UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA
CLAUDYANNE RODRIGUES DE ALMEIDA
ESTADO METÁFORA: CARNAVALIZAÇÃO,
LIMINARIDADE E PERFORMATIVIDADE NO BLOCO DOS
CARETAS DE GUIRATINGA, MATO GROSSO
CUIABÁ-MT
2011
CLAUDYANNE RODRIGUES DE ALMEIDA
ESTADO METÁFORA: CARNAVALIZAÇÃO,
LIMINARIDADE E PERFORMATIVIDADE NO BLOCO DOS
CARETAS DE GUIRATINGA, MATO GROSSO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea
da Universidade Federal de Mato Grosso como
requisito para a obtenção do título de Mestre em
Estudos de Cultura Contemporânea na Área de
Concentração
Estudos Interdisciplinares de
Cultura,
Linha
de
Pesquisa
Poéticas
Contemporâneas.
Orientadora: Prof(a). Dr(a) Maria Thereza de Oliveira Azevedo.
Cuiabá-MT
2011
A447l
Almeida, Claudyanne Rodrigues de.
Estado metáfora: carnavalização, liminaridade e performatividade
no Bloco dos Caretas de Guiratinga, Mato Grosso/ Claudyanne
Rodrigues de Almeida. -- Cuiabá (MT): IL/UFMT, 2011.
99 f.: il.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea).
Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagem.
Programa de Pós–Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea.
Orientadora: Profª. Drª. Maria Thereza de Oliveira Azevedo.
Inclui bibliografia.
1. Liminaridade - Teoria. 2. Máscaras - Carnaval. 3. Bloco dos
Caretas. I. Título.
CDU: 316.7
À luz da mulher-maravilha, super-mulher: Marileide,
À arte
Um brinde!
AGRADECIMENTOS
Sinto-me grata,
Ao esforço incontável dos pais Abdias e Marileide pelo investimento em zelo, em dinheiro,
em ternura, em orgulho. Pelo exemplo de humildade e amor;
Aos amigos por colorir minh‟alma restabelecendo meu ânimo aos estudos, por me cuidar em
todos os momentos de „apreensão dissertativa‟;
À sabedoria e dedicação da orientadora Marithê, pelo exemplo profissional e inspiração;
À benevolência da Tia Nega (também à cordialidade dos funcionários de sua gráfica), pelos
incontáveis A4, tonner e cor que me proporcionaram teoria e incentivo durante toda a
experiência acadêmica.
À todos os entrevistados mascarados e desmascarados e, especialmente ao organizador do
Bloco dos Caretas, Wivaldo, pela atenção e carinho em auxiliar na pesquisa;
Ao instinto materno da D. Elaine e família muito „Forte‟, que me acolheu e cuidou em
momentos importantes do mestrado.
Aos professores do ECCo que foram essenciais para o desenvolvimento dessa pesquisa;
À atenção dos professores José Leite e John Dawsen que contribuíram significativamente com
as correções e sugestões para o trabalho.
Ao convênio CAPES/FAPEMAT que financiou grande parte da pesquisa.
RESUMO
Observando alguns paradoxos diagnosticados no cotidiano da cultura contemporânea,
voltou-se o olhar para o processo de desvinculação das convenções sociais e transgressões
vivenciados num ritual de carnaval com máscaras do Bloco dos Caretas de Guiratinga, Mato
Grosso. A partir da teoria da liminaridade de Victor Turner, carnavalização (Bakhtin) e
performatividade (Schechner) foi criado o termo estado-metáfora para sugerir que uma
coletividade em contato com estados de arte pode criar novas possibilidades de olhar para o
mundo, para si e para as relações com o outro. A observação se deu por meio de pesquisa
bibliográfica e etnografia.
Palavras-chave: Bloco dos Caretas; singularidade; arte/vida; máscaras.
ABSTRACTS
Observing some paradoxes diagnosed during the daily contemporary culture, it turned
his gaze to the process of detachment from social conventions and transgressions experienced
in the Bloco dos Caretas from Guiratinga, Mato Grosso, a ritual of carnival in
which merrymakers use masks. The state-metaphor term was created concerning Victor
Turner's liminality, Bakthin's carnivalization and Schechner's performance to suggests that a
colectivity experiencing states-of-art might develop new ways of looking the world, yourself,
and the relationship with others. The observation was made by means of literature and
ethnography research.
Keywords: Bloco dos Caretas;singularit; art/life; masks.
LISTA DE ILUSTRAÇOES
Figura 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8: máscaras do Bloco dos Caretas..................................................36-39
Figura 9: reajuste na máscara......................................................................................................41
Figura 10: máscara sendo confeccionada....................................................................................41
Figura 11: alunos na Escola Santa Teresinha..............................................................................45
Figura 12: alunos em carnavalização..........................................................................................45
Figura 13, 14, 15, 16: Concentração............................................................................49,50
Figura 27,18: Bloco saindo da concentração....................................................................52
Figura 39, 20, 21, 22: Criatividade dos monstros de Caretas.................................................54,55
Figuras 23, 24 Caretas- irreverência............................................................................................59
Anexo ..........................................................................................................................................93
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 5
CAPÍTULO I...................................................................................................................... 10
1. CONTEMPORANEIDADE: MAPAS POSSÍVEIS...................................................... 10
1.2 A falência do projeto moderno .................................................................................. 16
1.2.1 Da perda das metanarrativas ................................................................................ 16
1.3 Do deslocamento ....................................................................................................... 21
1.4 Outra sociabilidade .................................................................................................... 22
CAPÍTULO II .................................................................................................................... 24
2. UMA “PRÉ-LIMINAR” CONTEXTUALIZAÇÃO..................................................... 24
2.1 Do Carnaval à liminaridade ....................................................................................... 24
2.2 À liminaridade .......................................................................................................... 26
CAPÍTULO III................................................................................................................... 32
3. BLOCO DOS CARETAS ............................................................................................. 32
3.1 Visitando os criadores do Bloco dos Caretas ............................................................. 34
3.2 Preparando para o desnudamento do corpo social ...................................................... 40
3.2.1 Confeccionando a máscara ................................................................................... 41
3.2.2 “Pré-liminares” para a liminaridade ...................................................................... 44
3.2.3 Concentração ....................................................................................................... 46
3.3 Um, dois, três e...! À deriva pelas ruas ....................................................................... 52
3.3.1 O Tempo .............................................................................................................. 57
3.3.2 O Espaço .............................................................................................................. 59
CAPÍTULO IV
4. O LIMIAR E A MÁSCARA .......................................................................................... 65
4.1 Performatividade no Bloco dos Caretas ..................................................................... 66
4.1.1 Da experiência ..................................................................................................... 69
4.1.2 Singularidade ....................................................................................................... 71
4.2 Rito e Estado holístico .............................................................................................. 75
4.2.1 Do rito para o corpo comunitário ou estado holístico – Fim das fronteiras entre arte
e vida? .......................................................................................................................... 77
4.3 Carnavalização: Um olhar através da máscara para além da realidade cotidiana......... 80
4.3.1 Máscaras e/no Teatro........................................................................................... 82
4.4 Arte e vida................................................................................................................. 86
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 88
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 93
5
INTRODUÇÃO
A ideia de se pesquisar as nuances da suspensão do cotidiano, partiu primeiramente de
observações genéricas da estrutura social cotidiana, com um olhar particularmente
antropológico. O olhar, que provavelmente já se encontrava pairando por tais preocupações,
apontou para itens relacionados a uma sociedade encharcada de lamúrias a respeito da falta de
tempo, das hierarquias e burocratização da vida, da mecanização da vida humana, etc.
Embora o “se preocupar unicamente com a realidade presente” esteja associado às
culturas “primitivas” em nossas mitologias etnocêntricas (inteiramente questionáveis), que
salientam a primazia da vida instintiva e a sublimação da condição civilizada, todos nós, em
algum momento, fomos tão consumidos pela realidade, pelo cotidiano, a ponto de perdermos
a consciência de nós mesmos e de nossos limites. De tal modo que algo tendia por estar na
contramão da vontade social. E se esse modelo de estrutura social não parece nem de longe
ideal, surge então um imperativo em se pesquisar, um momento/instante que se desviasse, ou
melhor, se localizasse além do azedume de tal realidade. Ainda assim, não estou propondo um
novo modelo social. Busco um momento específico, rápido ou longo, não importa, que
proporciona uma trégua da atração da realidade exacerbada de estímulos; suspende-se da
estrutura habitual, questionando-a, flexibilizando espaços para a possibilidade de aproximação
de estímulos particulares, construção de subjetividades.
Esse processo de suspensão do cotidiano está baseado nos estudos de um antropólogo
britânico, Victor Turner que enxergou o que ele chama de liminaridade nos ritos de
passagem. Sinteticamente liminaridade seria o momento de suspensão da estrutura cotidiana.
Pretendeu-se questionar pressupostos humanos quanto à natureza das relações com o outro e
consigo, mediante uma releitura da teoria da liminaridade de Victor Turner. No segundo
capítulo encontra-se uma revisão bibliográfica sobre o tema da suspensão do cotidiano, a
liminaridade de Turner e suas vertentes.
Dessa maneira investigou-se o processo que faz dormir a vida cotidiana,
lugar/instante de eterealização e transitação por “outras realidades”, por esse motivo chamado
de estado-metáfora. Esses instantes ultrapassam as fronteiras do empírico, do burocrático, da
exatidão; é permitido experimentar estórias e censuras.
O termo estado-metáfora foi criado para definir esse processo que me debruço, não
com intuito de elaborar uma nova teoria, mas apenas para servir como ferramenta de auxílio
ao leitor e a minha escrita. Estado-metáfora seria, então, o processo que se experiencia a
suspensão de todos os acordos apriorísticos do cultural; momento que se paira por um
6
espaço/tempo onírico, quase indizível. Foi escolhido o termo Estado por se tratar de um
tempo/espaço singular em que se está experienciando mesmo, e Metáfora pelas conexões que
as mesmas podem desvelar. “Benjaminianamente” fica claro a potencialidade das metáforas
não apenas como um fenômeno linguístico, mas um método para absorção e aprendizagem,
também para a construção do “novo”. Esta última característica se revela de grande valia para
o estudo de cultura contemporânea, já que, nesse sentido, é objeto de investigação de uma
poética. O gesto das crianças, nas perspectivas das metáforas, tem a capacidade de simbolizar
suas experiências do novo, assim como o pintor tem capacidade de “olhar com as mãos”. A
obra de arte é para Benjamin (1994) caracterizada como uma metáfora, pois objetiva discutir
um estado de percepção outro, que é acessado em contato com experimentações artísticas. 1
Assim Benjamin (Ibid.) afirma que as metáforas têm a forma de agir, de olhar, da posição do
novo. E aqui está o grande valor da metáfora para estudar o contemporâneo. Cada pessoa tem
uma rede de associações e as ativa de acordo com a correlação da nova imagem que
estabelece uma metáfora. Não o sinônimo, mas uma nova maneira de olhar, diz Benjamin,
sendo providencial para o desenvolvimento do termo citado (estado-metáfora). Sendo assim,
para não repetir todas essas explicitações, características e definições, sempre que falar desse
momento e acabar atrapalhando a fluência da leitura, o termo estado-metáfora será usado
todas as vezes que me referir às mesmas.
Recorrendo a Suely Rolnik (1995, p. 50, 51), encontramos o argumento de que no
contemporâneo precisamos, mais do que nunca, renovar nossas formas de subjetivação. Como
um relâmpago, passagem de um plano para outro, é o instante da desagregação de formas
fixas de subjetivação, o que permite que as diferenças se manifestem. “Somos lançadas numa
espécie de vácuo.” Esse vácuo, relâmpago, liminaridade, espaço vazio, betwixt and between ,
suspensão da estrutura, horizontes imaginativos, campo de virtualidades, zona de
indeterminação, estado pirata, plano de imanência, corpo-de-sonho, estado de arte, estadometáfora e todos as definições que esse momento pode ter, é o momento que me toca como
uma necessidade atual de pesquisa. Existindo ainda teorias como as encontradas na pesquisa
bibliográfica, que deflagram o potencial desse fenômeno, suscita-se outra vez legitimidade à
pesquisa.
1
“A arte é uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo com o auxílio de signos, formas,
gestos ou objetos.” (BOURRIAUD, 2009, p. 147)
7
Partindo da investigação desse “estado”, pretendeu-se pesquisar primeiramente quais
sãos os meios para acessá-lo, questões ligadas às sensações e experiências de vivenciá-lo,
além de pincelar possibilidades desse instante de suspensão e desdém pelas convenções sócioculturais desvelar algo para o devir. Interesso-me pelo papel do que está situado além do
horizonte causal, pelas possibilidades que oferece, pelos desejos lícitos e ilícitos que
desencadeia, pelos jogos de poder que sugere, pelo terror que pode causar – a incerteza, a
sensação de contingência, de acaso –, pela exaltação e principalmente pelo frêmito que o
desconhecido pode provocar.
O fenômeno empírico escolhido para observar mais de perto e analisar o estadometáfora é uma expressão cultural carnavalesca, o Bloco dos Caretas. Moradores da cidade de
Guiratinga-MT fabricam e ornamentam máscaras de argila e papel machê no carnaval, vestem
um roupão de chita e saem dançando pelas ruas ao som da percussão, jogando talco nos mais
desavisados, desmontando seus corpos limpos, socialmente “perfeitos”, “puros”. As máscaras
são os artefatos de destaque pela beleza e surpresa, construída pelos próprios foliões. O Bloco
dos Caretas foi destacado, primeiramente, por expressar tipos diferentes de artes, interagindo
assim, com os atributos da arte contemporânea e suas contaminações, hibridações de tipos
diversos de artes. Também pelo seu processo que pode ser definido como um ritual, e o
interesse pelo estudo do rito é categórico, acreditando nos tesouros epistemológicos que a
análise do mesmo pode abarcar. Terceiro, pelo desafio de verificar num momento de
profanação total, que é o carnaval, os elementos destacados por Turner como liminar (esses
encontrados nos ritos em geral religiosos ou de iniciação, enfim, ritos de caráter
profundamente sagrados).
As metodologias foram escolhidas de acordo com as necessidades das revelações
sobre o objeto. A pesquisa bibliográfica talvez possa dizer que foi o procedimento mais
importante tendo em vista que o objeto de estudo é bastante teórico, e reflexivo. As teorias
presentes
na
revisão
bibliográfica
foram
analisadas
na
concepção
de
resenha,
contextualizando e embatendo os autores; observação participante e crítica; optou-se também
por uma breve etnografia do campo escolhido, na qual foram realizadas entrevistas
qualitativas livres com transeuntes, expectadores que esperavam nos portões de suas casas a
passagem do Bloco e também com os próprios bloquistas mascarados, na concentração do
Bloco, durante e após a passagem do Bloco, além de entrevistas informais em diversos locais
onde o assunto do Bloco surgia. Permaneci na cidade durante dois meses antes do carnaval do
8
ano de 2010 com o intuito de buscar dados que considerasse importantes para a pesquisa no
dia-a-dia da cidade.
A ideia de suspensão é instigante ao pensar que o que vemos do alto parece mais
bonito, completo, imparcial; seria a visão panorâmica; já arriscaram até dizer que o olhar do
alto é o conhecimento. Além das divagações sobre a necessidade de “olhar de fora” para
entender melhor o que se pretende. Em meio a tais ponderações posso eu estar alçando
problemas com alguns antropólogos. – Primeiramente, faço uma pesquisa cujo tema se
encaminhou para a busca de um processo desprendido das condições culturais; tendo em vista
que antropólogos são por excelência os estudiosos da cultura, poder-se-ia estar me
“enforcando”. Segundo, pesquiso e observo (agora como “de fora”) um objeto empírico que
cresci “de dentro”, ou seja, preciso deixar claro a minha naturalidade guiratinguensse que me
vestiu de Careta durante toda infância e pré-adolescência. Fato problemático para a
metodologia da etnografia que tem por princípio “olhar o outro”, desfamiliarizar-se. Não
obstante, me propus e me pus no lugar de pesquisadora analisando um fenômeno social que
observa o outro com um olhar particular, assim como qualquer etnólogo que aparecesse por
aquelas bandas. Não creio que seja problema olhar o outro com as marcas que estão no corpo
batizado com a carnavalização dos Caretas. Claro que a princípio isso causou uma ginástica
psicológica, mas com o passar da etnografia, tomando os devidos cuidados que os livros de
metodologia prescrevem, de se ausentar o quanto possível dos próprios julgamentos e
conceitos já estabelecidos sobre o objeto, desfamiliarizar-se, etc., creio que superei.
(Deixando claro que o discurso sempre está marcado pela referência cultural e teórica
vivenciada, essas são essencialmente inevitáveis).
Para deixar mais explícito ainda meu ponto de vista metodológico, reverencio e
compartilho do prisma de Crapanzano (2005) que assinalou:
Vejo a contribuição da etnografia no sentido da montagem. A justaposição, às vezes
arbitrária, às vezes inusual, de dois ou mais itens, elementos, imagens ou
representações que chama atenção para aspectos desses itens que estavam escondidos
ou eram ignorados. Montagens inusuais podem produzir surpresa ou choque,
iluminações repentinas, epifanias ou insights e, por isso, podem ser retóricas, estéticas
ou terapeuticamente efetivas. Devo observar, entre parênteses, que a montagem é
intrínseca à etnografia, pois o antropólogo conjuga elementos de duas culturas – a
cultura em estudo e a cultura de referência. Assim, há uma dimensão iconoclasta
importante para a etnografia que é (em meu ponto de vista, infelizmente) reduzida pela
etnologia – pela descrição tornada convencional, pela interpretação autorizada, pela
explicação científica. Não estou negando agora o valor da interpretação ou da
explicação (embora questione a descrição convencional). Desejo simplesmente
9
indicar-lhes um efeito secundário inevitável, que exige reconhecimento crítico (2005,
p.371).
Acrescentaria ainda uma eterna desconfiança na ciência que tenta afirmar “verdades”.
Ainda mais quando se trata de pesquisar o ser humano.
O Capítulo I da dissertação discute a busca do homem contemporâneo em geral,
problematizando “quem ele é”. Para isso, faço observações sobre as necessidades atualizadas
desse homem e de seu meio social, argumentando como essas necessidades se encontram em
desarranjo com os modelos modernos. Aqui já toco nos pontos principais que seria a busca de
singularidades ou de auto-referências e de ações coletivas formadas por redes sociais ou
estado comunitário ou ainda estado holístico.
No Capítulo II optou-se por contextualizar o primeiro elemento do campo empírico –
o carnaval, fazendo um apanhado bibliográfico sobre este, também sobre o conceito de
liminaridade, e suas possíveis vertentes – definidas por outros nomes, por outros autores – e
como estas se articulam com o estado-metáfora.
No Capítulo III encontra-se a pesquisa de campo descritiva e analítica. A etnografia
sobre o Bloco dos Caretas veio para exemplificar a análise com observação participante o
instante limiar que acontece com arte e coletividade. Aqui eu me incluo no campo e nas
observações respondendo do ponto de vista empírico as problematizações sugeridas.
O Capítulo IV busca apropriar da literatura sobre o objeto da pesquisa. É o capítulo
teórico que, dialogando com autores e conceitos, analisa como a pesquisa propõe então o
encontro com essas singularidades e com o coletivo (as relações interligadas). Ou seja,
aborda a experiência do instante limiar do estado-metáfora, pois ele parece ser porta de
entrada para esse desvio, e qual o papel da máscara e da performance nesse fenômeno.
Respondendo, assim, do ponto de vista teórico, as problematizações do primeiro capítulo.
A partir de agora nos presenteamos com um ingresso para um novo olhar. Adentramos
para o mundo das possibilidades onde a ordem é não ter ordem. Olhamos o espetáculo da vida
quimérica, das capacidades de ser e de olhar por fora da estrutura e amarras construídas sem o
nosso aval. Não vamos comprar o jornal do dia nem almoçar ao meio-dia. Estamos de folga
do tempo linear, tempo do trabalho (vital). Então, partamos em busca de novos sentidos à
vida.
10
CAPÍTULO I
1. CONTEMPORANEIDADE: MAPAS POSSÍVEIS
Subjetividade é o conjunto das condições que torna possível que
instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de
emergir como território existencial auto-referencial, em
adjacências ou em relação de delimitação com uma alteridade
ela mesma subjetiva.
(GUATTARI, 1992, p. 19)
Os ideais da “modernidade”2 influenciaram os modos de pensar coletivo. Independente
de sua real efetivação, como argumentam alguns autores como Bruno Latour (1994) sobre a
falência do projeto moderno, pois mesmo não alterando a feição da vida explicitamente, seus
modelos foram assimilados pelo imaginário social como “dever-ser” e repercutem até a
atualidade. Mas quais modelos/projetos/ideais são esses?
Para citar alguns – o uso da razão para todos os questionamentos humanos; o princípio
de igualdade para todas as prerrogativas entre os homens; a separação de todas as instâncias
da vida em caixinhas analisáveis; o controle e a dominação da natureza pela ciência... 3
A valorização das atividades humanas é submetida a modos dominantes e tentando se
encaixar nos modelos mencionados o homem se encontra cada vez mais limitado aos
paradigmas internalizados da cultura. Segundo Ortega y Gasset (1987, p. 38) ele “briga” para
entrar no mundo moderno, pois tem que ser idêntico aos demais e se sente bem com isso. Os
desejos dos indivíduos são delineados pelos fatos sociais, o que costuma tracejar infindáveis
2
O conceito de modernidade é alvo de muita polêmica nas ciências sociais, visto que há várias vertentes que
tentam definí-lo. Uma dessas vertentes sugerida por Ieda Tucherman é que “modernidade” é a mudança em um
determinado período histórico – após Revolução Francesa – que apostou “no desejo de futuro, ou na antecipação
de seus possíveis” (1999, p. 16); um tempo onde não se trata apenas do que podemos ser ou fazer, mas se
podemos controlar aquilo que faremos e o resultado do que fizermos; do fim dos processos de subjetivação.
A esta fase podemos reunir outras concepções, como a que diz tratar-se da imposição de que tudo deve/pode ser
separado, definido e classificado a exemplo de Maffesoli, entre outros.
No decorrer do texto não usarei mais as aspas em “modernidade” ou em tais termos, subentendendo que a idéia
se encontra nessa linha de raciocínio.
Também não me atenho à discussão sobre qual período estamos vivendo, se saímos da modernidade, se estamos
convivendo com dois períodos ou se a mesma nunca existiu. Nada relevante para tal pesquisa é enquadrar em
definições construídas, momentos históricos. Afinal, não é o momento de “ser moderno”.
3
Posteriormente discutiremos o porquê da falência desses projetos/ideais.
11
labirintos a afastá-lo cada vez mais de seu eixo, obstando de desenvolver suas próprias
distâncias de singularização com relação à subjetividade normalizada, e inibindo os espaços
para criação já que o espaço vazio praticamente não existe. Este é preenchido pela
necessidade de buscar e levar os filhos na aula de natação, kumon, piano, inglês, capoeira, de
buscar cursos para se especializar cada vez mais; de estar sempre informado; de procurar a
“comida pronta” mais rápida do mercado; além de delimitar a melhor classificação para o
sobrinho: heterossexual, homossexual, bissexual ou assexuado... Ou seja, o indivíduo
contemporâneo fabrica mais necessidades para mais consumir; a vida doméstica vem sendo
manipulada pela produção de subjetividade coletiva da mídia e do capital; uma ética da
responsabilidade, na qual se deve produzir e desempenhar funções para ser considerado
cidadão; meritocracia; além da estranha “emancipação” que multiplicou os compromissos;
etc.
Naquela conjuntura, o projeto moderno impôs tantos estímulos e construiu a ilusão de
tantas necessidades que esse homem se encontra basicamente imerso nas convenções
estabelecidas e pouco resta para pensar singularidades, pouco resta para novas possibilidades
de pensar, agir, criar. Ainda quando o sujeito faz referência a si mesmo como lugar de
realização, suas ocorrências existenciais podem ser distorcidas ou ilegíveis ao olhar de si
mesmo, como sustenta o autor das poéticas da singularidade, Hélio Strassburger:
A noção de coerência institucional oferecida desde cedo, além de dificultar
possibilidades de invenção e criatividade, também serve para enraizar
sensações de deslocamento e impossibilidade de conhecer outras verdades.
Assim a diferença é ameaça e passa a ser vista como marginal, um desajuste
com o mundo considerado normal (STRASSBURGER, 2010, s/p.).
Guattari e Rolnik (1986) demonstram preocupação a respeito do imperativo por
brechas dos tais estímulos culturais, arquitetando o conceito de revolução molecular.
Militantes pela afirmação positiva da criatividade, esses autores da psiquê acreditam que é
preciso abrir espaços para que ela aconteça. Nesse contexto, o desejo só pode ser vivido em
vetores de singularidade.
Há menos tempo ainda para interação com o outro, nos espaços públicos, por simples
e puro lazer, por exemplo 4. A oferta incessante de produtos e serviços supõe a escolha ao
infinito e a velocidade, o ímpeto do tempo, guia o consumo de menos tempo cósmico e mais
tempo linear. O que se faz uma dificuldade para o indivíduo, pois de acordo com Tarde
4
De acordo com Canclini (1995), existe uma tendência internacional para o decréscimo do consumo que se faz
nas instalações culturais públicas, em função direta da grande expansão dos meios eletrônicos.
12
(1992) esforçamos muito para seguir o tempo linear, pois, na maior parte, estamos
perambulando pelas nossas fantasias (tempo cósmico) e acaba sendo cansativo tentar ser
moderno.
Tudo isso é o que aparentemente o projeto moderno impôs e o que percebemos, se
olharmos na superfície, ou mesmo se fizermos uma crítica aprofundada, porém arraigada nos
mesmos modelos e estímulos da ressabiada herança moderna. Todavia, os ecos que a
observação focada nas minúcias e liames ruídos que se anuncia como presentificação de um
futuro, poderão nos apontar para novos anseios.
Ratificando o escrito de Suely Rolnik (1999) quando afirma que – no contemporâneo a
busca é para conseguir reconfigurar-se diante do caos, já que este tempo intensifica a
desestabilização do homem – problematizaremos as necessidades contemporâneas tendo em
vista os incentivos da atual conjuntura política, sócio-cultural, psicológica, inter-humana da
sociedade atual.
Para Rolnik, no contexto atual o mapa de relações com o mundo e com o outro se
renova, são múltiplos mapas possíveis, ou seja, são incorporadas novas sensações sem que
tenha mudado necessariamente a figura através da qual a subjetividade se reconhecia, sem ter
construído novas subjetividades.
