1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS - ICHL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA LUCIANA PAES BARRETO FERREIRA UMA ANÁLISE DOS ATENDIMENTOS PRESTADOS ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DO DISTRITO DE SAÚDE NORTE/AM Manaus – AM 201 0 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS - ICHL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA LUCIANA PAES BARRETO FERREIRA UMA ANÁLISE DOS ATENDIMENTOS PRESTADOS ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DO DISTRITO DE SAÚDE NORTE/AM Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, como requisito para obtenção do título de Mestre em Serviço Social, sob a orientação da Profa. Dra. Heloísa Helena Corrêa da Silva. Manaus – AM 2010 3 TERMO DE APROVAÇÃO Dissertação de autoria de Luciana Paes Barreto Ferreira, intitulada: “Uma Análise dos Atendimentos Prestados às Vítimas de Violência Sexual Infanto-Juvenil nos Serviços Públicos do Distrito de Saúde Norte/AM”, requisito para obtenção do título de Mestre do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, defendida em 15/01/2010 com a banca examinadora constituída por: _______________________________________________ Profa. Dra. Heloísa Helena Corrêa da Silva - Presidente _______________________________________________ Profa. Dra. Amélia Regina Nogueira - Membro _______________________________________________ Profa. Dra. Lucilene Ferreira de Melo - Membro Manaus/AM 2010 4 DEDICATÓRIA D Graça edico este trabalho aos meus pais e Fernando, pela educação, formação, amor, carinho, estímulo e auxílio em todos os momentos da minha vida. Dedico-lhes essa conquista como gratidão. Às minhas amadas sobrinhas, Aimée e Gabriela, pelos momentos de alegria proporcionados a toda família. 5 AGRADECIMENTOS A cima de tudo, agradeço a Deus pela dádiva da vida, por todas as graças recebidas e, por nos momentos aflitivos proporcionar-me a sua paz e a serenidade para enfrentar os obstáculos da vida e superar os desafios. Aos meus pais, Graça e Fernando, pelo amor, apoio, força, estímulo e dedicação. Aos meus irmãos, Fabíola e Ricardo, pela atenção, disponibilidade, carinho e pelas contribuições sempre tão importantes. Ao meu namorado, Jorge Júnior, por todo o amor, paciência e por todos os momentos de grande felicidade proporcionados, além da compreensão e apoio para a realização desse trabalho. À Rita de Kássia Maklouf, que direta ou indiretamente, sempre auxiliou no que fosse necessário, desde a minha infância. Aos meus cunhados, Alberto e Adriana, pelo apoio e disponibilidade. À minha orientadora, Profa. Dra. Heloísa Helena Corrêa da Silva, pela colaboração, seriedade, paciência e confiança dispensada a mim em todas as atividades acadêmicas. E também a todos os professores que contribuíram para a minha formação profissional e acadêmica. A todos os colegas de trabalho que aceitaram participar deste trabalho, pela confiança e disponibilidade, minha eterna gratidão. 6 “É melhor tentar e falhar, que preocupar-se e ver a vida passar; é melhor tentar, ainda que em vão, que sentar-se fazendo nada até o final. Eu prefiro na chuva caminhar, que em dias tristes em casa me esconder. Prefiro ser feliz, embora louco, que em conformidade viver ..." Martin Luther King 7 RESUMO A violência sexual é um fenômeno universal que por sua elevada incidência e prevalência, bem como pelos danos que determina, é considerado um complexo problema de saúde pública. Não obstante, configura em importante desafio para os profissionais de saúde, exigindo preparo e capacitação para o manejo clínico e psicossocial das vítimas, principalmente nas ocorrências durante a infância e adolescência. Além disso, em função de sua interface com questões policiais e jurídicas, exige conhecimentos apropriados. Deste modo, este trabalho se propôs a analisar os procedimentos adotados pelos profissionais dos serviços públicos de saúde, do Distrito de Saúde Norte, nos atendimentos prestados às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Em sua dimensão didático-pedagógica empregou a pesquisa explicativa de cunho quantiqualitativo. Foram elencados como sujeitos da pesquisa 35 profissionais de 08 serviços públicos municipais de saúde do Distrito de Saúde Norte (DISA Norte), que individualmente foram submetidos à entrevista estruturada e semi-estruturada, as quais foram realizadas com o auxílio de um formulário com perguntas fechadas e um roteiro de perguntas, sucessivamente. Além desta técnica de pesquisa, a observação participante também foi utilizada. A partir dos dados coletados identificaram-se limitações internas e externas nos atendimentos prestados às vítimas da violência sexual, tais quais: em termos de estrutura para o atendimento, as limitações internas mais relevantes foram a precária formação específica dos profissionais das unidades de saúde pesquisadas; a falta de divulgação da ficha de notificação de maus-tratos a crianças e adolescentes; a inexistência destas fichas de notificação nas unidades de saúde, e a pouca disponibilidade e sensibilidade dos profissionais. Em termos de processo de atendimento, os principais limites identificados foram infra-estrutura física inadequada para desenvolver as atividades assistenciais às vítimas de violência 8 sexual, especialmente pela falta de privacidade; equipamentos básicos e materiais permanentes que não satisfaçam às necessidades de atendimento imediato às vítimas de violência sexual; a falta de divulgação um protocolo/fluxo de atendimento que permita às equipes sistematizarem a avaliação e notificarem os casos; a pouca integração entre os profissionais das unidades de saúde, da rede de proteção e demais instituições; e a atuação deficiente dos Conselhos Tutelares. Ainda especificamente em relação a esse tipo de abuso, a carência e o desconhecimento dos serviços na rede para onde possam ser encaminhadas as vítimas e suas famílias. Deste modo, conclui-se que os percentuais altamente significativos apresentados neste trabalho indicam que uma das causas do alto índice de subnotificação dos casos de violência sexual infanto-juvenil se deve, principalmente, ao desconhecimento dos profissionais da saúde sobre os procedimentos técnicolegais para o trato da questão da violência sexual; ao fato de muitos dos profissionais preferirem não se envolver em problemas psicossociais; o desconhecimento da ficha de notificação; e, a inexistência das mesmas nas unidades de saúde. Por tais considerações, verifica-se a necessidade da sistematização de trabalhos de capacitação e sensibilização que alcancem efetivamente a parcela de profissionais que desconhecem os procedimentos que devem ser realizados com crianças e adolescentes vítimas da violência sexual e que não notificam e argumentam o motivo com a informação de não saber como fazer. Cada ator deste cenário, profissionais, gestores, sociedade civil tem um papel fundamental na identificação, na notificação, no encaminhamento e assistência dos casos de violência, mas um papel tão mais importante é o de articular ações conjuntas através de uma rede de atenção que possa dar uma resposta mais efetiva garantindo os direitos da criança e do adolescente e o comprometimento de todos com as ações e os serviços mais avançados para a área. Palavras-chave: Serviços Públicos de Saúde, Violência Sexual Infanto-Juvenil, Práticas Profissionais. 9 RESUMEN La violencia sexual es un fenómeno universal, que por su elevada incidencia y prevalencia, así como la determinación del daño, es considerado un complejo problema de salud pública. Sin embargo, establece un desafío importante para los profesionales de la salud, que requiere preparación y capacitación para el manejo clínico y el apoyo psicosocial a las víctimas, especialmente en los eventos durante la infancia y la adolescencia. Por otra parte, debido a su interfaz con la policía y las cuestiones jurídicas, exige conocimientos técnicos adecuados. Así, este estudio se propone examinar los procedimientos utilizados por los profesionales de la salud pública, del Distrito de Salud Norte, en la atención a los niños y adolescentes víctimas de violencia sexual. En la dimensión didáctica y pedagógica fue utilizada la pesquisa explicativa de matriz cuanticualitativo. Fueron clasificados como sujetos de la investigación 35 profesionales de 08 servicios de salud pública municipal del Distrito de Salud Norte (Norte DISA), que, individualmente, fueron sometido a entrevista estructurada e semi-estructurada, que se realizaron con la ayuda de un formulario con preguntas cerradas y un guión de preguntas, sucesivamente. Además, también se utilizo la observación participante. De los datos recogidos fureon identificadas limitaciones internas y externas sobre los servicios prestados a las víctimas de violencia sexual, tales como: la estructura para el cuidado, las limitaciones internas más relevantes fueron la formación profesional deficiente; la falta de divulgación de la ficha de notificación de abusos a niños y adolescentes; la inexistencia de las fichas en las unidades de salud y limitada disponibilidad y sensibilidad de los profesionales. En términos del proceso de atención, las principales limitaciones identificadas fueron la infraestructura física inadecuada para desarrollar actividades de asistencia a las víctimas de violencia sexual, 10 especialmente la falta de privacidad; equipo básico y materiales permanentes que no cumplen con las necesidades de asistencia inmediata a las víctimas de la violencia sexual; la falta de divulgación de un protocolo o flujo de servicio que permite a los equipos sistematizar la evaluación y notificar los casos; la escasa integración entre las unidades de salud en el trabajo, redes de seguridad y otras instituciones; y el pobre desempeño del Consejo de Protección del Niño . Aunque específicamente para este tipo de abuso, la privación y la falta de servicios en la red donde pueden ser enviados a las víctimas y sus familias. Así pues, parece muy significativo que los porcentajes presentados en este trabajo indican que una de las causas de la elevada tasa de subregistro de casos de violencia sexual contra niños y adolescentes se debe principalmente a la ignorancia de los profesionales de la salud sobre los procedimientos técnicos y legales para el acuerdo con el tema de la violencia sexual; el hecho de que muchos profesionales prefieren no involucrarse en problemas psicosociales; la falta de esta forma; y la ausencia de estas en las unidades de salud. Por estas consideraciones, hay una necesidad de un trabajo sistemático de formación y sensibilización que lleguen efectivamente a los profesionales que no conocien los procedimientos que se realizan en niños y adolescentes víctimas de violencia sexual y no notifican y discuten el motivo con la información de no sabe que hacer. Cada agente en este escenario, profesionales, gestores, la sociedad civil tiene un papel llave en la identificación, notificación, remisión y la asistencia en casos de violencia, sino como una función más importante es coordinar acciones conjuntas com uma red de atención que puede dar una respuesta más eficaz de garantizar los derechos de los niños y adolescentes y el compromiso de todas las acciones y los servicios más avanzados de la área. Palabras-llave: Salud Pública, Violencia Sexual en Niños y Jóvenes, Prácticas Profesionales. 11 SUMÁRIO Termo de Aprovação ................................................................................................. 03 Resumo...................................................................................................................... 07 Resumen ................................................................................................................... 09 Sumário ..................................................................................................................... 11 Lista de Siglas ........................................................................................................... 13 Lista de Tabelas ........................................................................................................ 15 Lista de Figuras ......................................................................................................... 15 Lista de Gráficos ........................................................................................................ 16 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 18 1. POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE: Organização do Sistema Único de Saúde no Brasil 1.1 Breve Contextualização da Atenção à Saúde................................................ 26 1.2 Perspectiva Histórica da Atenção à Saúde no Brasil ..................................... 29 1.2.1 A Saúde como um Direito e seus Embates na Atenção à Saúde de Crianças e Adolescentes ................................................................................ 34 1.3 O Cenário da Rede de Serviços de Saúde na Cidade de Manaus/AM ......... 40 2. A VIOLÊNCIA E SEUS REFLEXOS NA ATENÇÃO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES 2.1 Reflexões em Torno do Fenômeno da Violência .......................................... 49 12 2.2 Violência Doméstica e as Memórias da Infância Brasileira .......................... 53 2.2.1 Formas de Manifestação da Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes .................................................................................................. 60 2.3 Um Olhar Sobre os Atendimentos Prestados nos Serviços de Saúde às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual .................................. 66 3. SAÚDE X VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO JUVENIL: ANÁLISE E DISCUSSÃO DAS PRÁTICAS PROFISSIONAIS COTIDIANAS 3.1 As Práticas Profissionais em Saúde Frente aos Casos de Violência Sexual Infanto-Juvenil ................................................................................................ 81 3.2 Aspectos Éticos e Legais para Atendimento às Vítimas de Violência Sexual.............................................................................................................. 90 3.3 Organização da Atenção .............................................................................. 93 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 109 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 115 ANEXOS .................................................................................................................. 124 13 LISTA DE SIGLAS ABRAPIA Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência ACS Agente Comunitário de Saúde AIS Ações Integradas de Saúde AS Assistente Social CAIC Centro de Atenção Integral à Criança CAPS Caixas de Aposentaria e Pensão CF Constituição Federal CLT Consolidação das Leis Trabalhistas CNRS Comissão Nacional de Reforma Sanitária CNS Conselho Nacional de Saúde CONASP Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária CRAMI Conselho Regional de Registro aos Maus-Tratos na Infância CREPS Centro de Referência em Pneumologia Sanitária DEPCA Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente DISA NORTE Distrito de Saúde Norte DST’S Doenças Sexualmente Transmissíveis E Enfermeiro ECA Estatuto da Criança e do Adolescente FDTVAM Fundação de Dermatologia e Venereologia FMT-AM Fundação de Medicina Tropical IAPB Instituto de Aposentadoria e Pensão para bancários IAPC Instituto de Aposentadoria e Pensão para os comerciários IAPI Instituto de Aposentadoria e Pensão para industriários IAPM Instituto de Aposentadoria e Pensão para marítimos e portuários 14 IAPS IAPTEC Institutos de Aposentaria e Pensões Instituto de Aposentadoria e Pensão para trabalhadores em transporte e cargas ICAM Instituto da Criança INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social IPASE Instituto de Aposentadoria e Pensão para servidores públicos M Médico MRSB Movimento da Reforma Sanitária Brasileira MS Ministério da Saúde OMS Organização Mundial de Saúde OPAS Organização Pan-Americana de Saúde PA Pronto Atendimento PSF Programa de Saúde da Família PSF Programa de Saúde da Família Psi Psicólogo SAMHPS Sistema de Assistência Médico-hospitalar da Previdência Social SEMSA Secretaria Municipal de Saúde SPA Serviço de Pronto Atendimento SSP/AM Secretaria de Estado de Segurança Pública do Amazonas SUCAM Superintendência de Campanhas da Saúde Pública SUDS Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde SUS Sistema Único de Saúde TE Técnico de Enfermagem UBS Unidade Básica de Saúde UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância (United Nations Children's Fund) USF Unidades de Saúde da Família USP Universidade de São Paulo VD Violência doméstica 15 LISTA DE TABELAS TABELA I Rede Assistencial do Distrito de Saúde Norte ........................... 43 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 Trilhas de Comunicação de Violência Infanto-Juvenil ................. 69 FIGURA 2 Vista Geral da Unidade de Saúde da Família .............................. 96 FIGURA 3 Vista da Recepção da Unidade de Saúde da Família ................. 97 FIGURA 4 Única sala de Atendimento da Unidade de Saúde da Família...... 97 16 LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 Distribuição dos Participantes segundo a profissão .................... 46 GRÁFICO 2 Gênero dos Entrevistados ............................................................ 47 GRÁFICO 3 Distribuição dos Participantes segundo a Faixa Etária ................ 48 GRÁFICO 4 Conhece a Ficha de Notificação de Maus-tratos contra Crianças e Adolescentes? .............................................................................. 72 GRÁFICO 5 Conhece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? .......... 72 GRÁFICO 6 Você já leu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? ...... 72 GRÁFICO 7 Já atendeu algum caso de Violência Sexual Infanto-Juvenil no exercício de sua profissão? ......................................................... 73 GRÁFICO 8 Quais foram os procedimentos clínicos adotados? ..................... 74 GRÁFICO 9 Quais seriam os procedimentos clínicos adotados? .................... 74 GRÁFICO 10 Quais foram os procedimentos psicossociais adotados? ............ 75 GRÁFICO 11 Quais seriam os procedimentos psicossociais adotados? .......... 75 GRÁFICO 12 Você Notificou o caso a algum órgão? ........................................ 77 GRÁFICO 13 Notificaria o caso a algum órgão? .............................................. 77 GRÁFICO 14 Porque não notificou o caso? ....................................................... 79 GRÁFICO 15 Porque não notificaria o caso? .................................................... 79 GRÁFICO 16 GRÁFICO 17 Você se sente capacitado para atender e orientar crianças e adolescentes vítimas de VS? ....................................................... 86 Você já Participou de Curso de capacitação para atendimento às vítimas de VS infanto-juvenil? ...................................................... 87 Na sua formação acadêmica você teve acesso a discussões GRÁFICO 18 relativas a responsabilidade de denúncia nos casos de VS infantojuvenil? ......................................................................................... 88 GRÁFICO 19 O código de ética da sua profissão lhe dá respaldo na denúncia de 17 violência contra crianças e adolescentes? ................................... 91 GRÁFICO 20 Você acha que este serviço de saúde dispõe de um ambiente adequado para atendimento às vítimas de VS? .......................... 95 Esta unidade dispõe de equipamentos e materiais permanentes GRÁFICO 21 que satisfaçam as necessidades de atendimento às vítimas de VS? ............................................................................................ 101 GRÁFICO 22 GRÁFICO 23 GRÁFICO 24 GRÁFICO 25 Você considera que a equipe de profissionais deste serviço está capacitada para atender vítimas de VS? ................................... 102 Qual a sua impressão sobre o atendimento prestado às crianças e adolescentes vítimas de VS neste serviço de saúde? ............... 103 Pra você o serviço de referência e contra-referência na saúde tem sido eficaz? ................................................................................ 105 Essa unidade de saúde possui Ficha de Notificação de Maus-tratos contra crianças e adolescentes de fácil acesso? ....................... 106 18 INTRODUÇÃO A violência é hoje no mundo uma grave questão a ser enfrentada pelos distintos setores da sociedade, sobretudo o da saúde que constitui, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde1 (OPAS), a encruzilhada para onde convergem todas as conseqüências da violência. Dentre os vários tipos de violência esta pesquisa se restringiu no da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes que tem se estabelecido como uma das realidades mais cruéis do Brasil. Este tipo de agravo foi selecionado por estar atingindo uma parcela importante da população, constituindo-se um obstáculo para o desenvolvimento psicossocial e econômico; por ser considerado um problema de saúde pública de extrema necessidade que seja dado segmento a uma responsabilização; ser um desafio à pesquisadora por se constituir uma demanda já estabelecida e crescente que requer a articulação das dimensões conceituais com as operacionais devido ao difícil diagnóstico ocasionado pela “síndrome do segredo”2 que o envolve; e, à grande variedade de formas de apresentação, muitas vezes, inaparente fisicamente, levando a dificuldades na condução dos casos, na decisão de notificação e na abordagem com as famílias. Estudos epidemiológicos sobre violência contra crianças e adolescentes revelam não apenas a incidência, mas também fatores de risco e a necessidade de tratamento, reabilitação e prevenção das ocorrências. Em pesquisa realizada pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência – ABRIPIA, no período de fevereiro de 1997 a janeiro de 2003, pode-se evidenciar o 1 Cf. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS). Resolución XIX: Violencia e Salud, 1993. 2 Cf. FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança: uma abordagem multidisciplinar, 1993. 19 expressivo aumento dos casos de violência sexual e da demanda visivelmente crescente de encaminhamentos às instituições de atendimento das vítimas onde: foram denunciados em 1997, 915 casos de abuso e exploração sexual, já em 2002, 1793 casos, e, em 2003 (apenas o mês de janeiro) 603 casos. Outra pesquisa mais recente, realizada pela Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA) do Estado do Amazonas, no período de 2005 a 2007, também constata o significativo aumento dos casos de violência sexual infantojuvenil: 246 casos em 2005, 466 em 2006 e, 494 em 2007. Com freqüência, os profissionais de saúde são os primeiros a serem procurados e informados sobre episódios de violência. O motivo da busca de atendimento é, muitas vezes, mascarado por outros problemas ou sintomas que não se configuram, isoladamente, em elementos para um diagnóstico, entretanto, é a partir desse instante que os profissionais devem ser capazes de investigar e intervir no caso, confirmando/suspeitando, notificando a violação e assim ultrapassando as “barreiras hospitalares”. Com relação à notificação o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem uma formulação clara sobre o papel da saúde e da educação, tratando-os como esferas públicas privilegiadas de proteção que recebem incumbências específicas: identificar, notificar a situação de maus-tratos e buscar formas/parceiros para proteger a vítima e dar apoio à família. E, tendo em vista os aspectos supracitados, este trabalho se propõe a analisar os procedimentos adotados pelos profissionais dos serviços públicos de saúde, do Distrito de Saúde Norte, nos atendimentos prestados às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Tal análise se justifica pelo fato de a pesquisadora ter sido Conselheira Tutelar da Zona Centro-Sul, e por ter vivenciado durante os três anos do seu mandato o inexpressivo quantitativo de notificação dos casos de maus-tratos infantojuvenil, eram raras as notificações que chegavam aos Conselhos Tutelares dos serviços de saúde, e mais especificamente as de violência sexual. Esta afirmação pôde ser comprovada a partir de um levantamento realizado pela pesquisadora, em quatro dos Conselhos Tutelares de Manaus (Zonas Norte, Centro-Sul, Leste e Centro-Oeste/período: Abril de 2005 a Abril de 2006). E, dentre os dados 20 levantados, constatou-se apenas uma notificação na Zona Centro-Sul, e, outra na Zona Centro-Oeste. Assim surgiram-nos as seguintes indagações: como tem se dado a dinâmica/fluxo de atendimento nos serviços públicos de saúde para atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil? Os profissionais da saúde sabem da obrigatoriedade da notificação destes casos? Os serviços de saúde possuem a Ficha de Notificação de Maus-Tratos? Os profissionais conhecem esta Ficha? Os serviços de saúde estão preparados para atendimento a essa demanda? Acreditamos que tais indagações são relevantes, pois problematizam o atendimento prestado pelos profissionais nos serviços públicos de saúde a crianças e adolescentes vítimas da violência sexual e, também pelo fato de a violência sexual não levantar apenas um problema simplesmente de relação familiar, biológica, psicológica ou social, mas também de saúde pública, uma vez que as doenças venéreas e a gravidez precoce envolvem esse fato. O estudo e avaliação desses serviços e práticas são essenciais tanto para os responsáveis da assistência quanto para usuários e financiadores, uma vez que são apresentadas as práticas, dificuldades, expectativas, conhecimentos e percepções dos atores (os profissionais da saúde) envolvidos nos atendimentos prestados em oito (08) dos serviços públicos de saúde do Distrito de Saúde Norte (DISA Norte), da cidade de Manaus/AM, às vítimas de violência sexual infanto-juvenil. Deste modo, o desenvolvimento deste trabalho se deu a partir da concepção dialética, a qual não existe oposição sujeito/objeto no conhecimento, e sim uma relação recíproca, pelo processo histórico-social. Um depende do outro e ambos dependem da realidade histórica. Segundo Minayo a concepção dialética, “(...) se propõe a abarcar o sistema de relações que constrói o modo de conhecimento exterior ao sujeito, mas também as representações que traduzem o mundo dos significados (...). Ela busca encontrar, na parte, a compreensão e a relação com o todo; e a interioridade e a exterioridade como constitutivos dos fenômenos”3. A partir desta perspectiva o homem é visto como sujeito de sua história, ser social com espaço e tempo determinados, estabelecendo relações, mergulhado na 3 MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em Saúde, p. 24-25, 1994. 21 realidade sócio-cultural a que pertence como ser ativo, integrado, crítico, fazendo e modificando a história. Em sua dimensão didático-pedagógica este trabalho empregou a pesquisa explicativa4 de cunho quantiqualitativo, por se evidenciar que “a associação das duas abordagens possibilita um aprofundamento cada vez maior das facetas do objeto estudado”5, mostrando-se assim, os dois tipos de abordagem, rigorosamente complementares e convergentes para um melhor conhecimento do problema que se deseja esclarecer. O levantamento teórico-metodológico por ser a parte que fundamenta pesquisa, dando sustentação teórica, foi efetivado no decorrer de toda a pesquisa, para que assim, a partir dos dados empíricos coletados, pudesse correlacioná-los com a teoria. A fundamentação teórica foi importante, pois facilitou a definição de contornos mais precisos da problemática estudada a partir dos levantamentos bibliográficos, fichamentos de textos extraídos de jornais, livros, revistas e outros documentos que estejam relacionados ao tema do presente trabalho. Assim, as contribuições teóricas foram significativas para a condução metodológica da pesquisa e para a análise dos dados. Neste trabalho a técnica de pesquisa utilizada foi a entrevista, que para Severino “é a técnica de coleta de informações sobre um determinado assunto, diretamente solicitadas aos sujeitos pesquisados. Trata-se, portanto, de uma interação entre pesquisador e pesquisado”6 A opção foi trabalhar com entrevistas, segundo dois modelos diferenciados: entrevista estruturada e entrevista semiestruturada, as quais foram realizadas com 35 profissionais dos serviços de saúde pesquisados. A entrevista estruturada7, que é aquela em que o entrevistador segue um roteiro previamente estabelecido e as perguntas feitas ao indivíduo são 4 Segundo Severino, a pesquisa explicativa “além de registrar e analisar os fenômenos estudados, busca identificar suas causas, seja através da aplicação do método experimental/matemático, seja através da interpretação possibilitada pelos métodos qualitativos” (2007, p. 123). Assim, além de registrar, analisar e interpretar os fenômenos estudados, pretende-se identificar os fatores que determinam ou que contribuem para a ocorrência dos fenômenos, isto é, suas causas. 5 QUEIROZ, Maria Isaura. O pesquisador, o problema da pesquisa, a escolha de técnicas: algumas reflexões, p. 21, 1992. 6 SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico, p.124, 2007. 7 De acordo com Chizzotti (2003), entrevista estruturada é um tipo de comunicação entre um pesquisador que pretende coletar informações sobre fenômenos e indivíduos que detenham essas informações e possam emiti-las. Para Gil (2002), a entrevista estruturada é quando se desenvolve a partir de uma relação fixa de perguntas. Esta técnica consiste em fazer uma série de perguntas a um 22 predeterminadas. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi o formulário8 composto por perguntas fechadas e preenchido através da entrevista individual9. A entrevista semi-estruturada10 se configura como “um dos principais meios que tem o investigador para realizar uma colheita de dados”11. Ela implica em compor roteiros contendo tópicos elaborados de forma que possa ser aplicada a todos os participantes. As questões seguem uma ordem flexível e a seqüência e minuciosidade estarão interligadas ao discernimento e disponibilidade dos participantes. O relevante é que a dinâmica da entrevista ocorra de forma natural. Ela é caracterizada pela existência de um guia previamente que serve de eixo orientador ao desenvolvimento da entrevista12. Quando associadas, as entrevistas obtêm informações sobre comportamento, atitudes, sentimentos e valores da pessoa entrevistada, o que permite ir além da simples descrição do dado puro em si, incorporando novas interpretações dos resultados adquiridos, os quais tornam a análise dos dados mais ampla e rica e, ao mesmo tempo, possibilita a aproximação do pesquisador à complexidade e riqueza dos dados inerentes a uma investigação dessa natureza. As questões iniciais do formulário foram relacionadas à caracterização da clientela alvo – sexo, idade, profissão e etc.; em seguida vieram as questões pertinentes diretamente, ao objeto em análise. Quanto às questões fechadas a pesquisadora as preencheu no formulário preestabelecido conforme foram sendo respondidas e, quanto às questões abertas as mesmas foram captadas através de informante, conforme roteiro preestabelecido, onde esse roteiro pode constituir-se de um formulário/questionário que será aplicado da mesma forma a todos os informantes/sujeitos da pesquisa, para que se obtenham respostas para as mesmas perguntas. 8 “Documento padronizado, estruturado segundo sua finalidade específica, possuindo características e campos apropriados, destinado a receber, preservar e transmitir informações, cujos lançamentos são necessários para definir a natureza ou cobrir um fluxo qualquer de trabalho, desde seu início até sua conclusão” (CURY, 2006). De acordo com Appolinário (p. 100, 2004), o formulário é “instrumento de pesquisa similar a um questionário, porém a ser preenchido pelo próprio pesquisador (e não pelo sujeito de pesquisa)”. 9 VIDE ANEXO I. 10 “(...) parte de questionamentos básicos, fundamentado nas teorias e nas hipóteses que interessam à pesquisa, oferecendo-lhe uma diversidade de interrogativas a partir das respostas dos entrevistados (informantes), ou seja, no momento que o informante, seguindo espontaneamente a sua linha de pensamento, responde os questionamentos feitos pelo investigador, esta resposta poderá gerar uma série de novos questionamentos e a partir desse momento o informante passa a participar da elaboração do conteúdo questionado pela pesquisa” (TRIVIÑOS, Augusto. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação, p.146, 1987). 11 Id. Ibid., p.143, 1987. 12 VIDE ANEXO II 23 um gravador. Tais instrumentos, primeiramente, foram submetidos a um teste com vistas a assegurar maior consistência e coerência nos dados a serem coletados. Outra técnica de pesquisa utilizada foi a observação participante13, que mediante notas e manutenção do diário de campo (field notes), a pesquisadora se autodisciplinou a observar e anotar sistematicamente. Ela foi obtida por meio do contato direto da pesquisadora com o fenômeno estudado, permitindo recolher as ações dos atores em seu contexto natural, a partir de suas perspectivas e seus pontos de vista. Sua presença constante contribuiu para gerar confiança na população estudada. Todas as entrevistas foram previamente agendadas (dia e turno). Não foi possível agendar horário, pois os profissionais foram entrevistados durante a jornada de trabalho. Assim, foi necessário aguardar o momento em que estivessem menos sobrecarregados e disponíveis para conversar. No momento de agendar a entrevista, explicou-se a sua finalidade e que seu conteúdo seria acerca das atividades diárias realizadas pelo entrevistado. Com relação à análise dos dados quantitativos Chizzoti expõe que tem por objetivo “propor uma explicação do conjunto de dados reunidos a partir de uma conceitualização da realidade percebida ou observada”14, podendo-se utilizar, para isso, dentre outras opções as análises estatísticas. Nesta pesquisa, utilizou-se o sistema Epi-Info, versão 6.02, através de seu programa Analysis, para proceder à análise estatística. Já quanto à pesquisa qualitativa, que produz um volume imenso de descrições detalhadas, que precisam ser organizadas e compreendidas, todo cuidado necessário na fase de análise. Através de um processo continuado, sistemático, complexo e não-linear, no qual se procura identificar dimensões, categorias, tendências, padrões e relações, os dados vão sendo trabalhados e seus significados desvendados15. 13 Segundo Minayo, “(...) a importância dessa técnica reside no fato de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real” (MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em Saúde, p. 59-60, 1994). 14 CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, p. 69, 2003. 15 Cf. ALVES-MAZZOTI, Alda Judith & GEWANDSNAJDER, Fernando, O Método nas ciências naturais e sociais – pesquisa quantitativa e qualitativa, 1998. 24 Dentre as técnicas de análise existentes, optou-se por utilizar a “Análise de Conteúdo”16 dentro da Teoria da Representação Social, a qual Tobar e Yalour definem que é onde “o pesquisador recolhe comportamentos verbais que servem de indicadores que, agrupados, constituem unidades da vida social. À categorização deste material denomina-se Análise de Conteúdo”17. Atendendo à Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, que trata das “Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos”, este projeto foi submetido, inicialmente, ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)18 e a partir da avaliação e aprovação, foi desenvolvido. Todos os participantes da pesquisa foram submetidos ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido19 e tiveram garantido sua participação espontânea e o anonimato. Com o intuito de preservar a identidade dos participantes, os profissionais foram identificados como: Assistente Social (AS), Médico (M), Enfermeiro (E); Técnico de Enfermagem (TE); Psicólogo (Psi); Agente Comunitário de Saúde (ACS). E, tendo os procedimentos teórico-metodológicos apresentados, expõe-se, neste momento, que este trabalho está estruturado em três capítulos: no primeiro, intitulado “Políticas Públicas de Saúde no Brasil: Organização do Sistema Único de Saúde (SUS)”, apresenta-se a trajetória da Política de Saúde no Brasil, a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e sua descentralização, assim como a contextualização da rede de serviços de saúde na Cidade de Manaus/AM, e mais especificamente, no Distrito de Saúde Norte (DISA Norte). No segundo capítulo, faz-se uma reflexão em torno do fenômeno da violência. Em primeiro momento, expõe-se acerca dos termos “violência” e “violência doméstica” e trata-se das memórias desta violência doméstica na infância brasileira. Posteriormente, envereda-se para as formas de manifestação da violência doméstica e faz-se uma análise dos atendimentos prestados às crianças e 16 “(...) procura reduzir o volume amplo de informações contidas em uma comunicação a algumas características particulares ou categorias conceituais que permitam passar dos elementos descritivos à interpretação ou investigar a compreensão dos atores sociais no contexto cultural em que produzem a informação ou, enfim, verificar a influência desse contexto no estilo, na forma e no conteúdo da comunicação” (CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, p. 99, 2003 ). 17 TOBAR, Federico & YALOUR, Margot. Como fazer teses em saúde pública: conselhos e idéias para formular projetos e redigir teses informes de pesquisas, p. 105, 2001. 18 VIDE ANEXO III. 19 VIDE ANEXO IV. 25 adolescentes vítimas da violência sexual nos serviços públicos de saúde do DISA Norte, enfocando tal abordagem mais para o fluxo de atendimento e a notificação dos casos no setor Saúde. E, com objetivo de compreender como tem se efetivado o atendimento a essas às vítimas da violência sexual infanto-juvenil hoje, nos serviços públicos de saúde do Distrito de Saúde Norte, de Manaus/AM, no terceiro capítulo, faz-se um entrelaçamento dos distintos dispositivos legais apresentados nos capítulos anteriores, as práticas profissionais em saúde e a estrutura de atendimento das Unidades de Saúde, tentando-se oferecer fundamentos para a reflexão sobre o agir dos profissionais das distintas Instituições de saúde do Distrito de Saúde Norte. Tendo-se em vista, que não há pesquisa linear, ou seja, toda pesquisa é dinâmica e feita de idas e vindas, os dados coletados na pesquisa de campo foram inseridos nos distintos capítulos trabalhando-se sincrônica e diacronicamente, a fim de buscar nos processos a realidade20. Neste sentido, este estudo, além de discutir o problema da violência sexual contra crianças e adolescente (que dentre as formas de expressão da violência são as mais freqüentes e mais passíveis de prevenção pelo setor Saúde), expõe a atual situação das unidades de saúde do Distrito de Saúde Norte, mais especificamente, no trato às vítimas da violência sexual infanto-juvenil. Assim, expõe-se que acreditar na criança e no adolescente, ter como objeto a proteção destas pessoas, promover intervenções positivas tendo como alvo a família, não distorcer o processo de atendimento, acreditando poder resolver o problema, e atuar cooperativamente em equipe somente poderá colaborar no processo de melhoria da qualidade do atendimento nos serviços públicos de saúde. 20 Cf. NETTO, José Paulo. Relendo a Teoria Marxista da História, s.d. 26 I CAPÍTULO POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE: Organização do Sistema Único de Saúde no Brasil 1.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA ATENÇÃO A compreensão da realidade demanda uma análise preliminar das condições históricas, em cuja processualidade se estabeleceram as bases de determinadas condições e relações constatadas no presente. Deste modo, é fundamental para a discussão das categorias “violência” e “prática profissionais” em saúde, uma apreensão das atuais políticas sociais de saúde e conhecer preliminarmente as bases históricas de sua origem e fundamentos legais. Os direitos dizem respeito às necessidades elementares de todo ser humano, tais como direito à alimentação, habitação, saúde, educação, expressando em síntese o direito à subsistência em condições adequadas propiciada por um trabalho e um salário compatíveis21. As políticas sociais são ações do Estado voltadas para tornar efetivos esses direitos sociais, estabelecendo as condições que viabilizam a sua existência concreta na vida individual e coletiva, como tal um sistema de previdência social, programas de saúde ou fixação do salário mínimo dos trabalhadores. Segundo Potyara22 (1998), as políticas sociais23 têm sua origem associada à questão social, 21 Cf. COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania. 1998. Cf. PEREIRA, Potyara Amazoneida Pereira. A Questão do bem-estar do menor no contexto da Política Social brasileira, 1988. 22 27 aos direitos políticos e às primeiras conquistas no campo dos direitos sociais, surgida na Europa no século XIX, no rastro das transformações produzidas pelo processo de industrialização. Advém, principalmente, de dois principais movimentos antagônicos: o da economia de mercado e o de reação aos efeitos destrutivos desta economia de mercado. No contexto neoliberal, as políticas sociais constituem-se numa válvula de “segurança” para questões sociais potenciais ou como eficiente instrumento de controle das dificuldades econômicas e sociais que regularmente irrompem na sociedade. São políticas compensatórias voltadas para o atendimento dos novos problemas que são subprodutos do crescimento industrial em uma economia privada. O quadro social resultante do ajuste neoliberal desencadeia um aumento na demanda por benefícios e serviços sociais. Nesse quadro, a proposta é a de cortar ainda mais os gastos públicos, agravando a já iníqua situação de alocação de recursos para as políticas sociais. Segundo Yasbeck, as políticas sociais empreendidas pelo Estado Brasileiro estão inseridas na teia de relações sociais mais amplas que corporificam o capitalismo no país. São políticas de caráter “duvidoso”, pois visam acomodar apenas recursos e serviços sociais, fato que vem caracterizando os investimentos sociais do Estado. São políticas casuísticas, inoperantes, fragmentadas, sem regras estáveis ou reconhecimento de direitos24. Dentre as políticas sociais incluem-se as políticas de saúde, orientadas para a garantia de um direito social: a saúde, que para a Organização Mundial de Saúde (OMS) compreende em “um completo bem estar físico, mental e social, não apenas a ausência de afecção ou doença”25. Este conceito criticado por Rezende como estático e subjetivo, não contempla a dinâmica conflituosa existente entre o homem e o meio, logo saúde seria, 23 As políticas sociais são ações do Estado voltadas para tornar efetivos os direitos sociais, estabelecendo as condições que viabilizam a sua existência concreta na vida individual e coletiva. Segundo Faleiros, as políticas sociais são constituídas de programas de saúde, educação, habitação, de assistência – à criança, à mulher, ao estudante, ao idoso, aos indígenas, doentes, entre outros. Inserem-se como objeto de suas ações, programas localizados a nível estadual e municipal, realizados pelos governos das respectivas esferas de governo; também fazem partes dessas políticas, atividades desenvolvidas por entidades privadas que recebem recursos governamentais (FALEIROS, Vicente de Paula. O Que é Política Social, 2000). 24 Cf. YASBECK, Maria Carmelita. Assistência na trajetória das políticas sociais brasileiras: uma questão de análise, 1998. 25 REZENDE, A. L. M. Saúde: Dialética do Pensar e do Fazer, p. 85, 1986. 28 “uma postura humana ativa e dialética frente às permanentes situações conflituosas geradas pelos antagonismos entre o homem e o meio”26. Já as políticas públicas consistem na implantação, gestão e avaliação das políticas sociais e podem ser consideradas como uma forma de gestão estatal da força de trabalho e, nessa gestão não só conforma o trabalhador às exigências da reprodução, valorização e expansão do capital, como também é o espaço de articulação das pressões dos movimentos sociais pela ampliação do atendimento dos seus direitos sociais. Ela é um direito do cidadão, viabilizado pelo Estado. Por serem direitos básicos de todo cidadão, os direitos sociais passaram a ser inseridos nas Constituições Federais e leis fundamentais dos países. Foi a Constituição de Weimar (Alemanha, 1919), que pela primeira vez, “(...) estabeleceu princípios constitucionais voltados à questão econômica e social, os quais mais tarde serviram de modelo a outras Constituições em todo o mundo. Nos sistemas chamados sociais-liberais, a propriedade e o exercício das atividades econômicas estão condicionadas ao bem-estar coletivo. O bem-estar coletivo ou social é o bem-comum, o bem do povo em geral, expresso sob todas as formas de satisfação das necessidades comunitárias. Nele se incluem as exigências materiais e espirituais dos indivíduos coletivamente considerados; são as necessidades vitais da comunidade, dos grupos, das classes que compõem a sociedade. O bemestar social é o objetivo da justiça social a que se refere nossa Constituição no seu artigo 170, e só pode ser alcançado através do desenvolvimento nacional”27. No Brasil, a garantia legal dos direitos sociais pelo Estado ocorreu a partir dos anos 30. Nesse momento, a situação econômica e política do país determinou o surgimento de políticas sistemáticas voltadas para a solução das questões sociais28, como por exemplo, salários, saúde e habitação, conforme será apresentado no tópico a seguir. 26 Id. Ibid. p. 87, 1986. GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, p.39, 1995. 28 Cf. BRAVO, Maria Inês Souza. As políticas de seguridade social. In: Capacitação em Serviço Social. s.d. 27 29 1.2 PERSPECTIVA HISTÓRICA DA ATENÇÃO À SAÚDE NO BRASIL A atenção à saúde no Brasil praticamente inexistiu nos tempos de colônia (1500-1822). A partir dos referenciais pesquisados, constatou-se que os indígenas, com suas ervas e cantos, e os boticários29, que viajavam pelo Brasil Colônia, eram as únicas formas de assistência à saúde. Aprofundando-se nos acontecimento históricos, encontram-se alguns registros do desenvolvimento de atividades de saúde no Brasil desde 1808, com a vinda de D. João VI quando se começou a organização da Saúde Pública, com a concepção do cargo Provedor-Mor de Saúde da Corte do Estado do Brasil e a criação das Faculdades de Medicina da Bahia e Rio de Janeiro. Com a proclamação da República, em 1889, foi estabelecida a autonomia dos Estados e Municípios e a Constituição de 1891 transferiu as responsabilidades sanitárias para os Municípios30. Conforme pesquisa literária foi no primeiro governo de Rodrigues Alves (1902-1906) que houve a primeira medida sanitarista no país. No Rio de Janeiro, por exemplo, não existia saneamento básico, e então várias doenças graves como varíola, malária, febre amarela e até a peste disseminavam-se. Com isso, o presidente nomeou o médico sanitarista Oswaldo Cruz, sendo apelidado como “Saneador do Brasil”, que em uma ação policialesca, convocou a população para ações que invadiam as casas, queimavam roupas e colchões. Em virtude da inexistência de algum tipo de ação educativa, a população se revoltou e ficou indignada. O auge do conflito foi a instituição da vacinação anti-varíola, que fez com que a população fosse às ruas e iniciasse a Revolta da Vacina. Oswaldo Cruz acabou afastado. Apesar do fim conflituoso, o sanitarista conseguiu solucionar parte 29 Antigamente os farmacêuticos eram designados por boticários, ou seja, aqueles que trabalhavam em boticas. Sabe-se da existência de boticários em Portugal desde o século XII. Inicialmente, todo medicamento vinha de Portugal já preparado. Todavia, as ações piratas do século XVI e a navegação dificultosa impediam a constância dos navios e era necessário fazer grande programação de uso, como ocorria em São Vicente e São Paulo. Devido a estes fatos, os jesuítas foram os primeiros boticários do Brasil, onde seus colégios abrigavam boticas. Nestas, era possível encontrar remédios do reino e plantas medicinais. Em 1640 foi legalizado as boticas como ramo comercial. Os boticários eram aprovados em Coimbra pelo físico-mor, ou seu delegado, na então capital Salvador. Tais boticários, devido a facilidade de aprovação, eram pessoas de nível intelectual baixo, por vezes analfabetos, possuindo pouco conhecimento sobre os medicamentos. Em 1825, ocorre a consolidação e criação da Faculdade de Farmácia da Universidade do Rio de Janeiro. Somente em 1886 é que o boticário deixa de existir e a figura do farmacêutico ganha força (Cf. GUÉDON, Philippe, Breve História da Farmácia Brasileira , 1965). 30 Cf. SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História geral da medicina brasileira. 1991. 30 dos problemas e adquirir informações que ajudaram seu sucessor, Carlos Chagas, a estruturar uma campanha rotineira de ação e educação sanitária31. Entretanto, apesar das medidas supracitadas, as ações diretas dos governos nas atividades da saúde coletiva não ultrapassaram os limites das soluções imediatistas a problemas agudos que pudessem comprometer o processo de acumulação cafeeira, ou respondendo a quadros calamitosos epidêmicos que ameaçavam a população em geral. Assim, a Saúde Pública crescia como uma expressão da questão social, fruto do capitalismo no Brasil, ganhando contornos novos e mais nítidos na década de 1920, em momentos de crise da sociedade – do padrão exportador capitalista e do Estado, nos marcos da crise política da Velha República. Medidas de Saúde Pública tentam estender seus serviços pelo País, quando a atenção à saúde alcança nova dimensão ao nível do discurso do poder, mas enquanto questão social é encarada como “caso de polícia”. Pouco foi feito em relação à saúde depois desse período, apenas com a chegada dos imigrantes europeus e a formação da primeira massa de operários do Brasil, começou-se então a discutir, obviamente com fortes formas de pressão como greves e manifestações, um modelo de assistência médica para a população pobre. E assim, em 1923 surge a Lei Elói Chaves, que cria as Caixas de Aposentaria e Pensão (CAPS), e eram organizadas pelas empresas e proporcionavam aos assistidos medicamentos, assistência médica, aposentadorias e pensões32. Deste modo, vê-se que a assistência à saúde ofertada pelo Estado até a década de 1930 estava limitada às ações de saneamento e combate às endemias. Apenas a partir da Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas assume o poder, um novo modelo de atenção à saúde começa a ser fincado no Brasil, e como um reflexo desta mudança é criado o Ministério da Educação e Saúde, e as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPS) passam a ser substituídas pelos Institutos de Aposentaria e Pensões (IAPs), que, por causa do modelo sindicalista de Vargas, passaram a ser dirigidos por entidades sindicais e não mais por empresas, como as 31 Id. Ibid., 1991. OLIVEIRA, Jaime A. de Araújo & TEIXEIRA, Sônia M. F. Teixeira. (Im)previdência social: 60 anos de história da Previdência no Brasil. p. 360, 1985. 32 31 antigas caixas, entretanto, com atribuições muito semelhantes às das CAPS, provendo assistência médico. Tais institutos foram os Institutos de Aposentadoria e Pensão para Trabalhadores em Transporte e Cargas (IAPTEC), para os Comerciários (IAPC), Industriários (IAPI), Bancários (IAPB), Marítimos e Portuários (IAPM) e Servidores Públicos (IPASE)33. Assim sendo, enquanto política pública, a saúde passa a ser assumida pelo Estado no Brasil a partir dos anos 30 do século XX, quando o mesmo passa a responder com políticas sociais às reivindicações dos trabalhadores. Portanto, o Estado passa a intervir nos problemas sociais como caso de política substituindo ao de polícia. Dos anos 40 a 1964, início da ditadura militar no Brasil, uma das discussões sobre saúde pública brasileira se baseou na unificação dos Institutos de Aposentaria e Pensões (IAPs) como forma de tornar o sistema mais abrangente. E, em 1960, a Lei Orgânica da Previdência Social, unificou os IAPs em um regime único para todos os trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), excluindo trabalhadores rurais, empregados domésticos e funcionários públicos. Foi a primeira vez que, além da contribuição dos trabalhadores e das empresas, se definiu efetivamente uma contribuição do Erário Público. Entretanto, a efetivação dessas propostas só aconteceu em 1967, pelos militares com a unificação de IAPs e a conseqüente criação do Instituto Nacional de Previdência social (INPS). Surgiu então, uma demanda muito maior que a oferta34. E, para solucionar esta variável, a medida encontrada pelo governo foi incluir a rede privada nos serviços prestados à população. Mais complexa, a estrutura foi se modificando e acabou por criar o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) em 1978, que auxiliou no trabalho de intermediação dos repasses para iniciativa privada. E, em virtude do modelo criado pelo regime militar ser pautado pelo pensamento da medicina curativa, poucas medidas de prevenção e sanitaristas foram tomadas. A mais importante foi a criação da Superintendência de Campanhas da Saúde Pública (SUCAM)35. 33 Cf. OLIVEIRA, Angelo Giuseppe da Costa & SOUZA, Elizabethe Fagundes de. A Saúde no Brasil: trajetórias de uma política assistencial, 1998. 34 Cf. OLIVEIRA, Jaime A. de Araújo & TEIXEIRA, Sônia M. F. Teixeira. (Im)previdência social: 60 anos de história da Previdência no Brasil, 1985. 35 Id. Ibid, 1985. 32 Além dos aspectos supracitados, a literatura consultada indicou que durante a transição democrática, finalmente a saúde pública passa a ter uma fiscalização da sociedade. Ainda sob a égide dos militares, em 1982 surge o “Plano de Reorientação da Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social”, elaborado pelo Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP), conhecido como Plano do CONASP, que foi criado para racionalizar as ações de saúde. O modelo curativo dominante começa a ser abalado. Este plano atuou sobre a racionalização das contas com os gastos hospitalares dos serviços contratados com o Sistema de Assistência Médico-hospitalar da Previdência Social (SAMHPS), pondo fim à modalidade em uso, denominada pagamento por unidade de serviço. Além disso, o Plano refere-se também ao aproveitamento da capacidade instalada de serviços ambulatoriais públicos36. Como conseqüência do Plano do CONASP, visando conseguir uma maior e melhor utilização da rede pública de serviços básicos, em 1982, foram firmados convênios trilaterais envolvendo os Ministérios da Previdência Social, Saúde e Secretarias de Estado de Saúde, os quais posteriormente foram substituídos pelas Ações Integradas de Saúde (AIS), com o objetivo da universalização da acessibilidade da população aos serviços de saúde. Esta proposta abriu a possibilidade de participação dos estados e, principalmente, municípios na política nacional de saúde. A implementação das AIS, segundo Cohn e Elias37, representou o passo inicial para o processo de descentralização na saúde. Assim, os repasses de encargos e dos recursos foram vinculados a compromissos assumidos perante a União. Esta desconcentração foi caracterizada pela transferência de “recursos carimbados” aos municípios, eventualmente, até contrários às prioridades locais. Entretanto as AIS, com a idéia de gestão colegiada, e na seqüência o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) de 1987, começaram a pôr em prática os ideais da Reforma Sanitária38. O Movimento Sanitário, organizado pelos setores progressistas de profissionais de saúde, teve destaque nos anos 80, por ampliar a discussão sobre saúde coletiva e democracia. Tal movimento lutou pela, 36 Cf. GONÇALVES, Ernesto Lima (organizador). Administração de Saúde no Brasil, 1982. Cf. COHN, Amélia e ELIAS, Paulo. Saúde no Brasil: políticas e organização dos serviços, 1996. 38 Id. Ibid., 1996. 37 33 “(...) universalização do acesso, a concepção de saúde como direito social e dever do Estado; a reestruturação do Sistema Unificado de Saúde, visando um profundo reordenamento setorial com um novo olhar sobre a saúde individual e coletiva; a descentralização do processo decisório para as esferas estadual e coletiva; o financiamento efetivo e a democratização local (...)”39. Ao lado desse quadro político-institucional, crescia, a partir de 1985, um amplo movimento político setorial que teve como pontos culminantes, a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), os trabalhos técnicos desenvolvidos pela Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS), criada pelo Ministério da Saúde, em atendimento a proposta da VIII CNS, e o projeto legislativo de elaboração da Carta Constitucional de 198840. As discussões da VIII Conferência Nacional da Saúde, realizada em 1986, resultaram na formalização das propostas do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), ensejando mudanças baseadas no direito universal à saúde, acesso igualitário, descentralização acelerada e ampla participação da sociedade. A Conferência já apontava para a municipalização como forma de executar a descentralização. As bases do sistema atual, o Sistema Único de Saúde (SUS), foram dadas por esta conferência que envolveu mais de 5.000 participantes e produziu um relatório que subsidiou decisivamente a Constituição Federal de 1988 nos assuntos de Saúde41. O reconhecimento da saúde como direito inerente à cidadania, o conseqüente dever do Estado na promoção desse direito, a instituição de um Sistema Único de Saúde, tendo como princípios a universalidade e integridade da atenção, a descentralização, com comando único em cada esfera do governo, como forma de organização e a participação popular como instrumento de controle social, foram teses defendidas na VIII CNS que se incorporaram ao novo texto constitucional. 39 Capacitação em Serviço Social, p. 109, 2000. Id. Ibid., 2000. 41 Cf. BRASIL, Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, 1986. 40 34 1.2.1 A SAUDE COMO UM DIREITO E SEUS EMBATES NA ATENÇÃO À SAÚDE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES O conceito de seguridade social42 constitui uma das mais importantes inovações incorporadas à Constituição Federal promulgada em 05 de outubro de 1988. O novo conceito impôs uma transformação radical no sistema de saúde brasileiro. Primeiro, reconhecendo a saúde como direito social, segundo definindo um novo paradigma para ação do Estado na área. Esse novo marco referencial está expresso em dois dispositivos legais, “Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”43. “Art. 198 - As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III participação da comunidade”44. Ao detalhar os princípios e diretrizes sob os quais o sistema de saúde passou a ser organizado e as competências e atribuições das três esferas de governo, a regulamentação, ocorrida através das Leis n°. 8080 de 19/09/199045 e n°. 8142 de 28/12/199046, buscou delinear o modelo de atenção e demarcar as linhas gerais para a redistribuição de funções entre os entes federados. 42 Art. 14 - Conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (BRASIL, Constituição Federal, 1988). 43 BRASIL. Constituição Federal, 1988. 44 Id. Ibid., 1988. 45 Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. 46 Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. 35 Assim, o Sistema Único de Saúde (SUS) fica definido como constituído pelo, “Art. 4° - O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas, federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo poder público”47. Já, os contornos do novo modelo de atenção ficam configurados nos princípios constitucionais da universalidade, equidade e integralidade da 48 assistência . Tais elementos de natureza doutrinária apontam a construção de um sistema de saúde que reverte à lógica de provisão de ações e serviços, reorientando a tendência hegemônica da assistência médico-hospitalar, predominante no modelo anterior, e substituindo-a por um modelo de atenção orientado para a vigilância à saúde. A Lei ainda garantiu a gratuidade da atenção de modo a impedir que o acesso fosse dificultado por uma barreira econômica além das já existentes, como a distância dos serviços, o tempo de espera, o horário de funcionamento, a expectativa negativa quanto ao acolhimento, além de fatores educacionais e culturais49. Uma análise geral da Lei n°. 