UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA CLAUDYANNE RODRIGUES DE ALMEIDA ESTADO METÁFORA: CARNAVALIZAÇÃO, LIMINARIDADE E PERFORMATIVIDADE NO BLOCO DOS CARETAS DE GUIRATINGA, MATO GROSSO CUIABÁ-MT 2011 CLAUDYANNE RODRIGUES DE ALMEIDA ESTADO METÁFORA: CARNAVALIZAÇÃO, LIMINARIDADE E PERFORMATIVIDADE NO BLOCO DOS CARETAS DE GUIRATINGA, MATO GROSSO Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso como requisito para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea na Área de Concentração Estudos Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa Poéticas Contemporâneas. Orientadora: Prof(a). Dr(a) Maria Thereza de Oliveira Azevedo. Cuiabá-MT 2011 A447l Almeida, Claudyanne Rodrigues de. Estado metáfora: carnavalização, liminaridade e performatividade no Bloco dos Caretas de Guiratinga, Mato Grosso/ Claudyanne Rodrigues de Almeida. -- Cuiabá (MT): IL/UFMT, 2011. 99 f.: il.; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagem. Programa de Pós–Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea. Orientadora: Profª. Drª. Maria Thereza de Oliveira Azevedo. Inclui bibliografia. 1. Liminaridade - Teoria. 2. Máscaras - Carnaval. 3. Bloco dos Caretas. I. Título. CDU: 316.7 À luz da mulher-maravilha, super-mulher: Marileide, À arte Um brinde! AGRADECIMENTOS Sinto-me grata, Ao esforço incontável dos pais Abdias e Marileide pelo investimento em zelo, em dinheiro, em ternura, em orgulho. Pelo exemplo de humildade e amor; Aos amigos por colorir minh‟alma restabelecendo meu ânimo aos estudos, por me cuidar em todos os momentos de „apreensão dissertativa‟; À sabedoria e dedicação da orientadora Marithê, pelo exemplo profissional e inspiração; À benevolência da Tia Nega (também à cordialidade dos funcionários de sua gráfica), pelos incontáveis A4, tonner e cor que me proporcionaram teoria e incentivo durante toda a experiência acadêmica. À todos os entrevistados mascarados e desmascarados e, especialmente ao organizador do Bloco dos Caretas, Wivaldo, pela atenção e carinho em auxiliar na pesquisa; Ao instinto materno da D. Elaine e família muito „Forte‟, que me acolheu e cuidou em momentos importantes do mestrado. Aos professores do ECCo que foram essenciais para o desenvolvimento dessa pesquisa; À atenção dos professores José Leite e John Dawsen que contribuíram significativamente com as correções e sugestões para o trabalho. Ao convênio CAPES/FAPEMAT que financiou grande parte da pesquisa. RESUMO Observando alguns paradoxos diagnosticados no cotidiano da cultura contemporânea, voltou-se o olhar para o processo de desvinculação das convenções sociais e transgressões vivenciados num ritual de carnaval com máscaras do Bloco dos Caretas de Guiratinga, Mato Grosso. A partir da teoria da liminaridade de Victor Turner, carnavalização (Bakhtin) e performatividade (Schechner) foi criado o termo estado-metáfora para sugerir que uma coletividade em contato com estados de arte pode criar novas possibilidades de olhar para o mundo, para si e para as relações com o outro. A observação se deu por meio de pesquisa bibliográfica e etnografia. Palavras-chave: Bloco dos Caretas; singularidade; arte/vida; máscaras. ABSTRACTS Observing some paradoxes diagnosed during the daily contemporary culture, it turned his gaze to the process of detachment from social conventions and transgressions experienced in the Bloco dos Caretas from Guiratinga, Mato Grosso, a ritual of carnival in which merrymakers use masks. The state-metaphor term was created concerning Victor Turner's liminality, Bakthin's carnivalization and Schechner's performance to suggests that a colectivity experiencing states-of-art might develop new ways of looking the world, yourself, and the relationship with others. The observation was made by means of literature and ethnography research. Keywords: Bloco dos Caretas;singularit; art/life; masks. LISTA DE ILUSTRAÇOES Figura 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8: máscaras do Bloco dos Caretas..................................................36-39 Figura 9: reajuste na máscara......................................................................................................41 Figura 10: máscara sendo confeccionada....................................................................................41 Figura 11: alunos na Escola Santa Teresinha..............................................................................45 Figura 12: alunos em carnavalização..........................................................................................45 Figura 13, 14, 15, 16: Concentração............................................................................49,50 Figura 27,18: Bloco saindo da concentração....................................................................52 Figura 39, 20, 21, 22: Criatividade dos monstros de Caretas.................................................54,55 Figuras 23, 24 Caretas- irreverência............................................................................................59 Anexo ..........................................................................................................................................93 SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT LISTA DE ILUSTRAÇÕES INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 5 CAPÍTULO I...................................................................................................................... 10 1. CONTEMPORANEIDADE: MAPAS POSSÍVEIS...................................................... 10 1.2 A falência do projeto moderno .................................................................................. 16 1.2.1 Da perda das metanarrativas ................................................................................ 16 1.3 Do deslocamento ....................................................................................................... 21 1.4 Outra sociabilidade .................................................................................................... 22 CAPÍTULO II .................................................................................................................... 24 2. UMA “PRÉ-LIMINAR” CONTEXTUALIZAÇÃO..................................................... 24 2.1 Do Carnaval à liminaridade ....................................................................................... 24 2.2 À liminaridade .......................................................................................................... 26 CAPÍTULO III................................................................................................................... 32 3. BLOCO DOS CARETAS ............................................................................................. 32 3.1 Visitando os criadores do Bloco dos Caretas ............................................................. 34 3.2 Preparando para o desnudamento do corpo social ...................................................... 40 3.2.1 Confeccionando a máscara ................................................................................... 41 3.2.2 “Pré-liminares” para a liminaridade ...................................................................... 44 3.2.3 Concentração ....................................................................................................... 46 3.3 Um, dois, três e...! À deriva pelas ruas ....................................................................... 52 3.3.1 O Tempo .............................................................................................................. 57 3.3.2 O Espaço .............................................................................................................. 59 CAPÍTULO IV 4. O LIMIAR E A MÁSCARA .......................................................................................... 65 4.1 Performatividade no Bloco dos Caretas ..................................................................... 66 4.1.1 Da experiência ..................................................................................................... 69 4.1.2 Singularidade ....................................................................................................... 71 4.2 Rito e Estado holístico .............................................................................................. 75 4.2.1 Do rito para o corpo comunitário ou estado holístico – Fim das fronteiras entre arte e vida? .......................................................................................................................... 77 4.3 Carnavalização: Um olhar através da máscara para além da realidade cotidiana......... 80 4.3.1 Máscaras e/no Teatro........................................................................................... 82 4.4 Arte e vida................................................................................................................. 86 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 88 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 93 5 INTRODUÇÃO A ideia de se pesquisar as nuances da suspensão do cotidiano, partiu primeiramente de observações genéricas da estrutura social cotidiana, com um olhar particularmente antropológico. O olhar, que provavelmente já se encontrava pairando por tais preocupações, apontou para itens relacionados a uma sociedade encharcada de lamúrias a respeito da falta de tempo, das hierarquias e burocratização da vida, da mecanização da vida humana, etc. Embora o “se preocupar unicamente com a realidade presente” esteja associado às culturas “primitivas” em nossas mitologias etnocêntricas (inteiramente questionáveis), que salientam a primazia da vida instintiva e a sublimação da condição civilizada, todos nós, em algum momento, fomos tão consumidos pela realidade, pelo cotidiano, a ponto de perdermos a consciência de nós mesmos e de nossos limites. De tal modo que algo tendia por estar na contramão da vontade social. E se esse modelo de estrutura social não parece nem de longe ideal, surge então um imperativo em se pesquisar, um momento/instante que se desviasse, ou melhor, se localizasse além do azedume de tal realidade. Ainda assim, não estou propondo um novo modelo social. Busco um momento específico, rápido ou longo, não importa, que proporciona uma trégua da atração da realidade exacerbada de estímulos; suspende-se da estrutura habitual, questionando-a, flexibilizando espaços para a possibilidade de aproximação de estímulos particulares, construção de subjetividades. Esse processo de suspensão do cotidiano está baseado nos estudos de um antropólogo britânico, Victor Turner que enxergou o que ele chama de liminaridade nos ritos de passagem. Sinteticamente liminaridade seria o momento de suspensão da estrutura cotidiana. Pretendeu-se questionar pressupostos humanos quanto à natureza das relações com o outro e consigo, mediante uma releitura da teoria da liminaridade de Victor Turner. No segundo capítulo encontra-se uma revisão bibliográfica sobre o tema da suspensão do cotidiano, a liminaridade de Turner e suas vertentes. Dessa maneira investigou-se o processo que faz dormir a vida cotidiana, lugar/instante de eterealização e transitação por “outras realidades”, por esse motivo chamado de estado-metáfora. Esses instantes ultrapassam as fronteiras do empírico, do burocrático, da exatidão; é permitido experimentar estórias e censuras. O termo estado-metáfora foi criado para definir esse processo que me debruço, não com intuito de elaborar uma nova teoria, mas apenas para servir como ferramenta de auxílio ao leitor e a minha escrita. Estado-metáfora seria, então, o processo que se experiencia a suspensão de todos os acordos apriorísticos do cultural; momento que se paira por um 6 espaço/tempo onírico, quase indizível. Foi escolhido o termo Estado por se tratar de um tempo/espaço singular em que se está experienciando mesmo, e Metáfora pelas conexões que as mesmas podem desvelar. “Benjaminianamente” fica claro a potencialidade das metáforas não apenas como um fenômeno linguístico, mas um método para absorção e aprendizagem, também para a construção do “novo”. Esta última característica se revela de grande valia para o estudo de cultura contemporânea, já que, nesse sentido, é objeto de investigação de uma poética. O gesto das crianças, nas perspectivas das metáforas, tem a capacidade de simbolizar suas experiências do novo, assim como o pintor tem capacidade de “olhar com as mãos”. A obra de arte é para Benjamin (1994) caracterizada como uma metáfora, pois objetiva discutir um estado de percepção outro, que é acessado em contato com experimentações artísticas. 1 Assim Benjamin (Ibid.) afirma que as metáforas têm a forma de agir, de olhar, da posição do novo. E aqui está o grande valor da metáfora para estudar o contemporâneo. Cada pessoa tem uma rede de associações e as ativa de acordo com a correlação da nova imagem que estabelece uma metáfora. Não o sinônimo, mas uma nova maneira de olhar, diz Benjamin, sendo providencial para o desenvolvimento do termo citado (estado-metáfora). Sendo assim, para não repetir todas essas explicitações, características e definições, sempre que falar desse momento e acabar atrapalhando a fluência da leitura, o termo estado-metáfora será usado todas as vezes que me referir às mesmas. Recorrendo a Suely Rolnik (1995, p. 50, 51), encontramos o argumento de que no contemporâneo precisamos, mais do que nunca, renovar nossas formas de subjetivação. Como um relâmpago, passagem de um plano para outro, é o instante da desagregação de formas fixas de subjetivação, o que permite que as diferenças se manifestem. “Somos lançadas numa espécie de vácuo.” Esse vácuo, relâmpago, liminaridade, espaço vazio, betwixt and between , suspensão da estrutura, horizontes imaginativos, campo de virtualidades, zona de indeterminação, estado pirata, plano de imanência, corpo-de-sonho, estado de arte, estadometáfora e todos as definições que esse momento pode ter, é o momento que me toca como uma necessidade atual de pesquisa. Existindo ainda teorias como as encontradas na pesquisa bibliográfica, que deflagram o potencial desse fenômeno, suscita-se outra vez legitimidade à pesquisa. 1 “A arte é uma atividade que consiste em produzir relações com o mundo com o auxílio de signos, formas, gestos ou objetos.” (BOURRIAUD, 2009, p. 147) 7 Partindo da investigação desse “estado”, pretendeu-se pesquisar primeiramente quais sãos os meios para acessá-lo, questões ligadas às sensações e experiências de vivenciá-lo, além de pincelar possibilidades desse instante de suspensão e desdém pelas convenções sócioculturais desvelar algo para o devir. Interesso-me pelo papel do que está situado além do horizonte causal, pelas possibilidades que oferece, pelos desejos lícitos e ilícitos que desencadeia, pelos jogos de poder que sugere, pelo terror que pode causar – a incerteza, a sensação de contingência, de acaso –, pela exaltação e principalmente pelo frêmito que o desconhecido pode provocar. O fenômeno empírico escolhido para observar mais de perto e analisar o estadometáfora é uma expressão cultural carnavalesca, o Bloco dos Caretas. Moradores da cidade de Guiratinga-MT fabricam e ornamentam máscaras de argila e papel machê no carnaval, vestem um roupão de chita e saem dançando pelas ruas ao som da percussão, jogando talco nos mais desavisados, desmontando seus corpos limpos, socialmente “perfeitos”, “puros”. As máscaras são os artefatos de destaque pela beleza e surpresa, construída pelos próprios foliões. O Bloco dos Caretas foi destacado, primeiramente, por expressar tipos diferentes de artes, interagindo assim, com os atributos da arte contemporânea e suas contaminações, hibridações de tipos diversos de artes. Também pelo seu processo que pode ser definido como um ritual, e o interesse pelo estudo do rito é categórico, acreditando nos tesouros epistemológicos que a análise do mesmo pode abarcar. Terceiro, pelo desafio de verificar num momento de profanação total, que é o carnaval, os elementos destacados por Turner como liminar (esses encontrados nos ritos em geral religiosos ou de iniciação, enfim, ritos de caráter profundamente sagrados). As metodologias foram escolhidas de acordo com as necessidades das revelações sobre o objeto. A pesquisa bibliográfica talvez possa dizer que foi o procedimento mais importante tendo em vista que o objeto de estudo é bastante teórico, e reflexivo. As teorias presentes na revisão bibliográfica foram analisadas na concepção de resenha, contextualizando e embatendo os autores; observação participante e crítica; optou-se também por uma breve etnografia do campo escolhido, na qual foram realizadas entrevistas qualitativas livres com transeuntes, expectadores que esperavam nos portões de suas casas a passagem do Bloco e também com os próprios bloquistas mascarados, na concentração do Bloco, durante e após a passagem do Bloco, além de entrevistas informais em diversos locais onde o assunto do Bloco surgia. Permaneci na cidade durante dois meses antes do carnaval do 8 ano de 2010 com o intuito de buscar dados que considerasse importantes para a pesquisa no dia-a-dia da cidade. A ideia de suspensão é instigante ao pensar que o que vemos do alto parece mais bonito, completo, imparcial; seria a visão panorâmica; já arriscaram até dizer que o olhar do alto é o conhecimento. Além das divagações sobre a necessidade de “olhar de fora” para entender melhor o que se pretende. Em meio a tais ponderações posso eu estar alçando problemas com alguns antropólogos. – Primeiramente, faço uma pesquisa cujo tema se encaminhou para a busca de um processo desprendido das condições culturais; tendo em vista que antropólogos são por excelência os estudiosos da cultura, poder-se-ia estar me “enforcando”. Segundo, pesquiso e observo (agora como “de fora”) um objeto empírico que cresci “de dentro”, ou seja, preciso deixar claro a minha naturalidade guiratinguensse que me vestiu de Careta durante toda infância e pré-adolescência. Fato problemático para a metodologia da etnografia que tem por princípio “olhar o outro”, desfamiliarizar-se. Não obstante, me propus e me pus no lugar de pesquisadora analisando um fenômeno social que observa o outro com um olhar particular, assim como qualquer etnólogo que aparecesse por aquelas bandas. Não creio que seja problema olhar o outro com as marcas que estão no corpo batizado com a carnavalização dos Caretas. Claro que a princípio isso causou uma ginástica psicológica, mas com o passar da etnografia, tomando os devidos cuidados que os livros de metodologia prescrevem, de se ausentar o quanto possível dos próprios julgamentos e conceitos já estabelecidos sobre o objeto, desfamiliarizar-se, etc., creio que superei. (Deixando claro que o discurso sempre está marcado pela referência cultural e teórica vivenciada, essas são essencialmente inevitáveis). Para deixar mais explícito ainda meu ponto de vista metodológico, reverencio e compartilho do prisma de Crapanzano (2005) que assinalou: Vejo a contribuição da etnografia no sentido da montagem. A justaposição, às vezes arbitrária, às vezes inusual, de dois ou mais itens, elementos, imagens ou representações que chama atenção para aspectos desses itens que estavam escondidos ou eram ignorados. Montagens inusuais podem produzir surpresa ou choque, iluminações repentinas, epifanias ou insights e, por isso, podem ser retóricas, estéticas ou terapeuticamente efetivas. Devo observar, entre parênteses, que a montagem é intrínseca à etnografia, pois o antropólogo conjuga elementos de duas culturas – a cultura em estudo e a cultura de referência. Assim, há uma dimensão iconoclasta importante para a etnografia que é (em meu ponto de vista, infelizmente) reduzida pela etnologia – pela descrição tornada convencional, pela interpretação autorizada, pela explicação científica. Não estou negando agora o valor da interpretação ou da explicação (embora questione a descrição convencional). Desejo simplesmente 9 indicar-lhes um efeito secundário inevitável, que exige reconhecimento crítico (2005, p.371). Acrescentaria ainda uma eterna desconfiança na ciência que tenta afirmar “verdades”. Ainda mais quando se trata de pesquisar o ser humano. O Capítulo I da dissertação discute a busca do homem contemporâneo em geral, problematizando “quem ele é”. Para isso, faço observações sobre as necessidades atualizadas desse homem e de seu meio social, argumentando como essas necessidades se encontram em desarranjo com os modelos modernos. Aqui já toco nos pontos principais que seria a busca de singularidades ou de auto-referências e de ações coletivas formadas por redes sociais ou estado comunitário ou ainda estado holístico. No Capítulo II optou-se por contextualizar o primeiro elemento do campo empírico – o carnaval, fazendo um apanhado bibliográfico sobre este, também sobre o conceito de liminaridade, e suas possíveis vertentes – definidas por outros nomes, por outros autores – e como estas se articulam com o estado-metáfora. No Capítulo III encontra-se a pesquisa de campo descritiva e analítica. A etnografia sobre o Bloco dos Caretas veio para exemplificar a análise com observação participante o instante limiar que acontece com arte e coletividade. Aqui eu me incluo no campo e nas observações respondendo do ponto de vista empírico as problematizações sugeridas. O Capítulo IV busca apropriar da literatura sobre o objeto da pesquisa. É o capítulo teórico que, dialogando com autores e conceitos, analisa como a pesquisa propõe então o encontro com essas singularidades e com o coletivo (as relações interligadas). Ou seja, aborda a experiência do instante limiar do estado-metáfora, pois ele parece ser porta de entrada para esse desvio, e qual o papel da máscara e da performance nesse fenômeno. Respondendo, assim, do ponto de vista teórico, as problematizações do primeiro capítulo. A partir de agora nos presenteamos com um ingresso para um novo olhar. Adentramos para o mundo das possibilidades onde a ordem é não ter ordem. Olhamos o espetáculo da vida quimérica, das capacidades de ser e de olhar por fora da estrutura e amarras construídas sem o nosso aval. Não vamos comprar o jornal do dia nem almoçar ao meio-dia. Estamos de folga do tempo linear, tempo do trabalho (vital). Então, partamos em busca de novos sentidos à vida. 10 CAPÍTULO I 1. CONTEMPORANEIDADE: MAPAS POSSÍVEIS Subjetividade é o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacências ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. (GUATTARI, 1992, p. 19) Os ideais da “modernidade”2 influenciaram os modos de pensar coletivo. Independente de sua real efetivação, como argumentam alguns autores como Bruno Latour (1994) sobre a falência do projeto moderno, pois mesmo não alterando a feição da vida explicitamente, seus modelos foram assimilados pelo imaginário social como “dever-ser” e repercutem até a atualidade. Mas quais modelos/projetos/ideais são esses? Para citar alguns – o uso da razão para todos os questionamentos humanos; o princípio de igualdade para todas as prerrogativas entre os homens; a separação de todas as instâncias da vida em caixinhas analisáveis; o controle e a dominação da natureza pela ciência... 3 A valorização das atividades humanas é submetida a modos dominantes e tentando se encaixar nos modelos mencionados o homem se encontra cada vez mais limitado aos paradigmas internalizados da cultura. Segundo Ortega y Gasset (1987, p. 38) ele “briga” para entrar no mundo moderno, pois tem que ser idêntico aos demais e se sente bem com isso. Os desejos dos indivíduos são delineados pelos fatos sociais, o que costuma tracejar infindáveis 2 O conceito de modernidade é alvo de muita polêmica nas ciências sociais, visto que há várias vertentes que tentam definí-lo. Uma dessas vertentes sugerida por Ieda Tucherman é que “modernidade” é a mudança em um determinado período histórico – após Revolução Francesa – que apostou “no desejo de futuro, ou na antecipação de seus possíveis” (1999, p. 16); um tempo onde não se trata apenas do que podemos ser ou fazer, mas se podemos controlar aquilo que faremos e o resultado do que fizermos; do fim dos processos de subjetivação. A esta fase podemos reunir outras concepções, como a que diz tratar-se da imposição de que tudo deve/pode ser separado, definido e classificado a exemplo de Maffesoli, entre outros. No decorrer do texto não usarei mais as aspas em “modernidade” ou em tais termos, subentendendo que a idéia se encontra nessa linha de raciocínio. Também não me atenho à discussão sobre qual período estamos vivendo, se saímos da modernidade, se estamos convivendo com dois períodos ou se a mesma nunca existiu. Nada relevante para tal pesquisa é enquadrar em definições construídas, momentos históricos. Afinal, não é o momento de “ser moderno”. 3 Posteriormente discutiremos o porquê da falência desses projetos/ideais. 11 labirintos a afastá-lo cada vez mais de seu eixo, obstando de desenvolver suas próprias distâncias de singularização com relação à subjetividade normalizada, e inibindo os espaços para criação já que o espaço vazio praticamente não existe. Este é preenchido pela necessidade de buscar e levar os filhos na aula de natação, kumon, piano, inglês, capoeira, de buscar cursos para se especializar cada vez mais; de estar sempre informado; de procurar a “comida pronta” mais rápida do mercado; além de delimitar a melhor classificação para o sobrinho: heterossexual, homossexual, bissexual ou assexuado... Ou seja, o indivíduo contemporâneo fabrica mais necessidades para mais consumir; a vida doméstica vem sendo manipulada pela produção de subjetividade coletiva da mídia e do capital; uma ética da responsabilidade, na qual se deve produzir e desempenhar funções para ser considerado cidadão; meritocracia; além da estranha “emancipação” que multiplicou os compromissos; etc. Naquela conjuntura, o projeto moderno impôs tantos estímulos e construiu a ilusão de tantas necessidades que esse homem se encontra basicamente imerso nas convenções estabelecidas e pouco resta para pensar singularidades, pouco resta para novas possibilidades de pensar, agir, criar. Ainda quando o sujeito faz referência a si mesmo como lugar de realização, suas ocorrências existenciais podem ser distorcidas ou ilegíveis ao olhar de si mesmo, como sustenta o autor das poéticas da singularidade, Hélio Strassburger: A noção de coerência institucional oferecida desde cedo, além de dificultar possibilidades de invenção e criatividade, também serve para enraizar sensações de deslocamento e impossibilidade de conhecer outras verdades. Assim a diferença é ameaça e passa a ser vista como marginal, um desajuste com o mundo considerado normal (STRASSBURGER, 2010, s/p.). Guattari e Rolnik (1986) demonstram preocupação a respeito do imperativo por brechas dos tais estímulos culturais, arquitetando o conceito de revolução molecular. Militantes pela afirmação positiva da criatividade, esses autores da psiquê acreditam que é preciso abrir espaços para que ela aconteça. Nesse contexto, o desejo só pode ser vivido em vetores de singularidade. Há menos tempo ainda para interação com o outro, nos espaços públicos, por simples e puro lazer, por exemplo 4. A oferta incessante de produtos e serviços supõe a escolha ao infinito e a velocidade, o ímpeto do tempo, guia o consumo de menos tempo cósmico e mais tempo linear. O que se faz uma dificuldade para o indivíduo, pois de acordo com Tarde 4 De acordo com Canclini (1995), existe uma tendência internacional para o decréscimo do consumo que se faz nas instalações culturais públicas, em função direta da grande expansão dos meios eletrônicos. 