Tendo essas afirmações em vista e pretensiosamente espelhadas nas relações humanas
contemporâneas, compete-se salientar dois aspectos como imperativos do tempo presente:
- A necessidade de aparatos/artifícios/espaços vazios para a construção de
subjetividades auto-referenciais (sim, a proposta aqui é interferir nas imposições
contemporâneas da política de homogeneização/massificação de produção da realidade);
- e a necessidade de “mais comunidade” em oposição a menos sociedade nos moldes
do sociólogo Ferdinand Tönnies, para o qual comunidade são indivíduos diferentes que
compartilham idéias, valores, e sociedade são indivíduos diferentes que compartilham de
idéias da massa, porém estão isolados nas suas ambições 5. Contudo, não pretendo tratar esse
momento apocalipticamente, e sim pensar um estado holístico6 como momentos que podem
ser mais vivenciados/incorporados no dia-a-dia.
5
Citado por Buela (1987) que define assim: “a idéia de comunidade enuncia no seu sentido original a
participação dos homens que a compõem num núcleo aglutinado de valores (“bens”) que lhes são comuns. Ao
passo que a sociedade enuncia antes a aceitação por parte dos seus membros de um conjunto de normas
(“deveres”) que regulam a relação entre eles”. Onde a satisfação egoísta das necessidades do homem-indivíduo
deixa de parte toda a referência ao próximo.
6
Experienciar uma sensação de coletivo interagindo organicamente. A densidade das relações sociais
recompondo o conjunto dos efeitos do ser-em-grupo. Ou seja, um estado holístico é algo cujos acessos não
podem ser separados. São tão embaraçados que tornam qualquer delimitação de um corpo – ou alma – singular,
quase arbitrária.
13
1.1 Coletividade para se singularizar, ou o todo para a parte e vice-versa
A primeira vista pode parecer um paradoxo o argumento de que os sujeitos necessitam
de contato com estímulos particulares, ao mesmo tempo ser necessário vivenciar o coletivo.
Pelo contrário, há uma complementaridade aí. Além disso, a sugestão aqui é a de
experienciar sensações num todo interligado, numa tessitura ininterrupta, uma visão nãofragmentada da realidade onde sensação, sentimento, razão e intuição se equilibram e se
reforçam. 7 Um depende do outro e um movimento aqui reage imediatamente acolá. O que, a
mim, não parece algo tão surpreendentemente novo, ou um surgimento inesperado da dita
“pós-modernidade”, remete, ao contrário, diretamente aos modos de vida pré-industrial das
sociedades “naturais” onde todas as tessituras da vida se encontravam interligadas.
A revolução molecular de Guattari e Rolnik (1986) também consiste em produzir as
condições não só de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si próprio,
tanto no campo material, quanto no campo subjetivo.
Ao mesmo tempo em que Ortega y Gasset (1987, p. 41) afirma que se tem que
incorporar a mentalidade da época, pois nessa sociedade “quem não for como todo mundo
correrá o risco de ser eliminado (...) ser diferente é indecente”, os movimentos que se
anunciam, mesmo em sua incipiência, são aspirações por não ser mais um na multidão.
Ou melhor, não seria o homem contemporâneo profuso de tantos estímulos, regras,
definições, tanto que de alguma forma ele quer se diferenciar dos demais? Ou melhor, o
sujeito social de hoje é um caçador de nuances de autocoerência, busca de singularidades, ou
ele quer continuar a vagar para longe de si?
A busca pessoal pode seguir desfigurada ao tentar se adequar aos arranjos da
conformação dominante. Um discurso bem acabado por onde se instituem as leis e o gesso
aos propósitos de mudança pode afastar os indivíduos cada vez mais do seu eixo.
Fonseca (1998, p.67) diz que “precisamos saber a enorme distância que há entre as
diferenças e as hierarquias. As primeiras instituem a heterogeneidade. As hierarquias
homogeneízam.” O homogêneo incrivelmente vai se tornando démodé, assim como a
hierarquização do mundo. Aspiração por se destacar, submergir da massa resignada, enfim, se
7
Depois de maio 68 a visão micro-social é de uma realidade complexa, rizomática, verifica-se a não separação
das instâncias sociais, ou seja, tudo está interligado (DELEUZE & GUATTARI, 2004).
14
singularizar. Ela sustenta que é necessário entrar num processo de desmistificação do
ordinário para que o extraordinário aconteça e surjam contornos inesperados. Ou seja, o
artifício para busca pelas suas singularidades só pode se dar pela prerrogativa do processo. A
singularidade é por excelência processualidade.
O processo é que abre as ocorrências, cria vazios, espaços para a imaginação aflorar e
transcender. Cada um deve estar forte e presente na obra.
“Processo é movimento e auto-engendramento, remetendo à idéia de permanente
ruptura de equilíbrios estabelecidos” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 322). Para estes
autores a lógica do sujeito enquanto processo, seria a autopoiése, e não uma lógica da
identidade. A primeira engendra diferenças, a segunda homogeneíza. 8
A singularidade precisa renunciar à identidade. Clarice Lispector (1973 e 1993) cria
um termo para a necessidade de se renunciar à identidade, para não saber, pois permanecer
nela seria ficar prisioneiro de um único sentido – IT (que ela retira do pronome neutro do
inglês), seria não-pessoal ou pré-pessoal.
O corpo no estado-metáfora, tanto como o do artista, como o do processo, não serve à
criação de identidades. Pelo contrário, implica uma ruptura com a lógica identitária. O corpo
desmascarado de si não se faz de informações, mas de processo, quase uma iniciação que, por
sua vez, nunca se conclui. E concluir não é mesmo o intento.
Tendo como prerrogativa que de processo vive a arte, optou-se nesse trabalho olhar
para a arte como exemplo prático das expectativas contemporâneas mais singularizantes.
De acordo com Bourriaud (2009) a arte contemporânea, cria espaços livres, gera
durações com um ritmo contrário ao das durações que ordenam a vida cotidiana. Ela favorece
um intercâmbio humano diferente das “zonas de comunicação” que nos são impostas.
Bourriaud usa o termo interstício, usado também por Marx, para designar comunidades de
troca que escapavam ao quadro da economia capitalista. “O interstício é um espaço de
relações humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no
sistema global, sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema”
(BOURRIAUD, 2009, p. 22, 23).
Para Calabrese (1988), incorporando o que está no limite do padrão cultural criam-se
zonas de indefinição. Nesse sentido a arte também supera o óbvio do cotidiano. Pois ela,
principalmente a arte contemporânea, tem a predisposição de ser inédita, incompleta, não
8
“Autopoiése seria uma lógica celular, ideogramática e, se quisermos, uma lógica das diferenças. É a lógica da
forma significante” (FONSECA, 1998, p. 25). No sub-item 4.1.2 encontra-se uma discussão mais detalhada
sobre o termo.
15
definida. Ou por acaso esses trabalhos geniais de artistas como Lygia Clark, Duchamp,
Artaud, Canigam, entre tantos outros, criavam algo previsto, completo, definido?
Na opinião de Schiller (1992) o homem deve ser lido como uma obra de arte porque é
nela que está manifesta a totalidade de todo o saber livre, fazendo vibrar no contingente
logicamente produzido, a universalidade da transcendência.9
Bourriaud com a noção de que a arte contemporânea se desenvolve em função de
noções interativas, conviviais e relacionais e diz que hoje, a comunicação encerra os contatos
humanos dentro de espaços de controle que decompõem o vinculo social em produtos
padronizados de consumo, assim “a atividade artística, por sua vez, tenta efetuar ligações
modestas, abrir algumas passagens obstruídas, pôr em contato nível de realidade apartados”.
(2009, p. 11)
Não é de hoje que o assunto é fonte de reflexão:
Os poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em
alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o
céu e a terra com as quais nosso saber escolar não nos deixou sonhar. Estão
bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da psique, já que se
nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência (FREUD,
1970, p. 1285).
A hipótese/sugestão parte das novas possibilidades de olhar para o mundo, para si e
para as relações com o outro a partir da suspensão/trégua dos estímulos da estrutura cotidiana.
Da
necessidade
dos
indivíduos
construírem
singularidades,
subjetividades
menos
convencionais, com mais tempo cósmico, e também vivenciar mais comunidade. 10 Vislumbrar
outras possibilidades de olhar e repensar a realidade construída socialmente e vivida
cotidianamente como única.
Tucherman (1999, p.13) questiona a realidade que vivemos cotidianamente como
única já que a “realidade, tal como a nossa tradição cultural a concebeu, supõe uma efetuação
material e uma presença tangível”. Nesse sentido, Maffesoli (1995, p. 67) acentua que o estilo
de vida contemporâneo enfatiza os aspectos intangíveis e imateriais da existência. 11
9
Gillo Dorfles (1992) afirma que “hoje mais do que ontem, quando em sua base havia, sobretudo uma função
mágica, ritual, mítica ou religiosa – a arte possa vir a ser fonte de catarse e de iluminação constante e
insubstituível para o homem”.
10
Ver: MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 3ª
edição. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1987.
11
Novas solicitações e implantações nas diferentes instituições, vão no sentido de valorizar e até fomentar
aspectos imateriais da cultura. Digamos que a imaterialidade é a “menina dos olhos”, inclusive, de ações
políticas contemporâneas. Como por exemplo, a implantação do “Registro do patrimônio imaterial e intangível”
no IPHAN, órgão até então preocupado com “tombamentos” de coisas materiais.
16
Então, por que o mal-estar que experimentamos perante o que é imaterial, ou melhor, a
inquietação que sentimos por aquilo que é impreciso, indefinido, inexplicado?
Para responder a tal questionamento é o momento de voltarmos à primeira questão
sobre a falência do projeto moderno.
1.2 A falência do projeto moderno
A valorização de comportamentos culturais distante dos estimulados genericamente
pelo projeto moderno, principalmente na sociedade ocidental, foi e é alvo de incontáveis
teorias sobre essa nova “textura” histórica do homem. Um marco sobre o tema é a polêmica
obra: A condição pós-moderna de Jean-François Lyotard (1998), visto que teria formulado
um fundamento arrematador que definiria, nos diversos aspectos culturais, a “condição” social
desse novo momento. O termo usado, “pós-moderno‟, é desgastado e vago, ainda assim, o seu
argumento principal – a perda das metanarrativas – acabou sendo eficaz em várias das
abordagens seguintes sobre essa linha de raciocínio sobre a cultura contemporânea,
independentemente do tema e enfoque dado. 12 A teoria designa o estado da cultura, depois das
transformações bruscas nas regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes, a partir do
séc. XIX, início do XX.
Nesse arcabouço de metanarrativas estão: a ciência/razão que se isentou de cumprir
com promessas de libertação e valorização das diferenças, de responder todos os
questionamentos humanos, controlar e dominar a natureza; no mesmo pacote das precisões,
definições e completudes modernas; estilhaçamento de suas cristalizações e endurecimentos
discursivos relacionados à unidade e centro; a morte de Deus, além de outras. Discursos esses,
que instituíram na sociedade os modos de tentar se encaixar na “iluminada” sociedade
irrompida com os misticismos e “selvagismos” pré-modernos.
1.2.1 Da perda das metanarrativas
Voltando às metanarrativas, pensemos um grande discurso que foi marcante na
ultrapassagem do período metafísico: a “morte de Deus”. Fato crucial para a modernidade
(desde o iluminismo), segue perdendo força e acaba por ultrapassar a si mesmo, marcando
outra quebra de paradigma. Ideologia mítica outrora tida como arcaica, selvagem, quase
12
Marc Augé (1994). ; Zygmund Bauman (2001), entre outros.
17
desumana para a luz da razão, a crença em algo além (que não podemos ver), ganha
credibilidade novamente, visto as circunstâncias e os riscos ocasionados pelas próprias ações
humanas. Isso significa a valorização do invisível, do “além-terra”, do indecifrável,
incompleto, indefinido, afinal, tudo o que a razão não pode demonstrar ou provar.
Observo a preocupação com o “além-realidade-ordinária”, mais que atual! Os
noticiários sensacionalizam: “Tufão na índia mata mais de 10 mil pessoas jogadas pelo ar!”;
“Tragédia no Rio de Janeiro deixa milhares de humanos desabrigados!”; “Terremoto no Haiti
devasta um país inteiro e leva mais de 60 mil pessoas desse mundo catastrófico que nossos
olhos podem enxergar!” Isso os meteorologistas não puderam prever com sua objetividade e
precisão. Ou seja, a modernidade e a ciência preocupam-se muito em resolver problemas
estruturais, mas o que não podem os telescópios precisar, o que a ciência positivista não pode
demonstrar com fatos, e o que o tato bem apurado não pode tocar materialmente, não é
facilmente posto em questão, nem refletido. São as nuances que não temos a capacidade de
ver.
As ideias de Jankélévitch (apud CALABRESE, 1988, p. 172, 173), inquietas pelo
delineamento do contemporâneo, mostram que há uma precisa prática teórica a desafiar as leis
da representação, propondo-se representar o irrepresentável, dizer o indizível, mostrar o não
visível. Principia o reconhecimento que seria muita prepotência da mente humana achar que
temos conhecimento sobre tudo que existe no mundo. Shakespeare foi perspicaz ao dizer que
“há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”.
Valoriza-se o impreciso, indizível, ao contrário da ciência teoricamente tão precisa.
Omar Calabrese (1988, p. 171) salienta que “O universo do impreciso, do indefinido, do vago
mostra-se, pois rico de sedução para a mentalidade contemporânea.” E ainda completa que
tem a ver com a revelação efetiva de uma “mentalidade”, ou seja, reluz uma nova maneira de
pensar/“olhar” na cultura contemporânea. 13
Turner (apud CRAPANZANO, 2005, p. 380) cita o místico alemão Jakob Böhme:
“Em incerteza todas as coisas consistem”. Poderíamos citar mais uma infinidade de outros
místicos que chamam atenção para os paradoxos de nossa compreensão.
É curioso, além disso, que justamente hoje a imprecisão seja assim tão revalorizada.
De acordo com as precisões, definições, controle do “progresso” moderno, os conteúdos da
13
Nesse sentido, Félix Guattari (1992, 1993) alerta sobre a urgência em pensarmos a cidade não só em seus
aspectos físicos, mas também no psíquico e no social. Pensar a sociedade de uma forma global, não em caixinhas
definidas. Introduzir a arte na vida, ou vice-versa, parece uma boa maneira de vislumbrar uma nova forma de
sociabilidade.
18
cultura deveriam também assim o ser. Entretanto, o que verificamos é que a calculadora
produz arredondamentos até o undécimo algarismo, lembra Calabrese (1988); a TV produz
efeitos de realidades, o relógio indiscutível aproximação, nenhum dia tem 24hs, entre outros.
Notadamente a precisão é apenas um discurso bem inventado.
Richard Schechner (1995, p. 205) escolhe abordar esse “não-sei-que-indefinível” que
está exterior ao cotidiano. Para ele é “o momento no qual a oposição entre comportamento
cotidiano e comportamento extra-cotidiano deixa o plano físico e alcança outro plano não
reconhecível imediatamente”. Chama isso de “comportamento restaurado”, o mesmo é usado
em todos os tipos de representações desde o xamanismo até o transe, do ritual até a dança
estética e teatro, desde os ritos de iniciação até os dramas sociais, desde a psicanálise até o
psico-drama e a análise transacional.
Sendo assim, a dificuldade da sociedade diante da incompletude, da indefinição, da
imprecisão, deve encontrar resposta num sentimento que provém, pois, do resíduo da nossa
atividade de redução, práxis, explicação e controle do conhecimento.
Não obstante, a curiosidade para saber o que está além do óbvio, (o excêntrico, o que
transborda), incita o ser humano, cansado de definições, limitações, ordem, aclamados pela
modernidade, a esquadrinhar as possibilidades, as lacunas, as brechas, para exceder aos
limites cotidianos.14
Calabrese (1988) formula ideias a partir de limite e excesso argumentando que estamos
nessa fase de romper, deslocar o limite incorporando-o para dentro da margem. O ritual tem
como um dos objetivos, a busca por essa quebra de fronteiras do permissivo, do dito real. O
exemplo do carnaval é providencial tanto para o “ultrapassar o limite” quanto para celebrar o
excesso. É o espaço/tempo reservado para o transbordamento de fronteiras da regra, o excesso
do riso, do permissivo, do sexo, da dança, da alegria, etc.
É imprescindível que se crie zonas de indefinição, para dar possibilidade de o novo
acontecer e não viver como se fossemos expectadores dos próprios eventos. Assim como
consegue o “Dionísio” de Nietzsche:
Só Dioniso, o artista criador, atinge a potência das metamorfoses que o faz
devir, dando testemunho de uma vida que jorra; ele eleva a potência do falso
14
As especificidades da modernidade, a vida regrada, planejada e a confiança na precisão e no perfeito,
provocam um tipo de ritmo paradoxo que objetiva a via contrária (artifícios para superar o regrado), como bem
argumenta Certeau (1994) nas “artes de fazer”.
19
a um grau que se efetua não mais na forma, porém na transformação –
„virtude que dá‟, ou criação de possibilidades de vida: transmutação. A
vontade de potência é como a energia; chama-se nobre aquela que é apta a
transformar-se. São vis, ou baixos, aqueles que só sabem disfarçar-se,
travestir-se, isto é, tomar uma forma e manter-se numa forma sempre a
mesma. (DELEUZE, 1997, p. 121).
Afinal, se para diagnosticar o contemporâneo devemos pensar o que se precipita, é
necessário então estar atento ao desconhecido e este não é definido, completo perfeito, mas
justamente o contrário. Para pensar o que estamos a caminho de ser, carece escutar a diferença
que está sendo produzida, perceber a sutileza do inacabado. E seria difícil encontrar a
diferença no cotidiano, no que se repete todo dia, a possibilidade maior é acessá-la exterior a
ele, como diria Schechner, no “extra-cotidiano”.
Ficar á deriva de si, para suportar momentos de transição pode ajudar a
desintoxicar as ressonâncias históricas, por onde alguns fantasmas ainda
sobrevivem. Na multiplicidade dos cotidianos papéis, muitos são os esboços
para depois de amanhã. Quem sabe o imaginário possa encontrar outros
nexos, na especulação dos rascunhos com as provisórias certezas. Talvez aí a
história de cada pessoa possa deixar de ter autoria desconhecida.
(STRASSBURGER, 2010, s/p.)
Outra metanarrativa válida de conjecturação é a questão da ciência.
A ciência já não sabe mais o que pode ou não, não deu conta dos projetos de salvar o
mundo com a razão, pois seus riscos são incalculáveis, como defende Ulrich Beck (1998) em
La Sociedad Del Riesgo global. As conseqüências dos êxitos da modernidade se convertem
em riscos. Hoje a iminência de uma catástrofe ecológica, econômica ou terrorista, é fato. A
modernidade emerge da situação de segurança metafísica, para “segurar na mão” da razão.
Colocamos-nos como o centro que inclusive poderíamos controlar a natureza, nós mesmos,
mas na prática percebemos que os medos continuam e que a razão não conseguiu assegurar os
riscos. Um remédio pode paliar uma doença, mas não garante que em longo prazo afetará
outra função do organismo. A idealização da libertação do homem pela medicina e a ciência,
que a partir do iluminismo tanto contribuiu para a separação das instâncias da vida, entra em
crise.
Não obstante, é notadamente claro tendências a valorizar certas ações, ideais e
questões do nosso passado, este tão indigno e ultrapassado para o ideal da modernidade. Por
20
exemplo, verifica-se a valorização novamente da medicina alternativa 15, créditos para os
populares que conhecem o poder medicinal das ervas, plantas da mata, do cerrado, da
caatinga, etc. Percebe-se até mesmo o investimento da publicidade por tal gosto. As
propagandas de cosméticos, alimentos, tendem a destacar o valor natural, orgânico do
produto. Arrisco dizer que há um movimento intenso por certo reencantamento pelo natural.
Ao invés da ciência controlar a natureza, a natureza tem poder até sobre nossos hábitos
cotidianos.
Renato Ortiz diz que há uma “recuperação”16 de um gosto tradicional pelo público
considerado “civilizado” e atualizado. Adornos mais simples, voltados ao natural, ecológico,
certo saudosismo do passado, estima pelo Romantismo, são cada vez mais procurados e
ressignificados. Essa busca pelo ecológico/natural, na visão de Renato Ortiz, é o símbolo
dominante de um suposto “pós-modernismo”, onde a idéia de ultrapassar a modernidade é o
projeto de justiça social, no qual a questão ecológica é o ponto central. 17
Estima-se de forma reconfigurada e atualizada a importância da sapiência popular,
conhecimento adquirido não necessariamente na escola ou livros. Elementos estes, que os
orientais fazem questão de salvaguardar o quanto puderem, assim como os povos ditos
“naturais”, como os indígenas. Nessas sociedades o respeito pela sabedoria dos mais velhos é
basilar, e o saber está ligado à vida, à organização social, ao mito, assim como à arte. Tudo
está intricado numa rede de relações, não classificadas separadamente como na modernidade.
O “esclarecimento” procede, muitas vezes, do ardor no olho por mirar o sol ao invés da leitura
sobre o não dever olhar para o sol. Maffesoli (1998) também argumenta sobre a relevância e
relação do saber em si, do saber comum na contemporaneidade.
A ciência se apropria da idéia de verdade através do método. Toda modernidade crê na
possibilidade de cura e liberdade através desse método que é a ideia exata sobre algum objeto.
A imagem do objeto é igual sua representação. Só que a idéia de representação já nasce falida
a partir do momento em que a representação depende da referência e referência é um dos
15
Em países da Europa existe até um curso superior para Parteira. As pessoas buscam muito esse tipo de
procedimento rudimentar e ligado ao natural.
16
“Recuperação” foi o termo usado pelo professor Ortiz na palestra conferida a alunos da Universidade Federal
de Mato Grosso (UFMT) no ano de 2004. Não uso tal termo, visto a problemática atribuída em torno dessa
palavra.
17
Para Renato Ortiz, ligar a idéia de pós-modernismo à idéia de ecologia é também uma tentativa de desconstruir
e até se opor a alguns evolucionistas, com seu progresso tecnológico. Porém o autor considera contraditório e
inviável nesse sentido “pós-moderno-natural”, pois argumenta que não tem como dissociar projetos ecológicos
de tecnologia, ou seja, além da conscientização, hoje é necessário tecnologia avançada para facilitar e viabilizar
recursos ecológicos. Aqui um exemplo do novo uso de elementos do passado e não a fidedignidade de sua
“recuperação”.
21
maiores colapsos contemporâneos18. Ademais, o exercício da hermenêutica acaba por
impossibilitar a idéia exata sobre a singularidade das referências.
Foucault também desconstrói a idéia do saber ser libertador. Para ele o saber constitui
ilhas de ignorâncias também. O apelo sedutor dos princípios de verdade costuma conter
sofisticadas armadilhas, muitas delas estimulam alguma forma de competição ou comparação
com os demais.
1.3 Do deslocamento
No conjunto de fenômenos sociais definidores do tempo presente, encontra-se um
elemento forte chamado deslocamento. O reencontro ou revalorização desses fenômenos
citados acima exemplifica essa característica de deslocamento que acaba por revelar uma
poética da contemporaneidade. A reciclagem de elementos que não são desconhecidos do ser
humano, pelo contrário, foi vivenciado fortemente em épocas outras. 19
Isso talvez leve a refletir também sobre os tão popularizados “tempos históricos” que
tem sido largamente utilizado para se pensar nosso passado. Não consigo ver tanta linearidade
nesses momentos se eles convivem juntos, principalmente na atualidade. Talvez porque seja o
lugar onde estamos vivendo e ao mesmo tempo pesquisando, mas esses gostos
contemporâneos que a primeira vista se opõe a alguns modernos, também pode em grande
medida ser um gosto barroco que se opõe ao clássico, ou romântico que se opõe ao realismo,
não precisamente, mas com traços de alguns e abortamentos de outros em todos os tão
definidos “tempos históricos”. Ao invés de uma linha contínua, porque não pensar em linhas
que aparecem de diversos lugares, ou linhas circulares, rizomáticas? 20 A origem pode ser o
movimento.
A reflexão de Schiller (1992), por exemplo, não se esgota no tempo histórico. Ele
acredita que a possibilidade de um mundo fundamentado em princípios humanizadores de arte
junto de novo com a vida pode existir, uma vez que já existiu na história. E não depende do
tempo porque é hipótese de uma ética social que busca a totalidade da inserção humana no
mundo, para ele esquecida quando a poesia separou-se da vida cotidiana.
18
Ver Marc-Augé (1994), Deleuze, Guattari (1992).
Segundo Calabrese deslocamento "consiste em atribuir ao que foi desvelado do passado, um significado a
partir do presente, ou proporcionar ao presente, um significado a partir do que foi desvelado no passado" (1987,
p.193).
20
No tempo em que vivemos o excesso e a intensidade dos acontecimentos ativa a memória, de modo que se é
capaz de narrar eventos históricos importantíssimos em pouco tempo de vida.
19
22
É através da expressão da experiência que as culturas articulam seus
significados, articulam passado e presente e por isso podem ser melhor
comparadas através de seus rituais, suas artes cênicas, contos, óperas do que
através de seus hábitos (MÜLLER, 2000, s/p.).
Dessa forma, elementos valorizados e utilizados no passado deslocam de maneira
ressignificada a agir na contemporaneidade, definindo assim, uma nova poética, que é ela
mesma a do deslocamento. Aqui são os momentos de estado holístico que me interessam
como fenômeno de deslocamento.
1.4 Outra sociabilidade
Refletir sobre os estímulos dos tempos modernos e a necessidade de emergir dos
mesmos se faz necessário a partir da constatação que os paradigmas modernos não vigoraram.
A pretensa dominação da natureza; a ciência como verdade e a razão como certeza dos riscos
paradoxalmente produzindo uma sociedade de riscos incalculáveis e sua “verdade” (sempre
entre muitas aspas) é uma grande dúvida. As separações explícitas, a idéia de puro e o horror
à mistura se desfazem nos fluxos indissociáveis de hibridações e misturas constantes da
cultura contemporânea. Produzir sua vida com um futuro projetado no presente (pois
professaram que só o homem das cavernas agia no aqui e agora), etc., são exemplos dos
modelos que naufragaram.
