, no plano coletivo, interesses
individuais que sejam diversos e até mesmo contrários sobre um mesmo fato ou
situação jurídica. Para a tutela de fins comuns, coletivos, o grupo ou a categoria até
poderá deliberar pela vontade da maioria que representa em juízo as diretrizes a
serem seguidas para a proteção dos direitos do grupo, segundo o processo de
escolha previsto em seus estatutos e fruto de um processo discursivo de
deliberações, muito embora os interesses individuais de uma minoria permaneçam
contrários aos interesses e vontades da maioria. Contudo, o direito difuso não é
organizado e não há um grupo ou assembléia que delibere a fim de se extrair a
vontade da maioria ou, melhor dizendo, essa “vontade difusa” (MACIEL JÚNIOR,
2006).
É nesse ponto que reside o problema da legitimidade democrática dos
provimentos exarados no processo coletivo construído a partir das premissas liberais
do modelo individual de processo.
Não obstante a defesa do direito coletivo stricto sensu perpasse um
procedimento deliberativo-discursivo para a definição da vontade da maioria, o
mesmo não ocorre para a defesa do direito difuso. Contrariando a vocação
democrática do processo coletivo, a defesa desses direitos nos ordenamentos
jurídicos modernos é geralmente confiada a organismos públicos especializados,
como o Ministério Público e as associações. A solução encontrada pela legislação
para a proteção dos direitos difusos, contudo, não se mostra eficaz, visto que os
interessados difusos, ou seja, todos aqueles tocados pelo fato, situação jurídica ou
bem, não são admitidos a participar do processo, havendo, por conseguinte uma
limitação dos temas que poderiam ser objeto de discussão judicial. Cria-se, a partir
da perspectiva do processo individual a ilusão de que o legitimado extraordinário é o
titular da “vontade difusa”, o que acaba por restringir os temas e o objeto da lide à
pretensão inicial, ou seja, ao que foi pedido pelo órgão, associação ou Ministério
Público. Como a legitimação para a defesa dos direitos coletivos é negada ao
indivíduo55, o fenômeno da coisa julgada no processo coletivo teve de atrelar-se a
55
Até mesmo quando se analisa a legitimação para a causa conferida ao cidadão para propor a ação popular, é
possível questionar a escolha empreendida pelo legislador pátrio, tanto nas Cartas Constitucionais de 1934, 1946,
como no próprio texto da Lei 4.717/65, que regulamentou a ação popular no ordenamento brasileiro e
esse modelo, permitindo sempre a possibilidade de rediscussão da matéria para a
tutela dos direitos individuais homogêneos.
Ora, neste ponto, há inconsistente contradição. Isto porque, a ação individual
movida pelo particular, nada mais é que uma ação coletiva e, embora a legitimação
para agir seja negada ao indivíduo no processo coletivo, não o é para a propositura
da ação individual.
A toda evidência, se um indivíduo pode pedir a tutela de um interesse
particular seu em face de um bem e se esse bem interessa não somente ao
indivíduo, mas a toda a coletividade, indeterminada ou indeterminável, essa
demanda ao contrário de resguardar direito individual, protege, sim, direito coletivo,
mais precisamente um direito difuso.
Para a compreensão do processo coletivo é necessário definir que a ação
será coletiva em razão do fato que afeta um número maior ou menor de indivíduos e
não em razão do número de sujeitos. Desta feita, o processo coletivo que visa à
tutela de direitos difusos deve ser assim denominada não em razão da
indeterminação de seus titulares, mas em razão do bem, objeto de discussão, que
afeta um número indeterminado de pessoas.
Certo é que, uma vez afetado o bem, afetados serão todos os interessados
difusos, a todos beneficiando a sentença que julgar favoravelmente o pedido
(MACIEL JÚNIOR, 2006).
Nas palavras do professor Vicente de Paula Maciel Júnior:
Se um indivíduo requer o fechamento de uma empresa até que a
mesma instale filtros antipoluentes, porque a qualidade do ar se
tornou insuportável à vida humana, esse bem tutelado considerando
esse pedido individual poderá gerar um provimento favorável. Esse
condicionou uso desse direito à condição de ser cidadão. É também sabido que no Brasil predominou um certo
temor à plena e efetiva consolidação das ações populares. Todos que escreveram sobre a ação popular
demonstraram seu receio de que as mesmas servissem mais a propósitos particulares, do que à tutela dos
interesses comuns. Ademais, tradicionalmente, os estudos desenvolvidos sobre a legitimação para a causa em
sede de ação popular revelaram sempre uma interpretação restrita do termo cidadão. Para os autores da época,
cidadão, no direito constitucional brasileiro, significava, tão somente, o brasileiro na fruição de seus direitos
políticos (PINTO FERREIRA, 1972). Tanto é assim que, embora a Constituição de 1946 e a Lei 4.717/65,
dispusessem sobre a legitimação do cidadão para propor a ação popular, o exercício do direito de agir restou
condicionado à prova da cidadania, que deveria ser feito com a apresentação do título de eleitor ou documento a
ele equiparado. Ora, a ação popular pensada em 1965, após a chamada Revolução de 1964, foi gerada no ventre
de uma ordem jurídica de cunho nitidamente autoritário, responsável pela instauração de um período ditatorial,
restritivo dos mais fundamentais direitos civis e políticos. Inevitável que fosse ela, assim, contaminada pela
atmosfera de arbítrio que pairava nas esferas de poder, uma vez que a Constituição de 1946 já se encontrava
desfigurada. Nessa perspectiva, natural que entre dois possíveis sentidos para o termo cidadão, houvesse a
doutrina e a jurisprudência acolhido aquele que melhor atendia aos interesses do Estado.
provimento favorável não beneficiará apenas aquele indivíduo que
move a demanda, mas a todos os que residem no bairro ou na
cidade. (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 157).
E continua:
Se um indivíduo requer o fechamento de uma empresa de uma
cidade, porque aquela empresa contraria as normas públicas e não
possui filtros, polui o ar e a água e piora a qualidade do meio
ambiente, essa decisão, embora em ação individual, levando em
conta a saúde daquela parte, terá um efeito (se deferido o pedido)
que atingirá todos os demais sujeitos daquele bairro, mesmo que
nunca tivessem imaginado promover essa ação.
Se um consumidor requer em uma demanda o recolhimento de todas
as garrafas d’água de uma determinada empresa, porque elas
possuem um índice de produtos químicos que faz mal à saúde, essa
demanda se acatada, não beneficiará apenas aquele indivíduo mas
toda a coletividade, mesmo se sua demanda tivesse sido movida
apenas para a tutela de seu interesse.
Ou seja, o fechamento da empresa que polui o ar, o recolhimento
das garrafas d’água, mesmo que sejam medidas tomadas em função
de uma ação individual de um morador da cidade que se sentiu
lesado e moveu a ação para a defesa de seu interesse, poderá gerar
efeitos práticos que não se limitam apenas àquele indivíduo, mas a
toda a comunidade. (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 173).
Assim, são injustificados os receios do legislador em não atribuir ao
indivíduo a legitimação para a propositura da ação coletiva, pois, a bem da verdade,
é este que suporta os efeitos do provimento que decide sobre o bem que afeta a
todos.
No paradigma do Estado Democrático de Direito, o que se almeja é que o
processo coletivo atenda às premissas de permitir a ampla participação de todos os
afetados pelo provimento final e a construção dialogada dos temas que serão objeto
de apreciação pelo Judiciário.
Essa é a vocação do processo coletivo na atualidade.
Mas, para atender a essa vocação natural, o processo coletivo não pode se
manter atrelado a um sistema de legitimação para a causa extraído de um modelo
de processo de cunho puramente individualista, por ser este modelo incapaz de
explicar o fenômeno coletivo.
No que diz respeito à coisa julgada, na medida em que o processo coletivo
adequar seus esquemas de legitimação, conferindo também ao indivíduo
legitimação para a propositura das ações coletivas, a demanda individual perderá
sua força. Isto porque, como afirmado anteriormente, a ação para a tutela dos
direitos individuais homogêneos, nada mais é que uma verdadeira uma ação
coletiva. E, se a ação coletiva propiciar uma maior abertura para que os
interessados difusos atuem na formação do mérito, objeto de apreciação pelo Poder
Judiciário, permitindo a ampliação das questões a serem decididas por meio de
processos discursivos de participação, não haverá interesse por parte do indivíduo
na repropositura da mesma ação, para a análise do mesmo tema, haja vista que a
ação atingiu o seu desiderato, ao incrementar o debate do objeto trazido a lume
pelos vários interessados de maneira ampla.
Pois bem, em casos como este, em que há um processo de formação
participada na construção do mérito e a decisão é o resultado das diversas vozes
que atuaram no processo, a busca pela tutela dos interesses individuais restaria
prejudicada, a não ser que o indivíduo assumisse os riscos de rediscutir um tema já
definido pelo Judiciário, o que, segundo MACIEL JÚNIOR (2006) já seria um
desestímulo à propositura das demandas meramente individuais.
Restariam, assim, duas posturas ao autor do processo individual. A primeira,
na hipótese de julgamento favorável no processo coletivo e, a segunda, nos casos
de sentença desfavorável. Na primeira hipótese, por óbvio, não haverá interesse ou
necessidade na propositura da ação individual para requerer a revisão do tema, já
que o mesmo foi objeto de apreciação e discussão ampla no processo coletivo,
beneficiando, a decisão, todos aqueles tocados pelo fato ou situação jurídica posta
em juízo. Lado outro, se a demanda coletiva vier a prejudicar os interesses
individuais, ainda assim, haverá a possibilidade de se ajuizar ação individual, mas,
neste caso, compete ao indivíduo avaliar a viabilidade de se remeter ao
conhecimento do Poder Judiciário matéria já amplamente debatida (MACIEL
JÚNIOR, 2006).
Dito isso, a questão acerca da coisa julgada secundumeventum litis assume
nova feição se considerarmos o processo coletivo como meio democrático de defesa
dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, aberto e plural. Um
processo que não se mantêm rígido e vinculado às estruturas dos modelos
processuais clássicos. Um modelo de processo que considera a ação coletiva como
Ação Temática, sensível ao paradigma procedimental e discursivo do Estado
Democrático de Direito.
4. As ações coletivas como ações temáticas
Compreender o instituto da coisa julgada e o processo coletivo na
contemporaneidade significa considerar que os temas, objeto de nosso estudo,
deverão ser repensados considerando tanto o Paradigma Procedimental de Estado
Democrático de Direito, quanto o Modelo Constitucional do Processo56 esculpido na
Constituição da República Federativa do Brasil.57
Para tanto, há que se abandonar a concepção de processo como
instrumento da jurisdição e processo como relação jurídica58.
Para a construção do provimento final, o procedimento deverá conformar-se
a uma específica estrutura de normas, atos, situações jurídicas e posições
subjetivas, no qual o cumprimento de uma norma constitui pressuposto, condição de
validade, para a incidência da outra.59 Por outro lado, o processo, como espécie do
gênero procedimento, será definido pela participação dos interessados na
construção do provimento final, na fase que o prepara, que é o procedimento. A
forma como essa participação realiza-se, em contraditório, será o ponto distintivo e
caracterizador.
56
Pelo Modelo Constitucional de Processo a distinção que se faz entre Direito Processual
Constitucional e Direito Constitucional Processual relativiza-se ou extingue-se. É que a Constituição
de 1988 estabeleceu padrões de produção normativa da norma procedimental e também princípios
processuais que são, na verdade, direitos e garantias do indivíduo, além de regras disciplinadoras da
organização judiciária brasileira. Logo, em vista disso, pressupomos que não há direito processual
infra-constitucional e um direito procedimental que não tenha a sua estruturação no arcabouço
constitucional.
57
Para TUCCI e CRUZ E TUCCI (1989, p.2) “[...] a Constituição, além de traçar as normas
fundamentais de organização do Estado, exprime a dramática tentativa de fixar no tempo aquelas
idéias, aqueles valores supremos, que são, na verdade, essencialmente mutáveis, uma vez que se
identificam com os desígnios da própria história, ou se, com a vida do homem. E, particularizada ao
direito processual, reclama a relembrança de que as normas processuais são, segundo generalizado
entendimento doutrinário, complemento ou atualidade das garantias constitucionais; daí porque,
inseridas na Lei das leis, visam, certamente, a reforçar o sistema de direitos e garantias do cidadão”.
58
Este tem sido o árduo trabalho de alguns processualistas, dentre eles poderíamos citar
ElioFazzalari, que teve sua tese exposta e desenvolvida pelo Prof. Aroldo Plínio Gonçalves. Sobre a
instrumentalidade do processo, consultar a obra de DINAMARCO (2001) e CINTRA et al. (2004).
59
GONÇALVES esclarece que “se o procedimento fosse considerado apenas como uma série de
normas, atos e de posições subjetivas, o ato jurídico isoladamente considerado poderia produzir nele
seus efeitos. Mas o procedimento é mais do que uma mera seqüência normativa, que disciplina atos
e posições subjetivas, porque faz depender a validade de cada um de sua posição na estrutura, que
requer o cumprimento de seu pressuposto. O ato praticado fora dessa estrutura, sem a observância
de seu pressuposto, não pode ser por ela acolhido validamente, porque não pode ser nela acolhido”.
(GONÇALVES, 2001. p. 111).
Assim, haverá processo sempre que houver o procedimento realizando-se
em contraditório entre os interessados, em simétrica paridade, nos atos que
preparam o provimento final.
Como sintetizou CATTONI DE OLIVEIRA:
O processo (...) caracteriza-se como uma espécie de procedimento
pela participação na atividade de preparação do provimento dos
interessados, juntamente como autor do próprio provimento, como no
caso do processo jurisdicional, ou dos seus representantes, como no
caso do processo legislativo. Os interessados são aqueles em cuja
esfera jurídica o provimento está destinado a produzir efeitos. Mas
essa participação se dá de uma forma específica, dá-se em
contraditório. Contraditório, mais do que a simples garantia de dizer e
contradizer, é garantia de participação em simétrica paridade.
Portanto, haverá processo sempre que houver procedimento em
contraditório entre os interessados, e a essência deste está
justamente na simétrica paridade de participação, nos atos que
preparam o provimento, daqueles que neles são interessados
porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos (CATTONI
DE OLIVEIRA, 2000, p.113).
É preciso levar a sério as conquistas empreendidas pela teoria processual,
que abandonou a concepção de processo como instrumento da jurisdição, por,
precisamente, entender que a atividade jurisdicional, que é hoje função primordial do
Estado, somente se legitima caso estejam presentes os princípios constitucionais do
processo.
Insta esclarecer que a concepção de processo a qual nos filiamos, além de
trabalhar processo em outros termos, “como procedimento em contraditório”, adere,
igualmente, à Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Jürgen Habermas.
Em vista disso, somente a partir do Princípio do Discurso, “fundado nas
condições simétricas
de reconhecimento de formas
de vida estruturadas
comunicativamente”e dos reflexos da Teoria Discursiva para o Direito e para a
Democracia é que poderemos empreender uma releitura do Processo Coletivo e de
seus instrumentos processuais próprios (como a coisa julgada) no paradigma do
Estado Democrático de Direito.
A própria concepção de Direitos Fundamentais e de Soberania Popular em
Habermas deve ser entendida em termos procedimentais, adequada a propiciar o
processo argumentativo e dialógico, que irá construir “a estrutura da comunicação
lingüística e a ordem insubstituível da socialização comunicativa” (SOUZA NETO,
2002, p. 273).
Entendemos que somente será possível compreender a tutela dos direitos
difusos e coletivos inseridos em uma perspectiva procedimental e discursiva do
Estado Democrático de Direito60, no qual é possível a livre flutuação de temas e de
contribuições, de informações e de argumentos na formação da vontade, a fim de
permitir a construção da legitimidade tanto dos procedimentos legislativos, quanto
dos jurisdicionais.
Como evidenciou Habermas, o princípio da democracia fundado no discurso
permite que o Estado Democrático de Direito seja compreendido à luz de uma
perspectiva procedimental (HABERMAS, 2002, p. 280). Em outras palavras, o
projeto democrático, quando construído dialogicamente mediante processos
institucionalizados, acredita ser viável a formação político-racional da opinião e da
vontade. Até porque essa mesma vontade e opiniões políticas racionais somente
serão concretizadas e legitimadas mediante esses processos.
Esta dinâmica, de legitimação do Estado Democrático de Direito por meio de
procedimentos, consolida-se:
[...] através de um sistema de direitos que garanta a cada um igual
participação num processo de normatização jurídica legítima (já
garantido em seus pressupostos comunicativos), ou seja, ele tem
como implicação a institucionalização externa e eficaz
da
participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da
vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas
pelo Direito. (COSTA, 2003, p. 42).
Em breve síntese, o projeto de realização do Direito deverá pressupor, antes
de mais nada, a premissa de práticas de autodeterminação comunicativas que se
concretizam nos procedimentos institucionalizados pelo próprio Direito. É justamente
o que propõe Habermas, ao afirmar que a “compreensão procedimentalista de
direito tenta mostrar que os pressupostos comunicativos e as condições do processo
de formação democrática da opinião e da vontade são a única fonte de legitimação”
(1997, p. 310).
60
“(...) a teoria do direito, fundada no discurso, entende o estado democrático de direito como a
institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma formação
discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita, por seu turno, o exercício da autonomia política
e a criação legítima do direito” (HABERMAS, 1997, p. 310).
Nessa linha de raciocínio, o signo do processo coletivo e da coisa julgada,
na atualidade, deverá perpassar as conotações processuais de participação no
debate público, não só no que tange aos processos legislativos, mas, sobretudo, no
que diz respeito aos processos jurisdicionais, que informam e conformam a
soberania democrática do paradigma constitucional do Estado Democrático de
Direito e de seu Direito participativo que, como assevera CARVALHO NETTO
(1999), é também, pluralista e aberto.
As colocações expostas até aqui visam, fundamentalmente, recolocar os
institutos da coisa julgada, da legitimação para agir como fenômenos processuais
adequados à tutela dos direitos difusos e o processo coletivo como direito e garantia
fundamental do homem.
Para atender ao modelo constitucional de processo esculpido na Carta
Constitucional de 1988, entendemos que a Ação Coletiva deve ser compreendida
com uma Ação Temática, o que pressupõe a construção participada do mérito por
todos aqueles que foram atingidos pelo bem, fato ou situação jurídica posta em juízo
(MACIEL JÚNIOR, 2006).
Nesse sentido, o processo coletivo deverá viabilizar a todos os interessados
naturais a conformação do mérito da causa, dentro de um período de tempo fixado
pela norma processual, permitindo-se, assim, que as várias posições e teses dos
interessados difusos sejam tratadas no processo, conferindo ao provimento final a
legitimidade democrática própria do modelo constitucional vigente (MACIEL
JÚNIOR, 2006).
Para tanto, será necessário que as futuras legislações sobre o processo
coletivo estabeleçam uma fase inicial, na qual todos os interessados difusos,
concorrentemente, tenham a oportunidade de participar na formação dialogada do
mérito, por meio de editais, para que o mesmo não seja formado somente pelo
pedido formulado na peça inicial (MACIEL JÚNIOR, 2006).
