166 Problematizando a neutralidade e universalidade do conhecimento matemático Claudia Glavam Duarte1 Resumo: Este ensaio tem por objetivo problematizar algumas verdades consolidadas no campo da Educação Matemática e que tem implicações diretas no modo como vamos constituindo-nos professores/as desta área do conhecimento. A primeira “verdade”, bastante disseminada nesse campo do conhecimento e que pretendo problematizar diz respeito à pretensão de neutralidade dessa ciência: a matemática como uma ciência neutra, vinculada exclusivamente a processos de objetivação do mundo. A segunda “verdade” que, articulada ao pressuposto da neutralidade dissemina-se nesse campo do conhecimento é a universalidade do conhecimento matemático. Problematizar esses pressupostos tem por finalidade desestabilizar o solo das idéias pré-concebidas que fixam uma determinada maneira e jeito de ser professor/a de Matemática e de lidar com os conhecimentos matemáticos vinculados à área educacional. Com isso, cria-se a possibilidade de potencializar diferentes formas de pensamento que gerem outras experiências pedagógicas também para a área da Educação Matemática. Palavras chave: Matemática. Educação. Verdade. Neutralidade. Universalidade. Abstract: This essay seeks to problematize some truths consolidated in the field of Mathematics Education and has direct implications on how we will be constituted as teachers in this area of knowledge. This first “truth”, widely disseminated in this field of knowledge and that I intend to discuss concerns the pretense of neutrality of this science: mathematics as a neutral science, bound exclusively to processes of objectification of the world. The second "truth", that articulated to the assumption of neutrality spreads in this field of knowledge is the universality of mathematical knowledge. To question these assumptions is intended to destabilize the soil of the preconceived ideas that hold a certain way and way of being a Math teacher and deal with the mathematical knowledge related to the educational area. This creates the possibility of enhancing various forms of thought that could generate other learning experiences also in the area of Mathematics Education. Keywords: Mathematics. Education. Truth. Neutrality. Universality. Para iniciar... - Receber as palavras, e dá-las. - Para que as palavras durem dizendo cada vez coisas distintas, para que uma eternidade sem consolo abra o intervalo entre cada um de seus passos, para que o devir do que é o mesmo seja, em sua volta ao começo, de uma riqueza infinita, para que o porvir seja lido como o que nunca foi escrito... há que se dar às palavras que recebemos. (LARROSA, 2004, p. 15). Inicio esta reflexão a partir da epígrafe acima, porque este texto e as palavras que escolhi para “dar a ler” têm a intenção de colocar em suspeição outras palavras: aquelas que tentam firmar, definitivamente, nosso modo de atuar, de ser professor e de lidar com o conhecimento matemático. Especificamente, neste ensaio intitulado “Problematizando a neutralidade e universalidade do conhecimento matemático”, tenho o propósito de alinhar-me àqueles trabalhos que têm problematizado as formas hegemônicas de se pensar o campo do conhecimento denominado de 1 Licenciada em Ciências e Matemática. Mestre e Doutora em Educação. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 167 matemática. Alinho-me também, com todos os trabalhos que buscam perceber a matemática em seus nós, em suas articulações com a própria produção da materialidade do mundo. Um mundo que sabemos é cada vez mais atravessado por questões ambientais, por catástrofes que sinalizam os problemas advindos de certa racionalidade. É nesse panorama que pretendo colocar em questão o campo do conhecimento com que me tenho pré-ocupado (por estar no centro de meu pensar) e me preocupado (pelo lugar que a matemática ocupa em relação às outras ciências). Quando digo “colocar em questão” significa aqui minha tentativa de sacudir as “verdades” que circulam e são aceitas de forma tranquila no campo do conhecimento denominado de matemática e que tem