12 (1992) esforçamos muito para seguir o tempo linear, pois, na maior parte, estamos perambulando pelas nossas fantasias (tempo cósmico) e acaba sendo cansativo tentar ser moderno. Tudo isso é o que aparentemente o projeto moderno impôs e o que percebemos, se olharmos na superfície, ou mesmo se fizermos uma crítica aprofundada, porém arraigada nos mesmos modelos e estímulos da ressabiada herança moderna. Todavia, os ecos que a observação focada nas minúcias e liames ruídos que se anuncia como presentificação de um futuro, poderão nos apontar para novos anseios. Ratificando o escrito de Suely Rolnik (1999) quando afirma que – no contemporâneo a busca é para conseguir reconfigurar-se diante do caos, já que este tempo intensifica a desestabilização do homem – problematizaremos as necessidades contemporâneas tendo em vista os incentivos da atual conjuntura política, sócio-cultural, psicológica, inter-humana da sociedade atual. Para Rolnik, no contexto atual o mapa de relações com o mundo e com o outro se renova, são múltiplos mapas possíveis, ou seja, são incorporadas novas sensações sem que tenha mudado necessariamente a figura através da qual a subjetividade se reconhecia, sem ter construído novas subjetividades. Tendo essas afirmações em vista e pretensiosamente espelhadas nas relações humanas contemporâneas, compete-se salientar dois aspectos como imperativos do tempo presente: - A necessidade de aparatos/artifícios/espaços vazios para a construção de subjetividades auto-referenciais (sim, a proposta aqui é interferir nas imposições contemporâneas da política de homogeneização/massificação de produção da realidade); - e a necessidade de “mais comunidade” em oposição a menos sociedade nos moldes do sociólogo Ferdinand Tönnies, para o qual comunidade são indivíduos diferentes que compartilham idéias, valores, e sociedade são indivíduos diferentes que compartilham de idéias da massa, porém estão isolados nas suas ambições 5. Contudo, não pretendo tratar esse momento apocalipticamente, e sim pensar um estado holístico6 como momentos que podem ser mais vivenciados/incorporados no dia-a-dia. 5 Citado por Buela (1987) que define assim: “a idéia de comunidade enuncia no seu sentido original a participação dos homens que a compõem num núcleo aglutinado de valores (“bens”) que lhes são comuns. Ao passo que a sociedade enuncia antes a aceitação por parte dos seus membros de um conjunto de normas (“deveres”) que regulam a relação entre eles”. Onde a satisfação egoísta das necessidades do homem-indivíduo deixa de parte toda a referência ao próximo. 6 Experienciar uma sensação de coletivo interagindo organicamente. A densidade das relações sociais recompondo o conjunto dos efeitos do ser-em-grupo. Ou seja, um estado holístico é algo cujos acessos não podem ser separados. São tão embaraçados que tornam qualquer delimitação de um corpo – ou alma – singular, quase arbitrária. 13 1.1 Coletividade para se singularizar, ou o todo para a parte e vice-versa A primeira vista pode parecer um paradoxo o argumento de que os sujeitos necessitam de contato com estímulos particulares, ao mesmo tempo ser necessário vivenciar o coletivo. Pelo contrário, há uma complementaridade aí. Além disso, a sugestão aqui é a de experienciar sensações num todo interligado, numa tessitura ininterrupta, uma visão nãofragmentada da realidade onde sensação, sentimento, razão e intuição se equilibram e se reforçam. 7 Um depende do outro e um movimento aqui reage imediatamente acolá. O que, a mim, não parece algo tão surpreendentemente novo, ou um surgimento inesperado da dita “pós-modernidade”, remete, ao contrário, diretamente aos modos de vida pré-industrial das sociedades “naturais” onde todas as tessituras da vida se encontravam interligadas. A revolução molecular de Guattari e Rolnik (1986) também consiste em produzir as condições não só de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si próprio, tanto no campo material, quanto no campo subjetivo. Ao mesmo tempo em que Ortega y Gasset (1987, p. 41) afirma que se tem que incorporar a mentalidade da época, pois nessa sociedade “quem não for como todo mundo correrá o risco de ser eliminado (...) ser diferente é indecente”, os movimentos que se anunciam, mesmo em sua incipiência, são aspirações por não ser mais um na multidão. Ou melhor, não seria o homem contemporâneo profuso de tantos estímulos, regras, definições, tanto que de alguma forma ele quer se diferenciar dos demais? Ou melhor, o sujeito social de hoje é um caçador de nuances de autocoerência, busca de singularidades, ou ele quer continuar a vagar para longe de si? A busca pessoal pode seguir desfigurada ao tentar se adequar aos arranjos da conformação dominante. Um discurso bem acabado por onde se instituem as leis e o gesso aos propósitos de mudança pode afastar os indivíduos cada vez mais do seu eixo. Fonseca (1998, p.67) diz que “precisamos saber a enorme distância que há entre as diferenças e as hierarquias. As primeiras instituem a heterogeneidade. As hierarquias homogeneízam.” O homogêneo incrivelmente vai se tornando démodé, assim como a hierarquização do mundo. Aspiração por se destacar, submergir da massa resignada, enfim, se 7 Depois de maio 68 a visão micro-social é de uma realidade complexa, rizomática, verifica-se a não separação das instâncias sociais, ou seja, tudo está interligado (DELEUZE & GUATTARI, 2004). 14 singularizar. Ela sustenta que é necessário entrar num processo de desmistificação do ordinário para que o extraordinário aconteça e surjam contornos inesperados. Ou seja, o artifício para busca pelas suas singularidades só pode se dar pela prerrogativa do processo. A singularidade é por excelência processualidade. O processo é que abre as ocorrências, cria vazios, espaços para a imaginação aflorar e transcender. Cada um deve estar forte e presente na obra. “Processo é movimento e auto-engendramento, remetendo à idéia de permanente ruptura de equilíbrios estabelecidos” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 322). Para estes autores a lógica do sujeito enquanto processo, seria a autopoiése, e não uma lógica da identidade. A primeira engendra diferenças, a segunda homogeneíza. 8 A singularidade precisa renunciar à identidade. Clarice Lispector (1973 e 1993) cria um termo para a necessidade de se renunciar à identidade, para não saber, pois permanecer nela seria ficar prisioneiro de um único sentido – IT (que ela retira do pronome neutro do inglês), seria não-pessoal ou pré-pessoal. O corpo no estado-metáfora, tanto como o do artista, como o do processo, não serve à criação de identidades. Pelo contrário, implica uma ruptura com a lógica identitária. O corpo desmascarado de si não se faz de informações, mas de processo, quase uma iniciação que, por sua vez, nunca se conclui. E concluir não é mesmo o intento. Tendo como prerrogativa que de processo vive a arte, optou-se nesse trabalho olhar para a arte como exemplo prático das expectativas contemporâneas mais singularizantes. De acordo com Bourriaud (2009) a arte contemporânea, cria espaços livres, gera durações com um ritmo contrário ao das durações que ordenam a vida cotidiana. Ela favorece um intercâmbio humano diferente das “zonas de comunicação” que nos são impostas. Bourriaud usa o termo interstício, usado também por Marx, para designar comunidades de troca que escapavam ao quadro da economia capitalista. “O interstício é um espaço de relações humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema” (BOURRIAUD, 2009, p. 22, 23). Para Calabrese (1988), incorporando o que está no limite do padrão cultural criam-se zonas de indefinição. Nesse sentido a arte também supera o óbvio do cotidiano. Pois ela, principalmente a arte contemporânea, tem a predisposição de ser inédita, incompleta, não 8 “Autopoiése seria uma lógica celular, ideogramática e, se quisermos, uma lógica das diferenças. É a lógica da forma significante” (FONSECA, 1998, p. 25). No sub-item 4.1.2 encontra-se uma discussão mais detalhada sobre o termo. 15 definida. Ou por acaso esses trabalhos geniais de artistas como Lygia Clark, Duchamp, Artaud, Canigam, entre tantos outros, criavam algo previsto, completo, definido? Na opinião de Schiller (1992) o homem deve ser lido como uma obra de arte porque é nela que está manifesta a totalidade de todo o saber livre, fazendo vibrar no contingente logicamente produzido, a universalidade da transcendência.9 Bourriaud com a noção de que a arte contemporânea se desenvolve em função de noções interativas, conviviais e relacionais e diz que hoje, a comunicação encerra os contatos humanos dentro de espaços de controle que decompõem o vinculo social em produtos padronizados de consumo, assim “a atividade artística, por sua vez, tenta efetuar ligações modestas, abrir algumas passagens obstruídas, pôr em contato nível de realidade apartados”. (2009, p. 11) Não é de hoje que o assunto é fonte de reflexão: Os poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais nosso saber escolar não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da psique, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência (FREUD, 1970, p. 1285). A hipótese/sugestão parte das novas possibilidades de olhar para o mundo, para si e para as relações com o outro a partir da suspensão/trégua dos estímulos da estrutura cotidiana. Da necessidade dos indivíduos construírem singularidades, subjetividades menos convencionais, com mais tempo cósmico, e também vivenciar mais comunidade. 10 Vislumbrar outras possibilidades de olhar e repensar a realidade construída socialmente e vivida cotidianamente como única. Tucherman (1999, p.13) questiona a realidade que vivemos cotidianamente como única já que a “realidade, tal como a nossa tradição cultural a concebeu, supõe uma efetuação material e uma presença tangível”. Nesse sentido, Maffesoli (1995, p. 67) acentua que o estilo de vida contemporâneo enfatiza os aspectos intangíveis e imateriais da existência. 11 9 Gillo Dorfles (1992) afirma que “hoje mais do que ontem, quando em sua base havia, sobretudo uma função mágica, ritual, mítica ou religiosa – a arte possa vir a ser fonte de catarse e de iluminação constante e insubstituível para o homem”. 10 Ver: MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 3ª edição. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1987. 11 Novas solicitações e implantações nas diferentes instituições, vão no sentido de valorizar e até fomentar aspectos imateriais da cultura. Digamos que a imaterialidade é a “menina dos olhos”, inclusive, de ações políticas contemporâneas. Como por exemplo, a implantação do “Registro do patrimônio imaterial e intangível” no IPHAN, órgão até então preocupado com “tombamentos” de coisas materiais. 16 Então, por que o mal-estar que experimentamos perante o que é imaterial, ou melhor, a inquietação que sentimos por aquilo que é impreciso, indefinido, inexplicado? Para responder a tal questionamento é o momento de voltarmos à primeira questão sobre a falência do projeto moderno. 1.2 A falência do projeto moderno A valorização de comportamentos culturais distante dos estimulados genericamente pelo projeto moderno, principalmente na sociedade ocidental, foi e é alvo de incontáveis teorias sobre essa nova “textura” histórica do homem. Um marco sobre o tema é a polêmica obra: A condição pós-moderna de Jean-François Lyotard (1998), visto que teria formulado um fundamento arrematador que definiria, nos diversos aspectos culturais, a “condição” social desse novo momento. O termo usado, “pós-moderno‟, é desgastado e vago, ainda assim, o seu argumento principal – a perda das metanarrativas – acabou sendo eficaz em várias das abordagens seguintes sobre essa linha de raciocínio sobre a cultura contemporânea, independentemente do tema e enfoque dado. 12 A teoria designa o estado da cultura, depois das transformações bruscas nas regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes, a partir do séc. XIX, início do XX. Nesse arcabouço de metanarrativas estão: a ciência/razão que se isentou de cumprir com promessas de libertação e valorização das diferenças, de responder todos os questionamentos humanos, controlar e dominar a natureza; no mesmo pacote das precisões, definições e completudes modernas; estilhaçamento de suas cristalizações e endurecimentos discursivos relacionados à unidade e centro; a morte de Deus, além de outras. Discursos esses, que instituíram na sociedade os modos de tentar se encaixar na “iluminada” sociedade irrompida com os misticismos e “selvagismos” pré-modernos. 1.2.1 Da perda das metanarrativas Voltando às metanarrativas, pensemos um grande discurso que foi marcante na ultrapassagem do período metafísico: a “morte de Deus”. Fato crucial para a modernidade (desde o iluminismo), segue perdendo força e acaba por ultrapassar a si mesmo, marcando outra quebra de paradigma. Ideologia mítica outrora tida como arcaica, selvagem, quase 12 Marc Augé (1994). ; Zygmund Bauman (2001), entre outros. 17 desumana para a luz da razão, a crença em algo além (que não podemos ver), ganha credibilidade novamente, visto as circunstâncias e os riscos ocasionados pelas próprias ações humanas. Isso significa a valorização do invisível, do “além-terra”, do indecifrável, incompleto, indefinido, afinal, tudo o que a razão não pode demonstrar ou provar. Observo a preocupação com o “além-realidade-ordinária”, mais que atual! Os noticiários sensacionalizam: “Tufão na índia mata mais de 10 mil pessoas jogadas pelo ar!”; “Tragédia no Rio de Janeiro deixa milhares de humanos desabrigados!”; “Terremoto no Haiti devasta um país inteiro e leva mais de 60 mil pessoas desse mundo catastrófico que nossos olhos podem enxergar!” Isso os meteorologistas não puderam prever com sua objetividade e precisão. Ou seja, a modernidade e a ciência preocupam-se muito em resolver problemas estruturais, mas o que não podem os telescópios precisar, o que a ciência positivista não pode demonstrar com fatos, e o que o tato bem apurado não pode tocar materialmente, não é facilmente posto em questão, nem refletido. São as nuances que não temos a capacidade de ver. As ideias de Jankélévitch (apud CALABRESE, 1988, p. 172, 173), inquietas pelo delineamento do contemporâneo, mostram que há uma precisa prática teórica a desafiar as leis da representação, propondo-se representar o irrepresentável, dizer o indizível, mostrar o não visível. Principia o reconhecimento que seria muita prepotência da mente humana achar que temos conhecimento sobre tudo que existe no mundo. Shakespeare foi perspicaz ao dizer que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”. Valoriza-se o impreciso, indizível, ao contrário da ciência teoricamente tão precisa. Omar Calabrese (1988, p. 171) salienta que “O universo do impreciso, do indefinido, do vago mostra-se, pois rico de sedução para a mentalidade contemporânea.” E ainda completa que tem a ver com a revelação efetiva de uma “mentalidade”, ou seja, reluz uma nova maneira de pensar/“olhar” na cultura contemporânea. 13 Turner (apud CRAPANZANO, 2005, p. 380) cita o místico alemão Jakob Böhme: “Em incerteza todas as coisas consistem”. Poderíamos citar mais uma infinidade de outros místicos que chamam atenção para os paradoxos de nossa compreensão. É curioso, além disso, que justamente hoje a imprecisão seja assim tão revalorizada. De acordo com as precisões, definições, controle do “progresso” moderno, os conteúdos da 13 Nesse sentido, Félix Guattari (1992, 1993) alerta sobre a urgência em pensarmos a cidade não só em seus aspectos físicos, mas também no psíquico e no social. Pensar a sociedade de uma forma global, não em caixinhas definidas. Introduzir a arte na vida, ou vice-versa, parece uma boa maneira de vislumbrar uma nova forma de sociabilidade. 18 cultura deveriam também assim o ser. Entretanto, o que verificamos é que a calculadora produz arredondamentos até o undécimo algarismo, lembra Calabrese (1988); a TV produz efeitos de realidades, o relógio indiscutível aproximação, nenhum dia tem 24hs, entre outros. Notadamente a precisão é apenas um discurso bem inventado. Richard Schechner (1995, p. 205) escolhe abordar esse “não-sei-que-indefinível” que está exterior ao cotidiano. Para ele é “o momento no qual a oposição entre comportamento cotidiano e comportamento extra-cotidiano deixa o plano físico e alcança outro plano não reconhecível imediatamente”. Chama isso de “comportamento restaurado”, o mesmo é usado em todos os tipos de representações desde o xamanismo até o transe, do ritual até a dança estética e teatro, desde os ritos de iniciação até os dramas sociais, desde a psicanálise até o psico-drama e a análise transacional. Sendo assim, a dificuldade da sociedade diante da incompletude, da indefinição, da imprecisão, deve encontrar resposta num sentimento que provém, pois, do resíduo da nossa atividade de redução, práxis, explicação e controle do conhecimento. Não obstante, a curiosidade para saber o que está além do óbvio, (o excêntrico, o que transborda), incita o ser humano, cansado de definições, limitações, ordem, aclamados pela modernidade, a esquadrinhar as possibilidades, as lacunas, as brechas, para exceder aos limites cotidianos.14 Calabrese (1988) formula ideias a partir de limite e excesso argumentando que estamos nessa fase de romper, deslocar o limite incorporando-o para dentro da margem. O ritual tem como um dos objetivos, a busca por essa quebra de fronteiras do permissivo, do dito real. O exemplo do carnaval é providencial tanto para o “ultrapassar o limite” quanto para celebrar o excesso. É o espaço/tempo reservado para o transbordamento de fronteiras da regra, o excesso do riso, do permissivo, do sexo, da dança, da alegria, etc. É imprescindível que se crie zonas de indefinição, para dar possibilidade de o novo acontecer e não viver como se fossemos expectadores dos próprios eventos. Assim como consegue o “Dionísio” de Nietzsche: Só Dioniso, o artista criador, atinge a potência das metamorfoses que o faz devir, dando testemunho de uma vida que jorra; ele eleva a potência do falso 14 As especificidades da modernidade, a vida regrada, planejada e a confiança na precisão e no perfeito, provocam um tipo de ritmo paradoxo que objetiva a via contrária (artifícios para superar o regrado), como bem argumenta Certeau (1994) nas “artes de fazer”. 19 a um grau que se efetua não mais na forma, porém na transformação – „virtude que dá‟, ou criação de possibilidades de vida: transmutação. A vontade de potência é como a energia; chama-se nobre aquela que é apta a transformar-se. São vis, ou baixos, aqueles que só sabem disfarçar-se, travestir-se, isto é, tomar uma forma e manter-se numa forma sempre a mesma. (DELEUZE, 1997, p. 121). Afinal, se para diagnosticar o contemporâneo devemos pensar o que se precipita, é necessário então estar atento ao desconhecido e este não é definido, completo perfeito, mas justamente o contrário. Para pensar o que estamos a caminho de ser, carece escutar a diferença que está sendo produzida, perceber a sutileza do inacabado. E seria difícil encontrar a diferença no cotidiano, no que se repete todo dia, a possibilidade maior é acessá-la exterior a ele, como diria Schechner, no “extra-cotidiano”. Ficar á deriva de si, para suportar momentos de transição pode ajudar a desintoxicar as ressonâncias históricas, por onde alguns fantasmas ainda sobrevivem. Na multiplicidade dos cotidianos papéis, muitos são os esboços para depois de amanhã. Quem sabe o imaginário possa encontrar outros nexos, na especulação dos rascunhos com as provisórias certezas. Talvez aí a história de cada pessoa possa deixar de ter autoria desconhecida. (STRASSBURGER, 2010, s/p.) Outra metanarrativa válida de conjecturação é a questão da ciência. A ciência já não sabe mais o que pode ou não, não deu conta dos projetos de salvar o mundo com a razão, pois seus riscos são incalculáveis, como defende Ulrich Beck (1998) em La Sociedad Del Riesgo global. As conseqüências dos êxitos da modernidade se convertem em riscos. Hoje a iminência de uma catástrofe ecológica, econômica ou terrorista, é fato. A modernidade emerge da situação de segurança metafísica, para “segurar na mão” da razão. Colocamos-nos como o centro que inclusive poderíamos controlar a natureza, nós mesmos, mas na prática percebemos que os medos continuam e que a razão não conseguiu assegurar os riscos. Um remédio pode paliar uma doença, mas não garante que em longo prazo afetará outra função do organismo. A idealização da libertação do homem pela medicina e a ciência, que a partir do iluminismo tanto contribuiu para a separação das instâncias da vida, entra em crise. Não obstante, é notadamente claro tendências a valorizar certas ações, ideais e questões do nosso passado, este tão indigno e ultrapassado para o ideal da modernidade. Por 20 exemplo, verifica-se a valorização novamente da medicina alternativa 15, créditos para os populares que conhecem o poder medicinal das ervas, plantas da mata, do cerrado, da caatinga, etc. Percebe-se até mesmo o investimento da publicidade por tal gosto. As propagandas de cosméticos, alimentos, tendem a destacar o valor natural, orgânico do produto. Arrisco dizer que há um movimento intenso por certo reencantamento pelo natural. Ao invés da ciência controlar a natureza, a natureza tem poder até sobre nossos hábitos cotidianos. Renato Ortiz diz que há uma “recuperação”16 de um gosto tradicional pelo público considerado “civilizado” e atualizado. Adornos mais simples, voltados ao natural, ecológico, certo saudosismo do passado, estima pelo Romantismo, são cada vez mais procurados e ressignificados. Essa busca pelo ecológico/natural, na visão de Renato Ortiz, é o símbolo dominante de um suposto “pós-modernismo”, onde a idéia de ultrapassar a modernidade é o projeto de justiça social, no qual a questão ecológica é o ponto central. 17 Estima-se de forma reconfigurada e atualizada a importância da sapiência popular, conhecimento adquirido não necessariamente na escola ou livros. Elementos estes, que os orientais fazem questão de salvaguardar o quanto puderem, assim como os povos ditos “naturais”, como os indígenas. Nessas sociedades o respeito pela sabedoria dos mais velhos é basilar, e o saber está ligado à vida, à organização social, ao mito, assim como à arte. Tudo está intricado numa rede de relações, não classificadas separadamente como na modernidade. O “esclarecimento” procede, muitas vezes, do ardor no olho por mirar o sol ao invés da leitura sobre o não dever olhar para o sol. Maffesoli (1998) também argumenta sobre a relevância e relação do saber em si, do saber comum na contemporaneidade. A ciência se apropria da idéia de verdade através do método. Toda modernidade crê na possibilidade de cura e liberdade através desse método que é a ideia exata sobre algum objeto. A imagem do objeto é igual sua representação. Só que a idéia de representação já nasce falida a partir do momento em que a representação depende da referência e referência é um dos 15 Em países da Europa existe até um curso superior para Parteira. As pessoas buscam muito esse tipo de procedimento rudimentar e ligado ao natural. 16 “Recuperação” foi o termo usado pelo professor Ortiz na palestra conferida a alunos da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) no ano de 2004. Não uso tal termo, visto a problemática atribuída em torno dessa palavra. 17 Para Renato Ortiz, ligar a idéia de pós-modernismo à idéia de ecologia é também uma tentativa de desconstruir e até se opor a alguns evolucionistas, com seu progresso tecnológico. Porém o autor considera contraditório e inviável nesse sentido “pós-moderno-natural”, pois argumenta que não tem como dissociar projetos ecológicos de tecnologia, ou seja, além da conscientização, hoje é necessário tecnologia avançada para facilitar e viabilizar recursos ecológicos. Aqui um exemplo do novo uso de elementos do passado e não a fidedignidade de sua “recuperação”. 21 maiores colapsos contemporâneos18. Ademais, o exercício da hermenêutica acaba por impossibilitar a idéia exata sobre a singularidade das referências. Foucault também desconstrói a idéia do saber ser libertador. Para ele o saber constitui ilhas de ignorâncias também. O apelo sedutor dos princípios de verdade costuma conter sofisticadas armadilhas, muitas delas estimulam alguma forma de competição ou comparação com os demais. 1.3 Do deslocamento No conjunto de fenômenos sociais definidores do tempo presente, encontra-se um elemento forte chamado deslocamento. O reencontro ou revalorização desses fenômenos citados acima exemplifica essa característica de deslocamento que acaba por revelar uma poética da contemporaneidade. A reciclagem de elementos que não são desconhecidos do ser humano, pelo contrário, foi vivenciado fortemente em épocas outras. 19 Isso talvez leve a refletir também sobre os tão popularizados “tempos históricos” que tem sido largamente utilizado para se pensar nosso passado. Não consigo ver tanta linearidade nesses momentos se eles convivem juntos, principalmente na atualidade. Talvez porque seja o lugar onde estamos vivendo e ao mesmo tempo pesquisando, mas esses gostos contemporâneos que a primeira vista se opõe a alguns modernos, também pode em grande medida ser um gosto barroco que se opõe ao clássico, ou romântico que se opõe ao realismo, não precisamente, mas com traços de alguns e abortamentos de outros em todos os tão definidos “tempos históricos”. Ao invés de uma linha contínua, porque não pensar em linhas que aparecem de diversos lugares, ou linhas circulares, rizomáticas? 20 A origem pode ser o movimento. A reflexão de Schiller (1992), por exemplo, não se esgota no tempo histórico. Ele acredita que a possibilidade de um mundo fundamentado em princípios humanizadores de arte junto de novo com a vida pode existir, uma vez que já existiu na história. E não depende do tempo porque é hipótese de uma ética social que busca a totalidade da inserção humana no mundo, para ele esquecida quando a poesia separou-se da vida cotidiana. 