8080/1990, é suficiente para detectar as suas principais tendências: realce das competências do Ministério da Saúde, restringindolhe a prestação direta dos serviços apenas em caráter supletivo; ênfase da descentralização das ações e serviços para os municípios; e valorização da cooperação técnica entre Ministério da Saúde, estados e municípios, onde estes ainda eram vistos, preponderantemente como receptores de tecnologia. O Ministério da Saúde é o grande responsável pela estratégia nacional do SUS, seu planejamento, controle, avaliação e auditoria, bem como pela promoção da sua descentralização. A ele também cabe a definição e a coordenação dos serviços assistenciais de alta complexidade, redes nacionais de laboratórios, de sangue e hemoderivados em nível nacional. Uma terceira missão exclusiva do poder central é a regulação do setor privado, mediante a elaboração de normas, critérios e valores 47 BRASIL, Lei n°. 8080, art. 4°, caput, 1990. Id. Ibid., Art. 7°, 1990. 49 Id. Ibid., Art. 43, 1990. 48 36 para remuneração dos serviços, bem como de parâmetros de cobertura assistencial50. A Secretaria de Estado está encarregada de coordenar a regulação da assistência em alta complexidade de planejar, programar e organizar uma rede regionalizada e hierarquizada de serviços, cujo funcionamento deve acompanhar, controlar e avaliar. Portanto, ao Estado também cabe coordenar os serviços assistenciais de alta complexidade, laboratórios de saúde pública e hemocentros sob a sua responsabilidade51. À Secretaria Municipal, além, naturalmente, da gestão e execução das ações e serviços públicos de saúde, são confiados o seu planejamento, organização, controle e avaliação, inclusive a gestão dos laboratórios públicos de saúde e dos hemocentros. O poder municipal também é exercido na celebração de contratos e convênios, controle, avaliação e fiscalização das atividades de iniciativa privada. A inclusão da participação da comunidade como umas diretrizes para a organização do sistema público de saúde foi umas mais importantes inovações introduzidas pela assembléia Nacional Constituinte em 1988 (CF, Art. 198, III), propiciando a criação de diversos mecanismos de articulação entre esferas de governo e de participação e controle social sobre as políticas públicas52. Em suma, inegavelmente a maior conquista do SUS foi quanto ao direito legal de acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde em todos os níveis de complexidade. Entretanto, muitos aspectos desse acesso estão por se concretizar e incidem, de forma muito especial, em questões relacionadas à exclusão em saúde, por conseguinte pode-se expor que se está ainda distante do que a Organização Pan-Americana de Saúde conceitua como proteção social em saúde, “(...) la protección social en salud puede definirse como la garantía que los poderes públicos otorgan para que un individuo o grupo de individuos pueda satisfacer sus demandas de salud, obteniendo acceso a los servicios en forma oportuna y de una manera adecuada. Es importante notar que la definición no solo se refiere a garantizar acceso, sino también calidad y oportunidad de la atención”53. 50 Cf. BRASIL. Sistema de Planejamento do SUS: uma construção coletiva: organização e funcionamento, 2009. 51 Id. Ibid., 2009. 52 Id. Ibid, 2009. 53 Cf. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS). La salud y el desarrollo humano, 1998. 37 O atual cenário nacional, com a minimização das funções do Estado, a redução do financiamento para as áreas sociais, o forte apelo e poder da área econômica em detrimento às áreas sociais, a dependência não só econômica, mas também política de agências internacionais, o processo de privatizações com fortes repercussões na área social (marcas registradas de um Estado com ajustes neoliberais), não fornece um quadro animador no que se refere às ações no campo social, especialmente no setor saúde. Com relação à atenção à saúde de crianças e adolescentes54, Orlandi percebe que recentemente existem duas tendências que a caracterizam: por um lado, o Estado afirma sua importância, e por outro, revela a impossibilidade de efetivá-las em face das dificuldade financeiras em que se encontra. Assim, o atendimento prestado não é tido como um direito garantido de forma satisfatória, uma vez que o Estado limita recursos financeiros, e sim como um “favor”55. Dispondo-se dos aparelhos legais para efetivar os direitos à saúde de crianças e adolescentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estabelece que, “Art. 7° - A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”56. “Art. 9º O poder público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade”57. “Art. 11. É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”58 54 Art. 2º - Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade (BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990). 55 ORLANDI, Orlando. Teoria e prática do amor à criança: introdução à pediatria social no Brasil, p. 84, 1985. 56 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990. 57 Id. Ibid., 1990. 58 Id. Ibid., 1990. 38 “Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos”59. Apesar de toda essa fundamentação jurídica, constatam-se disparidades entre os propósitos da lei e a realidade cotidiana em vários aspectos, tais quais: O Estado Brasileiro em seu discurso afirma o crescimento dos investimentos públicos na área da saúde e identifica melhorias significativas trazidas pelas novas estratégias das políticas sociais. Como exemplo, pode-se citar os dados do relatório “Situação Mundial da Infância 2008 – Sobrevivência Infantil (UNICEF)60” que afirma que o Brasil reduziu a mortalidade infantil em 46,9%. A taxa de óbitos entre menores de um ano de idade diminuiu de 46,9 por mil nascidos vivos em 1990 para 24,9 por mil nascidos vivos em 2006. Segundo o estudo, o Nordeste apresentou a maior queda (48%), mas a disparidade com a média nacional continua alta: a taxa de mortalidade infantil na região é quase 50% maior do que a média do País. Das 27 Unidades da Federação brasileira, apenas oito têm taxas de mortalidade infantil abaixo de 20 mortes a cada mil nascidos vivos. O relatório da Unicef (2008) também apurou que os cuidados com o nascimento continuam muito precários. No Brasil, de acordo com o IBGE, aproximadamente 66% dos óbitos de menores de um ano ocorrem no primeiro mês de vida, sendo que 51% ainda nos primeiros seis dias de vida. As principais causas de óbito na primeira semana de vida estão relacionadas à prematuridade, asfixia durante o parto e infecções, fato que evidencia a importância dos fatores ligados à gestação, ao parto e ao pós-parto. Os mesmos dados apontam que a Região Nordeste é a que apresenta as maiores altas taxas de mortalidade neonatal precoce (óbitos de crianças de até seis dias) do País, com 15,3 por mil nascidos vivos. Nessa região, 59 Id. Ibid., 1990. Cf. UNITED NATIONS CHILDEN’S FUND (UNICEF). Relatório da Situação Mundial da Infância 2008, 2008. 60 39 Alagoas e Paraíba possuem as maiores taxas (17,4 e 16,9 por mil nascidos vivos, respectivamente)61. De acordo com o Plano Estadual de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil (Amazonas/2003), as mudanças ocorridas a partir do modelo de ocupação da região, considerando principalmente os movimentos de pessoas de outros Estados, tanto para a capital, como para outras cidades do interior do Amazonas, atraídas na maioria das vezes pela facilidade de posse de terra e por projetos econômicos desenvolvidos e as condições peculiares das zonas de fronteira, como é no caso de Tabatinga, onde o tráfico e uso de drogas se associam e estimulam as mazelas sociais, fazem emergir um acelerado aumento dos índices de má condições de vida da população, bem como dos índices de pobreza e exclusão social, dentre outras situações de violência, exploração sexual infanto-juvenil e altos índices de gravidez de precoce, correspondendo a 29% do total de nascidos ocorridos no Município. Além dos aspectos supracitados, verifica-se empiricamente a inexistência de instituições especializadas para o atendimento de crianças usuárias de substâncias psicotativas; deficiência no atendimento de saúde aos portadores de necessidades especiais; adensamento do trabalho infantil ilegal ou insalubre, que geralmente estão associados à baixa renda de seus familiares; carência de serviços ambulatorias especializados para o atendimento de crianças vítimas de violência (sexual, física e/ou psicológica); hospitais públicos superlotados, sem medicamentos e com déficits de recursos humanos; dificuldades no acesso à atenção adequada no que diz respeito à promoção (educação em saúde), bem como à recuperação da saúde tanto na atenção básica quanto nos demais níveis de atendimento do SUS, dentre outros. Deste modo, demonstra-se que apesar das grandes conquistas impetradas ao longo da história da saúde pública brasileira e de todos os aparatos legais existentes para atendimento à saúde, em especial crianças e adolescente, não há correspondência entre o discurso oficial e as evidências empíricas, ou seja, há uma completa lacuna na assistência e um descaso do poder público e da sociedade 61 Id. Ibid., 2008. 40 brasileira com esse público “sujeito de direito”. Como observa Ianni, “o discurso do poder tem pouco a ver com o exercício do poder”62. 1.3 O CENÁRIO DA REDE DE SERVIÇOS DE SAÚDE NA CIDADE DE MANAUS/AM A tutela da saúde, como já salientado, compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Esses entes federados deverão atuar em conjunto para a concretização das ações e serviços de saúde, que, segundo o Artigo 198 da Constituição Federal/1988, integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um Sistema Único de Saúde (SUS). A organização do SUS, com atuação em todas as esferas do governo e execução das ações e serviços preferencialmente pelos Municípios, vem ao encontro das necessidades da sociedade. “A municipalização dos serviços de saúde, através da formulação e execução de políticas econômicas e sociais, com vistas à promoção, proteção e recuperação da saúde, é medida recomendável quando se tem em mente a máxima efetividade desse direito”63. Porém, ainda existe um extenso percurso a ser seguido, pois o Ministério da Saúde, que, como se sabe, é extremamente centralizador e lento, dificulta um aprofundamento do processo de descentralização. Tal dificuldade ocorre também em Manaus, apesar do processo de distritalização já estar ocorrendo. Empiricamente, os Distritos de Saúde ainda têm pouco poder de resolutividade, e por vezes atuam apenas como “filtro”, repassando todos os dados, dificuldades e ações para a Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA). A organização de serviços em espaços geográficos e demograficamente definidos viabiliza a intersetorialidade necessária ao desenvolvimento pleno das ações e o estabelecimento de uma relação de mútua responsabilidade entre os 62 63 IANNI, Octavio. O Labirinto Latino-Americano, p. 84, 1993. MINISTÉRIO DA SAÚDE. O SUS de A a Z: garantindo saúde nos municípios, p. 161, 2005. 41 recursos de saúde e a população adscrita. Estes espaços constituem os distritos, conceituados como espaços de transformação, que deverão promover a integralidade da atenção64. No município de Manaus, as unidades de saúde estão localizadas na área urbana e rural em território recortado em cinco (05) Distritos de Saúde: Distrito de Saúde Norte, Distrito de Saúde Leste, Distrito de Saúde Oeste, Distrito de Saúde Sul e Rural65. As unidades públicas estaduais e municipais de saúde constituem a maioria da rede prestadora de serviços do SUS e se organizam por níveis de hierarquia de procedimentos na Atenção Básica, Média e Alta Complexidade, conforme a capacidade potencial dos estabelecimentos, os quais apresentam as mais diversas nomenclaturas: Unidades de Saúde da Família (USF); Unidade Básica de Saúde (UBS); Casa de Saúde da Mulher; Centro de Atenção Integral à Criança (CAIC); Pronto Atendimento (PA); Policlínica; Centro de Atenção Integral à Melhor Idade (CAIMI); Serviço de Pronto Atendimento (SPA); Centro de Referência em Pneumologia Sanitária (CREPS); Ambulatório de Especialidades; Centro de Oncologia; Centro Psiquiátrico; Hemocentro; Hospital Especializado; Hospital Geral; Hospital Infantil; Hospital Universitário; Instituto da Criança (ICAM); Fundação de Dermatologia e Venereologia (FDTVAM); Fundação de Medicina Tropical (FMT-AM); Maternidade; Pronto Socorro da Criança; Pronto Socorro Geral e Pronto Socorro de Referência66. Atualmente, a atenção primária (atenção básica), traduzida em ações de prevenção e atenção à saúde, é entendida como uma forma de impedir que a doença ocorra, através do atendimento em postos de saúde e do programa de saúde da família. No entanto, estas frentes de ação, ainda não atendem à demanda da população, que após o desenvolvimento da doença acabam por recorrer à atenção secundária (média complexidade), de caráter curativo, para restabelecer sua saúde. Quando a atuação secundária já não consegue restabelecer por completo o processo de cura, o usuário tem que recorrer à atenção terciária (alta complexidade), que se daria na limitação do dano e na reabilitação. Assim, o SUS 64 Cf. MANAUS, Plano Municipal de Saúde 2006-2009. Cf. Disponível em: http://www.pmm.am.gov.br/secretarias/semsa. 66 Cf. MANAUS, Plano Municipal de Saúde 2006-2009. 65 42 seria o sistema estruturado através das três esferas, como forma de atender a população em suas dimensões de atenção. Mas, o que é percebido é a falta de iniciativas do Estado na atenção primária, tendo que se recorrer às demais atenções, que também ocorrem de forma precária67. Dentre os três níveis hierárquicos de atenção, este trabalho se restringiu no da atenção primária (atenção básica) e secundária (atenção de media complexidade) e elegeu como Universo Amostral os Serviços Públicos de Saúde Municipais do Distrito de Saúde Norte68, (DISA Norte) da cidade de Manaus/AM. O Distrito Norte foi selecionado como área de pesquisa, pois: É a região de maior criminalidade da capital amazonense, segundo estudo divulgado pela Gerência de Estatística e Análise Criminal da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SSP/AM)69; É a segunda maior região da cidade. Apesar de superada pela Zona Leste, a Zona norte tem sido a que mais cresce desde a última década em termo populacional70; Ocupa a maior área do município de Manaus, no total com mais de 6.000 km do município71; Segundo dados da Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA), é a zona da cidade que ocupa o segundo lugar (com 513 vítimas) no Demonstrativo das Zonas de Moradia das Vítimas Atendidas na DEPCA em 2007, perdendo apenas para zona leste (com 526 vítimas); e, É o Distrito de Saúde onde a pesquisadora trabalha, facilitando, assim, a realização da pesquisa. A rede assistencial do Distrito de Saúde Norte por tipo de unidade de saúde está dividida em: 67 Cf. COHN, Amélia. et. al. A Saúde como Direito e Como Serviço. 2002. O Distrito de Saúde Norte atende uma população estimada de 338.806 habitantes e possui uma rede de serviços aquém da necessidade de cobertura, considerando-se quantidade e modalidade dos serviços de saúde (IBGE, Censos e Estimativas, 2008). VIDE no Anexo V os Serviços de Saúde do Distrito de Saúde Norte. 69 ALMANAQUE ABRIL, 2000. 70 Dados obtidos pelo site: <www.wikipedia.org/wiki/Zona_Norte_(manaus)>, Acesso em: 12.07.2009. 71 Idem, 2009. 68 43 TABELA I – REDE ASSISTENCIAL DO DISTRITO DE SAÚDE NORTE Esfera Federal (UFAM) (1) Estadual (SUSAM) (11) Municipal (SEMSA) (48) Tipo de Unidade Nível de Hierarquia Hospital Geral 8 - ALTA HOSP AMB72 Maternidade Centro de Atenção Psicossocial Serviço de Pronto Atendimento Maternidade Centro de Atenção Integral à Melhor Idade Centro de Atenção Integral à Criança 8 - ALTA HOSP AMB 4 – ALTA AMB73 4 – ALTA AMB 5 - BAIXA M1 e M274 3 - M2 e M3 0175 Policlínica Serviço de Pronto Atendimento Unidade Básica de Saúde Policlínica 3 - M2 e M3 3 - M2 e M3 2 – M1 3 - M2 e M3 Pronto Atendimento* Pronto Atendimento* 3 - M2 e M3 2 - M1 Unidade Básica de Saúde 2 - M1 Casa de Saúde da Família 1 - PAB - PABA77 2 - M176 Estabelecimento de Saúde Qt Hospital Universitário Dona Francisca Mendes Maternidade Nazira Daou CAPS Silvério Tundis SPA Danilo Correia Maternidade Azilda Marreiro CAIMI André Araújo 01 CAIC Dr. Gilson Moreira CAIC Dr. Paulo Xerez CAIC Dr. Moura Tapajós Policlínica João Braga SPA Eliameme R. Mady UBS Santa Etelvina Policlínica Anna Barreto Policlínica Monte das Oliveiras UBS/PA Arthur Virgílio UBS/PA Balbina Mestrinho UBS/PA Frei Valério UBS/PA Sálvio Belota UBS Armando Mendes UBS Augias Gadelha PSF Cidade Nova 25 PSF Col. St. Antônio 02 PSF Col. Terra Nova 04 PSF Monte das Oliveiras 03 PSF Novo Israel 04 PSF Santa Etelvina 02 03 Total Fonte: Plano Municipal de Saúde (2006 – 2009) / Prefeitura Municipal de Manaus *Terminologia municipal Conforme apresentado na tabela acima, dos 60 Serviços Públicos de Saúde existentes no Distrito de Saúde Norte 48 são da esfera municipal e destes foram 72 08-Alta HOSP/AMB- Estabelecimento de Saúde que realiza procedimentos de alta complexidade no âmbito hospitalar e ou ambulatorial. 73 04-Alta AMB- Estabelecimento de Saúde ambulatorial capacitado a realizar procedimentos de Alta Complexidade definidos pelo Ministério da Saúde. 74 05-Baixa - M1 e M2- Estabelecimento de Saúde que realiza além dos procedimentos previstos nos de níveis de hierarquia 01 e 02, efetua primeiro atendimento hospitalar, em pediatria e clínica médica, partos e outros procedimentos hospitalares de menor complexidade em clínica médica, cirúrgica, pediatria e ginecologia/obstetrícia. 75 03-Media - M2 e M3- Estabelecimento de Saúde ambulatorial que realiza procedimentos de Média Complexidade definidos pela NOAS como de 2º nível de referência - M2 e/ou de 3º nível de referência – M3. 76 02-Media - M1- Estabelecimento de Saúde ambulatorial que realiza procedimentos de Média Complexidade definidos pela NOAS como de 1º nível de referência – M1. 77 01-PAB-PABA- Estabelecimento de Saúde ambulatorial que realiza somente Procedimentos de Atenção Básica - PAB e ou Procedimentos de Atenção Básica Ampliada definidos pela NOAS. 01 01 01 01 01 01 01 01 02 01 03 02 40 60 44 selecionados aleatoriamente, para serem locus de pesquisa, 08 Serviços Públicos Municipais de Saúde (02 de cada nível hierárquico), localizados preferencialmente no Bairro da Cidade Nova78. Ficando, portanto, a área de execução da pesquisa assim delimitada: Policlínicas: Anna Barreto e Monte das Oliveiras; Pronto Atendimento: Arthur Virgílio e Balbina Mestrinho; Unidades Básica de Saúde: Armando Mendes e Augias Gadelha; Casas de Saúde da Família: PSF Cidade Nova (UBS N-40) e Terra Nova (UBS N-23). A seleção de duas Unidades de Saúde de cada nível hierárquico se deu em detrimento da necessidade de se comparar os dados coletados, com o intuito de compreender como tem se dado a dinâmica de atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil nos distintos serviços públicos de saúde. Atualmente, a atenção primária, traduzida em ações de prevenção e atenção à saúde, é entendida como uma forma de impedir que a doença ocorra, através do atendimento em postos de saúde e do programa de saúde da família. No entanto, estas frentes de ação, ainda não atendem a demanda da população, que após o desenvolvimento da doença acabam por recorrer à atenção secundária, de caráter curativo, para restabelecer sua saúde. Quando a atuação secundária já não consegue restabelecer por completo o processo de cura, o usuário tem que recorrer à atenção terciária, que se daria na limitação do dano e na reabilitação. O SUS seria o sistema estruturado através das três esferas, como forma de atender a população em suas dimensões de atenção. Mas, o que é percebido é a falta de iniciativas do poder público na atenção primária, tendo que recorrer às demais atenções, que também ocorrem de forma precária79. O acesso dos usuários aos serviços de saúde pesquisados se dá principalmente através da emergência (nas policlínicas e pronto atendimentos), que prestam atendimento imediato nos casos mais graves, ou pela espera no atendimento ambulatorial (unidades básicas de saúde e casas de saúde da família), 78 O Bairro da Cidade Nova está tendo prioridade por ser o maior bairro de Manaus e da região norte brasileira.<http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_Nova_(Manaus)> 79 Cf. COHN, Amélia. et. al. A Saúde como Direito e Como Serviço, 2002. 45 observando-se a hora de chegada do paciente. As consultas, em continuidade ao primeiro atendimento e as que são realizadas após a alta recebida são agendadas. Em qualquer caso, com consulta marcada ou não, o usuário é atendido pela ordem de chegada. A partir da observação da rotina das unidades, constatou-se que os usuários, independentemente do tipo de unidade de saúde, buscam atendimento, prioritariamente, pela manhã, o que superlota as unidades neste horário, mesmo nos serviços de emergência. Isso leva a um esvaziamento e subutilização do espaço físico nos demais horários de atendimento. Tanto os usuários que buscam uma unidade pela primeira vez quanto os que vão realizar consulta subseqüente, independentemente do tipo de unidade que procuram, são levados a chegar de madrugada, para, em ordem de chegada, receber o número para a consulta médica. “(...) o desrespeito ao usuário começa pelo próprio horário que ele tem de sair de casa e, se reclama, é ele que está errado”80. Na maioria das unidades, todos os números são distribuídos assim que os funcionários da recepção chegam. Nas unidades de emergência, as urgências são atendidas imediatamente. Os demais aguardam na fila de triagem para um atendimento e/ou encaminhamentos para outros serviços da rede. A rotina de agendamento antecipado das consultas médicas é realizada somente por algumas das unidades de saúde: o usuário vai à unidade, marca a consulta e retorna na data marcada para o atendimento, também por ordem de chegada. Nestes casos, a maioria das unidades entrega os números no início do primeiro turno de atendimento. A partir do primeiro atendimento, os usuários são encaminhados para abertura de prontuário e/ou para internação/clínicas especializadas/programas de saúde, realização de exames e/ou orientados para dar continuidade ao tratamento indicado após inscrição nos Programas e/ou início de tratamento, os atendimentos subseqüentes são agendados, mas mesmo com hora 80 TE II. Pesquisa de Campo, 2009. 46 marcada, em algumas unidades, os usuários aguardam a senha numa fila pela ordem de chegada. Dos oito (08) serviços selecionados, realizou-se entrevista com pelo menos quatro (04) funcionários de cada locus de pesquisa. A unidade de saúde com o maior número de entrevistados foi a UBS Armando Mendes (06 funcionários) pela acessibilidade, uma vez que a pesquisadora trabalha nesta unidade de saúde e a UBS-N 40 (05 funcionários), em razão do interesse dos funcionários em participar da pesquisa. Resultou-se assim, em uma amostra de 35 entrevistados, distribuídos segundo a profissão conforme o Gráfico abaixo. GRÁFICO 1 - DISTRIBUIÇÃO DOS PARTICIPANTES SEGUNDO A PROFISSÃO 10 8 9 8 Assistente Social 7 4 4 2 2 0 Enfermeiro 5 6 Médico Psicólogo Técnico de Enfermagem Outros Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Dos profissionais com maior participação na pesquisa estão as Assistentes Sociais 26% (09), Médicos 23% (08), Enfermeiros 20% (07) e Técnicos de Enfermagem 14% (05). As categorias profissionais com menor participação estão: psicólogos 6% (02), pela escassez de profissionais na rede (apenas 04 para atender todo o Distrito de Saúde Norte) e Outros 11% (04), que corresponde aos Agentes Comunitários de Saúde, que sempre que eram visitados estavam realizando procedimentos em domicílios aos usuários. Conforme demonstração do Gráfico 02, os profissionais do sexo feminino predominaram na pesquisa, compreendendo 80% dos entrevistados. É válido ressaltar, que todos os profissionais, demonstraram interesse e disponibilidade em estar participando da pesquisa. 47 GRÁFICO 2 - GÊNERO DOS ENTREVISTADOS 20% FEMININO MASCULINO 80% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Os mesmos colocaram-se à disposição para quaisquer esclarecimentos, assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido e apesar de se tratar de um tema controverso e polêmico, os profissionais sentiram-se à vontade para discutir e trabalhar as questões, não demonstrando nenhuma recusa ao tratar sobre o assunto, pelo contrário, confirmavam o grande interesse e a satisfação por estar ouvindo as suas inquietações. “(...) vejo que falta isso, os profissionais, não são ouvidos, nós temos tantos problemas, tantas inquietações e ninguém nunca vem aqui para saber como estamos, o que estamos precisando, como está o nosso trabalho (...) o pessoal do DISA só sabe é cobrar produção”81. O que se percebe é que não há um “suporte” e apoio aos profissionais das distintas unidades de saúde pesquisadas, tampouco é realizada avaliação sistemática tanto da qualidade dos serviços prestados quanto do grau de satisfação dos servidores,“(...) antigamente tinha a equipe de supervisão que vinha nas unidades para saber as necessidades e nos dar suporte, agora estamos abandonados!”82. Com relação à faixa etária, os dados coletados indicam que 57% dos profissionais entrevistados estão na faixa etária de 31 a 40 anos de idade, 26% de 41 a 50 anos de idade e 17% de 20 a 30 anos. 81 82 ACS IV. Pesquisa de Campo, 2009. TE V. Pesquisa de Campo, 2009. 48 GRÁFICO 3 - DISTRIBUIÇÃO DOS PARTICIPANTES SEGUNDO A FAIXA ETÁRIA 26% 20 a 30 31 a 40 17% 41 a 50 57% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Entre os mais jovens estão os médicos e técnicos de enfermagem e entre os mais seniores as Assistente Sociais e Técnicos de Enfermagem. O tempo de formação dos profissionais entrevistados variou de 03 a 27 anos e o tempo de exercício da profissão na unidade de saúde pesquisada variou de 02 meses a 20 anos. A partir dos referenciais apresentados e dos dados analisados, pôde-se compreender como as Políticas Públicas de Saúde se nortearam no Brasil, e ao mesmo tempo apreciar como está estruturado o atual modelo do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem se contraposto ao projeto de saúde voltada para o mercado, uma vez que retira o alcançado na Constituição Federal, que é justamente a universalidade e integralidade do direito. Deste modo, verifica-se que a realidade da saúde que se apresenta é alarmante e as disparidades sociais nesta área representam “(...) uma constante violação dos direitos individuais e coletivos dos setores mais carentes da população”83, cada vez mais o quadro social da população é marginalizada no acesso aos serviços públicos, que devem ser disponibilizados pelo Estado. E no que tange ao atendimento prestado nos serviços públicos de saúde a crianças e adolescentes vítimas da violência sexual, este quadro não se diferencia do apresentado, como posteriormente será demonstrado. 83 COHN, Amélia et.al. A Saúde como Direito e como Serviço. São Paulo: Cortez, p. 66, 2002. 49 II CAPÍTULO A VIOLÊNCIA E SEUS REFLEXOS NA ATENÇÃO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES 3.4 REFLEXÕES EM TORNO DO FENÔMENO DA VIOLÊNCIA A palavra violência deriva do latim “Violentia”, “Vis”, que quer dizer “força” e se refere às noções de constrangimento e de uso da superioridade física sobre o outro. Ela contém múltiplos significados e é utilizada para nomear desde as formas mais cruéis de tortura até as formas mais sutis da violência que têm lugar no cotidiano da vida social, na família, nas empresas e/ou em instituições públicas84. Uma das reflexões mais vigorosas sobre a violência é da alemã Hannah Arendt85 que a considera como um meio para a conquista do poder (mas não se confunde com o poder, pelo contrário, demonstra a incapacidade de argumentação e de convencimento de quem o detém), necessitando de orientação e justificação dos fins que persegue. Arendt86 não vê positividade na violência, como outros filósofos ou teóricos enxergam, ela se manifesta contra a visão de Engels87 que valoriza a violência como um acelerador do desenvolvimento econômico. Questiona o pensamento ingênuo e simplificador de Fanon88 que considera a violência como a vingança dos deserdados. E não concorda nem com Sorel89, que a define como o 84 Cf. ODALIA, Nilo. O que é Violência, 1985. Cf. ARENDT, Hannah. Sobre a violência, 1994. 86 Id. Origens do totalitarismo, 1990. 87 Cf. ENGELS, Frederic. Teoria da violência, 1981. 88 Cf. FANON, Frantz. The wretched of de earth, 1961. 89 Cf. SOREL, Georges. Reflexões sobre a violência, 1992. 