A maioria dos indivíduos prioriza o presente, pois, dos muitos estímulos, não são
todos que podem participar. O projeto da maior parte das pessoas é viver e muitas vezes o
planejamento é apenas a comida que se consegue no dia. Ortega y Gasset (1987 p. 55)
sustenta que nesse contexto a fé na cultura moderna era muito triste já que tinha a vida toda
planejada: “saber que o progresso consistia só em avançar eternamente por um caminho
idêntico ao que já estava sob nossos pés. Um caminho que mais se parece com uma prisão,
elástica, se estica sem nos libertar”. Finalmente, o que parece é que o projeto moderno e sua
lógica do “dever-ser” não se concretizou, como já previa o clássico sociólogo Max Weber.
Por exemplo, pesquisas apontam que apenas 3% da população brasileira cumpriu o projeto de
terminar o ensino básico e entrar na faculdade.
Assim, vislumbrar um espaço mais hedonista deve ser uma tendência contemporânea,
como elaboram Ortega y Gasset e Maffesoli.
O que é importante reter é que as mudanças aqui discutidas apresentam (exatamente
pelo que trazem de novo na relação com o espectro do corpo, com a possibilidade de outro
olhar sobre o espaço e tempo cotidiano e a relação comunitária com o outro), férteis
23
possibilidades aos indivíduos para o exercício de uma nova relação consigo e com o mundo.
De vivenciar de forma diferente o mundo e de experimentar formas reelaboradas de
sociabilidade e relação com a alteridade, especialmente a partir da experiência artística.
A direção poética atual desconhece impedimentos ou limites. O fim dos limites entre
arte e vida possibilita uma nova forma de sociabilidade mais adequada e tão imprescindível na
cultura
contemporânea.
Bourriaud
(2009)
trabalha
com
a
assertiva
que,
na
contemporaneidade, os artistas passaram a produzir modelos de socialidade e a situar dentro
da esfera inter-humana.
O mundo contemporâneo é esse caos e é no caos que se criam brechas para ultrapassar
os limites do cotidiano. O carnaval provoca caos, e caos é morte. Tudo para nascer novo
precisa morrer, desconjuntar; o carnaval desmonta todo um sistema de valores e leis para
recriar, renascer. “Uma ordem objetiva 'mutante' pode nascer do caos atual de nossas cidades
e também uma nova poesia, uma nova arte de viver” (GUATTARI, 1992). Trata-se de
reconstruir não apenas no real, mas também no possível.
24
CAPÍTULO II
2. UMA “PRÉ-LIMINAR” CONTEXTUALIZAÇÃO
A liminaridade pode ser como um reino de pura
possibilidade, de onde novas configurações de idéias e
relações podem surgir
(TURNER apud CRAPANZANO, 2005, p. 381)
2.1 Do Carnaval à liminaridade
Há muito vários autores têm teorizado sobre o carnaval e seu poder de inversão da
ordem. Descrevem esse período como um momento no qual as regras sociais vigentes na vida
diária são temporariamente interrompidas, neutralizadas ou invertidas.
As análises vão ao sentido de o carnaval configurar um período de contraversão de
valores ordinários; momento onde tudo é permitido; esquecimento provisório das regras;
descaso sobre a estrutura, etiqueta, etc.
Um dos teóricos que esmiuçou a estética carnavalesca foi o filósofo da linguagem
Mikhail Bakhtin. Este, a partir de estudos e analogias sobre o carnaval na Idade Média e no
Renascimento, desenvolveu um conceito chave de articulação teórica que influencia várias
áreas de conhecimento como a lingüística, literatura, história, sociologia, ciências em geral – a
estética carnavalesca ou carnavalização.
Resgatando Bakhtin (1993), pode-se dizer que o carnaval, como a representação
máxima da carnavalização, conjuga uma pluralidade de vozes tal que o caracteriza,
fundamentalmente, como polifônico, dada sua heterogeneidade constitutiva, que relaciona
extravagância e simplicidade, cenários exóticos e banais, aspectos eruditos e populares,
mesclando uma significativa variedade de estilos e contemplando a junção de pessoas de
diferentes classes sociais, etnias e idades. É isso que sintetiza, por excelência, a composição
carnavalesca.
Substituir o uniforme pela fantasia, comer e beber nas ruas, trocando a casa pelo
mundo público, no qual o comportamento dos indivíduos é dominado pela ausência do status
25
social e a regra é não ter regra. Em carnavalização a concepção de espaço é redimensionada
pelo desregramento habitual, o riso é propriedade de todos, há a celebração do
transbordamento ou excesso de prazer, riqueza, alegria. Bakhtin fala de excesso relacionandoo com o grotesco – a bocarra, o nariz imenso, o exagero nas formas e na diversão levada ao
extremo sem maiores preocupações.
Para Bakhtin (apud PACHECO, 2006) outro aspecto constante dos ritos carnavalescos
são as situações de desnudamento e de mascaramento, já que o ato de pôr a máscara significa
assumir outra personalidade e esconder-se, ou mesmo, assumir-se.
Durkheim discorre muito bem sobre o tema da anonímia, assim como o antropólogo
britânico Victor Turner. As máscaras são recorrentes e o anonimato com o artifício de
esconder o rosto, possibilita expressar desejos proibidos no cotidiano.
A hierarquia é desvelada como a mais irrelevante superficialidade, pois o
destronamento de tudo que é elevado, para dar lugar o nivelamento do mundo, acaba por criar
a intensidade de uma nova cosmologia, do novo olhar para o mundo muito mais profundo.
Bakhtin (1993, p. 14) caracteriza esse ambiente carnavalizado como “o caráter universal, a
concepção profunda do mundo.” Para o autor o carnaval é a “procissão dos deuses
destronados” tanto dos status social, quanto dos pecados morais (apud BRAIT, p.55).
O sociólogo brasileiro, Roberto da Matta (1977, p. 22) diz que o carnaval é o “sumário
perfeito da visão anticotidiana da vida”.
Sua abordagem é específica sobre o carnaval no Brasil, sua imagem e as incorporações
dessa imagem pelos próprios brasileiros. Nesse sentido, é como se os brasileiros desejassem
sempre enfatizar os aspectos “comunitários” da sua ordem social, e o desdém pelo estrutural 21.
O malandro, em contraste com o “Caxias”; o “jeitinho”, em contraste com a burocracia
cotidiana, assim por diante.
A diluição das hierarquias está presente em todas as teorias sobre o carnaval. Ela é um
forte vetor para incorporação do estado comunitário (holístico) como problematizado no
primeiro capítulo. Já que as diferenças instituem a heterogeneidade e as hierarquias
homogeneízam, de acordo com Eliane Fonseca (1998, p.67), o carnaval institui a diferença,
no sentido de respeito à individualidade, prazeres e desejos de cada um, ao mesmo tempo
colocando todos no mesmo patamar de humanidade. Sem escadas, os corpos realmente se
21
(permanência, autoridade, posição definida, não espontaneidade social e ideológica, distinções de status e
riqueza, secularidade, obediência, hierarquia, conhecimento técnico), aspectos destacados por Turner (1992)
como estrutura.
26
tornam comunitários e os sujeitos podem experimentar sensações de coletividade, de um todo
ininterrupto naturalmente. É o citado estado holístico, que se faz presente no carnaval.
Da Matta constrói uma analogia do conceito de Vitor Turner de communitas e
liminaridade com o carnaval do Brasil. Aborda o carnaval como sendo a instituição
paradigmática desta visão do Brasil como uma grande communitas. Diz que o carnaval e sua
visão não rotinizada do mundo rompe com o continuum da vida diária, “apontando
gritantemente para alguns pontos básicos da nossa ordem social” (MATTA, 1977, p. 22).
Segundo o autor, o carnaval é o período de tempo anômalo onde encontramos uma
coerência entre o aparecimento de seres “ambíguos e escondidos”- monstros, demônios, seres
cósmicos, entre outros. As fantasias representam tipos problemáticos e marginais tais como
tivesse aberto os porões da sociedade. Aparecem com todo o seu poder de provocar o caos.
“Para-se com as atividades rotineiras, dorme-se de dia e anda-se de noite”. (Id., Ibid., p. 36) O
trânsito se acalma e as ruas são ocupadas pelas pessoas.
2.2 À liminaridade
Olavo Bilac descreve um tipo social – o carnavalesco, como o exemplo perfeito do
“homem liminal”:
... É um homem maduro, matriculado tendo mulher e filhos, apólices e
comenda. Pouco importa! É um carnavalesco... Na vida desse homem, de
vida regrada e equilibrada, o Carnaval é um hiato, é uma síncope, é a
anulação completa de sua consciência de homem e de chefe de família, é a
suspensão absoluta de toda a sua gravidade de negociante e de comendador
(apud MATTA, 1977, p. 31).
Sublinho o fato de essa composição carnavalesca representar uma ausência de
estrutura, ou melhor, a estrutura estar em suspensão, assim como os anseios do cotidiano, o
que leva os indivíduos a uma experiência onírica, com espaço e tempo em outra dimensão,
onde o futuro é não planejado, incerto. Aqui, inicia-se a conjugação do ponto que nos
interessa – os efeitos de carnavalização com a teoria da liminaridade de Turner (1974).
Victor Turner, um antropólogo britânico preocupado com a transição nos ritos de
passagem, estudando os Nuer descobre nos momentos auge de seus rituais a liminaridade.
Liminaridade seria o momento auge do ritual onde a estrutura se encontra em
suspensão, há ausência de “status”, de diferença sexual, de classes, hierarquia, de obrigações
de parentesco, anonímia. Os corpos se encontram pairando por um espaço-tempo indizível,
mais potencial que se imagina, segundo Turner. O indivíduo se encontra no meio, no entre
27
(betwixt and between22), no nada da estrutura cotidiana. O que está suspenso é todo o sistema
social vigente, tudo que é ordinário, todos os anseios do cotidiano. Turner (1974) chamou,
apropriadamente, a liminaridade de prima matéria: um estado bruto onde não se está nem
dentro nem fora da sociedade, está absorto em singularidades, espaço, tempo, inclassificáveis,
aliás, ele diz que é transporte para outras realidades. 23
O modelo de Turner é basicamente o modelo tripartite do rite de passage de Van
Gennep (1960): separação, margem e incorporação. Crapanzano (2005) entre outros autores
ampliaram o modelo dos ritos concernentes a crises na vida de um indivíduo para aqueles da
sociedade em geral. Estes incluiriam ritos preparatórios para a guerra, cerimônias de primeira
frutificação, colheita e chuva, que marcam a passagem da escassez para a abundância, e
rituais de posse, como coroações, que, embora centrados em um indivíduo, são
eminentemente coletivos na orientação e nos efeitos. Turner (1974, cap. 1) amplia mais ainda
o modelo, aplicando-o a períodos de reparação de conflitos sociais, que chama de dramas
sociais. O centro de sua atenção é a liminaridade – a margem –, que considera uma “situação
interestrutural” e é entendida como processo e devir. Não está particularmente interessado em
pontuar o liminar – em suas disjunções internas – e em como este efetua e é afetado pelo
momento final, definidor da transição.
Contribuindo com o estudo de Turner, quero atentar justamente para as disjunções
momentâneas no instante específico da dissociação das estruturas conscienciais ou não, ou
seja, o foco da pesquisa está no momento crucial do desligamento de todas as percepções
automatizadas da cultura. Analiso qual o caminho pra se chegar nesse estado de escuta das
vibrações que se diferenciam da repetição diária. Esses momentos liminares são apenas
executados e geralmente ignorados, embora possam ser exibidos em rituais dilatados e
repetitivos, no drama, na literatura e na música, segundo Crapanzano (2005). São os
momentos definidores dos ritos de passagem, mas também de transições corriqueiras de um
registro experiencial, por exemplo, a vigília, a outro, por exemplo, o sonho, o transe ou o
simples adormecer.
O trabalho que me propus realizar está no momento de passagem que, em essência,
nao pode ser enunciado, não com ritos de passagem tradicionais, mas com uma inclinação
considerável para o elemento que foi identificado a priori como o que representa mais
22
Turner usa o termo “betwixt and between” em vários livros, no qual funde dois sinônimos que aponta a
indeterminação e falta de localização precisa da coisa designada. Exemplos de possíveis traduções seriam: “nem
lá nem cá”, “aquém e além dos pontos fixos”, “entre dois mundos”, “entre e entrementes”.
23
Para Artaud o ser tem estados inumeráveis.
28
ludicamente a suspensão da estrutura cotidiana e quebra das convenções culturais – a arte.
Assim, o termo – estado-metáfora – veio para ajudar a pensar essa passagem.
Turner enxergou a liminaridade nos ritos de passagem, Vicent Crapanzano na estética
japonesa e no misticismo sufi. A maioria desses ritos se fazem em situações de culto, religião
ou manifestações equivalentes; aqui estaria então a suspensão da estrutura cotidiana com
Religião. Abordo essa suspensão em contato com Arte explicitada no momento liminar de
Turner, com o antes, o durante o ato da criação e o depois, se esse ato de produzir algum tipo
de Arte24, ou mesmo a sensação artística, o estado-metáfora, ou o estado de arte, como
veremos adiante, pode enriquecer subjetividades no personagem cotidiano ou mesmo no
grupo social. A Arte aqui será abordada no sentido ritual. Abordando-a assim, numa
perspectiva maior compreendendo além da apreciação estética, (e todas as definições
europeizantes), como um amplo espectro de expressões e manifestações de sentidos e valores
culturais.
Mas por que escolher a arte?
Eliane Fonseca (1998, p. 14) discorrendo a respeito da função mais importante da arte,
defende que é a “ruptura com o velho, o conhecido, e a abertura para outra forma de
conhecer”.
Bourriaud diz que a arte tem por finalidade reduzir a parte mecânica em nós: “ela
almeja destruir todo acordo apriorístico sobre o percebido” (2009, p. 113).
Enfim, a arte inventa subjetividades com uma linguagem que só pode ser acessada
através da linguagem artística. Essas e outras descrições sobre as sensações de arte partem do
significado que pesquiso, do encontro com o momento limiar do estado-metáfora.
Se liminaridade não parece uma palavra tão comumente usada no meio científico, não
obstante, a ideia que compõe o conceito é bastante teorizada, porém, em outros contextos e
com nomes bastante distintos. Expor sobre eles pode nos ajudar a pensar o objeto desse
trabalho:
O conceito de corpo-de-sonho da psicanalista e poeta, Eliane Fonseca (1998), é um
bom exemplo. Para ela corpo-de-sonho é o movimento perceptível que deixa ver o vão, o
entre uma coisa e outra coisa.25 Ela define:
É o intervalo entre a evanescência e a corporeidade, entre o possível e o
virtual, entre o vão do sentir e do experimentar, na báscula entre desejar e
24
“A Arte proporciona a dimensão da „beleza‟ aberta ao espírito através da sensibilidade.” (Hegel, 1992)
25
Turner betwixt and between, para tentar definir melhor esse estado liminar, o “entre”, como foi dito.
29
querer, na esquize da vida e da morte (...) funciona como um instrumento
privilegiado para a travessia do estranho que, por ser o informe, aterroriza e
fascina (FONSECA, Ibid., Apresentação).
Assim como a liminaridade, o corpo-de-sonho é estado de arte ou estado de risco, de
acordo com Fonseca, pois sua emersão implica o abandono das garantias e referências do
saber suposto, e o deslocamento do horizonte das representações, da lógica do racionaldiscursivo para o campo da poética. “Por estar determinado pela quebra do senso comum, há
uma função do corpo-de-sonho que se aproxima da função mais importante da arte” aquela de
romper com o definido e abrir fendas para o pré formal ou o informe, chamando de “o saber
que permite sonhar” (FONSECA, 1998, p.14).
O conceito dessa autora demonstra que a conexão das sensações da liminaridade com
as da arte já foi não só pensada como teorizada.
Muito propício para o objeto dessa pesquisa, tanto liminaridade, arte e corpo-desonho, jamais estão prontos, mas sempre em constituição, desmanchando formas,
atravessando o informe e criando outras formas de subjetivação e de existência. É um
ultrapassar da linguagem, do formalismo, da estrutura, um ir além.
Para Crapanzano (2005) o limiar foi muitas vezes equiparado ao sonho – ao processo
primário de pensamento, mas na verdade ele sugere possibilidades imaginativas que, não
necessariamente, estão ao nosso dispor no cotidiano.
Estado de arte é outro conceito relevante aqui. Esse é elaborado pela artista (ou
como ela preferia se auto-intitular “não-artista”) Lygia Clark. Sua arte aproximava o
expectador de um estado onde o mundo se molda e passa a ser constante transformação.
O que a artista buscava era a constituição de um estado estético (o “estado da arte sem
arte”) que só ocorreria com a recuperação do corpo sensório. “Por isso os suportes físicos das
proposições construtivas não são obras artísticas, mas instrumentos de sensibilização: são
pontos de partida que procuram despertar a capacidade criativa do manipulador” (CLARK
apud BRETAS, 2010, s/p). Avatar de uma prática eminentemente estética, Clark investe na
experimentação de um constructo espácio-temporal alternativo como “propedêutica” para
outro tipo de vivência política. Tanto que em 1968, em um texto espécie de manifesto da atitude
reivindicada pela artista desde Caminhando, ela escreve: “Somos os propositores (...)
enterramos a „obra de arte‟ como tal e solicitamos a vocês que o pensamento viva pela ação”
(CLARK, 1980, p.31).
Sua ênfase na sensação é notória. A sensação, segundo Deleuze e Guattari (1992, p.
271), é a maneira de responder ao caos. Ela é “a vibração contraída, tornada qualidade,
30
variedade (...) A contração não é uma ação, mas uma paixão pura, uma contemplação que
conserva o precedente no seguinte”. Essa contra-ação pode ser entendida também como a
não-regra, as contravenções do estado-metáfora.
Para eles a sensação está, pois, sobre outro plano diferente daqueles dos mecanismos e
das finalidades. Ela preenche o plano de composição, e preenche a si mesma, preenchendo-se
com aquilo que ela contempla.
“É preciso que a função seja captada numa sensação que lhe dá perceptos e afectos
compostos pela arte exclusivamente, sobre um plano de criação específica que a arranca de
toda referência”. (DELEUZE; GATTARI, Ibid., p. 278)
Passando por Walter Benjamim (apud FONSECA,1998, p. 132), observamos que ele
traça dois conceitos relacionados ao tempo, bastantes distintos entre si: o limite e o limiar. O
limite não é uma interrupção no tempo, mas o fator de sua continuidade. O limite existiria, por
exemplo, para o tempo cronológico. O limiar, por sua vez, é uma zona de passagem, uma
interrupção no tempo. Justamente essa interrupção é o que cria um entremeio, um hiato,
transformando o limiar em uma zona, uma espacialidade dentro da própria interrupção do
tempo cronológico que, por sua vez, dá lugar a outras temporalidades. Segundo
Benjamin (apud MATOS, 1993), é no limiar que ocorre o estranhamento, quando fronteiras
se misturam: as do sono e da vigília, da ficção e da realidade material, do eu e do não-eu, da
historia e da natureza, da natureza e do homem. Ainda completa dizendo que no predomínio
da razão discursiva, “quando o mundo se desencanta e se mecaniza, nós nos tornamos muito
pobres em experiências de limiar”. (Id., Ibid., p. 49)
Deleuze e Guattari (1992) também formulam uma teoria providencial para nossas
analogias de liminaridade. Em O que é filosofia? referem-se a um “guarda-sol” que nos
protege do caos, que aqui seria a cultura dominante, a estrutura convencionalizada. Esse
guarda-sol em alguma medida nos impede de formar uma opinião fora de tudo que já foi
formatado. No caso deles, são a filosofia, a ciência e a arte, os instrumentos que rasgam o
guarda-sol e faz-nos mergulhar no caos. O caos pode ser comparado com o estado-metáfora.
Eles citam Lawrence que diz:
“Os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo
do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões;
mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento,
para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa
luz brusca, uma visão que aparece através da fenda...” (apud DELEUZE;
GUATARI, 1992, p. 261).
31
Os autores consideram esse encontro com o caos necessário para operar as destruições
imprescindíveis e mostrar a novidade que não podemos ver na vida ordinária (o “novo” da
metáfora). O caos que faz surgir uma visão que o ilumina por um instante, uma Sensação.
Em todo o apanhado bibliográfico realizado aqui, as referências são exclusivamente o
que se experimenta a flor da pele. Sendo assim, a composição – Carnaval/Liminaridade –
operam sensações únicas que o discurso não alcança plenamente, sensações essas que
compõem o alvo da pesquisa.
32
CAPÍTULO III
3. BLOCO DOS CARETAS
Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as
realidades das contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se
abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está
secreto dentro de meu eu? Dentro de minha barriga mora um pássaro,
dentro do meu peito, um leão. Esse passeia pra lá e pra cá
incessantemente. A ave grasna, esperneia e é sacrificada. O ovo
continua a envolvê-la, como mortalha, mas já é o começo do outro
pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver
intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçadas.
(Lygia Clark)
Logo que cheguei, não notei nada além de uma cidade pacata e acomodada, pouco
acontece fora da rotina tão fixa, típica de uma cidade muito pequena. Um lugar que aos
poucos decresce em número de habitantes26, fato este, que incomoda muito aos moradores.
No entanto, uma semana antes do carnaval, nitidamente a cidade começa a borbulhar. O
volume de carros aumenta, assim como o número de pessoas, burburinhos sobre o Bloco dos
Caretas, a banda, os roupões, a máscara que será utilizada, o talco; os moradores se postam
para fora de suas casas... Parece que algo nasce por ali. Para essa cidade realmente o carnaval
é algo ímpar, ansiosamente esperado que age movimentando a estática do espaço e os ânimos
de moradores, turistas e entorno.
Cada dia que passa o clima carnavalesco aumenta e vai tomando conta da cidade.
A princípio, essa descrição pode se equiparar à descrição sobre os dias que antecedem
o carnaval em qualquer cidade. Entretanto, por conta do caráter de transe nos traços artísticos
do Bloco (teatralização, performance, música, dança, artes plásticas) e por configurar um
ritual descerimonioso e profano, ao contrário dos ritos tradicionais, o campo empírico se
mostrou oportuno para os objetivos da pesquisa.
Localizada na região sul de Mato Grosso, distando cerca de 310 km (trezentos e dez
quilômetros) da capital Cuiabá, Guiratinga, considerada a capital nacional das orquídeas, tem
26
Dados do IBGE demonstram que nos anos de 1950 a população era superior à vinte mil habitantes. O último
censo 2010 contou menos de quatorze mil habitantes. Ver: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1
33
como marco a ocupação motivada pela exploração de diamantes e por forte seca ocorrida nas
regiões norte e nordeste do país no início do século XX. As múltiplas representações
presentes na alma desses migrantes deslocaram para a incipiente cultura local um modo novo
e metamorfoseado de brincar o carnaval.
O Bloco dos Caretas é uma expressão artística na qual uma diversidade de pessoas
muito dispostas a se divertir sai pelas ruas dançando ao som de tambores, jogando talco em
quem não está fantasiado. Para participar, basta vestir uma túnica27, o dito roupão, colorido de
chita, um capuz, uma máscara, muita irreverência e energia, para bancar uma de monstro
percorrendo as ruas da cidade brincando de rei, capeta, “viado”, Xuxa preta, entre outros.
A máscara é o componente mais prodigioso do Bloco. Pode apresentar formas
aberrantes, espantosas, criativas, engraçadas, o suficiente para causar impacto no público que
muito valoriza e se diverte com as peripécias desses caretas. Além disso, a máscara é o
elemento que desperta a criatividade, engenhosidade, pois são confeccionadas artesanalmente
pelos próprios foliões, existindo, ainda, toda uma ludicidade na composição e modos de
confeccioná-las. Modelar barro e construir máscaras é algo que está presente no imaginário
dos moradores e nas brincadeiras de criança.
A princípio, ocupei-me do levantamento de dados acerca das condições sociais
daqueles que ajudaram a criar o Bloco dos Caretas, conferindo-lhe uma forma que se
transformaria ao longo dos anos. Foram observadas as representações sociais presentes no
imaginário de moradores e turistas. Foram realizadas entrevistas abertas com foliões e
transeuntes, antes, durante e depois da passagem do Bloco. Além de visitas em moradias
aleatórias e entrevistas dentro da concentração também. Visitantes e habitantes dos mais
diversos estados sociais, padres, crianças e adultos, ateus e atores da trama desnudam seus
desejos, brincam com a seriedade da vida, descobrindo entes através das máscaras e melodias
no silêncio distante.
Observação participante – coloquei-me de fora e, n‟outros momentos, de dentro da
máscara, saindo mascarada junto com os foliões, com o intuito de verificar por diferentes
ângulos, a observação dos foliões e dos “expectadores”, cujas poltronas eram os portões, ou
janelas de suas próprias casas.
27
Vestidura larga de um corte só que cobre o corpo inteiro, como um grande vestido. Em Guiratinga chamado de
“roupão”.
34
3.1 Visitando os criadores do Bloco dos Caretas
Na década de 1940 a elite guiratinguense possuía locais exclusivos para brincar
carnaval. Por ser a economia da cidade baseada no garimpo, os diamantes bancavam fantasias
luxuosas encomendadas no Rio e em São Paulo. 28 Entretanto, os moradores que fugiam do
padrão social exigido nessas festas, eram excluídos desses clubes. Assim os mais
entusiasmados, mas sem dinheiro no bolso (ou até mesmo por serem negros) tiveram que
utilizar do imaginário e criatividade para dar vida ao Bloco dos Caretas. Joaquim Vilela Neto
relata:
Filhos de mães solteiras, homossexuais, pobres e pretos não adiantava nem
tentar entrar nos clubes, eram barrados mesmo; a discriminação já começava
pela escolha do traje, mas caso a pessoa se enquadrasse em uma das
situações anteriores, nem estando bem trajado conseguiria adentrar ao
recinto de um clube (DOURADO, 2003, p. 6).
Seu Antônio Silva relata sobre o mencionado período:
Naquela época era muito divertido! Quando o Bloco passava parava tudo,
até as danceterias que promoviam as matinês elitizadas (...) era chegar ali e
acabar com o carnaval deles, a criançada corria tudo pra ver o Bloco!
Sem ter consciência da contribuição para a relativa democratização do carnaval,
aqueles nordestinos criaram uma força coletiva ímpar que com o passar do tempo integrou
todas as classes. Por alguns momentos, todos, em suas particulares diferenças, sentiam-se
iguais. “Relativa democratização” porque as mulheres ainda estavam de fora. No entanto,
alguns relatos mostram que a própria máscara era o fator mais democratizador de tal
fenômeno, pois, segundo uma foliã, Ana Cláudia:
Se em algum momento do pula-pula no meio dos Caretas todos fossem
obrigados a tirar as máscaras, certeza que veríamos um bocado de mulheres
entre os integrantes do Bloco que entram escondidas. (...) Nós furamos
mesmo, é só aglomerar o pessoal que a gente furava.