Na esteira dos argumentos acima, a extensão dos efeitos da coisa julgada
nas ações coletivas, nas palavras do ilustre professor Vicente de Paula Maciel
Júnior, fica condicionada a:
[...] uma definição sobre o mérito ou o conteúdo da sentença, que
não será formado apenas pelo objeto do pedido constante na petição
inicial, mas pela efetiva oportunidade de ingresso na ação do maior
número de interessados difusos que tenham teses diferentes dos já
existentes no processo. (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 180)
E, ainda, esclarecer o autor:
Ou seja, as legislações sobre o processo coletivo devem prever uma
fase no procedimento até onde seja possível uma ampliação ou
alteração no mérito da demanda proposta por uma das partes. Uma
vez proposta uma ação coletiva cujo fato tenha ou possa ter
repercussões em um número indeterminado de interessados, a lei
deveria prever que o juiz publicasse edital dando ciência ao
ajuizamento da demanda coletiva referente ao fato “X”. A lei deveria
ainda que o juiz constasse obrigatoriamente no edital qual o fato
ocorrido, local, dados específicos, bem como a pretensão inicial do
demandante a respeito dele. Se o fato fosse relacionado ao meio
ambiente teríamos ação coletiva cujo “tema” é o meio ambiente que
tem por objeto específico um problema ocorrido em um local “X”, no
bairro, devendo ser assim classificada. Dentro do prazo previsto na
lei para o edital, todos os interessados poderiam integrar a lide e
sobre o fato manifestar seus interesses. As diversas manifestações
dos interessados comuns ou divergentes, constituiriam o mérito da
demanda coletiva. (MACIEL JÚNIOR, 2006, p. 180)
A ação coletiva como ação temática, portanto, concretiza o projeto
democrático,
visto
que
construído
dialogicamente
mediante
procedimentos
institucionalizados que viabilizam a livre flutuação de informações, teses e
argumentos, na fiscalização e defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos. Tudo isso, por meio de decisões legitimadas pela participação ampla
dos verdadeiros afetados e legitimados naturais para a ação.
É somente nesse sentido que o processo coletivo poderá ser concebido e
atender sua vocação natural como instrumento de participação e construção da
cidadania.
5. Conclusão
1. Demonstramos que o modelo da coisa julgada secundumeventum litis
está intimamente vinculado ao modelo de legitimação adotado para tutela dos
direitos difusos, uma vez que o sistema processual vigente não só pressupõe a
fragilidade do indivíduo no tratamento dos direitos difusos, retirando dos
interessados naturais a possibilidade de agir em defesa direta do bem, mas
providencialmente restringe sua participação ao eleger órgãos intermediários, como
o Ministério Público, as associações, os sindicatos, dentre outros, em flagrante
violação aos ditames do paradigma do Estado Democrático de Direito.
2. Propusemos, assim, uma nova leitura do processo coletivo e da coisa
julgada adequado ao paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito e
do Modelo Constitucional de Processo. Nesse esforço, lançamos as seguintes
colocações:
3. Acreditamos que o processo coletivo representa um meio dialógico, de
formação e de conformação do Estado à lei, exercido por seus legitimados, que, de
natureza diversa das formas de participação políticas propriamente ditas, concretizase pela via jurisdicional.
4. Nesse sentido, imperioso interpretar a ação coletiva como Ação Temática
e, nesse sentido, a mesma concretiza seu importante papel no controle e defesa do
patrimônio público, em sentido lato, o que modifica a visão tradicional de coisa
julgada secundumeventum litis, tradicionalmente adotada pelos países da Iberoamérica. Por essa razão, é preciso levar a sério as conquistas empreendidas pela
teoria processual, que abandonou a concepção de processo como instrumento da
jurisdição, por, precisamente, entender que a atividade jurisdicional, que é hoje
função primordial do Estado, somente se legitima caso estejam presentes os
princípios constitucionais do processo, o que no processo coletivo, pressupõe a
participação de todos os legitimados naturais para a ação.
5. Assim, o projeto democrático, quando construído dialogicamente mediante
processos institucionalizados, acredita ser viável a formação político-racional da
opinião e da vontade. Até porque essa mesma vontade e opiniões políticas racionais
somente serão concretizadas e legitimadas mediante esses processos.
6. Concluímos, desta feita, que o projeto de realização do Direito deverá
pressupor, antes de mais nada, a premissa de práticas de autodeterminação
comunicativas que se concretizam nos procedimentos institucionalizados pelo
próprio Direito. Nessa linha de raciocínio, o signo do processo coletivo e da coisa
julgada na atualidade deverá perpassar as conotações processuais de participação
no debate público, não só no que tange aos processos legislativos, mas, sobretudo,
no que diz respeito aos processos jurisdicionais, que informam e conformam a
soberania democrática do paradigma constitucional do Estado Democrático de
Direito e de seu Direito participativo, pluralista e aberto.
7. As colocações expostas até aqui visam, fundamentalmente, recolocar o
problema da Ação Coletiva como Ação Temática e, nessa perspectiva, como meio
processual adequado à tutela de interesses difusos e, do mesmo modo, considerar o
processo coletivo como direito e garantia fundamental do homem, que somente
pode ser interpretado de maneira procedimental, discursiva e aberta.
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A EFETIVIDADE DAS SUSTENTAÇÕES ORAIS NOS TRIBUNAIS
TRABALHISTAS
Mauro Geraldo Alessi Carvalho Lafetá61
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O princípio da oralidade e a
comunicação jus trabalhista; 3 As previsões legais para
justificar a sustentação oral nos tribunais trabalhistas; 4. Dos
Regimentos Internos; 5. Sustentação oral no TRT– 3ª região; 6
- Do regimento interno do TST; 5. Conclusão; 6. Referências.
1 - Introdução
A comunicação e a fala foram os principais propulsores para a evolução da
humanidade. Para a busca da justiça, conforme os primeiros escritos datados 3.000
anos antes de Cristo, os líderes usavam a oralidade como único meio de expressão
de fatos e fundamentos jurídicos. Com o surgimento da escrita, o homem passou a
registrar atos e decisões, mas não deixou de lado a verbalização, ainda fundamental
para a construção dos provimentos.
Ocorre que com o passar dos séculos, e principalmente agora, na atualidade,
devido à grande demanda judicial, a comunicação oral está sendo colocada em
segundo plano por alguns profissionais do Direito, com discussões e atos
processuais quase todos praticados de forma escrita, afastando-se do Direito o seu
primeiro meio de comunicação, a verbalização falada. Até mesmo as faculdades de
direito focam os cursos, cada vez mais, à escrita, se esquecendo da oralidade. É
raro encontrar no país uma instituição acadêmica jurídica possuindo cadeira
obrigatória de oratória e retórica.
61
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Pedro Leopoldo em dezembro de 2011. Pós
graduado em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – IEC
unidade São Gabriel – em setembro de 2013. Advogado do SINTICOMEX – Sindicato dos
Trabalhadores na Indústria da Construção, do Mobiliário e da Extração de Mármore, Calcário e
Pedreiras de Pedro Leopoldo, Matozinhos, Prudente De Morais, Capim Branco e Confins. Sócio da
Lafetá& Rodrigues Cruz Advocacia em Lagoa Santa/MG.- E-mail: [email protected]
Visando entender os limites e aspectos gerais das sustentações orais,
fizemos uma análise dos Regimentos Internos do Tribunal Regional do Trabalho – 3ª
Região e do Tribunal Superior do Trabalho, demonstrando alguns pontos
controversos e incontroversos, chegando a identificar regras inconstitucionais.
Desta forma, nossa intenção é a de contribuir cientificamente para se discutir
mais amplamente as sustentações orais no Direito do Trabalho, o cerne do nosso
tema problema, uma vez que praticamente todos no meio jurídico sabem da sua
importância, mas poucos buscam entender a sistemática da oralidade como
“ferramenta” da (in)eficácia da Justiça.
Assim, sabedores de que o Direito é vivo, sempre em franca evolução,
esperamos colaborar para sua freqüente construção, despertando a necessidade da
redescoberta da comunicação jurídica oral como meio legítimo para defender os
interesses das partes.
2 - O princípio da oralidade e a comunicação jus-trabalhista
Principalmente na primeira instância trabalhista, a comunicação oral é
uma das maneiras mais usadas para a construção do convencimento do magistrado.
Nas audiências de instrução, na maioria das vezes, os interrogatórios das partes e
as oitivas das testemunhas é que estruturaram os provimentos.
Ocorre que como defendem os processualistas trabalhistas, há que se ter
critérios para a produção de provas orais.
O processualista italiano Giuseppe Chiovenda62, considerado um
entusiasta da oralidade e o primeiro a utilizar o conceito Princípio da Oralidade, com
regras e postulados para justificar a comunicação oral no direito, acredita que a
efetividade da oralidade depende dos seguintes critérios a serem observados
a)prevalência da palavra como meio de expressão combinada com o
uso de meios escritos de preparação e documentação;
62
Disponível: http://www.livrariadelrey.com.br/direito-processual-civil/instituicoes-de-direito-processualcivil-4-edicao - Acesso em: 10 out. 2013- Giuseppe Chiovenda é Jurista e acadêmico, nascido em
Premosello, província de Novara, Itália, em 2 de fevereiro de 1872. Foi professor nas Universidades
de Parma, Bolonha, Nápoles e, após 1906, na Universidade de Roma. O principal Objeto de suas
pesquisas foi o Direito Processual Civil, estudo que deu à matéria um grande impulso e uma nova
ótica, rigorosamente científica, com particular atenção à formação histórica do processo italiano. Por
seu legado e influência, é considerado o pai da Escola do Direito Processual italiana, reunindo vários
discípulos e seguidores em todo o mundo.
b)imediação da relação entre o juiz e as pessoas cujas declarações
deva apreciar;
c)identidade das pessoas físicas que constituem o juiz durante a
condução da causa;
d)concentração do conhecimento da causa num único período
(debate) a desenvolver-se numa audiência ou em poucas audiências
contíguas;
e)irrecorribilidade das interlocutórias em separado. (REIS, 2004. p.1);
O que na verdade este processualista afirma é que o processo na
atualidade é misto; as afirmações orais devem ser colocadas a termo, mas os
debates e apresentações de argumentos e testemunhos devem ser primeiramente
verbalizados (REIS, 2004, p.1).
Com base nestes critérios, alguns processualistas tentam buscar
fundamentos para explicar o Princípio da Oralidade. Infelizmente, a maioria dos
doutrinadores brasileiros, embora este tema seja relevante para se estudar o direito,
sequer cita este princípio em suas obras. Os poucos que estudaram a oralidade
preferem descrevê-la sucintamente, buscando no atual entendimento de Princípio da
Oralidade, o fundamento da sua ainda existência no Direito.
Um exemplo é encontrado nos dizeres de Moacyr Amaral Santos que
assim descreve o procedimento oral:
[...] No seu sentido genuíno, procedimento oral seria aquele em que
todos os atos processuais se produzem oralmente, em presença do
juiz, como o era no mais antigo procedimento romano ou germânico.
Um tal sistema não se compreenderia nos tempos modernos, em que
as relações jurídicas se tornam cada vez mais complexas, exigindo
que o instrumento da jurisdição, o processo, se faça cada dia mais
delicado e também mais eficiente.
Hoje, procedimento oral, cujos modelos se encontram nos processo
austríaco, alemão e húngaro, e cujo mais eminente doutrinador, entre
os povos latinos, foi Chiovenda, de cujos ensinamentos se valeu o
legislador pátrio ao elaborar o Código de Processo Civil de 1939, tem
outro sentido. Nesse procedimento não há exclusão, mas
aproveitamento da escrita, e mesmo acentuada, predominância
quantitativa de atos escritos, em combinação com a palavra falada
como meio de expressão de atos relevantes e de decisiva influência
na formação da convicção do juiz. Tira o sistema a denominação –
sistema oral, procedimento oral, ou apenas oralidade – da
circunstância de em momentos capitais do processo predominar a
palavra falada; mas não somente nisso ele consiste, e sim também
na aplicação de modos e formas segundo os quais se movimenta o
processo e pelos quais a palavra falada surge e se mostra mais
eficaz e conveniente que a palavra escrita.[...] (SANTOS, 2008, p.
85)
Analisando a evolução da oralidade no direito, diante da forte
presença da escrita, é possível classificar os procedimentos
processuais de três formas (GONÇALVES, 2006, p.41): a oral, a
escrita e a mista. A oral é aquela exercida apenas pelas
argumentações faladas pelas partes, não havendo, portando,
nenhum registro escrito. O procedimento escrito é aquele com todas
as manifestações das partes e do julgador de maneira escrita. Não
há, nesse meio, comunicação verbal com o julgador. Já a mista, que
envolve as duas anteriores, se inicia com a oralidade, mas depende
da formalização escrita para registrar o que foi falado.
O Brasil adota a teoria mista, de acordo com a definição de princípio da
oralidade de Marcus Vinícius Rios Gonçalves, que assim descreve esse meio oral
atualmente em nosso país:
[...] Embora as audiências e requerimentos sejam realizados
oralmente, faz-se necessária a sua redução a escrito. Os
procedimentos do juizado especial cível, regulados pela Lei n.
9.099/95, observam com mais rigor as regras da oralidade. Mas
mesmo neles há necessidade de documentação dos principais atos
realizados ao longo do procedimento. Nem aí se poderia falar
propriamente na adoção do princípio da oralidade, pois o
procedimento é misto.[...] (GONÇALVES, 2006, p. 41). O Código de
Processo Civil (SANTOS, 2008, p. 85), usado subsidiariamente no
processo do trabalho, na visão do legislador de 1939, foi construído
também inspirado pelo Princípio da Oralidade, não de forma isolada,
mas vinculado a outros princípios processuais que o validariam:
princípio da imediatidade, princípio da identidade física do juiz em
todo o decorrer da lide, princípio da concentração da causa e
princípio da irrecorribilidade dos interlocutórios.
O princípio da imediatidade ou, para alguns, imediação (SANTOS, 2008,
p.86), refere-se à condição sinequa non63para validade da colheita de informações
orais, da presença física do magistrado, que deve ter contato com as partes, e
pessoalmente, interrogar todos os envolvidos.
Também envolvendo a pessoa do magistrado, o princípio da
Identidade física do juizrefere-se à necessidade do julgador, que
colhe prova oral ou argumentação jurídica das partes, em audiência,
estar vinculado ao julgamento da pretensão do requerente. Com
relação a esse considerado subprincípio da oralidade (GONÇALVES,
2006, p. 41), o legislador processual civil brasileiro expressou essa
vontade quando, no art. 132 do Código de Processo Civil, assim
determinou:
Art. 132. O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará
a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer
63
Disponível: http://old.tweettunnel.com/reverse2.php?textfield=LPDicas- Acesso em 01 ago 2013 - A
expressão latina “sinequa non” significa algo como “sem o qual não pode ser” e é utilizada até hoje,
na maioria das vezes, como sinônimo de “indispensável”.
motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos
ao seu sucessor. (BRASIL, 1973)
Percebe-se a mens legis64 no sentido do julgador, necessariamente,
deverá ser o mesmo que receber as informações orais, mas o que ocorre
atualmente, diante da grande demanda processual, são as substituições freqüentes
dos julgadores, que muitas vezes, prejudicam os julgamentos.
Neste sentido, o processualista Marcus Vinicius Rios Gonçalves entende
que a substituição do magistrado não deverá ocorrer.
[...]Se, em uma audiência de instrução, as partes desistem dos
depoimentos pessoais e da ouvida de testemunhas, dar-se-á por
encerrada a instrução, passando-se à fase de alegações finais. O juiz
não se terá vinculado, porque não houve colheita de provas orais.
Quando a realização da audiência desdobra-se em mais de um dia,
pois nem todas as testemunhas compareceram ou o número é tal
que não é possível ouvi-las de uma vez, o juiz que iniciou a colheita
da prova oral deve terminá-la, pois terá ficado vinculado, ressalvadas
as exceções estabelecidas no art. 132. O magistrado que ouvir as
primeiras testemunhas deverá ser o mesmo a ouvir as restantes na
audiência em continuação.[...] (GONÇALVES, 2006, p. 42)
Mas se ocorrer à substituição do magistrado (GONÇALVES, 2006, p. 42),
este ato poderia gerar a nulidade da sentença. Até março de 2012, a Justiça do
Trabalho não adotava este entendimento, autorizando julgamento de quem não
acompanhou a instrução processual. Atualmente, também esta especializada adota
o princípio da identidade física do juiz, tendo sido cancelada a súmula 136 do TST.
O princípio da concentração da causa (SANTOS, 2008, p. 86), de um
certo modo, ressalta a necessidade da concentração dos atos orais em apenas uma
audiência ou em poucas audiências, com intervalo pequeno entre elas. A
argumentação para a existência deste princípio refere-se aos naturais lapsos de
memória por que a maioria das pessoas passam. Se ouve as partes ou os seus
representantes hoje, e o julgamento ou novas oitivas ocorrem dias ou meses depois.
Com isso, certamente, muito do que foi dito ou expressado, de maneira subjetiva, e
que não foi atermado, será perdido.
Finalizando a discussão sobre os princípios orientadores da oralidade
jurídica brasileira, chegamos ao princípio da irrecorribilidade dos interlocutórios, que
norteia que as decisões interlocutórias orais não deverão ser recorridas. O
64
Disponível: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/289562/mens-legis- Acesso em 01 ago 2013 - Mens
legis - Espírito da lei. Alcance da lei. Constitui pormenor de grande importância da interpretação.
processualista Marcus Vinicius Rios Gonçalves assim descreve e explica este
princípio:
[...] a enunciação deste subprincípio pode induzir à falsa idéia de que
as decisões interlocutórios, que não põem fim ao processo, são
irrecorríveis. No entanto, o Código de Processo Civil indica o recurso
apropriado contra elas, o agravo. Ocorre que esse recurso, como
regra, não tem efeito suspensivo, de forma que a sua interposição
não retarda o julgamento do processo. Com isso, o magistrado
continua próximo da colheita de provas, não havendo longo
transcurso de tempo entre ela e a prolação da sentença. Nos
procedimentos do Juizado Especial, em que a oralidade é observada
de forma mais intensa, as decisões interlocutórias são irrecorríveis.
No CPC, verifica-se uma tendência a limitar a interposição de
recursos contra as decisões interlocutórias.[...](GONÇALVES, 2006,
p. 42)
Como se percebeu, a legitimidade do uso da oralidade para a
construção dos provimentos está intimamente ligada aos seus princípios
orientadores. Mas mesmo assim, entre os poucos que estudam o tema, há quem
acredite ser fora da realidade o que se entende, pela doutrina tradicional, o princípio
da oralidade.
No caso específico do Processo do Trabalho, a comunicação oral,
também nos tribunais, é a forma de se efetivar a informalidade, a simplicidade e a
celeridade. SCHIAVI, apud MAIOR (2005, p. 223), assim descreve a oralidade neste
ramo do direito:
A CLT, expressamente, privilegiou os princípios basilares do
procedimento oral: a) primazia da palavra (art. 791 e 839, a –
apresentação de reclamação diretamente pelo interessado; 840 –
reclamação verbal; 843 e 845 – presença obrigatória das partes
em audiência; 847 – apresentação de defesa oral, em audiência;
848 – interrogatório das partes;850 – razões finais orais; 850,
parágrafo único – sentença após o término da instrução); b)
imediatidade (art. 843, 845 e 848); c) identidade física do juiz
(corolário da concentração dos atos determinada nos arts. 843 e
852);d) irrecorribilidade das interlocutórias (§ 1º do art. 893); e)
maiores poderes instrutórios ao juiz (arts. 765, 766, 827 e 848); e
f) possibilidade de solução conciliada em razão de uma maior
interação entre o juiz e as partes (arts. 764, §§ 2º e 3º; 846 e 850).
Assim, muitas das lacunas apontadas do procedimento trabalhista
não são propriamente lacunas, mas um reflexo natural do fato de
ser este oral. Lembre-se, ademais, que o CPC foi alterado em
1973, e, em termos de procedimento, adotou um critério misto,
escrito até o momento do saneamento, e oral, a partir da
audiência, quando necessária. Nestes termos, a aplicação
subsidiária de regras de procedimento ordinário do CPC à CLT
mostra-se naturalmente equivocada, por incompatibilidade dos
tipos de procedimentos adotados por ambos. (SCHIAVI, 2011, p.
109).
Mais uma vez verifica-se a necessidade da preparação do profissional do
direito com relação à comunicação oral. Como se observa no que nos ensina Souto
Maior, quem milita na área trabalhista precisa entender de oralidade para poder bem
cumprir o seu papel de representar o seu cliente.