18 Ver Marc-Augé (1994), Deleuze, Guattari (1992). Segundo Calabrese deslocamento "consiste em atribuir ao que foi desvelado do passado, um significado a partir do presente, ou proporcionar ao presente, um significado a partir do que foi desvelado no passado" (1987, p.193). 20 No tempo em que vivemos o excesso e a intensidade dos acontecimentos ativa a memória, de modo que se é capaz de narrar eventos históricos importantíssimos em pouco tempo de vida. 19 22 É através da expressão da experiência que as culturas articulam seus significados, articulam passado e presente e por isso podem ser melhor comparadas através de seus rituais, suas artes cênicas, contos, óperas do que através de seus hábitos (MÜLLER, 2000, s/p.). Dessa forma, elementos valorizados e utilizados no passado deslocam de maneira ressignificada a agir na contemporaneidade, definindo assim, uma nova poética, que é ela mesma a do deslocamento. Aqui são os momentos de estado holístico que me interessam como fenômeno de deslocamento. 1.4 Outra sociabilidade Refletir sobre os estímulos dos tempos modernos e a necessidade de emergir dos mesmos se faz necessário a partir da constatação que os paradigmas modernos não vigoraram. A pretensa dominação da natureza; a ciência como verdade e a razão como certeza dos riscos paradoxalmente produzindo uma sociedade de riscos incalculáveis e sua “verdade” (sempre entre muitas aspas) é uma grande dúvida. As separações explícitas, a idéia de puro e o horror à mistura se desfazem nos fluxos indissociáveis de hibridações e misturas constantes da cultura contemporânea. Produzir sua vida com um futuro projetado no presente (pois professaram que só o homem das cavernas agia no aqui e agora), etc., são exemplos dos modelos que naufragaram. A maioria dos indivíduos prioriza o presente, pois, dos muitos estímulos, não são todos que podem participar. O projeto da maior parte das pessoas é viver e muitas vezes o planejamento é apenas a comida que se consegue no dia. Ortega y Gasset (1987 p. 55) sustenta que nesse contexto a fé na cultura moderna era muito triste já que tinha a vida toda planejada: “saber que o progresso consistia só em avançar eternamente por um caminho idêntico ao que já estava sob nossos pés. Um caminho que mais se parece com uma prisão, elástica, se estica sem nos libertar”. Finalmente, o que parece é que o projeto moderno e sua lógica do “dever-ser” não se concretizou, como já previa o clássico sociólogo Max Weber. Por exemplo, pesquisas apontam que apenas 3% da população brasileira cumpriu o projeto de terminar o ensino básico e entrar na faculdade. Assim, vislumbrar um espaço mais hedonista deve ser uma tendência contemporânea, como elaboram Ortega y Gasset e Maffesoli. O que é importante reter é que as mudanças aqui discutidas apresentam (exatamente pelo que trazem de novo na relação com o espectro do corpo, com a possibilidade de outro olhar sobre o espaço e tempo cotidiano e a relação comunitária com o outro), férteis 23 possibilidades aos indivíduos para o exercício de uma nova relação consigo e com o mundo. De vivenciar de forma diferente o mundo e de experimentar formas reelaboradas de sociabilidade e relação com a alteridade, especialmente a partir da experiência artística. A direção poética atual desconhece impedimentos ou limites. O fim dos limites entre arte e vida possibilita uma nova forma de sociabilidade mais adequada e tão imprescindível na cultura contemporânea. Bourriaud (2009) trabalha com a assertiva que, na contemporaneidade, os artistas passaram a produzir modelos de socialidade e a situar dentro da esfera inter-humana. O mundo contemporâneo é esse caos e é no caos que se criam brechas para ultrapassar os limites do cotidiano. O carnaval provoca caos, e caos é morte. Tudo para nascer novo precisa morrer, desconjuntar; o carnaval desmonta todo um sistema de valores e leis para recriar, renascer. “Uma ordem objetiva 'mutante' pode nascer do caos atual de nossas cidades e também uma nova poesia, uma nova arte de viver” (GUATTARI, 1992). Trata-se de reconstruir não apenas no real, mas também no possível. 24 CAPÍTULO II 2. UMA “PRÉ-LIMINAR” CONTEXTUALIZAÇÃO A liminaridade pode ser como um reino de pura possibilidade, de onde novas configurações de idéias e relações podem surgir (TURNER apud CRAPANZANO, 2005, p. 381) 2.1 Do Carnaval à liminaridade Há muito vários autores têm teorizado sobre o carnaval e seu poder de inversão da ordem. Descrevem esse período como um momento no qual as regras sociais vigentes na vida diária são temporariamente interrompidas, neutralizadas ou invertidas. As análises vão ao sentido de o carnaval configurar um período de contraversão de valores ordinários; momento onde tudo é permitido; esquecimento provisório das regras; descaso sobre a estrutura, etiqueta, etc. Um dos teóricos que esmiuçou a estética carnavalesca foi o filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin. Este, a partir de estudos e analogias sobre o carnaval na Idade Média e no Renascimento, desenvolveu um conceito chave de articulação teórica que influencia várias áreas de conhecimento como a lingüística, literatura, história, sociologia, ciências em geral – a estética carnavalesca ou carnavalização. Resgatando Bakhtin (1993), pode-se dizer que o carnaval, como a representação máxima da carnavalização, conjuga uma pluralidade de vozes tal que o caracteriza, fundamentalmente, como polifônico, dada sua heterogeneidade constitutiva, que relaciona extravagância e simplicidade, cenários exóticos e banais, aspectos eruditos e populares, mesclando uma significativa variedade de estilos e contemplando a junção de pessoas de diferentes classes sociais, etnias e idades. É isso que sintetiza, por excelência, a composição carnavalesca. Substituir o uniforme pela fantasia, comer e beber nas ruas, trocando a casa pelo mundo público, no qual o comportamento dos indivíduos é dominado pela ausência do status 25 social e a regra é não ter regra. Em carnavalização a concepção de espaço é redimensionada pelo desregramento habitual, o riso é propriedade de todos, há a celebração do transbordamento ou excesso de prazer, riqueza, alegria. Bakhtin fala de excesso relacionandoo com o grotesco – a bocarra, o nariz imenso, o exagero nas formas e na diversão levada ao extremo sem maiores preocupações. Para Bakhtin (apud PACHECO, 2006) outro aspecto constante dos ritos carnavalescos são as situações de desnudamento e de mascaramento, já que o ato de pôr a máscara significa assumir outra personalidade e esconder-se, ou mesmo, assumir-se. Durkheim discorre muito bem sobre o tema da anonímia, assim como o antropólogo britânico Victor Turner. As máscaras são recorrentes e o anonimato com o artifício de esconder o rosto, possibilita expressar desejos proibidos no cotidiano. A hierarquia é desvelada como a mais irrelevante superficialidade, pois o destronamento de tudo que é elevado, para dar lugar o nivelamento do mundo, acaba por criar a intensidade de uma nova cosmologia, do novo olhar para o mundo muito mais profundo. Bakhtin (1993, p. 14) caracteriza esse ambiente carnavalizado como “o caráter universal, a concepção profunda do mundo.” Para o autor o carnaval é a “procissão dos deuses destronados” tanto dos status social, quanto dos pecados morais (apud BRAIT, p.55). O sociólogo brasileiro, Roberto da Matta (1977, p. 22) diz que o carnaval é o “sumário perfeito da visão anticotidiana da vida”. Sua abordagem é específica sobre o carnaval no Brasil, sua imagem e as incorporações dessa imagem pelos próprios brasileiros. Nesse sentido, é como se os brasileiros desejassem sempre enfatizar os aspectos “comunitários” da sua ordem social, e o desdém pelo estrutural 21. O malandro, em contraste com o “Caxias”; o “jeitinho”, em contraste com a burocracia cotidiana, assim por diante. A diluição das hierarquias está presente em todas as teorias sobre o carnaval. Ela é um forte vetor para incorporação do estado comunitário (holístico) como problematizado no primeiro capítulo. Já que as diferenças instituem a heterogeneidade e as hierarquias homogeneízam, de acordo com Eliane Fonseca (1998, p.67), o carnaval institui a diferença, no sentido de respeito à individualidade, prazeres e desejos de cada um, ao mesmo tempo colocando todos no mesmo patamar de humanidade. Sem escadas, os corpos realmente se 21 (permanência, autoridade, posição definida, não espontaneidade social e ideológica, distinções de status e riqueza, secularidade, obediência, hierarquia, conhecimento técnico), aspectos destacados por Turner (1992) como estrutura. 26 tornam comunitários e os sujeitos podem experimentar sensações de coletividade, de um todo ininterrupto naturalmente. É o citado estado holístico, que se faz presente no carnaval. Da Matta constrói uma analogia do conceito de Vitor Turner de communitas e liminaridade com o carnaval do Brasil. Aborda o carnaval como sendo a instituição paradigmática desta visão do Brasil como uma grande communitas. Diz que o carnaval e sua visão não rotinizada do mundo rompe com o continuum da vida diária, “apontando gritantemente para alguns pontos básicos da nossa ordem social” (MATTA, 1977, p. 22). Segundo o autor, o carnaval é o período de tempo anômalo onde encontramos uma coerência entre o aparecimento de seres “ambíguos e escondidos”- monstros, demônios, seres cósmicos, entre outros. As fantasias representam tipos problemáticos e marginais tais como tivesse aberto os porões da sociedade. Aparecem com todo o seu poder de provocar o caos. “Para-se com as atividades rotineiras, dorme-se de dia e anda-se de noite”. (Id., Ibid., p. 36) O trânsito se acalma e as ruas são ocupadas pelas pessoas. 2.2 À liminaridade Olavo Bilac descreve um tipo social – o carnavalesco, como o exemplo perfeito do “homem liminal”: ... É um homem maduro, matriculado tendo mulher e filhos, apólices e comenda. Pouco importa! É um carnavalesco... Na vida desse homem, de vida regrada e equilibrada, o Carnaval é um hiato, é uma síncope, é a anulação completa de sua consciência de homem e de chefe de família, é a suspensão absoluta de toda a sua gravidade de negociante e de comendador (apud MATTA, 1977, p. 31). Sublinho o fato de essa composição carnavalesca representar uma ausência de estrutura, ou melhor, a estrutura estar em suspensão, assim como os anseios do cotidiano, o que leva os indivíduos a uma experiência onírica, com espaço e tempo em outra dimensão, onde o futuro é não planejado, incerto. Aqui, inicia-se a conjugação do ponto que nos interessa – os efeitos de carnavalização com a teoria da liminaridade de Turner (1974). Victor Turner, um antropólogo britânico preocupado com a transição nos ritos de passagem, estudando os Nuer descobre nos momentos auge de seus rituais a liminaridade. Liminaridade seria o momento auge do ritual onde a estrutura se encontra em suspensão, há ausência de “status”, de diferença sexual, de classes, hierarquia, de obrigações de parentesco, anonímia. Os corpos se encontram pairando por um espaço-tempo indizível, mais potencial que se imagina, segundo Turner. O indivíduo se encontra no meio, no entre 27 (betwixt and between22), no nada da estrutura cotidiana. O que está suspenso é todo o sistema social vigente, tudo que é ordinário, todos os anseios do cotidiano. Turner (1974) chamou, apropriadamente, a liminaridade de prima matéria: um estado bruto onde não se está nem dentro nem fora da sociedade, está absorto em singularidades, espaço, tempo, inclassificáveis, aliás, ele diz que é transporte para outras realidades. 23 O modelo de Turner é basicamente o modelo tripartite do rite de passage de Van Gennep (1960): separação, margem e incorporação. Crapanzano (2005) entre outros autores ampliaram o modelo dos ritos concernentes a crises na vida de um indivíduo para aqueles da sociedade em geral. Estes incluiriam ritos preparatórios para a guerra, cerimônias de primeira frutificação, colheita e chuva, que marcam a passagem da escassez para a abundância, e rituais de posse, como coroações, que, embora centrados em um indivíduo, são eminentemente coletivos na orientação e nos efeitos. Turner (1974, cap. 1) amplia mais ainda o modelo, aplicando-o a períodos de reparação de conflitos sociais, que chama de dramas sociais. O centro de sua atenção é a liminaridade – a margem –, que considera uma “situação interestrutural” e é entendida como processo e devir. Não está particularmente interessado em pontuar o liminar – em suas disjunções internas – e em como este efetua e é afetado pelo momento final, definidor da transição. Contribuindo com o estudo de Turner, quero atentar justamente para as disjunções momentâneas no instante específico da dissociação das estruturas conscienciais ou não, ou seja, o foco da pesquisa está no momento crucial do desligamento de todas as percepções automatizadas da cultura. Analiso qual o caminho pra se chegar nesse estado de escuta das vibrações que se diferenciam da repetição diária. Esses momentos liminares são apenas executados e geralmente ignorados, embora possam ser exibidos em rituais dilatados e repetitivos, no drama, na literatura e na música, segundo Crapanzano (2005). São os momentos definidores dos ritos de passagem, mas também de transições corriqueiras de um registro experiencial, por exemplo, a vigília, a outro, por exemplo, o sonho, o transe ou o simples adormecer. O trabalho que me propus realizar está no momento de passagem que, em essência, nao pode ser enunciado, não com ritos de passagem tradicionais, mas com uma inclinação considerável para o elemento que foi identificado a priori como o que representa mais 22 Turner usa o termo “betwixt and between” em vários livros, no qual funde dois sinônimos que aponta a indeterminação e falta de localização precisa da coisa designada. Exemplos de possíveis traduções seriam: “nem lá nem cá”, “aquém e além dos pontos fixos”, “entre dois mundos”, “entre e entrementes”. 23 Para Artaud o ser tem estados inumeráveis. 28 ludicamente a suspensão da estrutura cotidiana e quebra das convenções culturais – a arte. Assim, o termo – estado-metáfora – veio para ajudar a pensar essa passagem. Turner enxergou a liminaridade nos ritos de passagem, Vicent Crapanzano na estética japonesa e no misticismo sufi. A maioria desses ritos se fazem em situações de culto, religião ou manifestações equivalentes; aqui estaria então a suspensão da estrutura cotidiana com Religião. Abordo essa suspensão em contato com Arte explicitada no momento liminar de Turner, com o antes, o durante o ato da criação e o depois, se esse ato de produzir algum tipo de Arte24, ou mesmo a sensação artística, o estado-metáfora, ou o estado de arte, como veremos adiante, pode enriquecer subjetividades no personagem cotidiano ou mesmo no grupo social. A Arte aqui será abordada no sentido ritual. Abordando-a assim, numa perspectiva maior compreendendo além da apreciação estética, (e todas as definições europeizantes), como um amplo espectro de expressões e manifestações de sentidos e valores culturais. Mas por que escolher a arte? Eliane Fonseca (1998, p. 14) discorrendo a respeito da função mais importante da arte, defende que é a “ruptura com o velho, o conhecido, e a abertura para outra forma de conhecer”. Bourriaud diz que a arte tem por finalidade reduzir a parte mecânica em nós: “ela almeja destruir todo acordo apriorístico sobre o percebido” (2009, p. 113). Enfim, a arte inventa subjetividades com uma linguagem que só pode ser acessada através da linguagem artística. Essas e outras descrições sobre as sensações de arte partem do significado que pesquiso, do encontro com o momento limiar do estado-metáfora. Se liminaridade não parece uma palavra tão comumente usada no meio científico, não obstante, a ideia que compõe o conceito é bastante teorizada, porém, em outros contextos e com nomes bastante distintos. Expor sobre eles pode nos ajudar a pensar o objeto desse trabalho: O conceito de corpo-de-sonho da psicanalista e poeta, Eliane Fonseca (1998), é um bom exemplo. Para ela corpo-de-sonho é o movimento perceptível que deixa ver o vão, o entre uma coisa e outra coisa.25 Ela define: É o intervalo entre a evanescência e a corporeidade, entre o possível e o virtual, entre o vão do sentir e do experimentar, na báscula entre desejar e 24 “A Arte proporciona a dimensão da „beleza‟ aberta ao espírito através da sensibilidade.” (Hegel, 1992) 25 Turner betwixt and between, para tentar definir melhor esse estado liminar, o “entre”, como foi dito. 29 querer, na esquize da vida e da morte (...) funciona como um instrumento privilegiado para a travessia do estranho que, por ser o informe, aterroriza e fascina (FONSECA, Ibid., Apresentação). Assim como a liminaridade, o corpo-de-sonho é estado de arte ou estado de risco, de acordo com Fonseca, pois sua emersão implica o abandono das garantias e referências do saber suposto, e o deslocamento do horizonte das representações, da lógica do racionaldiscursivo para o campo da poética. “Por estar determinado pela quebra do senso comum, há uma função do corpo-de-sonho que se aproxima da função mais importante da arte” aquela de romper com o definido e abrir fendas para o pré formal ou o informe, chamando de “o saber que permite sonhar” (FONSECA, 1998, p.14). O conceito dessa autora demonstra que a conexão das sensações da liminaridade com as da arte já foi não só pensada como teorizada. Muito propício para o objeto dessa pesquisa, tanto liminaridade, arte e corpo-desonho, jamais estão prontos, mas sempre em constituição, desmanchando formas, atravessando o informe e criando outras formas de subjetivação e de existência. É um ultrapassar da linguagem, do formalismo, da estrutura, um ir além. Para Crapanzano (2005) o limiar foi muitas vezes equiparado ao sonho – ao processo primário de pensamento, mas na verdade ele sugere possibilidades imaginativas que, não necessariamente, estão ao nosso dispor no cotidiano. Estado de arte é outro conceito relevante aqui. Esse é elaborado pela artista (ou como ela preferia se auto-intitular “não-artista”) Lygia Clark. Sua arte aproximava o expectador de um estado onde o mundo se molda e passa a ser constante transformação. O que a artista buscava era a constituição de um estado estético (o “estado da arte sem arte”) que só ocorreria com a recuperação do corpo sensório. “Por isso os suportes físicos das proposições construtivas não são obras artísticas, mas instrumentos de sensibilização: são pontos de partida que procuram despertar a capacidade criativa do manipulador” (CLARK apud BRETAS, 2010, s/p). Avatar de uma prática eminentemente estética, Clark investe na experimentação de um constructo espácio-temporal alternativo como “propedêutica” para outro tipo de vivência política. Tanto que em 1968, em um texto espécie de manifesto da atitude reivindicada pela artista desde Caminhando, ela escreve: “Somos os propositores (...) enterramos a „obra de arte‟ como tal e solicitamos a vocês que o pensamento viva pela ação” (CLARK, 1980, p.31). Sua ênfase na sensação é notória. A sensação, segundo Deleuze e Guattari (1992, p. 271), é a maneira de responder ao caos. Ela é “a vibração contraída, tornada qualidade, 30 variedade (...) A contração não é uma ação, mas uma paixão pura, uma contemplação que conserva o precedente no seguinte”. Essa contra-ação pode ser entendida também como a não-regra, as contravenções do estado-metáfora. Para eles a sensação está, pois, sobre outro plano diferente daqueles dos mecanismos e das finalidades. Ela preenche o plano de composição, e preenche a si mesma, preenchendo-se com aquilo que ela contempla. “É preciso que a função seja captada numa sensação que lhe dá perceptos e afectos compostos pela arte exclusivamente, sobre um plano de criação específica que a arranca de toda referência”. (DELEUZE; GATTARI, Ibid., p. 278) Passando por Walter Benjamim (apud FONSECA,1998, p. 132), observamos que ele traça dois conceitos relacionados ao tempo, bastantes distintos entre si: o limite e o limiar. O limite não é uma interrupção no tempo, mas o fator de sua continuidade. O limite existiria, por exemplo, para o tempo cronológico. O limiar, por sua vez, é uma zona de passagem, uma interrupção no tempo. Justamente essa interrupção é o que cria um entremeio, um hiato, transformando o limiar em uma zona, uma espacialidade dentro da própria interrupção do tempo cronológico que, por sua vez, dá lugar a outras temporalidades. Segundo Benjamin (apud MATOS, 1993), é no limiar que ocorre o estranhamento, quando fronteiras se misturam: as do sono e da vigília, da ficção e da realidade material, do eu e do não-eu, da historia e da natureza, da natureza e do homem. Ainda completa dizendo que no predomínio da razão discursiva, “quando o mundo se desencanta e se mecaniza, nós nos tornamos muito pobres em experiências de limiar”. (Id., Ibid., p. 49) Deleuze e Guattari (1992) também formulam uma teoria providencial para nossas analogias de liminaridade. Em O que é filosofia? referem-se a um “guarda-sol” que nos protege do caos, que aqui seria a cultura dominante, a estrutura convencionalizada. Esse guarda-sol em alguma medida nos impede de formar uma opinião fora de tudo que já foi formatado. No caso deles, são a filosofia, a ciência e a arte, os instrumentos que rasgam o guarda-sol e faz-nos mergulhar no caos. O caos pode ser comparado com o estado-metáfora. Eles citam Lawrence que diz: “Os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda...” (apud DELEUZE; GUATARI, 1992, p. 261). 31 Os autores consideram esse encontro com o caos necessário para operar as destruições imprescindíveis e mostrar a novidade que não podemos ver na vida ordinária (o “novo” da metáfora). O caos que faz surgir uma visão que o ilumina por um instante, uma Sensação. Em todo o apanhado bibliográfico realizado aqui, as referências são exclusivamente o que se experimenta a flor da pele. Sendo assim, a composição – Carnaval/Liminaridade – operam sensações únicas que o discurso não alcança plenamente, sensações essas que compõem o alvo da pesquisa. 32 CAPÍTULO III 3. BLOCO DOS CARETAS Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as realidades das contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro de meu eu? Dentro de minha barriga mora um pássaro, dentro do meu peito, um leão. Esse passeia pra lá e pra cá incessantemente. A ave grasna, esperneia e é sacrificada. O ovo continua a envolvê-la, como mortalha, mas já é o começo do outro pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçadas. (Lygia Clark) Logo que cheguei, não notei nada além de uma cidade pacata e acomodada, pouco acontece fora da rotina tão fixa, típica de uma cidade muito pequena. Um lugar que aos poucos decresce em número de habitantes26, fato este, que incomoda muito aos moradores. No entanto, uma semana antes do carnaval, nitidamente a cidade começa a borbulhar. O volume de carros aumenta, assim como o número de pessoas, burburinhos sobre o Bloco dos Caretas, a banda, os roupões, a máscara que será utilizada, o talco; os moradores se postam para fora de suas casas... Parece que algo nasce por ali. Para essa cidade realmente o carnaval é algo ímpar, ansiosamente esperado que age movimentando a estática do espaço e os ânimos de moradores, turistas e entorno. Cada dia que passa o clima carnavalesco aumenta e vai tomando conta da cidade. A princípio, essa descrição pode se equiparar à descrição sobre os dias que antecedem o carnaval em qualquer cidade. Entretanto, por conta do caráter de transe nos traços artísticos do Bloco (teatralização, performance, música, dança, artes plásticas) e por configurar um ritual descerimonioso e profano, ao contrário dos ritos tradicionais, o campo empírico se mostrou oportuno para os objetivos da pesquisa. Localizada na região sul de Mato Grosso, distando cerca de 310 km (trezentos e dez quilômetros) da capital Cuiabá, Guiratinga, considerada a capital nacional das orquídeas, tem 26 Dados do IBGE demonstram que nos anos de 1950 a população era superior à vinte mil habitantes. O último censo 2010 contou menos de quatorze mil habitantes. Ver: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1 33 como marco a ocupação motivada pela exploração de diamantes e por forte seca ocorrida nas regiões norte e nordeste do país no início do século XX. As múltiplas representações presentes na alma desses migrantes deslocaram para a incipiente cultura local um modo novo e metamorfoseado de brincar o carnaval. O Bloco dos Caretas é uma expressão artística na qual uma diversidade de pessoas muito dispostas a se divertir sai pelas ruas dançando ao som de tambores, jogando talco em quem não está fantasiado. Para participar, basta vestir uma túnica27, o dito roupão, colorido de chita, um capuz, uma máscara, muita irreverência e energia, para bancar uma de monstro percorrendo as ruas da cidade brincando de rei, capeta, “viado”, Xuxa preta, entre outros. A máscara é o componente mais prodigioso do Bloco. Pode apresentar formas aberrantes, espantosas, criativas, engraçadas, o suficiente para causar impacto no público que muito valoriza e se diverte com as peripécias desses caretas. Além disso, a máscara é o elemento que desperta a criatividade, engenhosidade, pois são confeccionadas artesanalmente pelos próprios foliões, existindo, ainda, toda uma ludicidade na composição e modos de confeccioná-las. Modelar barro e construir máscaras é algo que está presente no imaginário dos moradores e nas brincadeiras de criança. A princípio, ocupei-me do levantamento de dados acerca das condições sociais daqueles que ajudaram a criar o Bloco dos Caretas, conferindo-lhe uma forma que se transformaria ao longo dos anos. Foram observadas as representações sociais presentes no imaginário de moradores e turistas. Foram realizadas entrevistas abertas com foliões e transeuntes, antes, durante e depois da passagem do Bloco. Além de visitas em moradias aleatórias e entrevistas dentro da concentração também. Visitantes e habitantes dos mais diversos estados sociais, padres, crianças e adultos, ateus e atores da trama desnudam seus desejos, brincam com a seriedade da vida, descobrindo entes através das máscaras e melodias no silêncio distante. Observação participante – coloquei-me de fora e, n‟outros momentos, de dentro da máscara, saindo mascarada junto com os foliões, com o intuito de verificar por diferentes ângulos, a observação dos foliões e dos “expectadores”, cujas poltronas eram os portões, ou janelas de suas próprias casas. 27 Vestidura larga de um corte só que cobre o corpo inteiro, como um grande vestido. Em Guiratinga chamado de “roupão”. 