Dessa maneira, o Bloco dos Caretas foi atraindo uma diversidade de pessoas que se
entregavam às manifestações do devir-monstro. Hoje é um ritual ansiosamente aguardado e
inaugura uma comunhão de alegria pincelada de expressões artísticas muito apreciadas pelos
28
DOURADO, Jucedelia G. O Bloco dos Caretas na cultura guiratinguense. Monografia de conclusão de
graduação em História. Rondonópolis, 2003.
35
moradores e turistas; expressões essas preenchidas por fatores significativos, parafraseando
Lévi-Strauss, “boas para pensar”.
Uma casa simples, com um barracão a frente, localizada na periferia da cidade, é o
local onde moram alguns organizadores do Bloco dos Caretinhas. No carnaval da cidade saem
três Blocos tradicionais: o Bloco dos Caretas (adultos com roupão, capuz e máscara), o Bloco
dos Caretinhas (crianças com roupão, capuz e máscara) e o Bloco dos Sujos (todas as idades
com roupão e capuz somente). Filhos, netos e primos dos criadores do Bloco se dividem para
organizar os três Blocos.
O organizador do Bloco infantil relatou que crianças de qualquer idade podem sair no
Bloco, mas os menores saem, de preferência, acompanhados de um responsável. Já no Bloco
dos Caretas adulto não existe qualquer restrição, todos podem participar. Lá estarão velhos,
casadas, putas, “patricinhas”, tímidos, ouriçadas, excluídos, enfim, uma diversidade de seres
motivados por diversão e distanciamento do cotidiano.
Esse organizador assume que a maior fascinação das crianças e adultos é a ideia de
não mostrar quem é. Brincar com os conhecidos como se fossem simplesmente monstros ou
outra pessoa qualquer. Essa noção de não-identidade remete à reflexão sobre a busca de
singularidades.
Wivaldo, organizador do Bloco dos Caretas adulto, filho de “Buniteza” (um dos
fundadores do Bloco), relata que eles interrompem todas as atividades profissionais (já que
são autônomos) dois meses antes do carnaval para criar máscaras, que serão alugadas por
turistas ou foliões que não têm tempo para confeccionar sua própria máscara. E para que
ninguém fique de fora por não ter máscara, eles confeccionam máscaras fantásticas, como
algumas imagens abaixo:
36
37
38
Figuras 4, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8: máscaras do Bloco dos Caretas
39
Um menino me relatou que enquanto moldava o barro a sua intenção era fazer uma
figura bem assustadora. E disse: “quando saio incorporo o monstro mesmo, não me sinto
Adriano...” (Adriano, 12 anos)
Um senhor, que é arquiteto, relatou que possui várias máscaras de lembrança
(pequenas máscaras feitas exclusivamente para souvenir) que ele próprio customizou com
artefatos diferentes dos usados aqui, como brilhantes e outros acessórios. Relatou, ainda, que
os cobriu com moldura de vidro e pendurou-os na parede de casa.
As máscaras do Bloco possuem seu significado cultural e social para a cidade e para
os foliões. Ao mesmo tempo, elas também são ressignificadas constantemente, tanto no
sentido que esse arquiteto concedeu como objeto de arte, como também brinquedo infantil ou
mesmo como lembraça para presentear. Cada máscara confeccionada possui um pouco das
subjetividades do artífice. Para quem confecciona uma máscara em cada carnaval, elas não
vão se acumulando tanto em suas casas, a maioria vai sendo repassada, trocada e até mesmo
doada a outro folião. Dessa maneira, o folião não será reconhecido pela sua máscara. Aliás, o
pronome possessivo no Bloco não é muito usado. A máscara em geral é trocada na
concentração ou até mesmo durante a passagem do Bloco, justamente para não haver o
reconhecimento, assim como o roupão, o sapato, o talco, etc.
Um senhor que participa do Bloco desde a década de 1970, disse:
O Bloco é familiar, existe uma relação de companheirismo, se você fica bêbado e cai,
todos vão te ajudar e te levar pra casa, pois existe uma relação fraterna, saudável.
Quando coloco a máscara continuo sendo o Carola, mas o Carola que esqueceu de
tudo, problemas familiares, deveres... Sou o Carola livre. Por isso que uma multidão
segue a gente! Porque é uma diversão só! (Carola, 53 anos)
Carola foi entrevistado enquanto estava na casa do organizador fazendo sua inscrição
para participar do Bloco. Um dia antes da saída do Bloco várias pessoas chegam nessa casa
para tirar dúvidas, se inscrever ou mesmo ajudar; barulho, escolha de máscaras, euforia, festa,
início de um rito. Parece que por ali, por mais que estejam trabalhando, o ar de
despreocupação, alegria e harmonia já está presente, além de ser mesmo o ingresso para o
“Sair no Bloco”!
Todos sabem que vários foliões “furam” quando o Bloco já está nas ruas, se embréiam
no aglomerado e não pagam o ingresso. Mas os que pagam, em geral falam que a
concentração no ginásio é essencial, por isso preferem contribuir para sair da concentração.
O Bloco “sai” do Ginásio de Esportes da cidade. Interessante notar o verbo usado para
designar a ação do Bloco – “sair”. “Esse ano o Bloco quase não saía!”; “Nossa! tem que sair
40
sim.”; “Se não sair, o carnaval não vai ter graça nenhuma”. Essas foram algumas frases
correntes na cidade até a decisão que iriam, sim, “sair”. O termo “sair” remete já a idéia de
não estar dentro de um mesmo programinha vigente o ano todo. “Sair” é se colocar além da
fronteira ou limite, nesse caso, do que é vivido diariamente. Não falam: “O Bloco começou!”.
Significa agir, se mover para abrir portas e ultrapassá-las.
3.2 Preparando para o desnudamento do corpo social
A confecção da máscara é o primeiro momento que destaquei para iniciar o processo
de desmascaramento de identificação pessoal.
Sobre uma madeira, os monstros vão sendo moldados na argila. 29 A imaginação é o
modelo. Depois de muitos toques, vão surgindo formas assustadoras ou gozadas. Depois é o
momento de passar o papel. A cola de polvilho deve ser feita com água quente e esfriada
enquanto é mexida para colar bem. Após passadas quatro camadas de papel, que geralmente é
reaproveitado de cadernos ou impressos que seriam jogados no lixo, (o papel de cada camada
deve ser diferente para ter certeza que foi passada na máscara inteira) deve-se deixar secar ao
sol. Cobrem com cerca de treze a quinze camadas de papel e após secar uns dois dias, retiram
a máscara da madeira e iniciam o processo de retirar o barro (pela parte de trás da máscara)
com colher. Remontam papel na parte de trás para não ficar com resquícios de barro e agora é
só pintar se entregar à imaginação que motiva criatividade, pois nos acessórios não há
restrição, colocam pêlos ou cabelos de peruca, crina/rabo de cavalo, ou mesmo cabelo de
boneca.30 Invariavelmente colocam também dentes, que podem ser de cavalos ou até mesmo
modelados com durepox, estes são enfiados em um palito e furados na máscara. Acessórios
como brincos, argolas, para dar forma mais real ou aterrorizante para o “bicho” também são
válidos, entre outros.
As figuras vão desde monstros com chifres e cara de mal, até animais como vaca,
porco, girafa (nesse caso, o olho do folião fica na altura do pescoço da girafa para enxergar);
personagens conhecidas também não são poupados da ridicularização. Realmente constroem
um rosto, “dão uma de deus”, diz um curioso. Montam, parte por parte, um novo ser.
29
Wivaldo relata que dependendo da figura é necessário quase os cinquenta quilos de barro para o molde da
máscara, como a máscara da girafa, do elefante. Já uma máscara normal usa-se de dois a três quilos.
30
Um dia presenciei uma senhora desenrolando uma corda na porta de casa; ela me explicou que seria
transformada em cabelos para a máscara do marido.
41
Figura 9: reajuste na máscara
Figura 10: máscara sendo confeccionada
Essas máscaras traduzem ao pé da letra o grotesco de uma careta: inflam bochechas,
esticam os lábios, arreganham os dentes, franzem a testa, arregalam os olhos. Moldadas no
barro e no papier maché numa projeção escultural – formas exacerbadas, alongamento de
narizes e orelhas, criação de protuberâncias – tornam-se monstruosas. O rosto do folião é
velado por essas aberrantes, espantosas, criativas e engraçadas composições combinadas com
as túnicas coloridas de chitão que abrigam travesseiros e outros volumes produzindo também
um corpo deformado.
3.2.1 Confeccionando a máscara
Resolvi construir uma máscara com a intenção de, com o olhar direcionado da
pesquisa, participar desse processo para conhecer as sensações de quando se está
criando/moldando um monstro que irá compor seu próprio personagem posteriormente.
Observar minhas próprias percepções de artífice, foliã e, é claro, ex-bloquista, além de
antropóloga focada nos ínterins da cultura contemporânea, pesquisando tal momento.
Propus-me a realizar todo o ritual que, em geral, os foliões fazem. Busquei barro numa
olaria, situada a um quilômetro da cidade. Notei os funcionários extremamente atenciosos e
prestativos quando se justifica o pedido para a construção de máscara para sair no Bloco.
Quase todos também sairão e usarão máscaras já construídas para outros carnavais.
A primeira necessidade é se visualizar nas formas monstruosas. Parece que o exagero
levará ao susto, temor.31 Não tive muita sorte, pois exagerei numa parte, eu diria “angelical”, a
bochecha, assim o monstro ficou mais bizarro que assustador.
31
Foi observado que quando se faz a máscara a intenção é que ela seja a mais aterrorizante possível; mas quando
se está vestido não necessariamente é essa a intenção. A empolgação por não precisar se identificar e o poder
momentâneo de se fazer o que não se faz cotidianamente são mais enfatizados que a própria capacidade de
aterrorizar.
42
Interessante notar que para que a máscara se encaixe no rosto, no momento em que se
molda o tamanho da cara, deve-se medir mais ou menos o seu próprio rosto. Dessa maneira,
coloco meu rosto em frente e bem perto da argila informe ainda, para saber mais ou menos a
largura e o lugar dos olhos. Ou seja, primeiramente percebi que por mais excesso ou falta de
partes que o monstro permite (e intenciona-se isso: moldar o que você não tem, o que lhe falta
ou lhe excede, a possibilidade que o humano perfeito não tem), esses dois itens (largura e
buraco do olho) tem que ser médio, obviamente,para enxergar posteriormente.
Outra percepção relevante é que logo após esse movimento de afastar o rosto do barro
(em um tipo de zoom invertido), a sensação de espelho é nítida. Olha-se o reflexo do que se
quer ser ao sair no Bloco. Tem-se a possibilidade/poder de, com as próprias mãos, moldar
(ação/performatividade/formar/agir) sua própria imagem livre dos estímulos estéticos
culturais.
Eliane Fonseca constata que os rostos humanos se diferenciam infinitamente uns dos
outros e, inclusive, um mesmo rosto se diferencia infinitamente de si mesmo. Segundo a
autora, nessa variedade que engendra singularidades, nas distintas expressões que iluminam
ou apagam um mesmo rosto, vê-se partituras de pura expressividade. “Como o rosto humano,
o corpo-de-sonho é uma experiência de limiar. Ou vice-versa” (FONSECA, 1998, p. 137).
Durante a construção da máscara experiencia-se estar de fora do que você estará de
dentro. Dessa maneira, se constrói como se quer ser enxergado pelo outro. Molda-se pensando
no que quer ser para o outro e para si; todavia o que o próprio folião pensa que é, não
necessariamente será para o outro, pois cada um verá um monstro diferente. Por exemplo:
uma senhora observou a minha máscara considerando-a extremamente assustadora e
demoníaca “um fofão do mal”, foi seu comentário. Mostrei a uma criança de um ano, ela
olhou fixamente com curiosidade e logo demonstrou interesse em pegar; sem susto, nem
medo. Já um colega que sempre confecciona máscaras, riu muito dizendo que meu monstro
“não assusta nem rato”.
José Gil (1994, p. 56) diz que o homem “só produz monstros para pensar a própria
humanidade, para ter uma idéia estável do que seu ser não é”. Para ele então, o monstro seria
a alteridade humana. No entanto, qual o limiar da referência para contrastar essa alteridade?
Nesse caso, Tucherman (1999) é perspicaz ao afirmar que o lugar da alteridade no
processo de estranhar e fascinar pela figura deformada, metamorfoseada, é que o outro não
está do lado de fora, ou do outro lado do espelho, mas contém a própria noção de
identificação. “A alteridade faz parte do processo de classificação do idêntico. (...) Sendo
assim, a equivalência dos corpos nos força a reconhecer, no corpo do Outro, o duplo de nosso
43
próprio corpo.” O que reforça a idéia de que o monstro é uma maneira do homem se imaginar
com outras formas, ultrapassando um limiar que força compreensões de si, e não a
estabilidade do que seu ser não é como quer Gil.
Pierre Jeudy (2002, p.105) diz que:
A ética herdada da vontade cristã de sermos todos semelhantes elimina toda
figura de uma radicalidade exótica qualquer, transformando imediatamente
em perversidade estética e assimilando-a à obscenidade de um colonialismo
ainda latente.
A afirmação parece contrariar o argumento anterior, entretanto a última frase refuta:
ao dizer que assimila “um colonialismo ainda latente”, ele ironiza a vontade cristã, assim
como o etnocentrismo estético do colonizador. O exótico se faz obsceno porque questiona o
homem como „a imagem e semelhança de Deus‟.
Para Ieda Tucherman os monstros existem não para mostrar o que nós não somos, mas
“para nos mostrar o que poderíamos ser, não o que somos, mas também não o que nunca
seríamos” (1999, p. 101). Eles são a desfiguração do Mesmo no Outro, como algo que não
nos confundimos, mas também não nos diferenciamos totalmente. Nessa perspectiva, onde se
encontra o Eu e onde se encontra o Outro em mim? Podemos ter contato com esse Outro
dentro de nós e continuarmos humanos?
Identificação e alteridade traçam o trajeto do corpo e suas fantasias. A identificação é
a fronteira ideal estabelecida pela ordem coletiva. O monstro é a alteridade que se encontra na
própria identidade, mas não tem fronteiras, muito menos ideal. Por isso ele também tem a
função social de mostrar o que deve ser temido e rejeitado. Por ser ambíguo (nem homem,
nem bicho), aparece durante o carnaval que é o cenário propício para a quebra de normas,
para viver a não-estrutura. O monstro está no limiar da humanidade, representa a
heterogeneidade da forma, do desejo, do ser, o mestiço.
A construção da máscara de careta (o monstro) se dá nesse processo lúdico e ativo de
desmascaramento de si, de se colocar à disposição da alteridade que está em si também, de
desconstrução das perfeições sociais. Abrindo possibilidades de acesso a subjetividades que já
estão presentes no corpo, esperando apenas oportunidade para agenciamento. “Com a máscara
você sente a sensação de liberdade. Posso fazer o que sempre desejei e até o que nunca pensei
que desejaria. Esquece todos os problemas e não fica depois com peso na consciência”
(Carola, 53 anos).
44
Roberto da Matta (1977, p. 26) diz que “as máscaras indicam uma situação informal,
onde as pessoas podem realizar aquilo que desejam porque têm escondidas por trás de um
disfarce as suas identidades sociais que operam na vida diária.” Esse componente, portanto,
remete a uma situação extraordinária, oposta tanto à vida cotidiana, quanto aos rituais
opostos, onde o que domina é a formalização.
De acordo com esse autor, os monstros e demônios são seres de Carnaval, ao passo
que os santos, profetas e outras entidades positivas são dele banidos. Pois anjos e santos são
seres da estrutura, vale dizer: “da imobilidade bem-aventurada que chega com a perfeição
onipotente e remete a flocos de nuvens e arpejos”. Mas os “monstros carnavalescos pertencem
ao domínio frenético da mobilidade, da ação incessante do fogo do inferno e da busca para
uma insatisfação não orientada”, afirma Da Matta (Ibid.). Esse é o seu tempo.
“Quero sair no Bloco, mas minha mãe disse que eu tenho que ir para o acampamento
da igreja”, confessa Bruninha, de seis anos. Os evangélicos não têm muita afeição pelo Bloco.
Distinguem como algo perigoso pra a vida cristã. “Caretas, já diz o nome! São monstros
capetosos! Do inferno só pode ser esses bichos, de Deus é que não são!” Exclama Benedita
Neres, senhora evangélica da cidade.
O perigo implicado pelo corpo mascarado é o perigo de explicitar singularidades
novas. O novo, o desconhecido é sempre temido. O que não é totalmente claro, indefinido, ou
está à margem também é fonte de perigo, segundo Mary Douglas (1999). No caso do Bloco, o
corpo lógico é suplantado pela máscara de monstro. Contudo, é a experimentação desse corpo
perigoso que pode ser fonte de novas perspectivas de si, pois o monstro é o contra regra, a
aberração, uma folia do corpo não racional, instantaneamente autônomo e espontâneo.
As aberturas pequenas para os olhos, além do capuz, que dificulta ainda mais a visão,
colaboram para uma nova perspectiva visual, assim como no teatro Nô. Nesse sentido,
Tucherman (1999) salienta que uma das funções do monstro é perturbar os sentidos,
especificamente a visão. Ela diz que o monstro perturba a visão e mostra, permitindo assim,
outra possibilidade de olhar.
A confecção da máscara é o ponto de partida para o desvendar-se nos irreconhecíveis
espelhos. Por trás das máscaras e do carnaval existe muito mais que uma festa pagã, existe um
modo especial de ver o mundo, euforia e inversão de valores.
3.2.2 “Pré-liminares” para a liminaridade
45
Na quinta-feira que antecede a saída do Bloco, algumas escolas interrompem suas
atividades para confeccionar máscaras simples de carnaval.
O aviso já está na porta da escola: “Amanhã sem uniforme, só roupas leves e se quiser
o roupão do Bloco”. Isso porque a bateria do Bloco dos Caretinhas visita as escolas de ensino
básico pela manhã de sexta-feira e aula não é prioridade nas escolas dessa cidadezinha na
véspera do fim de semana de carnaval. Os percussionistas do Bloco dos Caretinhas vão tocar
as batidas típicas dos Caretas para os alunos. Celebração da alegria e anúncio para um novo
tempo, livre das normas escolares.
Figura 11: alunos na Escola Santa Teresinha
Figura 12: alunos em carnavalização
O fato de não haver aula nas escolas desde sexta-feira e de todas as turmas se juntarem
no período da manhã para pular com a bateria do Bloco só confirma o momento outro que se
vive.
Numa das escolas, (a Escola dos Padres) o coordenador não conseguiu conter os
alunos que saíram pelo portão da escola para dar uma volta na rua, iniciando uma intervenção
inesperada no centro da cidade. Vários alunos estavam vestidos com o roupão, capuz e a
máscara do Bloco.
Esse acontecimento foi uma novidade. Já faz quatro anos que o som dos atabaques
visita a escola na sexta-feira véspera de carnaval e não há aula. A quebra dos paradigmas tão
bem fixados de aulas, horário a cumprir, regras de convivência e tarefas é fundamento para a
experiência do limiar.32 Vale ressaltar que os fatos citados aconteceram em escolas católicas,
na Escola dos padres e na Escola das freiras, essas conhecidas na cidade pela tradicional
rigidez.
32
Vale lembrar que a Escola é uma das primeiras instituições que faz a iniciação para as crianças nas
imposições, nos limites e regras de convivência numa sociedade civilizada e bem estruturada.
46
Na Escola das freiras (Escola Estadual Santa Teresina), os estudantes e professores
passaram não só a manhã de sexta se preparando para o carnaval mas a tarde de quinta-feira
confeccionando as máscaras para brincar no dia seguinte. Na hierarquia escolar o professor
está num posto elevado em relação aos alunos, e até mesmo a outros funcionários, entretanto,
ali os professores e funcionários se recuaram do “palco” da sala, “desceram do trono” a frente
e no alto, e sentaram-se ao chão juntamente com os alunos, para experienciar a ludicidade do
“fazer junto”, construir coletivamente máscaras de carnaval. Experiências próprias do
conceito de carnavalização de Bakhtin (1993).
Relatos como estes justificam o destronamento das regras formais que a
performatividade no Bloco dos Caretas incita, o ingresso para a suspensão da vida regrada
que vai além do jogo da vida cotidiana, além das barreiras sociais e além da extrema
tranquilidade da cidade. Lembrando que essa experiência, que faz parte do processo do
“estado-metáfora”, é desvendada num processo coletivo, construção coletiva de um
compartilhar único. Fonseca (1998) deixa claro que no ser humano a autopoiése será
construída junto com outro humano. Ela cita Winnicott que articula sobre um estado de
integração. Para ele um estado de integração é uma “etapa necessária para a instauração
da processualidade (a qual tanto nos interessa), quando alguém pode experimentar ao
mesmo tempo ser heterônimo de si mesmo, e perceber-se como unidade”. (apud FONSECA,
Ibid., p. 134)
3.2.3 Concentração
Chegou o dia: Horas antes de sair os organizadores vão para o Ginásio de esportes da
cidade e esperam a chegada dos foliões. O barulho dos escapamentos de carros e motos são
muito mais constantes, os rostos aparecem mais nas ruas e janelas, a confusão começa a
aumentar, o palco a montar, as máscaras a retocar, o coro da alfaia a trocar.
Nesse primeiro dia escolhi observar de fora a euforia de uma multidão a espera da
saída dos Caretas. Um misto de ansiedade, alegria e medo paira no ar.
Curiosos olham pelas frestas das portas, se espalham ao redor do Ginásio,
burburinhos, alegria, ansiedade, um clima muito eufórico vai tomando conta dos arredores do
ginásio e contagiando como uma corrente mútua inevitável e fugaz.
“Lá atrás, lá atrás! Vão sair por trás hoje! Cadê o caretão?!” - Algumas crianças
gritavam empolgadas.
47
A gente fica aqui de fora esperando, querendo que eles saiam logo, mas no
fundo a gente adora essa espera demorada... O coração palpita tão forte que
parece que vai sair pela boca. Aí a gente quer reconhecer o maridão, mas é
difícil. Daí eu vou acompanhar com o Felipe até quando minhas pernas e
braços aguentar.
Conta Marinalva com seu filho de sete meses no colo, já vestido com o roupão do
Bloco.
Já uma senhora que mora ao lado do ginásio pronuncia:
Quando escuto o barulho aí no Ginásio já fico apreensiva, não gosto disso,
pra mim é a mesma coisa que eu tivesse vendo os judeus perseguindo Cristo
antes de ele ser morto, até chicote eles usam, é o mesmo que estar vendo o
cão, os sujos, os judas perseguindo crianças, mulheres e até homens.
Essa senhora, ao pressentir a aproximação do Bloco, empunha um porrete, entra em
seu quarto, tranca a porta e só sai quando não ouve mais o som dos tambores.
Quando alguém está com criança de colo os Caretas não jogam talco, assim como nos
velhinhos, a não ser que eles não se importem. Seu Valdir, um senhor bem despojado de
setenta anos, confessa: “No fundo, a vontade é de se jogar no talco mesmo, se jogar na rua, no
alvoroço, na loucura sem fim!”
Atração e repulsão embalam as sensações provocadas pelo Bloco, contagiando de
maneira avassaladora, independente da aprovação.
Agora as mulheres também se trocam no Ginásio junto com os rapazes. Antes sua
presença estava restrita ao Bloco dos Sujos, um Bloco misto no qual os foliões usam o mesmo
roupão de chita e o capuz, todavia não colocam máscaras. Depois de um tempo que
perceberam mulheres no Bloco dos Caretas e depois de muito clamarem, permitiram a
participação delas. Na verdade, algumas mulheres desde sempre saíam escondidas no Bloco.
No meio da deriva, em meio a flores, capuzes e monstros diversos, ninguém percebia que as
prostitutas da cidade se embreavam pelos mascarados. A história conta que elas foram as
primeiras mulheres a fazer parte dos mascarados. Por terem dificuldade com os olhares
julgosos na concentração dos Sujos, preferiam tapar os rostos e adentrar pelos Caretas, já que
a máscara impossibilitaria seus reconhecimentos.
Nem todos aprovam a integração das mulheres no Bloco, como mostra a fala de André
Luiz quando estava dentro da concentração bem comportado:
Antes era só homem aqui, daí os cara ficavam de cueca farreando aqui no
ginásio antes de sair! Já saía animados! Agora colocaram mulher! Não pode!
É tradição! Mulher é pra Bloco dos Sujos!”
48
Na primeira vez que tentei entrar na concentração, há quatro anos, as mulheres não se
trocavam no ginásio junto com os homens. Evidentemente, o organizador não permitiu minha
entrada, o que só aumentou minha curiosidade e a clássica sensação de mistério que a
concentração sempre causou. Ele disse: “tem homem que não se veste, fica pelado, bêbado,
não tem nenhuma mulher aí, é perigoso”.
Perguntei a um organizador o que os foliões ficam fazendo lá dentro durante a
demorada concentração, Ivo não deu muitos detalhes, disse apenas que “ficam pulando,
loucos para sair!”
Um ex-folião fala sobre suas lembranças de quando saía no Bloco:
O momento mais „massa‟, era quando nos reuníamos no Ginásio para a
concentração. A excitação já começava antes mesmo de chegar lá. Em média
duas horas antes do horário marcado, já estávamos prontos. Na entrada, a
tensão era tão grande que o ingresso parece que sumia do bolso, dava o
maior trabalho encontrar. Lá dentro do ginásio é que ia pintando o clima!
Coisa difícil de explicar...
Não contente com as declarações evasivas dos foliões, no último dia entrei no mistério
da concentração. A intenção era perceber elementos que contribuiriam para o processo de
levar o corpo e o “olhar” para outro espaço não socialmente construído, a interrupção das
formas de organização da vida formal, o “estado-metáfora”.
Alguns foliões bebem bastante, outros se arrumam lentamente, outros dançam ao som
do batuque fazendo brincadeiras e palhaçadas para fazer graça aos colegas, já outros
simplesmente sentam e esperam a saída observando o movimento.