implicações diretas na área da educação. Dois movimentos... Acredito que, para refletirmos sobre “verdades”, que se instauram em qualquer área do conhecimento, sejam necessários dois movimentos metodológicos: o estranhamento e a problematização. O estranhamento permite distanciar-nos da nitidez e do brilho que possui a “verdade”. Esse brilho característico das verdades, por vezes, ofusca o nosso pensamento, ou até, de forma mais radical acaba impedindo-nos de pensar diferente. Assim, tenho como hipótese que o estranhamento possibilita devolver a opacidade de tais verdades, tornando-as algo que já não reconhecemos e aceitamos com tranquilidade. Já o segundo movimento, o de problematização, nos permite devolver a flexibilidade e a excitação, que me parece são características eliminadas das verdades consagradas. Tais movimentos encontram ressonância nas ideias de Foucault (2002, p. 29) quando afirma que é preciso, em relação a qualquer verdade estabelecida “[...] Sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas [...].” Com outras palavras, meu objetivo neste texto é dar visibilidade ao caráter contingente e arbitrário de algumas verdades que atravessam e acabam por constituir de um modo próprio o campo do conhecimento denominado de Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 168 matemática. Colocar assim, em questão a própria matemática, buscando enredá-la nas tramas de forças que a produzem, me parece ser bastante atraente. Ou ainda, interrogar a matemática em suas teias de significações, indo além dela mesma, pode abri-la a outros olhares, outras tramas, outras forças. Problematizando verdades... A primeira “verdade”, bastante disseminada nesse campo do conhecimento e que pretendo problematizar diz respeito à pretensão de neutralidade dessa ciência: a matemática como uma ciência neutra, vinculada exclusivamente a processos de objetivação do mundo. Matemática compreendida como sinônimo de objetividade. Nessa perspectiva, a matemática é entendida como uma ferramenta implicada somente nos processos de objetivação do mundo, como se processos de subjetivação não fossem por ela atravessados e acionados – matemática como ciência neutra cujo discurso não seria afetado pelo campo social porque obedeceria somente a suas determinações internas e sua lógica. Quando pensada na perspectiva da objetividade pura, a matemática passa a ser entendida como uma ferramenta capaz de oferecer uma representação fiel, “limpa”, livre das impurezas, uma ossatura idealizada, da realidade. Uma “realidade” organizada, hierarquizada, classificada. Assim, a “realidade”, capturada em sua essência, daria condições para se pensar a matemática como palavra última, como fundamento. Chegamos então às expressões tão comumente acionadas em nossos discursos cotidianos: é tão certo como dois e dois são quatro. Desse modo, a matemática, com sua linguagem asséptica, seria entendida como verdade última, como a ciência que encerra qualquer discussão, pois sua imparcialidade estaria fundamentada na essência do real. A pretendida “assepsia” seria possibilitada pelas características próprias desse campo do conhecimento: o formalismo e da abstração. Penso que essas características funcionariam como um dos importantes componentes para a formação da “grife” da matemática, e a constituiria em uma “ciência de marca” para usar uma expressão cotidiana, tão cara aos consumistas mais vorazes. Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 169 No entanto, seria interessante observar que essas características: o formalismo e abstração ocasionam, por um lado certo, um empoderamento desse campo do conhecimento, cabe lembrar o quanto essa ciência foi pensada como ferramenta para legitimar “as jovens ciências” tão necessitadas de afirmação e o quanto Comte, por exemplo, esperava obter para as ciências sociais essa positividade que o modelo matemático havia conferido às ciências naturais (LIZSCANO, 1993). Mas, por outro lado, são essas mesmas características que lhe fornecem críticas bastante ferrenhas. Se pensarmos no campo educacional, perceberemos a presença daqueles que Larrosa (2004, p.246) chama de “readófilos”, os maníacos de realidade ou os cotidianistas de plantão que criticam exatamente a distância entre a matemática e o mundo real ocasionado pelo exacerbado formalismo e abstração. Tal critica pode ser evidenciada nas palavras de Rota De todas as formas de fugir da realidade, a matemática é a mais bem sucedida. É uma fantasia que torna uma pessoa adicta porque retroage para melhorar a própria realidade da qual estávamos tentando fugir. (ROTA, Apud LIZARBURU E SOTTO, 2006, p. 15). Seria oportuno, nesse momento, pontuar algumas reflexões feitas pelo sociólogo Emanuel Lizscano (2006a) que apontam para o processo de efetivação dessa empreitada, ou seja o processo que assegura essa pretensão de neutralidade da matemática . Segundo esse autor: [...] opera-se aí um sagrado processo de depuração, que segue quatro etapas: a) separação ou demarcação entre dois âmbitos (puro/impuro), b) manutenção sistemática da exclusão mediante uma serie de tabus e regras protetoras c) institucionalização do esquecimento/destruição dos passos anteriores, d) re-elaboração permanente dos resíduos contaminantes que, insistem em re-aparecer, sem cessar, por toda a parte. Ao final desse processo tem-se a “emergência dos elementos puros”, descontaminados que expressam de forma exemplar essa “vontade de pureza” que move o espírito científico. (Ibidem, p.243). [minha tradução] No entanto, os elementos impuros, os resíduos que foram excluídos, ou a ambiguidade da ordem estabelecida, para citar Bauman (1999), insistem em ameaçar essa “vontade de pureza” tão necessária a manutenção da ordem. Em torno do conceito matemático mais rigoroso se entrelaçam uma trama de significados culturais, que foram considerados refugos, deixados de lado, mas que insistem em apontar para o caráter pragmático, mundano que não só atribui sentido Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 170 as invenções matemáticas, mas que também a constituem. É possível inferir que não há matemática sem mito. Como exemplo para verificarmos o entrelaçamento de conceitos matemáticos com cultura, apresento mesmo que de forma breve, algumas das condições de possibilidade para a emergência dos números negativos e do zero na cultura oriental. Se observarmos o pensamento chinês de espaço/tempo/número, veremos que esse se revela intimamente devedor do substrato místico, simbólico e mágico que o sustenta. O zero e os números negativos foram impensáveis para a racionalidade grega clássica por serem contrários a experiência e aos modos de pensar daquela época. Porém, os estudos de Lizscano (1993) indicam que já no séc. IX a.C o princípio da dualidade: yin/yang, forças complementares que pressupõem a existência de um equilíbrio, dava condições de possibilidade para a emergência de tais números na China. Essas ligações reafirmam o pensamento do historiador Oswald Spengler (1964) que no inicio do século XX, afirmava: cada matemática se inscreve em sua respectiva “mônada” cultural. Assim, existe aí um processo circular: a matemática não é simplesmente um reflexo de instâncias culturais, mas está implicada na produção de tais instâncias, pois o campo de problemas que considera válido, seus métodos de solução, seus modos de argumentação, seus critérios de rigor acabam constituindo determinadas racionalidades que estão implicadas também na constituição da cultura. Já no pensamento ocidental contemporâneo é possível perceber, graças ao trabalho desenvolvido por Foucault, os encadeamentos através dos quais existe a possibilidade de evidenciar e articular os acontecimentos, as relações de força, (FOUCAULT, 2000, p. 5) ao que pode ser pensável/ impensável em determinada época, também para o conhecimento matemático. Nessa perspectiva, a partir das teorizações foucaultianas, foi possível entender a estatística como um instrumento de uma racionalidade governamental, como uma Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 171 tecnologia de governo. A transição, segundo esse filósofo, de um Estado atento ao território para outro centrado na noção de população permite transformar