85 50 mito necessário para a mudança da sociedade burguesa desigual para uma sociedade igualitária de base popular; e nem com Sartre90, que a analisa como inevitável no universo da escassez e da necessidade. Já para Foucault91, a violência é caracterizada pela relação de forças desiguais, configurando, assim uma relação de poder. Em outras palavras, a violência é o ato de subjugação por meio de forças de exploração e dominação. A partir desta análise, identifica-se que para Arendt a violência pode ser produto de um ódio, ao contrário de Foucault que concebe a violência sempre como uma técnica do poder. Para ela, a violência pode ser encontrada na falta do discurso, cujo nascimento e efetivação se dão na política, enquanto para Foucault o discurso e a linguagem têm o poder de produzir subjetividade e violência punitiva. Efetuando-se uma correlação entre saúde x violência, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece violência como sendo, “uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”92. E, a partir desta polissemia de sentidos e significados analisa-se que querer encerrar o estudo acerca da categoria violência numa definição fixa e simples é expor-se a reduzi-la, a compreender mal sua evolução e sua especificidade histórica. Com a literatura examinada, pôde-se evidenciar que as dificuldades para conceituar a violência provêm do fato de se tratar de um fenômeno da ordem do vivido (no qual se inclui também quem tenta teorizar sobre ela) e cujas manifestações provocam uma forte carga emocional em quem a comete, em quem a sofre e em quem a presencia. Assim sendo, neste trabalho, levando-se em conta o que acontece empiricamente, utilizar-se-á a palavra violência como sendo ações humanas de indivíduos, grupos, classes, nações que ocasionam a morte de outros seres humanos ou que afetam sua integridade física, moral, mental e/ou espiritual. 90 Cf. SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. In: Coleção Pensadores. Sartre, 1980. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 1987. 92 Cf. ORGANIZAÇAO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Relatório Mundial sobre a Violência e a Saúde, 2002. 91 51 A violência, apesar de existir desde os tempos mais remotos da história da humanidade, teve seu estopim com o novo sistema capitalista instaurado. Em se tratando das suas raízes, Da Matta93 as associa fundamentalmente à estrutura de poder vigente numa sociedade. Ele salienta que, “(...) atitudes violentas são classificadas comumente como formas de ação resultantes do desequilíbrio entre fortes e fracos. Entretanto, elas deveriam ser analisadas como um processo que permeia o sistema”94. Segundo Adorno, a violência é uma forma de relação social, “(...) está inexoravelmente atada ao modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições sociais de existência. Sob esta ótica, a violência expressa padrões de sociabilidade, modos de vida, modelos atualizados de comportamento vigentes em uma sociedade em um momento determinado de seu processo histórico. (...) ao mesmo tempo em que ela expressa relações entre classes sociais, expressa também relações interpessoais, (...) está presente nas relações intersubjetivas que se verificam entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre profissionais de categorias distintas. Seu resultado mais visível é a conversão de sujeitos em objeto, sua coisificação. A violência é simultaneamente a negação de valores considerados universais: a liberdade, a igualdade, a vida (...)”95. Assim, a violência tem se situado num processo de transformação dos referenciais de vida de obediência à tradição e aos costumes estabelecidos pela aceitação da ordem. Novos referenciais são construídos pelos apelos de marketing, de consumo, de expressão da libido e do prazer, do indivíduo, da competitividade, da solução do conflito pela força do “herói”, principalmente através da TV. Essas referências apelam a um agir massificado, substituindo a imagem de si, a construção de sua identidade de sujeito, pela imagem de marca. Ao invés de se colocar como sujeito de relações sociais significativas, afetiva, familiar ou socialmente, as pessoas 93 Cf. DA MATTA, Roberto. As Raízes da Violência no Brasil, 1982. Id. Ibid, p. 49, 1982. 95 ADORNO, S. Violência e Educação, p. 13, 1998. 94 52 se colocam como portadoras de uma marca seja Nike, Mercedes, Coca-Cola ou outra qualquer96. Parte-se desta lógica evidenciando-se que, a violência está tão enraizada quanto o poder, o sistema e o capitalismo. Esse tipo de violência é a denominada violência estrutural que, “(...) se caracteriza pelo destaque na atuação das classes, grupos ou nações econômica ou politicamente dominantes, que se utiliza de leis e instituições para manter sua situação privilegiada, como se isso fosse um direito natural”97. Refere-se às condições extremamente adversas e injustas da sociedade para com a parcela mais desfavorecida de sua população. Ela oferece um marco à violência do comportamento e se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte. E se expressa pelo quadro de miséria, má distribuição de renda, exploração dos trabalhadores, crianças nas ruas, falta de condições mínimas para a vida digna, falta de assistência em educação e saúde. Os referenciais analisados indicaram que, além da violência estrutural, é possível distinguir mais dois tipos de violência no Brasil: a sistêmica, que brota da prática do autoritarismo, profundamente enraizada, apesar das garantias democráticas tão claramente expressas na Constituição Federal de 1988. Segundo alguns estudiosos, a violência policial pode ser enquadrada como uma violência sistêmica em virtude de considerarem ser reflexo do passado político brasileiro, como se pode citar o exemplo do regime autoritário (1964-85), onde governo federal tolerou violência policial como um instrumento de controle político; e, a violência doméstica, que será analisada no tópico a seguir. 96 Cf, FALEIROS, Vicente de Paula. A violência sexual contra crianças e adolescentes e a construção de indicadores: a crítica do poder, da desigualdade e do imaginário, 1997. 97 Cf. ENCICLOPÉDIA VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS, 2009. 53 Deste modo, nota-se que analisar a questão da violência é controverso e complexo, pois além de, muitas vezes, ela ser ocultada através de atitudes ditas legais, protetoras, assistenciais, paternalistas, caridosas, levando a uma destruição muito maior do indivíduo que a violência expressa através da agressão, também assume formas diferenciadas de manifestação, o que exige do observador cautela para não resvalar na dedução da aparência pura e simples. 2.2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E AS MEMÓRIAS NA INFÂNCIA BRASILEIRA A violência doméstica (VD) é um fenômeno complexo, suas causas são múltiplas e de difícil definição. Tanto na literatura nacional como na internacional, diversos termos têm sido utilizados para conceituar e caracterizar a violência doméstica, a exemplo de: abuso, maus-tratos, vitimização doméstica, violência intrafamiliar, vitimização, etc.98. Neste estudo optou-se pelo termo violência sexual para conceituar o fenômeno ora estudado, uma vez que esta terminologia reflete de maneira mais adequada o significado e o sentido da problemática em questão. No decorrer da história, vários teóricos ofereceram definições sobre este tema, no entanto, poucas foram as teorias que conseguiram refletir a conceituação global do fenômeno. Apesar disso, estes estudos possibilitaram uma ampla discussão, havendo uma adesão de outras ciências, como a Psicanálise, a Pediatria e a Psicologia e entre outras. Ela é um problema universal que atinge milhares de pessoas, em grande número de vezes de forma silenciosa e dissimuladamente. Trata-se de um problema que acomete homens, mulheres, crianças, adolescentes, idosos e portadores de necessidades especiais e não costuma obedecer nenhum nível etário, social, econômico, religioso ou cultural específico, como poderiam pensar alguns. Entretanto, apesar de toda essa ramificação, irá se enfocar neste trabalho, apenas a violência cometida contra crianças e adolescentes. 98 Cf. CENTRO REGIONAL AOS MAUS-TRATOS NA INFÂNCIA (CRAMI). Abuso Sexual doméstico: atendimento às vítimas e responsabilização do agressor, 2005. 54 Essa variável é considerada no Brasil um grave problema público, constituindo a principal causa de morte de crianças e adolescentes a partir de cinco (05) anos de idade. Trata-se de uma população cujos direitos básicos são muitas vezes violados, como o acesso à escola, assistência à saúde, e aos cuidados necessários para o seu desenvolvimento. São ainda, exploradas sexualmente e usadas como mão-de-obra complementar para o sustento da família ou para atender o lucro fácil de terceiros, às vezes, em regime de escravidão. Há situações em que são abandonadas à própria sorte, fazendo da rua seu espaço de sobrevivência. E, nesse contexto de exclusão, costumam ser alvo de ações violentas que comprometem física e mentalmente a sua saúde99. Tal aspecto é relevante sob dois prismas: primeiro, devido ao sofrimento indescritível que imputa às suas vítimas, muitas vezes silenciosas e, em segundo, porque, a violência, principalmente a doméstica, pode impedir o bom desenvolvimento físico e mental da vítima, ou seja, a gravidade desse problema atinge toda a infância do indivíduo até a velhice. E as lesões e traumas físicos, sexuais e emocionais que sofrem, embora nem sempre sejam fatais, deixam seqüelas em seus corpos e mentes por toda a vida. Este tipo de violência se distingue da violência intrafamiliar por incluir outros membros do grupo, sem função parental, que convivam no espaço doméstico. Incluem-se aí empregados (as), pessoas que convivem esporadicamente e agregados100. A qualificação da violência doméstica contra crianças e adolescente é feita por Viviane Guerra como um dos temas malditos na área de pesquisa, quer "seja pelas conseqüências que acarreta para os seus envolvidos, quer seja porque tenta desvendar uma questão que a família tem todo o interesse em manter oculta"101. Dentre as distintas definições do fenômeno, a professora. Dra. Maria Amélia Azevedo e Viviane Guerra (USP/SP - 1989) através de estudos e pesquisas, foram as que melhor conceituaram o fenômeno da violência doméstica contra crianças e adolescentes, quando definem a mesma como sendo, 99 Cf. GUIA DE ATUAÇAO FRENTE AOS MAUS-TRATOS NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA, 1999. 100 Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, Violência Intrafamiliar: orientações para prática em serviço, 2003. 101 GUERRA, Viviane Nogueira Azevedo. Violência de pais contra filhos: procuram-se vítimas, p. 106, 1985. 55 "todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que - sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico a vítima - implica de um lado, numa transgressão do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento"102. Em crianças e adolescentes a violência doméstica não é um fenômeno recente, encontra-se, por exemplo, "citada em livros religiosos como a Bíblia e o Alcorão"103. A literatura examinada elucidou que a imagem da criança como um ser inferior, de certa forma “menor”, sempre esteve presente na mentalidade da humanidade. Nos povos da Antigüidade até a Idade Média, as crianças eram privadas do direito à vida, sendo consideradas como um objeto de muito pouco valor. Elas eram propriedades dos pais e estes podiam decidir livremente sobre seus destinos. Os filhos podiam ser vendidos, mutilados e inclusive sacrificados por diversos motivos. Segundo Lloyd deMause, “(…) a história da infância é um pesadelo do qual recentemente começamos a despertar. Quanto mais atrás regressamos na história, mais reduzido o nível de cuidado com as crianças, maior a probabilidade de que houvessem sido assassinadas, abandonadas, espancadas, aterrorizadas e abusadas sexualmente”104. Historicamente, o fenômeno da violência doméstica tem sido complexo no Brasil. Entretanto, é possível pensar que tanto no Brasil Colônia (1500-1822), quanto no Brasil Império (1822-1889) e no Brasil República (1889 - até hoje) a questão da violência doméstica estivesse impregnada na sociedade. Sabe-se que a idéia da aplicação de castigo físico em crianças foi introduzida pelos jesuítas. Desta forma, os castigos e as ameaças foram introduzidos no Brasil Colonial pelos primeiros padres da Companhia de Jesus em 1549. O castigo estava reservado para aqueles que pensavam faltar à escola jesuítica, palmatória e o tronco105. 102 GUERRA, Viviane Azevedo. Violência de pais contra filhos: a tragédia revisada, 2001. Cf. SANTOS, Hélio de Oliveira. Crianças Espancadas, 1987. 104 Lloyd deMause apud GUERRA, p. 53, 2001. 103 105 Cf. FREITAS, Marcos Cezar. História Social da Infância no Brasil, 2001. 56 Freyre106, em sua obra Casa Grande Senzala, lembra das histórias dos filhos dos escravos que desde cedo se acostumavam à imposição de castigos físicos extremamente brutais. Os espancamentos com palmatórias, varas de marmelo, cipós, galhos de goiabeira, tinham como objetivo ensinar às crianças que a obediência aos pais era a única forma de escapar da punição. “A sociedade escravista brasileira tinha por fundamento a violência. Esta era subjacente ao escravismo e apresentava-se na subjugação de uma raça a outra, na coisificação social do trabalhador e não se restringia simplesmente ao monopólio da força detido pela camada senhorial”107. Assim, a criança escrava, mesmo depois da Lei do Ventre Livre, em 1871, podia ser utilizada pelo senhor desde os 08 até os 21 anos de idade se, mediante indenização do Estado, não fosse libertada. Antes desta lei, começavam bem cedo a trabalhar ou serviam de brinquedos para os filhos dos senhores108. Nesse mesmo período, o número de filhos ilegítimos era grande, muitos deles eram filhos de senhores e escravas. Segundo a moral dominante da época, a família normal era somente a família legítima. Os filhos nascidos fora do casamento, com raras exceções, eram fadados ao abandono. A pobreza também era causa de abandono. As crianças eram deixadas nas portas das casas e, muitas vezes, comidas por ratos e porcos. Esta situação chegou a preocupar as autoridades, levando o vicerei a propor, em 1726, duas medidas: coleta de esmolas na comunidade e internação de crianças. Para atender à internação de crianças ilegítimas foi implantada a Roda, um cilindro giratório na parede da Santa Casa que permitia que a criança fosse colocada de fora sem que fosse vista dentro, e assim, recolhida pela Instituição que criou um local denominado “Casa de Expostos”. O objetivo desse instrumento era esconder a origem ilegítima da criança e salvar a honra das famílias, as crianças eram enjeitadas ou expostas. A primeira roda, na Bahia, foi criada em 1726 e a última só foi extinta nos anos cinqüenta109. 106 Cf. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, 1999. MACHADO, Maria Helena. Crime e escravidão. p. 879, 1987. 108 Cf. GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de Pais Contra Filhos: a tragédia revisada, 2001. 109 Cf. FREITAS, Marcos Cezar. História Social da Infância no Brasil, 2001. 107 57 Dados históricos da literatura afirmam que com a Proclamação da República, em 1889, precedida pela Abolição da Escravidão, em 1888, não foi mudado o comportamento oficial relativo aos asilos. Eles se expandiram, mas por iniciativa privada, já que as relações entre Igreja e Estado foram rompidas. Predominou a política da omissão do Estado, apesar dos discursos de preocupação com a infância abandonada. No início do século, 1902, o Congresso Nacional discutia a implantação de uma política chamada de assistência e proteção aos menores abandonados e delinqüentes. Em 1903, foi autorizada a criação do Juizado de Menores. Já em 1924, foram criados o Conselho de Assistência e Proteção aos Menores e o Abrigo de Menores, em 1927, toda esta legislação é consolidada no primeiro Código de Menores. Este Código cuidava, ao mesmo tempo, das questões de higiene da infância e da delinqüência e estabelecia a vigilância pública sobre a infância. Vigilância sobre a amamentação, os expostos, os abandonados e os maltratados, podendo retirar o pátrio poder110. Em 1979, criou-se um novo Código de Menores com bases positivistas, no qual a exclusão era vista como doutrina de situação irregular, o que significava patologia social, ou seja, uma doença, um estado de enfermidade e, também, estar fora das normas. Nessa perspectiva do Código, ser pobre era considerado uma doença assim como as situações de maus-tratos, desvio de conduta, infração e falta dos pais ou de representantes legais. O médico era o juiz, e, pelo Código, ele tinha o poder de decidir quais eram os interesses do menor nessa situação. O poder do juiz era enorme, mas ele agia fundamentalmente sobre os destinos da criança, decidindo sobre sua internação, colocação, adoção, punição ou sobre os pais e responsáveis. Enfim, no Código de 1979, a criança só tinha direito quando era julgada em risco, em uma situação de doença social, irregular. Não era um sujeito de direitos111. Em oposição à doutrina da situação irregular foram se desenvolvendo concepções e movimentos que colocavam a criança como sujeito de direito de acordo com a doutrina da proteção integral. Em primeiro lugar pela Organização das Nações Unidas – ONU, em segundo lugar, através dos juristas e dos movimentos sociais 110 Cf. SILVA, Edson e MOTTI, Ângelo. Estatuto da Criança e do Adolescente - Uma década de Direitos: Avaliando resultados e projetando o futuro, 2001. 111 Cf. FREITAS, Marcos Cezar. História Social da Infância no Brasil, 2001. 58 brasileiros na década de 1980, com a mobilização da sociedade e de alguns setores do Estado, incluindo setores da própria FUNABEM. Assim, o movimento de defesa da criança começou a tomar corpo na segunda metade da década de 1980, através de grupos que trabalhavam diretamente com a criança e o adolescente, muitas vezes compensando a omissão do Estado nessa área. Todo esse processo culminou com a organização e articulação nacional de entidades que atuavam na defesa e promoção dos direitos da criança e do adolescente, surgindo então Fórum Nacional Permanente de Entidades NãoGovernamentais de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esse Fórum passou a ser um dos principais interlocutores da sociedade na área da criança e do adolescente no Congresso Nacional, e um dos principais mobilizadores e articuladores para a inclusão de Emenda Popular “Criança-Prioridade Nacional”. Emenda que foi traduzida nos artigos 227112 e 228113 da Constituição Federal, que consagram a doutrina da proteção integral, assegurando à criança e ao adolescente os direitos básicos fundamentais e especiais, como ser em desenvolvimento. Em 25 de abril de 1990, o projeto de regulamentação dos artigos 227 e 228 da Constituição Federal foi aprovado no Senado Federal, e, em 28 de junho de 1990, na Câmara dos Deputados. Em 29 de Junho de 1990 o projeto foi homologado passando a vigorar no dia 14 de outubro de 1990. Assim, foi aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente – primeira lei de acordo com a Convenção Internacional pelos Direitos da Criança e do Adolescente. A partir de então, o Presidente Fernando Collor cria o Ministério da Criança a fim de instituir ações concretas para que todas as crianças tenham direito à saúde, alimentação e, sobretudo a uma vida digna. Elaborase então, a Lei n°. 8069 de 13 de julho de 1990114, aprovada com ampla participação popular. Pela primeira vez, uma lei vinculada à criança e ao adolescente rompe, formalmente com a "doutrina da situação irregular", substituindo-a pela "doutrina da proteção integral". A nova Carta Constitucional brasileira traz, em relação à criança e 112 Art.227 - É dever da FAMÍLIA, da SOCIEDADE e do ESTADO assegurar à criança e ao adolescente, com ABSOLUTA PRIORIDADE, o direito à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 113 Art.228 – São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. 114 Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente (ECA/90). 59 ao adolescente três avanços fundamentais quanto a seus direitos e passa a considerá-los: - Criança e adolescente: sujeito de direitos; - Criança e adolescente: seres em desenvolvimento; e, - Criança e adolescente: prioridade absoluta115. Em suma, pode-se dizer que o Estatuto foi um grande avanço, apesar do descompasso com as regulamentações das leis que são morosas. Embora o Estatuto crie condições para que o governo e a sociedade trabalhem juntos por uma infância melhor, os direitos da criança no Brasil estão sendo violados e desrespeitados diariamente seja no ambiente familiar, escolar, social, hospitalar e outros. Verifica-se empiricamente que esses direitos estão longe de ser garantidos. Grande número de crianças e adolescente no mundo inteiro e no Brasil sofrem vários tipos de violência, ou seja, padecem de uma grave violação de seus direitos sociais e individuais a um pleno desenvolvimento. Frente ao quadro exposto, percebe-se que no Brasil, apesar das políticas de atenção à criança e ao adolescente terem sido amplamente discutidas pelos vários setores sociais e políticos durante as últimas décadas, ainda não existe uma cultura política democrática que formule e sustente valores e ações que consolidem a cidadania. Todas as iniciativas profundamente válidas dos movimentos e fóruns ainda não conseguiram alterar o quadro das desigualdades sociais brasileiras, em geral, e muito menos o referente à criança e adolescentes. Elas ainda são altamente castigadas pela pobreza extrema, violência, exclusão em vários níveis, bem como pelas ações de atendimento, que ainda se caracterizam por serem discriminatórias e compensatórias na maioria das instituições governamentais e não-governamentais, ou por falta de vontade política ou por frentes de resistência em relação ao novo (re)ordenamento político institucional. 115 Cf. SILVA, Edson e MOTTI, Ângelo. Estatuto da Criança e do Adolescente - Uma década de Direitos: Avaliando resultados e projetando o futuro, 2001. 60 2.2.1 FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES A violência doméstica pode se manifestar de várias formas e com diferentes graus de severidade. Estas formas de violência não se produzem isoladamente, mas fazem parte de uma seqüência crescente de episódios, do qual o homicídio é a manifestação mais extrema116, e dentre os principais estão: a. Violência física117 A violência física é o uso da força ou atos de omissão praticados por um indivíduo mais forte em relação a um outro mais fraco (hierarquicamente, fisicamente ou financeiramente), com o objetivo claro ou não de ferir, deixando ou não marcas evidentes. São comuns murros e tapas, agressões com diversos objetos e queimaduras causados por objetos ou líquidos quentes. É qualquer ação única ou repetida, não acidental (ou intencional), cometida por um agente agressor adulto, que lhes provoque conseqüências leves ou extremas como a morte118. b. Violência psicológica É o conjunto de atitudes, palavras e ações dirigidas para envergonhar, censurar e pressionar o indivíduo de forma permanente. São ameaças, humilhações, gritos, injúrias, privação de amor, rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, punições exageradas. Essas são as formas mais comuns desse tipo de agressão, que não deixa marcas visíveis, mas marca por toda a vida119. 116 Cf. AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder, 2000. 117 Também denominada: sevícia física. 118 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Notificação de Maus Tratos Contra Crianças e Adolescentes: Um Passo a Mais na Cidadania em Saúde, p. 12, 2002. 119 Id. Ibid., p. 20, 2002. 61 c. Negligência É o ato de omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento. Privar a criança de algo de que ela necessita, quando isso é essencial ao seu desenvolvimento sadio. Pode significar omissão em termos de cuidados básicos como: privação de medicamentos, alimentos, ausência de proteção contra inclemência do meio (frio / calor)120. d. Violência Sexual A violência sexual é o abuso de poder no qual a criança ou adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto, sendo induzida ou forçada a práticas sexuais com ou sem violência física, ou seja, é, “todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança menor de dezoito anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa”121. Entende-se que esta definição tem duas vantagens, pois abrange incesto e exploração sexual, além de incluir todo o espectro de atos sexuais, quais sejam: a) com contato físico, abrangendo desde coito até apenas carícias; b) sem contato físico, incluindo exibicionismo, voyerismo, etc.; c) com força física, incluindo agressões e até assassinatos; d) sem emprego de força física. Reconhece-se, porém, suas limitações: não inclui abusos entre adolescentes e não se refere ao consentimento da criança à prática dos atos sexuais. E, dentre os vários tipos de manifestação da violência apresentados esta pesquisa se restringiu no da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes que tem se estabelecido como uma das realidades mais cruéis do 120 Id. Ibid., p. 12, 2002. Cf. AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Políticas Sociais e Violência Doméstica contra crianças e adolescentes. In: Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento, p. 42, 1993. 121 62 Brasil e é perpetrada em qualquer classe social, não respeitando etnia, religião, cultura ou nível educacional122. Este tipo de agravo foi selecionado por estar atingindo uma parcela importante da população, constituindo-se um obstáculo para o desenvolvimento psicossocial e econômico; por ser considerado um problema de saúde pública de extrema necessidade que seja dado segmento a uma responsabilização; e, ser um desafio à pesquisadora e profissionais por constituir uma demanda já estabelecida e crescente que requer a articulação das dimensões conceituais com as operacionais devido ao difícil diagnóstico ocasionado pela “síndrome do segredo”123 que o envolve e à grande variedade de formas de apresentação, muitas vezes, inaparente fisicamente, levando a dificuldades na condução dos casos, na decisão de notificação e na abordagem com as famílias. A partir dos referenciais analisados verificou-se que são muitas as terminologias utilizadas para conceituar as diferentes modalidades de crimes sexuais. O consenso pelo uso de um termo que pudesse ser aplicado genericamente para a maioria dos crimes sexuais apresenta relutância e discordância entre muitos autores. A exemplo, o termo “abuso” sexual que tem uso freqüente e regular na literatura, é considerado por John Huffman como restrito para casos em que não ocorra penetração vaginal124. Atualmente, os termos “abuso”, “agressão” e “violência sexual” são utilizados de forma ampla e genérica, tanto nos casos de estupro125 como nos de atentado violento ao pudor126, uma vez que não alteram a conduta clínica em cada situação 122 Cf. BECK-SAGUE, James et. al. Infecções sexualmente transmitidas em lactantes, crianças e adolescentes. In: MORSE, S.A, et.al. Atlas de doenças sexualmente transmissíveis e AIDS, 1997. 123 Cf. FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança, p. 173, 1993. 124 Cf. HUFFMAN, John. Ginecologia Pediátrica e Adolescente. In: BENSON, R.C. Diagnóstico e Tratamento em Obstetrícia & Ginecologia, 1980. 125 A palavra estupro, derivada do latim stuprum, significa violação. Entre todos os termos é, possivelmente, o mais utilizado pela vítima para autodefinir a violência sofrida, mesmo quando outro crime sexual de fato tenha ocorrido. O estupro é definido pelo Art. 213 do Código Penal Brasileiro como “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. A “grave ameaça” configura-se como a promessa de efetuar tamanho mal, capaz de impedir a resistência da vítima. A “conjunção carnal” corresponde ao coito vaginal, o que limita o crime ao sexo feminino (DREZETT, Jefferson. Estudo de fatores relacionados com a violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres adultas. São Paulo, 2000. Tese de Doutorado – Centro de Referência da Saúde da Mulher e de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil). 126 O Art. 14 do Código Penal caracteriza o atentado violento ao pudor como crime de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Aqui, incluem-se todas as situações diferentes do coito vaginal, a exemplo manobras digitais eróticas e a cópula anal ou oral. O atentado violento ao pudor 63 específica. E além destas existem ainda, algumas formas de violência que são dotadas de particular especificidade na relação agressor-vítima, cabendo denominações especiais. A exemplo o incesto, que consiste “na união sexual ilícita entre parentes consangüíneos, afins ou adotivos”127 e a exploração sexual, que segundo o Guia do Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual InfantoJuvenil (ABRAPIA), é a utilização de crianças e adolescentes “com fins comerciais e de lucro, seja levando-os a manter relações sexuais com adultos ou adolescentes mais velhos, seja usando-os para a reprodução de materiais pornográficos (revistas, fotos, filmes e vídeos)”128. Por pedofilia, termo aplicado à prática do agressor, entende-se os “atentados sexuais contra crianças, variando desde o exibicionismo até a violência agressiva e a sodomia”129. Resumidamente, verifica-se que estupro é um termo aplicado apenas a mulheres, já que presume penetração vaginal; o atentado violento ao pudor engloba todas as práticas diversas da penetração vaginal, portanto, ser aplicado também a vítimas do sexo masculino; o incesto tem a conotação dos atos praticados por membros do grupo familiar, sendo considerado como sinônimo de abuso sexual intrafamiliar; e a exploração sexual envolve a questão comercial. Por tudo o que foi exposto, imagina-se o nível de complexidade encontrado pelos profissionais para caracterizar um caso de violência sexual. É necessário ir muito além dos conceitos, buscando uma análise de situação individual e contextualizada. No entanto, apesar da complexidade mencionada, ao indagarmos os profissionais acerca dos principais sintomas para detecção dos casos de violência sexual infanto-juvenil, o que se evidenciou é que quase todos os eles conhecem quais são os sintomas/sinais da violência sexual, apenas dois (02) deles não conseguiram relatar nenhum sintoma. Assim sendo, o que se evidencia é que a justificativa de desconhecimento do conceito e dos sinais/sintomas não pode ser dada pelos profissionais da saúde para a omissão de atendimento e tomada de pode ser praticado contra pessoas de ambos os sexos, sob as mesmas formas de constrangimento previstas para o estupro (DREZETT, Jefferson. Estudo de fatores relacionados com a violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres adultas. São Paulo, 2000. Tese de Doutorado – Centro de Referência da Saúde da Mulher e de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil). 