O processualista Cleber Lucio de Almeida, também adepto dos
ensinamentos de Giuseppe Chiovenda, demonstra a fundamental importância da
oralidade para o Processo do Trabalho:
À luz de tais ensinamentos pode ser afirmado que o processo do
trabalho é um processo oral, vez que:
1) predomina a palavra falada (oralmente em sentido estrito);
2) os atos processuais fundamentais são concentrados em
audiência, preferencialmente única, na qual devem estar
presentes o demandante e o demandado;
3) a produção da prova é realizada pelo juiz responsável pelo
julgamento da demanda;
4) as decisões interlocutórias são irrecorríveis (art. 893, § 1º da
CLT).(ALMEIDA, 2013, p. 76-77)
3 As previsões legais para justificar a sustentação oral nos tribunais trabalhistas
Conforme informado anteriormente, de maneira positivada, vários ramos
do direito estão legitimados a usar meios orais para a construção dos provimentos,
principalmente na Justiça do Trabalho.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 apenas valora a
oralidade, de maneira expressa e direta, quando se refere à criação dos Juizados
Especiais. O inciso I do art. 98 assim foi redigido:
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados
criarão:
I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e
leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução
de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de
menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e
sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação
e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro
grau;(BRASIL, 2011)
Apesar disso, é público e notório que os juizados especiais foram
inspirados pelos trâmites processuais trabalhistas, percebendo-se o quanto o
legislador Constitucional demonstra querer celeridade e efetividade dos processos,
como já ocorre na Justiça do Trabalho.
A justificativa legal constitucional para a real necessidade das
sustentações orais nos tribunais trabalhistas é encontrada no princípio da ampla
defesa, elencado no art. 5º, LV, da Constituição da República:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes; (BRASIL, 2013)
Certamente o exercício da sustentação oral é a efetivação da ampla
defesa, como um recurso necessário, dependendo do caso concreto.
Também o Código de Processo Civil, utilizado subsidiariamente pela
Justiça do Trabalho, em seu art. 554, prevê a sustentação oral nos tribunais:
Art. 554. Na sessão de julgamento, depois de feita a exposição da
causa pelo relator, o presidente, se o recurso não for de embargos
declaratórios ou de agravo de instrumento, dará a palavra,
sucessivamente, ao recorrente e ao recorrido, pelo prazo
improrrogável de 15 (quinze) minutos para cada um, a fim de
sustentarem as razões do recurso.
Legitimando a função do advogado, como o titular do direito a se
manifestar oralmente, a Lei n. 8.906, de 04/07/1994, denominada como o Estatuto
da Advocacia e da OAB e que foi recepcionada, em quase sua integralidade, pela
Constituição, em seu art. 7º, há as previsões para o exercício, por parte do
advogado, da oralidade:
Art. 7º São direitos do advogado:
IX - sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo,
nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância
judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se
prazo maior for concedido; (Grifos nossos)
X - usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal,
mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida
surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam
no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe
forem feitas;(BRASIL, 1994)
XI - reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo,
tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei,
regulamento ou regimento;
XII - falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de
deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder
Legislativo; (Grifos nossos).(BRASIL, 2013)
O inciso IX deste artigo, destacado acima, não foi recepcionado pela
Constituição. Após o julgamento pelo STF - Supremo Tribunal Federal da ADIN
1.127-8, o inciso ficou assim interpretado:
VII - A sustentação oral pelo advogado, após o voto do Relator,
afronta o devido processo legal, além de poder causar tumulto
processual, uma vez que o contraditório se estabelece entre as
partes.(BRASIL, 2013)
Ocorre que este posicionamento do STF mudou a prática apenas nos
tribunais cíveis e criminais. Conforme será demonstrado adiante, quando da análise
dos Regimentos Internos dos Tribunais Trabalhistas, as sustentações orais nesta
especializada continuam ocorrendo após o voto do Relator, o que torna ainda mais
árduo o trabalho do sustentador.
Com relação aos demais incisos do art. 7º do Estatuto da OAB, percebese como são amplas as oportunidades para o advogado fazer o uso da oralidade.
Esses incisos confirmam a importância da comunicação oral na construção dos
provimentos.
Destacada a legalidade do nosso tema problema, que é a sustentação
oral, no próximo item, procuraremos entender quais são os regramentos nos
tribunais trabalhistas para o exercício da oralidade nas sessões de julgamentos.
4 - Dos Regimentos Internos
As sustentações orais nos tribunais trabalhistas devem respeitar todo o
ordenamento
jurídico
brasileiro,
mas
possuem
regras
próprias,
que
são
estabelecidas pelos tribunais, através dos Regimentos Internos, legitimados pela
função normativa do Poder Judiciário, elencada na Constituição da República.
Neste sentido, o processualista trabalhista Cléber Lucio de Almeida assim
justifica os regimentos internos:
[...] De acordo com o art. 96, I, a, da Constituição Federal, compete
privativamente aos tribunais elaborar seus regimentos internos, nos
quais poderão dispor sobre a competência e o funcionamento dos
respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos, respeitando as
normas de processo e as garantias processuais das partes.
O Regimento Interno do Tribunal define a função, competência e
composição de seus órgãos colegiados e monocráticos (fixando,
com isso, a sua competência interna) e as atribuições de seus
serviços auxiliares, estabelecendo a sua própria estrutura, bem
como organiza suas secretarias e a dos Juízos que lhes forem
vinculados, respeitadas ‘as linhas fundamentais da seção
constitucional que a ele diz respeito e tendo em vista o que,
complementarmente à Constituição Federal, venha dispor o
Estatuto da Magistratura.[...] (ALMEIDA, 2012, p. 183)
Conforme será demonstrado nos próximos itens, as regras sobre
sustentações orais nos tribunais trabalhistas são específicas e delimitam a atuação
dos sustentadores.
5. Sustentação oral no TRT– 3ª região
Como já esperado, tratando-se de regras para procedimentos orais, o
Regimento Interno do Tribunal Regional do Trabalho – Terceira Região – Jurisdição
em Minas Gerais não normatiza todos os procedimentos a serem seguidos pelo
advogado ou representante do Ministério Público do Trabalho.
Ficam por conta dos costumes, as questões relacionadas aos tratamentos
aos magistrados e as estruturações das falas, bem como os limites dos argumentos
sustentados.
O atual Regimento Interno do TRT 3 foi aprovado pela Resolução
Administrativa TRT3/STPOE n. 180, de 15/12/2006 (DJMG de 20/12/2006), mas já
passou por diversas alterações desde a sua criação. Como o poder normativo é do
próprio tribunal, normalmente acompanha a evolução de demandas do regional.
Conforme será analisado a seguir, diante da experiência profissional
deste pesquisador, como advogado sustentador oral e das observações em várias
sessões de julgamento do TRT 3, verifica-se que a maioria das normas regimentais,
com relação à sustentação oral, são respeitadas nas sessões do tribunal.
Entre elas, destaca-se a norma para a inscrição do advogado para
sustentação, elencada no art. 101 do Regimento:
Art. 101. Mediante inscrição por fax, por correio eletrônico ou
pessoalmente, até o início da sessão, admitir-se-á a sustentação
oral.
Parágrafo único. Aceitar-se-ão as inscrições feitas por fax ou
correio eletrônico, desde que haja a clara identificação do processo,
do Órgão julgador, da data e do horário de julgamento e, se
recebidas na Secretaria do Órgão, até as 16 horas do dia
antecedente à respectiva sessão, observados os dias e o horário de
expediente do Tribunal. (BRASIL, TRT 3, 2013)
Embora a norma preveja inscrição por fax, por correio eletrônico ou
pessoalmente, atualmente os meios mais usados pelos sustentadores para inscrição
são
pela
internet,
através
do
endereço
eletrônico
do
TRT3
http://www.trt3.jus.br/servicos/inscricao/sustent.htm ou pessoalmente.
O meio ideal para se inscrever depende da estratégia e dos interesses do
sustentador. Quem se cadastra pela internet entra em uma lista de oradores, que na
sessão é seguida pelo presidente, por ordem de inscrição. Desta forma, o
procurador da parte que pretende sustentar no início da sessão, falando,
teoricamente, para julgadores menos estressados, deve optar por este meio.
Já o sustentador que prefere observar a turma, as estratégias usadas
pelos outros oradores e o estado de espírito dos julgadores, deve optar pela
inscrição pessoalmente, que é realizada antes do início da sessão. Estes
procuradores somente irão realizar a sustentação após o esgotamento da lista dos
inscritos pela internet.
Mas apesar disso, na maioria das turmas do TRT 3, este procedimento
não é seguido com tanto rigor. Mesmo quem se inscreve na hora e precisa falar
urgentemente por motivos justificáveis, normalmente o servidor responsável pela
lista de oradores, consegue autorização do presidente para que a sustentação seja
antecipada.
Com relação ao tempo limite e ao momento para a sustentação oral, o art.
104 do regimento interno assim determina:
Art. 104. Apregoado o processo, o Presidente da sessão dará a
palavra, por dez minutos, ao membro do Ministério Público do
Trabalho, se este a requerer e, em seguida, às partes ou a seus
procuradores.
§ 1º Em se tratando de agravo de qualquer espécie, o prazo a que
se refere o caput deste artigo será de cinco minutos.
§ 2º Provido o agravo, reabrir-se-á o prazo para a sustentação do
recurso destrancado. (BRASIL, TRT 3, 2013)
Nota-se que o tempo para sustentar oralmente é de 10 minutos, sendo de
5 minutos em caso de agravo. Quanto à palavra dada ao representante do Ministério
Público do Trabalho, o próprio regimento determina que deve ser apenas para os
processos de rito ordinário.
Outra regra importante, no sentido de justificar as sustentações orais nos
tribunais trabalhistas é a do art. 105 do Regimento Interno. Nele, há a determinação
para o julgador não se ausentar do recinto: “Art. 105. O Magistrado não deverá
ausentar-se do recinto, sem motivo, após apregoado o processo a que se encontra
vinculado” (BRASIL, TRT 3, 2013).
Diferentemente de outros tribunais, a minha prática tem demonstrado o
fiel
cumprimento
deste dispositivo
regimental.
Normalmente os
julgadores
permanecem no recinto enquanto ocorrem as sustentações orais.
Quanto à precedência das falas, o regimento assim determina:
Art. 106. Na sessão de julgamento, quando da sustentação oral,
falará em primeiro lugar:
I - o recorrente;
II - o autor, se houver dois ou mais recursos, salvo a hipótese de
recurso adesivo, caso em que falará após o recorrente principal;
III - o representante da categoria profissional, em dissídios coletivos
instaurados de ofício;
IV - o autor ou o requerente, em processos de competência
originária. (BRASIL, TRT 3, 2013)
Esta precedência é observada em todas as sessões que participei, em
respeito a uma lógica jurídica que primeiro dá oportunidade ao recorrente, e em
seguida, ao recorrido para o desenvolvimento do contraditório.
Outra norma importante a ser observada no Regimento Interno do TRT3 é
a da possibilidade do magistrado poder comentar algo defendido pelo sustentador:
Art. 108. O Magistrado, mediante prévia solicitação ao Presidente,
poderá fazer uso da palavra, não interrompendo, porém, aquele
que estiver no uso dela.
Parágrafo único. É facultado ao Advogado prestar esclarecimentos
sobre matéria fática, desde que autorizado pelo Presidente.
(BRASIL, TRT 3, 2013)
Neste sentido, tornou-se um hábito nas turmas do TRT3 a manifestação
do relator logo após a sustentação oral. Deferindo ou não o recurso, o relator
costuma reafirmar seu posicionamento.
Quanto à autorização para esclarecimentos sobre matérias fáticas, é
comum o sustentador abordar estas questões mesmo sem autorização, já incluindo
em suas argumentações as provas produzidas na instrução, destacando aquelas
que de alguma forma corroboram com sua tese.
Uma questão já discutida neste presente trabalho refere-se ao momento
em que deve ocorrer a sustentação oral. Conforme já dito antes, o inciso IX, do art.
7º, da Lei n. 8.906, de 04/07/1994 - Estatuto da Advocacia e da OAB determina:
Art. 7º São direitos do advogado:
IX - sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo,
nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância
judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se
prazo maior for concedido; (Grifos nossos) - (BRASIL, 2013)
Ocorre que o inciso IX não foi recepcionado pela Constituição, conforme
julgamento pelo STF - Supremo Tribunal Federal da ADIN 1.127-8, que assim
determinou:
VII - A sustentação oral pelo advogado, após o voto do Relator,
afronta o devido processo legal, além de poder causar tumulto
processual, uma vez que o contraditório se estabelece entre as
partes.(BRASIL, 2013)
Após este entendimento do STF, a maioria dos tribunais se adequou a
nova interpretação constitucional e alterou os regimentos no sentido de permitir que
a sustentação oral ocorra antes da leitura do voto do relator. Mas no TRT3 esta não
é a realidade, pois as sustentações somente ocorrem após a leitura do voto do
relator.
Embora não seja apropriado o desrespeito a este posicionamento
interpretativo da nossa corte maior, entendemos que a leitura anterior do voto não
afronta o devido processo legal. Ao contrário, com o posicionamento do relator, se o
sustentador for perspicaz, terá oportunidade de combater o entendimento do relator
perante o revisor e o segundo votante.
Caso o voto seja favorável aos interesses do seu cliente, o sustentador
poderá, inclusive, apesar de não existir a permissão no Regimento Interno, aguardar
os votos dos demais julgadores, em muitos casos, até deixar de realizar a sua
manifestação oral. Se o relator for vencido, ainda será possível a realização da
sustentação oral, para se combater os argumentos contrários da turma.
Quanto à votação, o Regimento Interno do TRT3 cria o seguinte critério:
“Art. 109. Iniciar-se-á a votação pelo Relator, seguindo-se o voto do Revisor e dos
demais Magistrados, pela ordem de antiguidade”. (BRASIL, TRT 3, 2013)
Esgotando-se as discussões quanto às razões recursais, é proferida, pelo
presidente da sessão, a leitura da decisão, devendo constar, quando da elaboração
do acórdão, a realização da sustentação oral, registrando-se o nome do procurador
sustentador:
Art. 113. Findo o julgamento, o Presidente proclamará a decisão,
cabendo ao Relator redigir o acórdão, salvo quando integralmente
vencido no mérito.
§ 3º Certificar-se-á nos autos o resultado do julgamento, constando
obrigatoriamente da certidão:
II - o nome:
c) dos que compareceram para a sustentação oral; (BRASIL, TRT
3, 2013)
Também é interessante notar que Regimento Interno do TRT3 prevê a
priorização dos julgamentos dos recursos que tenham procuradores inscritos para
sustentação oral:
Art. 115. Não sendo possível o julgamento de todos os processos
constantes da pauta, julgar-se-ão os remanescentes na sessão
seguinte, independentemente de novas intimações, respeitada a
preferência daqueles em que havia inscrição para sustentação oral,
se presente o interessado. (BRASIL, TRT 3, 2013)
De fato, na prática este artigo é seguido com rigor. Iniciada a sessão,
somente após o esgotamento do julgamento de todos os recursos que tenham
sustentação oral é que a turma inicia o julgamento dos demais. Assim, fora a
vantagem de poder oralmente mudar o rumo da decisão recursal, o sustentador não
correrá o risco do julgamento do seu recurso ocorrer na sessão seguinte.
Embora as sustentações orais não respeitem todos os requisitos do
princípio da oralidade já estudados neste trabalho, especialmente o da combinação
do uso da palavra falada com a escrita, o TRT3 grava todas as argumentações
orais. Caso haja motivo justificado, o advogado poderá solicitar uma certidão de
inteiro teor, como garante o regimento interno:
Art. 117. O pedido de certidão de inteiro teor de gravação de julgamento a
que tenha comparecido o Advogado para sustentação oral, desde que
comprovado justo motivo, será dirigido ao Presidente do Órgão judicante no
prazo de oito dias da publicação do acórdão. (BRASIL, TRT 3, 2013)
Diante do exposto, nota-se que para realizar uma sustentação oral nas
sessões do Tribunal Regional do Trabalho – 3ª Região, o representante da parte
deve conhecer bem as regras e limites do Regimento Interno, para que possa
exercer uma defesa de tese eficiente e de maneira esperada pelos julgadores ou
que os surpreenda. Do contrário, o risco de insucesso na empreitada certamente
será acentuado.
6 -Do regimento interno do TST
O atual Regimento Interno do TST - Tribunal Superior do Trabalho foi
aprovado pela Resolução Administrativa nº 1295/2008, com alterações dos Atos
Regimentais números 1/2011, 2/2011, 3/2012 e 4/2012 e Emendas Regimentais
números 1/2011, 2/2011, 3/2012 e 4/2012.
Como no Regimento do TRT3, também este tribunal estabelece regras
próprias para as sustentações orais. Uma vez que nas sessões do TST somente são
debatidas matérias de direito, o Regimento Interno deste tribunal demonstra maior
valorização às sustentações orais, com regras mais específicas. No Regimento, há,
inclusive, uma seção específica para delimitar a participação de advogados nas
sessões.
Diferentemente do TRT3, os atuais ministros do TST demonstram ser
mais positivistas, com menor flexibilização das normas regimentais relacionadas às
sustentações orais.
Abordando as regras do Regimento Interno deste tribunal, verifica-se
que os critérios para a realização da sustentação oral são mais amplos e exigem
maior interpretação do advogado. Neste sentido, é necessário a leitura dos artigos
109 e 110 para se entender quais serão os processos a serem julgados nos inícios
das sessões, tendo-se também como preferência para julgamento, os casos que
tenham sustentações orais:
Art. 109. Os processos serão incluídos em pauta, considerada a
data de sua remessa à Secretaria, ressalvadas as seguintes
preferências: (Redação dada pela Emenda Regimental nº 4/2012)
I - futuro afastamento temporário ou definitivo do Relator, bem
como posse em cargo de direção;
II - solicitação do Ministro-Relator ou das partes, se devidamente
justificada;
III - quando a natureza do processo exigir tramitação urgente,
especificamente os dissídios coletivos, mandados de segurança,
ações cautelares, conflitos de competência e declaração de
inconstitucionalidade de lei ou de ato do Poder Público; (Redação
dada pela Emenda Regimental nº 2/2011)
IV - na ocorrência de transferência do Relator para outro
Colegiado;
V - nos processos submetidos ao rito sumaríssimo e naqueles que
tenham como parte pessoa com mais de sessenta anos de idade.
Art. 110. Para a ordenação dos processos na pauta, observar-se-á
a numeração correspondente a cada classe, preferindo no
lançamento o elenco do inciso III do art. 109 deste Regimento e,
ainda, aqueles em que é permitida a sustentação oral. (BRASIL,
TST, 2013)
Confirmando o direito a sustentar oralmente as suas teses, o
Regimento Interno afirma expressamente, de maneira até desnecessária, que os
advogados terão direito de intervir, caso seja necessário. Mas em contrapartida, o
Regimento exige o uso de beca:
Art. 140. Nas sessões de julgamento do Tribunal, os
advogados, no momento em que houverem de intervir, terão
acesso à tribuna.
Parágrafo único. Na sustentação oral, ou para dirigir-se ao
Colegiado, vestirão beca, que lhes será posta à disposição.
(BRASIL, TST, 2013)
Como no TRT, as inscrições para sustentações orais, chamadas pelo
TST de “pedido de preferência”, poderão ser feitas pessoalmente ou pela internet,
através do seguinte endereço eletrônico: http://www.tst.jus.br/web/guest/pedido-depreferencia:
Art. 141. Os pedidos de preferência, formulados pelos advogados
para os julgamentos de processos, encerrar-se-ão trinta minutos
antes do início da sessão e serão concedidos com observância da
ordem de registro. (Redação dada pela Emenda Regimental nº
4/2012)
Parágrafo único. O pregão do processo, na preferência, vincula-se
à presença, na sala de sessões, do advogado que a requereu.