34 3.1 Visitando os criadores do Bloco dos Caretas Na década de 1940 a elite guiratinguense possuía locais exclusivos para brincar carnaval. Por ser a economia da cidade baseada no garimpo, os diamantes bancavam fantasias luxuosas encomendadas no Rio e em São Paulo. 28 Entretanto, os moradores que fugiam do padrão social exigido nessas festas, eram excluídos desses clubes. Assim os mais entusiasmados, mas sem dinheiro no bolso (ou até mesmo por serem negros) tiveram que utilizar do imaginário e criatividade para dar vida ao Bloco dos Caretas. Joaquim Vilela Neto relata: Filhos de mães solteiras, homossexuais, pobres e pretos não adiantava nem tentar entrar nos clubes, eram barrados mesmo; a discriminação já começava pela escolha do traje, mas caso a pessoa se enquadrasse em uma das situações anteriores, nem estando bem trajado conseguiria adentrar ao recinto de um clube (DOURADO, 2003, p. 6). Seu Antônio Silva relata sobre o mencionado período: Naquela época era muito divertido! Quando o Bloco passava parava tudo, até as danceterias que promoviam as matinês elitizadas (...) era chegar ali e acabar com o carnaval deles, a criançada corria tudo pra ver o Bloco! Sem ter consciência da contribuição para a relativa democratização do carnaval, aqueles nordestinos criaram uma força coletiva ímpar que com o passar do tempo integrou todas as classes. Por alguns momentos, todos, em suas particulares diferenças, sentiam-se iguais. “Relativa democratização” porque as mulheres ainda estavam de fora. No entanto, alguns relatos mostram que a própria máscara era o fator mais democratizador de tal fenômeno, pois, segundo uma foliã, Ana Cláudia: Se em algum momento do pula-pula no meio dos Caretas todos fossem obrigados a tirar as máscaras, certeza que veríamos um bocado de mulheres entre os integrantes do Bloco que entram escondidas. (...) Nós furamos mesmo, é só aglomerar o pessoal que a gente furava. Dessa maneira, o Bloco dos Caretas foi atraindo uma diversidade de pessoas que se entregavam às manifestações do devir-monstro. Hoje é um ritual ansiosamente aguardado e inaugura uma comunhão de alegria pincelada de expressões artísticas muito apreciadas pelos 28 DOURADO, Jucedelia G. O Bloco dos Caretas na cultura guiratinguense. Monografia de conclusão de graduação em História. Rondonópolis, 2003. 35 moradores e turistas; expressões essas preenchidas por fatores significativos, parafraseando Lévi-Strauss, “boas para pensar”. Uma casa simples, com um barracão a frente, localizada na periferia da cidade, é o local onde moram alguns organizadores do Bloco dos Caretinhas. No carnaval da cidade saem três Blocos tradicionais: o Bloco dos Caretas (adultos com roupão, capuz e máscara), o Bloco dos Caretinhas (crianças com roupão, capuz e máscara) e o Bloco dos Sujos (todas as idades com roupão e capuz somente). Filhos, netos e primos dos criadores do Bloco se dividem para organizar os três Blocos. O organizador do Bloco infantil relatou que crianças de qualquer idade podem sair no Bloco, mas os menores saem, de preferência, acompanhados de um responsável. Já no Bloco dos Caretas adulto não existe qualquer restrição, todos podem participar. Lá estarão velhos, casadas, putas, “patricinhas”, tímidos, ouriçadas, excluídos, enfim, uma diversidade de seres motivados por diversão e distanciamento do cotidiano. Esse organizador assume que a maior fascinação das crianças e adultos é a ideia de não mostrar quem é. Brincar com os conhecidos como se fossem simplesmente monstros ou outra pessoa qualquer. Essa noção de não-identidade remete à reflexão sobre a busca de singularidades. Wivaldo, organizador do Bloco dos Caretas adulto, filho de “Buniteza” (um dos fundadores do Bloco), relata que eles interrompem todas as atividades profissionais (já que são autônomos) dois meses antes do carnaval para criar máscaras, que serão alugadas por turistas ou foliões que não têm tempo para confeccionar sua própria máscara. E para que ninguém fique de fora por não ter máscara, eles confeccionam máscaras fantásticas, como algumas imagens abaixo: 36 37 38 Figuras 4, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8: máscaras do Bloco dos Caretas 39 Um menino me relatou que enquanto moldava o barro a sua intenção era fazer uma figura bem assustadora. E disse: “quando saio incorporo o monstro mesmo, não me sinto Adriano...” (Adriano, 12 anos) Um senhor, que é arquiteto, relatou que possui várias máscaras de lembrança (pequenas máscaras feitas exclusivamente para souvenir) que ele próprio customizou com artefatos diferentes dos usados aqui, como brilhantes e outros acessórios. Relatou, ainda, que os cobriu com moldura de vidro e pendurou-os na parede de casa. As máscaras do Bloco possuem seu significado cultural e social para a cidade e para os foliões. Ao mesmo tempo, elas também são ressignificadas constantemente, tanto no sentido que esse arquiteto concedeu como objeto de arte, como também brinquedo infantil ou mesmo como lembraça para presentear. Cada máscara confeccionada possui um pouco das subjetividades do artífice. Para quem confecciona uma máscara em cada carnaval, elas não vão se acumulando tanto em suas casas, a maioria vai sendo repassada, trocada e até mesmo doada a outro folião. Dessa maneira, o folião não será reconhecido pela sua máscara. Aliás, o pronome possessivo no Bloco não é muito usado. A máscara em geral é trocada na concentração ou até mesmo durante a passagem do Bloco, justamente para não haver o reconhecimento, assim como o roupão, o sapato, o talco, etc. Um senhor que participa do Bloco desde a década de 1970, disse: O Bloco é familiar, existe uma relação de companheirismo, se você fica bêbado e cai, todos vão te ajudar e te levar pra casa, pois existe uma relação fraterna, saudável. Quando coloco a máscara continuo sendo o Carola, mas o Carola que esqueceu de tudo, problemas familiares, deveres... Sou o Carola livre. Por isso que uma multidão segue a gente! Porque é uma diversão só! (Carola, 53 anos) Carola foi entrevistado enquanto estava na casa do organizador fazendo sua inscrição para participar do Bloco. Um dia antes da saída do Bloco várias pessoas chegam nessa casa para tirar dúvidas, se inscrever ou mesmo ajudar; barulho, escolha de máscaras, euforia, festa, início de um rito. Parece que por ali, por mais que estejam trabalhando, o ar de despreocupação, alegria e harmonia já está presente, além de ser mesmo o ingresso para o “Sair no Bloco”! Todos sabem que vários foliões “furam” quando o Bloco já está nas ruas, se embréiam no aglomerado e não pagam o ingresso. Mas os que pagam, em geral falam que a concentração no ginásio é essencial, por isso preferem contribuir para sair da concentração. O Bloco “sai” do Ginásio de Esportes da cidade. Interessante notar o verbo usado para designar a ação do Bloco – “sair”. “Esse ano o Bloco quase não saía!”; “Nossa! tem que sair 40 sim.”; “Se não sair, o carnaval não vai ter graça nenhuma”. Essas foram algumas frases correntes na cidade até a decisão que iriam, sim, “sair”. O termo “sair” remete já a idéia de não estar dentro de um mesmo programinha vigente o ano todo. “Sair” é se colocar além da fronteira ou limite, nesse caso, do que é vivido diariamente. Não falam: “O Bloco começou!”. Significa agir, se mover para abrir portas e ultrapassá-las. 3.2 Preparando para o desnudamento do corpo social A confecção da máscara é o primeiro momento que destaquei para iniciar o processo de desmascaramento de identificação pessoal. Sobre uma madeira, os monstros vão sendo moldados na argila. 29 A imaginação é o modelo. Depois de muitos toques, vão surgindo formas assustadoras ou gozadas. Depois é o momento de passar o papel. A cola de polvilho deve ser feita com água quente e esfriada enquanto é mexida para colar bem. Após passadas quatro camadas de papel, que geralmente é reaproveitado de cadernos ou impressos que seriam jogados no lixo, (o papel de cada camada deve ser diferente para ter certeza que foi passada na máscara inteira) deve-se deixar secar ao sol. Cobrem com cerca de treze a quinze camadas de papel e após secar uns dois dias, retiram a máscara da madeira e iniciam o processo de retirar o barro (pela parte de trás da máscara) com colher. Remontam papel na parte de trás para não ficar com resquícios de barro e agora é só pintar se entregar à imaginação que motiva criatividade, pois nos acessórios não há restrição, colocam pêlos ou cabelos de peruca, crina/rabo de cavalo, ou mesmo cabelo de boneca.30 Invariavelmente colocam também dentes, que podem ser de cavalos ou até mesmo modelados com durepox, estes são enfiados em um palito e furados na máscara. Acessórios como brincos, argolas, para dar forma mais real ou aterrorizante para o “bicho” também são válidos, entre outros. As figuras vão desde monstros com chifres e cara de mal, até animais como vaca, porco, girafa (nesse caso, o olho do folião fica na altura do pescoço da girafa para enxergar); personagens conhecidas também não são poupados da ridicularização. Realmente constroem um rosto, “dão uma de deus”, diz um curioso. Montam, parte por parte, um novo ser. 29 Wivaldo relata que dependendo da figura é necessário quase os cinquenta quilos de barro para o molde da máscara, como a máscara da girafa, do elefante. Já uma máscara normal usa-se de dois a três quilos. 30 Um dia presenciei uma senhora desenrolando uma corda na porta de casa; ela me explicou que seria transformada em cabelos para a máscara do marido. 41 Figura 9: reajuste na máscara Figura 10: máscara sendo confeccionada Essas máscaras traduzem ao pé da letra o grotesco de uma careta: inflam bochechas, esticam os lábios, arreganham os dentes, franzem a testa, arregalam os olhos. Moldadas no barro e no papier maché numa projeção escultural – formas exacerbadas, alongamento de narizes e orelhas, criação de protuberâncias – tornam-se monstruosas. O rosto do folião é velado por essas aberrantes, espantosas, criativas e engraçadas composições combinadas com as túnicas coloridas de chitão que abrigam travesseiros e outros volumes produzindo também um corpo deformado. 3.2.1 Confeccionando a máscara Resolvi construir uma máscara com a intenção de, com o olhar direcionado da pesquisa, participar desse processo para conhecer as sensações de quando se está criando/moldando um monstro que irá compor seu próprio personagem posteriormente. Observar minhas próprias percepções de artífice, foliã e, é claro, ex-bloquista, além de antropóloga focada nos ínterins da cultura contemporânea, pesquisando tal momento. Propus-me a realizar todo o ritual que, em geral, os foliões fazem. Busquei barro numa olaria, situada a um quilômetro da cidade. Notei os funcionários extremamente atenciosos e prestativos quando se justifica o pedido para a construção de máscara para sair no Bloco. Quase todos também sairão e usarão máscaras já construídas para outros carnavais. A primeira necessidade é se visualizar nas formas monstruosas. Parece que o exagero levará ao susto, temor.31 Não tive muita sorte, pois exagerei numa parte, eu diria “angelical”, a bochecha, assim o monstro ficou mais bizarro que assustador. 31 Foi observado que quando se faz a máscara a intenção é que ela seja a mais aterrorizante possível; mas quando se está vestido não necessariamente é essa a intenção. A empolgação por não precisar se identificar e o poder momentâneo de se fazer o que não se faz cotidianamente são mais enfatizados que a própria capacidade de aterrorizar. 42 Interessante notar que para que a máscara se encaixe no rosto, no momento em que se molda o tamanho da cara, deve-se medir mais ou menos o seu próprio rosto. Dessa maneira, coloco meu rosto em frente e bem perto da argila informe ainda, para saber mais ou menos a largura e o lugar dos olhos. Ou seja, primeiramente percebi que por mais excesso ou falta de partes que o monstro permite (e intenciona-se isso: moldar o que você não tem, o que lhe falta ou lhe excede, a possibilidade que o humano perfeito não tem), esses dois itens (largura e buraco do olho) tem que ser médio, obviamente,para enxergar posteriormente. Outra percepção relevante é que logo após esse movimento de afastar o rosto do barro (em um tipo de zoom invertido), a sensação de espelho é nítida. Olha-se o reflexo do que se quer ser ao sair no Bloco. Tem-se a possibilidade/poder de, com as próprias mãos, moldar (ação/performatividade/formar/agir) sua própria imagem livre dos estímulos estéticos culturais. Eliane Fonseca constata que os rostos humanos se diferenciam infinitamente uns dos outros e, inclusive, um mesmo rosto se diferencia infinitamente de si mesmo. Segundo a autora, nessa variedade que engendra singularidades, nas distintas expressões que iluminam ou apagam um mesmo rosto, vê-se partituras de pura expressividade. “Como o rosto humano, o corpo-de-sonho é uma experiência de limiar. Ou vice-versa” (FONSECA, 1998, p. 137). Durante a construção da máscara experiencia-se estar de fora do que você estará de dentro. Dessa maneira, se constrói como se quer ser enxergado pelo outro. Molda-se pensando no que quer ser para o outro e para si; todavia o que o próprio folião pensa que é, não necessariamente será para o outro, pois cada um verá um monstro diferente. Por exemplo: uma senhora observou a minha máscara considerando-a extremamente assustadora e demoníaca “um fofão do mal”, foi seu comentário. Mostrei a uma criança de um ano, ela olhou fixamente com curiosidade e logo demonstrou interesse em pegar; sem susto, nem medo. Já um colega que sempre confecciona máscaras, riu muito dizendo que meu monstro “não assusta nem rato”. José Gil (1994, p. 56) diz que o homem “só produz monstros para pensar a própria humanidade, para ter uma idéia estável do que seu ser não é”. Para ele então, o monstro seria a alteridade humana. No entanto, qual o limiar da referência para contrastar essa alteridade? Nesse caso, Tucherman (1999) é perspicaz ao afirmar que o lugar da alteridade no processo de estranhar e fascinar pela figura deformada, metamorfoseada, é que o outro não está do lado de fora, ou do outro lado do espelho, mas contém a própria noção de identificação. “A alteridade faz parte do processo de classificação do idêntico. (...) Sendo assim, a equivalência dos corpos nos força a reconhecer, no corpo do Outro, o duplo de nosso 43 próprio corpo.” O que reforça a idéia de que o monstro é uma maneira do homem se imaginar com outras formas, ultrapassando um limiar que força compreensões de si, e não a estabilidade do que seu ser não é como quer Gil. Pierre Jeudy (2002, p.105) diz que: A ética herdada da vontade cristã de sermos todos semelhantes elimina toda figura de uma radicalidade exótica qualquer, transformando imediatamente em perversidade estética e assimilando-a à obscenidade de um colonialismo ainda latente. A afirmação parece contrariar o argumento anterior, entretanto a última frase refuta: ao dizer que assimila “um colonialismo ainda latente”, ele ironiza a vontade cristã, assim como o etnocentrismo estético do colonizador. O exótico se faz obsceno porque questiona o homem como „a imagem e semelhança de Deus‟. Para Ieda Tucherman os monstros existem não para mostrar o que nós não somos, mas “para nos mostrar o que poderíamos ser, não o que somos, mas também não o que nunca seríamos” (1999, p. 101). Eles são a desfiguração do Mesmo no Outro, como algo que não nos confundimos, mas também não nos diferenciamos totalmente. Nessa perspectiva, onde se encontra o Eu e onde se encontra o Outro em mim? Podemos ter contato com esse Outro dentro de nós e continuarmos humanos? Identificação e alteridade traçam o trajeto do corpo e suas fantasias. A identificação é a fronteira ideal estabelecida pela ordem coletiva. O monstro é a alteridade que se encontra na própria identidade, mas não tem fronteiras, muito menos ideal. Por isso ele também tem a função social de mostrar o que deve ser temido e rejeitado. Por ser ambíguo (nem homem, nem bicho), aparece durante o carnaval que é o cenário propício para a quebra de normas, para viver a não-estrutura. O monstro está no limiar da humanidade, representa a heterogeneidade da forma, do desejo, do ser, o mestiço. A construção da máscara de careta (o monstro) se dá nesse processo lúdico e ativo de desmascaramento de si, de se colocar à disposição da alteridade que está em si também, de desconstrução das perfeições sociais. Abrindo possibilidades de acesso a subjetividades que já estão presentes no corpo, esperando apenas oportunidade para agenciamento. “Com a máscara você sente a sensação de liberdade. Posso fazer o que sempre desejei e até o que nunca pensei que desejaria. Esquece todos os problemas e não fica depois com peso na consciência” (Carola, 53 anos). 44 Roberto da Matta (1977, p. 26) diz que “as máscaras indicam uma situação informal, onde as pessoas podem realizar aquilo que desejam porque têm escondidas por trás de um disfarce as suas identidades sociais que operam na vida diária.” Esse componente, portanto, remete a uma situação extraordinária, oposta tanto à vida cotidiana, quanto aos rituais opostos, onde o que domina é a formalização. De acordo com esse autor, os monstros e demônios são seres de Carnaval, ao passo que os santos, profetas e outras entidades positivas são dele banidos. Pois anjos e santos são seres da estrutura, vale dizer: “da imobilidade bem-aventurada que chega com a perfeição onipotente e remete a flocos de nuvens e arpejos”. Mas os “monstros carnavalescos pertencem ao domínio frenético da mobilidade, da ação incessante do fogo do inferno e da busca para uma insatisfação não orientada”, afirma Da Matta (Ibid.). Esse é o seu tempo. “Quero sair no Bloco, mas minha mãe disse que eu tenho que ir para o acampamento da igreja”, confessa Bruninha, de seis anos. Os evangélicos não têm muita afeição pelo Bloco. Distinguem como algo perigoso pra a vida cristã. “Caretas, já diz o nome! São monstros capetosos! Do inferno só pode ser esses bichos, de Deus é que não são!” Exclama Benedita Neres, senhora evangélica da cidade. O perigo implicado pelo corpo mascarado é o perigo de explicitar singularidades novas. O novo, o desconhecido é sempre temido. O que não é totalmente claro, indefinido, ou está à margem também é fonte de perigo, segundo Mary Douglas (1999). No caso do Bloco, o corpo lógico é suplantado pela máscara de monstro. Contudo, é a experimentação desse corpo perigoso que pode ser fonte de novas perspectivas de si, pois o monstro é o contra regra, a aberração, uma folia do corpo não racional, instantaneamente autônomo e espontâneo. As aberturas pequenas para os olhos, além do capuz, que dificulta ainda mais a visão, colaboram para uma nova perspectiva visual, assim como no teatro Nô. Nesse sentido, Tucherman (1999) salienta que uma das funções do monstro é perturbar os sentidos, especificamente a visão. Ela diz que o monstro perturba a visão e mostra, permitindo assim, outra possibilidade de olhar. A confecção da máscara é o ponto de partida para o desvendar-se nos irreconhecíveis espelhos. Por trás das máscaras e do carnaval existe muito mais que uma festa pagã, existe um modo especial de ver o mundo, euforia e inversão de valores. 3.2.2 “Pré-liminares” para a liminaridade 45 Na quinta-feira que antecede a saída do Bloco, algumas escolas interrompem suas atividades para confeccionar máscaras simples de carnaval. O aviso já está na porta da escola: “Amanhã sem uniforme, só roupas leves e se quiser o roupão do Bloco”. Isso porque a bateria do Bloco dos Caretinhas visita as escolas de ensino básico pela manhã de sexta-feira e aula não é prioridade nas escolas dessa cidadezinha na véspera do fim de semana de carnaval. Os percussionistas do Bloco dos Caretinhas vão tocar as batidas típicas dos Caretas para os alunos. Celebração da alegria e anúncio para um novo tempo, livre das normas escolares. Figura 11: alunos na Escola Santa Teresinha Figura 12: alunos em carnavalização O fato de não haver aula nas escolas desde sexta-feira e de todas as turmas se juntarem no período da manhã para pular com a bateria do Bloco só confirma o momento outro que se vive. Numa das escolas, (a Escola dos Padres) o coordenador não conseguiu conter os alunos que saíram pelo portão da escola para dar uma volta na rua, iniciando uma intervenção inesperada no centro da cidade. Vários alunos estavam vestidos com o roupão, capuz e a máscara do Bloco. Esse acontecimento foi uma novidade. Já faz quatro anos que o som dos atabaques visita a escola na sexta-feira véspera de carnaval e não há aula. A quebra dos paradigmas tão bem fixados de aulas, horário a cumprir, regras de convivência e tarefas é fundamento para a experiência do limiar.32 Vale ressaltar que os fatos citados aconteceram em escolas católicas, na Escola dos padres e na Escola das freiras, essas conhecidas na cidade pela tradicional rigidez. 32 Vale lembrar que a Escola é uma das primeiras instituições que faz a iniciação para as crianças nas imposições, nos limites e regras de convivência numa sociedade civilizada e bem estruturada. 46 Na Escola das freiras (Escola Estadual Santa Teresina), os estudantes e professores passaram não só a manhã de sexta se preparando para o carnaval mas a tarde de quinta-feira confeccionando as máscaras para brincar no dia seguinte. Na hierarquia escolar o professor está num posto elevado em relação aos alunos, e até mesmo a outros funcionários, entretanto, ali os professores e funcionários se recuaram do “palco” da sala, “desceram do trono” a frente e no alto, e sentaram-se ao chão juntamente com os alunos, para experienciar a ludicidade do “fazer junto”, construir coletivamente máscaras de carnaval. Experiências próprias do conceito de carnavalização de Bakhtin (1993). Relatos como estes justificam o destronamento das regras formais que a performatividade no Bloco dos Caretas incita, o ingresso para a suspensão da vida regrada que vai além do jogo da vida cotidiana, além das barreiras sociais e além da extrema tranquilidade da cidade. Lembrando que essa experiência, que faz parte do processo do “estado-metáfora”, é desvendada num processo coletivo, construção coletiva de um compartilhar único. Fonseca (1998) deixa claro que no ser humano a autopoiése será construída junto com outro humano. Ela cita Winnicott que articula sobre um estado de integração. Para ele um estado de integração é uma “etapa necessária para a instauração da processualidade (a qual tanto nos interessa), quando alguém pode experimentar ao mesmo tempo ser heterônimo de si mesmo, e perceber-se como unidade”. (apud FONSECA, Ibid., p. 134) 3.2.3 Concentração Chegou o dia: Horas antes de sair os organizadores vão para o Ginásio de esportes da cidade e esperam a chegada dos foliões. O barulho dos escapamentos de carros e motos são muito mais constantes, os rostos aparecem mais nas ruas e janelas, a confusão começa a aumentar, o palco a montar, as máscaras a retocar, o coro da alfaia a trocar. Nesse primeiro dia escolhi observar de fora a euforia de uma multidão a espera da saída dos Caretas. Um misto de ansiedade, alegria e medo paira no ar. Curiosos olham pelas frestas das portas, se espalham ao redor do Ginásio, burburinhos, alegria, ansiedade, um clima muito eufórico vai tomando conta dos arredores do ginásio e contagiando como uma corrente mútua inevitável e fugaz. “Lá atrás, lá atrás! Vão sair por trás hoje! Cadê o caretão?!” - Algumas crianças gritavam empolgadas. 47 A gente fica aqui de fora esperando, querendo que eles saiam logo, mas no fundo a gente adora essa espera demorada... O coração palpita tão forte que parece que vai sair pela boca. Aí a gente quer reconhecer o maridão, mas é difícil. Daí eu vou acompanhar com o Felipe até quando minhas pernas e braços aguentar. Conta Marinalva com seu filho de sete meses no colo, já vestido com o roupão do Bloco. Já uma senhora que mora ao lado do ginásio pronuncia: Quando escuto o barulho aí no Ginásio já fico apreensiva, não gosto disso, pra mim é a mesma coisa que eu tivesse vendo os judeus perseguindo Cristo antes de ele ser morto, até chicote eles usam, é o mesmo que estar vendo o cão, os sujos, os judas perseguindo crianças, mulheres e até homens. Essa senhora, ao pressentir a aproximação do Bloco, empunha um porrete, entra em seu quarto, tranca a porta e só sai quando não ouve mais o som dos tambores. Quando alguém está com criança de colo os Caretas não jogam talco, assim como nos velhinhos, a não ser que eles não se importem. Seu Valdir, um senhor bem despojado de setenta anos, confessa: “No fundo, a vontade é de se jogar no talco mesmo, se jogar na rua, no alvoroço, na loucura sem fim!” Atração e repulsão embalam as sensações provocadas pelo Bloco, contagiando de maneira avassaladora, independente da aprovação. Agora as mulheres também se trocam no Ginásio junto com os rapazes. Antes sua presença estava restrita ao Bloco dos Sujos, um Bloco misto no qual os foliões usam o mesmo roupão de chita e o capuz, todavia não colocam máscaras. Depois de um tempo que perceberam mulheres no Bloco dos Caretas e depois de muito clamarem, permitiram a participação delas. Na verdade, algumas mulheres desde sempre saíam escondidas no Bloco. No meio da deriva, em meio a flores, capuzes e monstros diversos, ninguém percebia que as prostitutas da cidade se embreavam pelos mascarados. A história conta que elas foram as primeiras mulheres a fazer parte dos mascarados. Por terem dificuldade com os olhares julgosos na concentração dos Sujos, preferiam tapar os rostos e adentrar pelos Caretas, já que a máscara impossibilitaria seus reconhecimentos. Nem todos aprovam a integração das mulheres no Bloco, como mostra a fala de André Luiz quando estava dentro da concentração bem comportado: Antes era só homem aqui, daí os cara ficavam de cueca farreando aqui no ginásio antes de sair! Já saía animados! Agora colocaram mulher! Não pode! É tradição! Mulher é pra Bloco dos Sujos!” 