127 Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE, Violência Intrafamiliar: orientações para prática em serviço, p. 19, 2003. 128 ABRAPIA. Guia do Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil: Exploração Sexual Infanto-Juvenil , p. 11, s.d. 129 OURIQUE, V.L & SOUZA, R.J.M. A criança maltratada. Revista Médica da Bahia, 29, p. 08, 1988. 64 procedimentos frente a algum caso de violência sexual. Conforme discurso dos entrevistados, os sintomas que mais lhes chamariam atenção em algum caso de violência sexual infanto-juvenil são, “(...) comportamento agressivo, marcas, vergonha excessiva, poucas relações com familiares e colegas, depressões e gravidez precoce”130. “(...) comportamento sexual inadequado para a idade, medo de certas pessoas, dor e inchaço, lesão ou sangramento nas áreas genitais ou anais, infecções urinárias, secreções vaginais ou penianas, erupções na pele, DST’s”131. E, além dos aspectos citados, esse tipo de violência gera conseqüências psicológicas, com sintomas que incluem angústia, medo, ansiedade, culpa, vergonha e depressão os quais podem acompanhar todo o ciclo de vida de quem passou por essa situação. Também podem ocorrer reações somáticas, como fadiga, tensão, cefaléia, insônia, pesadelos, anorexia e náuseas. Como repercussões tardias, é possível ocorrer problemas na esfera ginecológica, uso de drogas e álcool, depressão, tentativa de suicídio e outros sintomas conversivos ou dissociativos.132 Segundo Monteiro e Phepo, “um sinal e/ou sintoma são motivos de alarme; um conjunto de sinais ou sintomas indica a possibilidade de mais-tratos. Raramente uma prova se apresenta sozinha. Para isso, temos que estar atentos e vigilantes para os sinais: eles indicam que é necessário agir rápido”133. E a área da saúde é um espaço importante, privilegiado e propício para a percepção desses sinais emitidos ou apresentados pelas crianças e adolescente, e até por seus pais/responsáveis. Tal aspecto pode ser demonstrado através do horripilante caso do austríaco Fritzl (engenheiro elétrico, aposentado, 73 anos) que 130 AS VI. Pesquisa de Campo, 2009. M IV. Pesquisa de Campo, 2009. 132 NEVES et. al. Atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual: experiência em Manaus. In Brasil. Ministério da Saúde. Violência faz mal à saúde, 2004. 133 MONTEIRO, Filho e PHEBO, Luciana Barreto (Coord.). Maus-tratos contra crianças e adolescentes, proteção e prevenção: guia de orientação para educadores., p. 40, 1997. 131 65 manteve a filha Elisabeth (hoje com 42 anos de idade) e três crianças nascidas do incesto presas em um porão. “Durante 24 anos Elisabeth foi mantida como escrava sexual do pai. Teve sete filhos gerados pela violência incestuosa. Três foram levados por Fritzl para o mundo superior (o confortável andar de cima do casarão), onde recebiam o carinho da avó, Rosemarie; iam à escola e brincavam na piscina cercada de um jardim. Três foram mantidos no reino das sombras, o porão opressivo onde testemunhavam os abusos cometidos pelo pai-avô contra a mãe-irmã. A sétima criança, um menino, morreu recém-nascida e foi incinerada na fornalha por Fritzl (...). Quando seqüestrou Elisabeth e a levou para o porão, simulou que ela tinha fugido de casa para aderir a uma seita religiosa. A mesma desculpa foi usada quando as crianças começaram a aparecer: Fritzl forçava a filha a escrever cartas à mãe pedindo que ela cuidasse dos bebês, enquanto seguia sua suposta vida alternativa”134. A teia de monstruosidade tecida por Fritzl começou a ser deslindada quando a filha mais velha da família escrava, de 19 anos, apareceu num hospital da cidade, em coma. E, foi a partir da intervenção profissional, que os médicos começaram a investigar a procedência de tal caso clínico e detectaram uma doença degenerativa decorrente do incesto135. Deste modo, com o caso apresentado constata-se a necessidade dos profissionais estarem em constate vigília para atendimento nos serviços de saúde, pois se, neste caso, os mesmos não tivessem notado “algo estranho”, a vítima teria retornado para aquele ambiente insalubre, dando prosseguimento ao ciclo de violência. Deste modo, este estudo chama atenção para a necessidade dos profissionais estarem sempre atentos e alertas para perceberem esses sinais que, somados às outras percepções, podem ser indicadores da violência. 134 FAVARO, Thomaz. O Monstro do Porão, p. 121-122, 2008. Dando-se um posicionamento sobre o caso: “Um tribunal austríaco condenou à prisão perpétua o engenheiro aposentado Josef Fritzl – o monstro do porão. Tal pena é fruto de seis crimes: homicídio, escravidão, estupro, cárcere privado, coação grave e incesto. (...) Os filhos do porão Stefan, de 18 anos, e Feliz, de 05, sofrem de anemia e deficiência de vitamina D provocada pela ausência da luz do sol. Kertin perdeu quase todos os dentes e continua em coma. Rosemarie, ao reencontrar a filha 24 anos depois, disse aos prantos: ‘Sinto muito. Eu não sabia de nada’. E após ter terminado o julgamento de Fritzl, Rosemarie finalmente anunciou a intenção de se divorciar do marido”, uma vez que o mesmo já havia sido condenado por estupro em 1967 e ela não só manteve o relacionamento depois disso como permanecia casada até o dia do julgamento (SHELP, Diogo. Narcisismo Cruel, p. 90, 2009). 135 66 2.3 UM OLHAR SOBRE OS ATENDIMENTOS PRESTADOS NOS SERVIÇOS DE SAÚDE ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA SEXUAL A atenção à violência sexual é objetivo específico da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, na qual estão previstas ações de ampliação e acessibilidade das mulheres, crianças e adolescentes aos serviços de saúde. As reivindicações da sociedade civil por direitos à saúde, justiça e cidadania culminaram na Conferência das Nações Unidas que tratam do tema saúde e direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres e jovens. No que se refere à violência, destaca-se a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará/ONU, da qual o Brasil é signatário, que traz como foco principal o reconhecimento de que a violência contra mulheres, crianças e adolescentes é uma violação dos direitos humanos136. Em se tratando de saúde x violência infanto-juvenil, Santos relata que o primeiro caso, de que se tem relato oficial de violência doméstica contra uma criança data do ano de 1874. Este foi o primeiro caso legal de retirada do pátrio poder, “(...) na cidade de Nova York. Foi em favor de uma menina chamada Mary Ellen, severamente espancada por sua madrasta, dada à interferência da sociedade protetora contra a violência em animais. A alegação usada à época foi a de que a criança era membro do reino animal e, portanto, estaria o ato de violência sujeito às leis que protegem os animais contra a crueldade. Em 1871, na cidade de Nova York, é criada a primeira sociedade para prevenção da crueldade em crianças”137. E, conforme artigo da revista bimestral da Associação Paulista de Medicina, ‘foi o eminente radiologista infantil norte-americano Caffey que, em 1946, pela primeira vez, relatou uma estranha associação entre fraturas de ossos longos e hematoma subdural em seis bebês, nos quais constatou 23 136 Cf MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes: norma técnica, 2005. 137 Id. Ibid, p. 25, 1987. 67 fraturas. Havia também, lesões esquisitas na pele, esquimoses que as mães atribuíram a traumas menores, como simples quedas do berço, etc.’138. Outros autores e o próprio Caffey continuaram o trabalho, sendo que apenas em 1962 o fenômeno da violência doméstica foi “descoberto” cientificamente. Foi a partir de um trabalho publicado por Silverman e Kempe no qual apresentaram 749 casos (com 78 mortes) de crianças vítimas do que eles batizaram de Síndrome da Criança Espancada (The Battered Child Syndrome). Só a partir destes trabalhos, que os profissionais da área médica começaram a assumir a hegemonia da questão e preocuparem-se em compreender e demonstrar como a violência afeta o crescimento e desenvolvimento infanto-juvenil 139. No Brasil, também vários pediatras entraram nesse movimento, principalmente a partir da década de 80. Muitos deles se engajaram nas atividades de prevenção de maus-tratos, dos quais são vítimas freqüentes, crianças e adolescentes. O foco inicial foi sempre a violência intrafamiliar. Alguns abriram essa discussão nos serviços que dirigiam em hospitais públicos; outros criaram ONG com a mesma finalidade; muitos passaram a socializar tais preocupações com estudantes de medicina, lideraram grupos de atenção às famílias maltratantes e uma boa parte esteve presente na formulação do ECA140. Ao se tratar de prevenção de maus-tratos e promoção de proteção, historicamente, foi no final de 1995, que a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, a primeira Secretaria que se tem conhecimento, criou a Ficha de Notificação Compulsória. Para sensibilizar os profissionais da rede pública, foram realizados vários cursos de capacitação sobre o problema da violência e dos maus-tratos, de tal forma que a norma pudesse ser incorporada por adesão e não apenas como obrigação141. Outro importante avanço surgiu do âmbito federal, com a criação, por portaria do Ministro da Saúde (MS), de um Comitê Técnico Científico para elaborar propostas de “Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências e 138 Apud STEINER, Helena. Quando a criança não tem vez: violência e desamor, p. 56, 1986. Cf. SANTOS, Hélio de Oliveira. Crianças Espancadas, 1987. 140 Cf. MINAYO, Maria Cecília de Souza e SOUZA, Edinilsa Ramos de (orgs.). Violência sob o Olhar da Saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira, 2003. 141 Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia de Atuação Frente aos Maus-Trados na Infância e na Adolescência, 1999. 139 68 de Redução da Violência e dos Acidentes na Infância e na Adolescência” em 1998. Desse grupo participaram representantes da Sociedade Civil Organizada, entre elas a Sociedade Brasileira de Pediatria, elaborando um plano específico para atuação dos profissionais que atendem a crianças e adolescentes. A proposta dessa Política Nacional foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em março de 2001. Nela se dá destaque à necessidade da atenção e notificação, pelo Sistema de Saúde às situações de maus-tratos e violências contra meninos e meninas142. No caso da atenção aos maus-tratos, concretamente, a oficialização do documento gerou a Portaria nº 1.968/2001 do Ministério da Saúde, tornando obrigatório, para todas as instituições de saúde pública e/ou conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o território nacional, o preenchimento da Ficha de Notificação143 Compulsória e seu encaminhamento aos órgãos competentes144. Ao Conselho Tutelar caberá receber a notificação, analisar a procedência de cada caso e chamar a família ou qualquer outro agressor para esclarecer, ou ir in loco verificar o ocorrido com a vítima. Apenas em casos mais graves que configurarem crimes ou iminência de danos maiores à vítima, o Conselho Tutelar deverá levar a situação ao conhecimento da autoridade judiciária e ao Ministério Público ou, quando couber, solicitar a abertura de processo policial. Eis a trilha da notificação145 que deve ser adotada tanto pelos serviços públicos de saúde, quanto educacionais e de segurança. 142 Cf. MINAYO, Maria Cecília de Souza e SOUZA, Edinilsa Ramos de (orgs.). Violência sob o Olhar da Saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira, 2003. 143 Segundo o Manual de Notificação de Maus-Tratos contra Crianças e Adolescentes do Ministério da Saúde, a definição mais abrangente de notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes é “(...) uma informação emitida pelo Setor Saúde ou por qualquer outro órgão ou pessoa, para o Conselho Tutelar, com a finalidade de promover cuidados sociossanitários voltados para proteção da criança e do adolescente, vítima de maus-tratos. O ato de notificar inicia um processo que visa a interromper as atitudes e comportamentos violentos no âmbito da família e por parte de qualquer agressor (...). O profissional de saúde que informa uma situação de maus-tratos está dizendo ao Conselho Tutelar: ‘esta criança ou este adolescente e sua família precisam de ajuda!’. Ao registrar que houve maus-tratos, esse profissional atua em dois sentidos: reconhece as demandas especiais da vítima; e chama o poder público a sua responsabilidade” (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Notificação de Maus Tratos Contra Crianças e Adolescentes: Um Passo a Mais na Cidadania em Saúde. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, p. 14, 2002). 144 Art. 13 – Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais (Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990/ECA). 145 Observação: Na figura exposta, foi feito uma modificação (um X na seta indicativa Serviços de Saúde Conselho Tutelar), tentando-se elucidar que, se os serviços de saúde não notificarem os 69 FIGURA 1 – TRILHAS DE COMUNICAÇÃO DE VIOLÊNCIA INFANTO-JUVENIL Fonte: MINISTÉRIO DA SAÚDE. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes: um passo a mais na cidadania em saúde, 2002. E, apesar das determinações legais demonstradas, a pesquisa de campo realizada nas distintas unidades de saúde do Distrito de Saúde Norte (DISA NORTE) constatou-se que 58% dos profissionais entrevistados não sabem para onde devem ser encaminhados os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes, muitos deles na hora da entrevista relataram: “não estou casos de violência aos Conselhos Tutelares, o fluxo de atendimento tende a ser rompido/encerrado, assim as vítimas não serão redirecionadas e resguardada pela rede de proteção à infância e adolescência, com isso, as vitimas correm um sério risco à revitimização. 70 lembrada, mas tem tudo anotadinho ali na pasta”146, “isso é assunto para o serviço social”147, “nem sabia que tinha que encaminhar para algum lugar específico”148. Isso comprova que os profissionais além de desconhecerem a rede/fluxo de atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil, os serviços prestados nas diferentes unidades saúde se diferenciam de profissional para profissional, ou seja, se caso a vítima seja atendida por algum profissional conhecedor da rede/fluxo de atendimento, este será corretamente conduzido e orientado sobre os procedimentos que devem ser adotados, entretanto, se o profissional que presta o atendimento à criança ou adolescente vitimizado desconhece os procedimentos e o fluxo de atendimento, a violência passa “despercebida” no serviço de saúde e o usuário retorna ao ciclo da violência (seja ela em casa, na rua, trabalho, escola, etc.), pois quase sempre ela é ocultada por suas vítimas. Nos Estados Unidos, por exemplo, apesar do tímido percentual de denúncias, a violência sexual é um crime cada vez mais reportado149. Lá, o estupro é considerado o crime violento que mais rapidamente avança em incidência, estimando-se que ocorra uma agressão sexual a cada 6,4 minutos. Acredita-se que uma em cada quatro mulheres adultas americanas experimentou um contato sexual não consentido durante o período da infância ou adolescência. Entre as crianças estima-se que um terço tenha sido submetida, pelo menos uma vez, a um contato incestuoso150. Quando se estende essa observação a outros países, a literatura pesquisada demonstrou que a ocorrência de violência sexual apresenta informações escassas e imprevistas. Entre os países em desenvolvimento, poucos possuem estatísticas baseadas em dados obtidos por centros especializados, censos nacionais ou estudos populacionais bem conduzidos. No Brasil, por exemplo, não existem dados apropriados a respeito dos crimes sexuais, havendo uma grande necessidade de investigações quantitativas e qualitativas para melhor entender e dimensionar o problema. Assim, como nos 146 AS I. Pesquisa de Campo, 2009. M IV. Pesquisa de Campo, 2009. 148 M II. Pesquisa de Campo, 2009. 149 Cf. MCGREGOR, Joan. Risk of STD in female victims of sexual assault. Medical Aspects of Human Sexuality, 1985. 150 Cf. RUSSEL, Diana. The secret trauma: incest in the lives of girls and women. New York, Basic Books, 1986. 147 71 países desenvolvidos, depara-se com o problema da subnotificação. As constatações do Departamento de Medicina Legal da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo, revelam que apenas 10 a 20% das vítimas denunciam o estupro151. A Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA) estima que, “em nosso meio, a ocorrência de violência sexual na infância e adolescência seja similar a observada em países desenvolvidos”152. Deste modo, analisa-se que no Brasil, as estatísticas sobre a violência sexual são variadas e quase sempre imprecisas. Porém quaisquer que sejam os números observados, todos são assustadores. Considerando-se sua elevada incidência e prevalência, bem como as conseqüências bio-psico-sociais que determinam, os crimes sexuais adquiriram proporções de um complexo problema de saúde pública, necessitando-se assim, de uma imediata tomada de precaução/prevenção de toda a rede de atenção à saúde e proteção à criança e ao adolescente. A notificação dos maus-tratos praticados contra crianças e adolescentes é obrigatória153 por lei federal, portanto, essa obrigatoriedade se estende a todo o território nacional. Apesar das determinações legais, 89% dos profissionais pesquisados conhecem tal obrigatoriedade. Aliás, conforme o gráfico abaixo, apenas 17% dos profissionais entrevistados conhecem a ficha para notificação de maustratos, o que, por sua vez, inviabiliza qualquer possibilidade de notificação. 151 Cf. FAÚNDES, Aníbal. et.al. III Fórum interprofissional para a implementação do atendimento ao aborto previsto por lei, 1999. 152 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA MULTIPROFISSIONAL DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA (ABRAPIA). Maus Tratos contra crianças e adolescentes. Proteção e Prevenção. Guia para orientação para profissionais da saúde, p. 39, 1997. 153 Art. 245 – Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação , que orienta os encaminhamentos a serem dados pela equipe de saúde: os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças ou adolescentes: Pena – multa de três a vinte salários de referencia, aplicando-se o dobro em caso de reincidência (LEI 8069 DE 13 DE JULHO DE 1990 - ECA). 72 GRÁFICO 4 - CONHECE A FICHA DE NOTIFICAÇÃO DE MAUS-TRATOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES? 17% Não Sim 83% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Entretanto, a despeito do divulgado, é necessário salientar que neste caso, o direito ao acesso à informação não cabe ser alegado pelos profissionais de saúde como para qualquer cidadão, pois os profissionais de saúde têm o dever de conhecer as legislações e normas técnicas, visto que colocam como um dos seus objetivos a democratização de informações154. Com relação ao conhecimento da existência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), 71% dos profissionais argüiram conhecê-lo, entretanto, apenas 14% (05) relataram já ter lido o Estatuto todo, conforme os gráficos abaixo. GRÁFICO 5 - CONHECE O ECA? GRÁFICO 6 - VOCÊ JÁ LEU O ECA TODO? 14% 29% Sim Não Sim Não 71% 86% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Em consonância com os dados apresentados, Lilia Schraiber aponta um aspecto relevante: a dificuldade dos profissionais de saúde em lidar com problemas da esfera social e da subjetividade humana (ressaltam-se, sobretudo, aqueles com formação estritamente baseada no modelo biomédico). Essa dificuldade não se limita à inabilidade quanto às ações práticas, mas ao fato, de muitas vezes, não 154 VASCONCELOS, Ana Maria. A prática do Serviço Social: Cotidiano, formação e alternativas na área da saúde, 2003. 73 conseguirem visualizar os aspectos sociais e culturais relacionados aos problemas de saúde e a inabilidade de lidar com aspectos emocionais155. E é realmente, o que tem ocorrido, grande parte dos profissionais não se preocupa e não se envolve com os aspectos psicossociais, como pode ser evidenciado na afirmação de uma das entrevistadas, “(...) o despreparo e a falta de informação podem prejudicar na hora do atendimento (...) sei que existe o Estatuto da Criança mais nunca tive interesse em ler, pois acho que não ajudaria na minha prática, isso é mais 156 para as Assistentes Sociais” . Conforme dados da pesquisa de campo, constatou-se também que apenas 40% (14) dos profissionais pesquisados dizem já ter atendido alguma vítima de violência sexual infanto-juvenil, destes as assistentes sociais foram as que mais identificaram esta demanda (80%). GRÁFICO 7 - JÁ ATENDEU ALGUM CASO DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTOJUVENIL NO EXERCÍCIO DA SUA PROFISSÃO? 40% Sim Não 60% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Com relação à resolutividade do caso, dos 40% (14) dos profissionais que já identificaram algum caso de violência sexual infanto-juvenil, grande parte deles (67%) revela não ter tomado nenhum procedimento clínico. Dos 60% (21) dos profissionais entrevistados que nunca atenderam algum caso de violência sexual infanto-juvenil, 60% (outros) relatou que se atendessem algum caso de violência sexual infanto-juvenil não saberiam quais os procedimentos clínicos tomariam e os 40% restantes representam aqueles profissionais que não podem tomar nenhum 155 SCHRAIBER, Lilia Blima. No encontro da técnica com a ética: O exercício de julgar e decidir no cotidiano do trabalho de medicina. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, 1997. 156 M I. Pesquisa de Campo, 2009. 74 procedimento clínico, tais quais: Assistente Sociais, Agente Comunitário de Saúde (ACS) e Técnicos de Enfermagem e por isso ficaram com a opção “não se aplica”. GRÁFICO 8 - QUAIS FORAM OS PROCEDIMENTOS CLÍNICOS ADOTADOS? GRÁFICO 9 - QUAIS SERIAM OS PROCEDIMENTOS CLÍNICOS ADOTADOS? 20% 40% 13% 67% Exame Físico Não se aplica Nenhum procedimento clínico 60% Não se aplica Outros Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Segundo os entrevistados que já atenderam casos de violência sexual, não tomaram nenhum procedimento clínico por não saber o que fazer e por dizer que o serviço de saúde não dispõe de material necessário para realização de algum procedimento. Contudo, o que foi evidenciado através da observação, é que em todas as unidades de saúde os anticoncepcionais de emergência157 estão disponíveis à população. Outro procedimento clínico necessário e disponível em quase todos os serviços de saúde pesquisados (com exceção das unidades de saúde da família, mas que, entretanto, poderiam encaminhar o caso a alguma unidade básica, policlínica ou SPA) é a profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis, que, por sua vez, não foi realizado em nenhum dos casos atendidos, contrapondo-se ao que orienta o Ministério da Saúde, “(...) parte importante das infecções genitais decorrentes da violência sexual pode ser evitada. Doenças como gonorréia, sífilis e outras podem ser prevenidas com o uso de medicamentos de reconhecida eficácia. Esta medida é fundamental para proteger a saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes dos possíveis e intensos impactos da violência sexual”158. 157 A anticoncepção de emergência é o método anticonceptivo que previne a gravidez após a violência sexual, utilizando compostos hormonais concentrados e por curto período de tempo. Cabe ao profissional de saúde avaliar cuidadosamente o risco de gravidez para cada usuário que sobre violência sexual (Cf. TAVARES. O Papel do Enfermeiro frente a uma situação de violência sexual acometida à mulher, 2008). 158 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes: norma técnica, p. 27, 2005. 75 Com relação aos procedimentos psicossociais adotados pelos profissionais que já atenderam algum caso de violência sexual 46% encaminharam ao Serviço Social e 54% não tomaram nenhum procedimento: 27% por não saber o que fazer, 20% por ter medo de represália da família e 7% por não se envolver em questões familiares. Quanto aos profissionais que nunca atenderam nenhum caso de violência sexual, 35% dos profissionais responderam que se atendessem essa demanda encaminhariam ao Serviço Social, 34% conversaria com o chefe imediato, 9% encaminharia ao Conselho Tutelar e 22% não tomaria nenhum posicionamento, pois: tem medo de represália da família da vítima (9%) e outros não sabem o que fazer (13%). GRÁFICO 11 - QUAIS SERIAM OS PROCEDIMENTOS PSICOSSOCIAIS ADOTADOS? GRÁFICO 10 - QUAIS FORAM OS PROCEDIMENTOS PSICOSSOCIAIS ADOTADOS? 27% 7% 35% 9% 13% 20% 9% 34% 46% Conversaria com o chefe imediato Nenhum, pois tenho medo de represália da família da vítima Encaminharia ao Serviço Social Nenhum, nunca sei o que fazer Nenhum, não me envolvo em questões familiares Encaminharia ao Conselho Tutelar Encaminhei ao Serviço Social Nenhum, não saberia o que fazer Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Nenhum, pois tenho medo de represália da família da vítima Observa-se aqui, por parte das unidades e dos profissionais, tanto os que já atenderam algum caso de violência sexual quanto aqueles que não atenderam, um silêncio e uma ausência de ações sistemáticas e continuadas, articuladas com as comunidades, escolas e as distintas instâncias de atenção à saúde da criança e do adolescente. Evidencia-se com extrema clareza que não existe conhecimento dos profissionais acerca dos procedimentos (tanto clínico quanto psicossocial) que devem ser adotados frente aos casos de violência sexual e também desconhecimento da rede articulada de resolubilidade. O que existe são profissionais que individualmente tomam algum (ou nenhum) procedimento que “acham ser corretos ou mais cômodos”, trazendo como conseqüência, 76 “(...) a compartimentalização e fragmentação das ações dos diferentes serviços e fluxos, confusão de papéis, duplicidade de ações, revitimização, descontinuidade no atendimento e indefinição de portas de entrada”159. Deste modo, vê se que falta uma definição160 e divulgação global, particular e articulada, de competências e uma clara definição de papéis. A rede carece de padronização de procedimentos técnicos, de rotinas estabelecidas de referência e contra-referência. Com relação à notificação dos casos atendidos de violência sexual infantojuvenil 89% dos profissionais que já atenderam caso de violência sexual infantojuvenil, não o notificaram ao órgão responsável, apenas 11% (principalmente assistentes sociais) dos casos foram notificados, e destes casos notificados nenhum (0%) retornou ao serviço de saúde, por isso, os profissionais não tomaram mais conhecimento do caso. “(...) a gente não tem tempo para fazer nada, quanto mais para ligar para o Conselho Tutelar para ter posicionamento dos casos (...). Aliás, o Conselho Tutelar tinha que ser um parceiro nosso, e dar um posicionamento dos casos notificados para depois fazermos os acompanhamentos e encaminhamentos necessários”161. “(...) já notifiquei, o negócio é que a gente não tem retorno, eu nunca tive retorno, aí até desmotiva, ninguém nem sabe se algum procedimento realmente é tomado após a notificação”162. Assim sendo, o que se evidencia é que a integração entre o setor Saúde e os Conselhos Tutelares ainda se encontra relativamente pouco expressiva. Para tanto, faz-se necessário que os profissionais de saúde compreendam os procedimentos que os Conselhos Tutelares adotam com as vítimas por eles encaminhadas. A intervenção do Conselho Tutelar se dá a partir de uma denúncia ou notificação de que os direitos de uma criança ou adolescente estão sendo violados 159 FALEIROS, Vicente de Paula et. al. Circuito e curtos-circuitos: atendimento, defesa e responsabilidade do abuso sexual contra crianças e adolescente no Distrito Federal, p.110, 2006. 160 Pensa-se definição no sentido de organização interna das próprias unidades de saúde, tendo em vista que já existe um fluxo de atendimento pré-determinado pelo Ministério da Saúde, conforme demonstrado anteriormente. 161 AS III. Pesquisa de campo, 2009. 162 AS VII. Pesquisa de campo, 2009. 77 ou ameaçados. Isso significa que a partir de então, se inicia um procedimento para restabelecer o estado de direito da criança ou do adolescente, mas também uma atuação preventiva para que essa transgressão não venha a acontecer novamente. O Conselho Tutelar não precisa de provas evidentes para apuração de uma denúncia que poderá ser feita inclusive anonimamente. Nas relações com os serviços de saúde, várias estratégias podem ser utilizadas para recebimento das notificações provenientes deles. “Quando há uma boa relação entre ambas as instituições, antes do envio da notificação via fax ou correio, ocorrem contatos telefônicos em que profissionais de saúde e conselheiros discutem sobre as condutas que auxiliariam no atendimento imediato ao caso. Esse breve contato abrevia o trabalho do Conselho; reduz a possibilidade de acontecer outra situação desgastante para a vítima, pela repetição do atendimento que muitas vezes em si é invasivo e humilhante; e permite uma avaliação mais interprofissional; além de ampliar a informação sobre o caso”163. Em contraposição, à estratégia apresentada, nos serviços de saúde pesquisados, as notificações são apenas enviadas via fax e não há nenhuma interação entre os serviços. Dos profissionais que nunca atenderam violência sexual infanto-juvenil, caso atendessem apenas 10% disseram que notificariam o caso ao Conselho Tutelar, os outros 90% informaram que não notificariam. GRÁFICO 12 - VOCÊ NOTIFICOU O CASO A ALGUM ÓRGÃO? GRÁFICO 13 - NOTIFICARIA O CASO A ALGUM ÓRGÃO? 10% 89% 11% Sim Não 90% Sim Não Fonte: Pesquisa de Campo/2009 163 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes: um passo a mais na cidadania em saúde, p. 26, 2002. 78 Em consonância com os dados apresentados, o Manual de Notificação de Maus-Tratos contra crianças e adolescentes cita Finkelhor (1993) que expõe as cifras do National Incidence Styde (NIS), órgão que tem como uma das principais funções, saber a dimensão dos maus-tratos conhecidos pelos profissionais e não reportados às agências de proteção. Segundo o NIS, “(...) 