(Incluído pelo Ato Regimental nº 4/2012)
Art. 142. O requerimento de preferência formulado por um mesmo
advogado, em relação a mais de três processos, poderá ser
deferido de forma alternada, considerados os pedidos formulados
pelos demais advogados. (BRASIL, TST, 2013)
Demonstrando maior rigor em relação ao TRT3, o regimento deste
tribunal exige que o advogado possua mandato nos autos, sob pena de ser
indeferido o seu pedido para realização de sustentação oral:
Art. 144. O advogado sem mandato nos autos, ou que não o
apresentar no ato, não poderá proferir sustentação oral,
salvo motivo relevante que justifique o deferimento da
juntada posterior. (BRASIL, TST, 2013)
Já quanto ao fracionamento da fala, o regimento é claro em impedir
esta possibilidade. Mas com respeito ao momento em que deverá ser iniciada a
sustentação oral, como ocorre no TRT3, percebe-se a violação ao disposto no
entendimento do STF, quando proferiu julgamento em ADIN 1.127-8, não
recepcionando o inciso IX, do art. 7ª, da Lei n. 8.906, de 04/07/1994 – Estatuto da
OAB. Contrariando o STF, o TST também abre espaço para a sustentação oral após
a leitura do voto do relator:
Art. 145. Ressalvado o disposto no art. 131, § 13, a sustentação
oral será feita de uma só vez, ainda que arguida matéria
preliminar ou prejudicial, e observará as seguintes disposições:
(Redação dada pela Emenda Regimental nº 4/2012)
§ 1.º Ao proferir seu voto, o Relator fará um resumo da matéria em
discussão e antecipará sua conclusão, hipótese em que poderá
ocorrer a desistência da sustentação, ante a antecipação do
resultado. Havendo, porém, qualquer voto divergente daquele
anunciado pelo Relator, o Presidente voltará a facultar a palavra
ao advogado desistente. Não desistindo os advogados da
sustentação, o Presidente concederá a palavra a cada um dos
representantes das partes, por dez minutos, sucessivamente.
(GRIFOS NOSSOS) - (BRASIL, TST, 2013)
Este mesmo artigo do Regimento, em seus parágrafos 2º e 3º
delimitam o tempo das falas, que poderá, dependendo do caso, chegar até 20
minutos. Quanto aos critérios de quem fala primeiro, em lógica jurídica, inicialmente
fala o recorrente e em seguida, o recorrido:
Art. 145 (...)
§ 2.º Usará da palavra, em primeiro lugar, o advogado do
recorrente; se ambas as partes o forem, o do reclamante.
§ 3.º Aos litisconsortes representados por mais de um advogado, o
tempo lhes será proporcionalmente distribuído, podendo haver
prorrogação até o máximo de vinte minutos, ante a relevância da
matéria.
§ 4.º Quando for parte o Ministério Público, seu representante
poderá proferir sustentação oral após as demais partes, sendo-lhe
concedido prazo igual ao destas. (BRASIL, TST, 2013)
Contrariando o art. 7º da Lei n. 8.906, de 04/07/1994 – Estatuto da
OAB, que determina que o advogado pode sustentar oralmente suas razões em
qualquer recurso, o Regimento Interno do TST, expressamente veda defesa oral em
diversos recursos:
Lei n. 8.906, de 04/07/1994:
Art. 7º São direitos do advogado:
IX - sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou
processo, nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em
instância judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos,
salvo se prazo maior for concedido; (Grifos nossos) - (BRASIL,
2013)
Regimento Interno TST:
Art. 145 (...)
§ 5.º Não haverá sustentação oral em: (Redação dada pela
Emenda Regimental nº 2/2011)
I - embargos de declaração;
II - conflito de competência;
III - agravo de instrumento;
IV - agravo ou agravo regimental interposto contra despacho
proferido em agravo de instrumento ou contra decisão concessiva
ou denegatória de liminar em ação cautelar; (Redação dada pela
Emenda Regimental nº 4/2012)
V - agravo em recurso extraordinário;
VI - agravo regimental contra decisão do Presidente de Turma que
denegar seguimento a embargos à Subseção I da Seção
Especializada em Dissídios Individuais; (Incluído pelo Ato
Regimental nº 4/2012)
VII - arguição de suspeição ou de impedimento; (Incluído pelo Ato
Regimental nº 4/2012)
VIII – ação cautelar. (Incluído pelo Ato Regimental nº 4/2012)
(BRASIL, TST, 2013)
Ao nosso ver, estas vedações impedem o exercício constitucional do
direito a ampla defesa, uma vez que o advogado não poderá explicitar seus
argumentos de forma plena.
Além das vedações supra mencionadas, o Regimento Interno do TST
dá ao presidente da turma, o poder de impedir que o advogado desrespeitoso a
continuar sua sustentação oral:
Art. 145 (...)
§ 6.º O Presidente do órgão julgador cassará a palavra do
advogado que, em sustentação oral, conduzir-se de maneira
desrespeitosa ou, por qualquer motivo, inadequada. (BRASIL,
TST, 2013)
Ocorre que esta norma regimental é muito aberta, não definindo o que
seria maneira desrespeitosa, de tal forma que, por qualquer expressão ou
argumento que desagrade a algum dos julgadores, a palavra do advogado poderá
ser cassada ao fundamento do § 6.º do art. 145 do Regimento Interno.
Assim, ao analisarmos os artigos do Regimento Interno do TST,
referentes às regras de sustentação oral, verificamos, como no TRT3, a
necessidade, por parte do sustentador, do conhecimento prévio das regras para se
proceder uma sustentação oral.
Ressalvadas as questões inconstitucionais do regimento, sustentação
após a leitura do voto do relator e o impedimento de manifestação oral em alguns
recursos, o Regimento Interno do TST teoricamente valoriza a participação oral do
advogado, dando a este profissional o direito a exercer sua efetiva participação nos
julgamentos dos recursos deste tribunal.
7 - Conclusão
Diante de tudo o que foi apresentado, verificamos que as sustentações
orais são efetivas e podem mudar posicionamentos dos julgadores nos tribunais
trabalhistas.
Constatamos, ao estudar os Regimentos Internos do TRT3 e do TST, que
as normas regimentais não regulam todos os aspectos das sustentações orais, mas
em aparente confronto com o entendimento do Supremo Tribunal Federal,
expressado em ADIN, impedem a realização do direito a defesa oral em alguns
recursos e não respeitam a interpretação do Estatuto da OAB que determina a
sustentação oral antes da leitura do voto do relator.
Apesar disso, principalmente no TST, verifica-se no regimento a
importância para os atuais componentes desta corte, da participação oral dos
advogados na construção dos provimentos.
Assim, com tudo já exposto, verificamos ser de extrema necessidade que
o profissional do direito do trabalho conheça bem o princípio da oralidade e as
regras dos tribunais para exercer com efetividade os direitos à ampla defesa e ao
contraditório em suas sustentações orais.
Resta-nos agora continuar e estimular que outros também aprofundem o
estudo sobre este tema.
8 - Referências
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Del Rey, 2012.
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www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm. Acesso em: 10 ago.
2013.
BRASIL. Decreto Lei n° 5.452, de 01 de maio de 1943. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm. Acesso em: 10 ago. 2013.
BRASIL. Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm. Acesso em: 10 ago. 2013.
BRASIL. Lei n° 8.906, de 04 de julho de 1994. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm. Acesso em: 10 ago. 2013.
BRASIL. Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm. Acesso em: 10 ago. 2013.
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https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/ita/abreDocumento.jsp?num_registro=1995004692
00&dt_publicacao=20-11-1995&cod_tipo_documento=. Acesso em: 10 ago. 2013.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Regimento Interno. Disponível em:
http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/1282. Acesso em: 05 jul. 2013.
BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho – 3ª Região. Regimento Interno. Disponível
em: http://www.trt3.jus.br/bases/regimento/ri.htm. Acesso em: 05 jul. 2013.
GONÇALVES, Marcus Vinícios Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. 3.ed.
São Paulo: Saraiva, 2006.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 8.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2009.
LÔBO, Paulo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 5.ed. São Paulo:
Saraiva, 2009.
MAMEDE, Gladston. A advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. 3.ed. São
Paulo: Atlas, 2008.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. OAB atua em prol de advogado: TST
restitui direito de sustentação oral. Disponível em:
http://www.oab.org.br/noticia/25536/oab-atua-em-prol-de-advogado-tst-restituidireito-de-sustentacao-oral. Acesso em: 10 ago. 2013.
PEREIRA, Larissa Maria Galvão. O princípio da oralidade no processo penal. 2010.
Disponível em:
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REIS, Nazareno César Moreira. A oralidade nos Juizados Especiais Cíveis. 2004.
Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/5439. Acesso em: 10 set. 2011.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual. V. 2 . 24.ed. São
Paulo: Saraiva, 2008.
SCHIAVI, Mauro. Manual de direito processual do trabalho. 4.ed. São Paulo: LTR,
2011.
POLÍTICA E DIREITO EM EVOLUÇÃO: A SOBERANIA, A GLOBALIZAÇÃO E O
DIREITO DE INTEGRAÇÃO.
Regis André65
Sumário:1. Introdução; 2.DESENVOLVIMENTO DO TEMA.; 3..
Conclusão; 4. Referências
1.INTRODUÇÃO.
Com o desenvolvimento da figura do Estado, delineada a partir do Século XIII
devido aos conflitos dos monarcas (barões, súditos feudais) e da inicial burguesia
mercantil com a Igreja, a soberania passou a ser elemento essencial do Estado
Nacional.
Nesse contexto, a soberania reflete o poder que o Estado tem de tutelar os
seus súditos e de postar-se em situação de igualdade com outros Estados.
A doutrina (nacional e internacional) atribui ao célebre autor Jean Bodin,
considerado grande teórico da Ciência Política, o desenvolvimento do conceito de
soberania.
Na época da formulação do conceito (Século XVI), o mundo não se resumia
mais a Europa, e já ocorria à chamada Era dos Descobrimentos, terreno fértil para a
compreensão de soberania do Estado, ao contrário do ambiente social presente na
Antiguidade, na Grécia, na Roma, e na Europa Medieval, que não gozavam do
sentimento público de nação.
Mas tanto a política quanto o direito estão em constante movimento.
65
Advogado. Doutor em Direito pela PUC Minas. Professor e Coordenador do Curso de Direito da
FPL. Presidente da Comissão de Educação Jurídica da OAB/MG – CEJ-OABMG. Membro Julgador
da 8ª Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/MG. Membro do Instituto dos Advogados de
Minas Gerais – IAMG. Conselheiro Suplente – representante da FECOMÉRCIO – no Conselho de
Contribuintes do Estado de Minas Gerais – CC/MG.
Assim, na atual quadra a soberania não é mais tratada como una e indivisível,
o poder absoluto e perpétuo que somente encontra limitações na lei divina e na lei
natural, conforme estudos de Bodin em obra clássica da Ciência Política (BODIN,
2012).
De fato, avaliando tal questão e os tempos atuais, Soares elucida que:
Nesta conjuntura, a geopolítica apresenta sociedades complexas,
condicionadas pela economia de mercado interligando os diferentes
Estados. O domínio tecnológico e dos meios de comunicação pelas
multinacionais caracteriza a intervenção da nova fase do capitalismo,
ao engendrar a denominada globalização política e econômica,
modificando gradativamente o conceito clássico de soberania
(SOARES, 2011, p. 114).
Assim, quando se trata de Organizações Internacionais, e dos blocos
regionais econômicos, políticos, sociais e culturais criados por Tratados e Protocolos
de Direito Internacional, a submissão e a flexibilização da clássica soberaniados
Estadosa um projeto de integração é marca central do fenômeno no mundo
globalizado.
A Carta de São Francisco, instituidora da Organização das Nações Unidas –
ONU, é exemplo de superação da concepção de soberania absoluta (SOARES,
2000).
A consolidação de blocos regionais políticos, econômicos, sociais e culturais
também é exemplo marcante da imposição de limites a autonomia e, por
consequência, a soberania dos Estados.
Nessa linha de reflexão, Ribeiro leciona que
Os novos conceitos, bem como a participação das instituições
supranacionais destacando o papel do Direito nos novos processos
de integração, derrogam o conceito clássico de soberania inerente
aos Estados, tanto em relação à ordem jurídica internacional como
em relação aos ordenamentos jurídicos internos dos respectivos
Estados (RIBEIRO, 2001, p. 35).
Dessa forma, dadas as modernas relações entre os Estadose seus nacionais
e entre os Estadose outros Estados, bem como entre os Estadose outros sujeitos de
Direito no cenário internacional, em mundo globalizado a soberania resta
flexibilizada em virtude das profundas alterações na economia, na sociedade e na
política, fruto de um processo global de interação que estabeleceu nova forma de
organização de pessoas, bens e serviços em todo o mundo.
Nesse contexto, segundo Ribeiro,
Cabe agora considerar a noção de soberania em contexto de
integração, ou seja, a possibilidade e viabilidade da convivência
desta com a superveniência de blocos regionais integrados, como
mercados comuns ou uniões econômico-monetárias, partindo de
tratados constitutivos regidos pelo direito dos tratados, regulados,
internamente, por normas diretamente aplicáveis nos Estadosmembros, através de instituições de caráter supranacional, de
determinar justamente a viabilidade de tal convivência, não
acarretando a supressão da soberania, mas a reestruturação de sua
regulação, na medida em que tais entidades não eliminem a
condição de sujeitos de Direito Internacional dos Estados-membros.
Na verdade, devem apenas de superpor parcialmente aos Estadosmembros, naquelas matérias que tenham relação com o conteúdo da
organização e sejam indispensáveis à consecução de seus objetivos
(RIBEIRO, 2001, p. 37-38).
Assim, diante da nova ordem internacional, que globaliza a política, a
economia e as práticas sociais, não mais prevalece o clássico conceito de soberania
do Estado.
Então, diante de tal situação política, surge uma demanda por um Direito
especializado para atender a comunidade internacional, e, em especial, aos Estados
e aos blocos econômicos regionais, que é o Direito de Integração.
Segundo Soares,
Consubstanciado em tratados comunitários, esse novo Direito sobre
os Estados recebeu a denominação de Comunitário ou de
Integração. Surgiu em área limitada da sociedade internacional e
dentro de certas circunstâncias históricas, erigindo novos conceitos
jurídicos, em conformidade com as complexas sociedades modernas
(SOARES, 1999, p. 12).
Desse modo, o direito da integração regional, revelado pelas normas de
natureza comunitária, ganha relevo e importância como instrumento norteador e
regulamentador das novas relações entre os Estados, que se unem no campo
político, econômico, social e cultural com objetivos comuns de desenvolvimento
individual e, principalmente, coletivo, flexibilizando o clássico conceito de soberania
do Estado.
Esse direito, o Direito de Integração ou Comunitário, é especializado em face
do Direito Internacional, e trata a soberania em outra dimensão política. Vejamos.
2.DESENVOLVIMENTO DO TEMA.
A soberania, qualidade do poder que recai sobre todos, aparece com o
surgimento do Estado Absoluto, segundo ensina Dallari em obra clássica de Teoria
do Estado (DALLARI, 2007).
Este poder surge sem limites, oposto tanto internamente quanto externamente
ao território do Estado, quer seja na tutela dos súditos quer seja no relacionamento
entre os Estados que não devem obediência entre si.
Para Bodin, soberania era o “poder absoluto e perpétuo de uma República,
palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que
manipulam todos os negócios de estado de uma República” (BODIN, 2012, p. 96).
Assim, este mesmo autor entendia a soberania como um poder ilimitado pelo
humano, e legitimamente utilizado pelo soberano para cuidar da coisa pública
conforme as convicções e desejos de um ou alguns em detrimento dos interesses do
povo (transportado para o soberano).
Nesse contexto, a soberania autorizava o Estado a fazer tudo o que, em dado
momento, entendia ser necessário para o bom funcionamento do Estado e da
sociedade, sem contestação de quem quer que fosse.
Para Hobbes, soberania era uma delegação de autoridade ou poder de um
homem a outro homem ou Conselho, sendo que
Os limites desse poder que os representantes políticos do Estado
têm se dá por duas formas. A primeira, para os subordinados,
através de procuração recebida do soberano; a segunda através da
lei do Estado. Para que o representante do Estado soberano exerça
a sua autoridade, não há necessidade de procuração, porque o
poder não tem outros limites senão na lei da natureza; ao contrário,
para que o subordinado realize atos negociais, há limites e a sua
autoridade decorre da procuração que tem, como representante do
soberano.
Mas como nem sempre é fácil ou às vezes possível estabelecer
esses limites na procuração, as leis ordinárias, comuns a todos os
súditos, deve determinar o que os representantes podem legalmente
fazer em todos os casos, quando a procuração nada dispõe a
respeito (HOBBES, 1992, p. 184-185, tradução nossa).66
66
Cf. Texto original: “Los limites de este poder que se da al representante de um cuerpo político se
advierten em dos cosas. La una está constituída por los escritos o cartas que tienen de sus
soberanos; la outra es laleydel Estado. Enefecto, aunque em lainstitución o adquisición de um Estado
que es independiente, no haynecesidad de escritura, porque el poder del representante no tieneotros
limites sino lós estabelecidos por laley, no escrita, de lanaturaleza, em cambio, em loscuerpos
Nessa linha de reflexão, a delegação de poder conferia ao soberano o poder
de governar segundo as leis por ele criadas em representação aos interesses do
povo.
Essas leis, criadas pelo Estado no desempenho ou exercício de sua
soberania qualificava e legitimava o poder estatal, poder este que se tornava
incontestável aos olhos dos súditos.
Para Locke, a soberania consiste em uma alteração no estado das coisas,
uma passagem do estado natural para o estado social, sendo que
Para compreendermos corretamente o poder político e liga-lo à sua
origem, devemos levar em conta o estado natural em que os homens
se encontram, sendo este um estado de total liberdade para ordenarlhes o agir e regular-lhes a lei da natureza, sem pedir permissão ou
depender da vontade de qualquer outro homem.
Estado também de igualdade, no qual qualquer poder e jurisdição
são recíprocos, e ninguém tem mais do que qualquer outro; nada há,
pois, de mais evidente que criaturas da mesma espécie e da mesma
ordem, todas aquinhoadas aleatoriamente com as mesmas
faculdades, terão também de ser iguais uma às outras sem
subordinação ou sujeição; a menos que o senhor de todas, através
de uma declaração explícita de sua vontade, dispusesse uma mais
alta que a outra, conferindo-lhe, por indicação evidente e clara,
direito indiscutível ao domínio e à soberania (LOCKE, 2002, p. 23).
Desse modo, a soberania cumpria o papel de pacificação da sociedade civil.
O Estado, então, tutelava os homens tornando-os iguais em direitos e deveres
e subordinados ao poder estatal e não mais ao direito natural, agindo a soberania
como instrumento de poder que organizava a sociedade nas melhores práticas
sociais, em espírito coletivo diferente do natural estado das coisas e dos homens.
Tratando da mesma matéria, Montesquieu entendia que soberania implica em
organização da vida em sociedade, já que “Considerados como membros de uma
sociedade que deve ser mantida, existem leis na relação entre aqueles que
subordinados precisan diversas limitaciones, respecto a sus negócios, tiempos y lugares, que no
pueden ser recordadas sin cartas, ni ser tenidas em cuenta a menos que tales cartas sean exibidas,
para que puedan ser leídas, y por añadiduraselladas o testificadas conotros signos permanentes de
La autoridad soberana.
Y como no siemprees fácil, o a vecesposible estabelecer em lãs cartas esaslimitaciones, lãs leyes
ordinárias, comunes a todos los súditos, deben determinar lo que los representantes puedenhacer
legalmente en todos los casos em que lãs cartas misnasnad a dicen” (HOBBES, 1992, p. 184-185).
governam
e
aqueles
que
são
governados;
é
o
DIREITO
POLÍTICO”
(MONTESQUIEU, 1996, p. 15).