Várias bombas grandes são atiradas no meio da quadra. Às vezes, de fora ouvia esses
barulhos, mas não imaginava como é ensurdecedor no interior do ginásio, que por ser redondo
e coberto de zinco, faz com que o som ecoe. Durante alguns segundos fiquei surda e
desnorteada, enquanto os foliões soltavam gritos inflamados a cada bomba e riam da minha
cara assustada. Penso que o efeito das bombas também faz parte desse processo de transporte
para a dimensão do sonho, de dar voz ao sonho. Provocam uma sensação de impotência, ao
mesmo tempo de ação, percepção do que não precisa de voz e ouvido para agir e viver.
O roupão é o elemento que esconde seu corpo, suas marcas, seu sexo, suas formas, se
transforma no monstro disforme. Logo depois, vestem o capuz que é o primeiro momento de
não-identidade.
49
50
Figura 13, 14, 15, 16: Concentração
Contudo, o elemento que se destacou para o foco dessa pesquisa foi a máscara. Ao
colocar a máscara, os foliões assumiam outra postura, começavam a gesticular de outra
maneira, portando-se como protagonistas de um filme. Ao colocar uma máscara, o ser viola
as fronteiras naturais, deslocando-se para outro lugar. O ato de por a máscara significa
assumir outra persona, ou, como uma foliã mesmo disse, “se coloca a máscara para esconder
a outra máscara”. Artaud diz que a máscara mostra. E Eugênio Barba diz que ela é suporte
para viajar por outros mundos, de se transportar para outra dimensão do Eu. Para Bakhtin
(1993, p. 122) a máscara “é a expressão das transferências, das metamorfoses.”
“Ah Clau, eu coloco a máscara só no final da concentração, porque quando eu coloco
ela no rosto esqueço quem sou, e aí não respondo por mim!” Confessa Murilo, 32 anos.
“Às vezes penso pra quê colocar um roupão, uma máscara e sair correndo atrás das
pessoas. Parece bobeira, mas quando a gente entra dentro daquela máscara... é indescritível!
Algo muito forte!” Roberto Rodrigues (23 anos)
As falas de Murilo, Roberto, assim como de outros entrevistados, além da observação
participante, contribuem significativamente com as afirmações dos autores citados acima, e
com a primeira impressão da observação etnográfica: de que a máscara é o elemento chave
para a travessia das interdições do personagem cotidiano e artifício principal pra o devir
descortinar do estado-metáfora. Nesse interstício, na interrupção, no entremeio da ação,
(betwixt and between) é o espaço/tempo necessário para a busca do novo, do que é singular,
do caos criador. A ruptura, o entreato se faz oásis para “renascimento”.
51
Voltando ainda às análises de Benjamin 33 sobre os efeitos de interrupção no teatro de
Brecht, a ruptura com a continuidade de ser leva os indivíduos a repensarem seus próprios
atos cotidianos (que com o passar ficam quase automáticos), e no caso, os espectadores, a
refletir sobre sua própria continuidade de ser convencionada socialmente. Brecht utilizava-se
também de máscaras nos atores para conseguir tal efeito, assim como as máscaras do Bloco se
faz um artifício capaz de transformar o estranho em familiar e de provocar, em relação ao
familiar, um efeito de estranhamento, causando abalo nas concepções apriorísticas.
Strassburger (2007, p. 9) diz que a “suspensão provisória dos juízos faz-se cúmplice
aos inéditos. Aspectos de outro, até então desconhecido, revela-se no pretérito imperfeito das
reconstruções a desvendar vontades e representações. Obra aberta as preliminares
investigações”.
Voltando à concentração, num determinado momento os percursionistas pegam seus
instrumentos e começam a tocar.34 Esse é o momento que até os caretas que estavam sentados
levantam rapidamente, colocam os roupões e as máscaras (quem ainda não os colocou) e aqui
o caos está montado. Este é o momento em que os corpos agem cadenciados pelos tambores;
o colocar a máscara embalados pelo ritmo das alfaias, bongôs e tamborins aparentemente dá o
play para o estado-metáfora, “já se está com os pés fora do mesmo chão”, diz um folião.
Olhares rápidos, movimentos de arrumar roupão, máscara, talco, sinos, pneus e tudo
mais que julgarem necessário. Euforia de dentro e de fora do ginásio. Ação, emoção, sente-se
que o coração começa a bater no mesmo ritmo do batuque dos Caretas. Tudo ao mesmo
tempo, a multidão, uma coletividade com a mesma intenção, o ser outro, o tempo/espaço
alternativo, quando o batuque começa, tanto de dentro do ginásio quanto de fora, os
inexplorados territórios anunciam-se. O ritmo é como um mantra (batida bem repetida) que
aciona algo no corpo mascarado. “É muito emocionante essa concentração, esse barulho de
tambor lembra os terreiros de macumba dos meus orixás! (...) parece que estamos em „outro
plano‟”! Diz Paulo.
Todas essas descrições fazem parte do processo para se vislumbrar outro momento, a
suspensão da vida ordinária. O que aparenta, é que eles sabem que estão face à ruptura da
33
Palestra conferida pelo professor Luciano Ferreira Gatti. “III Mario Pedrosa, „Walter Benjamin: crítica da
cultura e modernidade‟”. UFMT, julho de 2010.
34
Instrumento que usam em geral: pandeiro, caixa, gangorra, meia lua, polaque, triângulo, bumba, surdo,
bongô, alfaia.
52
dimensão perceptiva do comum. Quando o Bloco sai, a euforia se transforma no tiro da
partida para o novo tempo, espaço e percepção social, para o estado-metáfora.
3.3 Um, dois, três e...! À deriva pelas ruas
Os portões do ginásio se abrem juntamente com os olhos das centenas de curiosos que
ansiosamente os aguardavam. Start para o estado-metáfora, para a possibilidade dos
entremeios. O batuque e as máscaras marcando a ambiguidade e a desordem da troca de
cenários, vestimentas e tempo.
Figura 57,18: Bloco saindo da concentração
“Dá um frio danado na barriga quando vejo o Bloco se aproximando, dá medo. Acho
que é porque as máscaras são tão originais... Você não consegue enxergar além da máscara.”
– Conta Nádia, com arrepios e brilho no olhar.
Cleyton, um folião em meio ao desvairamento, pulando empolgado define: “A saída
do Bloco é essa loucura! Você só sabe como é esse sentimento contagiante, se você tiver aqui
como nós. Não tem como descrever. Pega a gente de jeito!”
Os foliões costuram a cidade, ressignificando os seus espaços antes ocupados de forma
convencional e com paradigmas bem fixados.
Sobre as questões da deriva, do tempo e espaço outro, é válido pensar nas situações
criadas pela Internacional Situacionista na década de 1950 que propunha uma nova forma de
vida urbana, na qual a principal atividade ou método é a deriva. “Todas as entradas são boas
desde que as saídas sejam múltiplas” (JACQUES, 2003, p. 24). No Bloco, o trajeto também
não é planejado, os foliões andam ao acaso e se alguns não percebem em que direção estão
indo, isso realmente não importa, se encontram por outras vias. A atuação dos foliões, a
53
composição dos personagens, é inesperada e aqui se encontra o perigo, a ambiguidade. Tudo
que poderia vir antes, previsto, predito, preconcebido, desiste. Nesse contexto, transita-se do
obscuro temível ao possível simbólico, caracterizando uma performance própria de uma
intervenção urbana. Na maneira de teatralização de rua no carnaval dessa cidade, além dos
outros elementos artísticos dos Blocos (confecção de máscaras, figurino, dança, música,
ritmo, etc.), são incorporadas subjetividades compostas por uma linguagem acessada
excepcionalmente através da linguagem artística (anímica). Atinge outra possibilidade de
realidade tão mais lúdica e suave que a vivida cotidianamente. A arte assim vivenciada cria a
capacidade de ser sem estar, ou seja, de abandonar racionalizações para produzir sentidos.
O folião persegue sua sensibilidade e se compõe de personagens (em geral monstros)
que nunca teria pensado, movendo-os na realidade habitual.
Até mesmo necessidades fisiológicas ficam momentaneamente em suspensão. Ivo diz
que é muito difícil sentir fome, pois “na euforia da coisa, ninguém nem pensa em comida”.
Ao ouvir o batuque dos caretas os moradores saem de suas casas. Pulando pelas ruas
os monstros-caretas param na frente dos portões e tentam assustar, jogar talco, fazer
palhaçada, gesticulando tanto quanto possível, já que em geral não falam, pois o capuz e a
máscara dificultam a saída da voz. De casa em casa, de parada em parada, vão performando o
monstro horrendo, trapalhão, erótico ou o monstro palhaço, em geral dançando ao som da
batida repetitiva. Cada atuação é única.
Os expectadores permanecem naquela relação de atração e medo, não sabendo se
aproximam ou tomam distância (já que, muitas vezes, o careta, a princípio, é simpático
estendendo a mão e chamando para perto, mas logo depois joga talco ou urra, gesticula
assustando). Sensações paradoxais se expressam claramente nas atitudes dos expectadores.
Estávamos sentados na porta da casa da minha avó e a tia insistia para minha
priminha tomar banho. Ficou umas três horas insistindo e ela não ia. Quando
escutamos bem de longe, o “TUM-DUM-TURUM-DUMDUM” dos Caretas,
minha prima levantou bem rápido, correu para o banheiro e ficou tomando
banho durante mais umas três horas... (risos) O pior é que cansamos de falar
que „eles‟ já tinham passado a um tempão, mas o medo dela era tão grande
que ela falava que ainda não tinha terminado de tomar banho (Juliana Silva,
16 anos).
Já outra foliã diz que, acompanhando o Bloco ou saindo da casa, quando escuta o
barulho, “se não levar um talquinho, não tem graça”.
Vicente, um folião que sai no Bloco desde os anos 80, declara:
54
O medo sempre foi um ingrediente fundamental na mágica dos Caretas. É
algo inexplicável! Pode ser seu melhor amigo, mas quando coloca o roupão e
a máscara, parece que não é ele mais. Até mesmo para mim que estou de
Careta também.
As máscaras variam de bichos, monstros desconhecidos, até paródia de personagens
conhecidos. Não existe máscara repetida. O roupão acompanha a máscara. Se for monstro,
colocam travesseiros, pneus, e tudo mais que puder dar uma aparência monstruosa; se for de
“Bin Laden”, colocam metralhadoras de brinquedo, roupão de árabe, etc. Outro personagem
que aparece em grande número é o travesti. Este por si só configura uma hibridação de
gêneros, misturas de roupas, vozes e trejeitos. Além de todos se “travestirem” de alguma
forma, muitos homens se travestem de uma feminilidade exagerada.
O exagero é outro atributo marcante nos Caretas, os foliões que saem de travesti
colocam peitos e bundas exagerados, roupas curtíssimas, saltos altíssimos. Os que querem
parecer mais monstruosos enchem o roupão com acessórios que darão uma imagem
descomunal, transbordante, como ilustram as fotos. Os que querem emitir medo usam
pinholas ruidosas de vaquejada, polaques35 amarrados nos corpos, latas com pedras amarradas
nas canelas, etc.
35
Espécie de sino usado no pescoço de cavalos e vacas.
55
Figura 19,20, 61,22: Criatividade dos monstros de Caretas
Ivo declarou que aproveita o momento que está com a máscara para “azarar” as
meninas, abraçar e tudo mais. Usa inclusive luvas para os parentes não identificarem. Sua fala
e a da maioria dos foliões quando questionados sobre esse aspecto do proibido na vida
ordinária e permitido com a máscara revela desejos enclausurados.
Os comportamentos e as histórias contadas definem expectativas que no cotidiano
jamais seriam apresentadas de modo tão direto, com tanta franqueza e despojamento. Sem
medo de repressão a espontaneidade se expande. Podemos fazer uma conexão com a música
sobre máscaras de carnaval de Chico Buarque, “Noite dos mascarados”, na qual o uso das
máscaras e disfarces motiva o folião a vivenciar um momento pleno de inconsequências, que
não admite questionamento. Nessa música existe um momento tedioso que seria antes do
carnaval, um momento neutro, onde a estrutura está suspensa por um tempo, que seria durante
a concentração e passagem do Bloco; aqui acontece a inversão da situação inicial, um
momento intermediário onde uma situação extraordinária (de morte social) é estabelecida.
Este é o momento que tudo pode acontecer, tudo é permitido, pois os mascarados não têm
identidade nem função social estipulados, não têm parentes nem amigos, é um ser liminar,
poderoso de certa forma, pois poder fazer o que se quer já estimula a sensação de poder,
quanto mais poder fazer o que é proibido.
Da Matta (1977, p. 34) diz que o ato de despir-se (das roupas diárias) vale por um
“deixar revelar-se”, um soltar-se na sua própria fantasia, utilizando o corpo, esse instrumento
56
fundamental de todo o ser humano. Um momento em que todos estão se “esbaldando”, “se
jogando”, “se arrebentando”, expressões estas que remetem ao uso e abuso do corpo, numa
alusão significativa a um momento onde os homens estão “interagindo sem seus mediadores
rotineiros, apenas utilizam o seu próprio corpo: braços, quadris, pernas, voz, face, gestos”.
Enquanto na vida diária a prescrição é o resguardo, o comportamento restrito e altamente
consciente do corpo, pois as pessoas devem “ter modos”, no Bloco acontece a destituição do
corpo social.
“O melhor era azarar as meninas! Ninguém sabe quem é, e nessa hora a gente tem
chance de pegar em todas!” (Cleyton, 28 anos)
Abdias Lopes articula:
Aqui, as „patricinhas‟ e os „mauricinhos‟ se entregam no Bloco. Como
ninguém sabe quem está atrás da máscara, pode ser aquele „pé rapado‟,
„mandioqueiro‟36 que a „patricinha‟ falou mal e tem até nojo, que pega na
mão dela, conversa, ri e até chega a ser simpática com o Careta. Acho que
deveria ter um estudo sobre esse fenômeno.
Se na Idade Média o estilo carnavalizado das festas populares servia como uma
“segunda vida” que permitia aos participantes estabelecerem relações novas, como elucida
Bakhtin (1993), no Bloco essas relações e atitudes novas também reaparecem. Com a máscara
todos cumprimentam todos, o assistente de obras pega na mão da esnobe burguesa. Em outros
casos, basta apenas a moça que sempre passa despercebida pelos rapazes fazer uma
encenaçãozinha monstruosa na frente deles que ganha a atenção, o sorriso e a admiração na
certa. Existe uma aproximação e até a possibilidade de cumprimentar uma pessoa, abraçá-la,
tocá-la, encontros que fora do roupão e da máscara nunca se dariam. Há a abolição das
relações hierárquicas e a forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos
normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis de sua condição, sua
fortuna, seu emprego, sua idade e situação familiar.
Essas circunstâncias podem despertar uma dimensão diferente para o olhar sob a
máscara. As pessoas têm resistência em cumprimentar, olhar e até mesmo puxar uma
conversa, já por debaixo das máscaras a interação social é mais desinibida, despretensiosa e
despreconceitualizada. Até porque seria difícil ter um conceito pré-estabelecido sobre um
monstro de careta, ele não tem sexo, idade, status social, parentes. Bakhtin caracteriza esse
ambiente como “o caráter universal, a concepção profunda do mundo” (1993, p. 14).
36
Expressão usada para designar os moradores de um bairro pobre de periferia, conhecido como Mandioca.
57
Durante o carnaval nas praças públicas a abolição provisória das diferenças e
barreiras hierárquicas entre as pessoas e a eliminação de regras e tabus
vigentes na vida cotidiana criavam um tipo especial de comunicação ao
mesmo tempo ideal e real entre as pessoas, impossível de estabelecer na vida
ordinária. Era um contato familiar e sem restrições, entre indivíduos que
nenhuma distância separa mais (1993, p. 14).
Liberados das normas correntes, da etiqueta, dos costumes, esse clima polifônico cria
um tipo particular de comunicação, incluindo linguagem de gestos abolindo a distância entre
os indivíduos em comunicação. Como dito, muitos caretas não falam, somente gesticulam
demonstrando
simpatia,
aterrorizando,
fazendo
palhaçadas.
Seu
efeito
sobre
os
“espectadores”, que mesmo sem o roupão e máscara participam do mesmo ambiente
carnavalizado, possui uma força incomensurável, provoca sensações diversas. Aparentemente
o que se destaca nesse ambiente mascarado, são as sensações experimentadas, provocadas por
alguns e sentidas por todos que se permitem.
Na opinião de Benjamin (apud FICHTNER 2000), o gesto amplia o campo semântico,
produz multiplicidade de sentido, ou seja, o gesto, diferentemente da linguagem falada, não
tem a intenção de transmitir uma verdade para o expectador. Provoca a justaposição de
elementos heterogêneos. A linguagem no Bloco não necessita ser polida nem observar os
tabus.
Ivo (um dos organizadores) me disse que os organizadores também saem mascarados
para que os foliões não fiquem “alcaguetando” um ao outro, ou seja, existe certa organização,
mas enquanto o Bloco está nas ruas não querem repreender ninguém, só cuidam para não ter
violência. Nesse ínterim, muitos aproveitam para cheirar lança perfume, beber bastante,
praticar sexo, etc.
Vão girando a esmo pelas ruas por mais de duas horas em geral. Mas o tempo se torna
outro, não se vive o tempo linear, cronológico. Alguns dias o trajeto e o tempo prolonga mais
que o outro, a duração é eventual.
3.3.1 O Tempo
O tempo do ritual, assim como da arte, é cósmico. Pode haver um prolongamento
quase indefinido de um único momento. Há um desdém pelo tempo cronológico, os ponteiros
socialmente construídos são provisoriamente apagados e o tempo cósmico é valorizado. Esse
tempo tem relação com os momentos de vivência intensa, que marcam, e que, por isso, podem
abrir fendas na imaginação. Podem produzir desejo e o desejo subsidiar alguma criação.
58
Para Henri Bérgson, nossa percepção habitual só mostra do real aquilo que nos
interessa para agir sobre ele. Quando nos ocupamos do tempo, só o percebemos como
momentos sucessivos sobre a linha imaginária; quando nos ocupamos do movimento,
percebemos os objetos que se movem a todo instante como imóveis num ponto do espaço e
fixos num ponto da linha temporal. Para o filósofo, no entanto, isso não dá conta do que há de
mais profundo no real: o processo pelo qual o objeto se move e muda, transformando-se no
seu evoluir temporal. E mais, propõe que o substancial da realidade é a sua mobilidade e sua
temporalidade, de forma que “para conhecermos o real, é preciso alargar e aprofundar nossa
percepção, tal como faz a arte” (BÉRGSON apud AUGUSTO, 2000, p. 73,74).
De tal sorte, a arte parece ser a que se preocupou em dar ao tempo a dimensão que ele
passou a ter na contemporaneidade. Os diretores, cineastas, poetas, literatos, ocasionalmente
lançam personagens que vivem num tempo e espaço singular, não homogêneo, linear,
cumulativo, causal. Esse tempo parece ter entrado em surto ao se chocar, sem preliminares,
com os estímulos contemporâneos. A arte reconheceu a volubilidade vertiginosa no regime
temporal que assiste nossa atualidade. Na dinâmica contemporânea das cidades, o norte pode
começar por qualquer parte desde que se ligue ao sul ou ao leste em algum momento. De
modo que a nossa relação/percepção de passado, a vivência no presente, do instante e a
observação do futuro, assim como o imaginário de eternidade, se alteram bruscamente.
O tempo no momento artístico da performatividade do Bloco também pode ser
totalmente inesperado. Um bom exemplo de desestabilização na noção de tempo é o carnaval,
caracterizado por um evento que intervém na cidade, transgredindo a cronologia da percepção
comum.
Peter Pál Pelbart argumenta sobre o assunto dizendo:
Cada vez mais se impõe a evidência de que o tempo dito normal, em termos
subjetivos ou históricos – isto é, o tempo linear, sucessivo, cumulativo,
direcionado, professivo, homogêneo, encadeado, cronológico –, parece ter
entrado em colapso e esfarelamento. (…) O que se anuncia é um regime
temporal curioso: não meramente uma sincronicidade universal, mas, no
interior dela, a gestação de novas condutas temporais que alteram o estatuto
da memória, da repetição, da gênese e, sobretudo das três dimensões do
tempo – afetando assim, forçosamente, nossa relação com a ideia de projeto,
de história e, principalmente, de sentido. (...)
O que está em jogo é uma abolição de uma direção de um sentido do tempo,
em favor de uma multiplicidade de flechas, de direções e de sentidos. Ora,
não seria o caso de dar voz aos tantos outros tempos, diferentes do tempo
encadeado da história, esses tempos que povoam a loucura, mas também a
própria 'história'? (2000, p. 46, 47).
59
3.3.2 O Espaço
A concepção de espaço também é redimensionada pelo desregramento habitual. No
Bloco os indivíduos travestidos de caretas muitas vezes entram nas casas que na “vida nãocarnavalesca” nunca entrariam, percorrem ruas que nunca foram e nem iriam. Muitas vezes
algumas pessoas até já passaram naquela rua de carro, mas o contato íntimo com o asfalto,
com a terra, a lama, os buracos da mesma rua, sobrepõe novas sensações sobre o espaço.
Além de ocorrer a descentralização das vozes que imperam naquele mesmo espaço físico, e
multiplicação de outras que não encontram “espaço” para serem ouvidas. Sob o efeito da
carnavalização, o espaço simbólico é deslocado para outra dimensão incomensurável, com
um olhar reinterpretado sob a máscara.
Figura 23, 24: Caretas- irreverência
Os espaços da cidade vão sendo reconstruídos como um novo caminho a partir da
passagem dos mascarados, agora sem nomes nem números as ruas e avenidas vão se
enchendo de entusiasmo, ritmo, cores, tensão. A ressignificaçao do espaço pode ser bem
visualizada quando o Bloco chega à zona meretrícia da cidade. Esse lugar, desde sempre,
incita questões ligadas ao profano, proibido, perigoso. Em Guiratinga não é diferente. Existe
uma margem simbólica entre a cidade e a chegada do bairro, como um limite imaginário, uma
linha fronteiriça; justamente o lugar onde os pais não levam as crianças, as mulheres
moradoras em geral não aparecem muito nas suas portas durante o dia, nem mesmo os
“frequentadores” fazem questão de mostrar o domínio sobre o lugar... Contudo, quando o
Bloco chega, a zona toma novo significado a priori, outra cor, outro ritmo; muitas mães
estavam com os filhos de colo lá; todas as crianças do Bloco dos caretinhas também passam
60
por lá. A falta de interdição, o clima carnavalizado, os ruídos do estado-metáfora, faz com
que o lugar crie um clima harmonioso e sem o peso que ele carrega no cotidiano. As esquinas
não são mais o alvo dos freqüentadores, elas se tornam lugar de passagem e da espera pelo
mascarado, já que se espera seguindo o barulho do batuque, ninguém sabe por quais ruas vão
chegar, a esquina é a opção de maior possibilidade já que eles podem surgir pelas diferentes
ruas da esquina. É muito interessante perceber a desinterdição que a potência da percussão,
chitãos e máscaras, causam no espaço e nas consciências; transgredindo a linha, ultrapassando
o limite do proibido e ressignificando um dos espaços mais lendários historicamente.
A experiência da ruptura do cotidiano no Bloco transgride memórias e representações
que os foliões possuem sobre aquele espaço, disparando questões subjetivas e releitura sobre
o espaço e tempo vivido diariamente. Celso Favaretto (2000, p. 114) afirma que “o espaço da
cidade tem a relação com a memória coletiva, com os espaços, linhas de força que organizam
e orientam a atuação na cidade.” A deriva dos foliões possibilita a variação de caminho, a
desorientação da atuação, a possibilidade do casual ao invés do causal e consequente
singularização do olhar. Vivendo momentaneamente essa estado-metáfora, alguns lugares da
cidade somem, viram lugares de passagem, liminares ou não-lugares. “No momento se
distancia, interfere e desestabiliza, acentua algo que lhe é próprio (a cidade)” (2000, p. 114).
Eventos são intervenções, regradas ou extemporâneas, que num lugar preciso
permitem a intersecção de falas, tempo e ações. Simultâneos e descontínuos,
esses elementos desdobram e reiteram gestos e atitudes que exploram o
instante da apresentação. Nas artes, acentuam a temporalização do espaço,
tornando espesso o fugaz. Completa o autor (FAVARETO, Ibid., p. 114).
O efeito de desmascaramento de si que as máscaras operam, é de desviar o destino
previsível do personagem cotidiano, já que o ser humano tem subjetividades nômades e, no
entanto, vive no homogêneo. O folião deixa o campo das representações do real para pairar
por outro espaço/tempo indizível, o lugar do sonho, não menos legítimo que qualquer imagem
que a realidade habitual nos ensinou a enxergar.
Aproveitando o ensejo do sonho, é interessante conectar ao objetivo da pesquisa a
analogia que Artaud faz do nosso olhar não-cotidiano com o sonho: “Quando tudo nos leva a
dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é difícil acordar e olhar como num sonho,
com olhos que não sabem mais para que servem e cujo olhar está voltado para dentro”
(1993, p. 6).
Se tomarmos os conceitos benjaminianos de limite e limiar para uma leitura do
território dos fenômenos de suspensão do cotidiano com o vestir a máscara, este estaria no
61
tempo descontínuo do limiar, no qual “as fronteiras se desvanecem, os objetos se fragmentam,
o Eu se descentra e a consciência fica suspensa”. Este, segundo Eliane Fonseca, é quando
irrompe o estado de arte, próprio às formas significantes, cujo paradigma, para ela, são as
partituras musicais. Para Walter Benjamin o instante limiar é um salto no qual passado e
futuro se encontram e se condensam no instante que corta não um presente acumulado, “mas
um presente que se faz dos instantes que correm, fluidos e incessantes, por entre os limiares,
atravessando umbrais e mais umbrais” (apud FONSECA, 1998, p. 135).
E assim o desvairamento provocado pela “psicose coletiva”, como argumenta um
professor muito engajado nas questões turísticas da cidade, João Antônio Pereira, vai
deixando branco os corpos dos mais desavisados, dando voz e vez aos mais marginalizados e
apagando o caminho de casa.
Um folião contou sobre a lenda do chitão:
Nunca me esqueço da lenda do chitão que o folião que estiver vestido com o
roupão de chitão não pode se abaixar e olhar por entre as pernas, caso isso
aconteça o folião visualiza o Capeta, verdadeira visão do inferno, coisa de
criança, mas mexe com a gente.
Depois de algum tempo em que o Bloco já voltou para o ginásio e se dispersou, ainda
vão passando pelas ruas os “pedaços de caretas”. Roupão pela metade do corpo ou nas
sacolas, capuz nas mãos, máscaras na parte de trás da cabeça que ao passar de costas remonta
um personagem que se foi, mas resiste em deixar de ser.