a estatística no instrumento maior da nova racionalidade governamental. Assim, entender como as práticas discursivas constroem e são afetadas pelo pensamento matemático são questões que tem me interessado. Pergunto-me, ainda que sem resposta, como as teorizações pós-estruturalistas que borram as fronteiras do binário, do dicotômico, estão afetando e estão sendo afetadas pelo conhecimento matemático contemporâneo? Essa me parece ser uma questão intrigante e desafiadora. No entanto, parece-me que a linguagem matemática revitaliza o “mito babélico” de uma linguagem originária comum que resgataria a possibilidade de devolver a suposta unidade que teria sido perdida. Nessa tentativa de revitalização encontra- se uma segunda “verdade” que articulada ao pressuposto da neutralidade dissemina-se nesse campo do conhecimento: A universalidade do conhecimento matemático. Seria universal porque esse conhecimento seria transcendental. Teria negócios com o eterno, seria anterior ao homem, pois que pertenceria ao mundo das idéias, conhecimentos que “pairam no ar”. Nessa perspectiva, o conhecimento estaria aguardando para ser “descoberto”- Faça-se a luz - e qualquer cultura, obviamente que em determinado ponto de evolução, teria condições de acessar tal conhecimento. Assim, o caráter transcendente atribuído à matemática, fica evidenciado a partir da ideia de que, mesmo abandonados à própria sorte, seríamos conduzidos à “descoberta” da matemática hoje utilizada. Porém, eu gostaria de questionar essa pretensão de universalidade problematizando a existência de uma única matemática e, para isso utilizo-me de ferramentas teóricas desenvolvidas por Ludwig Wittgenstein, mais especificamente pelo “último Wittgenstein”. A existência de diferentes linguagens foi enfatizada na filosofia wittgensteiniana desta fase, pois para esse filósofo. [...] não existe a linguagem, mas simplesmente linguagens, isto é, uma variedade imensa de usos, uma pluralidade de funções ou papéis que poderíamos compreender como jogos de linguagem. Entretanto, como também não há uma função única ou privilegiada que possa determinar Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 172 algum tipo de essência da linguagem, não há também algo que possa ser a essência dos jogos de linguagem. (CONDÉ, 1998, p. 86, grifos do autor). As teorizações propostas por Wittgenstein têm contribuído, de forma ímpar, para problematizar o caráter universal pretendido pela matemática acadêmica e, em efeito, alicerçar as afirmações a respeito da existência de diversas matemáticas. Esta contribuição foi possibilitada pelo entendimento de racionalidade apontada por este filósofo. Tal entendimento se afasta da busca pela fundamentação última proveniente tanto de posturas essencialistas, através da busca por uma essência lógica (idealista), quanto de posturas que buscam a positividade dos fatos (positivista). Wittgenstein problematiza a racionalidade como resultado de um modelo representacional da linguagem - que propunha um isomorfismo entre linguagem e mundo. De forma contrária, suas teorizações privilegiam a interação ao invés da representação, ou seja, a racionalidade para este filósofo emerge da gramática, das regras presentes nas interações dos jogos de linguagem, das práticas sociais cotidianas presentes em uma dada forma de vida. Como existem diferentes formas de vida com diferentes jogos de linguagem é possível inferir a existência de diferentes gramáticas que possibilitam a construção de diferentes racionalidades. Neste sentido, como professora de um curso que forma professores de matemática para atuar no meio rural – Licenciatura em Educação do campo/UFSC - tenho proposto aos meus alunos que identifiquem e analisem os jogos de linguagem que se referem à matemática, presentes em diferentes formas de vida. Assim, temos tido a oportunidade de evidenciar os jogos de linguagem presentes nas práticas sociais do campo, os jogos de linguagem de crianças que vendem balas em sinaleiras, os jogos de linguagem de pescadores, entre outros. Destacar os diferentes modos de matematizar o mundo tem sido o objetivo