Assim, mais do que um direito natural, a soberania era um direito político
exercido pelo soberano para a organização da vida dos homens em sociedade.
Este poder político, assim, representava o poder do Estado na forma e para
fins coletivos, e se sobrepunha ao individual que é próprio dos interesses humanos.
Para Rousseau, a soberania
(...) sendo apenas o exercício da vontade geral, nunca pode alienarse, e que o soberano, não passando de um ser coletivo, só pode ser
representado por si mesmo; pode transmitir-se o poder – não, porém,
a vontade [...]
Pela mesma razão por que é inalienável, a soberania é indivisível,
visto que a vontade ou é geral ou não o é; ou é a do corpo do povo,
ou unicamente de uma parte. No primeiro caso, essa vontade
declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de
uma vontade particular ou de um ato de magistratura; é, quando
muito, um decreto (ROUSSEAU, 1989, p. 34-35).
Nessa quadra, soberania representava o poder de legislar, de judiciar e de
governar segundo a vontade da sociedade, vontade esta delegada ao soberano para
atuar em nome daquela.
Por tudo, para os autores clássicos de Teoria do Estado tem-se que
soberania resulta do contrato social celebrado entre os súditos e o Estado, em que
aqueles, abrindo mão de parcela de sua autonomia privada (natural ou civil), delega
ao Estado o poder-dever de organizar a sociedade, criando leis, julgando ou
governando em toda a área territorial do Estado.
Originariamente de índole política, a soberania, com o passar do tempo e a
evolução da sociedade, ganha índole jurídica.
Assim, a soberania passa a apresentar duas facetas marcantes: uma interna
e outra externa ou internacional. A interna diz respeito ao exercício do poder do
Estado dentro de seu território. A externa ou internacional implica no respeito que o
Estado deve ter com o outro Estado, quer seja limítrofe ou não, pois ambos
possuem e exercem o poder soberano em situação de igualdade em suas relações
políticas, econômicas, militares, sociais e culturais.
Para tratar desta igualdade entre os Estados surge, então, o Direito
Internacional, como ponto de equilíbrio entre a dicotomia soberania interna e
soberania externa ou internacional, e “cujo objeto é, precisamente o de organizar a
necessária interdependência embora preservando sua independência” (PELLET;
DAILLIER; DINH; 2005, p. 41), quando um ou mais Estados se relacionam perante a
comunidade internacional.
Essa comunidade internacional67 também é regida por leis68, retratadas em
Tratados Internacionais celebrados pelos Estados no exercício de sua soberania,
com a expressão do Direito Internacional.
Ocorre que com a organização do Estado Absoluto (Nacional) o conceito de
soberania se firmou, e com o Direito Internacional na era pós Westfália, responsável
por configurar um novo desenho geopolítico para a Europa e uma nova organização
política e territorial dos Estados Europeus, o conceito de soberania ganhou
flexibilidade, posto que o Direito Internacional é o resultado da produção de normas
por Estados soberanos juridicamente iguais, normas estas que assumiram cumprir.
Nesse contexto, o Estado não pode mais invocar o clássico conceito de
soberania para recusar-se ou omitir-se no cumprimento das normas estabelecidas
em Tratados e Protocolos Internacionais, pois isso resultaria em clara violação do
Direito Internacional e na volta às origens, em que a soberania e o seu exercício
desconsiderava por completo a existência de uma comunidade internacional e de
um Direito Internacional voltado para os Estados e para a comunidade69.
Assim, se a norma internacional surge da manifestação do Estado no
desempenho e exercício da soberania (consentimento), portanto, da mais alta
expressão da vontade estatal, é a própria vontade do Estado, alicerçada no seu ato
soberano, o instrumento legitimador do Direito Internacional que o Estado deve
observar e fazer cumprir fielmente em seu território.
67
Para um maior aprofundamento da discussão sobre as concepções que fundamentam a
comunidade internacional, confira obra de SILVA (SILVA, 2002, p. 13-14).
68
Para Montesquieu, “Cada sociedade particular começa a sentir sua força; o que produz um estado
de guerra de nação a nação. Os particulares, em cada sociedade, começam a sentir sua força;
procuram colocar a seu favor as principais vantagens desta sociedade; o que seria um estado de
guerra. Estes dois tipos de estado de guerra fazem com que se estabeleçam leis entre os homens.
Considerados como habitantes de um planeta tão grande, a ponto de ser necessária a existência de
diferentes povos, existem leis na relação que estes povos possuem entre si; é o DIREITO DAS
GENTES” (MONTESQUIEU, 1996. p. 15).
69
Para o aprofundamento da discussão, confira obra de Ekmekdjian (EKMEKDJIAN, 1994).
Por sua vez, o mundo sofreu mudanças significativas nas últimas décadas,
principalmente após o pós-guerra de 1945 em que o sistema capitalista se
remodelou e os Estados passaram a estabelecer variadas relações entre eles, no
campo político, econômico, social, cultural, dentre outros, com absoluto avanço do
Direito Internacional para o tratamento e a pacificação desta ordem de coisas, e o
aumento dos sujeitos da comunidade internacional que no início se restringiam
basicamente aos Estados.
Readaptado o conceito de soberania, surge a ideia e os primeiros
movimentos para a integração, em que Estados se juntam política, econômica e
juridicamente em comunidade ou organização supraestatal, criando direito novo, o
Direito de Integração em face do tradicional Direito Internacional.
Segundo Soares,
Essa integração se desenvolveu durante a década de 50 com a
criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço – CECA
(Tratado de Paris – 18/4/51) na Europa Ocidental, através dos
Estados-partes da França, Alemanha Federal, Itália, Bélgica,
Holanda e Luxemburgo, objetivando manter mercado comum para o
carvão, minério de ferro e aço, com harmonização de preços e
transporte dos referidos produtos (SOARES, 1999, p. 27).
Nesse mesmo sentido, Ribeiro leciona o seguinte:
Os processos integracionistas começaram a despontar no cenário
internacional, nomeadamente, após a Segunda Guerra Mundial,
inserindo-se no conflito entre o protecionismo e o liberalismo
comercial, inerente às nações mais avançadas.
Posteriormente, com o fim da Guerra Fria, a abertura da Europa e o
triunfo americano na Guerra do Golfo, começou a ser desenhada
uma geografia, surgindo novas modalidades entre o equilíbrio
regional e o universal. O mundo tornou-se mais aberto, onde forças
centrífugas e centrípetas atuam simultaneamente. O sistema
internacional
passou
de
“bipolar”
para
“multipolar”,
consequentemente, facilitando os processos de integração que foram
surgindo.
Dentro desse novo contexto, a América Latina é um bom exemplo de
que a multipolaridade facilitou e aproximou as relações entre os
Estados, chegando até à concretização da formação dos atuais
blocos regionais (RIBEIRO, 2001, p. 161).
Como se pode constatar, na Europa esse é o marco de uma estratégia
econômica voltada para o enfrentamento de questões econômicas mundiais, e uma
forma de contrabalancear a supremacia dos EUA como Estado hegemônico e
superpotência econômica e militar com o fim da 2ª guerra mundial.
Essa nova era, também, modificou consideravelmente o fluxo de bens,
capitais e pessoas por todo o mundo, resultando no conhecido fenômeno da
globalização.
De fato, objetivando vencer os problemas do capitalismo a globalização
encarna um novo discurso, o neoliberal, de abertura total e irrestrita de mercados,
como elemento importante para o desenvolvimento econômico mundial.
Assim, a globalização, cujo foco é o mercado livre, altera o processo de
criação de leis (individualizado) e a política clássica tratada pelos Estados, para um
processo de criação de lei (comuns) de interesses coletivos, sobretudo econômicos
e financeiros entre os Estados, com concepção política de cunho universal, tendo
contribuído e impulsionado os processos de integração dos Estados em blocos
econômicos regionais por todo o mundo.
Para Clark,
Nos últimos dez anos do século XX, sonhar ou discutir sobre a
intervenção do Estado no domínio econômico tem sido praticamente
uma heresia no mundo ocidental. O modelo de economia de
mercado saiu vencedor, e o importante foi e ainda é a globalização e
a formação dos blocos econômicos para possibilitar a integração
econômica das nações, a fim de viabilizar a livre circulação de bens,
serviços, pessoas e capitais. A intervenção é imprestável à nova
realidade (CLARK, 2001, p. 15).
Fenômeno real, a globalização dinamizou por completo as relações entre os
Estados soberanos, vindo a criar efeitos políticos, econômicos, sociais e culturais (a
exemplos), positivos e negativos, que são sentidos por todos os Estados no mundo
e que não são controlados diretamente por um único Estado.
Se antes, na formação do modelo de Estado-Nação, havia por parte do
Estado o exercício de um poder ilimitado em seu território, e poucas negociações
com outros Estados, quase sempre por razões de defesa, agora o poder encontra-se
limitado internamente e as relações entre os Estados se intensificaram, a ponto de
criar-se uma interdependência entre eles.
Assim, um compromisso assumido internacionalmente pelo Estado, por
exemplo, no campo dos Direitos Humanos via Tratados e Protocolos Internacionais,
vincula o modus operandi do Estado quando da criação de sua lei interna, o seu
sistema de Justiça e a sua forma de administração.
Na mesma esteira, um acontecimento político, econômico, social, cultural e
bélico (dentre outros), ocorrido em alguma parte do mundo, como, por exemplo, o
resultado de uma eleição presidencial em um Estado importante (economicamente)
do mundo, uma insurgência ou guerra civil, um desastre natural ou provocado pelo
homem, uma guerra entre Estados, provoca substanciais alterações em um país que
se vê obrigado a criar ou modificar a sua lei interna, o proceder de suas instituições,
e estabelecer ou fortificar as suas relações com outros Estados como forma de
autoproteção.
Nesse cenário, em versão moderna e aprimorada do Direito Internacional
clássico o Direito da Integração ganha maior espaço jurídico e se intensifica, visando
organizar e pacificar os interesses e as necessidades dos Estados frente à
globalização, e buscando superar coletivamente as adversidades que os Estados
enfrentam.
O Direito da Integração, então, constitui-se no desdobramento do Direito
Internacional (LIQUIDATO, 2006). É ramo novo do Direito (DROMI; EKMEKDJIAN;
RIVERA; 1995), responsável pela forma de regulação e integração da comunidade
internacional.
Para Soares, este Direito de Integração“é o ramo do direito, cujo objeto é o
estudo dos tratados comunitários, a evolução jurídica resultante de sua
regulamentação e a interpretação jurisprudencial das cláusulas estabelecidas nos
referidos tratados” (SOARES, 1999, p. 48).
Segundo Silva (2002, p. 347), a integração é um processo utilizado pelos
Estados para o rompimento em definitivo das barreiras então existentes entre eles,
quer seja na política, na economia, na cultura, dentre outros, e este processo se
concretiza com a flexibilização da soberania que permite a livre circulação de bens,
capitais e pessoas em dada região do mundo, ou por todo o mundo globalizado.
Como dito, após a 2ª Guerra Mundial o modelo de integração ganhou força e
tem sido aplicado, ora em maior escala ora em menor escala, como se vê das
experiências da Europa com a UE, da América do Norte com o Tratado NorteAmericano de Livre Comércio – NAFTA, da América Latina com a Associação
Latino-Americana de Livre Comércio – ALALC, e da América do Sul com a União
das Nações Sul-Americanas – UNASUL (e que agrega duas Uniões Regionais que
são o MERCOSUL e a Comunidade Andina – CAN).
Então, relativizado o conceito clássico de soberania para adaptá-lo à
realidade atual, admitida a delegação de competências soberanas e a evolução do
Direito Internacional, compete ao Direito novo, o Direito de Integração, construir as
bases legais para o enfrentamento do fenômeno da globalização, já que, segundo
Soares,
Há uma tendência irreversível de dissolução da soberania do Estado
nacional em favor de instituições supranacionais, que pode assinalar
o começo de uma nova ordem mundial universalista contra o
horizonte de uma esfera pública mundialmente emergente. Assim, os
fenômenos da globalização, com a diluição do conceito de soberania
em favor de instituições supranacionais, acoplados aos inerentes
problemas de interdependência e modificações nas formas de
direção e controle dos regimes políticos e sistemas econômicos,
conduzem a questão de saber como se devem estruturar deveres e
obrigações para lá dos confins do Estado territorial (SOARES, 2006,
p. 59).
Com o Direito de Integração há uma nova ordem mundial, organizada pelos
organismos de caráter supraestatal, com a responsabilidade da criação e aplicação
de normas de cunho comunitário superiores, pela supralegalidade, às normas
internas produzidas e cumpridas pelos Estados e seus nacionais em seu território.
Em mundo globalizado, a integração é necessária para que os Estados
possam cumprir os seus propósitos políticos, econômicos, sociais e culturais.
Os países do Cone Sul não estão fora desta realidade.
Nesse contexto, o debate deve ser travado segundo a seguinte premissa
estabelecida por Almeida:
O que, sim, deve ser considerado na aferição qualitativa de um
empreendimento tendencialmente supranacional como é o caso do
MERCOSUL é em que medida uma renúncia parcial e crescente à
soberania por parte dos Estados Partes acrescentaria “valor” ao
edifício integracionista e, por via dele, ao bem-estar dos povos
integrantes do processo, isto é, como e sob quais condições
especificamente uma cessão consentida de soberania contribuiria
substantivamente para lograr índices mais elevados de
desenvolvimento econômico e social (ALMEIDA, 1998, p. 76-77).
É chegada a hora dos Estados-membros do MERCOSUL superarem as suas
divergências políticas e econômicas para viabilizar por completo a integração,
cumprindo fielmente os compromissos assumidos quando da assinatura do Tratado
de Assunção e do Protocolo de Ouro Preto (especialmente), sob pena de perderem
as vantagens que o bloco regional mercosulino propicia aos Estados-membros
quando negociam duramente na comunidade internacional com outros Estados e
com outros blocos econômicos regionais.70
Afinal, os desacordos entre os países do bloco regional mercosulino não são
em grau tão elevado que inviabilize a plena implementação dos Tratados e
Protocolos do MERCOSUL ou o diálogo institucional entre os Estados-membros,
sendo que os ganhos políticos, econômicos, sociais e culturais que todos têm já são
sentidos e podem ser significativamente ampliados com a integração.
Ademais, o MERCOSUL já apresenta estrutura política e jurídica organizada,
e seus órgãos internos com poder normativo encontram-se preparados para produzir
o Direito de Integração que atenda aos interesses individuais dos Estados-membros
e os objetivos da comunidade, forte o suficiente para executar os procedimentos que
ainda faltam ser concluídos no processo de integração, elevando o bloco regional
mercosulino a uma maior estatura política e econômica perante a comunidade
internacional.
Com efeito, o MERCOSULpossui personalidade jurídica através doart. 3471 do
Protocolo de Ouro Preto, o que lhe permite atuar no Direito Internacional com
representação própria e autônoma em relação à personalidade dos Estadosmembros que o compõe.
Por outro lado, os Tratados e Protocolos do MERCOSUL, de Direito
Internacional e de Direito de Integração, já definiram o processo de integração do
bloco regional mercosulino.
Por fim, há um Direito de Integração ou Comunitário sendo aplicado no
MERCOSUL, quer seja o criado pelos Estados-membros do bloco regional
mercosulino quer seja o criado pelos órgãos com poder normativo do MERCOSUL,
70
Esta questão é importante quando se discute integração regional. Para Sangmeister, em
advertência, “quase todos os acordos de integração regional formados na América Latina enfrentam
problemas sérios derivados do não-cumprimento de seus objetivos principais. Esses problemas são o
resultado de deficiências institucionais e conseqüência da instabilidade macroeconômica que atinge
os países membros. Além disso, uma intensificação das relações econômicas entre os países latinoamericanos se vê limitada por barreiras tarifárias e centenas de barreiras para-tributárias ainda em
vigor, por estruturas não complementares de produção e pelo atraso tecnológico da região. Além
disso, falta uma infra-estrutura eficiente que é uma das condições necessárias para um avanço
substancial da integração econômica além das fronteiras de territórios nacionais” (SANGMEISTER,
2007. p. 54).
71
“CAPÍTULO II. Personalidade Jurídica. Artigo 34. O Mercosul terá personalidade jurídica de Direito
Internacional.” Cf. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1901.htm>. Acesso
em: 31 dez. 2014.
como é o caso do Conselho do Mercado Comum – CMC e do Grupo do Mercado
Comum - GMC.
O CMC e o GMC, inclusive, pelas Decisões nº 01/92, 25/94, 26/03, 54/04,
25/06 e 24/10 (especialmente), e pela Resolução nº 40/06, instituíram o Código
Aduaneiro do MERCOSUL72, que versa sobre a harmonização da legislação fiscal
entre os Estados-membros do bloco regional mercosulino, dentro da comunidade,
buscando eliminar a bitributação que constitui um dos grandes problemas de uma
integração regional.
Com o Código Aduaneiro do MERCOSUL, autêntica norma de Direito de
Integração ou Comunitário Tributário porque derivado do Direito de Integração e dos
órgãos com poder normativo do MERCOSUL, tem-se uma legislação tributária
comum para os Estados e a comunidade, o que permite os avanços necessários no
processo de integração do bloco regional mercosulino e a sua consequente
consolidação.
Como o Código Aduaneiro do MERCOSUL tem no Direito Internacional e,
especialmente, no Direito de Integração ou Comunitário do bloco regional
mercosulino a sua fonte de legitimidade, e as legislações locais dos Estadosmembros do MERCOSUL, na mesma área tributária, serão aplicadas supletivamente
conforme prescrito no texto do Código, há supremacia da norma comunitária (do
Direito de Integração ou Comunitário) em relação ao Direito Interno dos Estadosmembros do bloco regional mercosulino, o que atesta a importância deste ramo do
Direito no processo de integração regional, inclusive do MERCOSUL.
3.CONCLUSÃO
O tempo atual não comporta mais a clássica compreensão de soberania e
sua prática, isso porque o fenômeno da globalização, em que se tem a abertura de
mercados dos Estados e a livre circulação de bens, capitais e pessoas no mundo,
conduziu todos a uma dada interdependência no cenário mundial.
72
Cf. Disponível em: <http://www.mercosur.int/innovaportal/v/2376/1/secretaria/decisiones_2010>.
Acesso em: 31 dez. 2014.
Com esta nova realidade, a soberania resta flexibilizada para que o processo
de integração entre os Estados ganhe força e forma, servindo de elemento
agregador dos interesses coletivos e individuais dos Estados, e de instrumento de
posicionamento dos Estados nas rodadas de negociação com outros Estados ou
blocos econômicos regionais já criados nas mais diversas áreas da política e da
economia.
Na integração, ganha força e importância o Direito Internacional, e, sobretudo,
o Direito de Integração ou Comunitário, que representa um aprimoramento e uma
forma especial de tratar o Direito Internacional, constituindo-se novo Direito.
Nesse aspecto, maior é a importância desse Direito de Integração ou
Comunitário, pois reflete um projeto coletivo de integração, e que conta com o
consentimento de todos os Estados, consentimento este derivado da soberania
exercida pelos próprios Estados-membros do bloco econômico regional quando de
sua constituição.
Ademais, esse direito é mais estável política e juridicamente, pois que a sua
formação, alteração e extinção não pode ser feito pelo Estado individualmente, já
que a norma é comunitária, e este fator é relevante para a comunidade internacional
e para os sujeitos de Direito Internacional que, no mundo globalizado, buscam
preferencialmente entabular relações políticas, econômicas, militares, sociais e
culturais com Estados e regiões econômica e juridicamente previsíveis e seguras.
Na literatura jurídica vê-se que os Estados apresentam várias reservas e
grandes preocupações quando celebram Tratados e Protocolos de Direito
Internacional, e isso decorre porque bancam resistências à mitigação de suas
soberanias à luz do clássico conceito de Bodin.