48 Na primeira vez que tentei entrar na concentração, há quatro anos, as mulheres não se trocavam no ginásio junto com os homens. Evidentemente, o organizador não permitiu minha entrada, o que só aumentou minha curiosidade e a clássica sensação de mistério que a concentração sempre causou. Ele disse: “tem homem que não se veste, fica pelado, bêbado, não tem nenhuma mulher aí, é perigoso”. Perguntei a um organizador o que os foliões ficam fazendo lá dentro durante a demorada concentração, Ivo não deu muitos detalhes, disse apenas que “ficam pulando, loucos para sair!” Um ex-folião fala sobre suas lembranças de quando saía no Bloco: O momento mais „massa‟, era quando nos reuníamos no Ginásio para a concentração. A excitação já começava antes mesmo de chegar lá. Em média duas horas antes do horário marcado, já estávamos prontos. Na entrada, a tensão era tão grande que o ingresso parece que sumia do bolso, dava o maior trabalho encontrar. Lá dentro do ginásio é que ia pintando o clima! Coisa difícil de explicar... Não contente com as declarações evasivas dos foliões, no último dia entrei no mistério da concentração. A intenção era perceber elementos que contribuiriam para o processo de levar o corpo e o “olhar” para outro espaço não socialmente construído, a interrupção das formas de organização da vida formal, o “estado-metáfora”. Alguns foliões bebem bastante, outros se arrumam lentamente, outros dançam ao som do batuque fazendo brincadeiras e palhaçadas para fazer graça aos colegas, já outros simplesmente sentam e esperam a saída observando o movimento. Várias bombas grandes são atiradas no meio da quadra. Às vezes, de fora ouvia esses barulhos, mas não imaginava como é ensurdecedor no interior do ginásio, que por ser redondo e coberto de zinco, faz com que o som ecoe. Durante alguns segundos fiquei surda e desnorteada, enquanto os foliões soltavam gritos inflamados a cada bomba e riam da minha cara assustada. Penso que o efeito das bombas também faz parte desse processo de transporte para a dimensão do sonho, de dar voz ao sonho. Provocam uma sensação de impotência, ao mesmo tempo de ação, percepção do que não precisa de voz e ouvido para agir e viver. O roupão é o elemento que esconde seu corpo, suas marcas, seu sexo, suas formas, se transforma no monstro disforme. Logo depois, vestem o capuz que é o primeiro momento de não-identidade. 49 50 Figura 13, 14, 15, 16: Concentração Contudo, o elemento que se destacou para o foco dessa pesquisa foi a máscara. Ao colocar a máscara, os foliões assumiam outra postura, começavam a gesticular de outra maneira, portando-se como protagonistas de um filme. Ao colocar uma máscara, o ser viola as fronteiras naturais, deslocando-se para outro lugar. O ato de por a máscara significa assumir outra persona, ou, como uma foliã mesmo disse, “se coloca a máscara para esconder a outra máscara”. Artaud diz que a máscara mostra. E Eugênio Barba diz que ela é suporte para viajar por outros mundos, de se transportar para outra dimensão do Eu. Para Bakhtin (1993, p. 122) a máscara “é a expressão das transferências, das metamorfoses.” “Ah Clau, eu coloco a máscara só no final da concentração, porque quando eu coloco ela no rosto esqueço quem sou, e aí não respondo por mim!” Confessa Murilo, 32 anos. “Às vezes penso pra quê colocar um roupão, uma máscara e sair correndo atrás das pessoas. Parece bobeira, mas quando a gente entra dentro daquela máscara... é indescritível! Algo muito forte!” Roberto Rodrigues (23 anos) As falas de Murilo, Roberto, assim como de outros entrevistados, além da observação participante, contribuem significativamente com as afirmações dos autores citados acima, e com a primeira impressão da observação etnográfica: de que a máscara é o elemento chave para a travessia das interdições do personagem cotidiano e artifício principal pra o devir descortinar do estado-metáfora. Nesse interstício, na interrupção, no entremeio da ação, (betwixt and between) é o espaço/tempo necessário para a busca do novo, do que é singular, do caos criador. A ruptura, o entreato se faz oásis para “renascimento”. 51 Voltando ainda às análises de Benjamin 33 sobre os efeitos de interrupção no teatro de Brecht, a ruptura com a continuidade de ser leva os indivíduos a repensarem seus próprios atos cotidianos (que com o passar ficam quase automáticos), e no caso, os espectadores, a refletir sobre sua própria continuidade de ser convencionada socialmente. Brecht utilizava-se também de máscaras nos atores para conseguir tal efeito, assim como as máscaras do Bloco se faz um artifício capaz de transformar o estranho em familiar e de provocar, em relação ao familiar, um efeito de estranhamento, causando abalo nas concepções apriorísticas. Strassburger (2007, p. 9) diz que a “suspensão provisória dos juízos faz-se cúmplice aos inéditos. Aspectos de outro, até então desconhecido, revela-se no pretérito imperfeito das reconstruções a desvendar vontades e representações. Obra aberta as preliminares investigações”. Voltando à concentração, num determinado momento os percursionistas pegam seus instrumentos e começam a tocar.34 Esse é o momento que até os caretas que estavam sentados levantam rapidamente, colocam os roupões e as máscaras (quem ainda não os colocou) e aqui o caos está montado. Este é o momento em que os corpos agem cadenciados pelos tambores; o colocar a máscara embalados pelo ritmo das alfaias, bongôs e tamborins aparentemente dá o play para o estado-metáfora, “já se está com os pés fora do mesmo chão”, diz um folião. Olhares rápidos, movimentos de arrumar roupão, máscara, talco, sinos, pneus e tudo mais que julgarem necessário. Euforia de dentro e de fora do ginásio. Ação, emoção, sente-se que o coração começa a bater no mesmo ritmo do batuque dos Caretas. Tudo ao mesmo tempo, a multidão, uma coletividade com a mesma intenção, o ser outro, o tempo/espaço alternativo, quando o batuque começa, tanto de dentro do ginásio quanto de fora, os inexplorados territórios anunciam-se. O ritmo é como um mantra (batida bem repetida) que aciona algo no corpo mascarado. “É muito emocionante essa concentração, esse barulho de tambor lembra os terreiros de macumba dos meus orixás! (...) parece que estamos em „outro plano‟”! Diz Paulo. Todas essas descrições fazem parte do processo para se vislumbrar outro momento, a suspensão da vida ordinária. O que aparenta, é que eles sabem que estão face à ruptura da 33 Palestra conferida pelo professor Luciano Ferreira Gatti. “III Mario Pedrosa, „Walter Benjamin: crítica da cultura e modernidade‟”. UFMT, julho de 2010. 34 Instrumento que usam em geral: pandeiro, caixa, gangorra, meia lua, polaque, triângulo, bumba, surdo, bongô, alfaia. 52 dimensão perceptiva do comum. Quando o Bloco sai, a euforia se transforma no tiro da partida para o novo tempo, espaço e percepção social, para o estado-metáfora. 3.3 Um, dois, três e...! À deriva pelas ruas Os portões do ginásio se abrem juntamente com os olhos das centenas de curiosos que ansiosamente os aguardavam. Start para o estado-metáfora, para a possibilidade dos entremeios. O batuque e as máscaras marcando a ambiguidade e a desordem da troca de cenários, vestimentas e tempo. Figura 57,18: Bloco saindo da concentração “Dá um frio danado na barriga quando vejo o Bloco se aproximando, dá medo. Acho que é porque as máscaras são tão originais... Você não consegue enxergar além da máscara.” – Conta Nádia, com arrepios e brilho no olhar. Cleyton, um folião em meio ao desvairamento, pulando empolgado define: “A saída do Bloco é essa loucura! Você só sabe como é esse sentimento contagiante, se você tiver aqui como nós. Não tem como descrever. Pega a gente de jeito!” Os foliões costuram a cidade, ressignificando os seus espaços antes ocupados de forma convencional e com paradigmas bem fixados. Sobre as questões da deriva, do tempo e espaço outro, é válido pensar nas situações criadas pela Internacional Situacionista na década de 1950 que propunha uma nova forma de vida urbana, na qual a principal atividade ou método é a deriva. “Todas as entradas são boas desde que as saídas sejam múltiplas” (JACQUES, 2003, p. 24). No Bloco, o trajeto também não é planejado, os foliões andam ao acaso e se alguns não percebem em que direção estão indo, isso realmente não importa, se encontram por outras vias. A atuação dos foliões, a 53 composição dos personagens, é inesperada e aqui se encontra o perigo, a ambiguidade. Tudo que poderia vir antes, previsto, predito, preconcebido, desiste. Nesse contexto, transita-se do obscuro temível ao possível simbólico, caracterizando uma performance própria de uma intervenção urbana. Na maneira de teatralização de rua no carnaval dessa cidade, além dos outros elementos artísticos dos Blocos (confecção de máscaras, figurino, dança, música, ritmo, etc.), são incorporadas subjetividades compostas por uma linguagem acessada excepcionalmente através da linguagem artística (anímica). Atinge outra possibilidade de realidade tão mais lúdica e suave que a vivida cotidianamente. A arte assim vivenciada cria a capacidade de ser sem estar, ou seja, de abandonar racionalizações para produzir sentidos. O folião persegue sua sensibilidade e se compõe de personagens (em geral monstros) que nunca teria pensado, movendo-os na realidade habitual. Até mesmo necessidades fisiológicas ficam momentaneamente em suspensão. Ivo diz que é muito difícil sentir fome, pois “na euforia da coisa, ninguém nem pensa em comida”. Ao ouvir o batuque dos caretas os moradores saem de suas casas. Pulando pelas ruas os monstros-caretas param na frente dos portões e tentam assustar, jogar talco, fazer palhaçada, gesticulando tanto quanto possível, já que em geral não falam, pois o capuz e a máscara dificultam a saída da voz. De casa em casa, de parada em parada, vão performando o monstro horrendo, trapalhão, erótico ou o monstro palhaço, em geral dançando ao som da batida repetitiva. Cada atuação é única. Os expectadores permanecem naquela relação de atração e medo, não sabendo se aproximam ou tomam distância (já que, muitas vezes, o careta, a princípio, é simpático estendendo a mão e chamando para perto, mas logo depois joga talco ou urra, gesticula assustando). Sensações paradoxais se expressam claramente nas atitudes dos expectadores. Estávamos sentados na porta da casa da minha avó e a tia insistia para minha priminha tomar banho. Ficou umas três horas insistindo e ela não ia. Quando escutamos bem de longe, o “TUM-DUM-TURUM-DUMDUM” dos Caretas, minha prima levantou bem rápido, correu para o banheiro e ficou tomando banho durante mais umas três horas... (risos) O pior é que cansamos de falar que „eles‟ já tinham passado a um tempão, mas o medo dela era tão grande que ela falava que ainda não tinha terminado de tomar banho (Juliana Silva, 16 anos). Já outra foliã diz que, acompanhando o Bloco ou saindo da casa, quando escuta o barulho, “se não levar um talquinho, não tem graça”. Vicente, um folião que sai no Bloco desde os anos 80, declara: 54 O medo sempre foi um ingrediente fundamental na mágica dos Caretas. É algo inexplicável! Pode ser seu melhor amigo, mas quando coloca o roupão e a máscara, parece que não é ele mais. Até mesmo para mim que estou de Careta também. As máscaras variam de bichos, monstros desconhecidos, até paródia de personagens conhecidos. Não existe máscara repetida. O roupão acompanha a máscara. Se for monstro, colocam travesseiros, pneus, e tudo mais que puder dar uma aparência monstruosa; se for de “Bin Laden”, colocam metralhadoras de brinquedo, roupão de árabe, etc. Outro personagem que aparece em grande número é o travesti. Este por si só configura uma hibridação de gêneros, misturas de roupas, vozes e trejeitos. Além de todos se “travestirem” de alguma forma, muitos homens se travestem de uma feminilidade exagerada. O exagero é outro atributo marcante nos Caretas, os foliões que saem de travesti colocam peitos e bundas exagerados, roupas curtíssimas, saltos altíssimos. Os que querem parecer mais monstruosos enchem o roupão com acessórios que darão uma imagem descomunal, transbordante, como ilustram as fotos. Os que querem emitir medo usam pinholas ruidosas de vaquejada, polaques35 amarrados nos corpos, latas com pedras amarradas nas canelas, etc. 35 Espécie de sino usado no pescoço de cavalos e vacas. 55 Figura 19,20, 61,22: Criatividade dos monstros de Caretas Ivo declarou que aproveita o momento que está com a máscara para “azarar” as meninas, abraçar e tudo mais. Usa inclusive luvas para os parentes não identificarem. Sua fala e a da maioria dos foliões quando questionados sobre esse aspecto do proibido na vida ordinária e permitido com a máscara revela desejos enclausurados. Os comportamentos e as histórias contadas definem expectativas que no cotidiano jamais seriam apresentadas de modo tão direto, com tanta franqueza e despojamento. Sem medo de repressão a espontaneidade se expande. Podemos fazer uma conexão com a música sobre máscaras de carnaval de Chico Buarque, “Noite dos mascarados”, na qual o uso das máscaras e disfarces motiva o folião a vivenciar um momento pleno de inconsequências, que não admite questionamento. Nessa música existe um momento tedioso que seria antes do carnaval, um momento neutro, onde a estrutura está suspensa por um tempo, que seria durante a concentração e passagem do Bloco; aqui acontece a inversão da situação inicial, um momento intermediário onde uma situação extraordinária (de morte social) é estabelecida. Este é o momento que tudo pode acontecer, tudo é permitido, pois os mascarados não têm identidade nem função social estipulados, não têm parentes nem amigos, é um ser liminar, poderoso de certa forma, pois poder fazer o que se quer já estimula a sensação de poder, quanto mais poder fazer o que é proibido. Da Matta (1977, p. 34) diz que o ato de despir-se (das roupas diárias) vale por um “deixar revelar-se”, um soltar-se na sua própria fantasia, utilizando o corpo, esse instrumento 56 fundamental de todo o ser humano. Um momento em que todos estão se “esbaldando”, “se jogando”, “se arrebentando”, expressões estas que remetem ao uso e abuso do corpo, numa alusão significativa a um momento onde os homens estão “interagindo sem seus mediadores rotineiros, apenas utilizam o seu próprio corpo: braços, quadris, pernas, voz, face, gestos”. Enquanto na vida diária a prescrição é o resguardo, o comportamento restrito e altamente consciente do corpo, pois as pessoas devem “ter modos”, no Bloco acontece a destituição do corpo social. “O melhor era azarar as meninas! Ninguém sabe quem é, e nessa hora a gente tem chance de pegar em todas!” (Cleyton, 28 anos) Abdias Lopes articula: Aqui, as „patricinhas‟ e os „mauricinhos‟ se entregam no Bloco. Como ninguém sabe quem está atrás da máscara, pode ser aquele „pé rapado‟, „mandioqueiro‟36 que a „patricinha‟ falou mal e tem até nojo, que pega na mão dela, conversa, ri e até chega a ser simpática com o Careta. Acho que deveria ter um estudo sobre esse fenômeno. Se na Idade Média o estilo carnavalizado das festas populares servia como uma “segunda vida” que permitia aos participantes estabelecerem relações novas, como elucida Bakhtin (1993), no Bloco essas relações e atitudes novas também reaparecem. Com a máscara todos cumprimentam todos, o assistente de obras pega na mão da esnobe burguesa. Em outros casos, basta apenas a moça que sempre passa despercebida pelos rapazes fazer uma encenaçãozinha monstruosa na frente deles que ganha a atenção, o sorriso e a admiração na certa. Existe uma aproximação e até a possibilidade de cumprimentar uma pessoa, abraçá-la, tocá-la, encontros que fora do roupão e da máscara nunca se dariam. Há a abolição das relações hierárquicas e a forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis de sua condição, sua fortuna, seu emprego, sua idade e situação familiar. Essas circunstâncias podem despertar uma dimensão diferente para o olhar sob a máscara. As pessoas têm resistência em cumprimentar, olhar e até mesmo puxar uma conversa, já por debaixo das máscaras a interação social é mais desinibida, despretensiosa e despreconceitualizada. Até porque seria difícil ter um conceito pré-estabelecido sobre um monstro de careta, ele não tem sexo, idade, status social, parentes. Bakhtin caracteriza esse ambiente como “o caráter universal, a concepção profunda do mundo” (1993, p. 14). 36 Expressão usada para designar os moradores de um bairro pobre de periferia, conhecido como Mandioca. 57 Durante o carnaval nas praças públicas a abolição provisória das diferenças e barreiras hierárquicas entre as pessoas e a eliminação de regras e tabus vigentes na vida cotidiana criavam um tipo especial de comunicação ao mesmo tempo ideal e real entre as pessoas, impossível de estabelecer na vida ordinária. Era um contato familiar e sem restrições, entre indivíduos que nenhuma distância separa mais (1993, p. 14). Liberados das normas correntes, da etiqueta, dos costumes, esse clima polifônico cria um tipo particular de comunicação, incluindo linguagem de gestos abolindo a distância entre os indivíduos em comunicação. Como dito, muitos caretas não falam, somente gesticulam demonstrando simpatia, aterrorizando, fazendo palhaçadas. Seu efeito sobre os “espectadores”, que mesmo sem o roupão e máscara participam do mesmo ambiente carnavalizado, possui uma força incomensurável, provoca sensações diversas. Aparentemente o que se destaca nesse ambiente mascarado, são as sensações experimentadas, provocadas por alguns e sentidas por todos que se permitem. Na opinião de Benjamin (apud FICHTNER 2000), o gesto amplia o campo semântico, produz multiplicidade de sentido, ou seja, o gesto, diferentemente da linguagem falada, não tem a intenção de transmitir uma verdade para o expectador. Provoca a justaposição de elementos heterogêneos. A linguagem no Bloco não necessita ser polida nem observar os tabus. Ivo (um dos organizadores) me disse que os organizadores também saem mascarados para que os foliões não fiquem “alcaguetando” um ao outro, ou seja, existe certa organização, mas enquanto o Bloco está nas ruas não querem repreender ninguém, só cuidam para não ter violência. Nesse ínterim, muitos aproveitam para cheirar lança perfume, beber bastante, praticar sexo, etc. Vão girando a esmo pelas ruas por mais de duas horas em geral. Mas o tempo se torna outro, não se vive o tempo linear, cronológico. Alguns dias o trajeto e o tempo prolonga mais que o outro, a duração é eventual. 3.3.1 O Tempo O tempo do ritual, assim como da arte, é cósmico. Pode haver um prolongamento quase indefinido de um único momento. Há um desdém pelo tempo cronológico, os ponteiros socialmente construídos são provisoriamente apagados e o tempo cósmico é valorizado. Esse tempo tem relação com os momentos de vivência intensa, que marcam, e que, por isso, podem abrir fendas na imaginação. Podem produzir desejo e o desejo subsidiar alguma criação. 58 Para Henri Bérgson, nossa percepção habitual só mostra do real aquilo que nos interessa para agir sobre ele. Quando nos ocupamos do tempo, só o percebemos como momentos sucessivos sobre a linha imaginária; quando nos ocupamos do movimento, percebemos os objetos que se movem a todo instante como imóveis num ponto do espaço e fixos num ponto da linha temporal. Para o filósofo, no entanto, isso não dá conta do que há de mais profundo no real: o processo pelo qual o objeto se move e muda, transformando-se no seu evoluir temporal. E mais, propõe que o substancial da realidade é a sua mobilidade e sua temporalidade, de forma que “para conhecermos o real, é preciso alargar e aprofundar nossa percepção, tal como faz a arte” (BÉRGSON apud AUGUSTO, 2000, p. 73,74). De tal sorte, a arte parece ser a que se preocupou em dar ao tempo a dimensão que ele passou a ter na contemporaneidade. Os diretores, cineastas, poetas, literatos, ocasionalmente lançam personagens que vivem num tempo e espaço singular, não homogêneo, linear, cumulativo, causal. Esse tempo parece ter entrado em surto ao se chocar, sem preliminares, com os estímulos contemporâneos. A arte reconheceu a volubilidade vertiginosa no regime temporal que assiste nossa atualidade. Na dinâmica contemporânea das cidades, o norte pode começar por qualquer parte desde que se ligue ao sul ou ao leste em algum momento. De modo que a nossa relação/percepção de passado, a vivência no presente, do instante e a observação do futuro, assim como o imaginário de eternidade, se alteram bruscamente. O tempo no momento artístico da performatividade do Bloco também pode ser totalmente inesperado. Um bom exemplo de desestabilização na noção de tempo é o carnaval, caracterizado por um evento que intervém na cidade, transgredindo a cronologia da percepção comum. Peter Pál Pelbart argumenta sobre o assunto dizendo: Cada vez mais se impõe a evidência de que o tempo dito normal, em termos subjetivos ou históricos – isto é, o tempo linear, sucessivo, cumulativo, direcionado, professivo, homogêneo, encadeado, cronológico –, parece ter entrado em colapso e esfarelamento. (…) O que se anuncia é um regime temporal curioso: não meramente uma sincronicidade universal, mas, no interior dela, a gestação de novas condutas temporais que alteram o estatuto da memória, da repetição, da gênese e, sobretudo das três dimensões do tempo – afetando assim, forçosamente, nossa relação com a ideia de projeto, de história e, principalmente, de sentido. (...) O que está em jogo é uma abolição de uma direção de um sentido do tempo, em favor de uma multiplicidade de flechas, de direções e de sentidos. Ora, não seria o caso de dar voz aos tantos outros tempos, diferentes do tempo encadeado da história, esses tempos que povoam a loucura, mas também a própria 'história'? (2000, p. 46, 47). 59 3.3.2 O Espaço A concepção de espaço também é redimensionada pelo desregramento habitual. No Bloco os indivíduos travestidos de caretas muitas vezes entram nas casas que na “vida nãocarnavalesca” nunca entrariam, percorrem ruas que nunca foram e nem iriam. Muitas vezes algumas pessoas até já passaram naquela rua de carro, mas o contato íntimo com o asfalto, com a terra, a lama, os buracos da mesma rua, sobrepõe novas sensações sobre o espaço. Além de ocorrer a descentralização das vozes que imperam naquele mesmo espaço físico, e multiplicação de outras que não encontram “espaço” para serem ouvidas. Sob o efeito da carnavalização, o espaço simbólico é deslocado para outra dimensão incomensurável, com um olhar reinterpretado sob a máscara. Figura 23, 24: Caretas- irreverência Os espaços da cidade vão sendo reconstruídos como um novo caminho a partir da passagem dos mascarados, agora sem nomes nem números as ruas e avenidas vão se enchendo de entusiasmo, ritmo, cores, tensão. A ressignificaçao do espaço pode ser bem visualizada quando o Bloco chega à zona meretrícia da cidade. Esse lugar, desde sempre, incita questões ligadas ao profano, proibido, perigoso. Em Guiratinga não é diferente. Existe uma margem simbólica entre a cidade e a chegada do bairro, como um limite imaginário, uma linha fronteiriça; justamente o lugar onde os pais não levam as crianças, as mulheres moradoras em geral não aparecem muito nas suas portas durante o dia, nem mesmo os “frequentadores” fazem questão de mostrar o domínio sobre o lugar... Contudo, quando o Bloco chega, a zona toma novo significado a priori, outra cor, outro ritmo; muitas mães estavam com os filhos de colo lá; todas as crianças do Bloco dos caretinhas também passam 60 por lá. A falta de interdição, o clima carnavalizado, os ruídos do estado-metáfora, faz com que o lugar crie um clima harmonioso e sem o peso que ele carrega no cotidiano. As esquinas não são mais o alvo dos freqüentadores, elas se tornam lugar de passagem e da espera pelo mascarado, já que se espera seguindo o barulho do batuque, ninguém sabe por quais ruas vão chegar, a esquina é a opção de maior possibilidade já que eles podem surgir pelas diferentes ruas da esquina. É muito interessante perceber a desinterdição que a potência da percussão, chitãos e máscaras, causam no espaço e nas consciências; transgredindo a linha, ultrapassando o limite do proibido e ressignificando um dos espaços mais lendários historicamente. A experiência da ruptura do cotidiano no Bloco transgride memórias e representações que os foliões possuem sobre aquele espaço, disparando questões subjetivas e releitura sobre o espaço e tempo vivido diariamente. Celso Favaretto (2000, p. 114) afirma que “o espaço da cidade tem a relação com a memória coletiva, com os espaços, linhas de força que organizam e orientam a atuação na cidade.” A deriva dos foliões possibilita a variação de caminho, a desorientação da atuação, a possibilidade do casual ao invés do causal e consequente singularização do olhar. Vivendo momentaneamente essa estado-metáfora, alguns lugares da cidade somem, viram lugares de passagem, liminares ou não-lugares. “No momento se distancia, interfere e desestabiliza, acentua algo que lhe é próprio (a cidade)” (2000, p. 114). Eventos são intervenções, regradas ou extemporâneas, que num lugar preciso permitem a intersecção de falas, tempo e ações. Simultâneos e descontínuos, esses elementos desdobram e reiteram gestos e atitudes que exploram o instante da apresentação. Nas artes, acentuam a temporalização do espaço, tornando espesso o fugaz. Completa o autor (FAVARETO, Ibid., p. 114). O efeito de desmascaramento de si que as máscaras operam, é de desviar o destino previsível do personagem cotidiano, já que o ser humano tem subjetividades nômades e, no entanto, vive no homogêneo. O folião deixa o campo das representações do real para pairar por outro espaço/tempo indizível, o lugar do sonho, não menos legítimo que qualquer imagem que a realidade habitual nos ensinou a enxergar. Aproveitando o ensejo do sonho, é interessante conectar ao objetivo da pesquisa a analogia que Artaud faz do nosso olhar não-cotidiano com o sonho: “Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é difícil acordar e olhar como num sonho, com olhos que não sabem mais para que servem e cujo olhar está voltado para dentro” (1993, p. 6). Se tomarmos os conceitos benjaminianos de limite e limiar para uma leitura do território dos fenômenos de suspensão do cotidiano com o vestir a máscara, este estaria no 61 tempo descontínuo do limiar, no qual “as fronteiras se desvanecem, os objetos se fragmentam, o Eu se descentra e a consciência fica suspensa”. Este, segundo Eliane Fonseca, é quando irrompe o estado de arte, próprio às formas significantes, cujo paradigma, para ela, são as partituras musicais. Para Walter Benjamin o instante limiar é um salto no qual passado e futuro se encontram e se condensam no instante que corta não um presente acumulado, “mas um presente que se faz dos instantes que correm, fluidos e incessantes, por entre os limiares, atravessando umbrais e mais umbrais” (apud FONSECA, 1998, p. 135). E assim o desvairamento provocado pela “psicose coletiva”, como argumenta um professor muito engajado nas questões turísticas da cidade, João Antônio Pereira, vai deixando branco os corpos dos mais desavisados, dando voz e vez aos mais marginalizados e apagando o caminho de casa. Um folião contou sobre a lenda do chitão: Nunca me esqueço da lenda do chitão que o folião que estiver vestido com o roupão de chitão não pode se abaixar e olhar por entre as pernas, caso isso aconteça o folião visualiza o Capeta, verdadeira visão do inferno, coisa de criança, mas mexe com a gente. Depois de algum tempo em que o Bloco já voltou para o ginásio e se dispersou, ainda vão passando pelas ruas os “pedaços de caretas”. Roupão pela metade do corpo ou nas sacolas, capuz nas mãos, máscaras na parte de trás da cabeça que ao passar de costas remonta um personagem que se foi, mas resiste em deixar de ser. Uma foliã, Maria José, dizia: No Bloco a gente tira a máscara do armário para brincar de ser feliz, é maravilhoso! A gente fica mais jovem, parece que volta a juventude. Quando acaba, a máscara e a roupa volta para o armário, mas não parece que é lá o lugar dela... Mesmo assim quando abrimos o armário no meio do ano parece que por um instante que a própria máscara e roupa nos leva pra lá de novo, mas ao fechar a porta encaramos de novo a vida. Em algum momento escrevi que o Bloco não tem roteiro pré-determinado, depois fui informada pelos organizadores que existia um trajeto planejado – o que, a princípio, me fez acreditar que eu havia me enganado. Contudo, me enganei ao acreditar que o fato de haver um trajeto planejado implicava necessariamente no fato do Bloco não estar à deriva, ao contrário, a característica de meandro, de esmo que dizia, ainda assim se afirma a partir do momento que se pensa no olhar do mascarado. Eu disse isso provavelmente porque ainda não tinha 62 vivenciado o olhar de dentro e, quando o organizador do Bloco me disse que eles fazem sim um roteiro que os percussionistas guiam, surpreendeu. Explico melhor – Acompanhando o Bloco na carroceria de um carro, esperando pelas esquinas (já que acompanhar por de trás não é muito caloroso, já que muitos carros acompanham e chega um momento que nem o barulho da percussão não se escuta, quanto mais ver os mascarados), numa das esquinas o dono do carro disse: “minha casa fica logo ali!” Outro moço que também estava na carroceria corrigiu: “Tá louco Lauro! Sua casa está do outro lado da cidade, maluco!” Logo percebi que a idéia de meandro e perda da noção de espaço existe, por mais que tenha um roteiro pré-programado. Mais a frente ele percebeu o desnorteamento e ria muito de si mesmo se intitulando louco. Esse episódio leva a crer que os meandros caminhados pelo Bloco desvia também o caminho das pessoas que querem acompanhar, até mesmo nos carros, e induz todos a praticar o desvirtuamento, desnorteamento, de distorcer o caminho fixo no olhar e no agir. A análise de Calabrese sobre o indefinível, impreciso, volta-se para as falas dos entrevistados no Bloco. Entre uma fala e outra estão as palavras “indescritível”, “incrível”, “inexplicável”, etc. “Quando se abrem as portas do Ginásio, é uma loucura total, coisa difícil de explicar...” André (20 anos). “Chegar perto dos amigos, da família e eles não te reconhecerem, é uma sensação indescritível!” Fernanda (34 anos). E é por ali, por outros lugares da imaginação que os mascarados vão compondo novas sinfonias e desconstruindo as convenções da vida regrada cotidiana. Quando os Caretas se despedem do roupão e da máscara, e encaram a realidade padronizada, não deve ser um retorno, pois não só a parábola chinesa diz que “nenhuma água passa duas vezes no mesmo rio”, mas eles se despem da loucura mascarada, e ressignificam a próxima estação que é a volta para casa, pois estão aliviados e com energias extravasadas para um devir. Perfaz um espectro de representações e sentidos ressignificados para a vida, a festa, o riso, a dor. A posição que o Bloco ocupa na cosmologia desse lugar e sua situação carnavalizada se distingue por um caráter não-oficial, antiestrutural, polifônico e desprendido das funções da vida formal, limitada, planejada, definitiva. 