de muitos trabalhos vinculados a vertente educacional denominada de etnomatemática. Tal vertente está interessada, exatamente, em identificar os modos de calcular, medir, estimar, inferir e raciocinar de grupos que foram marginalizados Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 173 O trabalho desenvolvido pela Etnomatemática tem sido possível porque a filosofia de Wittgenstein desestabiliza a compreensão de existência de uma única linguagem. Para este filósofo aquilo que conhecemos e damos significados, não está no objeto em si, fruto de uma essência, intenção esta do idealismo, nem na positividade dos fatos, justificativa do empirismo. O significado e, por conseguinte o conhecimento se dá no uso que fazemos da linguagem em uma dada forma de vida. Desta maneira, as “verdades” não são encontradas através da razão, mas inventadas por ela. Assim sendo, é através dos usos da linguagem que são atribuídos sentidos às atividades, aos objetos e aos acontecimentos e não apenas aspectos alcançados por meio da percepção. Em conseqüência, aquilo que chamamos de realidade é construído na e através da pragmática da linguagem, ou seja, “aquilo que para os homens parece assim, é o seu critério para o que é assim.” (WITTGENSTEIN, apud MORENO, 1995, p.33) Todos os jogos de linguagem estão corretos desde que os critérios para esta validação tenham sentido dentro de uma determinada forma de vida. Isto implica que, “(...) Naturalmente, formas de vida diversas estabelecem práticas diferenciadas, assim também, gramáticas diferentes e, consequentemente, inteligibilidades diferentes”. Nesse sentido, não se pode falar da inteligibilidade do mundo, mas de inteligibilidades possíveis.(CONDÈ, 2004, p.110) O filósofo, ao afirmar a inexistência de uma essência da linguagem, admite que nenhuma linguagem pode pretender-se universal. Existem linguagens e lógicas particulares, e estas são fruto do contexto onde estão inseridas. Ou seja, todos os jogos de linguagem possuem perfeição desde que façam sentido dentro de uma determinada forma de vida. No entanto, Wittgenstein afirma: O ideal está fixado em nossos pensamentos de modo irremovível. Você pode sair dele. Você tem que voltar sempre de novo. Não existe um lá fora; lá fora falta o ar vital. – Donde vem isto? A idéia está colocada, por assim dizer, como óculos sobre o nosso nariz, e o que vemos, vemo-lo através deles. Não nos ocorre tirá-los. (WITTGENSTEIN, 2004, p. 69). É com os óculos da Matemática acadêmica que tem sido construído o suposto “ideal”. No entanto, penso que é preciso considerar a Matemática como uma lente, uma possibilidade, uma linguagem que não é o reflexo do mundo, mas que, ao Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 174 “dizer sobre o mundo”, acaba por construí-lo e o faz de uma maneira bastante peculiar. Porém, a característica de universalidade do conhecimento e da linguagem matemática tem neutralizado a possibilidade de visibilidade e legitimidade de visões particulares da matemática. Mas existem outros modos de pensar matematicamente o mundo? Vários têm sido os trabalhos que apontam para outras racionalidades. A pesquisadora Alexandrina Monteiro (2002) relata uma experiência que viveu junto a um grupo do Assentamento Rural de Sumaré. Naquele local, a autora descreve seu encontro com Zé do Pito, plantador de tomates, que além de dedicar-se aos afazeres provenientes deste ofício, era responsável pela divisão do valor da conta de luz do assentamento entre os usuários. Os procedimentos do trabalhador rural para efetuar os cálculos se resumiam em dividir a taxa básica entre os que usaram a luz e o valor restante dividir conforme as condições de cada família. Sua divisão era proporcional. Porém os critérios para estabelecer tal proporcionalidade estavam articulados a partir de “relações de solidariedade e não de capital”, ou seja, escapavam do entendimento da matemática acadêmica. Knijnik (2006) também tem dado visibilidade a diferentes gramáticas que acabam por constituir um modo específico de matematizar o mundo de camponeses vinculados ao Movimento sem terra. Seus estudos