Entretanto, por ser justamente especializado, o Direito de Integração ou
Comunitário se revela responsável por buscar retirar, nas relações entre os Estados,
os maiores entraves relativo às liberdades comunitárias, ou seja, quanto ao livre
movimento de pessoas, bens e serviços, propiciando investimentos externos e
internos e a colaboração, com implicações positivas no saldo de balanços dos
Estados e na consecução de suas políticas econômicas, sociais e culturais dentro do
bloco econômico regional, em uma nova forma de tratar a soberania do Estado.
A existência de um Direito de Integração ou Comunitáriopermite a
consolidação de blocos econômicos regionais, com repercussões positivas nas
obrigações legais dos Estados e em suas políticas econômicas, sociais e culturais,
com o estreitamento das relações políticas e econômicas entre eles.
O Direito de Integração ou Comunitário, ainda, por ser comum aos Estados e
possibilitar maior segurança jurídica e previsibilidade na comunidade, é capaz de
atrair fluxo de capital produtivo para o investimento externo direto nos Estados e na
comunidade, importante para o crescimento econômico e para o desenvolvimento
econômico e social dos Estados e do bloco econômico regional, na medida em que
oferece ao investidor (público ou privado) maior mercado e segurança jurídica.
Com efeito, Tratadose Protocolos Internacionais devem ser os instrumentos
de pacificação desta ordem de coisas, e devem tratar com vigor de um Direito de
Integração ou Comunitário que deve ser agregado ao Direito Interno de cada país ou
ser observado sem necessidade de internalização, para o adequado enfrentamento
da globalização, ou da internacionalização das economias, consolidando os blocos
econômicos regionais já existentes e suas políticas econômicas, sociais e culturais
constitucionalizadas.
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de Ouro Preto), de 17 de dezembro de 1994. Diário Oficial da União. Brasília, 09
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DEMOCRACIA PARTICIPATIVA EFETIVA E REFORMA POLÍTICA:
Aspectos e Divagações sob uma ótica Constitucionalista
Tiago Henrique Torres73
Sumário:1. Introdução; 2.Democracia: o que é na prática?;3.
Povo: este desconhecido na Democracia; 4. Estado de Direito
Democrático e as Concepções Democráticas de Processo:
Participação popular efetiva na construção dos Provimentos
Estatais; 5. Reforma Política: Necessidade ou Adequação? – 6.
Conclusão; 7. Referências
1. Introdução
A Democracia é uma forma de Governo, ou ideal, que pressupõe a
participação intensa da população na condução do Estado, de forma a guiar todas
as suas ações em prol dos interesses da coletividade. Considerando-se, é claro, um
aspecto prático do termo.
Contudo, o passar dos anos, desde a instituição de tal forma de
organização governamental no Brasil, não nos mostra uma experiência prática tão
rica como demonstra na teoria. A Democracia, em muitas situações, é um ideal na
acepção mais romântica do termo, já que em não raras vezes é posta de lado em
detrimento de interesses diversos do que se destina.
A Democracia dá ao cidadão a possibilidade de controlar o seu país,
através de suas próprias decisões. Porém, se mal utilizada, é ferramenta certa nas
mãos erradas, gerando efeito totalmente diverso.
Contrariamente ao que se pensa, não se exerce Democracia mediante
apenas o sufrágio universal, ou o direito ao voto, mas em toda e qualquer decisão a
que seja o Estado forçado a tomar. A Democracia não é apenas forma de Governo,
mas também é forma de legitimação das decisões tomadas pelos representantes do
cidadão que regem o Estado.
73
Bacharel em Direito pela Fundação Pedro Leopoldo; Pós Graduado em Direito Processual Civil
pela Universidade FUMEC. Advogado.
Estas e outras questões poderão ser abordadas neste pequeno ensaio
sobre a Reforma Política e a Democracia, aspectos que se encontram em constante
conjugação na atualidade em razão da sempre odiosa corrupção, sobretudo no
campo da política.
Porém, ao observarmos nossa complexa estrutura de normas e sistemas,
seria realmente interessante uma completa reforma política? É preciso se pensar um
pouco mais a fundo nessas questões, pois é uma decisão praticamente sem volta,
com o risco de exposição da própria Ordem Constitucional.
Sem objetivo de esgotar o tema, mas com intuito de demonstrar que a
Democracia tem um sentido muito mais amplo do que se espera e se vislumbra num
primeiro olhar. Em outras palavras, o Governo do Povo vai muito além da mera
escolha de representantes, mas da participação estrita no rumo das decisões de um
país.
2.Democracia: o que é na prática?
Etimologicamente, a palavra Democracia tem como significado a tão
falada expressão “Governo do Povo”, ou seja, a possibilidade de toda população
exercer a sua vontade em prol da condução do Estado, no sentido lato, em que
estaríamos falando do exercício de governança em todas as esferas do Poder.
Dentro o ideal de Democracia, já traçava de forma explicativa o jurista e
dicionarista De Plácido e Silva (1999, p. 249), ao descrever as formas de
manifestação desta que é, senão a mais complexa, uma das mais complexas formas
de Governar:
Nas grandes democracias ocidentais o poder do povo se expressa
no voto direto, através do qual o s cidadãos elegem os
representantes dos poderes Legislativo e Executivo para defender os
seus interesses e através da decisão do próprio titular do poder
através do plebiscito, referendo e outros meios.
Apenas deste pequeno trecho, conseguimos extrair que a palavra
Democracia, de aparente simples significado, é na verdade uma expressão
totalmente polissêmica, já que as suas formas de exercício apresentam uma vasta
gama de entendimentos. O entendimento de que Democracia se resume apenas na
forma concreta do cidadão de se fazer representar por agentes políticos já é há
muito superado, já que esta mera representatividade não traduz efetivamente o gozo
plano dos direitos inerentes ao caráter de cidadão.
Dentro deste raciocínio, trabalha o constitucionalista mineiro Bernardo
Gonçalves Fernandes (2013, p.291), ao explicitar o caráter polissêmico do vocábulo
Democracia:
Fato que democracia hoje não se dá apenas pela possibilidade de
escolha dos atores políticos, mas inclui ainda uma proteção
constitucional que afirma: a superioridade da Constituição; a
existência de direitos fundamentais; da legalidade das ações
estatais; um sistema de garantias jurídicas e processuais. (grifos
do autor)
O autor incita como fundamentos do arcabouço construído pelo
significado de Democracia, além da possibilidade de exercer a representatividade,
as garantias fundamentais constitucionais e processuais, além da legitimação das
decisões do Estado na própria Lei, sobretudo na Constituição Federal de 1988, que
é amparo para todas as demais Leis. Esta visão “macro” da Democracia é que
garante a própria existência deste instituto, tendo em vista que simplesmente rotulála como mera forma de Governo em que a vontade do povo se manifesta, se
configura em uma tentativa de ocultar a própria efetividade da participação nas
decisões tomadas pelo Estado.
Esta efetividade, ou concretude de participação pelo cidadão, é o ideal
que realmente deve ser perseguido para que se possa vislumbrar existência efetiva
de Democracia, pois a prática nos demonstra que há muito por se caminhar até que
ela seja realmente uma forma de Governo participativa.
O próprio texto Constitucional de 1988 traz em seu bojo uma série de
princípios e normas que têm como escopo garantir esta efetividade do ideal
democrático. Além das questões técnicas atreladas à representatividade, a
Constituição vem resguardar direitos subjetivos ao cidadão, no intuito de que fazer
com que o Governo do Povo realmente faça o cidadão se sentir parte dele.
Interessante, neste momento, a conclusão a que chega Bernardo
Gonçalves Fernandes (2013, p. 292):
Fato é que a Constituição de 1988 conseguiu articular tanto o plano
de democracia direta quanto da indireta, criando uma figura
semidireta de cunho participativo. Assim, além da possibilidade de
eleição dos representantes políticos, o texto constitucional contempla
as modalidades de plebiscito (art. 14, I), referendum (art. 14, II) e a
iniciativa legislativa popular (art. 14, III, regulada pelo art. 61, §2º). O
propósito aqui é criar condições para desenvolvimento de uma
cidadania plena e inclusiva, com livre exercício das liberdades
públicas. (grifo do autor)
Em mesmo sentido, concretizando o raciocínio supracitado, Cláudio
Pereira Souza Neto (2010, p. 3-4) descreve a chamada “Democracia Deliberativa”,
que visa justamente apregoar uma forma de escapar da engessada concepção de
mera representatividade do conceito inaugural de Democracia:
(...)Em oposição a essas teorias agregativas e elitistas, a
democracia deliberativa repousa na compreensão de que o
processo democrático não pode restringir à prerrogativa popular de
eleger representantes. A experiência histórica demonstra que, assim
concebida, pode ser amesquinhada e manipulada. A democracia
deve envolver, além da escolha de representantes, também a
possibilidade de se deliberar publicamente sobre as questões a
serem decididas. A troca de argumentos e contra-argumentos
racionaliza e legitima a gestão da res publica. Se determinada
proposta política logra superar a crítica formulada pelos demais
participantes da deliberação, pode ser considerada, pelo menos
prima facie, como legítima e racional. Mas para que essa função se
realize, a deliberação deve se dar em com contexto aberto, livre e
igualitário. Todos devem participar. (...) (grifos do autor)
O exercício da Democracia em sua plenitude, depende deste espírito
participativo do povo, já que, como dito inicialmente, nada mais estamos falando do
que o “Governo do Povo”. Mas este povo que “governa” não sabe exatamente que
há em suas mãos um poder maior do que o de voto, dentro da Democracia. Afinal de
contas, Democracia é, em fim último, o próprio povo, ou as vontades deste em
consenso.
3.Povo: este desconhecido na Democracia
Como já repisado, a Democracia é o “Governo do Povo”, fato
praticamente notório, afirmado em doutrinas, discursos políticos, teses, e também na
boca do próprio povo, que em muitas situações vangloria esta posição de “controle”
das situações através de seu poder de escolha. Mas, também como já dito, e
devidamente respaldado na opinião de grandes juristas que, o mero exercício de
representatividade não é garantia de exercício pleno de Democracia, mas sim uma
forma de manutenção de uma ou outra classe política, já que o povo é facilmente
dominado por ofertas que fogem, muitas vezes, dos próprios padrões da ética.
A posição do povo dentro da Democracia atual é a de mero instrumento
de concretização de ideais políticos, já que é intermédio para o preenchimento de
cargos eletivos, mediante o voto. Trata-se de uma concepção um tanto quanto
deturpada da própria doutrina de Hans Kelsen (2000, p. 334), que coloca o povo em
um patamar muito superior ao atualmente vislumbrado:
Um segundo “elemento” do Estado, é o povo, isto é, os seres
humanos que residem dentro do território do Estado. Eles são
considerados uma unidade. Assim como o Estado tem apenas um
território, ele tem apenas um povo, e, como a unidade do território é
jurídica e não natural, assim o é a unidade do povo. Ele é constituído
pela unidade da ordem jurídica válida para os indivíduos cuja
conduta é regulamentada pela ordem jurídica nacional, ou seja, é a
esfera pessoal de validade dessa ordem.
O insigne doutrinador demonstra de forma clara a importância do povo na
própria constituição do Estado, e, consequentemente, para a própria Democracia,
enquanto Governo por ele exercido. Exemplo claro desta concepção é o art. 1º,
parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, ao estatuir que “todo poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição”.
Que o poder pode ser exercido mediante representantes, todos sabemos,
mas nem todos sabem que o povo tem a possibilidade de exercê-lo através de seu
próprio agir, conforme prescrição constitucional. Porém, não basta que a dita “Carta
Democrática” de 1988 conceda ao povo o poder direto, sendo que ele não sabe
exatamente como utilizá-lo.
Neste prisma, importantíssima a crítica feita por Friedrich Muller (2011, p.
46), ferrenho defensor da Democracia:
Nem a todos os cidadãos é permitido votar. Nem todos os eleitores
votam efetivamente. E por meio de quê deve legitimar a minoria,
sempre vencida pelo voto da maioria nas eleições e em posteriores
atos legislativos? E que “povo” – se esconde atrás dos efeitos
informais sobre a formação da opinião pública e da vontade política
“do povo” – efeitos que por exemplo as pesquisas de opinião ou
todas as atividades individuais e sobretudo as atividades associativas
e corporativas podem produzir na política?
Conforme narrado, o povo não sabe exatamente o seu lugar dentro da
Democracia. E, até mesmo vislumbrando um ponto de vista mais sociológico, o
povo, como um todo, nem sempre quer saber o seu lugar dentro da Democracia,
mas sim retirar dela a sua chance de uma vida mais digna e próspera, já que é
dever do Estado lhe garantir este substrato mínimo para sobrevivência. Como bem
retrata MULLER (2011, p. 51), “o povo atua como sujeito de dominação”.
No entanto, o agir proativo do povo garante a própria legitimação da
atividade estatal, já que, inserido em uma Democracia, deve tomara para si a
responsabilidade de condução do Estado. Tal agir proativo não é configurado
meramente pela possibilidade de eleger representantes, mas sim de buscar a
guarida constitucional e fazer com que ela seja respeitada, já que é a própria
vontade popular em texto legislativo. Novamente buscamos amparo na brilhante
doutrina de MULLER (2011, p.55-56).
O povo não é apenas – de forma indireta – a fonte ativa da instituição
de normas por meio de eleições bem como – de forma direta - por
meio de referendos legislativos; ele é de qualquer modo o
destinatário das prescrições, em conexão como deveres, direitos e
funções de proteção. E ele justifica esse ordenamento jurídico num
sentido mais amplo como ordenamento democrático, à medida que o
aceita globalmente, não se revoltando contra o mesmo. Nesse
sentido ampliado, vale o argumento também para os não eleitores, e
igualmente para os eleitores vencidos pelo voto (tocante ao direito
eleitoral fundamentado no princípio da maioria) ou para aqueles cujo
voto foi vitimado por uma cláusula limitadora. Além disso uns
conservam o direito de ir à eleição na ocasião vindoura; e os outros
continuam tendo a chance de combater então talvez “ao lado das
tropas mais fortes”.
Povo não é meramente um conjunto de pessoas, ou uma denominação
que exprime ausência de valor, mas sim a representação do quantum numérico de
cidadãos de determinado território. O povo é instituidor e destinatário de normas,
legitimador e legitimado das decisões estatais. Em termos mais comuns, o povo é
realmente quem detém o poder dentro da Democracia, exercendo sempre em prol
da coletividade, dentro do que prescreve a Constituição da República de 1988, que
nada mais é do que a expressão legislada de sua vontade e anseio por dignidade.
Interessante, neste momento, o que entende Felipe BleyFolly (2011,
p.233)
E entende assim que a Constituição não é a mera projeção de uma
decisão histórica ou uma filosofia de valores, mas sim possuidora de
pressupostos essenciais ao que chama de uma “gramática
democrática”, indisponíveis para o próprio exercício da Democracia.
A Constituição teria uma função de garantir a participação
democrática e não de limitá-la. E aqui podemos citar como exemplos
as condições de liberdade e participação nas decisões, o livre e igual
acesso às deliberações públicas, a paridade entre partes e a
possibilidade de livre expressão de ideias. São limites a poderes
autocráticos e parciais, e mesmo aos poderes constituídos
(Executivo, Legislativo, Judiciário), que garante os Direitos da
comunidade política, ou seja, aqueles Direitos criados com a
contribuição desta, no sentido de uma autolegislação (garantias que
nos autorizam a não nos subordinarmos a normas de cujo processo
de criação não tenhamos participado). A ideia de Constituição
patrocina a Democracia. Para Palombella, inclusive, o
constitucionalismo “.trabaja a su vez como motor interno de la
democracia, protegendo sus caracteres esenciales y garantizandola
‘gramatica’ del linguaje de lavoluntad popular”.
Enquanto pilar do Estado e da Democracia, o povo deve buscar seu
reconhecimento dentro das estruturas pré-concebidas, partindo-se do pressuposto
que a dominação pelo capital, influências midiáticas e relações pessoais dará a
tônica para a deturpação deste ideal.
Importante, ainda, é vislumbrar que, além da força do povo dentro destas
estruturas, é o ideal de Democracia arraigando-se nas próprias bases de
sustentação da concepção de Estado, que modernamente têm, ainda que de forma
filosófica e teórica, buscado a inserção do povo em sua gênese. Afinal, se vivemos
em uma sociedade pautada no princípio da Legalidade e também no princípio da
Democracia, nada mais sensato que a participação popular se dar realmente de
forma efetiva.
4.Estado de Direito Democrático e as Concepções Democráticas de Processo:
Participação Popular Efetiva na Construção dos Provimentos Estatais
O conceito e forma de atuação do Estado são aspectos que certamente
terão influência direta na forma de Governo e na atuação do povo e de seus
representantes, todos atuando em prol da unidade, que seria o próprio Estado. Esta
pequena conclusão nos leva a crer que, em um Estado pautado na legitimação de
suas decisões pelo princípio da Legalidade e também pelo exercício da Democracia,
a atuação do povo deve ser ostensiva, garantida em Lei e por ela regulada.
De forma concisa, assim define Estado Democrático de Direito, De
Plácido e Silva (1999, p. 322):”A expressão “Estado Democrático de Direito” significa
não só a prevalência do regime democrático como também a destinação do Poder à
garantia dos direitos”.
E, de forma um pouco mais completa e abrangente, leciona LênioStreck
(2003, p.93):
O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da
realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a
uma adaptação melhorada das condições sociais de existência.
Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de
concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir
simbolicamente como fomentador da participação pública
quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os
valores da democracia sobre todos os seus elementos
constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a
ideia de democracia contém e implica, necessariamente, a
questão da solução do problema das condições materiais de
existência. (...) Assim, o Estado Democrático de Direito teria a
característica de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal
de Direito, como também a do Estado Social de Direito – vinculado
ao welfarestate neocapitalista – impondo à ordem jurídica e à
atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade.
Dito de outro modo, o Estado de Direito Democrático é plus
normativo em relação às formulações anteriores. (grifo nosso)
Em sua explanação, STRECK aborda acerca do Estado de Direito
Democrático como uma garantia de participação do povo nas ações do Estado,
configurando este paradigma em alteração de toda a estrutura, inclusive normativa e
jurídica. Neste viés, saindo um pouco da questão política e adentrando o campo
jurídico, sobretudo processual (já que é a forma mais pura de participação das
partes em busca da tutela estatal), há que se registrarem algumas considerações
acerca da Democracia também como princípio estruturante da ciência processual,
sobretudo no que apregoa o Estado de Direito Democrático.
O Processo, em seu sentido lato, e não meramente jurídico, é o
instrumento através do qual os preceitos do Estado de Direito Democrático, a
participação do povo legitimando os atos estatais juntamente com os preceitos
legais, sobretudo constitucionais, poderão ser conquistados. Afinal, Democracia é
consenso, e, uma decisão legítima pautada neste paradigma estatal deve passar
pelo crivo da participação das partes para ser válida, mediante o Processo.
A legitimação das decisões atuais decorre do fato simples de ser
emanada por “órgão” detido das prerrogativas, competência e poder para proferir as
decisões. Porém, ao considerarmos um paradigma estatal no qual os rumos da
atuação do Estado são balizados pelo olhar e agir concreto do povo, devidamente
regidos pelas Leis, sobretudo a Constituição da República, a legitimação deve
decorrer diretamente desta participação popular.
As modernas concepções de Processo nos ofertam conceituação
pautada, sobretudo nas garantias e princípios inseridos no corpo da Constituição da
República, como bem nos mostra o insigne processualista mineiro, Rosemiro Pereira
Leal (2005, p. 95):
Não mais nos orientamos atualmente por um processo histórico
(causalidade histórica) fora das constituições em concepções
fatalistas e inescapáveis (ortodoxo-marxista) a determinar a
consciência dos homens, mas o que se busca é a construção de uma
sociedade (não causalidade sociológica) que passe pelo processo
democrático do exercício coletivo das conquistas históricas jurídiconormativas de todos igualmente decidirem o devir. Claro que tal
esforço
teórico
tem
seus
fundamentos
na
instituição
constitucionalizada PROCESSO que se define pelos princípios do
contraditório, isonomia e ampla defesa, condutores dialógicos
(afirmações-negações) no espaço político de juridificação (edificação
jurídico-sistemática) dessa nova realidade esperada.