37 A construção da máscara e a performatividade 37 No ano de 2002, a Secretaria de Estado e Turismo (SEDTUR), em parceria com a EMBRATUR, realizou o Inventário da Oferta Turística da Região Sul de Mato Grosso e uma das atividades considerada destaque por seu ineditismo foi o Bloco dos Caretas. “Nunca vi nada igual por todos os lugares por onde andei, tenho saudades!”, disse um turista. 63 do corpo-monstro elabora ainda sensibilidades e percepções artísticas, de criatividade, nos foliões. De tal modo, a manifestação se configura como um tipo de intervenção urbana que provoca ruptura com os paradigmas ordinários da vida e da cidade. Os indivíduos são capturados pelo processo de carnavalização, instrumento privilegiado para transposição do cotidiano. Dessa maneira, tendo em vista a proposta da pesquisa, o objeto empírico escolhido veio de encontro aos objetivos e hipóteses a respeito da singularidade, do estado comunitário, da experiência, da processualidade e do potencial necessário da arte inserida na vida. Finalmente o ato dos foliões experienciarem outro corpo, esconder seu rosto cotidiano e a possibilidade de mostrar o que não se pode na vida ordinária, modificar o gesto, o andar, afinal, as múltiplas possibiliddaes de ser, tem a capacidade de ser uma "experiência formativa" (conceito de Turner, ou seja, manifestação expressiva de caráter processual através da qual "significados que informam o repertório humano vital do pensamento, do desejo, do sentimento são colocados em circulação") (TURNER & BRUNER, 1986, p. 37). São colocados em circulação, ou surgem até mesmo para o performer-careta, que anteriormente não teria condições de vislumbrar outros “seres” que o compõe, de perceber expressões no outro, que por não saber que é você, pode agir de forma muito diferente da qual age normalmente com você. Vislumbrar outras possibilidades de realidade, de sociabilidade poderá tocar em algum ponto, que desperte ou crie aspectos de singularidade que nem ele mesmo imaginaria. Afinal, no processo de criação do monstro de Careta do Bloco há a necessidade de abandonar as referências do saber constituído, de procurar outros “seres” para mostrar na rua. O experienciar um rosto novo sem a obrigação de representar seu papel diário, inevitavelmente poderá trazer novos significados para seu olhar por fora da máscara posteriormente na “reagregação” ao mundo cotidiano. Quando o Careta coloca um salto alto, a experiência de ter passado aquela sensação fará parte do seu repertório subjetivo, e assim por diante. Por fim a máscara parece que foi a sabatinada para o anúncio ao estado-metáfora. Ela é o detalhe-foco, ou suporte necessário, no caso do Bloco, para o encontro com a suspensão da vida cotidiana e consequentemente tocar o plano das singularidades. Observando agora em plano-geral para o ritual em si da performatividade dos Caretas (que, a propósito, se dá numa constituição coletiva), tem algo a contribuir com o objetivo de ultrapassagem do “personagem cotidiano” e experienciar um compartilhar único. Pois, é nesse ambiente comunitário, onde 64 um ator social se integra com o outro sem as separações que a vida ordinária tanto destaca, nesse ambiente destronado de hierarquias, que se traspõe as fronteiras do cotidiano e as instâncias da vida se põem a interligar. No transporte que a arte proporciona para outra dimensão do ser, questionando o tempo que construímos e tanto nos sufoca, o espaço que habitamos e tanto queremos ultrapassar, nas metamorfoses do Careta, no exercício de estranhamento do íntimo, o indivíduo pode luzir subjetividades singulares. Ultrapassar, essa é a chave para o duplo de Artaud. Ultrapassar os limites do corpo orgânico, ultrapassar a separação entre arte e vida, as grades da cultura que aprisionam, a consciência que cega. O silêncio, por vezes, diz muito além do que podemos imaginar, olhares sorrateiros, nervosismo, excitação; start! som ritmado de tambores, cores, fantasia... vidas gerando vida e inebriando a alma, cinzas que ficam na quarta, na quinta, nas esquinas, no ventre das meninas... cinzas que fazem sentir renovados, brincando de rei, de capeta, de anjo mau, de “viado” vão compondo várias sinfonias. Máscaras que, por vezes, escondem o que sempre foram e revelam o que gostariam de sempre ter sido. Máscaras da sociedade, máscaras das mortes anunciadas e das mal contadas, máscaras da sede fabricada, máscaras da fome adiada, do sonho bom de carnaval. Entre capôs, chitãos e chifres assustadores, ressuscitam “D. Cazuza” que brada forte a seus servos: “Brasil, mostre sua cara!” e todos ensandecidos, embasbacados pela magia do momento e embriagados pelo ritmo, narcisos cantam e encantam a cidade. Careta é Carnaval! Mas não há carnaval por ali sem caretas. (Poema de Jucedélia Dourado) [grifos da autora] 65 CAPÍTULO IV 4. O LIMIAR E A MÁSCARA Começo a conhecer-me. Não existo. Sou um intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram. Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) Muito bem, até agora justificou-se a necessidade de espaços para o encontro de singularidades, de elaborar um compartilhar único, integrado e a importância da arte no cotidiano. Discorreu-se sobre um estado de suspensão da estrutura cotidiana, o estadometáfora, como interstício para essa necessidade contemporânea de desvendar-se por outras margens. O campo empírico demonstrou que a máscara e o ritual coletivo são fontes de acesso às singularidades. Agora é o momento de descobrir quais são os instrumentos que permitem ou criam as condições para a vida insinuar-se e o cotidiano se transpor para um estado extraordinário. Ou melhor, quais são as vias de acesso através das quais são obtidas as transformações, os deslocamentos da vida ordinária? Tomando como pressuposto a assertiva de Benjamin de que “nos tornamos pobres em experiência de limiar”, e julgando que no processo limiar/liminar que acontecem as possibilidades da construção do novo, das singularidades, do estado holístico, refletiremos então sobre o acesso ao processo do estado-metáfora. Como visto, as várias análises a respeito do carnaval vão no sentido da sua viabilidade do encontro com a liminaridade, com o momento de comunhão, com a ausência de status, hierarquias, enfim, com as possibilidades de (re)significação do real. Sendo assim, o estado-metáfora só poderá ser propiciado com o desvencilhamento das estruturas e estímulos cotidianos, de escolher uma relação distanciada dos consensos. Para os limites dessa pesquisa, o âmbito teórico pauta-se basicamente pelas principais características do conceito de liminaridade de Vitor Turner (1974), já que sua abordagem é um tanto diferenciada. 66 Nesse ínterim, o limiar se conecta inexoravelmente com as sensações da arte. O meu interesse foi diretamente analisar essa conexão. A propósito da arte e do objeto empírico escolhido, passemos então a análise de alguns dos seus traços artísticos, começando pela teatralização do Bloco dos Caretas pelas ruas com a performance, e posteriormente a análise a respeito do frutuoso simbolismo da máscara. 4.1 Performatividade no Bloco dos Caretas Pessoas moldam argila em busca de um rosto monstruoso. A argila é maleável e facilmente modificável. Se três olhos não surtem o efeito desejado é só modificar e transformar em cinco ou em um, afinal é um monstro e suas possibilidades de ser não tem regra nem simetria. Metamorfose de seres que ao alcançar uma forma38 é o momento da remontagem de papel machê; em tantas repetidas camadas que o rosto-monstro vai penetrando no olhar do folião desencadeando conexões para encená-lo futuramente. A pintura da máscara, a montagem de seus adereços, e, posteriormente, o roupão (túnica ou mortalha), fazem parte do processo de dar forma a um personagem-monstro que vai surgindo ao se vestir. Parte do personagem-careta é escolhida anteriormente no processo de moldar a máscara, mas o “performer-careta” mesmo vai se dando momentos antes de sair, lá na concentração, quando incorpora elementos como sinos, travesseiros, pneus, sapatos, que muitas vezes são trocados uns com os outros, ou surgem no auge da concentração. Esse é parte do processo de agir-formando-uma-persona ou de per/form/atividade de um careta no Bloco. Na experiência do Bloco dos Caretas as pessoas deixam suas vidas cotidianas, regradas, planejadas e completas para vivenciar um momento de suspensão das regras, status, situação social. Rompem com a vida codificada para dar voz ao sonho, à fantasia. Vestem a máscara e desnudam o personagem cotidiano, alargando a possibilidade de experienciar um novo olhar para as relações, para o tempo e o espaço socialmente construído e até mesmo para si e para o outro. O Bloco de Caretas sai girando à deriva pela cidade, se deixando levar pelo som dos tambores e atabaques, pelo riso dos espectadores em suas janelas e portões ansiosos pela chegada do Bloco. Entre tensão e alegria, o público receia levar talco, mas ao mesmo tempo sente-se atraído pelas roupas coloridas, badulaques ruidosos e máscaras expressivas. O 38 ...e, diga-se de passagem, ao escolher aquela forma na argila, o indivíduo se identificou de alguma maneira com aquele rosto, pois incontáveis são as formas que ele poderia moldar e escolher. 67 espectador/habitante faz parte da performance, à medida que essa vai sendo delineada em meio ao contato com eles. Do encontro entre um antropólogo Victor Turner e um dramaturgo Richard Schechner surge um campo de estudos formulado nas interfaces da antropologia e do teatro, a Antropologia da Performance que surgiu (ou está diretamente ligado) da Antropologia da Experiência. Turner a define como uma vertente “pós-moderna”, já que ressalta o seu ensejo de ruptura com uma perspectiva antropológica mais tradicional que estabelece uma análise interpretativa "dicotômica" da realidade social. Esses autores estudam dramas da vida cotidiana, ritual, eventos culturais, emprestando elementos cênicos do teatro. No caso do Bloco dos Caretas podemos citar os figurinos, o ato de colocar outra máscara e “transitar por outros mundos”, a mise en scéne, a questão da ambientação, a performatividade, o “sair da linha”. De acordo com o ponto de vista de Turner (1987, p. 77), performance é uma noção interdisciplinar que busca evidenciar as coisas que escapam das classificações e dos paradigmas da ordem. Ele considera que as performances podem ser situadas dentro das situações "extraordinárias", portanto, momentos de interrupção da ordem social. Dessa maneira o Bloco dos Caretas se situa dentro dessa concepção de performance, à medida que os foliões colocam suas máscaras e performam um monstro pelas ruas desestabilizando as relações causais da vida diária. Consciente da variabilidade semântica e do deslizamento conceitual do termo performance, (como não poderia deixar de ser, em se tratando de um termo reivindicado por uma multiplicidade de campos e vozes disciplinares), o termo performatividade é usado aqui considerando que a ação performática do Bloco pode conter características de ação um tanto diferenciadas das performance art. Na verdade, elementos acrescidos, pois não deixa de ser uma performance com suas características elementares de conjunto de ações que envolvem os processos artísticos interdisciplinares, seu carater de acontecimento, etc., etc., mas o Careta está formando um ser e agindo sobre ele em constante dinâmica e metamorfose. À medida que um travesseiro cai, o Careta muda seu jeito de andar e consequentemente seu personagem se modifica, o mesmo se diga de trocar a máscara com o colega, ou ao acrescentar crina de cavalo na máscara, etc. Além disso, penso que a ação de formar o seu próprio rosto é um elemento que enriquece a performance em si, literalmente considerando uma ação/de formar/a si (per/form/atividade). 68 Josette Féral constrói o conceito de performatividade utilizando uma visão antropológica, via Schechner, para quem o ato performativo caracteriza-se como um jogo ritual sob três aspectos: being (ser), doing (fazer), showing (mostrar). “„Fazer‟ e „mostrar fazendo‟ são ações. Fazer e mostrar fazendo estão sempre em fluxo, mudando todo o tempo” (SCHECHNER apud MOSTAÇO, 2010, s/p.). Esse conceito demonstra o caráter de processualidade da performance, é nisso que ela se foca, no processo. Nesse contexto, o Bloco estaria permeando esses três domínios a partir do momento em que o folião está sendo o monstro (personagem-careta), ele fez a máscara, o roupão, os trejeitos, etc., e mostra o sujeito enquanto processo. Destaco ainda, tendo em vista a literalidade do termo “per/form/atividade” (que inevitavelmente me denota “agir” e “formar a si”), a relevância do processo de performatividade do folião engendrar espaços ativos, principalmente no fato deles próprios construírem suas máscaras, seus corpos coloridos, sem roteiro. O “formar a si”, aqui, aponta para o sentido literal também. Nessa atividade de se moldar, talvez o processo toque pontos de singularidades ou faça-a nascer. Turner diz que através do processo de performance, o contido ou suprido revela-se. Ele usa o verbo “espremer” (1982, p. 13-14). Crapanzano (2005, p. 365) formula toda uma argumentação sobre como vias paradoxais pelas quais a irrealidade do imaginário (que é o termo que ele usa para referir-se aos estímulos do momento de suspensão da realidade cotidiana) “imprime o real na realidade e por que o real da realidade compele essa irrealidade do imaginário”. Esse momento indefinido, ou essa indefinição do momento sugere perigo para a estrutura ordinária. Ele acredita que todo esse arcabouço do além-cotidiano provoca abalos nos arranjos socioeconômicos, políticos e culturais que nos foram conferidos. Assim como Calabrese anunciou sobre a importância da imprecisão, do indefinido, do nada, da não-utilidade, Turner (1974, p. 6) salienta que a “communitas e a liminaridade representam os zeros e os mínus sem os quais não é possível a um grupo social computar ou avaliar sua situação atual ou seu porvir num futuro calculável”. De tal modo, a antiestrutura não serve apenas para manutenção da estrutura, mas é imperativo para questionar as convenções, para desconstruir a unicidade da realidade 39, vislumbrar outra forma de 39 Uma nova visão, chamada visão holística do real tem surgido sob influência das descobertas da Física Quântica e da Psicologia Transpessoal. Representa na realidade todo um movimento de mudança de sentido, não somente da ciência mais ainda de todo conhecimento humano. A Física Quântica, de um lado tem mostrado que a nossa percepção de uma realidade concreta de objeto percebido por um sujeito é uma ilusão e que em última instância, depois da fórmula da relatividade de Einstein, matéria é energia. 69 sociabilidade, fulgurar singularidades e construir subjetividades, e como diz Turner, compreender as disjunções donde se origina o pensamento independente. “As pessoas podem ser muito criativas em sua libertação dos controles estruturais” (Turner, 1974, p. 5). Experienciar momentos de não-utilidade, de deixar-se levar, é abrir-se pra as possibilidades. Para Crapanzano (2005, p. 367) o “impreciso, obscuro, é um componente necessário, de qualquer pensamento, percepção e experiência”. E “são fundamentais à vida social, aos seus procedimentos mais básicos: troca, passagem, reprodução e transformação”. (Id., Ibid., p. 376, 377) 4.1.1 Da experiência Para Turner (apud Dawsey 2005, p. 164) a “performance completa uma experiência”. Experimentar é arriscar. O risco pode ser perigoso, mas sem ele não existiria o novo. O próprio termo “experiência” tem significado literal de “correr riscos”, e o de “performance” – “completar”, “realizar inteiramente”, segundo Dawsey. A performatividade do Bloco garante o caráter de risco. Os foliões se arriscam ser o que jamais seriam na vida ordinária. Se arriscam experimentar sair a esmo pelas ruas que não tem mais destino prévio. Se arriscam experimentar ver seus parentes e amigos sem que eles o reconheçam. Se arriscam formar um personagem que vai abrir espaços para criação e interação com os que o assistem, arriscam, por fim, deixar de ser o que sempre foram. Por esse motivo o estado-metáfora é arriscado e, às vezes, perigoso de acordo com Turner, Crapanzano e todos os teóricos que se debruçam sobre o tema. Turner (1974, p. 5) deixa claro que “podem ser perigosas do ponto de vista da manutenção da lei e da ordem”. Mary Douglas (1966) argumenta sobre o indefinido, o sujo, a margem, enfim, tudo que foge ao cotidiano ser fonte de perigo. Para Douglas é perigo para o sistema social repartir o poder de simbolizar a vida com aqueles cujos caracteres e idéias projetadas são ambíguos e anômalos, ou seja, não se enquadram na ordem social vigente, o perigo dessa ser deslegitimada . Rolnik (1995) diz que o relâmpago-passagem poderá ser vivido pelo sujeito como o Perigo de cair no abismo do desconhecido, e consequentemente, como terror inominável. São momentos de vivência de se estar sem chão. Esses estão inseridos na dimensão trágica da vida. O betwixt and between de Turner também é considerado um momento trágico. Para cada travessia, há sempre um momento em que não se está num lado nem de outro, em que não se é o que era nem o que será; pois, uma vez que 70 são discriminados, o contíguo nunca os atinge. Fica-se em suspensão – pairando eternamente de permeio (Crapanzano, 2005, p. 378). Em permeio num “entremeio”, assim como a “terceira margem do rio”, o “mestiço” de Serres (1993). Nesse lugar mestiço Serres enfatiza a importância de se estar entre “o ser e o nada”, onde a sensibilidade habita um lugar central e periférico em forma de estrela. “Entre dois limiares quaisquer seguranças desaparecem” (1993, p.11). O mestiço ou terceiro instruído de Serres é um lugar que não tem sentido para encontrar todos os sentidos, pois abandona a cultura da língua e a rigidez dos hábitos e torna-se vários. “Porque não há aprendizado sem exposição, às vezes perigosa, ao outro” (Id., p.15). Não é por acaso que Calabrese se espanta com nosso medo do indefinido, do incompleto. Para Rolnik (1995) a dificuldade psíquica atual maior é o desvigor para essa passagem, o desvigor para suportar o desassossego, passagem para a dimensão trágica da vida. Desse modo, a argumentação justifica a preocupação da pesquisa também na área da psiquê. (Nada desproporcional, visto que a dissertação está num mestrado interdisciplinar). Sair da ordem, se jogar no caos onde incógnitas aguardam acendimentos de intersecção perceptiva. Arriscar ser incompleto para dar possibilidade do acaso o completar, ou não completar. O risco potencializa a interferência no cotidiano do ator social40 e sua ação política. A performatividade é um trabalho artístico vivo no qual tudo permanece imprevisível e está para ser inventado. O risco da performatividade aqui é potencial à medida que permite criar, podendo abrir canais, espaços, rarefações, que permitam tocar no ponto onde singularidades podem emergir. A experiência vai estimular, motivar, provocar o sujeito para agir sobre algo, moviment/ação. A experiência da performatividade faz o ator social se mover para procurar respostas às provocações. Incita outras condições, colocando o indivíduo ao acaso e provocando situações outras, no nível do acontecimento para despretensiosamente desfixar, tocar o sujeito para importunar a reagir. Respostas que, quiçá, servirá a ele mesmo. Schechner (1995) entende a performance como comportamentos restaurados, situações extra-cotidianas que reelaboram procedimentos repetidos do dia a dia inerentes a ações ou condutas instauradas no cotidiano. A performance então restauraria esses comportamentos a partir da experiência com fortuitos, o contato com elementos inovadores, inéditos ou nunca antes empreendidos. 40 Além de gostar do termo, o usei por considerar oportuno o termo de Weber ator social, já que se conecta com a discussão do do indivíduo que age (ação). 71 Nesse âmbito, o comportamento restaurado remete aos inúmeros “eus” que cada um alberga dentro de si, com distintas funções, como age em diferentes situações ou diante de momentos qualificados, dando resposta às motivações provenientes da vida; seja nas condições íntimas, domésticas ou coletivas (SCHECHNER, 1995). A performatividade está interessada, sobretudo, na originalidade da experiência corporal, na natureza indivisa e voluntária do gesto, na atitude e na conduta do performer numa situação extra-cotidiana que visa, primordialmente, desestabilizar tudo que é repetitivo ou corriqueiro, perpetrando um ato inaugural. Inscrita na ordem das percepções, sua ação poética busca a transgressão, a ruptura, o corte – tudo o que é marcado como diferença. Enfim, responsáveis maiores pelas suas características ontológicas de gesto original, a saltar fora da série das repetições, dos ensaios, das restaurações, segundo Schechner. E aqui está o segundo ponto chave: possibilidades! Abertura para o novo, para possibilidades nunca vistas, nunca pensadas, ou pensadas, porém não efetivadas, pois as imagens novas, falam e agitam múltiplas possibilidades de viver e ver o mundo e, principalmente, agir sobre ele. O espectador “difunda seus lampejos visuais e sonoros” sugere Artaud (1993, p. 97), como se o teatro possuísse certo dispositivo que ao ser ligado se ativa os sentidos e as possibilidades presentes ou futuras do espectador e ator. Turner (apud DAWSEY, 2005, p. 165) pronuncia sobre a performance: Fragmentos distantes uns dos outros entram em relações inesperadas e reveladoras, como montagens. Figuras grotescas manifestam-se em meio a experiências carnavalizantes. No espelho mágico de uma experiência liminar, a sociedade pode verse a si mesma a partir de múltiplos ângulos, experimentando, num estado de subjuntividade, com as formas alteradas do ser. Se ninguém tiver coragem de buscar experienciar o novo, ficaríamos para sempre debaixo do guarda-sol de Deleuze e Guattari, consternantes e acomodados sob o espectro do “sol” que outrem desenhou. Sendo assim, a experiência de ultrapassar o guarda-sol, de experimentar o estadometáfora, acessa o pensamento independente/singular? 4.1.2 Singularidade A coragem de ser singular é a coragem de se mostrar, de deixar emergir potencialidades. Como visto no primeiro capítulo, com os estímulos da modernidade não temos espaço para nossas subjetividades, só nos damos com nosso consciente, com atos automatizados e “doados” pelo social. Mas como se mostrar numa sociedade onde se deve 72 fazer e ser 41 o que a maioria quer e pensa que deve ser? Todos devem seguir os modelos de ideal. 