apontam para diferentes maneiras de cubar a terra, ou seja, calcular a área de determinada superfície e para as estruturas dos cálculos mentais, a matemática oral desenvolvida pelos trabalhadores do campo. Experiência também diferenciada no que diz respeito a outras formas de matematizar o mundo foi vivenciada por Mariana Kawall Ferreira (2002), professora de Português e Matemática na escola do Di au a rum, no parque indígena do Xingu. Ao propor para a turma que lecionava o problema: “Ontem à noite peguei 10 peixes. Dei 3 para meu irmão. Quantos peixes tenho agora?” obteve como resposta 13 peixes. Ao analisarmos, com as lentes da Matemática acadêmica o valor encontrado, poderíamos pensar que tal resultado foi, no mínimo, equivocado ou que Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 175 existiria uma “incapacidade cognitiva” por parte deste grupo de alunos, já que a operação aritmética que responderia “corretamente” a este problema seria, obviamente, a subtração que produziria como resultado sete peixes. No entanto, a justificativa para a escolha da operação adição é surpreendente. De acordo com a explicação de um aluno: Fiquei com 13 peixes porque, quando eu dou alguma coisa para meu irmão, ele me paga de volta em dobro. Então 3 mais 3 é igual a 6 (o que o irmão lhe pagaria de volta); 10 mais 6 é igual a 16; e 16 menos 3 é igual a 13 (número total de peixes menos os 3 que Tarinu deu ao irmão). (FERREIRA, 2002, p. 56). Situações como estas indicam que impor uma determinada racionalidade ou usar somente o óculos da matemática acadêmica significa dar primazia a um modo de pensar, a uma lógica específica: significa também a possibilidade de destruir os valores e significados que acompanham a racionalidade de outras culturas. Pergunto o que significaria impor para tais comunidades – do Assentamento de Sumaré, do Parque Xingu ou do Movimento sem terra - critérios para validação de resultados baseados somente naqueles presentes na Matemática escolar? Tadeu da Silva (1998, p.194), entre outros, tem pontuado a importância de “ver o currículo não apenas como sendo constituído de ‘fazer coisas’, mas também vê-lo como ‘fazendo coisas às pessoas’”. Essa característica do currículo aponta-nos os perigos da imposição de uma única racionalidade. A construção dos processos de naturalização das verdades... Mas me pergunto como fomos produzindo um “olhar” que inferioriza os modos do “outro” pensar? Por que somente a maneira de matematizar da matemática acadêmica é tida como correta e verdadeira? O historiador George G. Joseph nos fornece pistas para que lancemos hipóteses para tal questão. Segundo ele Durante os últimos quatrocentos anos, a Europa e as nações culturalmente dependentes dela tem tido um papel dominante nos assuntos mundiais. Isto se reflete com demasiada freqüência no caráter de algumas das obras históricas escritas por europeus. Quando aparece outro povo, sempre aparece de forma transitória como se a Europa tivesse se aventurado a dirigir-se até eles; Assim, a história dos africanos ou dos povos indígenas da América, com freqüência, parece começar só depois de seu encontro com a Europa.(JOSEPH, 1996, p.24) Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 176 Acontecimentos e estilos de vida anteriores a este “encontro” passam a ser traduzidos, se o forem, como exóticos e folclóricos. No campo da História da Matemática as argumentações desenvolvidas para as matemáticas anteriores ou as que não seguiram o modelo grego apóiam-se, de forma geral, no caráter empírico que essas assumiram, ou seja, apontam, para um suposto “defeito” de não possuírem regras gerais e demonstrações. Esse “suposto defeito” ocorreria por que: Por formação e por hábito, costumamos nos situar na matemática acadêmica, dá-la por su-posta (isto é, posta debaixo de nós, como solo fixo) e, desde aí, olhar para as práticas populares, em particular, para os modos populares de contar, medir, calcular... Assim colocados, apreciamos seus rasgos tendo os nossos como referência. Medimos a distância que separa essas práticas das nossas, isto é, da matemática (assim