Como base de sua própria teoria, o professor Rosemiro, através de tal
raciocínio traçado, demonstra claramente o espaço que deve ocupar o processo no
paradigma estatal em que nos encontramos inseridos. A efetivação desta concepção
é cada vez mais estudada pela doutrina, que cria um elo cada vez mais tênue entre
a ciência processual e o próprio Direito Constitucional.
E, diante do atual momento, Fredie Didier Júnior assim define (2013, p.
31-32):
Parece mais adequado, porém, considerar a fase atual como uma
quarta fase da evolução do direito processual. Não obstante
mantidas as conquistas do Processualismo e do Instrumentalismo, a
ciência teve de avançar, e avançou.
Fala-se, então, de um Neoprocessualismo: o estudo e aplicação do
Direito Processual de acordo com esse novo modelo de repertório
teórico. Já há significativa bibliografia nacional que adota essa linha.
O termo Neoprocessualismo tem uma interessante função didática,
pois remete rapidamente ao Neoconstitucionalismo, que, não
obstante sua polissemia traz a reboque todas as premissas
metodológicas apontadas, além de toda produção doutrinária a
respeito do tema, já bastante difundida.
Como já mencionado alhures, a busca pela efetivação dos preceitos
constitucionais é a tônica do atual momento da ciência jurídica, porquanto
reconhecida efetivamente a força da Constituição não apenas como norma
programática, mas também com a sua auto-executoriedade, sobretudo por se tratar
da vontade do povo explicitada através de Legislação. Neste sentido, podemos
inferir que a busca por ideais democráticos é também a tônica da ciência jurídica,
através de doutrinas cada vez mais preocupadas em destacar a força vinculante do
texto Constitucional à realidade do cidadão.
Todos estes aspectos abordados partem do raciocínio traçado pelo jurista
José Alfredo de Oliveira Baracho, um dos primeiros brasileiros a estudar com afinco
o Processo sob a ótica Constitucional, tal como delineado até aqui. Segundo
Baracho, as disposições constitucionais devem ser alçadas ao seu lugar de direito,
qual seja, sobre as demais normas, mas não em razão de hierarquia, mas sim por
conter em seu corpo todas as premissas e garantias que legitimarão a aplicação das
leis infraconstitucionais.
Baracho, como questionamento fundamental a ser feito, assim inicia a
concepção sobre sua teoria (2004, p. 70):
Entende-se constitucional e processualmente, a razoável
oportunidade de se fazer valer do direito, para execução de garantias
em que: o demandado tenha tido a devida notícia ou citação, que
pode ser atual ou implícita; todos devem ter oportunidade adequada
para comparecer e expor seus direitos, inclusive o de declará-lo por
si próprio; apresentar testemunha, documentos relevantes ou outras
provas; o Tribunal, perante o qual os direitos são questionados, deve
estar composto de maneira tal que estejam presentes as condições
de honestidade e imparcialidade; deve esse Tribunal ser competente
para examinar os conflitos constitucionais.
A partir desta conceituação, podemos inferir que o respeito ao
contraditório, à defesa de suas teses pautada na ampla defesa (aqui entendida
como possibilidade de esgotamento de todos os meios legítimos de instrução, prova
e defesa de suas alegações) bem como à isonomia entre as partes, são pontos
impossíveis de serem desconsiderados para que se obtenha o respeito ao devido
processo constitucional e, consequentemente, ao objetivo do Processo, como
legitimador das decisões judiciais.
Complementa ainda Baracho, de forma bastante clara (2004, p. 70-71):
As garantias constitucionais do processo alcançam todos os
participantes do mesmo. O processo, como garantia constitucional,
consolida-se nas constituições do século XX, através da
consagração de princípios de direito processual, com o
reconhecimento e a enumeração de direitos da pessoa humana,
sendo que esses consolidam-se pelas garantias que os torna efetivos
e exequíveis.
Bem como Fredie Didier Júnior, ao abordar a questão do devido processo
legal (2013, p. 48):
É preciso observar o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV) e dar
tratamento paritário às partes do processo (art. 5º, I, CPC); proíbemse provas ilícitas (art. 5º LVI); o processo há de ser público (art. 5º,
LX); garante-seo juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII); as decisões hão
de ser motivadas (art. 93, IX); o processo deve ter uma duração
razoável (art. 5º LXXVIII); o acesso à justiça é garantido (art. 5º,
XXXV) etc. Todas essas normas, princípios e regras, são
concretizações do devido processo legal e compõem o seu conteúdo
mínimo.(...)
O princípio dodevido processo legal tem a função de criar os
elementos necessários à promoção do ideal de protetividade dos
direitos, integrando o sistema jurídico eventualmente lacunoso
O aludido Devido Processo, no Processo Constitucional, recebe o devido
tratamento que lhe deve ser dispensado, tendo em vista pressupor que as decisões
não são apenas construção advinda da convicção do Estado-juiz, mas sim uma
construção participada entre as partes, devidamente avalizada pelo Estado.
Neste sentido, em sua célebre obra sobre Estado de Direito Democrático,
Ronaldo Brêtas Dias (2010, p. 123-124):
Contudo, não é somente a obediência ao princípio da reserva da lei
que permitirá o exercício constitucionalizado da função jurisdicional e
a consequente decisão vinculada ao Estado Democrático de Direito.
Adicione-se a tal desiderato a garantia do devido processo
constitucional, que não pode ser olvidada. Assim o é, porque a
decisão jurisdicional (sentença, provimento) não é ato solitário do
órgão jurisdicional, pois somente obtida sob inarredável disciplina
constitucional principiológica (devido processo constitucional), por
meio da garantia fundamental de uma estrutura normativa
metodológica (devido processo legal), a permitir que aquela decisão
seja construída com os argumentos desenvolvidos em contraditório
por aqueles que suportarão seus efeitos, em torno das questões de
fato e de direito sobre as quais controvertem no processo.
Esta definição transmite de forma clara os objetivos do Processo
Constitucional, de, em síntese, garantir a ampla participação do povo, quando
litigantes, em busca da construção das decisões judiciais, aqui entendidas como
provimento estatal.
Esta breve análise traçada demonstra que, também no âmbito jurídico, a
busca pela inserção do real sentido de Democracia tem sido a tônica do pensamento
jus-filosófico atual. O Estado, através do uso da força, não tem o condão de inserir
legitimidade democrática em sua atividade, ainda que se fale em representação dos
interesses do povo.
O povo, participativo nas decisões, através do exercício das garantias
constitucionais, não apenas em processos judiciais, mas em todos os procedimentos
a que for submetido, tem o condão de legitimar os provimentos estatais através de
sua participação. Esta é a tônica de uma Democracia inserida no paradigma do
Estado de Direito Democrático.
5.Reforma Política: Necessidade ou Adequação?
Os escopos até então abordados dão conta de que Democracia não é
apenas representatividade mediante voto, sendo este aspecto apenas um dos
pontos do ideal democrático. O sentido de Democracia é mais amplo do que é
realmente demonstrado, carecendo de profundos estudos doutrinários e filosóficos,
sobretudo no campo da ciência jurídico-processual, para trazer à tona o real sentido
de Estado de Direito Democrático, em que a participação do povo é também
legitimante da atividade estatal.
Contudo, o grande problema que se vislumbra na Democracia,
notadamente
ao
vislumbrarmos
a
experiência
brasileira
é
justamente
a
representatividade dentro da esfera estatal, fruto das decisões do povo através do
voto. Decisões estas, como já abordado, nem sempre fruto de pensamento em prol
do coletivo, mas em questões meramente pessoais e até mesmo por mera troca de
“gentilezas”, ou “incentivos” ao voto.
Tal realidade, diuturnamente questionada através de manifestações
populares, em que se discutem pontos estruturais, a política e suas mazelas, dentre
outros assuntos, desperta a todos para uma realidade: o povo brasileiro traça
questionamentos, mas não coloca em prática a Democracia garantida pela
Constituição em sua plenitude, fazendo mal uso da pequena parcela de Democracia
que exerce, mediante o voto.
A movimentação por Reforma Política sempre surge nos momentos em
que o País encontra-se mergulhado em crises, mas, infelizmente, sempre é utilizada
como subterfúgio das camadas oposicionistas aos Governos que estejam no poder,
como mera artimanha política.
Chegou-se a cogitar até mesmo em nova Assembleia Constituinte,
visando operar a Reforma Política74. Neste ponto, cumpre esclarecer que uma
Assembleia Constituinte visa instauração do Poder Constituinte Originário, que, em
outras palavras significa na ruptura do Pacto Constitucional em prol de novas
concepções, extirpando as até então vigentes. Assim, a ideia de instauração de
Assembleia Constituinte para operar a Reforma Política é, além de totalmente
desarrazoada, um verdadeiro golpe à própria Ordem Constitucional, a que poderia
até mesmo submeter o Estado à um incidente de proporções maiores, tal como
ocorrido no período do Regime Militar.
Interessante relembrar, em torno da questão do Poder Constituinte
Originário, a lição do constitucionalista português J.J. Gomes Canotillo (2002, p 6869) sobre o momento de criação de uma nova concepção de Constituição:
[...] os ingleses compreendem o poder constituinte como um
processo histórico de revelação da ‘constituição da Inglaterra’; os
americanos dizem num texto escrito, produzido por um poder
constituinte ‘the fundamental andparamount Law ofthenation’; os
franceses criam uma nova ordem jurídico-constitucional através da
‘destruição do antigo e da ‘construção do novo’, traçando a
arquitetura da nova ‘cidade política’ num texto escrito – a
constituição. Revelar, dizer e criar uma constituição são os modi
operandi das três experiências constituintes.
74
Constituinte
para
reforma
política
é
'devaneio',
diz
Gilmar
Mendes.
In:
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/constituinte-para-reforma-politica-e-devaneio-diz-gilmar-mendes/.
Acesso: 20.abr.2015.
Voltando à questão da Reforma, importa frisar sobre as constantes
divergências sobre de que forma ela seria realizada, e, conforme o clamor popular,
de qual maneira o povo seria ouvido para participar ativamente deste momento.
Plebiscito ou Referendo?
Ambas formas de consulta aos cidadãos demonstram meios de exercício
de seus direitos políticos, garantidos pela Constituição da República de 1988, em
seu artigo 14, o qual rezaque “a soberania popular será exercida pelo sufrágio
universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da
lei, mediante plebiscito,referendo ou iniciativa popular”.
Embora ambos tenham semelhanças em comum, tendo em outros Países
o mesmo sentido, guardam diferença substancial: a consulta antes ou após a
criação do Ato Legislativo.
Isto é determinante, vez que, no caso do Plebiscito, as proposições feitas
aos cidadãos não obrigam ao Legislador utilizar totalmente a consulta realizada. Ou
seja, corre-se o risco de que apenas parte da consulta popular seja efetivamente
percebida, ou refletida, na Lei criada. Diferentemente do Referendo, onde há a
possibilidade de anular em todo o ato criado, quando percebidos os seus vícios. O
Plebiscito é visto por muitos como um verdadeiro “cheque em branco” dado ao
Legislativo para criação de Lei que regulamente a Reforma Política.
No entanto, embora se configure em grande e democrática experiência a
consulta popular mediante qualquer destes mecanismos, não se afigura completa e
definitiva esta saída, já que a opinião popular não vincula totalmente os rumos da
atuação dos agentes políticos em prol da Reforma. Além disto, passados alguns
meses desde a ocorrência das manifestações populares Brasil afora, o tema
Reforma Política já não encontra tanta força quanto outrora.
Apenas a título de informação, importante a resposta dada por Alberto
Lopes Mendes Rollo, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-SP, sobre
um questionamento realizado recentemente:
A discussão sobre a legalidade de um plebiscito já foi superada.
No entanto, quem defendia o plebiscito afirma que uma reforma
política que venha do Congresso será viciada e atenderá aos
interesses de deputados e senadores. Como produzir uma
reforma política eficaz, rápida e que contemple os interesses da
população e dos políticos?
- Alberto Rollo — O ideal é que se colocassem temas para
discussão que seriam avaliados pela população, em plebiscito, em
um primeiro momento. Pegar temas relevantes, como a revogação
de mandato, e deixar o povo decidir. A população baliza quatro ou
cinco temas relevantes, e depois o legislador faz a lei. Esses temas
relevantes não são coisa fechada. O recall, por exemplo, envolve
várias nuances: quantas vezes é possível fazer por mandato? Recall
do presidente da República é possível antes de um ano de mandato?
Então, se a população disser que quer o recall, os legisladores
precisam cumprir com a sua função. Depois, há o referendo para
saber se aquele recall preencheu a vontade popular.75
Este pequeno percurso histórico travado para demonstrar a questão do
recente movimento pela Reforma Política vem apenas reforçar a tese de que o povo
brasileiro traça questionamentos, mas não coloca em prática a Democracia
garantida pela Constituição em sua plenitude, fazendo mal uso da pequena parcela
de Democracia que exerce, mediante o voto. O trecho de entrevista colacionado
demonstra de forma clara a falta de confiança do povo em seus eleitos, embora tal
decisão seja exclusivamente sua.
Diante destes fatos claros, não restam dúvidas de que a Democracia
exercida simplesmente a representatividade, o direito ao voto, é algo que não se
relaciona com o próprio sentido de Democracia, tendo em vista que o povo não se
enxerga em seus representantes.
O povo não conhece sua Constituição vigente e não lança mão de todas
as garantias a que faz jus, sobretudo as formas de questionamento dos atos do
Estado, tais como as Ações Constitucionais. Grande exemplo de meio de
impugnação é a própria Ação Popular, a qual, segundo afirma Bernardo Gonçalves
Fernandes, “é uma ação constitucional de natureza civil, atribuída a qualquer
cidadão, que visa invalidar atos ou contratos administrativos que causem lesão ao
patrimônio público ou ainda à moralidade administrativa, ao patrimônio histórico e
cultural e ao meio ambiente”. (2013, p.541-552).
No entanto, o cidadão, o povo, não tem conhecimento de todas as
ferramentas democráticas dispostas para sua utilização. Em última análise, o
cidadão não tem sequer um conhecimento básico do que se encontra inserido em
sua Constituição.
75
Disponível
em
<http://www.conjur.com.br/2013-set-08/entrevista-alberto-rollo-advogadoespecialista-direito-eleitoral>Acesso. 20.Abr.2015.
Tão importante quanto a Reforma Política seria a própria conscientização
do povo, pelo próprio Estado, de que a sua Constituição tem caráter ativo, em que
seus direitos e garantias dispostos podem ser exigidos, mediante mecanismos
próprios. Esta seria uma forma de participação efetiva do povo na Democracia
instaurada no Brasil, devidamente consubstanciada no paradigma do Estado de
Direito Democrático e em prol da coletividade.
A mera representatividade apenas mantém o povo esperançoso de
mudanças, estando os rumos de uma Reforma Política nas mãos daqueles que mais
deram causa a esta dita necessidade. Porém, a necessidade de Reforma nada mais
é do que uma necessária adequação dos preceitos constitucionais, democráticos e
também políticos ao cidadão, que precisa enxergá-los diariamente e de maneira
comum em sua vida.
6.Conclusão
À guia de resumo, nunca é demais ressaltar a idéia conclusiva que se
chega: o povo brasileiro traça questionamentos, mas não coloca em prática a
Democracia garantida pela Constituição em sua plenitude, fazendo mal uso da
pequena parcela de Democracia que exerce, mediante o voto.
A Democracia é forma de Governo em que o povo tem a possibilidade de
tomar para si os rumos e decisões do Estado, porquanto detentores do poder
legitimante, ativo, participativo e combativo, nas palavras do jurista Friedrich Muller.
É, dentro de um paradigma de Estado de Direito Democrático, aliado à forma da
legislação inserida em um prisma constitucional, a maior arma contra as
arbitrariedades estatais, utilização desproporcional da força e abusos contra a “coisa
pública”.
No entanto, o povo se mostra passivo, à mercê de atitudes daqueles que
deram causa ao grande movimento em prol de uma Reforma Política. O povo não
conhece de seus mecanismos e força, e não conhece a fundo o berço de seus
direitos e ferramentas para fazer, por si, uma Reforma de todo o Estado: a
Constituição da República de 1988.
É de suma importância realizar a Reforma Política, assim como a
Reforma Tributária, a Reforma nos aspectos de base do país. Porém, mais
importante ainda é dar ao cidadão a possibilidade de deixar o estado de inércia em
busca da defesa de sua Nação, seus direitos e garantias próprios. O cidadão inerte
reflete diretamente em uma série de outras demandas a que o Estado é acometido,
tais como os programas assistencialistas que sobrecarregam a máquina e não
trazem frutos ao povo.
Em suma, o povo precisa se sentir realmente POVO, na acepção mais
concreta do termo, e não apenas no mais chulo sentido. Precisa fazer valer seus
direitos dentro de um Estado de Direito pautado na Democracia, ou seja, na sua
participação efetiva nas decisões. E este Estado, deve, como forma de garantia de
um real bem estar à população, caminhar lado a lado desta nova concepção de
Democracia em que o povo realmente atua como agente formador do Estado, na
concepção Kelseniana.
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5.ed. Coimbra: Almedina, 2002.
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STRECK, Lênio Luiz. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3.ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURIDICA
Carlos Alberto Reis de Paula76
Noções introdutórias
Ao procedermos à reflexão sobre a desconsideração da personalidade
jurídica, adentramos no campo das obrigações, de extrema relevância no universo
dos atos e negócios jurídicos.
Uma vez constituída regularmente, a pessoa jurídica adquire a personalidade e
passa a ser sujeito de direitos e obrigações nas relações jurídicas. Nessa linha, temos
que dois são os tipos de responsabilidade que os sócios ou acionistas podem assumir
quando integrantes de quadro social: limitada ou ilimitada. Na primeira hipótese,
integralizado o capital social ou subscritas as ações, é a sociedade que responderá
pelos atos praticados. Na segunda hipótese, as pessoas físicas acabam por assumir
responsabilidade solidária juntamente com a sociedade.
De acordo com a teoria alemã, que estruturou a reflexão sobre dívida e
responsabilidade, em toda obrigação há de se diferenciar o débito – compromisso
que o devedor assume de cumprir a obrigação – da responsabilidade, que é o
vínculo patrimonial de sujeição dos bens do devedor para satisfação do credor.
O devedor é o responsável primário pela obrigação assumida, a qual deverá
ser cumprida espontaneamente. Caso não o faça, o credor pede ao Estado que retire
do patrimônio de devedor o montante suficiente.
A
norma
processual
pode
ir
mais
longe
trazendo
a
previsão
de
responsabilização de pessoas que, embora não sejam devedoras, conservam
responsabilidade sobre os atos praticados pelo devedor em situações definidas em
lei, como consagrado no artigo 596 do CPC. Surge, então, o responsável
secundário.
76
Ministro aposentado do TST. Mestre e Doutor em Direito da UFMG. Professor Adjunto da UNB,
aposentado. Consultor e Advogado.
Chamado a responder pela obrigação, o responsável secundário pode indicar
bens da sociedade, sitos na mesma comarca, livres e desembargados, quantos
bastem para pagar o débito. É o denominado benefício da excussão.
Na doutrina e na jurisprudência emerge uma divergência sobre a situação
jurídica do responsável secundário, ser eleterceiro ou apenas sujeito passivo.
Na lição do Ministro Teori Zavascki,há um redirecionamento no processo, na
fase de execução, pelo que se ingressa como sujeito passivo. A razão de ser é que
não se trata de obrigado, mas de responsável, por força do artigo 592 do CPC, sendo
este o entendimento prevalente.