65% de todos os casos de maus-tratos e 60% dos casos muito graves, conhecidos por profissionais que lidam com crianças e adolescentes nem chegam ao sistema de proteção, porque não são notificados”164. Assim, sugere-se igualmente que os profissionais da rede de proteção sejam ainda melhor qualificados e que o trabalho de prevenção e suporte às famílias, seja priorizado. Em qualquer hipótese, deve-se considerar que a divulgação sobre a necessidade e a obrigação de notificar deve continuar. Aliás, esse debate alerta o Sistema de Saúde para a necessidade de empreender, desde já, um movimento de capacitação dos profissionais e de qualificação daqueles que vão lidar com a constatação das notificações e com o atendimento e acompanhamento das vítimas e de suas respectivas famílias. Além disso, é preciso investir tecnicamente para que esse sistema de registro possibilite o processo de avaliação continuada e monitoramente da rede de proteção que só se efetivará se houver investimento em pessoas, equipamentos e meios para ação. Seguindo-se na apresentação dos dados coletados, demonstra-se que 89% dos casos subnotificados (Cf. Gráfico 12) se deu em detrimento dos profissionais não saberem o que fazer (43%), por não se envolverem em problemas/questões familiares (29%), por terem medo de represália da família (14%) e por preguiça, comodismo e pressa no atendimento (14% - outros). “Os profissionais não notificam por preguiça! Falando sério e conhecendo os colegas e me conhecendo é pura preguiça, muitas vezes somos acomodados, às vezes a gente só notifica quando o caso é muito 165 gritante” . 164 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes: um passo a mais na cidadania em saúde, p. 21, 2002. 165 M I. Pesquisa de campo, 2009. 79 Dos 90% que confirmaram que não notificariam o caso (Cf. Gráfico 13), informaram que não notificariam por não saber como fazer (75%) e por não se envolver em problemas familiares (25%). GRÁFICO 14 - PORQUE NÃO NOTIFICOU O CASO? 14% GRÁFICO 15 - PORQUE NÃO NOTIFICARIA O CASO? 25% 14% 29% 75% 43% Medo de represália por parte da família Não saber como fazer Por não se envolver em problemas familiares Outros Não saber como fazer Por não se envolver em problemas familiares Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Estes percentuais altamente significativos indicam a necessidade de trabalhos sensibilizadores que alcancem efetivamente essa parcela de profissionais que não notificam e argumentam o motivo com a informação de não saber como fazer. E, além dos aspectos supracitados, os profissionais relataram como principais fatores da subnotificação: “o desconhecimento da ficha de notificação”166, “falta de interesse e compromisso do profissional para investigar”167, “por preferir não se envolver em problemas familiares”168, “demanda muito grande, poucos profissionais e sobrecarga de trabalho”169. Acrescenta-se ainda, a precariedade de suportes sociais e a ineficiência dos existentes levam os profissionais de saúde à descrença com relação aos resultados de suas notificações. De fato, profissionais entrevistados por Virginia Tilden alegaram, como principal razão para não notificar, o fato de que a notificação desencadeia uma série de ações que fogem ao seu controle e são muitas vezes contra terapêutica. Os profissionais são colocados, então, diante de um dilema ético entre o dever de notificar e a baixa confiabilidade na habilidade do sistema em responder efetivamente à notificação. Assim, alguns autores acreditam que essa é uma das 166 M II, IV, V; E II, VI; TE I, II, IV. Pesquisa de Campo, 2009. M I, AS IV. Pesquisa de Campo, 2009. 168 M III, VI; AS I, III; P II. Pesquisa de Campo, 2009. 169 AS V, VI; TE III. Pesquisa de Campo, 2009. 167 80 causas para o grande número de profissionais que não suspeitam de abuso, dado que a negação seria uma solução para esse dilema ético170. Estes dados se tornam inquietantes, pois o atendimento na rede de saúde, por vezes, deveria ser a primeira oportunidade de revelação de uma situação de violência. Assim, a possibilidade de diagnosticar a situação deveria ser valorizada pelo profissional, fazendo as perguntas adequadas e investigando hipóteses diagnósticas. É válido ressaltar, entretanto, que embora existam profissionais que trazem as dificuldades relatadas, encontram-se também aqueles poucos que demonstram competência no trato da questão, comprometidos e sensibilizados com a causa da vitimização, “estes profissionais que estão envolvidos com a questão facilitam a identificação do fenômeno, dinamizando o trabalho em parceria”171. Contudo, trabalhar um aspecto de tamanha complexidade, como o da violência sexual, requer um envolvimento de uma equipe articulada, comprometida e capacitada para intervir na questão, deste modo, a intervenção individualizada não é capaz de romper com o ciclo de vitimização que permeia a sociedade. Com os dados apresentados, constata-se a necessidade por parte de todos os profissionais, de uma competência teórica, técnica, política e ética, possibilidade esta que só está dada numa formação profissional continuada, colada na realidade objeto da ação profissional, conforme será apresentado no capítulo a seguir. Sem esta competência, pouco poderá ser feito para reversão da situação da saúde pública brasileira. 170 TILDEN, Virginia et. al. Factores that influence clinicians assessment and management of family violence. American Journal of Public Health, 1994. 171 CRAMI. Abuso sexual doméstico: atendimento às vítimas e responsabilização do agressor, p. 51, 2005. 81 III CAPÍTULO SAÚDE X VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO JUVENIL: Análise e Discussão das Práticas Profissionais Cotidianas 3.1 AS PRÁTICAS PROFISSIONAIS EM SAÚDE FRENTE AOS CASOS DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL A política de atendimento integrada à prática de saúde é um elemento fundante da qualidade do Sistema Único de Saúde (SUS), visto que é esta prática de assistência que vislumbra o restabelecimento integral da saúde do usuário a ser atendido. Para isso, se faz necessárias melhorias relacionadas a condições estruturais, em termos de qualificação profissional, acesso a equipamentos, estrutura física, etc. Além de todos estes aspectos científicos e tecnológicos, é fundamental um correspondente avanço na construção de relações humanas de trabalho e atendimento em saúde, pautadas em um padrão ético de respeito e dignidade. Embora existam várias teorias éticas e modelos de análise teórica, não se pretende aqui fazer uma revisão sobre os diversos modelos de prática profissional172 172 Exprime não apenas a capacidade técnico-operativa de quem a realiza, mas também, e principalmente, sua posição existencial, política e ideológica face às relações da sociedade em que vive. É essa posição que particulariza a intervenção profissional, dando-lhe uma qualidade, imprimindo-lhe uma direção – o que não significa necessariamente que os profissionais deixem de reproduzir os serviços concretos, definidos institucionalmente e solicitados pela população (...). Isto significa que a visão de mundo que informa o profissional para forjar a sua prática se gesta historicamente, como produto das relações concretas da sociedade onde ele se articula: se constrói no hoje, tendo por base o passado (as determinações) e se volta para o futuro (as intencionalidades), 82 existentes, nem tampouco entrar em definições, caracterizações e comparações entre os diversos termos utilizados. Pretende-se sim, oferecer fundamentos para a reflexão sobre o agir profissional nas distintas Instituições de saúde do Distrito de Saúde Norte. No que tange à Instituição, Martinelli discorre que no paradigma clássico do positivismo, a Instituição é vista como um sistema pronto e acabado, que busca se manter em permanente estabilidade, utilizando-se para tanto de mecanismos coercitivos, de controle, autoridade e poder. Sua lógica é a lógica da burocracia, da justificação e sua prática é a reprodução do já produzido. Não por acaso, esta visão de Instituição leva a uma prática providencialista, mecânica, individual, onde as ações, cada vez mais burocratizadas, esvaziam a dimensão humana do trabalho. É uma Instituição que reproduz, sem contestar, a ideologia do sistema que a cria, e, neste sentido, a reforça permanentemente173. Assim nesta lógica, não há espaço para criação do novo, pois a prática é ritualística, mimética, ou seja, se faz por imitação, eliminando a noção de compromisso. Ao invés de se apoiar em uma proposta, apóia-se nas ações em si mesmas, as quais se expressam através do cumprimento de tarefas. De tanto cumpri-las, mimeticamente, o profissional vai se exaurindo, se extenuando, se transformando na caricatura de si mesmo. Enfocada sob a perspectiva dialética, a Instituição é, acima de tudo, “(...) o espaço permitido para a realização da prática profissional. É o cenário onde se desenvolvem as ações profissionais, ações estas socialmente construídas e voltadas para um fim comum. Neste sentido é o local onde se desenvolve, também a nossa luta profissional. Portanto, é um espaço contraditório e complexo, no qual se localizam, paradoxalmente, tanto as vias de resistência, quanto as vias de transformação. Localizar estas vias, é decifrar o enigma, é avançar ou recuar com a prática profissional, é assumir a prática enquanto espaço de reprodução ou espaço de autonomia”174. numa relação dialética passado/presente/futuro no qual o presente está quotidianamente sendo criado e recriado com a incorporação seletiva de saberes (BAPTISTA, Myrian Veras. A produção do conhecimento social contemporâneo e sua ênfase no Serviço Social, p.17, 2001). 173 Cf. MARTINELLI, Maria Lúcia. Serviço Social, Identidade e Alienação, 1989. 174 Id. Ibid. p. 02, 1989. 83 Portanto, pode-se dizer que a instituição é tanto o locus de efetivação da prática profissional quanto de conflitos, uma vez que é um local de confrontações ideológicas em detrimento de certa realidade, visando a alteração de uma determinada situação. Deste modo, dialeticamente, a Instituição é um espaço de ação coletiva e não de realização de tarefas individuais. Sua lógica é a lógica do compromisso, da superação, seu percurso vai da particularidade para a totalidade, do diálogo para a reflexão, da reflexão para a construção de mediações historicamente construídas e socialmente viáveis. E, partindo desta visão, cabe a cada profissional, em especial aos da saúde que é foco deste estudo, romper com a prática providencialista, rotineira, reduzida, de imitação e caminhar na construção de uma prática autônoma, consistente, vigorosa e forte, uma prática dinâmica, criativa, voltada permanentemente para o novo e para uma visão holística de ser humano. O Plenário do Conselho Nacional de Saúde (CNS), no sentido de possibilitar o acesso a saúde como direito de todos e dever do Estado, reforçando a noção ampliada da compreensão da relação saúde/doença como decorrência das condições de vida e trabalho, bem como, o acesso igualitário de todos os serviços de promoção e recuperação da saúde, reconheceu treze profissões de saúde, respeitando a integralidade das ações, a participação social, afirmando a importância da ação interdisciplinar no âmbito da saúde e reconhecendo como imprescindíveis, as ações realizadas por diferentes profissionais. Deste modo, estabelece que, “(...) são reconhecidos como profissionais de saúde os assistentes sociais, biólogos, profissionais de educação física, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, médicos veterinários, nutricionistas, odontólogos, psicólogos e os terapeuta ocupacionais”175. A necessidade desta resolução do CNS revela a dificuldade não só de reconhecer a imprescindibilidade das ações realizadas pelos diferentes profissionais de nível superior, mas, principalmente de efetivar uma ação interdisciplinar no âmbito da saúde, a partir da compreensão da, 175 CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, Resolução n°. 218 de 06/03/1997. 84 “relação saúde/doença como decorrência das condições de vida e de trabalho, bem como o acesso igualitário de todos os serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, colocando como uma das questões fundamentais a integralidade da atenção à saúde e a participação social”176. Assim sendo, as Políticas de Saúde ajudam a (re)desenhar práticas mas parece que são apreendidas e concretizadas isoladamente, tendo como pano de fundo as práticas e rituais já institucionalizados, como pode ser observado no decorrer deste trabalho. Nota-se que apesar dos distintos dispositivos legais nortearem para um momento de transição de um modelo eminentemente biológico, curativo, para um modelo que busca a integralidade da atenção em saúde, as práticas estão cada vez mais intransigentes, arraigadas e desprovidas de uma visão holística do processo saúde-doença. Além disso, identifica-se empiricamente que são práticas altamente especializadas contrapondo-se às práticas integralizadoras e práticas fragmentadas em saberes profissionais isolados, em instituições hospitalares, ambulatoriais e de atenção básica, ainda pouco articuladas. Não parece haver movimentos de conciliação nessas práticas que em suas positividades se complementam. E, o que se observou nas visitas às unidades de saúde foi profissionais presos ao modelo clínico-assistencial. Permanecendo no interior dos seus consultórios (não raro o único espaço da unidade que conhecem além da sala de assinatura do “ponto”, habitualmente situada ao lado da sala do diretor), os médicos não portam uma visão dinâmica institucional e do conjunto das reais demandas que os segmentos populares trazem para o interior das unidades de saúde. No caso dos enfermeiros, ainda que num movimento diferente porque circulam cotidianamente no interior das unidades, alguns ainda estão presos ao movimento institucional. Para estes, a circulação, no interior das unidades, objetiva mais a gerência do pessoal da enfermagem do que a viabilização de ações voltadas diretamente para os usuários. Assim, no seu conjunto, os profissionais de saúde, se por vezes observam a freqüência da reincidência de muitos problemas de saúde devido a fatores que escapam às ações assistenciais, fazem desta observação justificativa para atitudes pessimistas em relação aos possíveis resultados da prática profissional na saúde pública. Mesmo que tenham suporte para uma prática diferenciada na legislação, como exemplo, a Resolução do CNS (n°218) citada anteriormente, que amplia a definição de 176 Id. Ibid. 1997. 85 profissional de saúde de acordo com o sentido social, econômico e cultural do conceito de saúde, a maioria dos profissionais desconhece e/ou não procura conhecer e criar condições objetivas para uma ação relacionada às necessidades cotidianas, que rompa com rotinas e determinadas práticas institucionais. Com todas as restrições, o profissional que porta uma inserção institucional não programada, em definitivo, como os demais profissionais e que, por isso mesmo, é levado a conquistar no cotidiano o seu espaço profissional, no interior das unidades de saúde, é o assistente social que, na procura de parcerias para realizações de suas ações, acaba por fomentar e incentivar o oferecimento de ações que transcendem o consultório e a cura, incentivando o trabalho em equipe. Mas, mesmo assim, a prioridade é dada para ações no interior das unidades de saúde em detrimento do trabalho com a população circunvizinha, mesmo nas unidades básicas de saúde, espaços que deveriam ser característicos de ações preventivas, de promoção e educação em saúde. Além disso, os assistentes sociais são vistos como solucionadores de todos os problemas psicossociais e burocráticos da unidade, como já fora demonstrado no capítulo anterior. Grande parte dos profissionais não se envolve com problemas de cunho social, fazendo com que as ações que não sejam relativas aos aspectos clínicos sejam desviadas para os assistentes sociais ou mesmo não seja abordada pelos distintos profissionais, ocorrendo assim, uma omissão dos atendimentos prestados. “Uma prática reflexiva implica em problematizar situações cotidianas com as quais nos deparamos quando assistimos pessoas, seja promovendo a saúde; prevenindo má-saúde; ou, cuidando de pessoas em má-saúde. Significa tomar em consideração as dúvidas do nosso dia-a-dia, as quais nos forçam a refletir constantemente sobre qual a melhor forma de aplicar uma injeção, contar a uma pessoa que a cirurgia não teve o êxito esperado, banhar alguém mesmo sem ter o material necessário, a melhor maneira de desenvolver ações educativas em saúde, e assim por diante. Existem conceitos-chave que devem ser considerados numa situação de conflito. Dentre eles, destaco os conceitos de tolerância, eqüidade, solidariedade e responsabilidade, como imprescindíveis para avaliar questões relativas aos conflitos morais do cotidiano da saúde”177. Longe de querer responsabilizar os profissionais de saúde pelas condições atuais da saúde pública no Brasil, mas sem profissionais de saúde com uma formação/capacitação teórico-prática, ética e política de qualidade, dificilmente ter177 BUB, Maria Bettina Camargo. Ética e Prática Profissional em Saúde, p.70, 2005. 86 se-á uma defesa eficiente da saúde pública e do projeto de Reforma Sanitária (que ganha alguma expressão no projeto do SUS, conforme elucidado no Capítulo I) por parte de população usuária e por parte dos próprios profissionais de saúde. Este aspecto é relevante, pois o conhecimento técnico-científico aliado à prática e sensibilidade dos profissionais de saúde para aplicação de ações humanizadas são elementos essenciais na atenção a saúde, e em especial no cuidado à saúde de às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, pois os esforços para o reconhecimento da prevalência da violência, sua caracterização como fenômeno social de grande magnitude, são desafios a todos que lidam com o problema. Por sua complexidade, a resposta à violência, exige a organização da atenção e da rede de proteção, o engajamento, capacitação, prevenção e a contribuição de diferentes profissionais. Todavia, ao tratar de capacitação em atenção à saúde de crianças e adolescentes vítimas da violência sexual com os profissionais da saúde do Distrito de Saúde Norte, identificou-se que 89% dos profissionais não se sentem capacitados para prestar os atendimentos necessários a estas vítimas, apenas 11% sentem-se capacitados, conforme o gráfico abaixo. GRÁFICO 16 - VOCÊ SE SENTE CAPACITADO PARA ATENDER E ORIENTAR CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DA VS? 89% Sim Não 11% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 A partir destes dados, analisa-se que as equipes de saúde devem receber capacitação para o atendimento integral às demandas apresentadas pelas vítimas de violência sexual infanto-juvenil, estabelecimento de medidas protetoras (anticoncepção de emergência, profilaxia das DST/HIV) e distintos aspectos essenciais para o atendimento humanizado, respeitando-se seus direitos e atendendo suas necessidades. Tendo em vista que os profissionais de saúde estão em posição estratégica para diagnóstico e a atuação sobre o problema da violência, em especial a violência 87 contra crianças e adolescentes, é necessário que existam mecanismos bem definidos de detecção e encaminhamento das vítimas. A eficácia desses mecanismos colabora para que os cuidados sejam prestados quanto mais imediatos possível, dentro das demandas de cada caso. “O atendimento aos casos de violência sexual requer a sensibilização e capacitação de todos os funcionários do serviço de saúde. Ainda que cada profissional de saúde cumpra papel específico no atendimento, todos devem estar sensibilizados para as questões da violência e capacitados para acolher e oferecer suporte às vítimas”178. Adverso do que deveria ocorrer apenas 03% dos profissionais entrevistados relataram já ter participado de curso de capacitação/sensibilização para atendimento às crianças e adolescentes vítimas da violência sexual no Distrito de Saúde Norte da cidade de Manaus/AM, segundo ilustra o gráfico que segue. GRÁFICO 17 - VOCÊ JÁ PARTICIPOU DE CURSO DE CAPACITAÇÃO PARA ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE VS INFANTO-JUVENIL? 97% Sim Não 3% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 E quando indagados se gostariam de participar de cursos de capacitação para atendimento às vítimas de violência sexual, 100% dos profissionais afirmaram que sim. Dessa forma, vê-se que os profissionais demonstram disponibilidade e interesse para atualizações em saúde, cabendo, então, às instâncias superiores (DISA Norte e SEMSA) promoverem, sistematicamente, oficinas, grupos de discussão, cursos, ou outras atividades de capacitação, atualização dos profissionais e avaliação dos serviços. Isso é importante, “(...) para ampliar conhecimentos, trocar experiências e percepções, discutir preconceitos, explorar os sentimentos de cada um em relação a temas com 178 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes: norma técnica, p. 24, 2005. 88 os quais lidam diariamente em serviço, a exemplo da violência sexual, buscando compreender e melhor enfrentar possíveis dificuldades pessoais ou coletivas”179. Em se tratando da formação acadêmica, o gráfico a seguir demonstra que 91% dos entrevistados relataram não ter tido nenhuma discussão relativa à responsabilidade de denúncia nos casos de violência infanto-juvenil. De acordo com uma das entrevistadas, essa situação se torna inquietante, pois, “(...) as vítimas de violência sexual trazem em seu corpo as marcas visíveis e invisíveis de uma história vivenciada que causa dor, medo, angústia, depressão, sofrimento e, ao ser compartilhada com o profissional de saúde, afeta-o, gerando o sentimento de impotência por não conseguirmos resolver o problema como desejamos, uma vez que não tivemos, na formação acadêmica e até mesmo na prática profissional cotidiana, embasamento teórico nem vivências que propiciem a reflexão”180. GRÁFICO 18 - NA SUA FORMAÇÃO ACADÊMICA VOCÊ TEVE ACESSO A DISCUSSÕES RELATIVAS A RESPONSABILIDADE DE DENUNCIA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA INFANTO-JUNENIL? 6% 3% Sim Não Não lembra 91% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 A partir do exposto, aponta-se para a necessidade de se introduzir o tema da violência sexual nos cursos de graduação e pós-graduação das áreas da saúde e humanas a fim de capacitar os profissionais para o cuidado com as vítimas, promover a implantação de capacitação permanente nas instituições de saúde, além da criação de grupos dirigidos por um profissional especializado para que os profissionais da saúde, que cuidam dessas vítimas, possam trabalhar não apenas o sentimento de impotência, mas as experiências e sofrimentos compartilhados que vão acumulando e podem afetá-los na sua multidimensionalidade. Esta medida é necessária, pois as exigências para a qualidade do serviço vêm cada vez mais rapidamente, 179 180 Id. Ibid, p. 24, 2005. M I. Pesquisa de Campo, 2009. 89 “(...) e continuamos com profissionais de décadas atrás que, se já não respondiam por competências para atendimento de antigas demandas, tampouco respondem por novas competências sócio-políticas e teóricoinstrumentais, para atendimento de antigas e novas demandas”181. Deste modo, com relação à formação e prática profissional, muito há que se caminhar, pois a fragilidade e, sobretudo, a fragmentação teórico-conceitual dos profissionais pesquisados ficou evidente em toda a pesquisa de campo, o que supõe a exigência de engajamento de um maior número de profissionais no esforço de pensar e repensar teoricamente a sua prática profissional e sua inserção social histórica, pois, “(...) a busca de uma ruptura teórico-prática com um fazer profissional tradicional, conservador, que contribui somente na reprodução social, não se efetivará sem uma articulação sistemática e de qualidade entre academia e meio profissional. Não há projeto de formação profissional, nessa direção, que tenha sustentação sem enfrentar a questão do fazer profissional, assim como não é possível um projeto de profissão sem o enfrentamento da relação teoria-prática. Assim, não há projeto profissional que consiga sustentação e legitimidade tendo como base desejos, boas intenções e/ou opções puramente políticas182”. É nesse sentido que se torna indispensável, para o meio profissional, uma articulação com a academia/debate profissional e também órgãos da categoria, tendo em vista a apropriação do conhecimento produzido e a sinalização de temas pertinentes que possam suscitar o interesse da academia; por outro lado, para a academia/debate profissional torna-se necessária uma articulação com o meio profissional no sentido de eleger e definir temáticas relevantes para a análise da realidade e participação efetiva na construção de um projeto de profissão viável, na direção pretendida, referência para a formação e trabalho profissional. Na ausência dessa articulação, estarão postas as condições para que a fissura existente nas categorias profissionais hoje venha a se concretizar numa fratura, complexificando ainda mais suas possibilidade de reorganização/ recuperação. 181 NETTO, José Paulo. Transformações societárias e Serviço Social – notas para uma análise prospectiva da profissão no Brasil, p. 109, 1996. 182 VASCONCELOS, Ana Maria de. A prática do Serviço Social: cotidiano, formação e alternativas na área da saúde, p. 123, 2003. 90 3.2 ASPECTOS ÉTICOS E LEGAIS PARA ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL O atendimento de pessoas em situação de violência sexual exige o cumprimento dos princípios de sigilo e segredo profissional. A Constituição Federal no Art. 5° garante que, “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização material ou moral decorrente de sua violação”183. O Art. 154 do Código Penal caracteriza como crime “revelar a alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”. Ainda encontra-se no âmbito legal, que “o atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência sexual também se submete a estes mesmos fundamentos éticos e legais”184. Se a revelação dos fatos for feita para preservá-la de danos, está afastado o crime de revelação de segredo profissional, por isso, os dados obtidos durante a entrevista, no exame físico e ginecológico, resultados de exames complementares e relatórios de procedimentos devem ser cuidadosamente registrados no prontuário da criança e do adolescente de cada serviço de saúde. “O cuidado com o prontuário é de extrema importância, tanto para qualidade da atenção em saúde, como para eventuais solicitações da Justiça”185. Quando indagado aos profissionais se o código de ética da sua profissão lhe daria respaldo em denúncia de violência sexual infanto-juvenil, 91% dos profissionais responderam que não tinham conhecimento, 6% afirmaram que o código de ética não o respaldava e apenas 3% afirmaram que são amparadas pelo código de ética profissional, conforme ilustra o gráfico a seguir. 183 BRASIL. Constituição Federal, 1988. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção e Tratamento dos Agravos resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, p. 16, 2005. 185 Id. Ibid., p. 11, 2005. 184 91 GRÁFICO 19 - O CÓDIGO DE ÉTICA DA SUA PROFISSÃO LHE DÁ RESPALDO NA DENUNCIA DE VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES? 3% 6% Sim Não Não sei 91% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Tais dados demonstram o insuficiente conhecimento ético-legal que poderia fundamentar a moralidade dos profissionais entrevistados, pois a partir dos referenciais analisados constatou-se que embora alguns códigos não sejam objetivos e específicos na questão da violência sexual, está implícito em seus artigos o compromisso e o sigilo profissional com os usuários, principalmente em situações graves. O Conselho Federal de Medicina, no parecer n°. 815/1997, expõe, “o médico tem o dever de comunicar às autoridades competentes os casos de abuso sexual e maus-tratos, configurando-se como justa causa a revelação do segredo profissional”186. Da mesma forma, o Código de Ética Médica, estabelece que, “Art. 103 - É vedado ao médico revelar segredo profissional referente a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou responsáveis, desde que o menor de idade tenha capacidade de avaliar seu problema e de conduzirse por seus próprios meios para solucioná-los, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente”187. O Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais, no Artigo 13, quando discorre sobre os deveres do assistente social, nas relações com Entidades da Categoria e demais Organizações da Sociedade Civil, diz: “b) denunciar, no exercício da profissão, às entidades de organização da categoria, às autoridades e aos órgãos competentes, caso de violação da Lei e dos Direitos Humanos, quanto: a corrupção, maus-tratos, torturas, 186 187 Conselho Federal de Medicina – Parecer 815/97. Código de Ética Médica, 2009. 92 ausência de condições mínimas de sobrevivência, discriminação, preconceito, abuso de autoridade individual e institucional, qualquer forma de agressão ou falta de respeito à integridade física, social e mental do cidadão.”188 No Artigo 16, o Código estabelece que “o sigilo protegerá o usuário em tudo aquilo de que o assistente social tome conhecimento, como decorrência do exercício da atividade profissional”189. E no Art. 18, “a quebra do sigilo só é admissível quando se tratarem de situações cuja gravidade possa, envolvendo ou não fato delituoso, trazer prejuízo aos interesses do usuário, de terceiros e da coletividade”190. O Código de Ética da Psicologia, no artigo 27, institui, “a quebra do sigilo só será admissível quando se tratar de fato delituoso e a gravidade de suas conseqüências para o próprio atendido puder criar para o psicólogo imperativo de consciência de denunciar o fato”191. A Enfermagem em seu Código de Ética, quando trata dos princípios fundamentais no Artigo 3°, diz: “o profissional de enfermagem respeita a vida, a dignidade e os direitos da pessoa humana, e seu ciclo vital, sem discriminação de qualquer natureza”192. Assim, ratifica-se que os códigos de ética, a legislação e as organizações que atendem o fenômeno da violência respaldam as práticas profissionais, e ainda, eles são avanços incontestáveis quando se polemiza a discussão sobre a notificação, o tratamento e a prevenção da violência. Com relação à assistência às vítimas da violência sexual, o Ministério da Saúde, estabelece que, “(...) não há impedimento legal ou ético que o profissional da saúde preste a assistência que entender necessária, incluindo-se o exame ginecológico e a prescrição de medidas de profilaxia, tratamento e reabilitação”193. 