42 Obstando assim, os espaços para criação já que o espaço vazio praticamente não existe. Todavia, observa-se que atualmente existe uma incipiente tendência para o indivíduo se mostrar um pouco mais. Cansados dos ideais modernos de planejar a vida, descrente do relato que a ciência dê conta da libertação do homem, do projeto de resolver todos os problemas do mundo com vacinas, remédios e objetos práticos, o indivíduo não quer mais ser o óbvio. A lucidez de um artista, dramaturgo, visionário – Artaud, de procurar o si, o “corposem-órgãos”, o corpo caótico, não modelado culturalmente, um corpo cru43, - sem os vícios do que já foi construído, o ser singular de cada um, - se faz cada vez mais atual. Foucault também quer que os corpos se produzam individualmente, não docilizados. Mas reconhece que é difícil pensar fora dessa “cela”. Esse processo pode ser alcançado no estado-metáfora, um momento em que as regras sociais não estão em jogo, não são levadas em conta as construções sociais confeccionadas durante toda a vida, estado em que o ser se encontra num grau mais orgânico, eu diria. De tal modo clama a performatividade do Bloco, essa expressão popular carregada de fazer artísticos caracterizada pelo caos carnavalesco. O caos é justamente a possibilidade, pois se nada é completo ou ordenado é aqui o lugar da criação, da elaboração e mutação de subjetividades, e por que não dos lampejos de singularidade? A arte é o caos também, assim como a performance ela não está no campo do ordinário. De acordo com Schiller (1992), “toda a arte é libertadora porque desaprisiona, elimina interditos, pondo o sujeito em sua condição divina, fazendo nele existir um continuum utópico” porque vai idealisticamente além do que é meramente dado. “É preciso educar-se 41 Por isso a performatividade pode ter grande potencialidade sobre a singularidade, pois o “ser” e “fazer” é baseado (no que vem de dentro) na criação do ator, como Schechner quer, não nas imposições culturais, no que vem de fora. E o “mostrar” está no campo de mostrar a si, não mostrar o que se deve ou o que os outros querem que você seja. 42 Dorfles diz que o homem, o artista também de hoje, tem uma urgência íntima de velar, de mascarar sob a égide de signos indecifáveis seus impulsos mais íntimos e privados. 43 Ver O cru e o cozido (LÉVI-STRAUSS, 2004). Nesse livro, Lévi-Strauss faz uma metáfora para explicar a natureza como o cru, e a cultura como o cozido, o que já foi elaborado e modificado com a cultura. E define algo interessante para se pensar esse “corpo cru”: “O motivo pelo qual a antropologia se interessa pela arte é que a arte é uma parte da cultura e é, em mais alto ponto, a tomada de posse da natureza pela cultura.” A arte deixa de ser apenas ilustração, mas que “é possível rearticular essas duas formas de pensamento (cru e cozido) ao se perceber que qualquer arte é produto intelectual”. É a aliança entre o sensível e o inteligível (apud HAAG, 2008). 73 esteticamente para que em cada um se garanta a justeza e o rigor dignificante dos juízos inexoráveis” (SCHILLER apud SILVA, 2001, s/p). Para Artaud, crueldade é “tudo o que age” (1993, p. 96). Lembrando o que foi dito sobre a literalidade do termo performatividade como agir, o teatro da crueldade contém ideias boas para pensar a performatividade do Bloco. A ideia de agir é categórica em Artaud, assim como na cidade subjetiva de Guattari (1992). Artaud insiste na perspectiva de cultura em ação se tornando em nós como que um novo órgão, um segundo espírito. Pois com a vida cheia de magia o mundo não é obrigatório. “A pedra se anima porque foi tocada como se deve, assim o mundo dos civilizados orgânicos, quero dizer, cujos órgãos vitais também saem do seu repouso, esse mundo humano penetra em nós, participa da dança dos deuses.” Dessa maneira, nossos órgãos estando no estado docilizado são para Artaud (1993, p. 6) “estátuas desagregadas”. O teatro de Artaud é estudado na contemporaneidade com a intenção de romper a arte como entretenimento. Nesse sentido acredito que a contribuição mais radical de Artaud para as performatividades contemporâneas é a sugestão ou efeito de ruptura com fronteiras ou tabus e a criação de um espaço de produzir de dentro de si mesmo. Além, obviamente, do despertar para a necessidade de um momento de suspensão das estruturas sociais vigentes para mensurar outras realidades e possibilidades. De fato, volta-se contra esse recalque que sustenta a vida social cotidiana. Esse autor nega a palavra, quer encontrar algo mais profundo, a palavra anterior à palavra. 44 Esse “é o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo (...) É uma performance que não exatamente suprime o discurso articulado, mas se dá às palavras mais ou menos a importância que elas têm nos sonhos” (ARTAUD, 1993, p. 104). Tirar a palavra da sua estagnação psicológica e humana sem ideias limitadas, nem formalmente esboçadas. A não ser ideias de “Criação, ao Devir, ao Caos que são cósmicas e podem criar uma equação ente o Homem e Sociedade, entre a Natureza e os Objetos” (Id., Ibid., p. 102). Ideias que vão agir na sensibilidade. Ela serve para encerrar órgãos, a linguagem, faz das palavras encantações, encerra a boca para falar, dá sentido de uma intelectualidade nova e mais profunda e “exorcismos particulares” (1993, p. 103). Podendo, assim, estimular processos de auto-engendramento de singularidades, novas formas de subjetivação. Suely Rolnik e Félix Guattari (1986), (1987) articulam sobre a “auto modelação da subjetividade”: construir as próprias referências práticas e teóricas sobre a produção da vida 44 Nos termos de Jacques Lacan, seria um precipitado da ordem simbólica. 74 coletiva material e subjetiva, como exemplo ao nível sociológico/interpessoal: a invenção de novas formas de sociabilidade doméstica, amorosa, profissional... O conceito de autopoiése formulado na década de 1960 por Humberto Maturana e Francisco Varela nos serve para pensar melhor o estado-metáfora. Para eles autopoiése seria uma organização autoprodutiva, autopoiética, pois busca entender a partir da ideia de autocriação a constituição recíproca das relações organismo-meio e não esse par sendo ponto de partida, como geralmente entendemos. A autopoiése é o engendramento de singularidades que engendram outras singularidades. Se, a poética for um incomensurável tear, uma lógica que engloba inúmeras potências, a autopoiése seria um dos aspectos fundamentais da poética. (...) A potência do autoengendramento (FONSECA, 1998, p. 25). O homem é um ser marcado, atravessado e transformado o tempo todo pelo simbólico. Ainda assim, as referências singulares são pontos chaves para a constituição do que os diferencia. E aqui não estamos preocupados com a diferença que pode identificar um povo, uma atitude ou qualquer coisa do tipo. Pelo contrário, o corpo no estado-metáfora não serve à criação de identidades. É a diferença que singulariza o ser em constante mutação e pode gerar o novo, a criação, o descaso pela identidade definitiva, a ultrapassagem das referências culturais. A natureza auto-referencial do processo não pode ser confundida com fechamento ou ausência de conexões. Significa apenas que a principal atividade do ser vivo é produzir mudanças em si mesmo. Condições engendradas pela própria rede (Id., Ibid., p. 23). Assim a expressividade clandestina pode descobrir vias de acesso às novas linguagens e “horizontes plurais”, até então tidos como absurdos na ótica do bom senso, argumenta Fonseca. A partir da arte, do contato com seu estado-metáfora, os indivíduos entram num processo de autopoiése, modelando-se a si mesmo, se autoproduzindo constantemente e formando teias de significações que se encontraram uma poética. Para Eliane Fonseca (1998) esse processo é potencial à medida que é uma repetição prospectiva, com função de criar novas articulações e registro que antes não existiam e expressar “Eus guardados”. Dessa maneira o cotidiano vai ficando melhor, pois o corpo-de-sonho, assim como a experiência performativa, “é a arte de descobrir que pela poesia, o sujeito se debruça por sobre o seu desenho – desígnio, de signos – do obscuro temível ao possível simbólico”. A arte também precisa de um processo para fazer a ultrapassagem do cotidiano, e esse processo é ritualístico. Arte também é ritual, pois o novo, a criação, só aparece com o 75 processo, e o processo é ritualístico. Lévi-Strauss (1982) diz que o mito é a estrutura permanente que está no passado, no presente e no futuro. Mas o rito é mais que estrutura, ele é processo, é processualidade, é potencia para vir-a-ser, segundo ele. Partindo dessa afirmação do mestre do estruturalismo, imergiremos agora nas nuances da segunda assertiva da problematização: o estado comunitário ou holístico. 4.2 Rito e Estado holístico Ante o exposto, torna-se imperiosa e de grande atualidade a reflexão sobre como a potência do coletivo, de um todo integrado, é capaz de levar o indivíduo a experimentar uma sensação transgressora, que o despe de todas as precisões, classificações, papéis sociais e estimativas. De outro modo, é o caráter experiencial e processual do ritual de carnaval, bem como sua compreensão como "unidade de observação" e "experiência concreta", que permitem relacionar, neste trabalho, processo interrelacional, cultura plural, efeitos de arte, poéticas contemporâneas e estado holístico, através do estudo da arte e do ritual. Os rituais fazem parte da cultura humana desde que temos registros. 45 Os povos antigos praticavam rituais com diversas intenções ou mesmo sem intenção, apenas para sentir o prazer de dançar e cantar.46 Não obstante, essas ações coletivas são praticadas constantemente hoje, como salienta Segalen (2002) em Ritos e rituais contemporâneos. A diferença é que nas sociedades nãoocidentais e nas “não-industriais”, tanto o rito, quanto a organização social, o trabalho, a arte, não estão em instâncias separadas da vida como em nossa sociedade urbano-industrial. São ações geralmente montadas num lugar público, no qual tudo se encontra interligado, trabalho e arte, morte e vida, além terra e terra, etc... Para o homem grego, a arte se presentificava na habilidade inteligente do fazer, o que lhe garantia um princípio epifânico de totalidades entre si, pois que a transcendência da arte deveria estar em cada realizar empírico humano. Entende Schiller (apud SILVA, 1993, s/p) que a especialização constante do mundo objetivo fez desaparecer o senso de sacralidade antes impresso no viver comum, estilo “que 45 Arnold Van Gennep define os ritos como situações específicas com comportamentos repetidos, no qual há um momento de separação, margem e reagregação. 46 Apenas para ilustrar: Bandiama e o kumpo são máscaras africanas utilizadas em momentos muito especiais, como em época de seca. 76 tanto faz regenerar sentimentos adormecidos no homem, pondo-o como instrumento estético em conjunção do geral e do particular, entre o transitório e o permanente, entre o físico e o metafísico.” Durkheim chama atenção para os estudos de rituais como "meios pelos quais o grupo social se reafirma periodicamente" (1996, p. 422). Esse autor tem uma abordagem que privilegia os rituais não apenas como momentos de liminaridade, mas também como estados da arte de cosmologias locais, nacionais e globais. Para Lévi-Strauss o rito é a vivência, ou a prática do mito. Experienciar o tal estadometáfora, é alcançar a dimensão mítico-onírica, dimensão trágica, estado de risco na ausência de garantias. Os ritos exprimem dos mitos aspectos subjetivos da socialização de uma perspectiva processual, própria dessas manifestações e nas quais diversos meios de comunicação de conteúdos da cultura se combinam, tais como a música, a dança, as artes visuais, a ação cênica, além dos aspectos propriamente lingüísticos, como a narrativa mítica ou qualquer outra forma de expressão verbal. De acordo com Turner (1992) eles se combinam, produzem sentido e expressam a experiência vivida como reflexividade transformadora. Na opinião de Desmond Morris (1967), o indivíduo em ritual sugere uma animalidade. Eu ponderaria sua afirmação dizendo que, em ritual, os indivíduos não se comportam, necessariamente, como seres “civilizados”. O indivíduo some funcionando de outra maneira. Pensando que o ego é apenas uma pequena parte da mente, se torna justificável que existe muito além do sujeito. Tucherman (1999, p.27) argumenta que forçamos as potencialidades da natureza aos seus limites para procurarmos pontos de referência. Reencontramos nesse processo o deviranimal xamânico que já nos distanciamos, pois apostamos na excelência simbólica da razão humana. Esnobamos orgulho narcísico dos corpos racionais até a explosão de episódios (bem racionalizados) que expôs nossas falhas, imperfeições, como o holocausto, as guerras, que, demonstrando uma alma cada vez mais artificial, introduziu a vergonha de ser humano. Assim ela apresenta os monstros (que aqui relaciono com os monstros dos Caretas) como outra experiência de corpo que, na oposição à noção de corpo racional, próprio e privado, designa um corpo comunitário, que constitui o suporte de experiência das sociedades arcaicas ou tradicionais e “funda uma forma própria de comunicação, respondendo de uma maneira particular aos processos de singularização, mas também a questões e às pressões sociais”. Vale lembrar que Foucault enumera as características das sociedades disciplinares pós Segunda Guerra: identidade fixa, totalizada e definida (principalmente para si mesmo), 77 número de matrícula que indica a sua posição na massa. Essas características formam um personagem para os outros e para si, tirando cada vez mais a possibilidade de se reconhecer intimamente com sua constituição autônoma, mais ligada ao natural. O retorno a rituais tradicionais, ou transes religiosos, e na minha proposição, a experiência artística, pode levar o indivíduo a um contato mais direto com esse “elo perdido”. No ritual o sujeito se desmancha, o ego se torna apenas uma ilusão. Visualizar o sujeito em momentos de carnavalização é uma boa forma de imaginar tal fenômeno, por isso insisto no motivo do carnaval. Há o descentramento da subjetividade, ela se desconserta, a experiência deturpa a norma, emerge orgia de sentidos. No contemporâneo não se consegue mais falar de sujeito como se falava em tempos modernos. É inviável continuar acreditando na vontade do sujeito, a vontade de controlar tudo, dominar a qualquer preço, imputar a medicalização da existência. 4.2.1 Do rito para o corpo comunitário ou estado holístico – Fim das fronteiras entre arte e vida? A ação social de se “juntar para agir”, de integrar fenômenos naturais com sociais, arte com vida, é o que ressalto no ritual como fenômeno de deslocamento. Ou seja, a importância atual dada as ideias de outrora, tidas como ultrapassadas, contudo sem fidedignidade de composição, tudo somado a objetos contemporâneos. Com o passar do tempo e das ideias modernas de segregação, o individualismo não deu tanta brecha para as pessoas se unirem com o propósito de construir algo coletivamente. Contudo, na contemporaneidade, percebe-se uma movimentação de “se juntar para algo maior”, tantos processos colaborativos novamente, entretanto de forma reconfigurada. Os coletivos são cada vez mais presentes, os aglomerados habitacionais, as ONGs, os rituais, as redes sociais, entre outros. Ou seja, promovem-se ocorrências para que as pessoas se encontrem, e assim podem se ramificar os processos colaborativos. Surge também como uma tentativa de trabalhar as relações entre os homens, assim como quer a “Estética relacional” de Bouriaud (2009) – ao invés de obrigações sociais (diferente de festas obrigatórias, agora a festa é como a do carnaval) estimula-se um sentimento espontâneo do “juntar-se para algo”, ainda que esse algo seja se divertir (aliás, o que é muitíssimo válido), de ocupar os espaços públicos e assim por diante. Rituais são atividades coletivas que, segundo a antropóloga Segalen, “oferecem saídas para as imposições regulamentadas do quotidiano, abrindo espaço à integração e propondo aos nossos imaginários a escapatória de suas simbolizações” (2002, p. 69). De outro modo, o 78 espaço do apoio coletivo e extra-cotidiano “parece ter uma energia potencial que se comunica ao longo da cadeia humana” (Id., Ibid., p. 85). O fato desses desejos de tempos tão remotos ressoarem na atualidade 47, ou seja, da contemporaneidade renovar estados-comunitários, reforça o que alguns autores descrevem como tendência do tempo presente. Maffesoli em Tempo das Tribos (1987) articula a importância e abundância nesse “juntar-se para algo” que define como neotribalismo ou tribalismo pós-moderno. Segundo o autor, na “pós-modernidade” os homens estariam adotando um ponto de vista mais emotivo em relação ao mundo. Neste novo paradigma cultural o mundo estaria entrando numa fase tribal, um volver a valores que a modernidade julgava enterrados. Eles estariam dando lugar ao prazer e à emoção, ressurgindo uma sensibilidade diferente entre as novas gerações. A proposta de Maffesoli (2000, p. 50) é de que este novo paradigma venha substituir o paradigma do individualismo na compreensão da sociedade contemporânea, pois, ele está “baseado na necessidade de solidariedade e de proteção que caracterizam o conjunto social”. Desta forma, a metáfora da tribo da qual o autor se utiliza nos permite dar conta do processo de “desindividualização” e da valorização do papel que cada pessoa é chamada a representar dentro do coletivo. Essas novas tribos são caracterizadas pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela dispersão (MAFFESOLI, 1987). Clássicos da sociologia, como Durkheim e Weber também já discorreram sobre o tema. A analogia das “culturas do sentimento” de Maffesoli e o tipo ideal das “comunidades afetivas ou emocionais” mencionados por Weber (1994) se faz apropriada. Weber destaca as características dessas “comunidades emocionais” pelo aspecto efêmero, a composição cambiante, a ausência de uma organização e estrutura cotidiana. Refere-se a uma vontade de “estar-junto”, onde o que importa é o compartilhamento de emoções. Ideias que compõem igualmente o que Maffesoli denomina como uma “cultura do sentimento”, formada por relações tácteis, por formas coletivas de empatia. A “cultura do sentimento” preocupa-se com o presente vivido coletivamente. Remetendo também a “solidariedade orgânica” de Durkheim (1999) onde o encontro de interesses complementares cria um laço social, ou seja, outro tipo de princípio de solidariedade, com moral própria e que dá origem a uma nova organização social. O denominador comum entre os três é o desejo de “estar-junto”, da coletivização, um estado-comunitário. Sentimento este, que Maffesoli (1987) chama de “aura estética” (o sentir 47 Guattari cria um termo para isso: ritornelos, descrevendo a maneira como o passado ressoa em espiral no presente. 79 em comum). Dessa forma, na análise desse autor “pós-modernista”, o tribal surge como uma espécie de compensação diante de uma sociedade cujos laços e coesão social são frágeis. O neotribalismo corresponderia a uma espécie de resposta a uma sociedade fragmentada, fria, individualista, competitiva e burocrática. O desejo de “estar-junto” aqui corrobora o predicado da mistura, do hibridizar-se, a diluição de fronteiras, atributos estes, já diagnosticados na cultura contemporânea. 48 Por sua vez, a criação de lacunas, brechas ou canais de ultrapassagem são necessários para diluir a fronteira da realidade ordinária e misturar a vida cotidiana com a extra-cotidiana, com a arte, com o outro. As cercas começam a se desmanchar, interpenetração da escola/família, trabalho, etc. Aliás os “inter”, “multi”, “poli”, estão em alta. Inter-artes, inter-ação, poli-semântica, multidisciplinar, multi-estrutura, até multi-alimentação, são conceitos bastante explorados atualmente em várias áreas. Visto que, o que é plural, polimorfo, polifônico, deve afetar a cada pessoa de maneiras diferentes. Além de que, com a mistura não há espaço para preconceitos, pois se a mistura dilui as fronteiras, dilui em consequência as definições, possibilitando a passagem de uma situação para outra sem interrupção. A mistura de ritual com arte alcança o deslocamento da dimensão rígida da vida cotidiana para o lúdico e onírico. É o que acontece no Bloco dos Caretas. Nesse ritual não existem fronteiras entre as diferentes artes que compõem o Bloco, dança, música, teatro, artes plásticas (já que os próprios foliões fazem suas máscaras), performam um monstro, enfim, rito, arte e vida interligados. O conceito de inter-artes amplia os procedimentos e as estratégias estéticas, dissolve especificidades das linguagens tradicionais no amplo campo da estética e permite a geração de novas formas de arte. Esta relação holística é colocada por Maffesoli como uma tendência contemporânea. E ainda sugere ser um retorno ao ideal comunitário, já que a modernidade tentou separar tudo. Essa nova relação inaugura uma nova forma de sociabilidade 49. Vale lembrar que se Maffesoli estivesse lendo essas páginas, talvez abrisse um parêntese para colocar essa relação como socialidade, tendo em vista que sociabilidade está mais ligado a funcionalidade do indivíduo, com o mundo ordinário e tempo do trabalho, já socialidade com os desvios, contracultura, com as formas da vida que se reconstituem continuamente. 48 Ver Gruzinski (2001), Michel Serres. Essa nova forma de sociabilidade também é abordada por Deleuze e Guattari. Reformulação da idéia de cidadania: direção à subjetividade holística, tudo se encontra junto economia + política + cultura, etc. 49 80 O fato de ingressar no coletivo já é por si uma espécie de diluição do ego, destronamento do sujeito, da situação e dos deveres sociais. Mistura-se idade, condição social, sexo, direitos, etc.50 Esse estado holístico, coletivo, é experienciado com a suspensão da estrutura cotidiana. No caso do Bloco a máscara ajuda emergir pra essa outra relação de sociabilidade, como será melhor abordado em seguida. Turner define como a suspensão de “seres humanos totais”. 51 Nesse ponto, oportuno lembrar que Schiller (apud SILVA, 2001) afirmou que no ato de contemplação de uma obra de arte, o sujeito pondo-se em suspensão52 integra-se amorosamente ao que vê. Afinal, o que seria do mundo sem as categorias da arte? Um estoque de técnica e ciência reduzido a relações causais, preso à lógica das relações utilitárias? Bourriaud ressalta que as obras de arte contemporâneas já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas “procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista” (2009, p. 18). 4.3 Carnavalização: Um olhar através da máscara para além da realidade cotidiana Sob as concepções do Teatro antropológico, Eugênio Barba diz que o ambiente já existe e aparentemente não pode mudar, mas o ator, e “seu artifício da máscara, usa sua presença para surgir um personagem na arquitetura que normalmente não somos capazes de ver, por causa dos hábitos cotidianos e usos que não mais experimentamos com um olho são” (1995, p. 71). A afirmação de Barba “não mais experimentamos com um olho são” significa então que nosso olhar cotidiano não é sadio? Não somos capazes de enxergar o mundo? 50 No caso do Bloco, a superficialidade (característica da relação contemporânea tão criticada) pode ser mais potencial que as relações estabelecidas sem as máscaras. Afinal, já se disse, e com certa razão, que a expressão é a forma de uma força. 51 No estado liminar “os indivíduos não estão segmentados em funções e status mas encaram-se como seres humanos totais” (TURNER, 1974, p. 5). 52 Suspensão com a arte. O autor argumenta o valor da arte na vida sendo fonte de fruição e exercício de razão e sentimento, justificando assim a arte como educação do homem. “A possibilidade da educação ética da humanidade fundamentada no recurso estético, pautado na lógica das relações entre o sujeito e toda a sua alteridade, intermediados pelo belo” (SCHILLER apud Id., Ibid., s/p). 81 O uso da máscara simboliza uma das alegorias mais marcantes do carnaval: a confusão e dissolução das identidades pessoais e sociais, o triunfo da alteridade durante aquele tempo convencionalmente reservado à transgressão. O vestir a máscara aqui, significa o renascer com uma nova máscara social. Leach fala sobre essa situação „mascarada‟: “O indivíduo em vez de dar ênfase a sua personalidade social e ao seu status oficial, procura disfarçá-los. O mundo surge numa máscara, as regras formais da vida ortodoxa são esquecidas” (apud MATTA, 1977, p. 26). Para Bakhtin o motivo da máscara é o mais importante, complexo e mais carregado de sentido no carnaval. A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o principio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos. O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável. Basta lembrar que manifestações como a paródia, a caricatura, a careta, as contorções e as “macaquices” são derivadas da máscara. É na máscara que se revela com clareza a essência profunda do grotesco (1993, p. 35). Ele diz que mesmo na “vida cotidiana contemporânea, a máscara cria uma atmosfera especial, como se pertencesse a outro mundo. Ela não poderá jamais tornar-se um objeto entre outros” (1993, p. 36). Sugere-se que a “passagem” para experimentar essas sensações de “mundo às avessas” pode levar a latências despercebidas 53, ou seja, o olhar sob a máscara sem foco, nem alvo, olhar que parte de todas e para todas as direções (de cima para baixo, de baixo para cima, do lado, etc.)54, contribui para um olhar reinterpretado das pessoas, de si mesmo, ou do mundo; indica para um olhar além da realidade convencional, já que é um agir e enxergar de um ser sem as obrigações do “personagem cotidiano”, como bem defende Goffman (1975). A fronteira das máscaras, por sua vez, deve enfatizar muito essa transposição. Para Bakhtin (1993) outro aspecto constante dos ritos carnavalescos são as situações de desnudamento e de mascaramento, já que o ato de pôr a máscara significa assumir outra personalidade ou esconder-se, assim como o de tirar a máscara significa mostra-se, exibir-se. 53 No dicionário, carnaval é definido como “o irromper de recalques por meio de danças, trejeitos, idumentaria diversa da habitual”; “situação mascarada”. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda. 5º edição. São Paulo: Cia Melhoramentos de SP, 1981. 54 Bakhtin define como as permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), a face e do traseiro (1993, p. 10). 82 Nesse ponto discordo de Bakhtin, pois entendo que o ato de por a máscara e assumir outra persona não seria esconder-se, e sim mostrar-se, mostrar outros rostos próprios, de forma que o tirar a máscara que seria esconder-se por sob a máscara social. Várias músicas populares de carnaval abordam tal tema. A música de Coelho Neto “Carnaval de Outrora” demonstra bem essa relação da máscara e o mostrar-se. E era o Carnaval alegre da intriga – máscaras indiscretas que punham na rua, às escâncaras, os poderes deste ou daquele, atracações gaiatas; vota e meia um rolo, apitos, correr-corre... Michel Maffesoli (apud STRANSBURGER, 2007) assim refere sobre a natureza dos disfarces: “o sentido para a pessoa é fornecido pela pluralidade das máscaras que a constituem, e pelo contexto no qual suas diversas máscaras poderão expressar-se”. O conceito de “destronamento” de Bakhtin é providencial para as máscaras do Bloco. Tudo que é elevado, tabu ou sério é ridicularizado e performado descontraidamente. Como acontece com personagens conhecidos, Parreira, Bin Laden, George Bush, Papa Bento XVI, são transformados em máscaras e alvos de paródia e de performance satírica. Não só os personagens conhecidos, mas é uma paródia da vida cotidiana demonstrando ironicamente o lugar que no momento os caretas não estão, a outra extensão de espaço que não o da vida ordinária. 