Uma foliã, Maria José, dizia:
No Bloco a gente tira a máscara do armário para brincar de ser feliz, é
maravilhoso! A gente fica mais jovem, parece que volta a juventude. Quando
acaba, a máscara e a roupa volta para o armário, mas não parece que é lá o
lugar dela... Mesmo assim quando abrimos o armário no meio do ano parece
que por um instante que a própria máscara e roupa nos leva pra lá de novo,
mas ao fechar a porta encaramos de novo a vida.
Em algum momento escrevi que o Bloco não tem roteiro pré-determinado, depois fui
informada pelos organizadores que existia um trajeto planejado – o que, a princípio, me fez
acreditar que eu havia me enganado. Contudo, me enganei ao acreditar que o fato de haver um
trajeto planejado implicava necessariamente no fato do Bloco não estar à deriva, ao contrário,
a característica de meandro, de esmo que dizia, ainda assim se afirma a partir do momento
que se pensa no olhar do mascarado. Eu disse isso provavelmente porque ainda não tinha
62
vivenciado o olhar de dentro e, quando o organizador do Bloco me disse que eles fazem sim
um roteiro que os percussionistas guiam, surpreendeu.
Explico melhor – Acompanhando o Bloco na carroceria de um carro, esperando pelas
esquinas (já que acompanhar por de trás não é muito caloroso, já que muitos carros
acompanham e chega um momento que nem o barulho da percussão não se escuta, quanto
mais ver os mascarados), numa das esquinas o dono do carro disse: “minha casa fica logo
ali!” Outro moço que também estava na carroceria corrigiu: “Tá louco Lauro! Sua casa está
do outro lado da cidade, maluco!” Logo percebi que a idéia de meandro e perda da noção de
espaço existe, por mais que tenha um roteiro pré-programado. Mais a frente ele percebeu o
desnorteamento e ria muito de si mesmo se intitulando louco. Esse episódio leva a crer que os
meandros caminhados pelo Bloco desvia também o caminho das pessoas que querem
acompanhar, até mesmo nos carros, e induz todos a
praticar o desvirtuamento,
desnorteamento, de distorcer o caminho fixo no olhar e no agir.
A análise de Calabrese sobre o indefinível, impreciso, volta-se para as falas dos
entrevistados no Bloco. Entre uma fala e outra estão as palavras “indescritível”, “incrível”,
“inexplicável”, etc.
“Quando se abrem as portas do Ginásio, é uma loucura total, coisa difícil de
explicar...” André (20 anos).
“Chegar perto dos amigos, da família e eles não te reconhecerem, é uma
sensação indescritível!” Fernanda (34 anos).
E é por ali, por outros lugares da imaginação que os mascarados vão compondo novas
sinfonias e desconstruindo as convenções da vida regrada cotidiana. Quando os Caretas se
despedem do roupão e da máscara, e encaram a realidade padronizada, não deve ser um
retorno, pois não só a parábola chinesa diz que “nenhuma água passa duas vezes no mesmo
rio”, mas eles se despem da loucura mascarada, e ressignificam a próxima estação que é a
volta para casa, pois estão aliviados e com energias extravasadas para um devir. Perfaz um
espectro de representações e sentidos ressignificados para a vida, a festa, o riso, a dor.
A posição que o Bloco ocupa na cosmologia desse lugar e sua situação carnavalizada
se distingue por um caráter não-oficial, antiestrutural, polifônico e desprendido das funções da
vida formal, limitada, planejada, definitiva. 37 A construção da máscara e a performatividade
37
No ano de 2002, a Secretaria de Estado e Turismo (SEDTUR), em parceria com a EMBRATUR, realizou o
Inventário da Oferta Turística da Região Sul de Mato Grosso e uma das atividades considerada destaque por seu
ineditismo foi o Bloco dos Caretas. “Nunca vi nada igual por todos os lugares por onde andei, tenho saudades!”,
disse um turista.
63
do corpo-monstro elabora ainda sensibilidades e percepções artísticas, de criatividade, nos
foliões. De tal modo, a manifestação se configura como um tipo de intervenção urbana que
provoca ruptura com os paradigmas ordinários da vida e da cidade. Os indivíduos são
capturados pelo processo de carnavalização, instrumento privilegiado para transposição do
cotidiano. Dessa maneira, tendo em vista a proposta da pesquisa, o objeto empírico escolhido
veio de encontro aos objetivos e hipóteses a respeito da singularidade, do estado comunitário,
da experiência, da processualidade e do potencial necessário da arte inserida na vida.
Finalmente o ato dos foliões experienciarem outro corpo, esconder seu rosto cotidiano
e a possibilidade de mostrar o que não se pode na vida ordinária, modificar o gesto, o andar,
afinal, as múltiplas possibiliddaes de ser, tem a capacidade de ser uma "experiência
formativa" (conceito de Turner, ou seja, manifestação expressiva de caráter processual através
da qual "significados que informam o repertório humano vital do pensamento, do desejo, do
sentimento são colocados em circulação") (TURNER & BRUNER, 1986, p. 37).
São colocados em circulação, ou surgem até mesmo para o performer-careta, que
anteriormente não teria condições de vislumbrar outros “seres” que o compõe, de perceber
expressões no outro, que por não saber que é você, pode agir de forma muito diferente da qual
age normalmente com você. Vislumbrar outras possibilidades de realidade, de sociabilidade
poderá tocar em algum ponto, que desperte ou crie aspectos de singularidade que nem ele
mesmo imaginaria. Afinal, no processo de criação do monstro de Careta do Bloco há a
necessidade de abandonar as referências do saber constituído, de procurar outros “seres” para
mostrar na rua.
O experienciar um rosto novo sem a obrigação de representar seu papel diário,
inevitavelmente poderá trazer novos significados para seu olhar por fora da máscara
posteriormente na “reagregação” ao mundo cotidiano. Quando o Careta coloca um salto alto,
a experiência de ter passado aquela sensação fará parte do seu repertório subjetivo, e assim
por diante.
Por fim a máscara parece que foi a sabatinada para o anúncio ao estado-metáfora. Ela
é o detalhe-foco, ou suporte necessário, no caso do Bloco, para o encontro com a suspensão
da vida cotidiana e consequentemente tocar o plano das singularidades. Observando agora em
plano-geral para o ritual em si da performatividade dos Caretas (que, a propósito, se dá numa
constituição coletiva), tem algo a contribuir com o objetivo de ultrapassagem do “personagem
cotidiano” e experienciar um compartilhar único. Pois, é nesse ambiente comunitário, onde
64
um ator social se integra com o outro sem as separações que a vida ordinária tanto destaca,
nesse ambiente destronado de hierarquias, que se traspõe as fronteiras do cotidiano e as
instâncias da vida se põem a interligar.
No transporte que a arte proporciona para outra dimensão do ser, questionando o
tempo que construímos e tanto nos sufoca, o espaço que habitamos e tanto queremos
ultrapassar, nas metamorfoses do Careta, no exercício de estranhamento do íntimo, o
indivíduo pode luzir subjetividades singulares. Ultrapassar, essa é a chave para o duplo de
Artaud. Ultrapassar os limites do corpo orgânico, ultrapassar a separação entre arte e vida, as
grades da cultura que aprisionam, a consciência que cega.
O silêncio, por vezes, diz muito além do que podemos imaginar, olhares
sorrateiros, nervosismo, excitação; start! som ritmado de tambores, cores,
fantasia... vidas gerando vida e inebriando a alma, cinzas que ficam na
quarta, na quinta, nas esquinas, no ventre das meninas... cinzas que fazem
sentir renovados, brincando de rei, de capeta, de anjo mau, de “viado” vão
compondo várias sinfonias. Máscaras que, por vezes, escondem o que
sempre foram e revelam o que gostariam de sempre ter sido. Máscaras da
sociedade, máscaras das mortes anunciadas e das mal contadas, máscaras da
sede fabricada, máscaras da fome adiada, do sonho bom de carnaval. Entre
capôs, chitãos e chifres assustadores, ressuscitam “D. Cazuza” que brada
forte a seus servos: “Brasil, mostre sua cara!” e todos ensandecidos,
embasbacados pela magia do momento e embriagados pelo ritmo, narcisos
cantam e encantam a cidade. Careta é Carnaval! Mas não há carnaval por ali
sem caretas. (Poema de Jucedélia Dourado) [grifos da autora]
65
CAPÍTULO IV
4. O LIMIAR E A MÁSCARA
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou um intervalo entre o que desejo ser e os
outros me fizeram.
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Muito bem, até agora justificou-se a necessidade de espaços para o encontro de
singularidades, de elaborar um compartilhar único, integrado e a importância da arte no
cotidiano. Discorreu-se sobre um estado de suspensão da estrutura cotidiana, o estadometáfora, como interstício para essa necessidade contemporânea de desvendar-se por outras
margens. O campo empírico demonstrou que a máscara e o ritual coletivo são fontes de
acesso às singularidades.
Agora é o momento de descobrir quais são os instrumentos que permitem ou criam as
condições para a vida insinuar-se e o cotidiano se transpor para um estado extraordinário. Ou
melhor, quais são as vias de acesso através das quais são obtidas as transformações, os
deslocamentos da vida ordinária?
Tomando como pressuposto a assertiva de Benjamin de que “nos tornamos pobres em
experiência de limiar”, e julgando que no processo limiar/liminar que acontecem as
possibilidades da construção do novo, das singularidades, do estado holístico, refletiremos
então sobre o acesso ao processo do estado-metáfora.
Como visto, as várias análises a respeito do carnaval vão no sentido da sua viabilidade
do encontro com a liminaridade, com o momento de comunhão, com a ausência de status,
hierarquias, enfim, com as possibilidades de (re)significação do real.
Sendo assim, o estado-metáfora só poderá ser propiciado com o desvencilhamento das
estruturas e estímulos cotidianos, de escolher uma relação distanciada dos consensos. Para os
limites dessa pesquisa, o âmbito teórico pauta-se basicamente pelas principais características
do conceito de liminaridade de Vitor Turner (1974), já que sua abordagem é um tanto
diferenciada.
66
Nesse ínterim, o limiar se conecta inexoravelmente com as sensações da arte. O meu
interesse foi diretamente analisar essa conexão. A propósito da arte e do objeto empírico
escolhido, passemos então a análise de alguns dos seus traços artísticos, começando pela
teatralização do Bloco dos Caretas pelas ruas com a performance, e posteriormente a análise a
respeito do frutuoso simbolismo da máscara.
4.1 Performatividade no Bloco dos Caretas
Pessoas moldam argila em busca de um rosto monstruoso. A argila é maleável e
facilmente modificável. Se três olhos não surtem o efeito desejado é só modificar e
transformar em cinco ou em um, afinal é um monstro e suas possibilidades de ser não tem
regra nem simetria. Metamorfose de seres que ao alcançar uma forma38 é o momento da
remontagem de papel machê; em tantas repetidas camadas que o rosto-monstro vai
penetrando no olhar do folião desencadeando conexões para encená-lo futuramente.
A pintura da máscara, a montagem de seus adereços, e, posteriormente, o roupão
(túnica ou mortalha), fazem parte do processo de dar forma a um personagem-monstro que vai
surgindo ao se vestir. Parte do personagem-careta é escolhida anteriormente no processo de
moldar a máscara, mas o “performer-careta” mesmo vai se dando momentos antes de sair, lá
na concentração, quando incorpora elementos como sinos, travesseiros, pneus, sapatos, que
muitas vezes são trocados uns com os outros, ou surgem no auge da concentração. Esse é
parte do processo de agir-formando-uma-persona ou de per/form/atividade de um careta no
Bloco.
Na experiência do Bloco dos Caretas as pessoas deixam suas vidas cotidianas,
regradas, planejadas e completas para vivenciar um momento de suspensão das regras, status,
situação social. Rompem com a vida codificada para dar voz ao sonho, à fantasia. Vestem a
máscara e desnudam o personagem cotidiano, alargando a possibilidade de experienciar um
novo olhar para as relações, para o tempo e o espaço socialmente construído e até mesmo para
si e para o outro. O Bloco de Caretas sai girando à deriva pela cidade, se deixando levar pelo
som dos tambores e atabaques, pelo riso dos espectadores em suas janelas e portões ansiosos
pela chegada do Bloco. Entre tensão e alegria, o público receia levar talco, mas ao mesmo
tempo sente-se atraído pelas roupas coloridas, badulaques ruidosos e máscaras expressivas. O
38
...e, diga-se de passagem, ao escolher aquela forma na argila, o indivíduo se identificou de alguma maneira
com aquele rosto, pois incontáveis são as formas que ele poderia moldar e escolher.
67
espectador/habitante faz parte da performance, à medida que essa vai sendo delineada em
meio ao contato com eles.
Do encontro entre um antropólogo Victor Turner e um dramaturgo Richard Schechner
surge um campo de estudos formulado nas interfaces da antropologia e do teatro, a
Antropologia da Performance que surgiu (ou está diretamente ligado) da Antropologia da
Experiência. Turner a define como uma vertente “pós-moderna”, já que ressalta o seu ensejo
de ruptura com uma perspectiva antropológica mais tradicional que estabelece uma análise
interpretativa "dicotômica" da realidade social. Esses autores estudam dramas da vida
cotidiana, ritual, eventos culturais, emprestando elementos cênicos do teatro. No caso do
Bloco dos Caretas podemos citar os figurinos, o ato de colocar outra máscara e “transitar por
outros mundos”, a mise en scéne, a questão da ambientação, a performatividade, o “sair da
linha”.
De acordo com o ponto de vista de Turner (1987, p. 77), performance é uma noção
interdisciplinar que busca evidenciar as coisas que escapam das classificações e dos
paradigmas da ordem. Ele considera que as performances podem ser situadas dentro das
situações "extraordinárias", portanto, momentos de interrupção da ordem social.
Dessa maneira o Bloco dos Caretas se situa dentro dessa concepção de performance, à
medida que os foliões colocam suas máscaras e performam um monstro pelas ruas
desestabilizando as relações causais da vida diária.
Consciente da variabilidade semântica e do deslizamento conceitual do termo
performance, (como não poderia deixar de ser, em se tratando de um termo reivindicado por
uma multiplicidade de campos e vozes disciplinares), o termo performatividade é usado aqui
considerando que a ação performática do Bloco pode conter características de ação um tanto
diferenciadas das performance art. Na verdade, elementos acrescidos, pois não deixa de ser
uma performance com suas características elementares de conjunto de ações que envolvem os
processos artísticos interdisciplinares, seu carater de acontecimento, etc., etc., mas o Careta
está formando um ser e agindo sobre ele em constante dinâmica e metamorfose. À medida
que um travesseiro cai, o Careta muda seu jeito de andar e consequentemente seu personagem
se modifica, o mesmo se diga de trocar a máscara com o colega, ou ao acrescentar crina de
cavalo na máscara, etc. Além disso, penso que a ação de formar o seu próprio rosto é um
elemento que enriquece a performance em si, literalmente considerando uma ação/de formar/a
si (per/form/atividade).
68
Josette Féral constrói o conceito de performatividade utilizando uma visão
antropológica, via Schechner, para quem o ato performativo caracteriza-se como um jogo
ritual sob três aspectos: being (ser), doing (fazer), showing (mostrar). “„Fazer‟ e „mostrar
fazendo‟ são ações. Fazer e mostrar fazendo estão sempre em fluxo, mudando todo o tempo”
(SCHECHNER apud MOSTAÇO, 2010, s/p.). Esse conceito demonstra o caráter de
processualidade da performance, é nisso que ela se foca, no processo.
Nesse contexto, o Bloco estaria permeando esses três domínios a partir do momento
em que o folião está sendo o monstro (personagem-careta), ele fez a máscara, o roupão, os
trejeitos, etc., e mostra o sujeito enquanto processo. Destaco ainda, tendo em vista a
literalidade do termo “per/form/atividade” (que inevitavelmente me denota “agir” e “formar a
si”), a relevância do processo de performatividade do folião engendrar espaços ativos,
principalmente no fato deles próprios construírem suas máscaras, seus corpos coloridos, sem
roteiro.
O “formar a si”, aqui, aponta para o sentido literal também. Nessa atividade de se
moldar, talvez o processo toque pontos de singularidades ou faça-a nascer. Turner diz que
através do processo de performance, o contido ou suprido revela-se. Ele usa o verbo
“espremer” (1982, p. 13-14).
Crapanzano (2005, p. 365) formula toda uma argumentação sobre como vias
paradoxais pelas quais a irrealidade do imaginário (que é o termo que ele usa para referir-se
aos estímulos do momento de suspensão da realidade cotidiana) “imprime o real na realidade
e por que o real da realidade compele essa irrealidade do imaginário”.
Esse momento
indefinido, ou essa indefinição do momento sugere perigo para a estrutura ordinária. Ele
acredita que todo esse arcabouço do além-cotidiano provoca abalos nos arranjos
socioeconômicos, políticos e culturais que nos foram conferidos.
Assim como Calabrese anunciou sobre a importância da imprecisão, do indefinido, do
nada, da não-utilidade, Turner (1974, p. 6) salienta que a “communitas e a liminaridade
representam os zeros e os mínus sem os quais não é possível a um grupo social computar ou
avaliar sua situação atual ou seu porvir num futuro calculável”. De tal modo, a antiestrutura
não serve apenas para manutenção da estrutura, mas é imperativo para questionar as
convenções, para desconstruir a unicidade da realidade 39, vislumbrar outra forma de
39
Uma nova visão, chamada visão holística do real tem surgido sob influência das descobertas da Física
Quântica e da Psicologia Transpessoal. Representa na realidade todo um movimento de mudança de sentido, não
somente da ciência mais ainda de todo conhecimento humano. A Física Quântica, de um lado tem mostrado que
a nossa percepção de uma realidade concreta de objeto percebido por um sujeito é uma ilusão e que em última
instância, depois da fórmula da relatividade de Einstein, matéria é energia.
69
sociabilidade, fulgurar singularidades e construir subjetividades, e como diz Turner,
compreender as disjunções donde se origina o pensamento independente. “As pessoas podem
ser muito criativas em sua libertação dos controles estruturais” (Turner, 1974, p. 5).
Experienciar momentos de não-utilidade, de deixar-se levar, é abrir-se pra as
possibilidades. Para Crapanzano (2005, p. 367) o “impreciso, obscuro, é um componente
necessário, de qualquer pensamento, percepção e experiência”. E “são fundamentais à vida
social, aos seus procedimentos mais básicos: troca, passagem, reprodução e transformação”.
(Id., Ibid., p. 376, 377)
4.1.1 Da experiência
Para Turner (apud Dawsey 2005, p. 164) a “performance completa uma experiência”.
Experimentar é arriscar. O risco pode ser perigoso, mas sem ele não existiria o novo. O
próprio termo “experiência” tem significado literal de “correr riscos”, e o de “performance” –
“completar”, “realizar inteiramente”, segundo Dawsey.
A performatividade do Bloco garante o caráter de risco. Os foliões se arriscam ser o
que jamais seriam na vida ordinária. Se arriscam experimentar sair a esmo pelas ruas que não
tem mais destino prévio. Se arriscam experimentar ver seus parentes e amigos sem que eles o
reconheçam. Se arriscam formar um personagem que vai abrir espaços para criação e
interação com os que o assistem, arriscam, por fim, deixar de ser o que sempre foram. Por
esse motivo o estado-metáfora é arriscado e, às vezes, perigoso de acordo com Turner,
Crapanzano e todos os teóricos que se debruçam sobre o tema. Turner (1974, p. 5) deixa claro
que “podem ser perigosas do ponto de vista da manutenção da lei e da ordem”. Mary Douglas
(1966) argumenta sobre o indefinido, o sujo, a margem, enfim, tudo que foge ao cotidiano ser
fonte de perigo. Para Douglas é perigo para o sistema social repartir o poder de simbolizar a
vida com aqueles cujos caracteres e idéias projetadas são ambíguos e anômalos, ou seja, não
se enquadram na ordem social vigente, o perigo dessa ser deslegitimada .
Rolnik (1995) diz que o relâmpago-passagem poderá ser vivido pelo sujeito como o
Perigo de cair no abismo do desconhecido, e consequentemente, como terror inominável. São
momentos de vivência de se estar sem chão. Esses estão inseridos na dimensão trágica da
vida. O betwixt and between de Turner também é considerado um momento trágico.
Para cada travessia, há sempre um momento em que não se está num lado
nem de outro, em que não se é o que era nem o que será; pois, uma vez que
70
são discriminados, o contíguo nunca os atinge. Fica-se em suspensão –
pairando eternamente de permeio (Crapanzano, 2005, p. 378).
Em permeio num “entremeio”, assim como a “terceira margem do rio”, o “mestiço” de
Serres (1993). Nesse lugar mestiço Serres enfatiza a importância de se estar entre “o ser e o
nada”, onde a sensibilidade habita um lugar central e periférico em forma de estrela. “Entre
dois limiares quaisquer seguranças desaparecem” (1993, p.11). O mestiço ou terceiro
instruído de Serres é um lugar que não tem sentido para encontrar todos os sentidos, pois
abandona a cultura da língua e a rigidez dos hábitos e torna-se vários. “Porque não há
aprendizado sem exposição, às vezes perigosa, ao outro” (Id., p.15).
Não é por acaso que Calabrese se espanta com nosso medo do indefinido, do
incompleto. Para Rolnik (1995) a dificuldade psíquica atual maior é o desvigor para essa
passagem, o desvigor para suportar o desassossego, passagem para a dimensão trágica da
vida. Desse modo, a argumentação justifica a preocupação da pesquisa também na área da
psiquê. (Nada desproporcional, visto que a dissertação está num mestrado interdisciplinar).
Sair da ordem, se jogar no caos onde incógnitas aguardam acendimentos de
intersecção perceptiva. Arriscar ser incompleto para dar possibilidade do acaso o completar,
ou não completar. O risco potencializa a interferência no cotidiano do ator social40 e sua ação
política. A performatividade é um trabalho artístico vivo no qual tudo permanece imprevisível
e está para ser inventado. O risco da performatividade aqui é potencial à medida que permite
criar, podendo abrir canais, espaços, rarefações, que permitam tocar no ponto onde
singularidades podem emergir.
A experiência vai estimular, motivar, provocar o sujeito para agir sobre algo,
moviment/ação. A experiência da performatividade faz o ator social se mover para procurar
respostas às provocações. Incita outras condições, colocando o indivíduo ao acaso e
provocando situações outras, no nível do acontecimento para despretensiosamente desfixar,
tocar o sujeito para importunar a reagir. Respostas que, quiçá, servirá a ele mesmo.
Schechner (1995) entende a performance como comportamentos restaurados,
situações extra-cotidianas que reelaboram procedimentos repetidos do dia a dia inerentes a
ações ou condutas instauradas no cotidiano. A performance então restauraria esses
comportamentos a partir da experiência com fortuitos, o contato com elementos inovadores,
inéditos ou nunca antes empreendidos.
40
Além de gostar do termo, o usei por considerar oportuno o termo de Weber ator social, já que se conecta com
a discussão do do indivíduo que age (ação).
71
Nesse âmbito, o comportamento restaurado remete aos inúmeros “eus” que cada um
alberga dentro de si, com distintas funções, como age em diferentes situações ou diante de
momentos qualificados, dando resposta às motivações provenientes da vida; seja nas
condições íntimas, domésticas ou coletivas (SCHECHNER, 1995).
A performatividade está interessada, sobretudo, na originalidade da experiência
corporal, na natureza indivisa e voluntária do gesto, na atitude e na conduta do performer
numa situação extra-cotidiana que visa, primordialmente, desestabilizar tudo que é repetitivo
ou corriqueiro, perpetrando um ato inaugural. Inscrita na ordem das percepções, sua ação
poética busca a transgressão, a ruptura, o corte – tudo o que é marcado como diferença.
Enfim, responsáveis maiores pelas suas características ontológicas de gesto original, a saltar
fora da série das repetições, dos ensaios, das restaurações, segundo Schechner.
E aqui está o segundo ponto chave: possibilidades! Abertura para o novo, para
possibilidades nunca vistas, nunca pensadas, ou pensadas, porém não efetivadas, pois as
imagens novas, falam e agitam múltiplas possibilidades de viver e ver o mundo e,
principalmente, agir sobre ele. O espectador “difunda seus lampejos visuais e sonoros” sugere
Artaud (1993, p. 97), como se o teatro possuísse certo dispositivo que ao ser ligado se ativa os
sentidos e as possibilidades presentes ou futuras do espectador e ator.
Turner (apud DAWSEY, 2005, p. 165) pronuncia sobre a performance:
Fragmentos distantes uns dos outros entram em relações inesperadas e reveladoras,
como montagens. Figuras grotescas manifestam-se em meio a experiências
carnavalizantes. No espelho mágico de uma experiência liminar, a sociedade pode verse a si mesma a partir de múltiplos ângulos, experimentando, num estado de
subjuntividade, com as formas alteradas do ser.
Se ninguém tiver coragem de buscar experienciar o novo, ficaríamos para sempre
debaixo do guarda-sol de Deleuze e Guattari, consternantes e acomodados sob o espectro do
“sol” que outrem desenhou.
Sendo assim, a experiência de ultrapassar o guarda-sol, de experimentar o estadometáfora, acessa o pensamento independente/singular?
4.1.2 Singularidade
A coragem de ser singular é a coragem de se mostrar, de deixar emergir
potencialidades. Como visto no primeiro capítulo, com os estímulos da modernidade não
temos espaço para nossas subjetividades, só nos damos com nosso consciente, com atos
automatizados e “doados” pelo social. Mas como se mostrar numa sociedade onde se deve
72
fazer e ser 41 o que a maioria quer e pensa que deve ser? Todos devem seguir os modelos de
ideal. 42 Obstando assim, os espaços para criação já que o espaço vazio praticamente não
existe.
Todavia, observa-se que atualmente existe uma incipiente tendência para o indivíduo
se mostrar um pouco mais. Cansados dos ideais modernos de planejar a vida, descrente do
relato que a ciência dê conta da libertação do homem, do projeto de resolver todos os
problemas do mundo com vacinas, remédios e objetos práticos, o indivíduo não quer mais ser
o óbvio.
A lucidez de um artista, dramaturgo, visionário – Artaud, de procurar o si, o “corposem-órgãos”, o corpo caótico, não modelado culturalmente, um corpo cru43, - sem os vícios do
que já foi construído, o ser singular de cada um, - se faz cada vez mais atual. Foucault
também quer que os corpos se produzam individualmente, não docilizados. Mas reconhece
que é difícil pensar fora dessa “cela”.