(Comentários ao Código de Processo Civil: do processo de execução, artigos
566 a 645, coordenação de Ovídio Araújo Baptista da Silva)
A discussão vai se aprofundar com o novo CPC de 2015, que entrará em vigor
no próximo ano.
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica foi inserido como
espécie do gênero intervenção de terceiros, sendo qualificado como incidente. Como
bem salienta Flávio Luiz Yarshell,
Visto sob essa ótica, o responsável patrimonial de que aqui se cogita
(e que não seja devedor) realmente não está presente na relação
jurídica processual. Se e quando for trazido para o processo ele
perderá a qualidade de terceiro e tecnicamente passará a ser
qualificado como parte (sujeito em contraditório perante o juiz). Além
disso, esse terceiro é titular da relação jurídica que não é exatamente
o objeto do processo em que originado seu ingresso. Ele (terceiro) é
titular de relação conexa àquela posta em juízo, relação essa
passível de ser atingida pela eficácia da sentença ou decisão
proferida entre outras pessoas. Neste caso, a relação jurídica de que
é titular o terceiro implica a sujeição de seu patrimônio aos meios
executivos, por força de débito ostentado por outra pessoa (devedor)
(2015)77.
Assim posta a questão, há de se admitir que pode ocorrer que
se requeira a inclusão do responsável desde logo na petição inicial,
hipótese em que a pretensão da desconsideração passará a integrar
o objeto do processo. Obviamente que haverá pretensões distintas,
uma relativa ao débito, outra relativa à responsabilidade decorrente
da desconsideração. Se o juiz acolher essa última reconhecerá a
77
Disponível em http:/www.cartaforense.com.br/conteúdocolunas/incidente de desconsideração da
personalidade jurídica busca de sua natureza jurídica/. Acesso em 04 maio 2015.
responsabilidade patrimonial. Trata-se, pois, de demanda (que será
incidental ou não) resultante do exercício do direito de ação.
Reflexões sobre a pessoa jurídica
Quando se afirma que homem (ou mulher) é pessoa, quer se dizer que pela
própria natureza é capaz de adquirir direitos, obrigações e deveres nas diversas
relações jurídicas ou sociais.
Já a pessoa jurídica, para a sua criação e constituição,depende da vontade
humana, e a pessoa que emerge pode ter finalidades diversas.
O Código Civil de 2002 deu nova feição ao instituto das pessoas, deixando de
fazer a distinção entre pessoa física e jurídica e passou a permitir o melhor
enquadramento das pessoas jurídicas.
Ao proceder à análise da sociedade em que vivemos, Max Weber pondera que
é uma “sociedade que busca o lucro renovado por meio da empresa permanente,
capitalista e racional”(A ética protestante e o espírito do capitalismo, trad. Pietro
Nassetti, São Paulo, Martin Claret, 2001, p. 24). Na estruturação da sociedade, o
papel da pessoa jurídica ganha relevo.
No mundo capitalista, interessa ao Estado a criação de pessoas jurídicas. Não
só as que visem obter lucro, pois há pessoas que vão exercer e desenvolver o papel
social e assistencial que o próprio Estado deveria desempenhar, prioritariamente.
A pessoa jurídica adquire personalidade com a inscrição de seus atos no
registro próprio, mas se admitem as sociedades em comum (ou de fato), as quais são
sujeitos de direitos e obrigações, embora não dotadas de personalidade.
A desconsideração da personalidade jurídica
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem por finalidade
penetrar no âmago da personalidade para se encontrar seus sócios ou
administradores a fim de responsabilizá-los por atos praticados por meio da pessoa
jurídica.
Há uma distinção entre despersonalização e desconsideração. Na primeira,
anula-se a personalidade jurídica, fazendo-a desaparecer, como no caso de
invalidade do contrato social. Na segunda, desconsidera-se sem negar a
personalidade.
O desenvolvimento do instituto deu-se a partir de julgados das Cortes de
Justiça americanos e inglesesem casos em que havia abuso da pessoa jurídica ou
fraude, em entendimentos que se opunham a se considerar a personalidade jurídica
absolutamente distinta da pessoa física. Rubens Requião introduziu a matéria no
direito
pátrio
ao
publicar
artigo
na
Revista
dos
Tribunais
(RT
410/16,
“DisregardDoctrine”).
Nas decisões dá-se à medida um caráter excepcional, porquanto fundada nas
hipóteses de abuso ou fraude à lei ou ao contrato, com a consequente quebra do
princípio da boa-fé.
Entre nós, no âmbito do direito do trabalho, alguns sustentam que a CLT previu
a desconsideração da personalidade jurídica nos artigos 2º, § 2º bem como 10 e 448
da CLT.
Não compartilhamos desse entendimento porquanto a primeira hipótese cuida
de responsabilidade solidária entre empresas do mesmo grupo, sem desconsiderar a
personalidade jurídica e sem quebra do princípio da autonomia patrimonial.
Quanto à sucessão, prevista nos artigos 10 e 448 do texto consolidado, importa
na substituição de uma pessoa por outra. Daí por que essa última assume a outra em
todos os créditos e débitos. Na verdade trata-se da mesma pessoa que sofre alguma
alteração em sua estrutura originária.
A primeira lei no ordenamento jurídico pátrio a cuidar da matéria de forma
expressa foi o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) ao
dizer que:
Art. 28: O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da
sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de
direito, excesso de poder, infração de lei, fato ou ato ilícito ou
violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração
também será efetivada quando houver falência, estado de
insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica
provocados por má administração.
§ 1º (Vetado)
..........................
§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica
sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Seguiu-se a Lei Antitruste (Lei nº 8.884/1994) pela qual:
Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da
ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da
parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato
ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A
desconsideração também será efetivada quando houver falência,
estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa
jurídica provocados por má administração.
Já o Código Civil de 2002, ao cuidar das Disposições Gerais das Pessoas
Jurídicas no Título II, Capítulo I,estabelece que:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado
pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz
decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe
couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas
relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos
administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Constata-se que no nosso ordenamento jurídico foram criados dois sistemas
distintos.
O primeiro relativo à responsabilidade pessoal da pessoa física em relação à
pessoa jurídica, o que ocorre em determinadas situações previstas em lei, em que o
sócio ou administrador estaria agindo em nome próprio. Age com excesso de poderes
ou de maneira contrária à lei ou aos estatutos. Nessa hipótese, para a
responsabilização do sócio ou administrador, não há necessidade de se invocar a
despersonalização da personalidade jurídica. É nessa perspectiva que o artigo 1.016
do Código Civil atribui aos administradores a responsabilidade solidária “perante a
sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”.
Já em relação ao artigo 134, VII do Código Tributário Nacional, entende-se que os
sócios podem ser responsabilizados sempre que a sociedade não se dissolver
regularmente, porquanto ao decidirem pela dissolução de fato, sem o pagamento dos
credores na medida do possível e sem dar baixa na inscrição fiscal, estão infringindo
a lei.
Em situação diversa, como previsto no artigo 50 do Código Civil, há a
desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se de hipótese em que os sócios ou
os administradores, manipulando a pessoa jurídica, utilizam-na como instrumento de
fraude ou abuso de direito, justamente para causar prejuízo a terceiro que com ela
negocia acreditando na boa fé com que o negócio jurídico é estabelecido. Pode-se
dizer que levanta-se o véu da pessoa jurídica, para a responsabilização daqueles que
desviaram a finalidade dela ou estabeleceram confusão patrimonial.
Análise das situações fáticas
Para que procedamos à análise valorativa das situações fáticas, é
indispensável que retomemos alguns conceitos básicos.
Assim é que temos como
ato ilícito, de forma resumida, qualquer situação que vá contra uma lei imperativa.
De outra sorte, configura-se a hipótese de abuso de direito quando se pratica o
ato de forma legal, mas excessiva.
Ao se desconsiderar a personalidade jurídica, quebra-se o princípio da
autonomia patrimonial, mas não se retira a personalidade. As pessoas físicas
responsáveis pela fraude ou abuso respondem solidariamente com a pessoa jurídica.
Ao se sustentar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica parte-se da
premissa que ela é utilizada a fim de criar obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos
causados, como óbice à satisfação do crédito.
Ao procurarmos os fundamentos legais da desconsideraçãoo magistério de
Fábio Ulhoa Coelho ganha relevo quando diferencia a teoria maior da teoria menor.
Para ele, na teoria maior “o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das
pessoas jurídicas, como forma de coibir fraude e abuso praticados através dela”, ao
passo que na teoria menor “o simples prejuízo do credor já possibilita afastar a
autonomia patrimonial”. (Curso de direito comercial, 6 ed., São Paulo, Saraiva, 2003,
v. 2, p. 35).
Como já visto, o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor traz um
extenso
rol
de
hipóteses
que
possibilitarão
a
aplicação
do
instituto
da
desconsideração da pessoa jurídica. Ademais, a amplitude do parágrafo quinto leva à
conclusão que a teoria menor foi consagrada em relação ao Código de Defesa do
Consumidor, como se constata na seguinte ementa da lavra da Ministra Nancy
Andrighi:
“A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está
calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28 do CDC, porquanto a incidência
deste dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput
do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa
jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.
(REsp. 279.273/SP, DJ 29.03.2004).
É de extrema relevância destacar que tanto o Código de Defesa do
Consumidor quanto a CLT se assentam no princípio de proteção ao direito da parte
mais fraca da relação jurídica. Em última instância, objetiva-se desigualar a parte na
relação jurídica a fim de mantê-las iguais ou próximas no plano da negociação.
Consequentemente, os princípios protetivos são coincidentes.
Sob esse fundamento é que entendemos que se aplicam no direito do trabalho
as mesmas regras estabelecidas no CDC.
Esse tem sido o entendimento consagrado no TST, que recorre à
desconsideração da personalidade jurídica em todos os casos em que se verifica a
insuficiência do patrimônio da empresa para fazer face às dívidas trabalhistas, com
fundamento no artigo 28 do CDC, como se vê nas seguintes decisões: RR 240018.2003.5.01.0005, Rel. Min. Maurício Godinho, DJ 28.06.2010; RR 12564094.2007.5.05.0004, Rel. Min. Maurício Godinho, DEJT 19.04.2011; AIRR 9490024.2009.5.01.0028, Rel. Min. Hugo Scheuerman, DJE 07.02.2014; RR 31730072.2005.5.12.0031, Rel. Min. Fernando Eizo Ono, DEJT 15.08.2014; RR 29160080.1991.5.19.0002, Rel. Min. Douglas Alencar Rodrigues, DEJT 06.02.2015.
No mencionado artigo há a previsão de aplicação pelo juiz, de ofício, da
desconsideração da personalidade jurídica, de forma diferente do previsto no Código
Civil. Esse dispositivo, de aplicação no âmbito trabalhista, tem o sentido de dever
imposto ao juiz todas as vezes em que, constatada a situação, deve-se aplicar o
instituto. Não se trata de mera faculdade.
A decisão de desconsideração da pessoa jurídica deverá ser fundamentada,
em estrita observância ao disposto no artigo 93, IX, da Constituição da República,
assegurando-se ao sócio ou administrador o direito de se defender e ao seu
patrimônio.
Ao se tratar da desconsideração, há uma acesa discussão sobre a
inobservância do devido processo legal, com violação ao contraditório e à ampla
defesa.
Segundo Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery (Código de Processo
Civil comentado e legislação extravagante, 9 ed. São Paulo: Revista do Tribunais,
2006, p. 1.146)
“A tradução mal feita, da expressão due processo oflaw como sendo “devido
processo legal” tem levado o intérprete a enganos, dos quais o mais significativo é o
erro de afirmar-se que a cláusula teria conteúdo meramente processual. A cláusula se
divide em dois aspectos: o devido processo legal substancial (substantive
dueprocessclause)
e
o
devido
processo
legal
processual
(procedural
dueprocessclause)”.
O devido processo legal substancial tem três aspectos a serem analisados: se
a intervenção do poder é necessária; se o modo de intervenção é adequado; se a
solução encontrada é resultado de uma ponderação coerente dos valores que estão
sendo sopesados.
A desconsideração da pessoa decorre de um desvio defunção do instituto
pessoa jurídica, pela não correspondência entre o fim perseguido pelas partes e o
conteúdo que é próprio da forma utilizada.
O juiz, no estado do bem-estar social, há de adotar a melhor solução para que
se alcance a finalidade da lei, sendo certo que a pessoa jurídica não foi criada com a
finalidade de permitir fraudes e simulações.
Em observância ao princípio do contraditório, corolário do princípio da
ampla defesa, o sócio ou administrador deve ser citado, por todos os meios
processuais cabíveis, o que geralmente se faz por embargos à execução e mesmo
embargos de terceiro, restrito à hipótese do § 2º do artigo 1.046 do CPC (“Equiparase a terceiro a parte que, posto figure no processo, defende bens que, pelo título de
sua aquisição ou pela qualidade em que os possuir, não podem ser atingidos pela
apreensão judicial”).
Em relação ao momento processual em que se instaura a desconsideração,
temos que o destinatário da tutela executiva, ou seja, a vítima do inadimplemento é
sempre o autor do processo de execução. Esse o entendimento do STJ, como
consagrado na ementa da Min. Nancy Andrigh:
“A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que a desconsideração da
personalidade jurídica é medida cabível diretamente no curso da execução.
Precedentes”.
(REsp. 920.602, DJE 23.06.2008)
Exclui-se, pois, a necessidade de pronunciamento judicial prévio no sentido
de reconhecer a incidência da desconsideração na formação do título executivo
judicial. O tratamento que se dá atualmente é de mero incidente executivo
Quanto à espécie da decisão que aplica a desconsideração da
personalidade jurídica, por ser necessário ter conteúdo decisório, pode ser sentença,
normalmente em medida cautelar, ou em decisão interlocutória.
Em relação à coisa julgada, temos no magistério de Liebman que a eficácia
natural da sentença tem efeitos erga omnes o que, em relação ao instituto da
desconsideração da personalidade jurídica implica dizer que os sócios, ainda que
não tenham formalmente participado do processo, sofrerão os efeitos reflexos da
sentença, até porque abusaram da limitação da responsabilidade que lhes é
assegurada.
Nessa linha de compreensão a seguinte decisão do Tribunal Superior do
Trabalho:
“Ação rescisória. Coisa Julgada
1. Ação rescisória contra acórdão proferido em agravo de petição que mantém a
desconsideração da personalidade jurídica da empresa Executada e declara
subsistente penhora em bens de ex-sócio.
2. Não viola os incisos II, XXXV, LIV e LVII do art. 5º da Constituição Federal a
decisão que desconsidera a personalidade jurídica de sociedade por cotas de
responsabilidade limitada, ao constatar a insuficiência do patrimônio
societário e, concomitantemente, a dissolução irregular da sociedade,
decorrente de o sócio afastar-se apenas formalmente do quadro societário, no
afã de eximir-se do pagamento de débitos. A responsabilidade patrimonial da
sociedade
pelas
dívidas
trabalhistas
que
contrair
não
exclui,
excepcionalmente, a responsabilidade patrimonial pessoal do sócio, solidária
e ilimitadamente, por dívida da sociedade, em caso de violação à lei, fraude,
falência, estado de insolvência ou, ainda, encerramento ou inatividade da
pessoa jurídica provocados por má administração. Incidência do art. 592, II,
do CPC, conjugado com o art. 10 do Decreto 3.708, de 1919, bem assim o
art. 28 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
3.
Recurso ordinário a que se nega provimento.
ROAR 727179-44.2001.5.03.5555. Rel. Min. João OresteDalazen, DJ
14.12.2001”
Resta-nos uma última reflexão sobre os limites da responsabilidade, o que
desenvolveremos respeitando as várias hipóteses:
Administrador - De acordo com o art. 50 do CC o gestor da pessoa jurídica
é responsabilizado, o que também está consagrado no CDC, por deter o poder de
administrar.
A figura do administradoré incompatível com a do empregado, pela
incompatibilidade da assunção do risco com a de empregado subordinado.
Irrelevante ter a pessoa jurídica finalidade lucrativa ou assistencial. As
pessoas que executam tarefa assistencial deverão ter seu objeto transferido para
outra entidade que possa dar continuidade à tarefa que vinham desenvolvendo. Seu
diretor será afastado e responsabilizado pelo ato. O fundamento será excesso ou
abuso de poder.
O administrador não sócio é equiparado à figura do mandatário, e ficará
vinculado à sociedade até o limite de três anos contados da apresentação do
balanço aos sócios (art. 206, § 3º, VII, b do CC).
Sócio – Se a administração for praticada pelo sócio, responderá, desde que
esteja na administração social, pois as obrigações do sócio têm nascimento quando
ingressam na sociedade, imediatamente com o contrato (art. 1.001 do CC).
A interpretação há de levar em conta o veto que ocorreu em relação ao
parágrafo 1º do artigo 28 do CDC, que tinha a redação que se segue: “A pedido da
parte interessada, o juiz determinará que a efetivação da responsabilidade da
pessoa jurídica recaia sobre o acionista controlador, o sócio majoritário, os sóciosgerentes, os administradores societários e, no caso de grupo societário, as
sociedades que o integram”.
Com o veto parece-nos que não se pode limitar a responsabilidade às
hipóteses
que
estavam
previstas
no
parágrafo.
De
outra
sorte,
há
se
tergranumsalispara se proceder à análise das situações, porquanto não é justo nem
jurídico que sócio que detenha 1% ou pouco mais do capital social e que nunca
tenha participado da vida da sociedade seja responsabilizado por uma administração
da qual sequer tinha conhecimento ou participação.
A responsabilidade do sócio que se retira da sociedade será de dois anos,
contado esse prazo da averbação da alteração no contrato social (art. 1.003 do CC),
averbação necessária para ciência de terceiros. A referência será à data do
ajuizamento da ação e não à da constrição do bem.
Na sociedade por
ações a responsabilidade será do Conselho
Administrativo e da Diretoria e o prazo prescricional na hipótese de retirada será de
três anos (art. 287, II da Lei 6.404/1976 e art. 206, § 3º, VII do CC).
Na hipótese de insolvência civil, o prazo é de cinco anos contados da data
do encerramento do processo de insolvência (art. 778 do CPC).
Na falência: a decretação da quebra suspenderá os prazos prescricionais,
que recomeçarão a partir do trânsito em julgado da sentença de extinção das
obrigações do falido. Decorridos cinco anos, se o falido não houver praticado crime
falimentar, ou dez anos, se houve sido condenado por crime falimentar, as
obrigações do falido extinguem-se. É de dois anos o prazo para interposição de
ação para apuração da responsabilidade dos sócios, contados a partir do trânsito em
julgado da sentença que encerrar a falência (arts. 82 e 157 da Lei 11.101/2005).
Recuperação judicial: Nos termos do art. 60 da Lei 11.101/2005, aqueles
que adquirem ativos de empresa em recuperação judicial não podem ter esse
patrimônio afetado por obrigações trabalhistas exigidas de quem normalmente
sucede o empregador.
Referências bibliográficas
COELHO, Fabio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo,
Revista do Tribunais, 1989.
KOURY, Susy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídicaDisregarddoctrine e os grupos de empresas, 3 ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011
NAHAS, Thereza Christina. Desconsideração da pessoa jurídica: reflexos civis e
empresariais no direito do trabalho, Rio de Janeiro, Elsevier, 2007
NERY JUNIOR, Nelson;NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil
comentadoi e legislação extravagante.9 ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006
YARSHELL, Flávio Luiz. http:/www.cartaforense.com.br/conteúdo/colunas/incidente
de desconsideração da personalidade jurídica busca de sua natureza jurídica/04
maio 2015
ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo Civil: do processo de
execução, arts. 566 a 645, Coordenação de Ovídio Araújo Baptista da Silva. São
Paulo. Revista dos Tribunais, 2000, v. 8
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