mesmo, no singular). (LIZSCANO, 2006b, p.125). Essa comparação fica evidenciada na obra de Morris Kline, professor de matemática e historiador estado-unidense contemporâneo, que em seu livro: “A cultural Approach” (1962) dedica apenas três páginas das setecentas que perfazem sua obra à contribuição da matemática egípcia e babilônica. Sua justificava para tal procedimento está na afirmação de que as contribuições desses povos foram quase insignificantes. Morris Kline compara tais contribuições “a garatujas de crianças frente às grandes obras literárias”. (Ibidem, p.179). A desqualificação de técnicas que “fogem” ao estilo do método axiomático dedutivo das demonstrações, de caráter generalizador tem tido repercussões na História da Matemática. Uma dessas repercussões pode ser observada em relação ao processo de desvalorização experienciado pelo matemático hindu, que viveu no inicio do século XX, Srinivasa Ramanujan, (1887 - 1920). Os métodos desenvolvidos por Ramanujam diferiam daqueles desenvolvido pelos matemáticos “convencionais”. Ramanujam usava um quadro para cálculos e só transferia os resultados para seu caderno quando estava satisfeito com suas conclusões, não sentindo necessidade de demonstrar que seus resultados estavam corretos. Isto, provavelmente se deva as influências de sua cultura visto que ele atribuía suas formulações à intervenção divina, mais especificamente à deusa Namagiri. O brilhantismo e a notoriedade deste iminente matemático hindu só veio a ser reconhecida depois de seu encontro Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 177 com G. H. Hardy, professor da Universidade de Cambridge, considerado o “matemático de verdade. Ramanujan, este hindu, nascido em uma pequena cidade do sul da Índia, cuja existência esteve imersa em uma cultura brâmane, talvez, tenha cometido a audácia de ignorar tais preceitos científicos, mesclando aspectos “contaminados” de sua cultura com o conhecimento matemático. Como conseqüência deste ato “ilícito”, Ramanujan foi interditado, por um longo período, de ver seus trabalhos como pertencentes à “matemática da tribo burguesa, para usar uma expressão de Lizscano (2006b). Tessituras finais A crença em uma suposta neutralidade e universalidade do conhecimento matemático ou a reflexão que suscita a obra de Ramanujan dizem respeito à necessidade de moldar-se a um método específico para que algo possa ser considerado como matemática. Ajustar-se a um método específico, a uma norma, faz parte, no encaixar-se em uma determinada ordem: a ordem da matemática acadêmica Assim, tendo como referência as “verdades” disponibilizadas pelo campo da matemática acadêmica, vamos atribuindo valores, hierarquizando, toda e qualquer forma de matematizar o mundo que não tenha equivalência com a “nossa” matemática. Obviamente, esse processo tem tido implicações nos processos de subjetivação para pensarmos o outro. No entanto, acredito que a potência desses saberes sujeitados, ou que se encontram na exterioridade selvagem, para usar expressões foucaultianas, encontra-se exatamente em demonstrar a arbitrariedade do conhecimento considerado científico. São os refugos que insistem em aparecer, mas que por serem exatamente refugos, possibilitam “soltar o ar fresco das outras possibilidades” (SILVA; CORAZZA; ZORDAN, 2004, p.22). Rev. Traj. Mult. – Ed. Esp. XVI Fórum Internacional de Educação – Ano 3, Nº 7 ISSN 2178-4485 - Ago/2012 178 Foi com esta finalidade que produzi essa reflexão. Busquei retirar um pouco do brilho de “verdades” produzidas no campo do conhecimento matemático para abrir a possibilidade de tecer novos fios que não se pretendem melhores ou piores, mas simplesmente outros... Penso que essas “verdades”: a neutralidade e a universalidade estabelecem diferenças; constroem hierarquias e produzem identidades no interior de processos de significação. Mas se constituíram “em asserções que se tornaram tão “verdadeiras” que é difícil ver precisamente o que pode haver nelas de questionável”. Referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. 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