Esse processo pode ser alcançado no estado-metáfora, um momento em que as regras
sociais não estão em jogo, não são levadas em conta as construções sociais confeccionadas
durante toda a vida, estado em que o ser se encontra num grau mais orgânico, eu diria. De tal
modo clama a performatividade do Bloco, essa expressão popular carregada de fazer artísticos
caracterizada pelo caos carnavalesco.
O caos é justamente a possibilidade, pois se nada é completo ou ordenado é aqui o
lugar da criação, da elaboração e mutação de subjetividades, e por que não dos lampejos de
singularidade? A arte é o caos também, assim como a performance ela não está no campo do
ordinário.
De acordo com Schiller (1992), “toda a arte é libertadora porque desaprisiona, elimina
interditos, pondo o sujeito em sua condição divina, fazendo nele existir um continuum
utópico” porque vai idealisticamente além do que é meramente dado. “É preciso educar-se
41
Por isso a performatividade pode ter grande potencialidade sobre a singularidade, pois o “ser” e “fazer” é
baseado (no que vem de dentro) na criação do ator, como Schechner quer, não nas imposições culturais, no que
vem de fora. E o “mostrar” está no campo de mostrar a si, não mostrar o que se deve ou o que os outros querem
que você seja.
42
Dorfles diz que o homem, o artista também de hoje, tem uma urgência íntima de velar, de mascarar sob a
égide de signos indecifáveis seus impulsos mais íntimos e privados.
43
Ver O cru e o cozido (LÉVI-STRAUSS, 2004). Nesse livro, Lévi-Strauss faz uma metáfora para explicar a
natureza como o cru, e a cultura como o cozido, o que já foi elaborado e modificado com a cultura. E define algo
interessante para se pensar esse “corpo cru”: “O motivo pelo qual a antropologia se interessa pela arte é que a
arte é uma parte da cultura e é, em mais alto ponto, a tomada de posse da natureza pela cultura.” A arte deixa de
ser apenas ilustração, mas que “é possível rearticular essas duas formas de pensamento (cru e cozido) ao se
perceber que qualquer arte é produto intelectual”. É a aliança entre o sensível e o inteligível (apud HAAG,
2008).
73
esteticamente para que em cada um se garanta a justeza e o rigor dignificante dos juízos
inexoráveis” (SCHILLER apud SILVA, 2001, s/p).
Para Artaud, crueldade é “tudo o que age” (1993, p. 96). Lembrando o que foi dito
sobre a literalidade do termo performatividade como agir, o teatro da crueldade contém
ideias boas para pensar a performatividade do Bloco.
A ideia de agir é categórica em Artaud, assim como na cidade subjetiva de Guattari
(1992). Artaud insiste na perspectiva de cultura em ação se tornando em nós como que um
novo órgão, um segundo espírito. Pois com a vida cheia de magia o mundo não é obrigatório.
“A pedra se anima porque foi tocada como se deve, assim o mundo dos civilizados orgânicos,
quero dizer, cujos órgãos vitais também saem do seu repouso, esse mundo humano penetra
em nós, participa da dança dos deuses.” Dessa maneira, nossos órgãos estando no estado
docilizado são para Artaud (1993, p. 6) “estátuas desagregadas”.
O teatro de Artaud é estudado na contemporaneidade com a intenção de romper a arte
como entretenimento. Nesse sentido acredito que a contribuição mais radical de Artaud para
as performatividades contemporâneas é a sugestão ou efeito de ruptura com fronteiras ou
tabus e a criação de um espaço de produzir de dentro de si mesmo. Além, obviamente, do
despertar para a necessidade de um momento de suspensão das estruturas sociais vigentes
para mensurar outras realidades e possibilidades. De fato, volta-se contra esse recalque que
sustenta a vida social cotidiana.
Esse autor nega a palavra, quer encontrar algo mais profundo, a palavra anterior à
palavra. 44 Esse “é o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo (...)
É uma performance que não exatamente suprime o discurso articulado, mas se dá às palavras
mais ou menos a importância que elas têm nos sonhos” (ARTAUD, 1993, p. 104).
Tirar a
palavra da sua estagnação psicológica e humana sem ideias limitadas, nem formalmente
esboçadas. A não ser ideias de “Criação, ao Devir, ao Caos que são cósmicas e podem criar
uma equação ente o Homem e Sociedade, entre a Natureza e os Objetos” (Id., Ibid., p. 102).
Ideias que vão agir na sensibilidade. Ela serve para encerrar órgãos, a linguagem, faz das
palavras encantações, encerra a boca para falar, dá sentido de uma intelectualidade nova e
mais profunda e “exorcismos particulares” (1993, p. 103). Podendo, assim, estimular
processos de auto-engendramento de singularidades, novas formas de subjetivação.
Suely Rolnik e Félix Guattari (1986), (1987) articulam sobre a “auto modelação da
subjetividade”: construir as próprias referências práticas e teóricas sobre a produção da vida
44
Nos termos de Jacques Lacan, seria um precipitado da ordem simbólica.
74
coletiva material e subjetiva, como exemplo ao nível sociológico/interpessoal: a invenção de
novas formas de sociabilidade doméstica, amorosa, profissional...
O conceito de autopoiése formulado na década de 1960 por Humberto Maturana e
Francisco Varela nos serve para pensar melhor o estado-metáfora. Para eles autopoiése seria
uma organização autoprodutiva, autopoiética, pois busca entender a partir da ideia de
autocriação a constituição recíproca das relações organismo-meio e não esse par sendo ponto
de partida, como geralmente entendemos.
A autopoiése é o engendramento de singularidades que engendram outras
singularidades. Se, a poética for um incomensurável tear, uma lógica que engloba
inúmeras potências, a autopoiése seria um dos aspectos fundamentais da poética. (...)
A potência do autoengendramento (FONSECA, 1998, p. 25).
O homem é um ser marcado, atravessado e transformado o tempo todo pelo
simbólico. Ainda assim, as referências singulares são pontos chaves para a constituição do
que os diferencia. E aqui não estamos preocupados com a diferença que pode identificar um
povo, uma atitude ou qualquer coisa do tipo. Pelo contrário, o corpo no estado-metáfora não
serve à criação de identidades. É a diferença que singulariza o ser em constante mutação e
pode gerar o novo, a criação, o descaso pela identidade definitiva, a ultrapassagem das
referências culturais.
A natureza auto-referencial do processo não pode ser confundida com fechamento ou
ausência de conexões. Significa apenas que a principal atividade do ser vivo é produzir
mudanças em si mesmo. Condições engendradas pela própria rede (Id., Ibid., p. 23).
Assim a expressividade clandestina pode descobrir vias de acesso às novas linguagens
e “horizontes plurais”, até então tidos como absurdos na ótica do bom senso, argumenta
Fonseca.
A partir da arte, do contato com seu estado-metáfora, os indivíduos entram num
processo de autopoiése, modelando-se a si mesmo, se autoproduzindo constantemente e
formando teias de significações que se encontraram uma poética. Para Eliane Fonseca (1998)
esse processo é potencial à medida que é uma repetição prospectiva, com função de criar
novas articulações e registro que antes não existiam e expressar “Eus guardados”. Dessa
maneira o cotidiano vai ficando melhor, pois o corpo-de-sonho, assim como a experiência
performativa, “é a arte de descobrir que pela poesia, o sujeito se debruça por sobre o seu
desenho – desígnio, de signos – do obscuro temível ao possível simbólico”.
A arte também precisa de um processo para fazer a ultrapassagem do cotidiano, e esse
processo é ritualístico. Arte também é ritual, pois o novo, a criação, só aparece com o
75
processo, e o processo é ritualístico. Lévi-Strauss (1982) diz que o mito é a estrutura
permanente que está no passado, no presente e no futuro. Mas o rito é mais que estrutura,
ele é processo, é processualidade, é potencia para vir-a-ser, segundo ele. Partindo dessa
afirmação do mestre do estruturalismo, imergiremos agora nas nuances da segunda assertiva
da problematização: o estado comunitário ou holístico.
4.2 Rito e Estado holístico
Ante o exposto, torna-se imperiosa e de grande atualidade a reflexão sobre como a
potência do coletivo, de um todo integrado, é capaz de levar o indivíduo a experimentar uma
sensação transgressora, que o despe de todas as precisões, classificações, papéis sociais e
estimativas.
De outro modo, é o caráter experiencial e processual do ritual de carnaval, bem como
sua compreensão como "unidade de observação" e "experiência concreta", que permitem
relacionar, neste trabalho, processo interrelacional, cultura plural, efeitos de arte, poéticas
contemporâneas e estado holístico, através do estudo da arte e do ritual.
Os rituais fazem parte da cultura humana desde que temos registros. 45 Os povos
antigos praticavam rituais com diversas intenções ou mesmo sem intenção, apenas para sentir
o prazer de dançar e cantar.46
Não obstante, essas ações coletivas são praticadas constantemente hoje, como salienta
Segalen (2002) em Ritos e rituais contemporâneos. A diferença é que nas sociedades nãoocidentais e nas “não-industriais”, tanto o rito, quanto a organização social, o trabalho, a arte,
não estão em instâncias separadas da vida como em nossa sociedade urbano-industrial. São
ações geralmente montadas num lugar público, no qual tudo se encontra interligado, trabalho
e arte, morte e vida, além terra e terra, etc...
Para o homem grego, a arte se presentificava na habilidade inteligente do fazer, o que
lhe garantia um princípio epifânico de totalidades entre si, pois que a transcendência da arte
deveria estar em cada realizar empírico humano.
Entende Schiller (apud SILVA, 1993, s/p) que a especialização constante do mundo
objetivo fez desaparecer o senso de sacralidade antes impresso no viver comum, estilo “que
45
Arnold Van Gennep define os ritos como situações específicas com comportamentos repetidos, no qual há um
momento de separação, margem e reagregação.
46
Apenas para ilustrar: Bandiama e o kumpo são máscaras africanas utilizadas em momentos muito especiais,
como em época de seca.
76
tanto faz regenerar sentimentos adormecidos no homem, pondo-o como instrumento estético
em conjunção do geral e do particular, entre o transitório e o permanente, entre o físico e o
metafísico.”
Durkheim chama atenção para os estudos de rituais como "meios pelos quais o grupo
social se reafirma periodicamente" (1996, p. 422). Esse autor tem uma abordagem que
privilegia os rituais não apenas como momentos de liminaridade, mas também como estados
da arte de cosmologias locais, nacionais e globais.
Para Lévi-Strauss o rito é a vivência, ou a prática do mito. Experienciar o tal estadometáfora, é alcançar a dimensão mítico-onírica, dimensão trágica, estado de risco na ausência
de garantias.
Os ritos exprimem dos mitos aspectos subjetivos da socialização de uma perspectiva
processual, própria dessas manifestações e nas quais diversos meios de comunicação de
conteúdos da cultura se combinam, tais como a música, a dança, as artes visuais, a ação
cênica, além dos aspectos propriamente lingüísticos, como a narrativa mítica ou qualquer
outra forma de expressão verbal. De acordo com Turner (1992) eles se combinam, produzem
sentido e expressam a experiência vivida como reflexividade transformadora.
Na opinião de Desmond Morris (1967), o indivíduo em ritual sugere uma animalidade.
Eu ponderaria sua afirmação dizendo que, em ritual, os indivíduos não se comportam,
necessariamente, como seres “civilizados”. O indivíduo some funcionando de outra maneira.
Pensando que o ego é apenas uma pequena parte da mente, se torna justificável que existe
muito além do sujeito.
Tucherman (1999, p.27) argumenta que forçamos as potencialidades da natureza aos
seus limites para procurarmos pontos de referência. Reencontramos nesse processo o deviranimal xamânico que já nos distanciamos, pois apostamos na excelência simbólica da razão
humana. Esnobamos orgulho narcísico dos corpos racionais até a explosão de episódios (bem
racionalizados) que expôs nossas falhas, imperfeições, como o holocausto, as guerras, que,
demonstrando uma alma cada vez mais artificial, introduziu a vergonha de ser humano.
Assim ela apresenta os monstros (que aqui relaciono com os monstros dos Caretas) como
outra experiência de corpo que, na oposição à noção de corpo racional, próprio e privado,
designa um corpo comunitário, que constitui o suporte de experiência das sociedades arcaicas
ou tradicionais e “funda uma forma própria de comunicação, respondendo de uma maneira
particular aos processos de singularização, mas também a questões e às pressões sociais”.
Vale lembrar que Foucault enumera as características das sociedades disciplinares pós
Segunda Guerra: identidade fixa, totalizada e definida (principalmente para si mesmo),
77
número de matrícula que indica a sua posição na massa. Essas características formam um
personagem para os outros e para si, tirando cada vez mais a possibilidade de se reconhecer
intimamente com sua constituição autônoma, mais ligada ao natural. O retorno a rituais
tradicionais, ou transes religiosos, e na minha proposição, a experiência artística, pode levar o
indivíduo a um contato mais direto com esse “elo perdido”.
No ritual o sujeito se desmancha, o ego se torna apenas uma ilusão. Visualizar o
sujeito em momentos de carnavalização é uma boa forma de imaginar tal fenômeno, por isso
insisto no motivo do carnaval. Há o descentramento da subjetividade, ela se desconserta, a
experiência deturpa a norma, emerge orgia de sentidos. No contemporâneo não se consegue
mais falar de sujeito como se falava em tempos modernos. É inviável continuar acreditando
na vontade do sujeito, a vontade de controlar tudo, dominar a qualquer preço, imputar a
medicalização da existência.
4.2.1 Do rito para o corpo comunitário ou estado holístico – Fim das fronteiras entre arte e
vida?
A ação social de se “juntar para agir”, de integrar fenômenos naturais com sociais, arte
com vida, é o que ressalto no ritual como fenômeno de deslocamento. Ou seja, a importância
atual dada as ideias de outrora, tidas como ultrapassadas, contudo sem fidedignidade de
composição, tudo somado a objetos contemporâneos. Com o passar do tempo e das ideias
modernas de segregação, o individualismo não deu tanta brecha para as pessoas se unirem
com o propósito de construir algo coletivamente.
Contudo, na contemporaneidade, percebe-se uma movimentação de “se juntar para
algo maior”, tantos processos colaborativos novamente, entretanto de forma reconfigurada. Os
coletivos são cada vez mais presentes, os aglomerados habitacionais, as ONGs, os rituais, as
redes sociais, entre outros.
Ou seja, promovem-se ocorrências para que as pessoas se
encontrem, e assim podem se ramificar os processos colaborativos. Surge também como uma
tentativa de trabalhar as relações entre os homens, assim como quer a “Estética relacional” de
Bouriaud (2009) – ao invés de obrigações sociais (diferente de festas obrigatórias, agora a
festa é como a do carnaval) estimula-se um sentimento espontâneo do “juntar-se para algo”,
ainda que esse algo seja se divertir (aliás, o que é muitíssimo válido), de ocupar os espaços
públicos e assim por diante.
Rituais são atividades coletivas que, segundo a antropóloga Segalen, “oferecem saídas
para as imposições regulamentadas do quotidiano, abrindo espaço à integração e propondo
aos nossos imaginários a escapatória de suas simbolizações” (2002, p. 69). De outro modo, o
78
espaço do apoio coletivo e extra-cotidiano “parece ter uma energia potencial que se
comunica ao longo da cadeia humana” (Id., Ibid., p. 85).
O fato desses desejos de tempos tão remotos ressoarem na atualidade 47, ou seja, da
contemporaneidade renovar estados-comunitários, reforça o que alguns autores descrevem
como tendência do tempo presente. Maffesoli em Tempo das Tribos (1987) articula a
importância e abundância nesse “juntar-se para algo” que define como neotribalismo ou
tribalismo pós-moderno.
Segundo o autor, na “pós-modernidade” os homens estariam adotando um ponto de
vista mais emotivo em relação ao mundo. Neste novo paradigma cultural o mundo estaria
entrando numa fase tribal, um volver a valores que a modernidade julgava enterrados. Eles
estariam dando lugar ao prazer e à emoção, ressurgindo uma sensibilidade diferente entre as
novas gerações. A proposta de Maffesoli (2000, p. 50) é de que este novo paradigma venha
substituir o paradigma do individualismo na compreensão da sociedade contemporânea, pois,
ele está “baseado na necessidade de solidariedade e de proteção que caracterizam o conjunto
social”. Desta forma, a metáfora da tribo da qual o autor se utiliza nos permite dar conta do
processo de “desindividualização” e da valorização do papel que cada pessoa é chamada a
representar dentro do coletivo. Essas novas tribos são caracterizadas pela fluidez, pelos
ajuntamentos pontuais e pela dispersão (MAFFESOLI, 1987).
Clássicos da sociologia, como Durkheim e Weber também já discorreram sobre o
tema. A analogia das “culturas do sentimento” de Maffesoli e o tipo ideal das “comunidades
afetivas ou emocionais” mencionados por Weber (1994) se faz apropriada. Weber destaca as
características dessas “comunidades emocionais” pelo aspecto efêmero, a composição
cambiante, a ausência de uma organização e estrutura cotidiana. Refere-se a uma vontade de
“estar-junto”, onde o que importa é o compartilhamento de emoções. Ideias que compõem
igualmente o que Maffesoli denomina como uma “cultura do sentimento”, formada por
relações tácteis, por formas coletivas de empatia. A “cultura do sentimento” preocupa-se com
o presente vivido coletivamente.
Remetendo também a “solidariedade orgânica” de
Durkheim (1999) onde o encontro de interesses complementares cria um laço social, ou seja,
outro tipo de princípio de solidariedade, com moral própria e que dá origem a uma nova
organização social.
O denominador comum entre os três é o desejo de “estar-junto”, da coletivização, um
estado-comunitário. Sentimento este, que Maffesoli (1987) chama de “aura estética” (o sentir
47
Guattari cria um termo para isso: ritornelos, descrevendo a maneira como o passado ressoa em espiral no
presente.
79
em comum). Dessa forma, na análise desse autor “pós-modernista”, o tribal surge como uma
espécie de compensação diante de uma sociedade cujos laços e coesão social são frágeis. O
neotribalismo corresponderia a uma espécie de resposta a uma sociedade fragmentada, fria,
individualista, competitiva e burocrática.
O desejo de “estar-junto” aqui corrobora o predicado da mistura, do hibridizar-se, a
diluição de fronteiras, atributos estes, já diagnosticados na cultura contemporânea. 48 Por sua
vez, a criação de lacunas, brechas ou canais de ultrapassagem são necessários para diluir a
fronteira da realidade ordinária e misturar a vida cotidiana com a extra-cotidiana, com a arte,
com o outro.
As cercas começam a se desmanchar, interpenetração da escola/família, trabalho, etc.
Aliás os “inter”, “multi”, “poli”, estão em alta. Inter-artes, inter-ação, poli-semântica, multidisciplinar, multi-estrutura, até multi-alimentação, são conceitos bastante explorados
atualmente em várias áreas. Visto que, o que é plural, polimorfo, polifônico, deve afetar a
cada pessoa de maneiras diferentes. Além de que, com a mistura não há espaço para
preconceitos, pois se a mistura dilui as fronteiras, dilui em consequência as definições,
possibilitando a passagem de uma situação para outra sem interrupção.
A mistura de ritual com arte alcança o deslocamento da dimensão rígida da vida
cotidiana para o lúdico e onírico. É o que acontece no Bloco dos Caretas. Nesse ritual não
existem fronteiras entre as diferentes artes que compõem o Bloco, dança, música, teatro, artes
plásticas (já que os próprios foliões fazem suas máscaras), performam um monstro, enfim,
rito, arte e vida interligados. O conceito de inter-artes amplia os procedimentos e as
estratégias estéticas, dissolve especificidades das linguagens tradicionais no amplo campo da
estética e permite a geração de novas formas de arte.
Esta relação holística é colocada por Maffesoli como uma tendência contemporânea. E
ainda sugere ser um retorno ao ideal comunitário, já que a modernidade tentou separar tudo.
Essa nova relação inaugura uma nova forma de sociabilidade 49.
Vale lembrar que se
Maffesoli estivesse lendo essas páginas, talvez abrisse um parêntese para colocar essa relação
como socialidade, tendo em vista que sociabilidade está mais ligado a funcionalidade do
indivíduo, com o mundo ordinário e tempo do trabalho, já socialidade com os desvios,
contracultura, com as formas da vida que se reconstituem continuamente.
48
Ver Gruzinski (2001), Michel Serres.
Essa nova forma de sociabilidade também é abordada por Deleuze e Guattari. Reformulação da idéia de
cidadania: direção à subjetividade holística, tudo se encontra junto economia + política + cultura, etc.
49
80
O fato de ingressar no coletivo já é por si uma espécie de diluição do ego,
destronamento do sujeito, da situação e dos deveres sociais. Mistura-se idade, condição social,
sexo, direitos, etc.50
Esse estado holístico, coletivo, é experienciado com a suspensão da estrutura
cotidiana. No caso do Bloco a máscara ajuda emergir pra essa outra relação de sociabilidade,
como será melhor abordado em seguida. Turner define como a suspensão de “seres humanos
totais”. 51
Nesse ponto, oportuno lembrar que Schiller (apud SILVA, 2001) afirmou que no ato
de contemplação de uma obra de arte, o sujeito pondo-se em suspensão52 integra-se
amorosamente ao que vê. Afinal, o que seria do mundo sem as categorias da arte? Um estoque
de técnica e ciência reduzido a relações causais, preso à lógica das relações utilitárias?
Bourriaud ressalta que as obras de arte contemporâneas já não perseguem a meta de
formar realidades imaginárias ou utópicas, mas “procuram constituir modos de existência ou
modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo
artista” (2009, p. 18).
4.3 Carnavalização: Um olhar através da máscara para além da realidade cotidiana
Sob as concepções do Teatro antropológico, Eugênio Barba diz que o ambiente já
existe e aparentemente não pode mudar, mas o ator, e “seu artifício da máscara, usa sua
presença para surgir um personagem na arquitetura que normalmente não somos capazes de
ver, por causa dos hábitos cotidianos e usos que não mais experimentamos com um olho são”
(1995, p. 71).
A afirmação de Barba “não mais experimentamos com um olho são” significa então
que nosso olhar cotidiano não é sadio? Não somos capazes de enxergar o mundo?
50
No caso do Bloco, a superficialidade (característica da relação contemporânea tão criticada) pode ser mais
potencial que as relações estabelecidas sem as máscaras. Afinal, já se disse, e com certa razão, que a expressão é
a forma de uma força.
51
No estado liminar “os indivíduos não estão segmentados em funções e status mas encaram-se como seres
humanos totais” (TURNER, 1974, p. 5).
52
Suspensão com a arte. O autor argumenta o valor da arte na vida sendo fonte de fruição e exercício de razão e
sentimento, justificando assim a arte como educação do homem. “A possibilidade da educação ética da
humanidade fundamentada no recurso estético, pautado na lógica das relações entre o sujeito e toda a sua
alteridade, intermediados pelo belo” (SCHILLER apud Id., Ibid., s/p).
81
O uso da máscara simboliza uma das alegorias mais marcantes do carnaval: a confusão
e dissolução das identidades pessoais e sociais, o triunfo da alteridade durante aquele tempo
convencionalmente reservado à transgressão. O vestir a máscara aqui, significa o renascer
com uma nova máscara social. Leach fala sobre essa situação „mascarada‟: “O indivíduo em
vez de dar ênfase a sua personalidade social e ao seu status oficial, procura disfarçá-los. O
mundo surge numa máscara, as regras formais da vida ortodoxa são esquecidas” (apud
MATTA, 1977, p. 26).
Para Bakhtin o motivo da máscara é o mais importante, complexo e mais carregado de
sentido no carnaval.
A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre
relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da
coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das
transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da
ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o principio de jogo da vida,
está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem,
característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos. O complexo
simbolismo das máscaras é inesgotável. Basta lembrar que manifestações
como a paródia, a caricatura, a careta, as contorções e as “macaquices” são
derivadas da máscara. É na máscara que se revela com clareza a essência
profunda do grotesco (1993, p. 35).
Ele diz que mesmo na “vida cotidiana contemporânea, a máscara cria uma atmosfera
especial, como se pertencesse a outro mundo. Ela não poderá jamais tornar-se um objeto entre
outros” (1993, p. 36).
Sugere-se que a “passagem” para experimentar essas sensações de “mundo às avessas”
pode levar a latências despercebidas 53, ou seja, o olhar sob a máscara sem foco, nem alvo,
olhar que parte de todas e para todas as direções (de cima para baixo, de baixo para cima, do
lado, etc.)54, contribui para um olhar reinterpretado das pessoas, de si mesmo, ou do mundo;
indica para um olhar além da realidade convencional, já que é um agir e enxergar de um ser
sem as obrigações do “personagem cotidiano”, como bem defende Goffman (1975).
A fronteira das máscaras, por sua vez, deve enfatizar muito essa transposição. Para
Bakhtin (1993) outro aspecto constante dos ritos carnavalescos são as situações de
desnudamento e de mascaramento, já que o ato de pôr a máscara significa assumir outra
personalidade ou esconder-se, assim como o de tirar a máscara significa mostra-se, exibir-se.
53
No dicionário, carnaval é definido como “o irromper de recalques por meio de danças, trejeitos, idumentaria
diversa da habitual”; “situação mascarada”. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda. 5º edição.
São Paulo: Cia Melhoramentos de SP, 1981.
54
Bakhtin define como as permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), a face e do traseiro (1993, p.
10).
82
Nesse ponto discordo de Bakhtin, pois entendo que o ato de por a máscara e assumir outra
persona não seria esconder-se, e sim mostrar-se, mostrar outros rostos próprios, de forma que
o tirar a máscara que seria esconder-se por sob a máscara social.
Várias músicas populares de carnaval abordam tal tema. A música de Coelho Neto
“Carnaval de Outrora” demonstra bem essa relação da máscara e o mostrar-se.
E era o Carnaval alegre da intriga – máscaras indiscretas que punham na rua,
às escâncaras, os poderes deste ou daquele, atracações gaiatas; vota e meia
um rolo, apitos, correr-corre...
Michel Maffesoli (apud STRANSBURGER, 2007) assim refere sobre a natureza dos
disfarces: “o sentido para a pessoa é fornecido pela pluralidade das máscaras que a
constituem, e pelo contexto no qual suas diversas máscaras poderão expressar-se”.