4.3.1 Máscaras e/no Teatro. No teatro grego, a máscara servia para dar aos atores a sua personagem, a sua persona (= máscara). Escondendo o rosto, os atores representavam usando apenas o tom de voz e o gesto. A máscara reaparece na Commedia dell’Arte italiana, séc. XV, mas as máscaras cômicas e trágicas do teatro grego ainda hoje representam, em conjunto, o teatro: afinal, os atores, ao assumirem uma personagem, estão ainda a colocar uma “máscara” sobre si. 55 O objeto da máscara no Bloco „cai‟ impecavelmente como transporte para a dramatização. O poder de desdobramento de uma figura, onde indivíduos que nunca tiveram contato com nenhum curso ou teorias cênicas, deslocam do seu ser e performam figuras monstruosas ou bizarras, é como “um outro revelado em você”, salienta Barba (1995, p. 109). O autor diz que a máscara é uma maneira de viver o outro, de se transportar para outra dimensão do eu, de desdobramento de si. É outra possibilidade de dar ao rosto uma dimensão 55 “Como heterônimos de nós mesmo, somos personnes...” (FONSECA, 1995, p. 126). 83 extra cotidiana ou de transporte para a teatralização, como faziam alguns povos em rituais antigos que Eugenio Barba chama de “artes representativas tradicionais” (1995, p. 208). Bakhtin deixa claro que os ritos de carnaval “por seu caráter concreto e sensível e graças a um poderoso elemento de jogo, estão mais relacionadas às formas artísticas e animadas por imagens, ou seja, as formas do espetáculo teatral”. Mas não configura puramente arte, e nem puramente cultura popular, se situa “nas fronteiras entre a arte e a vida”. Na realidade, é a “própria vida apresentada com os elementos característicos da representação (...) Numa outra forma livre, ideal de vida, ressuscitada” (1993, p. 6). O caráter teatralizado das máscaras é bem vivificado, por exemplo, no teatro japonês nô, o qual se diferencia do teatro estético moderno pela característica ritualística e espiritual do corpo e a ênfase na linguagem não-verbal. A máscara de nô é o parceiro do ator para “flutuar entre o mundo da escuridão e a realidade”, diz Kusano (1988, p. 39). Elas são transformadas de um objeto estático para um perfil vivo e sugestivo. Essas máscaras possuem aberturas estreitas para obstruir a visão do mundo exterior, forçando o ator a voltar seus olhos para o seu mundo interior. Eugênio Barba se refere ao teatro nô dizendo que: ...os atores usam o campo de visão diferente do usado na vida cotidiana. Sua atitude física total é mudada: o tônus muscular do tronco, a pressão dos pés, dos olhos, o equilíbrio. Com uma mudança na maneira cotidiana de olhar, eles são capazes de dar ímpeto a todo um novo patamar de energia (1995, p. 105). O que remete diretamente à reflexão de que esse patamar é que pode servir de revigoramento/ “renascimento” no novo olhar através da máscara dos Caretas. Nas máscaras dos Caretas além da abertura dos olhos impedirem a visão total, ainda trás o capuz debaixo da máscara contribuindo não só para o olhar interior, mas para olhar o espaço físico de maneira limitada, consequentemente reconfigurada. Uma das críticas positivas de Benjamin (1994) em relação ao teatro de Brecht é a questão de tentar enfatizar a artificialidade da obra, transmitindo a ideia que tudo que se vê, não só no teatro, são relações artificiais construídas por homens, podendo assim, serem modificadas pelos próprios homens. O homem é histórico, portanto não é um personalidade imutável, assim como o ator troca de papel ou personagem o homem também pode. No seu teatro, Brecht fazia os atores interromperem o personagem e comentarem sobre o próprio personagem, assim como fazia uso de máscaras, tudo para romper com a unidade da ação e desnaturalizar as práticas cotidianas, interrompendo para criar um elemento novo. Mostrava que o homem pode ir se modificando, distanciando do personagem inicial. Incitando a reflexão para a possibilidade de fazê-lo na vida real, no cotidiano. Questionar a própria 84 realidade era a intenção de Brecht assim como da arte em geral, e o artifício da máscara contribui significativamente para tal intencionalidade. As máscaras no Bloco também são um artifício pra provocar essa potencialidade que Brecht salientava. Interromper a seqüencialidade banal da vida, para criar um elemento subjetivo novo, questionar o cotidiano de uma forma a interrompê-lo pra criar algo novo. Romper ou interromper o continum da vida diária é um pré-requisito básico para intercambiar singularidades. Dispensar referências do saber suposto fundamenta o encontro com referenciais de/em si. Conseguir olhar além da realidade socialmente imposta já se faz relevante por si só, ter uma segunda interpretação do mundo a nossa volta e de nós em volta do mundo. Contudo, esse olhar não-oficial legitima o oficial à medida que o nega. Ou seja, se o nega luzindo um novo olhar, acaba por afirmá-lo numa relação dialética. Nem por isso descarta toda a gama de possibilidades na relação de um novo olhar, na relação de morte e renascimento recorrente em rituais, como elucidaremos agora. Para começar, se faz relevante salientar que a aproximação da análise bakhtiniana a respeito do carnaval com o Bloco se faz basicamente nessa relação orgânica, coletiva e visceral, na qual a sensação carnavalesca do mundo transpõe-se para uma sensação corporalmente vivenciada, ao mesmo tempo experimenta uma outra dimensão mental da realidade. Tocar o plano das sensações também parece ser o grande atrativo de Ligia Clark. Em sua arte não havia separação entre sujeito e objeto, havia sim uma fusão que fazia o corpo vibrar. Uma arte que operava no micro-político, pois trazia objetos relacionais que ativava a memória e geravam sensações que marcaram acontecimentos, situando-se mais apropriadamente numa imbricação de vida e arte. Não é novidade que os fenômenos liminares encobrem a disjunção no simbolismo da transição entre morte e renascimento. Com o artifício da máscara, na medida em que um mascarado olha para o mundo de outra maneira, experimentando outras percepções, produzindo outros pensamentos, existe a possibilidade de alterar seu imaginário sobre o mundo. Se não ressignificação, Bakhtin mostra que seria a renovação, revigoramento, o momento que a máquina estrutural pára e os povos suspendem. “O carnaval celebra a mudança e a renovação do mundo. (...) As festividades (de carnaval) têm sempre uma relação marcada com o tempo, o tempo da morte e ressurreição, alternância e renovação” (1993, s/p). 85 Esse aspecto demonstra a relação restrita com os ritos de passagem enunciado por Van Gennep (1978), a morte de um “estado” e “ressurreição” de outro. Nesse sentido, Bakhtin lança luz sobre a hipótese de que ao colocar a máscara de carnaval os foliões morrem e passam por um processo de renovação. O rosto agora sem máscara não é o mesmo de quando saiu de cena ao se esconder sob a máscara. A fronteira entre rosto (cotidiano) X máscara (arte, sublime) provocou um mundo de possibilidades, de revitalização pelo aspecto regenerador e renovador da máscara, que recobre a “natureza inesgotável da vida e seus múltiplos rostos” (BAKHTIN, 1993, p. 36). Kusano (1988) também referencia a atmosfera de vida e morte no ritual da travessia onde a máscara torna-se um rosto e o rosto uma máscara no teatro Nô. Onde a força do inconsciente sobrepuja o consciente como um grito da natureza anuncia um espaço cósmico de comunhão dos homens e da vivência no sentido mais profundo. Em sua passagem ruidosa, os Caretas emanam diversas vozes, gritos de alegria e terror, de descarrego das energias boas e ruins acumuladas na vida desvairada habitual. O teatro da crueldade de Artaud também usa os gritos e urros com o objetivo de quebrar as amarras de consciência e logicidade com que nos camuflamos/protegemos, procurando libertar a nossa outra face, o nosso lado inconsciente e instintivo, a festa e a genialidade reprimidas, podendo ser um grito silencioso também, interno56. Um lugar onde as miragens e a sensação de se mover em direção ao nada, sejam superados pelo olhar a desvendar subúrbios. A restrição intercalada nas crises de cada um pode querer dizer coisas ainda sem nome ou referir exílios, quando os contornos inesperados começarem a surgir (STRANSBURGER, 2010). A criação de um Careta, mais o ato de performá-lo, é o processo pelo qual o sujeito usa o artifício máscara para transitar na experiência limiar. E aqui nessa zona limítrofe expor a si e ao outro, articulando-se simultaneamente, nem sujeito nem máscara existindo a priori, porém sendo a possibilidade da existência múltipla, de dar existência à diferença que singulariza. Podemos chamar esse fenômeno de processo de desmascaramento de si. O processo de desmascaramento de si, usando como suporte a máscara, desconstrói as nossas interpretações automáticas para induzir formas descontínuas, espasmódicas de percepção. Esse sentimento de embriaguez pode ser motivador de criatividade.57 56 QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud - Teatro e Ritual. São Paulo: Ed. Annablume, 2004. Ver: RÖHL, Ruth Cerqueira de Oliveira. O teatro de Heiner Muller – Da Construção à Desconstrução. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. (p. 95,96). 57 86 4.4 Arte e vida A performatividade recria comportamentos em relação ao seu contexto, sua interação com a platéia, suas inter-relações sociais e políticas bem como seus contextos culturais. Para isso deve-se deixar experimentar a não-utilidade, experienciar o risco. A arte cruel é a arte da sensação. Sensação que gera efeito, sensação que belisca os afetos e é vital. Barba (1995) diz que “a sensibilidade é colocada num estado de percepção mais aprofundada”. Agindo nas sensações a performatividade adquire o caráter de micropolítica, pois resvala nos afetos que se fragmentando se liga a novas subjetividades. Por isso a performance aparece como fenômeno de deslocamento para a vivência de arte e vida interligados, para experimentar momentos de um estado holístico onde vida, mente, cidade, homem/mulher, arte, pensamento, tudo se encontra junto, imbricado em um todo ininterrupto. Intervindo no plano micro do sensível, a arte da performance intervém na realidade sensível em constante mudança, provocando colapso de sentidos, enfim, provoca um desordenamento interno por algum lugar, por algum lugar implanta um caos, o que pode gerar mudanças. Por isso é vital! Necessitamos de caos interno. E o que parece é que a arte da performance (como poderia ser outra também) e a máscara são chaves para rasgar o guardasol. Turner (1987, p.79), ao buscar esclarecer os pressupostos da "antropologia da performance", menciona Sally Moore, autora que defende o ponto de vista de que “a ordem social não é determinada, sendo as categorias, portanto, flexíveis e manipuláveis”. Se até mesmo a ordem social é flexível, quem dirá o ser humano. Ainda nesse viés, as potencialidades da experiência performativa e o olhar através da máscara no Bloco não vão apenas no sentido de provocar lampejos de singularidade no indivíduo, mas esses lampejos podem flexibilizar inclusive a ordem social, a medida que flexibilizam o sujeito social. E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim. (GOTLIB apud FONSECA, 1998, p. 131) A declaração de Gotlib diz mais que qualquer argumentação. A máscara é o reflexo dos inexplicáveis personagens na atualização descontínua das múltiplas faces. Um ponto de 87 vista nos imperceptíveis múltiplos disfarces. Strassburger (2007) afirma que há que se ter plasticidade para descobrir as senhas às rotas e exceção. A plasticidade das máscaras e do performer-careta que se expressam no roteiro sem roteiro do Bloco, dão inicio a uma situação paródica e alternativa dos espantos consigo e com o outro. A máscara parece ser o ponto principal para a travessia do cotidiano. Não é por acaso que ela foi eleita como o símbolo do teatro. Se estivermos o tempo todo “representando uma máscara social cotidiana” (GOFFMAN, 1995), então o rosto sem máscara poderia ser o que está através da máscara do monstro. Lampejos do rosto sem máscara é o que se depreende da análise. A problematização que a priori parecia um paradoxo de os sujeitos necessitarem de contato com estímulos particulares, ao mesmo tempo ser necessário estar integrado com o outro em coletividade, se desvenda surpreendentemente como complementaridades. O desmascaramento de si no Bloco dos Caretas é um ato individual que, a partir do momento que intervém na cidade, se torna ato coletivo. Maffesoli diz que “O desabrochar de cada um, no próprio seio do cotidiano, só pode valorizar o bem-estar coletivo” (1995, p. 71). Assim, o estado holístico, o corpo comunitário, a máscara, a performatividade, são artifícios pra despreender-se do chão e sobrevoar próximo as nuvens de singularidades onde arte e vida se encontram. 88 CONSIDERAÇÕES FINAIS Se o homem contemporâneo precisa mais que nunca atualizar suas subjetividades por conta da multiplicação dos estímulos exógenos (como, por exemplo, na comunicação que possibilita trocas antes não imagináveis, produzindo assim misturas físicas e mentais, as quais a impossibilitam traçar origem narrativa e limites de identidade), os valores da “modernidade” vão se tornando inusuais. Os sujeitos são vários possíveis, seus fluxos produzem a diferença, pois as fronteiras vão ficando tão ínfimas que a proliferação dos híbridos é inevitável. Assim outras situações e formas vão surgindo, obrigando o sujeito a inventar novas formas de sociabilidade e de acesso a singularidades para se adaptar ao meio social. A reflexão sobre inventar outras maneiras de sociabilidade, não é inédita. Há vários artigos e teses de diferentes áreas com essa proposta. Como vemos em Guattari (1992) as práticas sociais e subjetividades estão em construção. Segundo esse autor as dimensões dos novos movimentos sociais vão no sentido de conceber novas formas de viver em sociedade: luta para que o espaço público volte a ser público, não só fator econômico; afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções de mundo, pois que ao se produzir essas outras percepções, altera-se o imaginário sobre o mundo.58 Visualizou-se essa tendência contemporânea em paradoxo com os modelos modernos; como a pirâmide da desigualdade social, que encontrando seu cume, também se encontrou sozinha, formando outra pirâmide acima ao contrário numa linha ascendente, porém crescente em largura para os “reencantamentos” do mundo. A dissertação reforça as concepções de Maffesoli (2007) ao declarar que na contemporaneidade começa a proliferação do hedonismo e recuperação dos saberes sociais, do conhecimento comum, dos misticismos, etc., como um “desafunilamento” da pirâmide. Além disso, na contemporaneidade substitui-se a idéia de que é preciso não ter modelo, para sim, inventar modelos, ou seja, a produção do futuro flui e não precisa necessariamente ser ensinada. Alguns autores abordam sobre esse contexto, como Walter Benjamin com o “gesto da criança” e Guattari com os “processos disruptores no campo da produção dos desejos”. Maffesoli também contribui prevendo “agir sua criação sobre aquilo que está „ao alcance da mão‟”. E mais, que esse processo pode “fazer da existência uma 58 A busca de novos sentidos, olhares, valores, realidades é uma tendência de acordo com Deleuze e Guatarri. Eles ponderam sobre a articulação com outros processos de singularização, do corpo sem órgãos, o qual se identifica por estruturas que subvertem as ordens das coisas e inventam sentidos e valores. 89 verdadeira obra de arte”, desvelando a possibilidade de vislumbrar outra maneira de estar no mundo (MAFFESOLI, 1995, p. 68).59 As rupturas colaboram para um cenário em que as intersecções compõem uma poética contemporânea. Nesse contexto, a preocupação com o objeto de estudo se fez indubitavelmente atual, já que o mesmo se caracteriza como a ruptura com o cotidiano, como um ponto de intersecção no modo de olhar cotidiano com outro modo lúdico de olhar, o que posteriormente deve provocar um novo olhar, contribuindo assim para a dita poética atual. Aparentemente caóticas, as cidades e os sujeitos são inseridos num tempo multíplice e complexo, de significados variados, contraditório e fendido. Nesse ínterim, o homem contemporâneo precisa cada vez mais renovar suas subjetividades, tornando vital o acesso a singularidades. A realidade referencial foi diluída pelo craquelê de imagens que se entrelaçam ao cenário atual, cedendo lugar à hiper-realidade, construída pelos espectros que permanecem insistentemente no presente. Assim, esse homem não pode estar preso à realidade entendida, e, etnocentricamente convencionada como única. De acordo com a pesquisa, conclui-se que o espaço limiar do estado-metáfora é o espaço para construções individuais, que ao longo do processo ganha legitimidade para se tornar coletivo. Segundo Bourriaud (2009), na tradição filosófica materialista de Epicuro e Lucrécio, os átomos caem paralelamente no vazio. Se um desses átomos se desvia do curso, provoca uma colisão que vai engavetando o nascimento de um mundo. Assim nascem as formas: do desvio e do encontro aleatório entre dois elementos até então paralelos. Nesse sentido, Calabrese também afirma que o espaço vazio é prodigioso. Se não desviarmos do guarda-sol, se não ultrapassarmos o corpo lógico, se não proporcionarmos espaços para acessar singularidades, se não experimentarmos o perigoso e impreciso, nunca criar-se-iam novos mundos. Entende-se assim, que a experiência limiar do estado-metáfora é porta de entrada para esse desvio/ruptura, e a máscara seu artifício, pois é ela que encerra as sujeições e concepções apriorísticas do “personagem cotidiano”. A máscara foi o elemento mais democratizador do Bloco, elevando todos sem distinção ao estado-metaforizado de olhar, escondendo a mulher quando ela não tinha esse direito, a máscara é a terceira via, o mestiço de Serres... Nem homem, nem mulher, nem bicho, nem ser humano, nem na estrutura social, nem na loucura total... 59 Para os limites da pesquisa propus uma experiência momentânea, que não por isso enfraquece sua potencialização. 90 A máscara e a performatividade do Bloco, assim como a experiência coletiva, são partes do que Dawsen chamou de “caos criativo, capazes de surpreender, com efeitos de estranhamento, as configurações do real, energizando e dando movência aos elementos do universo social e simbólico” (2005, p. 173). Para Dawsen embora elas estejam às margens de processos centrais de reprodução de vida social, estas expressões liminóides promovem a transformação das relações humanas. Por meio de paradoxo, ambigüidade, contradição; de símbolos incomuns, exagerados e, por vezes, grotescos – máscaras, indumentária, estatuetas –; e pela evocação de realidades transcendentes, do mistério e de poderes sobrenaturais, o liminar nos oferece uma visão do mundo, que normalmente não enxergamos, cegados pelas estruturas usuais da vida social e cultural (Crapanzano, 2005, p. 380). Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é difícil acordar e olhar como num sonho, com olhos que não sabem mais para que servem e cujo olhar está voltado para dentro (Artaud, 1993, p. 6). O ambiente já existe e aparentemente não pode mudar, mas o ator (assim como o Careta e seu artifício da máscara) usa sua presença para fazer surgir um personagem “na arquitetura que normalmente não somos capazes de ver, por causa dos hábitos cotidianos e usos que não mais experimentamos com um olho são” (BARBA, 1995, p. 71). [grifos da autora] Para alcançarmos as conjeturas desses autores se faz relevante salientar a relação do Bloco dos Caretas com a que Bakhtin define sobre carnavalização. Ele define expressões carnavalizantes como uma relação experimentada concretamente num contato vivo, material e sensível. E essa é, para ele, a “relação verdadeiramente humana”, a qual o homem “tornava a si mesmo (BAKHTIN, 1993, p. 9). Se nesse contexto próprio é que somos “verdadeiramente humanos”, que o “olho está são” e que nossos sonhos não nos deixam “dormir”, conclui-se que a nossa posição na vida cotidiana remete ao que Mauss chamou de “animais domesticados”, domesticados ou docilizados (Foucault) pelos processos de aprendizagem das regras de sociabilidade, nossos contratos sociais e demais convenções educadamente apreendidas no processo civilizatório. Vale ressaltar a conexão dessa discussão, do processo de carnavalização e mascaramento, com a hipótese da singularidade – o “tornar a si mesmo” remete a um sentido natural, a uma impressão de acesso à singularidades, assim como a ênfase nas sensações. Bakhtin ainda vai além: “a alienação desaparecia provisoriamente” (Ibid.). É interessante perceber a inversão das definições julgadas comumente: o humano aqui é o não 91 normatizado/civilizado; e a alienação é justamente esta estrutura político-social institucionalizada. Além do “olho são” mostrar o que não enxerga-se no olhar cotidiano adoecido com as mazelas sociais. De tal modo, podemos concluir que a forma na qual a cultura nos serve de referência, ou os olhos habituais, civilizados, implicam um alto grau de miopia a ponto de não conseguir enxergar mais o que se quer intimamente olhar, mas sim a perspectiva que os hábitos culturais convencionaram, conectados pela inexorável lógica que a realidade aplica para corrigir o sonho. Assim sendo, experimentar “estados-metáfora” se faz vital para os sentidos, imbricações e exigências da cultura contemporânea, como menciona Peter Pelbart: Não podemos deixar de ver aí, nessa “desordem” sugerida, a reivindicação por uma navegação temporal intensiva, cujos indícios nos chegam da arte, dos loucos, da lógica do hipertexto, das agitações micro e macropolíticas, da paixão de abolição de uns ou das linhas de fuga ativas de todos aqueles para quem o colapso do tempo universal e hegemônico não representa o fim dos tempos, muito pelo contrário. Por meio dele talvez nos seja oferecida a ocasição para que o tempo da vida deixe de ser impelido unicametne pelo vampiresco e acachapante vetor do capital, em favor de múltiplas temporalidades, inéditas e singulares. (…) O tempo dos loucos, ou da arte, e o tempo da liminaridade, não deveria ser lido apenas como um domínio patológico ou exótico, mas como uma amostragem complexa daquilo que resite às tiranias do tempo contemporâneo, das micro-políticas temporais e igualmente daquilo que nele se gesta de mais inventivo e perturbador (2000, p. 50). A tessitura contemporânea concebe discussões acerca da multiplicidade de vozes e vezes que reverberam em discursos que não foram ouvidos. A crise ideológica provocada pela frustração dos compromissos encharcados de demagogia que a modernidade desprezou, na atualidade acabou contribuindo com o ressurgimento de uma nova ótica sobre os acertos do passado e sua reciclagem. Enquanto os dias iam se passando na ante-sala das promessas não cumpridas, a ciência buscando a “verdade” esqueceu que se baseia em pressupostos arbitrários; menospreza outros ingredientes humanos como a relação com o mundo, a intervenção do sujeito, a eficácia das “verdades” singulares, a escolha de um indivíduo singular entre os elementos impessoais e genéricos da linguagem, etc. Nesse sentido, a experiência de se passar por um monstro de Careta, desprovido de qualquer máscara social que os faça pertencer, pode facilitar o acesso ao caos potencial do espaço-desarticulado-das-convenções-culturais, ou melhor, do vazio necessário para essas construções subjetivas que tanto querem Rolnik e Guattari. Todo o ritual desde a confecção das máscaras, concentração, colocação das máscaras, saída do ginásio, e a peregrinação por outro espaço/tempo “sem rosto”, se faz essencialmente num processo! O Bloco dos Caretas é constituído, decisivamente, por pessoas simples e sem contato especial com arte, que se vêem 92 despretenciosamente em processualidade. Participam de toda integração com o outro, com o lugar, com o tempo cósmico, em permanente movimento e criação. Se arte é processo, e o processo é ritualístico, a arte não deixa de ser ritual e o ritual do Bloco dos Caretas não deixa de conter aspectos artísticos com os potenciais da processualidade. Quando se é capturado pelo processo do rosto mascarado, abandonando também as referencias do saber constituído, passa-se a viver desdobramentos, integralidade com um todo, flutua-se na indivisibilidade. Os Caretas em carnavalização simulam um estado coletivo ideal sem hierarquias, sem barreiras de status e condições sociais. O destronamento das hierarquias da vida cotidiana, como bem argumenta Bakhtin, destrona também a lógica da identidade, engendrando espaços para acessar singularidades, auto-referência, de forma a distanciar do ser esperado e definido a priori. E se descobrimos que uma festa caracterizada pela mistura de artes, pelo desvelar criativo de cidadãos comuns se revelando artífices de esmeras esculturas, além da construção de personagens inusuais performados pelos mesmos, se esses gestos possibilitam também a dita ultrapassagem do cotidiano e um “olhar são”, entende-se que o processo de construção da máscara e de performatividade revelam-se elementos surpreendentemente atuais e necessários para o tempo contemporâneo, destacando-se assim, como artifícios chaves de reflexão. O Bloco dos Caretas foi criado desde a década de 1940 e até hoje representa o auge da cultura guiratinguense. Essa atualização se faz por uma forma de sociabilidade que diminui a partir da modernidade: as pessoas compartilhando coisas em comum. A separação das instâncias da vida na modernidade, assim como o uso da razão como soberania e consequente “desencantamento”, mobilizou depreciadamente manifestações tais como as essa para o campo dos arcaicos, pobres, sujos, ou do ultrapassado. O valor e representatividade que ao contrário elas alcançam ainda hoje 60 ultrapassam esses modelos modernos pelo desejo em participar de questões simbólicas em comum, de ver o mundo de uma maneira mais suave, se “reencantar” pelo mundo, de experimentar „metáforas da vida‟. 60 Seu valor atual reflete o que Gruzinski (2001) aponta para a mistura de elementos de outros tempos com o atual como composição do tempo contemporâneo. A questão da poética contemporânea do deslocamento. 93 ANEXO 94 BIBLIOGRAFIA ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993. _________. Linguagem e vida; org. J. 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