188 BONETTI, Dilsea Adeodata et. al. Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis, p. 232, 1996. Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais, 1993. 190 Id. Ibid., 1993. 191 Código de Ética do Profissional Psicólogo, 1987. 192 Código de Ética Profissional da Enfermagem, 1979. 193 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes: norma técnica, p. 15, 2005. 189 93 Assim, constata-se que a assistência à saúde da pessoa que sofre violência sexual é prioritária e a recusa infundada e injustificada de atendimento pode ser caracterizada, ética e legalmente, como omissão. Nesse caso, segundo o Art. 13, § 2° do Código Penal, “o médico pode ser responsabilizado civil e criminalmente pela morte do usuário ou pelos danos físicos e mentais que sofrer”194. No atendimento imediato após a violência sexual também não cabe a alegação do profissional de saúde de objeção de consciência, na medida em que o usuário sofrer danos ou agravos à saúde em razão da omissão do profissional. 3.3 ORGANIZAÇÃO DA ATENÇÃO Embora no nosso meio não existam recomendações oficiais para a estruturação do atendimento de crianças vítimas de maus-tratos ou, especificamente, de violência sexual, o Ministério da Saúde elaborou uma norma dirigida ao atendimento de mulheres e adolescentes vítimas de violência sexual, que, por ser a única disponível, foi utilizada como um parâmetro neste trabalho195. Em termos de estrutura para o atendimento, esse documento recomenda que: 1) seja definido um local específico na unidade de saúde, de preferência fora do espaço físico do pronto-socorro ou da triagem, garantindo-se assim a privacidade necessária à entrevista e ao exame físico e estabelecendo-se um ambiente de confiança e respeito. É recomendado que se evite identificar o local de atendimento, de modo a não favorecer o surgimento de estigmas em relação às vítimas. Para avaliação clínica e ginecológica, “é necessário espaço físico correspondente a um consultório médico. Os procedimentos para o abortamento previsto por lei deverão ser realizados em local cirúrgico adequado”196. 2) o atendimento seja feito por equipe composta por médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais; 3) a unidade disponha de equipamentos e materiais permanentes, em perfeitas condições de uso, que satisfaçam as necessidades do atendimento e lhe confiram autonomia e resolutividade. O manual lista o instrumental necessário, que engloba 194 BRASIL, Lei n° 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Dispões sobre o Código Penal Brasileiro. Cf. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes: norma técnica, 2005. 196 Id. Ibid., p. 11, 2005. 195 94 desde mesa e cadeira para consulta, material descartável para exames ginecológicos e máquina fotográfica, até aparelho de ultra-sonografia e equipamentos próprios de um centro cirúrgico capacitado para proceder ao esvaziamento da cavidade uterina; 4) seja mantido um sistema padronizado de registro de dados, de modo a possibilitar a uniformização de informações dos vários serviços; 5) sejam realizadas dois tipos de atividades na unidade voltadas para aumentar o conhecimento dos profissionais a respeito do tema: a) sensibilização envolvendo todos os funcionários, cujo objetivo seria favorecer, “a reflexão coletiva sobre o problema da violência sexual, as dificuldades que meninas, adolescentes e mulheres enfrentam para denunciar este tipo de crime, os direitos assegurados pelas leis brasileiras e o papel do setor saúde, em sua condição de co-responsável na garantia desses direitos”197. b) treinamento envolvendo os profissionais que prestam assistência direta às vítimas, versando sobre o atendimento humanizado às mulheres que precisem submeter-se à interrupção da gravidez. Especificamente para os médicos, recomenda-se que haja treinamento para a utilização das diferentes técnicas recomendadas para a interrupção da gestação. E, a partir dos dados apresentados e dos dados coletados na pesquisa de campo, pode-se realizar uma conveniente análise da estrutura das unidades de saúde do Distrito de Saúde Norte em relação às recomendações supracitadas: 1) Quanto à estrutura física, o que se observou é que os serviços públicos de saúde não dispõem de condições adequadas para desenvolver as atividades assistenciais às vítimas de violência sexual, especialmente pela falta de privacidade. “Aqui não dispõe de salas para todos os profissionais fico vagando pela unidade procurando sala, quando chego cedo pego logo esta sala, mas 198 quando chego um pouco mais tarde, é complicado” . “(...) a gente precisa de um ambiente de privacidade, entende? Que não escute do lado de lá”199. 197 Id. Ibid., p. 11, 2005. E III. Pesquisa de Campo, 2009. 199 TE V. Pesquisa de Campo, 2009. 198 95 Com estas alegações demonstra-se a insatisfação dos profissionais quanto à infra-estrutura das unidades e, ao serem examinados os dados quantitativos, tal insatisfação persiste, 94% dos profissionais informaram que a unidade de saúde em que trabalham não dispõe de um ambiente físico adequado para atendimento às vítimas de violência sexual, apenas 6% afirmaram que sim, conforme gráfico abaixo. GRÁFICO 20 - VOCÊ ACHA QUE ESTE SERVIÇO DE SAÚDE DISPÕE DE UM AMBIENTE FÍSICO ADEQUADO PARA ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE V.S.? 6% Sim Não 94% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Comparando as distintas unidades de saúde, as que possuem uma melhor estrutura para atendimento, tanto física quanto de equipamento permanente, foram as Policlínicas e as Unidades Básica de Saúde (UBS). Nestas unidades os atendimentos, ocorrem em compartimentos de uma das salas das unidades de saúde. Essa sala geralmente conta com a seguinte infra-estrutura (para médicos e enfermeiros): um técnico de enfermagem que recebe o paciente, distribui os números para o atendimento de acordo com a ordem de chegada à unidade (conforme já salientado no Capítulo I), verifica o peso, altura e pressão de cada usuário; em cada divisão de sala existe uma mesa com três cadeiras, uma maca e os impressos mais utilizados pelos profissionais; os compartimentos utilizados pelos profissionais das unidades têm portas, no entanto, comumente vários profissionais entram nas salas no momento das consultas (quer seja para tratar de algum assunto relacionado ao atendimento/rotina de trabalho ou para tratar de assuntos pessoais) e, por elas não ficarem trancadas, muitos dos usuários também acabam “atrapalhando” a consulta; para higienização das mãos há uma pia em cada sala. As consultas dos psicólogos ocorrem no setor de Psicologia, com salas isoladas e geralmente pequenas. As consultas dos assistentes sociais ocorrem no Serviço Social, que em algumas das unidades dispõe de um espaço que permite tanto o atendimento individual quanto em grupo. 96 As unidades de saúde que apresentaram a realidade mais marcante foram as vivenciadas nas Unidades de Saúde da Família200, que não possuem estrutura física a contento para atendimento, conforme demonstram as Figuras abaixo. FIGURA 2 – VISTA GERAL DA UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA Cozinha/Farmácia Banheiro Sala de atendimento Fonte: Pesquisa de Campo/2009. “(...) aqui não tem condição pra atender ninguém, não temos estrutura física para atender essa demanda. Aqui na casinha só tem uma sala de atendimento, uma recepção, uma farmácia/cozinha e um banheiro, para 10 profissionais. É claro que nem todo mundo fica toda hora aqui, temos que ir pra área, mas mesmo assim, não tem como. Quando preciso atender algum caso assim, tenho que ficar revezando com o médico, porque não vou atender na recepção, com todo mundo escutando”201. 200 Em dezembro de 1993 o Ministério da Saúde (MS) cria um grupo de trabalho com objetivo de discutir a proposta de implantação de um modelo de saúde mais adequado as necessidades do país. Como resultado o grupo aponta para a criação de um programa que elege o núcleo familiar como foco de suas ações, ou seja, o PSF (Programa de Saúde da Família), lançado no início de 1994 pelo MS. Ao eleger a família como um sub-sistema decisório, consumidor e parceiro, verifica-se a incorporação dos princípios básicos do SUS, inserindo a unidade de saúde da família no primeiro nível de ações e serviços do sistema local de assistência, denominado atenção básica. Os princípios da promoção da saúde, através do fortalecimento da atenção básica, tendo o PSF como seu eixo estruturante, permitem a construção da saúde através de uma troca solidária, crítica, capaz de fortalecer a participação comunitária, o desenvolvimento de habilidades pessoais, a criação de ambientes saudáveis e a reorganização de serviços de saúde (SCÓZ, Tânia Mara Xavier e FENILI, Rosângela Maria. Como desenvolver projetos de atenção à saúde mental no Programa de Saúde da Família, 2003. 201 E III. Pesquisa de Campo, 2009. 97 FIGURA 3 – VISTA DA RECEPÇÃO DA UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA Fonte: Pesquisa de Campo/2009 “(...) veja o local onde nós trabalhamos, quando estamos na casinha ficamos no meio do corredor onde você não pode fazer nem uma pergunta relacionado a isso, é uma situação meio complicada pra gente, no meio do corredor com um monte de gente te olhando, você não vai fazer determinado tipo de pergunta, é até antiético, é falta de respeito, não dá pra ter nenhum sigilo! Geralmente a gente tenta conversar na casa do usuário, mais também é outro lugar inapropriado, porque tá toda a família ali”202. FIGURA 4 – ÚNICA SALA DE ATENDIMENTO DA UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA Fonte: Pesquisa de Campo/2009 202 ACS II. Pesquisa de Campo, 2009. 98 Com os referenciais analisados no decorrer de todo este estudo, verificou-se que o atendimento na rede de saúde, por vezes, pode ser a primeira oportunidade de revelação de uma situação de violência. Assim, a possibilidade de diagnosticar a situação deve ser valorizada pelo profissional, fazendo as perguntas adequadas e investigando hipóteses diagnósticas. O compromisso de confidência é fundamental para conquistar a confiança necessária não só à revelação da situação, como à continuidade do atendimento. O sigilo no atendimento deve ser garantido, principalmente pela postura ética dos profissionais envolvidos e isso inclui o cuidado com a utilização dos prontuários, as anotações e a adequação da comunicação entre a equipe, entretanto, como isso será possível neste serviço de saúde? Deste modo, é necessário garantir espaço determinado, que ofereça privacidade para a entrevista, de preferência sem a presença de pessoas que possam inibir o relato da vítima. E, além disso, a equipe deve estar alerta no sentido de evitar o vazamento de informações, a fim de não criar estigmas sobre o atendimento. 2) Nos contatos realizados, além de se observar a inexistência de interação entre os profissionais das próprias unidades de saúde, o que dificulta o atendimento às vítimas e suas famílias, se constatou também que poucas são as unidades de saúde que dispõe de equipe “desejável” conforme estabelece o Ministério da Saúde. Dos 08 serviços pesquisados, apenas 02 (dois) possuem todos os profissionais indicados (Policlínica Monte das Oliveiras e UBS Armando Mendes), as outras 06 (seis) não possuem psicólogos, o que não inviabiliza o atendimento, mas dificulta, conforme argüição dos próprios entrevistados. “(...) trabalhar em equipe é essencial. Nesse tipo de caso não dá pra ser de outra forma. O único problema é que muitos profissionais não se dispõem a discutir ou conversar sobre os casos. Trabalhar em equipe é difícil. Ou melhor, muitos atendem na pressa para ir embora. Outro problema é que só em duas unidades de saúde do DISA Norte dispõem de psicólogos, aí o trabalho fica incompleto. Aqui, por exemplo, não tem, isso dificulta muito o nosso trabalho, principalmente em se tratando de violência sexual infantojuvenil, pois as vítimas têm que ficar correndo de um lado para o outro”203. “(...) seria muito bom se nas unidades da estratégia de saúde da família tivessem assistentes sociais e psicólogos, acredito que facilitaria e muito o 203 AS II. Pesquisa de Campo, 2009. 99 nosso trabalho, porque nesses casos ainda temos que encaminhar para as unidades de referência, só que nem sempre o paciente vai.”204 “(...) aqui ao invés de ter uma equipe interdisciplinar, existe uma equipe multidisciplinar, cada profissional atende na sua sala e não há diálogo e nem conversa sobre nenhum caso”205. De fato a existência de uma equipe interdisciplinar206 é indispensável para o atendimento às vítimas. Da forma como estão se apresentando os trabalhos das equipes conclui-se que é muito mais um trabalho articulado de alguns profissionais interessados na temática do que o trabalho de uma equipe articulada, que se trabalha e se planeja para poder realizar suas ações na direção pretendida. Segundo Furniss, o apoio interdisciplinar no trabalho com o abuso sexual não é um “luxo”, “é uma exigência básica e deve ser parte integral da intervenção global, uma vez que a tarefa no abuso sexual da criança é maior do que a capacidade e responsabilidade que um único profissional ou agência pode abarcar”207. E é devido à ampla gama de fatores que envolvem a violência sexual que se deve ter um trabalho em equipe com enfoque nos direitos da criança, na preservação da família e nos direitos dos pais em deter a guarda dos filhos. Esta equipe tem o potencial de preservar recursos sociais e legais, ao indicar para proteção e investigação os casos pertinentes. Especificamente em relação ao médico, este profissional tem o papel fundamental de assegurar à vítima e seus familiares o bem-estar da criança, a cicatrização de possíveis lesões, o crescimento e desenvolvimento normal da criança, além de não responsabilizá-la pelo ocorrido e bem como, contribuir para encorajar os pais a manterem a vítima em tratamento208. 204 ACS II. Pesquisa de Campo, 2009. P I. Pesquisa de Campo, 2009. 206 Segundo Piaget (1976), a interdisciplinaridade é apontada como laços existentes entre as diversas disciplinas das ciências do homem, e entre estas e as ciências exatas e naturais, processo que Piaget chamou de interconexões – problemas vistos de diferentes ângulos com a ajuda de métodos convergentes. Daí a possibilidade de surgirem mecanismos gerais, mecanismos comuns ou a investigação interdisciplinar. A interdisciplinaridade é um princípio mediador entre as diferentes disciplinas, não sendo elemento de redução a um denominador comum, mas elemento teóricometodológico da diferença e da criatividade. É o princípio da máxima exploração das potencialidades de cada ciência, da compreensão dos seus limites e, acima de tudo, é o princípio da diversidade e da criatividade. Já, a multidisciplinaridade (MORIN, 1999) se constitui numa associação de disciplinas, reunidas em função de um projeto ou de um objeto comum, cujos técnicos especialistas são convocados para resolverem tal ou qual problema. 207 FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança: uma abordagem multidisciplinar, p. 247, 1993. 208 Cf. FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança: uma abordagem multidisciplinar, 1993. 205 100 Reportando-se ao papel da enfermagem frente à violência infanto-juvenil, Ayuga & Lópes ressaltam que essa categoria, geralmente, é a que está mais próxima da criança, com freqüência é o primeiro profissional a vê-la juntamente com sua família, e proporciona o cuidado contínuo quando há necessidade de hospitalização. Em diversas situações, é o único agente disponível para prestar o atendimento, ficando, portanto, com a responsabilidade de tomar decisões tal como a notificação.209 Os psicólogos e psiquiatras infantis, segundo Furniss, são geralmente envolvidos nos casos de abuso sexual por serem considerados competentes na comunicação com crianças, o que seria uma distorção de seu papel genuíno de avaliar o estado de saúde mental da criança e de realizar terapia. Comenta que realizar entrevistas de revelação e entrevistas legais tem pouco a ver com o tradicional trabalho desses profissionais e acredita que essa seja uma tarefa temporária, até que profissionais da lei sejam suficientemente treinados e competentes para apurar os fatos210. Já os assistentes sociais, para grande parte dos estudiosos desta temática, têm reconhecida importância na atuação frente aos maus-tratos contra crianças e adolescentes, pois, quase sempre, a categoria profissional é a única responsável por lidar com os casos nas unidades de saúde. Percebe-se que muitas das tarefas supracitadas como sendo de responsabilidade de uma ou outra categoria profissional podem ser (e são na prática) desempenhadas pelas demais categorias, ao menos parcialmente. Todavia, é importante que cada uma saiba de seus limites, até mesmo para preservar-se. 3) Com relação aos equipamentos e instrumental de atendimento, 83% dos profissionais afirmaram que a unidade de saúde onde trabalham não dispõe de equipamentos básicos e materiais permanentes que satisfaçam as necessidades de atendimento imediato às vítimas de violência sexual, conforme demonstra o gráfico que segue. 209 210 Cf. AYUGA, M.D. & LÓPEZ, V.P., Atención de enfermería y maltrato infantil, 1997. Cf. FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança: uma abordagem multidisciplinar, 1993. 101 GRÁFICO 21 - ESTA UNIDADE DISPÕE DE EQUIPAMENTOS E MATERIAIS PERMANENTES QUE SATISFAÇAM AS NECESSIDADES DE ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE V.S.? 83% Sim Não 17% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Segundo discurso de um dos profissionais, “(...) aqui não tem nem material para fazermos os procedimentos mais simples, se eu quiser uma luva, por exemplo, tenho que sair procurando lá no laboratório. Mesa ginecológica não existe aqui na sala!”211 Assim, o que se constata é que nos serviços pesquisados há insuficiência de recursos financeiros, materiais, humanos e não dispõem de infra-estrutura indispensável, como locais privados para entrevistas, computadores e material de consumo. Portanto, defende-se a necessidade de que cada unidade de saúde esteja equipada de tal modo a contar com autonomia e resolutividade. 4) Em nenhuma das unidades pesquisadas foram apresentadas fichas próprias para registro dos casos de violência sexual, ou seja, não foi identificado nenhum sistema padronizado de registro de dados de modo a possibilitar a uniformização de informações dos vários serviços. Os casos são normalmente transcritos em prontuários “normais” e convencionais de atendimento. Com relação aos procedimentos para atendimento inicial às vítimas de violência sexual, o Laboratório de Estudos da Criança, Universidade de São Paulo (USP), propõe alguns, com o intuito de compor um “Dossiê Diagnóstico Multiprofissional”: ficha de abertura e acompanhamento do caso; laudo social; laudo psicológico; laudo do Instituto Médico Legal; laudo médico-ginecológico; laudo psiquiátrico; boletim de ocorrência policial (os três últimos seriam opcionais), além de parecer-síntese redigido por profissional responsável pelo processo na instituição212. E, diferentemente do indicado, na atual ocasião, as unidades de saúde do Distrito de Saúde Norte, empiricamente, não seguem nenhum protocolo de 211 M I. Pesquisa de Campo, 2009. AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira Azevedo. Infância e Violência Doméstica. São Paulo: IV TELELACRI/IPUSP, 1997. 212 102 atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil. O que se verificou é que cada profissional adota os procedimentos que acha apropriado e necessário para resolutividade do caso. “Não sei se estou seguindo o caminho certo, pois nunca recebi nenhuma orientação relacionada a isso, faço o que acho conveniente e certo.213” 5) Tratando-se de violência sexual, “os profissionais inseridos na rede precisam estar capacitados para oferecer um atendimento diferenciado de modo a não ocorrer o risco da revitimização”214. No entanto, conforme dados apresentados anteriormente e no discurso de grande parte dos profissionais (83%), as equipes dos serviços de saúde não estão capacitadas/sensibilizadas para atender esta demanda. GRÁFICO 22 - VOCÊ CONSIDERA QUE A EQUIPE PROFISSIONAL DESTE SERVIÇO ESTÁ CAPACITADA PARA ATENDER VÍTIMAS DE V.S.? 83% Sim Não 17% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 Segundo discurso de alguns dos profissionais, “Sinceramente não sei se eles estão capacitados, pois cada um tá na sua sala, ninguém nunca sentou para conversar e discutir sobre esses casos. Eles até podem ter conhecimento, mais a gente não sabe se tem, a Assistente Social deve saber de todos esses procedimentos, mais nunca sentamos para discutir qual o conhecimento de cada um. Eu não tenho treinamento nessa área! E acho que a equipe aqui também não”215. “Eu não sei os colegas, mais eu não me sinto capacitada para atender essa demanda, acho que precisamos de capacitação”216. “Não, não estão capacitados porque primeiro não sabem guardar segredo nestes tipos de caso e segundo porque falta sensibilização de todos os profissionais, desde a recepção até a direção, para um atendimento de qualidade e de sigilo”217. 213 E IV. Pesquisa de Campo, 2009. CRAMI. Abuso Sexual Doméstico – atendimento às vítimas e responsabilização do agressor, p. 52, 2005. 215 M IV. Pesquisa de Campo, 2009. 216 E II. Pesquisa de Campo, 2009. 217 TE II. Pesquisa de Campo, 2009. 214 103 Deste modo, os usuários contam com acesso universal aos serviços de saúde, mas não com a qualidade dos serviços prestados, decorrente do modelo médico-hegemônico, o qual precisa ser revisto e reformulado objetivando a busca de qualidade dos serviços de saúde como direito universal218. E, em reflexo aos dados apresentados, é evidente que ao serem indagados sobre a qualidade geral dos serviços prestados às vítimas de violência sexual infanto-juvenil, 85% dos profissionais responderam que o atendimento prestado na sua unidade de saúde está regular, precisando melhorar. O percentual de 9% ressaltou que o serviço está bom e apenas 6% que o serviço é muito bom, conforme demonstra o gráfico e os discursos dos profissionais que seguem. GRÁFICO 23 - QUAL SUA IMPRESSÃO SOBRE O ATENDIMENTO PRESTADO ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE VS NESTE SERVIÇO DE SAÚDE? 30 30 Muito bom 20 Bom 10 0 2 3 Regular, precisa melhorar Fonte: Pesquisa de Campo/2009 “(...) é complicado, como vamos atender com qualidade os pacientes, se o que eles querem aqui é quantidade? Temos que atender muitos por dia, e se não atingirmos a meta somos cobrados, e podemos até ser devolvidos porque não estamos produzindo. Não dá tempo para ainda ficarmos conversando com o paciente e investigando os casos, diagnosticamos pelo que o paciente fala”219. “Aqui os serviços são setorizados, sem interligação entre os mesmos, vejo que precisa melhorar, e muito”220. “(...) dependendo do profissional, alguns serviços são de qualidade e outros sem qualidade, como em qualquer local”221. “(...) pelo pouco que temos, vejo que este serviço é muito bom, poderia ser melhor, claro, mas a gente faz o que pode”222. 218 Cf. VASCONCELOS, Ana Maria de. A prática do Serviço Social: cotidiano, formação e alternativas na área da saúde, 2003. 219 E III. Pesquisa de Campo, 2009. 220 E IV. Pesquisa de Campo, 2009. 221 M VII. Pesquisa de Campo, 2009. 222 TE III. Pesquisa de Campo, 2009. 104 Tais assertivas refletem também no questionamento se os profissionais levariam algum familiar para ser atendido naquele serviço de saúde, se, por ventura, fossem vítimas de violência sexual. 98% dos profissionais relataram que não levariam o familiar àquele serviço de saúde, e ainda, 90% não tomaria os mesmos procedimentos com que comumente tomam com os usuários que chegam à unidade. “(...) com certeza eu procuraria outro serviço. Aqui não tem condição para atender esses casos, os profissionais não estão preparados para essa demanda”223. “(...) se fosse um parente meu eu não traria aqui e não tomaria as mesmas providências que tomo com os usuários daqui. Aí que ta né? Porque exige o envolvimento psicológico e afetivo, não sei o que eu faria, é difícil quando entra o lado emocional e afetivo, pesa muito (...) a situação fica diferente!”224. “(...) sim, eu traria aqui, mas ia ficar sempre por perto e tentando observar todos os procedimentos”225. Deste modo, evidencia-se que quando os profissionais querem realizar um procedimento/atendimento/encaminhamento de qualidade, eles certamente analisam as possibilidades e verificam algum fluxo/solução mais facilitador para o usuário (uma vez que se fosse para seus familiares/conhecidos os mesmos seriam viabilizados), percebe-se assim, um descaso, acomodação e desinteresse de alguns dos profissionais no trato à questão da violência sexual infanto-juvenill. Entretanto, os mesmos deveriam ter a sensibilidade e o conhecimento de que no atendimento às crianças e adolescentes em situação de violência, é importante que alguns procedimentos sejam contemplados, de forma a garantir que as intervenções se dêem considerando o norte psicossocial da assistência. Segundo o Ministério da Saúde “em cada caso, além do fluxo assistencial estabelecido, deve-se traçar plano terapêutico individual de acordo com as necessidades de cada situação”226. Para tanto, é preciso que os serviços de saúde, autoridades policiais, setores de emergência, escolas, conselhos tutelares e 223 AS II. Pesquisa de Campo, 2009. M V. Pesquisa de Campo, 2009. 225 TE II. Pesquisa de Campo, 2009. 226 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes: norma técnica, p. 21, 2005. 224 105 sociedade civil organizada tenham conhecimento sobre quais serviços de saúde realizam esse tipo de atendimento. Por sua vez, a assistência nos serviços de saúde requer a observância de determinadas condições e providências para garantir as diferentes etapas do atendimento. No entanto, não há obrigatoriedade da organização de serviço específico para esse fim e a assistência pode ser incluída e integrada às demais ações habituais dos serviços. O limite de atuação de cada unidade depende da disponibilidade de recursos e situações de maior complexidade podem requerer mecanismos de referência e contra-referência227, o que conforme pesquisa de campo, atualmente em Manaus “não tem funcionado (...) o que existe mesmo é muita burocracia, a gente encaminha um caso e nunca mais fica sabendo de nada”228. Assim, conforme os dados coletados, 90% dos profissionais relataram que o sistema de referência e contrareferência229 não tem sido eficaz em Manaus. GRÁFICO 24 - PRA VOCÊ O SERVIÇO DE REFERÊNCIA E CONTRA-REFERÊNCIA NA SAÚDE TEM SIDO EFICAZ? 10% Sim Não 90% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 É válido ressaltar que, ambos os procedimentos (referência e contrareferência) requerem uma articulação mínima eficaz entre as diversas instâncias dos serviços de saúde, seja na mesma instituição, seja entre serviços de bairros ou municípios diferentes. E para finalizar a pesquisa, questionou-se aos profissionais sobre as principais dificuldades/entraves no atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil. Das respostas obtidas destacam-se as seguintes: 227 Id. Ibid., p. 21, 2005. E VIII. Pesquisa de Campo, 2009. 229 Ato de se encaminhar pacientes já atendidos para outras instâncias do sistema de saúde a fim de se garantir a integralidade da atenção. Referência: encaminhamento de pacientes do nível primário para níveis para especializados; contra-referência: é o encaminhamento dos níveis especializados aos primários (Cf. LEITE, Érida Maria Diniz. Dicionário Digital de Termos Médicos, 2007). 228 106 “(...) o desconhecimento da existência da ficha de notificação”230. “(...) o medo de me envolver e não saber como lidar com a realidade levantada”231. “(...) a deficiência dos espaços físicos das unidades de atendimento”232. “(...) a falta de preparo técnico, sem um olhar instrumentalizado para o atendimento e a identificação quanto à questão”233. “(...) acredito que muitos dos profissionais sentem-se inseguros, pois temem pela represália por parte da família e, principalmente, pelo agressor”234. “(...) falta de apoio da rede de atendimento o conselho tutelar, por exemplo, deve ser equipado e preparado para fazer o trabalho dele e dar continuidade ao trabalho. Eles nunca têm carro, gasolina e pessoal, a situação está precária”235. “(...) vejo que a falta de compromisso e sensibilidade de alguns dos colegas dificulta o atendimento a essas vítimas. O que tenho notado é que muitos dos profissionais pensam que este assunto deve ser tratado apenas pelas assistentes sociais, acham que só elas sabem e podem atender os casos de violência, entretanto, compreendo que todos devem estar empenhados para dar maior resolutividade nas situações, principalmente, porque nem todos os casos passam pelas assistentes sociais”236. Outro entrave constatado pela pesquisa é acerca da existência da Ficha de Notificação nas unidades de saúde, apenas 17% (05) dos profissionais entrevistados relataram que a mesma existe na unidade de saúde pesquisada, os outros 83% ficaram subdivididos em “não sei, nunca vi” (50%) e não (33%), conforme ilustração do gráfico a seguir. GRÁFICO 25 - ESSA UNIDADE DE SAÚDE POSSUI A FICHA DE NOTIFICAÇÃO DE MAUS-TRATOS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES DE FÁCIL ACESSO? 