O conceito de “destronamento” de Bakhtin é providencial para as máscaras do Bloco.
Tudo que é elevado, tabu ou sério é ridicularizado e performado descontraidamente. Como
acontece com personagens conhecidos, Parreira, Bin Laden, George Bush, Papa Bento XVI,
são transformados em máscaras e alvos de paródia e de performance satírica. Não só os
personagens conhecidos, mas é uma paródia da vida cotidiana demonstrando ironicamente o
lugar que no momento os caretas não estão, a outra extensão de espaço que não o da vida
ordinária.
4.3.1 Máscaras e/no Teatro.
No teatro grego, a máscara servia para dar aos atores a sua personagem, a sua persona
(= máscara). Escondendo o rosto, os atores representavam usando apenas o tom de voz e o
gesto. A máscara reaparece na Commedia dell’Arte italiana, séc. XV, mas as máscaras
cômicas e trágicas do teatro grego ainda hoje representam, em conjunto, o teatro: afinal, os
atores, ao assumirem uma personagem, estão ainda a colocar uma “máscara” sobre si. 55
O objeto da máscara no Bloco „cai‟ impecavelmente como transporte para a
dramatização. O poder de desdobramento de uma figura, onde indivíduos que nunca tiveram
contato com nenhum curso ou teorias cênicas, deslocam do seu ser e performam figuras
monstruosas ou bizarras, é como “um outro revelado em você”, salienta Barba (1995, p. 109).
O autor diz que a máscara é uma maneira de viver o outro, de se transportar para outra
dimensão do eu, de desdobramento de si. É outra possibilidade de dar ao rosto uma dimensão
55
“Como heterônimos de nós mesmo, somos personnes...” (FONSECA, 1995, p. 126).
83
extra cotidiana ou de transporte para a teatralização, como faziam alguns povos em rituais
antigos que Eugenio Barba chama de “artes representativas tradicionais” (1995, p. 208).
Bakhtin deixa claro que os ritos de carnaval “por seu caráter concreto e sensível e
graças a um poderoso elemento de jogo, estão mais relacionadas às formas artísticas e
animadas por imagens, ou seja, as formas do espetáculo teatral”. Mas não configura
puramente arte, e nem puramente cultura popular, se situa “nas fronteiras entre a arte e a
vida”. Na realidade, é a “própria vida apresentada com os elementos característicos da
representação (...) Numa outra forma livre, ideal de vida, ressuscitada” (1993, p. 6).
O caráter teatralizado das máscaras é bem vivificado, por exemplo, no teatro japonês
nô, o qual se diferencia do teatro estético moderno pela característica ritualística e espiritual
do corpo e a ênfase na linguagem não-verbal. A máscara de nô é o parceiro do ator para
“flutuar entre o mundo da escuridão e a realidade”, diz Kusano (1988, p. 39). Elas são
transformadas de um objeto estático para um perfil vivo e sugestivo. Essas máscaras possuem
aberturas estreitas para obstruir a visão do mundo exterior, forçando o ator a voltar seus olhos
para o seu mundo interior. Eugênio Barba se refere ao teatro nô dizendo que:
...os atores usam o campo de visão diferente do usado na vida cotidiana. Sua atitude
física total é mudada: o tônus muscular do tronco, a pressão dos pés, dos olhos, o
equilíbrio. Com uma mudança na maneira cotidiana de olhar, eles são capazes de dar
ímpeto a todo um novo patamar de energia (1995, p. 105).
O que remete diretamente à reflexão de que esse patamar é que pode servir de
revigoramento/ “renascimento” no novo olhar através da máscara dos Caretas. Nas máscaras
dos Caretas além da abertura dos olhos impedirem a visão total, ainda trás o capuz debaixo da
máscara contribuindo não só para o olhar interior, mas para olhar o espaço físico de maneira
limitada, consequentemente reconfigurada.
Uma das críticas positivas de Benjamin (1994) em relação ao teatro de Brecht é a
questão de tentar enfatizar a artificialidade da obra, transmitindo a ideia que tudo que se vê,
não só no teatro, são relações artificiais construídas por homens, podendo assim, serem
modificadas pelos próprios homens. O homem é histórico, portanto não é um personalidade
imutável, assim como o ator troca de papel ou personagem o homem também pode. No seu
teatro, Brecht fazia os atores interromperem o personagem e comentarem sobre o próprio
personagem, assim como fazia uso de máscaras, tudo para romper com a unidade da ação e
desnaturalizar as práticas cotidianas, interrompendo para criar um elemento novo. Mostrava
que o homem pode ir se modificando, distanciando do personagem inicial. Incitando a
reflexão para a possibilidade de fazê-lo na vida real, no cotidiano. Questionar a própria
84
realidade era a intenção de Brecht assim como da arte em geral, e o artifício da máscara
contribui significativamente para tal intencionalidade.
As máscaras no Bloco também são um artifício pra provocar essa potencialidade que
Brecht salientava. Interromper a seqüencialidade banal da vida, para criar um elemento
subjetivo novo, questionar o cotidiano de uma forma a interrompê-lo pra criar algo novo.
Romper ou interromper o continum da vida diária é um pré-requisito básico para
intercambiar singularidades. Dispensar referências do saber suposto fundamenta o encontro
com referenciais de/em si.
Conseguir olhar além da realidade socialmente imposta já se faz relevante por si só, ter
uma segunda interpretação do mundo a nossa volta e de nós em volta do mundo. Contudo,
esse olhar não-oficial legitima o oficial à medida que o nega. Ou seja, se o nega luzindo um
novo olhar, acaba por afirmá-lo numa relação dialética. Nem por isso descarta toda a gama de
possibilidades na relação de um novo olhar, na relação de morte e renascimento recorrente em
rituais, como elucidaremos agora.
Para começar, se faz relevante salientar que a aproximação da análise bakhtiniana a
respeito do carnaval com o Bloco se faz basicamente nessa relação orgânica, coletiva e
visceral, na qual a sensação carnavalesca do mundo transpõe-se para uma sensação
corporalmente vivenciada, ao mesmo tempo experimenta uma outra dimensão mental da
realidade.
Tocar o plano das sensações também parece ser o grande atrativo de Ligia Clark. Em
sua arte não havia separação entre sujeito e objeto, havia sim uma fusão que fazia o corpo
vibrar. Uma arte que operava no micro-político, pois trazia objetos relacionais que ativava a
memória e
geravam sensações que
marcaram acontecimentos,
situando-se
mais
apropriadamente numa imbricação de vida e arte.
Não é novidade que os fenômenos liminares encobrem a disjunção no simbolismo da
transição entre morte e renascimento. Com o artifício da máscara, na medida em que um
mascarado olha para o mundo de outra maneira, experimentando outras percepções,
produzindo outros pensamentos, existe a possibilidade de alterar seu imaginário sobre o
mundo. Se não ressignificação, Bakhtin mostra que seria a renovação, revigoramento, o
momento que a máquina estrutural pára e os povos suspendem. “O carnaval celebra a
mudança e a renovação do mundo. (...) As festividades (de carnaval) têm sempre uma relação
marcada com o tempo, o tempo da morte e ressurreição, alternância e renovação” (1993, s/p).
85
Esse aspecto demonstra a relação restrita com os ritos de passagem enunciado por Van
Gennep (1978), a morte de um “estado” e “ressurreição” de outro.
Nesse sentido, Bakhtin lança luz sobre a hipótese de que ao colocar a máscara de
carnaval os foliões morrem e passam por um processo de renovação. O rosto agora sem
máscara não é o mesmo de quando saiu de cena ao se esconder sob a máscara. A fronteira
entre rosto (cotidiano) X máscara (arte, sublime) provocou um mundo de possibilidades, de
revitalização pelo aspecto regenerador e renovador da máscara, que recobre a “natureza
inesgotável da vida e seus múltiplos rostos” (BAKHTIN, 1993, p. 36).
Kusano (1988) também referencia a atmosfera de vida e morte no ritual da travessia
onde a máscara torna-se um rosto e o rosto uma máscara no teatro Nô. Onde a força do
inconsciente sobrepuja o consciente como um grito da natureza anuncia um espaço cósmico
de comunhão dos homens e da vivência no sentido mais profundo. Em sua passagem ruidosa,
os Caretas emanam diversas vozes, gritos de alegria e terror, de descarrego das energias boas
e ruins acumuladas na vida desvairada habitual. O teatro da crueldade de Artaud também usa
os gritos e urros com o objetivo de quebrar as amarras de consciência e logicidade com que
nos camuflamos/protegemos, procurando libertar a nossa outra face, o nosso lado inconsciente
e instintivo, a festa e a genialidade reprimidas, podendo ser um grito silencioso também,
interno56.
Um lugar onde as miragens e a sensação de se mover em direção ao nada,
sejam superados pelo olhar a desvendar subúrbios. A restrição intercalada
nas crises de cada um pode querer dizer coisas ainda sem nome ou referir
exílios, quando os contornos inesperados começarem a surgir
(STRANSBURGER, 2010).
A criação de um Careta, mais o ato de performá-lo, é o processo pelo qual o sujeito
usa o artifício máscara para transitar na experiência limiar. E aqui nessa zona limítrofe expor
a si e ao outro, articulando-se simultaneamente, nem sujeito nem máscara existindo a priori,
porém sendo a possibilidade da existência múltipla, de dar existência à diferença que
singulariza. Podemos chamar esse fenômeno de processo de desmascaramento de si.
O processo de desmascaramento de si, usando como suporte a máscara, desconstrói as
nossas interpretações automáticas para induzir formas descontínuas, espasmódicas de
percepção. Esse sentimento de embriaguez pode ser motivador de criatividade.57
56
QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud - Teatro e Ritual. São Paulo: Ed. Annablume, 2004.
Ver: RÖHL, Ruth Cerqueira de Oliveira. O teatro de Heiner Muller – Da Construção à Desconstrução. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1997. (p. 95,96).
57
86
4.4 Arte e vida
A performatividade recria comportamentos em relação ao seu contexto, sua interação
com a platéia, suas inter-relações sociais e políticas bem como seus contextos culturais. Para
isso deve-se deixar experimentar a não-utilidade, experienciar o risco.
A arte cruel é a arte da sensação. Sensação que gera efeito, sensação que belisca os
afetos e é vital. Barba (1995) diz que “a sensibilidade é colocada num estado de percepção
mais aprofundada”. Agindo nas sensações a performatividade adquire o caráter de micropolítica, pois resvala nos afetos que se fragmentando se liga a novas subjetividades. Por isso a
performance aparece como fenômeno de deslocamento para a vivência de arte e vida
interligados, para experimentar momentos de um estado holístico onde vida, mente, cidade,
homem/mulher, arte, pensamento, tudo se encontra junto, imbricado em um todo ininterrupto.
Intervindo no plano micro do sensível, a arte da performance intervém na realidade
sensível em constante mudança, provocando colapso de sentidos, enfim, provoca um
desordenamento interno por algum lugar, por algum lugar implanta um caos, o que pode gerar
mudanças. Por isso é vital! Necessitamos de caos interno. E o que parece é que a arte da
performance (como poderia ser outra também) e a máscara são chaves para rasgar o guardasol.
Turner (1987, p.79), ao buscar esclarecer os pressupostos da "antropologia da
performance", menciona Sally Moore, autora que defende o ponto de vista de que “a ordem
social não é determinada, sendo as categorias, portanto, flexíveis e manipuláveis”. Se até
mesmo a ordem social é flexível, quem dirá o ser humano. Ainda nesse viés, as
potencialidades da experiência performativa e o olhar através da máscara no Bloco não vão
apenas no sentido de provocar lampejos de singularidade no indivíduo, mas esses lampejos
podem flexibilizar inclusive a ordem social, a medida que flexibilizam o sujeito social.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque
vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano
também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um
mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com
o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes
encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os
mascarados, pois, era essencial para mim. (GOTLIB apud FONSECA,
1998, p. 131)
A declaração de Gotlib diz mais que qualquer argumentação. A máscara é o reflexo
dos inexplicáveis personagens na atualização descontínua das múltiplas faces. Um ponto de
87
vista nos imperceptíveis múltiplos disfarces. Strassburger (2007) afirma que há que se ter
plasticidade para descobrir as senhas às rotas e exceção. A plasticidade das máscaras e do
performer-careta que se expressam no roteiro sem roteiro do Bloco, dão inicio a uma situação
paródica e alternativa dos espantos consigo e com o outro.
A máscara parece ser o ponto principal para a travessia do cotidiano. Não é por acaso
que ela foi eleita como o símbolo do teatro. Se estivermos o tempo todo “representando uma
máscara social cotidiana” (GOFFMAN, 1995), então o rosto sem máscara poderia ser o que
está através da máscara do monstro. Lampejos do rosto sem máscara é o que se depreende da
análise.
A problematização que a priori parecia um paradoxo de os sujeitos necessitarem de
contato com estímulos particulares, ao mesmo tempo ser necessário estar integrado com o
outro em coletividade, se desvenda surpreendentemente como complementaridades. O
desmascaramento de si no Bloco dos Caretas é um ato individual que, a partir do momento
que intervém na cidade, se torna ato coletivo. Maffesoli diz que “O desabrochar de cada um,
no próprio seio do cotidiano, só pode valorizar o bem-estar coletivo” (1995, p. 71). Assim, o
estado holístico, o corpo comunitário, a máscara, a performatividade, são artifícios pra
despreender-se do chão e sobrevoar próximo as nuvens de singularidades onde arte e vida se
encontram.
88
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se o homem contemporâneo precisa mais que nunca atualizar suas subjetividades por
conta da multiplicação dos estímulos exógenos (como, por exemplo, na comunicação que
possibilita trocas antes não imagináveis, produzindo assim misturas físicas e mentais, as quais
a impossibilitam traçar origem narrativa e limites de identidade), os valores da “modernidade”
vão se tornando inusuais. Os sujeitos são vários possíveis, seus fluxos produzem a diferença,
pois as fronteiras vão ficando tão ínfimas que a proliferação dos híbridos é inevitável. Assim
outras situações e formas vão surgindo, obrigando o sujeito a inventar novas formas de
sociabilidade e de acesso a singularidades para se adaptar ao meio social.
A reflexão sobre inventar outras maneiras de sociabilidade, não é inédita. Há vários
artigos e teses de diferentes áreas com essa proposta. Como vemos em Guattari (1992) as
práticas sociais e subjetividades estão em construção. Segundo esse autor as dimensões dos
novos movimentos sociais vão no sentido de conceber novas formas de viver em sociedade:
luta para que o espaço público volte a ser público, não só fator econômico; afirmação de
outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções de mundo, pois que ao se
produzir essas outras percepções, altera-se o imaginário sobre o mundo.58
Visualizou-se essa tendência contemporânea em paradoxo com os modelos modernos;
como a pirâmide da desigualdade social, que encontrando seu cume, também se encontrou
sozinha, formando outra pirâmide acima ao contrário numa linha ascendente, porém crescente
em largura para os “reencantamentos” do mundo. A dissertação reforça as concepções de
Maffesoli (2007) ao declarar que na contemporaneidade começa a proliferação do hedonismo
e recuperação dos saberes sociais, do conhecimento comum, dos misticismos, etc., como um
“desafunilamento” da pirâmide.
Além disso, na contemporaneidade substitui-se a idéia de que é preciso não ter
modelo, para sim, inventar modelos, ou seja, a produção do futuro flui e não precisa
necessariamente ser ensinada. Alguns autores abordam sobre esse contexto, como Walter
Benjamin com o “gesto da criança” e Guattari com os “processos disruptores no campo da
produção dos desejos”. Maffesoli também contribui prevendo “agir sua criação sobre aquilo
que está „ao alcance da mão‟”. E mais, que esse processo pode “fazer da existência uma
58
A busca de novos sentidos, olhares, valores, realidades é uma tendência de acordo com Deleuze e Guatarri.
Eles ponderam sobre a articulação com outros processos de singularização, do corpo sem órgãos, o qual se
identifica por estruturas que subvertem as ordens das coisas e inventam sentidos e valores.
89
verdadeira obra de arte”, desvelando a possibilidade de vislumbrar outra maneira de estar no
mundo (MAFFESOLI, 1995, p. 68).59
As rupturas colaboram para um cenário em que as intersecções compõem uma poética
contemporânea. Nesse contexto, a preocupação com o objeto de estudo se fez
indubitavelmente atual, já que o mesmo se caracteriza como a ruptura com o cotidiano, como
um ponto de intersecção no modo de olhar cotidiano com outro modo lúdico de olhar, o que
posteriormente deve provocar um novo olhar, contribuindo assim para a dita poética atual.
Aparentemente caóticas, as cidades e os sujeitos são inseridos num tempo multíplice e
complexo, de significados variados, contraditório e fendido. Nesse ínterim, o homem
contemporâneo precisa cada vez mais renovar suas subjetividades, tornando vital o acesso a
singularidades. A realidade referencial foi diluída pelo craquelê de imagens que se entrelaçam
ao cenário atual, cedendo lugar à hiper-realidade, construída pelos espectros que permanecem
insistentemente no presente. Assim, esse homem não pode estar preso à realidade entendida,
e, etnocentricamente convencionada como única.
De acordo com a pesquisa, conclui-se que o espaço limiar do estado-metáfora é o
espaço para construções individuais, que ao longo do processo ganha legitimidade para se
tornar coletivo. Segundo Bourriaud (2009), na tradição filosófica materialista de Epicuro e
Lucrécio, os átomos caem paralelamente no vazio. Se um desses átomos se desvia do curso,
provoca uma colisão que vai engavetando o nascimento de um mundo. Assim nascem as
formas: do desvio e do encontro aleatório entre dois elementos até então paralelos.
Nesse sentido, Calabrese também afirma que o espaço vazio é prodigioso. Se não
desviarmos do guarda-sol, se não ultrapassarmos o corpo lógico, se não proporcionarmos
espaços para acessar singularidades, se não experimentarmos o perigoso e impreciso, nunca
criar-se-iam novos mundos. Entende-se assim, que a experiência limiar do estado-metáfora é
porta de entrada para esse desvio/ruptura, e a máscara seu artifício, pois é ela que encerra as
sujeições e concepções apriorísticas do “personagem cotidiano”.
A máscara foi o elemento mais democratizador do Bloco, elevando todos sem
distinção ao estado-metaforizado de olhar, escondendo a mulher quando ela não tinha esse
direito, a máscara é a terceira via, o mestiço de Serres... Nem homem, nem mulher, nem
bicho, nem ser humano, nem na estrutura social, nem na loucura total...
59
Para os limites da pesquisa propus uma experiência momentânea, que não por isso enfraquece sua
potencialização.
90
A máscara e a performatividade do Bloco, assim como a experiência coletiva, são
partes do que Dawsen chamou de “caos criativo, capazes de surpreender, com efeitos de
estranhamento, as configurações do real, energizando e dando movência aos elementos do
universo social e simbólico” (2005, p. 173). Para Dawsen embora elas estejam às margens de
processos centrais de reprodução de vida social, estas expressões liminóides promovem a
transformação das relações humanas.
Por meio de paradoxo, ambigüidade, contradição; de símbolos incomuns,
exagerados e, por vezes, grotescos – máscaras, indumentária, estatuetas –; e
pela evocação de realidades transcendentes, do mistério e de poderes
sobrenaturais, o liminar nos oferece uma visão do mundo, que normalmente
não enxergamos, cegados pelas estruturas usuais da vida social e
cultural (Crapanzano, 2005, p. 380).
Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é
difícil acordar e olhar como num sonho, com olhos que não sabem mais para
que servem e cujo olhar está voltado para dentro (Artaud, 1993, p. 6).
O ambiente já existe e aparentemente não pode mudar, mas o ator (assim
como o Careta e seu artifício da máscara) usa sua presença para fazer surgir
um personagem “na arquitetura que normalmente não somos capazes de ver,
por causa dos hábitos cotidianos e usos que não mais experimentamos com
um olho são” (BARBA, 1995, p. 71). [grifos da autora]
Para alcançarmos as conjeturas desses autores se faz relevante salientar a relação do
Bloco dos Caretas com a que Bakhtin define sobre carnavalização. Ele define expressões
carnavalizantes como uma relação experimentada concretamente num contato vivo, material e
sensível. E essa é, para ele, a “relação verdadeiramente humana”, a qual o homem “tornava a
si mesmo (BAKHTIN, 1993, p. 9).
Se nesse contexto próprio é que somos “verdadeiramente humanos”, que o “olho está
são” e que nossos sonhos não nos deixam “dormir”, conclui-se que a nossa posição na vida
cotidiana remete ao que Mauss chamou de “animais domesticados”, domesticados ou
docilizados (Foucault) pelos processos de aprendizagem das regras de sociabilidade, nossos
contratos sociais e demais convenções educadamente apreendidas no processo civilizatório.
Vale ressaltar a conexão dessa discussão, do processo de carnavalização e mascaramento,
com a hipótese da singularidade – o “tornar a si mesmo” remete a um sentido natural, a uma
impressão de acesso à singularidades, assim como a ênfase nas sensações.
Bakhtin ainda vai além: “a alienação desaparecia provisoriamente” (Ibid.).
É
interessante perceber a inversão das definições julgadas comumente: o humano aqui é o não
91
normatizado/civilizado;
e
a
alienação
é
justamente
esta estrutura
político-social
institucionalizada. Além do “olho são” mostrar o que não enxerga-se no olhar cotidiano
adoecido com as mazelas sociais.
De tal modo, podemos concluir que a forma na qual a cultura nos serve de referência,
ou os olhos habituais, civilizados, implicam um alto grau de miopia a ponto de não conseguir
enxergar mais o que se quer intimamente olhar, mas sim a perspectiva que os hábitos culturais
convencionaram, conectados pela inexorável lógica que a realidade aplica para corrigir o
sonho.
Assim sendo, experimentar “estados-metáfora” se faz vital para os sentidos,
imbricações e exigências da cultura contemporânea, como menciona Peter Pelbart:
Não podemos deixar de ver aí, nessa “desordem” sugerida, a reivindicação por uma
navegação temporal intensiva, cujos indícios nos chegam da arte, dos loucos, da lógica do
hipertexto, das agitações micro e macropolíticas, da paixão de abolição de uns ou das linhas
de fuga ativas de todos aqueles para quem o colapso do tempo universal e hegemônico não
representa o fim dos tempos, muito pelo contrário. Por meio dele talvez nos seja oferecida a
ocasição para que o tempo da vida deixe de ser impelido unicametne pelo vampiresco e
acachapante vetor do capital, em favor de múltiplas temporalidades, inéditas e singulares.
(…) O tempo dos loucos, ou da arte, e o tempo da liminaridade, não deveria ser lido apenas
como um domínio patológico ou exótico, mas como uma amostragem complexa daquilo que
resite às tiranias do tempo contemporâneo, das micro-políticas temporais e igualmente
daquilo que nele se gesta de mais inventivo e perturbador (2000, p. 50).
A tessitura contemporânea concebe discussões acerca da multiplicidade de vozes e
vezes que reverberam em discursos que não foram ouvidos. A crise ideológica provocada pela
frustração dos compromissos encharcados de demagogia que a modernidade desprezou, na
atualidade acabou contribuindo com o ressurgimento de uma nova ótica sobre os acertos do
passado e sua reciclagem. Enquanto os dias iam se passando na ante-sala das promessas não
cumpridas, a ciência buscando a “verdade” esqueceu que se baseia em pressupostos
arbitrários; menospreza outros ingredientes humanos como a relação com o mundo, a
intervenção do sujeito, a eficácia das “verdades” singulares, a escolha de um indivíduo
singular entre os elementos impessoais e genéricos da linguagem, etc.
Nesse sentido, a experiência de se passar por um monstro de Careta, desprovido de
qualquer máscara social que os faça pertencer, pode facilitar o acesso ao caos potencial do
espaço-desarticulado-das-convenções-culturais, ou melhor, do vazio necessário para essas
construções subjetivas que tanto querem Rolnik e Guattari. Todo o ritual desde a confecção
das máscaras, concentração, colocação das máscaras, saída do ginásio, e a peregrinação por
outro espaço/tempo “sem rosto”, se faz essencialmente num processo! O Bloco dos Caretas é
constituído, decisivamente, por pessoas simples e sem contato especial com arte, que se vêem
92
despretenciosamente em processualidade. Participam de toda integração com o outro, com o
lugar, com o tempo cósmico, em permanente movimento e criação.
Se arte é processo, e o processo é ritualístico, a arte não deixa de ser ritual e o ritual
do Bloco dos Caretas não deixa de conter aspectos artísticos com os potenciais da
processualidade.
Quando se é capturado pelo processo do rosto mascarado, abandonando também as
referencias do saber constituído, passa-se a viver desdobramentos, integralidade com um todo,
flutua-se na indivisibilidade.
Os Caretas em carnavalização simulam um estado coletivo ideal sem hierarquias,
sem barreiras de status e condições sociais. O destronamento das hierarquias da vida
cotidiana, como bem argumenta Bakhtin, destrona também a lógica da identidade,
engendrando espaços para acessar singularidades, auto-referência, de forma a distanciar do ser
esperado e definido a priori.
E se descobrimos que uma festa caracterizada pela mistura de artes, pelo desvelar
criativo de cidadãos comuns se revelando artífices de esmeras esculturas, além da construção
de personagens inusuais performados pelos mesmos, se esses gestos possibilitam também a
dita ultrapassagem do cotidiano e um “olhar são”, entende-se que o processo de construção da
máscara e de performatividade revelam-se elementos surpreendentemente atuais e necessários
para o tempo contemporâneo, destacando-se assim, como artifícios chaves de reflexão.
O Bloco dos Caretas foi criado desde a década de 1940 e até hoje representa o auge da
cultura guiratinguense. Essa atualização se faz por uma forma de sociabilidade que diminui a
partir da modernidade: as pessoas compartilhando coisas em comum. A separação das
instâncias da vida na modernidade, assim como o uso da razão como soberania e consequente
“desencantamento”, mobilizou depreciadamente manifestações tais como as essa para o
campo dos arcaicos, pobres, sujos, ou do ultrapassado. O valor e representatividade que ao
contrário elas alcançam ainda hoje 60 ultrapassam esses modelos modernos pelo desejo em
participar de questões simbólicas em comum, de ver o mundo de uma maneira mais suave, se
“reencantar” pelo mundo, de experimentar „metáforas da vida‟.
60
Seu valor atual reflete o que Gruzinski (2001) aponta para a mistura de elementos de outros tempos com o
atual como composição do tempo contemporâneo. A questão da poética contemporânea do deslocamento.
93
ANEXO
94
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