17% Sim Não Não sei, nunca a vi 50% 33% Fonte: Pesquisa de Campo/2009 230 M V, II; E II. Pesquisa de Campo, 2009. M I. Pesquisa de Campo, 2009. 232 ACS III. Pesquisa de Campo, 2009. 233 TE II. Pesquisa de Campo, 2009. 234 M VIII. Pesquisa de Campo, 2009. 235 AS IV. Pesquisa de Campo, 2009. 236 AS IX. Pesquisa de Campo, 2009. 231 107 Um dos itens inquietantes acerca deste questionamento foi o fato de na mesma unidade de saúde um profissional relatar a existência da ficha e ao entrevistarmos outro profissional o mesmo relata a não existência. Este aspecto ficou bastante notório nas Unidades de Saúde da Família, ao serem entrevistados os médicos (que relataram desconhecer a ficha e a inexistência da mesma na unidade) e os enfermeiros (que relataram conhecer a ficha e saber aonde a mesma se encontra na unidade de saúde). Tal fato demonstra que estes espaços de práticas profissionais, tem sido um espaço de realização de tarefas individualizadas e não de ações coletivas, voltadas à lógica do compromisso, da superação, do diálogo e do percurso da particularidade para a realidade. Partindo deste fato, existe a necessidade de um trabalho mais ampliado, ou seja, a formalização e divulgação da rede, na qual qualquer profissional inserido no contexto da unidade de saúde estaria desenvolvendo uma prática consciente, comprometida e tendo um olhar instrumentalizado. Assim sendo, a partir de todos os dados apresentados, elucida-se que a complexidade do fenômeno da violência sexual, assim como as suas conseqüências para as crianças e adolescentes necessitam de políticas públicas específicas que proporcionem aos profissionais da saúde cursos de sensibilização para a compreensão da problemática, que resulte em segurança para a realização das notificações e para o acolhimento das vítimas. Por outro lado, é necessário que essas políticas subsidiem com recursos humanos e materiais as instituições receptoras dessas notificações, para que, diante da ocorrência, possam apresentar soluções imediatas e precisas. O problema envolve aspectos de dimensão social, emocional, jurídica e profissional. Nesta linha de reflexão, o trabalho em equipe que pressupõe a complementação de saberes e a socialização dos conhecimentos pode sugerir articulação de condutas profissionais e propor alternativas de interrupção e prevenção, permitindo às crianças e adolescentes vitimizadas a garantia de seus direitos e o pleno exercício da cidadania. E para se concluir, defende-se que a violência sexual por ser considerada uma questão de saúde pública precisa ser vista e respeitada como tal, e receber, ainda, a devida atenção das autoridades e dos diferentes segmentos da sociedade. 108 Em suma, os resultados apresentados neste estudo devem ser vistos sob a ótica de aproximação da realidade. A pesquisa não tem a pretensão de ser finita, não se esgota, é dinâmica, dialética e, especialmente neste assunto que envolve violência praticada contra as crianças e adolescentes, é absolutamente necessária. Discutir a essência da violência, suas implicações, alternativas de interrupção e prevenção é estar disposto a enfrentar e superar limites impostos por regras culturais da sociedade e conseqüentemente das famílias. Conseguir vencer alguns dos muitos obstáculos é um desafio de ousar, poder aprender e poder contribuir com o debate da sua prevenção. 109 CONSIDERAÇOES FINAIS A partir dos dados apresentados evidencia-se que ao longo da história houve avanços, tanto nas políticas públicas de saúde quanto nas políticas de proteção à infância e adolescência. Além disso, ampliaram-se os espaços de fomentação e discussão sobre o fenômeno da violência sexual infanto-juvenil que, muitas vezes, fora provocado pela imprensa e a sociedade e, em várias outras situações, ocorrendo a mobilização de profissionais dentro da rede para o atendimento às vítimas e suas famílias. Entretanto, se tem muito a construir dentro de uma sociedade culturalmente acostumada a tratar crianças e adolescente como objetos da prática social, não os encarando como sujeitos de direitos. Com os referenciais apresentados no decorrer deste trabalho analisou-se que existem caminhos e propostas para uma Política Pública de Direito, não só dentro de uma realidade municipal, como também em nível estadual e nacional, entretanto, tais caminhos e propostas não são proliferadas entre os distintos órgãos de atenção e promoção a saúde de crianças e adolescentes. Na realidade, analisando de forma global no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não são poucos os artigos que tratam da questão da violência, pois, partindo-se do princípio de que a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados e dos Municípios, conforme preconiza o artigo 86 do ECA, exige-se a participação de todos os atores do Sistema de Garantia de Direitos. Pondera-se que essa exigência de co-responsabilidade, perpassa também pelas diversas áreas de uma Política Pública de Saúde, Educação e Assistência Social, sem privilégio ou detrimento de nenhuma área. Ou seja, dentro de uma política de atendimento voltada para a questão do abuso sexual doméstico, exige-se a participação de todos os setores, com ações diretas e concretas. 110 Chegando às considerações finais, analisa-se que atualmente, em nenhuma das unidades de saúde pesquisadas do Distrito de Saúde Norte, há um fluxo específico para atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil, bem como, constata-se que grande parte das vítimas atendidas nestes serviços passa por profissionais que desconhecem a rede de atendimento/proteção, normas e procedimentos que devem ser adotados nos casos de violência sexual. E, por tais razões conclui-se que os percentuais altamente significativos de subnotificação se deve principalmente, ao desconhecimento dos profissionais da saúde sobre os procedimentos técnico-legais para o trato da questão da violência sexual; ao fato de muitos dos profissionais preferirem não se envolver em problemas psicossociais; ao desconhecimento da existência da ficha de notificação; e, a inexistência das mesmas na maior parte das unidades de saúde. Além destes aspectos, foram identificadas limitações, internas e externas, nos serviços de saúde pesquisados, sendo importante destacá-las nesse momento, de forma sistematizada, uma vez que foram norteadoras das propostas que serão apresentadas posteriormente. Tais limitações foram observadas em todas as unidades de saúde e em especial nas da Estratégia de Saúde da Família que além de não possuir uma equipe com assistentes sociais e psicólogos, a infra-estrutura física da unidade é problemática, uma vez que só possui uma sala para atendimento ambulatorial, não dispondo, assim, de ambiente reservado para atendimento sigiloso aos diversos profissionais que trabalham na unidade. Em termos de estrutura para o atendimento, as limitações internas mais relevantes são: a precária formação específica dos profissionais das unidades de saúde pesquisadas; a falta de divulgação da existência da ficha de notificação de maus-tratos a crianças e adolescentes; a inexistência destas fichas de notificação nas unidades de saúde e a pouca disponibilidade e sensibilidade dos profissionais. Em relação ao processo de atendimento, os principais limites identificados foram a pouca privacidade para o atendimento; a falta de divulgação um protocolo/fluxo de atendimento que permita às equipes sistematizarem a avaliação e notificarem os casos; a pouca integração entre os profissionais das unidades de saúde, da rede de proteção e demais instituições; e a atuação deficiente dos Conselhos Tutelares. Ainda especificamente em relação a esse tipo de abuso, a 111 carência e o desconhecimento dos serviços na rede para onde possam ser encaminhadas as vítimas e suas famílias, torna o tratamento parcial. Tais dados altamente significativos indicam a necessidade de trabalhos sensibilizadores que alcancem efetivamente a parcela de profissionais que desconhecem os procedimentos que devem ser realizados com crianças e adolescentes vítimas da violência sexual e que não notificam e argumentam o motivo com a informação de não saber como fazer. Além disso, analisa-se que não há divulgação do fluxo de atendimento e de notificação (já estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelo Ministério da Saúde), da rede de proteção e das normas técnicas que devem ser adotadas nos procedimentos às vítimas de violência sexual, bem como, não há divulgação de informações adequadas sobre as iniciativas planejadas no nível central da Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA) que chegue aos profissionais da rede, alimentando-os com conhecimentos necessários para a execução de procedimentos e indicação da notificação. Por outro lado, há resistência de muitos profissionais em notificar por acreditarem que a notificação não resultará em retorno concreto para o seu trabalho. Na visão dos profissionais entrevistados, para superar os limites da assistência seria necessário: aperfeiçoar a qualificação/capacitação dos profissionais, melhorar a estrutura física das unidades de saúde e ampliar o quantitativo de profissionais, incluindo, os psicólogos na rede de atendimento, divulgar e distribuir a ficha de notificação nas unidades de saúde e divulgar o fluxo de atendimento/notificação. “vejo que seja necessário uma capacitação para discussão do assunto, desse modo poderemos aprofundar os conceitos e condutas que devem ser tomados”237. “há escassez de informações e orientações. Seria conveniente palestras para esclarecer estes assuntos para que a gente saiba o que fazer e como reconhecer as violências”238. A partir destes aspectos, constata-se que os profissionais atuam nos diferentes serviços sentindo-se desmunidos pelas condições de trabalho: desinformação generalizada, falta de infra-estrutura mínima e básica, sem 237 238 M II. Pesquisa de Campo, 2009. TE VI. Pesquisa de Campo, 2009. 112 competências e fluxo de referência e contra-referência claramente definidos/divulgados, sem padronização de procedimentos técnicos e sem apoio da rede de atendimento. Alguns deles sentem-se isolados e angustiados, e nestas circunstâncias, amedrontrados de tomar decisões que os comprometam individualmente e descrentes do impacto de suas ações. Além disso, muitos se sentem sem a devida formação especializada para intervir em situações de violência sexual, fenômeno extremamente complexo e área de atuação profissional ainda recente, mobilizadora de fortes sentimentos. Faltamlhes oportunidades de capacitação e supervisão. Deste modo, analisa-se que há um longo caminho a ser percorrido para a melhoria do atendimento às vítimas de violência infanto-juvenil nos serviços públicos de saúde de Manaus, e em especial do Distrito de Saúde Norte (DISA Norte). É nesse sentido que serão disponibilizadas algumas propostas para melhor estruturação dos serviços: Sensibilizar e capacitar profissionais de saúde para compreenderem o significado, as manifestações e as conseqüências da violência sexual para o crescimento e desenvolvimento das crianças e adolescente. Da mesma forma, treiná-los para o diagnóstico, a notificação e os encaminhamentos das demandas apresentadas. O estabelecimento de normas técnicas e rotinas para orientação dos profissionais de saúde frente ao problema da violência torna-se, também demanda imediata para apoiar os profissionais em diagnosticar, registrar e notificar os casos de violência sexual infanto-juvenil e assim iniciar um atendimento de proteção às crianças e adolescentes e de apoio às suas famílias. Assim, evita-se que o usuário tenha que ir repetidas vezes aos serviços, e se cria um fluxograma, de modo a dar agilidade e resolutividade à sistemática de atendimento. Da mesma forma, para evitar que o usuário tenha de repetir sua história para os diferentes profissionais da equipe, a equipe deve propor formas de registro unificado que reúna, ainda que de forma resumida, as observações específicas de todos os profissionais envolvidos. Bem como, é necessário que todos os serviços de orientação ou atendimento tenham, pelo menos, uma listagem com endereços e telefones das instituições componentes da rede e, essa lista deve ser do conhecimento de todos os funcionários do serviço. 113 Incorporar o procedimento de notificação à rotina das atividades de atendimento e ao quadro organizacional dos serviços preventivos e assistenciais e educacionais. Assim, os profissionais da saúde devem ter conhecimento de que a notificação viabiliza um sistema de registro com informações mais fidedignas das situações de violência contra crianças e adolescentes na realidade social brasileira, permitindo construir formas de promoção e de prevenção que levem em conta as especificidades culturais das várias regiões do país. Além de possibilitar certificar se o atendimento às vítimas de violência sexual está sendo incorporados às rotinas institucionais. Formar alianças e parcerias necessárias para que a notificação seja o início de uma atuação ampliada e de suporte à criança, ao adolescente e à família. Essas alianças e parceria precisam ser feitas tanto dentro das próprias unidades de saúde e da rede de saúde como um todo, quanto com outras instituições destinadas ao bem-estar das crianças (assistência social, segurança pública, educação), com os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e em especial, com o Conselho Tutelar. Ampliação do quadro de recursos humanos e melhoria da infra-estrutura física das unidades de saúde, principalmente das Unidades de Saúde da Família, que são espaços privilegiados próximo às comunidades e que podem apoiar as vítimas e suas famílias no reconhecimento do problema da violência, propiciando espaços adequados de escuta com objetivo de identificar situações de risco e traçar medidas preventivas e de promoção de relações respeitosas e igualitárias. Assim, garante-se um acolhimento de qualidade e com humanização da atenção. Também se mostra necessária a adoção de práticas que promovam discussões sobre como vêm se instituindo as relações interdisciplinares dos profissionais de saúde em seu cotidiano de trabalho. Discutir sobre as relações de poder que circulam nas práticas de Saúde, e trazê-las à tona, significa conceder voz igualitária aos profissionais das diferentes áreas, que, em seu cotidiano, vivenciam os desafios dos serviços de Saúde. Acredita-se que essas reflexões e mais ainda, esta postura interdisciplinar deva ser (re)construída e vivenciada no mundo acadêmico e profissional com os docentes, alunos(as), profissionais dos serviços de Saúde e sociedade. 114 Deste modo, analisa-se que para uma efetiva organização do serviço público de saúde, é necessária além de uma reforma administrativa – que tenha como princípio a universalização – e da definição e viabilização dos recursos financeiros – para investimento e custeio -, a reformulação do modelo de assistência em saúde voltado para uma prática de atenção à saúde integral. Esta questão toma importância na medida em que as possibilidades formais explicitadas na Constituição (regulamentada pela Lei Orgânica da Saúde e toda legislação que a seguiu) estão sob constantes ameaças. E, as frágeis condições institucionais e profissionais têm levado os profissionais à reprodução acrítica de práticas autoritárias, mecânicas e controladoras. Portanto, espera-se que este trabalho, ao tornar mais visível a complexidade que envolve o atendimento às vítimas de violência sexual nos serviços públicos de saúde, independentemente dos resultados apresentados serem alarmantes ou bons, seja um instrumento eficaz e avaliativo para a sensibilização e formulação de políticas estratégicas que facilitem a implantação de práticas eficientes de assistência. Com isso, deve-se lutar não apenas para a criação de programas de atendimento às vítimas, mas também, para a criação de programas amplos de prevenção primária, secundária e terciária. Infelizmente, as características próprias da violência sexual tornam parcial a compreensão do problema, pois grande parte ocorre dentro da própria família; há medo da denúncia por parte da população e da notificação dos profissionais; estes não têm formação para lidar com a questão; há escassez de recursos e serviços especializados para atendimento; e a vítima – na sua condição de dependência emocional – nem sempre consegue colaborar para que a situação seja explicitada. Entretanto, apesar de todas as dificuldades, a reversão do quadro cíclico e crítico de violência que se encontra a sociedade, se efetuará na medida em que cada cidadão, e em especial os profissionais de saúde reconheçam seus papéis sociais e cumpram seus deveres participando ativamente do processo social e econômico do país. 115 REFERÊNCIAS ADORNO, S. Violência e Educação. São Paulo, s.ed., 1998. ALMANAQUE ABRIL. São Paulo: Editora Abril, 2000. ALVES-MAZZOTI, A.J. & GEWANDSNAJDER, F. 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PARTE - Identificação 1.1 Profissão: (1) Assistente Social (4) Médico:_______________________________________ (2) Enfermeiro (5) Técnico de enfermagem (3) Psicólogo (6) Outros:_______________________________________ 1.2 Sexo: (1) Masculino (2) Feminino 1.3 Idade: (1) 20 a 30 (2) 31 a 40 (3) 41 a 50 (4) 51 a 60 (5) 61 a 70 (6) Mais de 71 1.4 Tempo de formação: ____________________ 1.5 Tempo de instituição: ____________________ II. PARTE – Aspectos Éticos e Legais 2.1 Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA 2.1.1 Você conhece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? (1) Sim (2) Não 2.1.2 Já leu o ECA alguma vez? (1) Sim (2) Não. Porque?______________________________ _______________________________________________________________________________________ 2.1.3 Você sabe para onde os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes devem ser obrigatoriamente comunicados? (1) Sim, onde?______________________________ (2) Não 2.2 Ficha de Notificação de Maus-Tratos contra Crianças e Adolescentes 2.2.1 Você conhece a Ficha de Notificação de Maus-tratos Contra Crianças e Adolescentes? (1) Sim (2) Não 2.2.2 Essa Unidade de Saúde possui a Ficha de Notificação de Maus-Tratos contra Crianças e Adolescentes de fácil acesso? (1) Sim (2) Não (3) Não sei, nunca a vi 2.2.3 2. Você tem conhecimento que se: “Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus tratos contra criança ou adolescente, ocasiona pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência”? (1) Sim (2) Não 2.3 Formação acadêmica 2.3.1 Na sua formação acadêmica você teve acesso a discussões relativas a responsabilidade de denúncia nos casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra crianças e adolescentes? (1) Sim (2) Não (3) Não lembra 2.3.2 O código de ética da sua profissão lhe dá respaldo na denúncia (notificação) de violência contra crianças e adolescentes? (1) Sim (2) Não (3) Não sabe 239 Pesquisadora: Luciana Paes Barreto Ferreira – Mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas (8114-4678) 126 III. PARTE – Normas Gerais de Atendimento: Violência sexual infanto-juvenil 3.1 Você já teve alguma suspeita/confirmação de ocorrência de violência sexual contra crianças e/ou adolescentes no exercício de sua profissão? (1) Sim (2) Não, nunca (Pule para a pergunta 3.8) 3.2 Com relação aos procedimentos clínicos - O que você fez ou freqüentemente faz em casos de suspeita ou confirmação de violência sexual infanto-juvenil? (assinale quantas alternativas julgar necessário) (1) Profilaxia DST’s (7) Coleta de secreção vaginal (2) Profilaxia HIV (8) Contracepção de emergência (3) Profilaxia Hepatite B (9) Aborto previsto em lei (4) Coleta de sangue (10) Não se aplica (5) Coleta de sêmen (11) Nenhum procedimento clínico (6) Outros:__________________________________________________________________________________ 3.3 Com relação aos procedimentos psicossociais - O que você fez ou freqüentemente faz? (assinale quantas alternativas julgar necessário) (1) Nada, pois tem medo de represália da família da vítima (9) Conversa com o chefe imediato (2) Nada, pois tem medo de represália do agressor (10) Conversa com os pais da vítima (3) Nada, pois tem medo de sofrer conseqüências no serviço (11) Conversa com outro parente da vítima (4) Nada, pois tem medo de prejudicar a criança (12) Conversa com os colegas (5) Nada, nunca sabe o que fazer (13) Apenas orienta a vítima (6) Não se envolve por não entrar em questões familiares (7) Outros procedimentos:_____________________________________________________________________ (8) Encaminha o caso para outros serviços ou setores. Qual(is)? (assinale quantas alternativas julgar necessário) (8.1) Serviço Social (8.10) IML (8.2) Psicólogo (8.11) Programa Sentinela (8.3) Conselho Tutelar (8.12) Serviço Hospitalar (8.4) Vara da Infância-Juventude (8.13) Serviço Ambulatorial (8.5) Ministério Público (8.14) SAVAS (Francisca Mendes) (8.6) Delegacia de Prot. Da Criança e do Adolescente (8.15) SAVIS (Moura Tapajós) (8.7) Centro de Referência da Assistência Social-CRAS (8.8) Outros: _______________________________________________________________________________ (8.9) Nenhuma das opções 3.4 Você notifica(ou) o caso a algum órgão responsável? (1) Sim, qual(is):______________________________________________ (2) Não (pule para a pergunta 3.7) 3.6 Após notificar você: (após responder, pule para a pergunta 4.1) (1) acompanha a situação da vítima (5) Encaminhou para serviços de referência (2) nunca mais tomou conhecimento do caso (6) Nenhuma das opções (3) Não tomou mais nenhuma providência, pois acredita ter cumprido sua função (4) Outros: __________________________________________________________________________________ 3.7 Por que você não notifica(ou) a algum órgão responsável? (após responder pule para a pergunta 4.1) (1) Por medo de prejudicar a vítima (4) Por medo de sofrer conseqüências no serviço (2) Por medo de represália por parte da família (5) Para não se envolver em problemas familiares (3) Por medo de represália do agressor (6) Não saber como fazer (7) Outros:__________________________________________________________________________________ 3.8 Com relação aos procedimentos clínicos - O que você faria nos casos de suspeita ou confirmação de violência sexual infanto-juvenil? (assinale quantas alternativas julgar necessário) (1) Profilaxia DST’s (7) Coleta de secreção vaginal (2) Profilaxia HIV (8) Contracepção de emergência (3) Profilaxia Hepatite B (9) Aborto previsto em lei (4) Coleta de sangue (10) Não se aplica (5) Coleta de sêmen (11) Nenhum procedimento clínico (6) Outros:__________________________________________________________________________________ 3.9 Com relação aos procedimentos psicossociais - O que você faria nos casos de suspeita ou confirmação de violência sexual infanto-juvenil? (assinale quantas alternativas julgar necessário) 127 (1) Nada, pois tem medo de represália da família da vítima (9) Conversaria com o chefe imediato (2) Nada, pois tem medo de represália do agressor (10) Conversaria com os pais da vítima (3) Nada, pois tem medo de sofrer conseqüências no serviço (11) Conversaria com outro parente da vítima (4) Nada, pois tem medo de prejudicar a criança (12) Conversaria com os colegas (5) Nada, não saberia o que fazer (13) Apenas orientaria a vítima (6) Não se envolve por não entrar em questões familiares (7) Outros procedimentos:________________________________________________________________________ (8) Encaminharia o caso para outros serviços ou setores. Qual(is)? (assinale quantas alternativas julgar necessário) (8.1) Serviço Social (8.10) IML (8.2) Psicólogo (8.11) Programa Sentinela (8.3) Conselho Tutelar (8.12) Serviço Hospitalar (8.4) Vara da Infância-Juventude (8.13) Serviço Ambulatorial (8.5) Ministério Público (8.14) SAVAS (Francisca Mendes) (8.6) Delegacia de Prot. Da Criança e do Adolescente (8.15) SAVIS (Moura Tapajós) (8.7) Centro de Referência da Assistência Social-CRAS (8.8) Outros: _______________________________________________________________________________ (8.9) Nenhuma das opções 3.10 Você notificaria o caso a algum órgão responsável? (1) Sim (pule para a pergunta 4.1) (2) Não (siga na pergunta 3.11) 3.11 Por que você não notificaria a algum órgão responsável? (1) Por medo de prejudicar a vítima (4) Por medo de sofrer conseqüências no serviço (2) Por medo de represália por parte da família (5) Para não se envolver em problemas familiares (3) Por medo de represália do agressor (6) Não saber como fazer (7) Outros:___________________________________________________________________________________ IV. PARTE – Organização da Atenção 4.1 Você se sente sensibilizado e/ou capacitado para atender crianças e adolescentes em situação de violência sexual? (1) Sim (2) Não 4.2 Você já participou de algum curso de capacitação e/ou atualização na área do atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil? (1) Sim. Quantos? _____________________ (2) Não 4.3 Você gostaria de participar de capacitações relacionadas a esta temática? (1) Sim (2) Não 4.4 Qual sua impressão sobre o atendimento prestado às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual neste Serviço de Saúde? (1) Muito bom (3) Bom (5) Regular, precisa melhorar (7) Ruim (2) Muito ruim (4) Ignorado (6) Outros:_______________________________ (8) Não sabe 4.5 Você acredita que o sistema de referência e contra-referência tem sido eficaz? (1) Sim (2) Não 4.6 Você conhece algum Serviço Especializado de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual na cidade de Manaus? (1) Sim. Qual(is)? _________________________________________________________________________ (2) Não 4.7. Você acha que este serviço de saúde dispõe de um ambiente físico adequado, de respeito e acolhedor para atendimento a essas vítimas? (1) Sim (2) Não, porque?_______________________________________________________________ 4.8. Você considera que a equipe multidisciplinar desta Unidade de Saúde está capacitada para diagnosticar, registrar e notificar os casos de violência sexual infanto-juvenil? (1) Sim (2) Não, porque?_______________________________________________________________ 4.9 Você considera que essa unidade de saúde dispõe de equipamentos e materiais permanentes, em condições adequadas de uso, que satisfaçam as necessidade de atendimento? (1) Sim (2) Não, porque?_______________________________________________________________ 128 ANEXO II UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS - ICHL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA PROJETO DE PESQUISA: UMA ANÁLISE DOS ATENDIMENTOS PRESTADOS ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO240 JUVENIL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DO DISTRITO DE SAÚDE NORTE/AM ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM PROFISSIONAIS DA SAÚDE/ DISA NORTE 1. Quais os principais sinais que chamam/chamariam sua atenção e podem/poderiam indicar que a criança ou o adolescente sofreu e/ou está sofrendo violência sexual? 2. Quais são/seriam as principais dificuldades/entraves no atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil neste Serviço Público de Saúde? 3. Se um familiar seu, por ventura, fosse vítima de violência sexual você gostaria que ele fosse atendido nesta unidade de saúde? Você tomaria as mesmas providências com que toma comumente? 4. Pra você quais são os principais fatores da subnotificação dos casos de violência sexual infanto-juvenil? 5. Quais seriam as suas sugestões para melhoria do atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil nesse Serviço Saúde? 240 Pesquisadora: Luciana Paes Barreto Ferreira – Mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas (8114-4678) 129 130 131 132 ANEXO IV UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS - ICHL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL E SUSTENTABILIDADE NA AMAZÔNIA TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Convidamos o(a) Sr.(a) para participar voluntariamente do Projeto de Pesquisa intitulado “UMA ANÁLISE DOS ATENDIMENTOS PRESTADOS ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DO DISTRITO DE SAÚDE NORTE/AM” das pesquisadoras Luciana Paes Barreto Ferreira e Dra. Heloísa Helena Corrêa da Silva, que tem por objetivo analisar os procedimentos adotados pelos profissionais da saúde nos serviços públicos de saúde destinados ao atendimento às vítimas de violência sexual infanto-juvenil. Sua participação é relevante, pois poderá contribuir para a elaboração de um diagnóstico da realidade vivenciada pelos profissionais dos serviços públicos de saúde que atendem vítimas de violência sexual infanto-juvenil, bem como servirá para elucidar propostas/alternativas que visam melhorar o atendimento prestado a esta demanda. Para esta pesquisa o(a) Sr.(a) participará de uma entrevista estruturada e esta será gravada para que possa ser transcrita e analisada e o conteúdo será mantido em sigilo, sendo incluído nos resultados finais sem sua identificação. É válido ressaltar ainda, que o(a) Sr.(a) possuirá liberdade de retirar seu consentimento a qualquer momento e deixar de participar da pesquisa, sem que isto lhe traga nenhum prejuízo. Para qualquer informação, o(a) Sr.(a) poderá entrar em contato com as pesquisadoras pelos telefones (92) 3647-4335/ 3647-4378 (Departamento de Serviço Social/UFAM), no endereço Av. Gal. Rodrigo Octávio Jordão Ramos, 3000 – ICHL – Dep. de Serviço Social e/ou pelo e-mail: [email protected] Após ter recebido informações claras e relevantes sobre o projeto supracitado, EU CONCORDO em participar da presente pesquisa. ___________________________ ou Assinatura do participante _____/______/_____ ___________________________ Pesquisadora _____/______/_____ Impressão do dedo polegar, caso não saiba assinar 133 ANEXO V Serviços de Saúde do Distrito de Saúde Norte Fonte: Plano Municipal de Saúde (2006 – 2009) / Prefeitura Municipal de Manaus 134 ANEXO VI This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com. The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only. This page will not be added after purchasing Win2PDF.